Folha do Educador

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FOLHA DO EDUCADOR Junho / 2010

N05

U MA P U B L I C AÇ ÃO D O D ' I N C AO I N S T I T U TO D E E N S I N O

A Droga da obediência A Ritalina e o sonho dourado de Hitler MEIO AMBIENTE

Nova York agora exporta seu lixo

PÁG. 12

TEATRO

A luta pela sobrevivência no interior PÁG. 09

HISTÓRIA

Um imperador europeu no México

PÁG.10

LITERATURA

Os últimos dias de Oscar Wilde

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TECNOLOGIA

A escola informatizada adequadamente PÁG. 16


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EDITORIAL A quinta edição da Folha do Estudante aborda um tema complexo e controvertido: a medicalização no ambiente

escolar. O uso de drogas fabricadas pelos grandes laboratórios e receitadas pelos médicos para curar supostas doenças com-

portamentais está aumentando consideravelmente nas salas de aula. Num pacto bem ur-

dido, governo e indústrias se unem com dois intuitos bem claros: lucrar desmedidamente e desviar o foco dos proble-

mas educacionais causados pelo próprio governo, culpando doenças inexistentes pelo nosso baixo nível educacional.

ARTIGO

A Ritalina, o mercado e o neoliberalismo

A indústria farmacêutica também vive da criação de doenças inexistentes e lucros espetaculares Carlos D’Incao

N

ão é novidade para aqueles que compreendem a dinâmica da sociedade contemporânea o fato de o sistema capitalista não apenas produzir mercadorias, mas também produzir as necessidades para o consumo de sua produção. A operação lógica de nosso sistema econômico transita em todos os setores de nossa sociedade, em todas as indústrias e motivando uma transformação na própria relação do indivíduo para com o seu mundo material. A indústria farmacêutica não é exceção. Ela precisa produzir a mercadoria e também precisa produzir a necessidade. Ela opera dentro da lógica do capital. Se essa operação ainda não se traduz na sua forma mais plena é porque o próprio capital não tem ainda o pleno e absoluto controle sobre a produção. Há ainda resistências, há ainda questionamentos e sobretudo, há ainda tentativas de superar essa lógica do capital sobre indústrias, governos e médicos compactuam uma suposta cura para a educação através do uso indiscriminado de drogas. a forma de luta organizada. Diante desse ambiente e funcionamento “complexos” A Ritalina é apenas a favor das classes produtivas. ca e gratuita é aquela que mais o pico de um enorme iceberg Essa guinada é conhecida como sofre ataques de todas as formas onde afloram concepções ide- mas que sempre tendem a reveque vem no sentido de colidir “desmantelamento do Estado de e frentes. A educação não ape- alistas e naturalizantes do de- lar problemas de origem fisiolóde forma frontal e nociva com Bem-Estar Social”. As políticas nas sofre com cortes em investi- senvolvimento do ser humano, gica. Pronto. Basta agora uma a nossa realidade - já bastante neoliberais querem retirar os mentos, mas também é obriga- a escola tem cada vez mais pro- simples nomenclatura e temos combalida pela reprodução de avanços democráticos que ainda da cada vez mais a se submeter duzido os denominados “não- uma doença do comportamenuma lógica econômica histori- insistem em sobreviver dentro à adoção de “novas pedagogias” adaptados”, na verdade produto to, chamada por um impreciso, camente desgastada. Mesmo as- do Estado. Seus ataques não se supostamente mais modernas e do fracasso do próprio modelo porém charmoso, termo: “transsim, vale a pena dedicarmo-nos resumem a apenas cortes finan- adequadas à realidade - que na educacional, modelo este que torno”. Como tratar esses ‘transa esse fenômeno, que está longe ceiros, mas também a propostas verdade apenas têm como meta não se limita ao espaço escolar, de novas “leituras administrati- a retirada da transmissão do co- e acaba também contaminando tornos” do comportamento? A de ser simples de entender. A sociedade contempo- vas”, reformas “modernizado- nhecimento do cerne da educa- as concepções mais amplas de indústria farmacêutica tem a resrânea, nos últimos vinte anos, ras” e à adoção de métodos su- ção e a descaracterização da fun- educação no ambiente familiar e posta: Ritalina. Efeitos colaterais? Existem muitos. Problemas? Nepassa por uma guinada reacio- postamente mais “eficientes” e ção do já pauperizado professor. social. Cria-se assim um ambiente de Esses “não-adaptados” nhum! Existem já os medicamennária que ataca de forma frontal adequados à “nova realidade”. Dentro de todas as con- entropia e empobrecimento cul- precisam ser explicados fora do tos que atuam sobre os efeitos coe deliberada todos os avanços quistas sociais, a educação públi- tural da classe trabalhadora. sistema, não como produtos laterais. Resultado: dependência conquistados pelas lutas sociais dele. A culpabilização do e necessidade. fracasso escolar (segundo os Dessa forma, o neolibeCNPJ 09028502/0001-03 que defendem a medicali- ralismo criou os transtornos que zação) não visa nem à esco- criaram a Ritalina que criou a neEditor Chefe: Jornalista Responsável: la, nem aos pais: a culpa só cessidade. Não necessariamente Carlos D’Incao Paulo Neves /MTB: 10.253/SP pode ser da criança. A úni- nessa ordem, mas necessariamenLuís Paulo Domingues/MTB: 42.489/SP ca terapia, vista pelos atu- te dentro do mesmo propósito. Editores Colaboradores: ais modelos escolares como Quebrar esse propósito vai além Diagramação e Projeto Gráfico: Paulo Neves adequada, é aquela que vem de quebrar o uso do medicamenMarcelo Rino Pedro D’Incao atender à mesma ideologia to. É necessário superarmos a lódo sistema, isto é, aquela que gica que produziu essa realidade: Endereço: Assinaturas: (14) 3227-3524 vem no sentido de explicar a lógica do capital que gera desde Entre em contato com a redação Rua Fuas de Mattos Sabino, 15-65 o fenômeno da não adap- a guerra até crianças que se drocontato@folhadoestudante.net Bauru-SP / Tel: (14) 3227-3524 tação a partir das estruturas gam e se viciam aos quatro anos Uma publicação D’Incao Instituto de Ensino intra-psíquicas do indivíduo, de idade em um já não tão mais estruturas estas de origem “admirável mundo novo”.

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CAPA - MEDICALIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO

A Droga da obediência

D’Incao entrevista especilistas e declara guerra às drogas do comportamento Carlos D’Incao, Denise D’Incao e Luis Paulo Domingues

O

uso de drogas para corrigir supostos transtornos associados ao desempenho e ao comportamento dos alunos tomou vulto na virada dos anos 60 para os 70 do último século. No Brasil, porém, nunca foi tão grande a adesão de médicos e de falsos educadores a essa prática absurda, desumanizadora e, como esta matéria pretende comprovar, imbuída das piores intenções por parte dos laboratórios farmacêuticos e dos governos. E também por uma certa dose de inocência e amortecimento crítico por parte dos pais. Marisa Eugênia Melillo Meira e Nádia Mara Eidd, psicólogas e professoras da Unesp de Bauru, dedicam-se profundamente a esse tema, e estão, junto com outros colaboradores, prestes a lançar um livro que será fundamental para desmascarar o uso indiscriminado de medicamentos para “corrigir” distorções de comportamento, os chamados déficits de atenção, em crianças e jovens. “-Em primeiro lugar, gostaríamos de esclarecer que nós não somos contra remédios ou contra a medicação de pacientes que têm doenças reais, reconhecidas como tal pela medicina”, explica Marisa. “-O foco de nossos estudos e o que nós queremos combater é essa medicalização absurda, em que os médicos pretendem tratar doenças que nunca existiram”, completa. Segundo as pesquisadoras, o uso desenfreado de remédios nas salas de aula é um modo que os médicos e os educadores encontraram - juntos em uma parceria muito conve-

Indústria farmacêutica “-A indústria farmacêutica também está no cerne da questão”, diz Nádia. “-Os fabricantes precisam vender cada vez mais, então criam esses remédios e inventam diagnósticos de doenças que não produzem sintomas. Ou seja, criam as doenças e infestam o mercado com remédios para elas”, lamenta. “-E como ninguém debate esse assunto, como esse absurdo é ignorado pela maioria, não há a preocupação nem de esconder o processo”, diz Marisa. “-O médico, associado à indústria farmacêutica, publica trabalhos científicos para justificar a medicalização e coloca no final: esta pesquisa foi financiada pelo laboratório tal”, salienta. “-Essa parceria das indústrias com o Estado está

Como em "Laranja Mecânica": a ritalina teria capacidade de "controlar" a mente do estudante; no filme não deu certo. niente com os governos - para medicalizar um problema social. Na impossibilidade - ou na falta de vontade política - de resolver os problemas da educação, os governos preferem promover a biologização desses mesmos problemas, transformando-os em patologias. “-É um processo claramente ideológico”, diz Marisa. “-A prova disso é que em 116 anos do início da medicalização educacional, nunca a medicina conseguiu comprovar a existência dessas doenças ou transtornos”, completa Nádia. E continua: “-Nem no código internacional de doenças (CID) essas patologias estão catalogadas.” O problema verdadeiro, segundo as psicólogas, está na família, no professor e no modelo educacional. “-Isso não dá para ser corrigido com remédios”, ressalta Nádia. Segundo ela, o maior índice do IDEB

(Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) no Brasil é de 3,7, numa escala de 1 a 10. Além disso, apenas 4,8% das crianças de 4a série dominam a língua escrita. “-O que significa isso?”, pergunta Nádia. “-Como é que supostas doenças podem justificar uma escola em que a maioria não aprende? Se isso fosse verdade, ou seja, se a maioria estivesse com déficit de atenção, hiperatividade ou qualquer outra dessas doenças fantasiosas, seria o caso de constatarmos uma verdadeira mutação genética nas novas gerações”, ironiza. E complementa: “-É inconcebível que a biologia condicione o comportamento dos seres humanos. O problema da atenção em sala de aula, por exemplo, é um problema que se resolve através do ensino. A atenção se produz através do ensino”.

cada vez mais clara”, explica Marisa. “-É o Estado responsabilizando as crianças e adolescentes pelos problemas que deveriam ser de sua alçada.

contemporânea já é hiperativa. Hoje o ritmo de vida é um e o ritmo da escola é outro. Acabamos vendo descalabros como casos de alunos que acabaram de iniciar a vida escolar e já são diagnosticados como doentes. Não há nem o tempo de adaptação”, dizem. “-Muitas vezes, a criança não se adapta porque a própria escola não faz mais sentido para o aluno”, ressalta Marisa. “-Para se produzir e adquirir conhecimento, é preciso atribuir significado a esse conhecimento. O que a escola está fazendo nesse sentido?”, indaga. Marisa explica que a ritalina veio para substituir os antidepressivos, para superálos. Em 1996, diz ela, o Prozac vendeu mais que a Aspirina. Superar o Prozac, portanto, significa uma soma imensa de dinheiro.

A ritalina no lugar do mediador

A Ritalina, ao lado do Conserta, são os remédio largamente receitados para o déficit de atenção e para a hiperatividade. Mas existem muitos outros. As pesquisadoras relataram casos de crianças que estavam tomando cinco medicamentos ao mesmo tempo. “-O problema da Ritalina é que ela vem substituir o mediador, que é naturalmente o professor”, dizem as pesquisadoras. E ainda rebatem o conceito de hiperatividade: “-Não é que as pessoas sejam hiperativas. A sociedade

A exclusão dos incluídos O subtítulo acima é o tema do livro de Marisa Meira, com a participação de Nádia e de diversos outros estudiosos, que mostra como o governo usa essa biologização dos problemas educacionais

progressão continuada, que está associada ao construtivismo (que também possui uma visão biologizante da educação), e a medicalização foi a solução que o Estado encontrou para os problemas pedagógicos do aluno”, discorre a psicóloga. “-Só que isso significa a negação de um ensino de qua-

A medicalização representa a negação de um ensino de qualidade para grande parte da população. para se eximir de sua responsabilidade de educar. “-No passado não havia escola para todos, então havia um porquê um tanto lógico de as pessoas não aprenderem. Agora o ensino chegou a todos, mas as taxas de repetência são muito altas. Para justificar o não aprendizado, o governo paulista criou a

lidade para grande parte da população. É uma maneira extremamente ideológica que o governo e o poder têm de manter a exclusão. Assim como o construtivismo, a medicalização vem como o esvaziamento do papel do professor e da escola, como um instrumento de dominação ”, complementa.

Transtorno de opositor e desafiante (TOD) Segundo Marisa e Nádia, esse será o novo “lançamento” da indústria farmacêutica e da falsa medicina. Uma forma de abater o pensamento crítico já no nascedouro. Qualquer pessoa que questionar o que está estabelecido poderá virtualmente ser diagnosticada como doente. O problema, segundo elas, é que nem se discute quais são as regras que estão sendo desafiadas. Simplesmente, exclui-se o debate. Na internxet encontra-se artigos definindo a TOD (ou TDO), como no endereço http://www.scielo.br/pdf/rbp/v26n4/ a13v26n4.pdf , cuja introdução está a seguir: O transtorno desafiador de oposição (TDO) é um transtorno disruptivo, caracterizado por um padrão global de desobediência, desafio e comportamento hostil. Os pacientes discutem excessivamente com adultos, não aceitam responsabilidade por sua má conduta, incomodam deliberadamente os demais, possuem dificuldade em aceitar regras e perdem facilmente o controle se as coisas não seguem a forma que eles desejam. O DSM-IV, o sistema diagnóstico mais amplamente utilizado, define o diagnóstico como um modelo de comportamento que satisfaz quatro (entre oito) critérios por pelo menos seis meses com disfunção social ou ocupacional. A prevalência de TDO em amostras da comunidade está em torno de 6%.


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CAPA - MEDICALIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO Consequências do uso de Ritalina (retirado da bula do remédio)

RITALINA é um estimulante do sistema nervoso central. Seu mecanismo de ação no homem ainda não foi completamente elucidado, mas presumivelmente ele exerce seu efeito estimulante ativando o sistema de excitação do tronco cerebral e o córtex. O mecanismo pelo qual ele produz seus efeitos psíquicos e compor-

tamentais em crianças não está claramente estabelecido, nem há evidência conclusiva que demonstre como esses efeitos se relacionam com a condição do sistema nervoso central. RITALINA - Reações adversas O nervosismo e a insônia são as reações adversas mais comuns. Ocorrem no início do tratamento e são usualmente controlados pela redução da dose e pela omissão da dose da tarde ou da noite. A diminuição de apetite é

também comum, mas geralmente transitória. Sistema nervoso central e periférico. Ocasionais: Cefaléia, sonolência, tontura, discinesia. Raras: dificuldades de acomodação da visão e visão embaçada. Casos isolados: hiperatividade, convulsões, cãimbras, movimentos coreoatetóides, tiques ou exacerbação de tiques pré- existentes e síndrome de Tourette, psicose tóxica (algumas vezes com alucinações visuais e tác-

teis), humor depressivo transitório, arterite e/ou oclusão cerebral. Trato gastrintestinal: Ocasionais: dor abdominal, náusea, vômito. Ocorrem usualmente no início do tratamento, podendo ser aliviados pela ingestão concomitante de alimentos. Boca seca. Sistema cardiovascular: Ocasionais: taquicardia, palpitação, arritmias, alterações da pressão arterial e do ritmo cardíaco (geralmente aumentado).

Veja se você tem déficit de atenção

Responda o questionário da Sociedade Brasileira de Déficit de Atenção para diagnosticar a doença em crianças e adolescentes. (www.tdah.org.br/diag01.php ) Obs: interessante perguntar: se qualquer pessoa pode diagnosticar o TDAH, qual a importância do médico e da medicina no proceso?

Rara: angina pectoris. Pele/hipersensibilidade: Ocasionais: rash, prurido, urticária, febre, artralgia, alopecia. Casos isolados: púrpura trombocitopênica, dermatite esfoliativa e eritema multiforme. Sangue: Casos isolados: leucopenia, trombocitopenia e anemia. Outras: Raras: redução moderada do ganho de peso e leve retardamento do crescimento, durante terapia prolongada em crianças.

Como avaliar: 1) se existem pelo menos 6 itens marcados como “BASTANTE” ou “DEMAIS” de 1 a 9 = existem mais sintomas de desatenção que o esperado numa criança ou adolescente. 2) se existem pelo menos 6 itens marcados como “BASTANTE” ou “DEMAIS” de 10 a 18 = existem mais sintomas de hiperatividade e impulsividade que o esperado numa criança ou adolescente. O questionário SNAP-IV é útil para avaliar apenas o primeiro dos critérios (critério A) para se fazer o diagnóstico. Existem outros critérios que também são necessários. IMPORTANTE: Não se pode fazer o diagnóstico de TDAH apenas com o critério A! Veja abaixo os demais critérios. CRITÉRIO A: Sintomas (vistos acima) CRITÉRIO B: Alguns desses sintomas devem estar presentes antes dos 7 anos de idade. CRITÉRIO C: Existem problemas causados pelos sintomas acima em pelo menos 2 contextos diferentes (por ex., na escola, no trabalho, na vida social e em casa). CRITÉRIO D: Há problemas evidentes na vida escolar, social ou familiar por conta dos sintomas. CRITÉRIO E: Se existe um outro problema (tal como depressão, deficiência mental, psicose, etc.), os sintomas não podem ser atribuídos exclusivamente a ele.

Histórico -1937: experiências com anfetamina em larga escala na Alemanha nazista. -década de 1960: iniciou-se a onda de medicação em massa através de uma experiência pioneira com crianças que viviam em um orfanato. -virada das décadas de 1960 e 1970: 1 milhão e 800 mil pessoas usam ritalina nos Estados Unidos. -década de 1970: uso em larga escala de ritalina entre universitários. -década de 1980 até hoje: aumento gradativo e assustador do emprego dessas drogas em crianças e adolescentes.


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CAPA - MEDICALIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO - ENTREVISTA

TDAH e dislexia são questionáveis

Maiores especialistas no assunto, pesquisadoras da Unicamp alertam pais e educadores Profª Drª Maria Aparecida Affonso Moysés (Profª Titular de Pediatria Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP) Profª Drª Cecília Azevedo Lima Collares (Profª Adjunta em Psicologia Educacional (aposentada) Faculdade de Educação da UNICAMP )

Como vocês enxergam a medicalização adotada como prática corriqueira no ambiente escolar? Antes de respondermos sua pergunta, é necessário definir a medicalização. Trata-se de um processo cada vez mais frequente na sociedade ocidental e que desloca a origem e possíveis soluções de um problema coletivo, geralmente de ordem política e social, para o plano individual e, na maioria das vezes, biológico, transformando-o artificialmente em uma ‘doença’ para a qual a medicina teria a solução. Uma das facetas mais comuns da medicalização reside no campo do comportamento e da cognição, justamente os de maior sofisticação no ser humano e cuja avaliação é mais complexa. Hoje vivemos um período em que crianças e adolescentes estão sendo intensamente medicalizados, seja por apresentarem comportamentos distintos de um padrão de normalidade – definido por quem? Lembremos que comportamentos não são biologicamente determinados, mas resultantes de construções históricas, sociais e culturais –, seja por apresentarem modos de aprender distintos de um pretenso padrão de normalidade rigidamente único, uniforme e uniformizador, no qual não há espaço para a rica diversidade das pessoas. Nesse padrão artificial de normalidade, em que pretendem nos enquadrar, os que se distinguem, com grande chance serão rotulados como portadores de TDAH (transtornos por déficit de atenção e hiperatividade) e/ou algum distúrbio de aprendizagem, dos quais o mais comumente aplicado é a dislexia. É importante destacar que a existência dessas entidades nosológicas, TDAH e dislexia, é questionada no interior da própria Medicina, inclusive no campo da Neurologia e da Psiquiatria. Esse questionamento se baseia em alguns pontos, sendo os mais relevantes: a) trata-se de pretensas doenças neurológicas que comprometeriam exclusivamente o comportamento e a aprendizagem, duas áreas de extrema complexidade em suas manifestações e cuja avaliação é extremamente difícil; b) ausência de critérios diagnósticos precisos e explícitos, que definam com clareza quais as caracterís-

A biologização de um problema social: ideologia de controle e justificativa de muitos governos estaduais no Brasil. ticas das alterações que permitiriam afirmar que se estaria frente a uma manifestação de doença neurológica e não de manifestações no campo psi, especialmente as reativas ao entorno familiar e social da criança e do adolescente, além das decorrentes de diferenças de valores culturais e mesmo da desigualdade social; c) as pesquisas nesse campo, divulgadas como comprovadoras da existência da entidade, de modo geral não preenchem os requisitos mínimos de rigor científico da pesquisa epidemiológica em que se enquadrariam, pois apresentam falhas gritantes em tamanho e composição da amostra (pequenos grupos, seleção intencional, ausência de tratamento estatístico em todas as etapas da pesquisa, desde a amostragem até o trabalho com os dados), na explicitação dos critérios de inclusão e exclusão nos grupos de controle e experimental (dito de outro modo, como foi feito o diagnóstico de TDAH e de normalidade) e no desrespeito aos limites postos pelo desenho das pesquisas, com conclusões sobre relações causais que minimamente não se sustentam. Daí, já se pode afirmar que o mínimo que se esperaria, do ponto de vista da ciência, seria uma grande cautela em afirmar a existência da entidade e mais ainda em firmar tal diagnóstico. Em segundo lugar, e não menos importante, agregue-se as taxas de prevalência divulgadas, variando de 10 a 20%! Lembremos que em saúde não usamos percentagem como referência para doenças biológicas, mas taxas da ordem de 1/100.000, 1 por milhão; porcentagem só cabe quando falamos de doenças sociais, como verminose, desnutrição, anemia. Aqui, se estaria falando de uma doença neurológica, constitucional e inata ao indivíduo, exclusivamente de or-

dem biológica, pretensamente de origem genética. Ora, pretender que algo assim acometa 18% da população seria admitir a extinção da normalidade e, no limite, a involução da espécie humana. Em síntese, existe uma grande controvérsia sobre a existência das entidades nosológicas conhecidas como TDAH e dislexia. Explicitados nossos referenciais teórico-científicos, podemos agora voltar à sua pergunta, para responder diretamente que crianças normais, que apenas não se enquadram em limites externamente impostos, construídos a partir de valores baseados em concepções ideológicas – e não científicas, menos ainda referenciadas em processos de saúde –, têm sido rotuladas como portadoras de TDAH e de dislexia. Então, todas as crianças ou adolescentes que recebem esse diagnóstico, na verdade, estão sendo rotulados e estigmatizados como doentes e responsabilizados por problemas coletivos e não individuais, geralmente de ordem social e política. A partir da rotulação como doentes, passam a receber uma medicação que potencialmente provoca reações adversas frequentes e graves. Uma reação bastante descrita em textos de farmacologia consiste na atitude “zumbi-like”, em que a pessoa passa a agir como um zumbi, contido em si mesmo, não por magia ou vudu, mas por uma droga. Quimicamente contidos. Os que não se submetem às normas impostas (por quem? Por quais instâncias decisórias?) são quimicamente assujeitados. Profissionais bem formados sabem perceber e apreender os modos normais de levar a vida - para usar a expressão de Canguilhem -, os modos inadequados que são apenas reativos a um entorno doentio e reconhecer os

poucos casos, minoria, de problemas reais. Destaque-se que entre os problemas reais, a imensa maioria se situa no campo psi, sendo mais raros os problemas de origem exclusivamente biológica, como pretendem alguns que seria o TDAH e a dislexia, que acometeriam de 10 a 20% da população geral. Então, falar em hipermedicação chega a ser inadequado, pois não se trata de medicar em exagero, mas de medicar o que não é doença comprovada. Quais são as consequências e as sequelas que essa prática pode ocasionar no aluno? Sem dúvida, existem crianças e jovens que aprendem com muita facilidade e outras com grande dificuldade, com um continuum entre os extremos. Assim como existem inúmeros modos de aprender e de lidar com o aprendido. O que temos que perguntar é porque alguns insistem em que haja uma única maneira de aprender, um modo certo de se comportar, negando a diversidade dos seres humanos; por que e a quem interessa pessoas padronizadas, homogeneizadas, conformadas e submetidas às normas vigentes? Não são as pessoas, as crianças e os jovens que estão doentes, quem está doente é a sociedade que estamos constituindo, que ao invés de se dispor a - e se preparar para – acolhê-las, atender as necessidades individuais de cada um, aceitar suas diferenças, suas possibilidades e trabalhar para que consiga superar seus próprios limites, exige pessoas padronizadas e conformadas. E a escola é uma das instituições que reflete essa doença que acomete de modo crescente a sociedade ocidental; é uma escola adoecida e que adoece professores e estudantes.

A consequência imediata para o estudante é que ele passa a se acreditar doente, responsável por fracassos e problemas que não são seus, mas da própria instituição e da sociedade, das políticas implantadas. Ao incorporar a doença e o fracasso, sua autoimagem torna-se também doente e negativa, com repercussões evidentes sobre sua personalidade e toda sua vida. Depois, surgem também as consequências dos tratamentos, que tendem a reforçar essa pretensa doença como inerente a ele, a um custo financeiro muito grande, pois quase sempre longo e multiprofissional. Resta falar, por fim, mas não menos importante, das consequências dos medicamentos administrados a esses jovens, geralmente da classe dos psicotrópicos – também no Brasil, são mais usados aqueles a base de metilfenidato (Ritalina® e Concerta®) –, que potencialmente podem provocar reações adversas extremamente graves e severas, em uma porcentagem não desprezível dos casos. Podem acometer todos os órgãos e sistemas, sendo especialmente relevantes o cardiovascular (hipertensão, taquicardia, arritmia, parada cardíaca, entre outros) e o sistema nervoso (agitação, alucinação, psicose, depressão, suicídio), além de grande risco de levarem à dependência química e à drogadição.

Quais são os interesses e a participação do governo neste assunto? Os governantes, autoridades e paramentares, em todas as esferas e em todos os partidos, infelizmente têm sido, na melhor das hipóteses, omissos. Na verdade, mais do que omissos, têm sido permeáveis e suscetíveis às pressões e lobbies de grupos


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CAPA - MEDICALIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO - ENTREVISTA defensores de interesses alheios à qualidade de vida, da saúde e da educação da população. Assim, assistimos, hoje, à apresentação e aprovação de projetos de leis propondo políticas voltadas ao “diagnóstico” e “tratamento” dessas pretensas doenças por profissionais contratados para atuar no interior do espaço escolar. De um só golpe, portanto, atingem frontalmente várias conquistas da sociedade brasileira, como o SUS – que preconiza que todas as ações ligadas à saúde são de responsabilidade e dever dos serviços de saúde, evitando duplicação e desperdício de recursos, além de medidas ineficazes, inadequadas; ou atacam também o direito de todas as crianças e jovens ao acesso a uma educação de qualidade, que é substituído pelo pretenso direito de ser diagnosticado como portador de uma doença controversa e de ser tratado como se a origem dos problemas educacionais brasileiros estivesse localizada em falhas ou defeitos dos estudantes.

Qual é o papel da indústria farmacêutica no processo de medicalização no ambiente escolar? Bem, a indústria farmacêutica é, reconhecidamente, uma parte muito, se não a mais, interessada nesse processo, pois ele quase sempre culmina com a prescrição de medicamentos. Essa questão tem sido muito pesquisada por Moynihan

e Cassels, jornalistas que têm se dedicado a desvelar as estratégias da indústria de criar e vender doenças para aumentar seus lucros, e já publicaram vários livros - em 2007, um texto deles foi publicado em um livro brasileiro. (“Vendedores de doença: estratégias da indústria farmacêutica para multiplicar lucros”, no livro “Bioética como novo paradigma: por um novo modelo bioético e biotecnológico”, que foi organizado por ML Pelizzoli, e publicado pela editora Vozes). Ouvi-los ajuda a entender os modos de agir da indústria e a amplificação da medicalização em ritmo atordoante por interesses financeiros: “As estratégias de marketing das maiores empresas farmacêuticas almejam agora, e de maneira agressiva, as pessoas saudáveis. Os altos e baixos da vida diária tornaram-se problemas mentais. Queixas totalmente comuns são transformadas em síndromes de pânico. Pessoas normais são, cada vez mais, pessoas transformadas em doentes. Em meio a campanhas de promoção, a indústria farmacêutica, que movimenta cerca de 500 bilhões de dólares por ano, explora os nossos mais profundos medos da morte, da decadência física e da doença mudando assim literalmente o que significa ser humano. Recompensados com toda razão quando salvam vidas humanas e reduzem os sofrimentos, os gigantes farmacêuticos não se

contentam mais em vender para aqueles que precisam. Pela pura e simples razão que, como bem sabe Wall Street, dá muito lucro dizer às pessoas saudáveis que estão doentes. [...] Sob a liderança de marqueteiros da indústria farmacêutica, médicos especialistas e gurus sentam-se em volta de uma mesa para ‘criar novas idéias sobre doenças e estados de saúde’. O objetivo é fazer com que os clientes das empresas disponham, no mundo inteiro, ‘de uma nova maneira de pensar nessas coisas’. O objetivo é, sempre, estabelecer uma ligação entre o estado de saúde e o medicamento, de maneira a otimizar as vendas. [...] Comemorando o sucesso do desenvolvimento de mercados lucrativos ligados a novos problemas da saúde, o relatório revelou grande otimismo em relação ao futuro financeiro da indústria farmacêutica: ‘Os próximos anos evidenciarão, de maneira privilegiada, a criação de doenças patrocinadas pela empresa’.” Segundo esses autores, pode parecer estranho que indústrias farmacêuticas busquem criar novas doenças, mas isto é moeda corrente no meio, traduzida em bilhões de dólares anualmente. A estratégia, que consta em relatório do Business Insight, consiste em mudar o modo das pessoas lidarem com seus problemas reais, até então vistos como simples indisposições, convencendo-as de que são dignos de intervenção médica.

A produção mundial de do 3.800.000 meninos. Entre 1992 e 2001, o metilfenidato... (MPH), a droga mais usada para pessoas rotuladas como portadoras de TDAH, cresceu 400% entre 1993 e 2003. Nos Estados Unidos da América: A produção de MPH cresceu mais de 800% entre 1990 e 2000; a produção de anfetamina cresceu mais de 2.000% no mesmo período. (U.S. Department of Justice, DEA, 2000). O consumo de MPH cresceu 600% entre 1990 e 1995; em 1995, correspondia a mais de 80% do consumo mundial. (U.S. Department of Justice, DEA, 1995). Em 1995, 10 a 12% dos meninos entre 6 e 14 anos tinham o diagnóstico de TDAH e recebiam MPH. (Breggin, 1999). O número de pessoas com diagnóstico de TDAH subiu de 500.000 em 1985 para 7.000.000 em 1999. (Breggin, 1999). O número de pessoas medicadas com Adderall® (dextro-anfetamina) cresceu de 1,3 milhão em 1996 para 6 milhões em 2000. (U.S. Department of Justice, DEA, 1995). O número de pessoas medicadas com Ritalina® em 2007 era 6.000.000; 4.750.000 eram crianças, sen-

consumo na Espanha cresceu 8% ao ano; em Portugal, 400 crianças tomavam MPH em 2003; eram 3.000 em 2004 e entre 6.000 e 8.000 em 2006. No Brasil, as vendas de MPH crescem em ritmo assombroso: 71.000 caixas de Ritalina® em 2000 e 739.000 em 2004 (aumento de 940%); entre 2003 e 2004, o aumento foi de 51%. Em 2008, foram vendidas 1.147.000 caixas, sob os nomes Ritalina® e o sugestivo Concerta®; aumento de 1.616% desde 2000. Se for incluída a dextro-anfetamina, droga menos utilizada, as vendas em 2008 ultrapassam 2 milhões de caixas. Nesse ano, ao preço no varejo, gastou-se cerca de 88 milhões de reais com a compra de metilfenidato. obs: Dados gentilmente fornecidos pelo IDUM (Instituto de Defesa dos Usuários de Medicamentos), em comunicação pessoal, à época em que este texto foi redigido. Atualmente, os dados estão disponíveis em http://www.idum.org.br. O IDUM extrai esses dados do IMS-PMB –Pharmaceutical Market – publicação de instituto suíço que levanta e atualiza todos os dados do mercado farmacêutico brasileiro. Destaque-se que esses dados não incluem os vendidos por farmácias de manipulação.


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ARTIGO - MEDICALIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO

Construindo crianças e adolescentes artificialmente A Construção da identidade de crianças e jovens desatentos e instáveis Denise Del Matto D'Incao

O

chamado “distúrbio deficitário de atenção” é a tentativa mais enganosa de construção da identidade de crianças e adolescentes que, não conseguindo um bom desempenho escolar, ou não se adaptando à escola, necessitam de uma intervenção medicamentosa para a “cura” do que constitui a essência de seu comportamento: a dificuldade de prestar atenção acompanhada ou não por uma atitude hiperativa.

do papel do governo e da sociedade quanto à educação. Toda uma nova geração foi arrastada para o vazio, para a ausência de consciência crítica, para a alienação política e para a violência. Isso nos faz lembrar a frase de um poema do dramaturgo e poeta alemão Bertold Brecht “Do

falta de uma atitude mais crítica e analítica dos que os aceitavam, tornou o TDAH a resposta para os problemas que afetam milhares de crianças e adolescentes: desmotivação, desinteresse pelos estudos, comportamentos disciplinares inadequados em sala de aula, introversão, alheamento

que transportam o impulso nervoso nos neurônios e, portanto, justificariam a medicalização.

Consertando o Problema Eis que entra no cenário o super-herói que resolverá todos esses problemas: a poderosa

O Outro Lado da Luneta

A Trama ... A imensa credibilidade que o TDAH (Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade) conquista entre os profissionais (neurologistas, psiquiatras, psicólogos) deve-se, em parte, ao longo histórico de estudos que datam da época da primeira Guerra Mundial. Recebeu durante um certo período a designação de Lesão Cerebral Mínima, e posteriormente, a partir de 1960, ficou conhecida como Disfunção Cerebral Mínima. Se atentarmos para uma análise mais aprofundada desses estudos, notamos que se tratava na realidade de uma trama que biologizava um problema, sobretudo, social: o fracasso escolar. Culpabilizava-se, então, a criança e o jovem por seu insucesso, aliviando-se a responsabilidade

genuamente, consideram problemas médicos. É necessário alertar os pais, professores e os responsáveis por essas crianças quanto às conseqüências desse diagnóstico e a prescrição de psico-estimulantes, encabeçados pelo uso de anfetaminas que podem levar a uma toxicomania no futuro. Infelizmente, para apoiar essa atitude, há livros de grande sucesso lançados no mercado brasileiro que reforçam esse triste engodo, tais como: “Mentes inquietas”, “No mundo da Lua” e outros.

Anúncio do CONSERTA, campeão de vendas para TDAH, instigando a aprovação dos pais. rio cujas águas tudo arrastam se diz violento, mas nada se diz das margens que o comprimem”

O Drama... A “aura” de seriedade que cercava esses estudos, associada à

ou hiperatividade, agressividade e outros sintomas decorrentes da incapacidade de focalizar a atenção além de um curto espaço de tempo. Não há comprometimento em relação à inteligência. Tratar-se-ia de distúrbios ao nível de neurotransmissores

indústria farmacêutica com sua s mais novas poções mágicas: A RITALINA e o CONSERTA. Tratam-se de estimulantes cognitivos que consertarão tudo e cujas receitas estão à disposição de qualquer aluno com dificuldades escolares, cujos pais, in-

Na realidade, em nossa prática pedagógica ( somente a minha soma mais de trinta anos) nunca vimos progressos, seja em crianças ou em jovens, que fossem devidos a práticas medicamentosas. O progresso só vem em atitudes embasadas em conceitos sérios e aprofundados de educação , numa metodologia correta e amadurecida que une professores e alunos numa práxis na qual se faz presente o esforço, a disciplina e o respeito pela inteligência de nossos alunos. Só assim criaremos um ambiente de estudo repleto de conteúdo humanístico e tecnológico. Sem dúvida algums, isso CONSERTARÁ o problema. Denise Del Matto D’Incao é professora de filosofia, especialisata em motricidade e diretora de D’Incao Instituto de Esntino


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CAPA - MEDICALIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO

O sonho dourado de Hitler

Como os regimes fascistas, a medicalização indiscriminada cria gerações de alunos automáticos Carlos D’Incao

A

ideia de controle do comportamento humano não é nova. A História bem poderia ter sido feita, desde seus primórdios, sob a perspectiva da tentativa de controle e dominação de homens sobre outros homens. A mais recente forma de tentativa de controle e dominação sistemática da humanidade foi promovida pela ascensão dos regimes fascistas, que encontrou no nazismo sua face mais sofisticada e abrangente. O nazismo possuía mais do que um projeto político. Possuía também uma visão de ser humano, que deveria ser disseminada em nome do progresso da própria humanidade. O Homem é dotado de The Wall, a ópera filme da banda Pink Floyd fez um perfeito retrato de uma sociedade alienada, que mascara seus problemas sociais uma biologia bem específica como sociedade ao longo de sua Nos olhos dos oficiais nazistas encontro com a forca e o pelo- sonho de todas as sociedades cadentro do reino animal. Essa História. Este seria o caso dos que estão executando prisio- tão de fuzilamento. Os “aliados” pitalistas contemporâneas. biologia específica lhe permite o judeus e dos ciganos, por exem- neiros judeus não encontramos foram mais cautelosos. Preferi- Os nazistas compreendesenvolvimento de uma moral plo. a loucura ensandecida, mas a ram “entender”, analisar os seus diam que a degeneração coe de um comportamento muito As raças inferiores deve- frieza daqueles que eliminam “interesses estratégicos” e, só meçava a se revelar na escola mais elevados em comparação riam ser eliminadas, pois dege- no dever de desinfetar a Huma- depois com muito pesar, conde- já nos primeiros anos. Eram a qualquer outra forma de vida nerariam as superiores com sua nidade dos degenerados. nar alguns poucos e desprezíveis comportamentos notados pela existente na natureza. genética, seus valores e compor- A barbárie assumia uma oficiais. desatenção, indisciplina, atos Porém, nem todos os tamentos. Aqueles que fossem nova face: racional, científica e O nazismo não foi su- imorais, oposição à autoridade Homens possuem uma moral das raças superiores mas não disciplinada. O nazismo como perado no ocidente, foi apenas e rendimento acadêmico baixo. e um comportamento compro- aceitassem esse “fato científi- expressão de movimento polí- cooptado. Como superar o na- Em uma palavra, eram crianças metidos com o “bem-estar”, a co” deveriam ser tratados por tico e organizado foi derrotado cionalismo, o cientificismo, o com aquilo que hoje chamamos “união” e o “progresso” de sua meio terapêutico-medicinal pelo socialismo soviético com positivismo e a ideia de contro- de TDAH (Transtorno de Défisociedade. Como os nazistas ou reeducados através da dis- o apoio discreto e desconfiado le? Essas são ideias compartilha- cit de Atenção e Hiper-atividaexplicavam esse fenômeno? Pride). Os nazistas chamavam de meiramente, pela variação bio“comportamento degenerado”, lógica existente nos Homens, fruto de problemas biológicos. isto é, devido à existência de As escolas e psiquiatras hoje raças diferentes no interior do pensam da mesma forma: progênero humano. blemas biológicos, só que não

“A superioridade ariana” Algumas raças teriam elementos biológicos objetivos, que lhes tornariam capazes de gerar civilizações avançadas e expressões morais, éticas e artísticas superiores às de outras raças. Essas raças teriam sido capazes de se organizar de forma progressista e coesa na forma de Estado Nacional. A ideia de uma nação unida pelo progresso em harmonia só existiria nas raças mais desenvolvidas. As outras raças, por serem dotadas de características genéticas degeneradas, ou por Hitler e Goering: a ideologia nazista era baseada no controle físico e mental de seus comandados não terem um organismo com ciplina penitenciária. Caso isso dos “aliados” ocidentais, lidera- das entre os nazistas e as outras as mesmas virtudes das primei- não fosse suficiente, deveriam dos por nações como os EUA nações do ocidente, pois foram ras, só teriam atingido formas ser eliminados ou, no mínimo, e a Inglaterra - as mesmas que produzidas por uma lógica da incompletas e irracionais de deveriam ser esterilizados de menos de dez anos antes assis- qual ambos são produtos: a lóvida social: formariam, então, modo a não mais contaminar a tiam de forma condescendente gica do capital. Boa parte da citribos, civilizações teocráticas sociedade com seus valores de- - e com simpatias - o triunfo na- ência nazista foi aprendida pelos ou, em último caso, nem mes- generados. zista na Espanha e na Polônia. A “aliados” e, sobretudo o sonho mo conseguiriam se consti- A violência nazista não maioria dos nazistas capturados nazista do “controle e dominatuir de forma organizada e fixa era irracional e indisciplinada. pelos soviéticos teve um rápido ção social”, continua sendo um

falam em raça, falam em problemas hormonais, etc. Como já foi dito, portanto, o absurdo hoje é racional, científico e disciplinado. Os problemas do comportamento são problemas fisiológicos. Obviamente que na falácia do “politicamente correto” aconselha-se também “terapia”. Mas não se deve abrir mão da “ciência”, isto é, do medicamento. No final, fica-se apenas com o medicamento e pronto. Conta-se que Hitler, dias antes de se suicidar e frente a inevitável derrota para com os comunistas soviéticos, teria discursado para seus oficiais dizendo-lhes que as gerações futuras entenderiam aquilo que ele tentou fazer e que a humanidade se incumbiria de realizar seu “sonho dourado”. Cada comprimido de Ritalina ingerido pelas nossas crianças nos torna um pouco mais próximos de entender melhor Hitler e de realizar seu “sonho dourado”.


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ARTIGO - TEATRO | MÚSICA | CINEMA | LITERATURA

Qualidade é fundamental, pois sem ela não há público O teatro sobrevive no interior dos estados brasileiros conduzido pela vontade de alguns abnegados Paulo Neves

F

alar de Teatro no interior de São Paulo, ou no interior do Brasil, é muito complicado porque não faz parte da vida cultural do brasileiro, salvo raríssimas exceções. Após 10 anos de Curso Livre de Teatro em Bauru, chegamos à triste conclusão de que quem começa o teatro hoje já vem com ideia comprometida, isto é, trabalhar na televisão. É lá na TV que se ganha mais dinheiro; onde tem visibilidade; onde pode-se apresentar os famosos bailes das debutantes pelo Brasil que por incrível que pareça ainda existem - e abertura de festas dos peões boiadeiros. No teatro ninguém ganha. O teatro não é mais uma profissão, é uma paixão. Se há 35 anos era difícil concentrar os núcleos em sua cidade, hoje está muito mais difícil. As pessoas vão para São Paulo ou Rio de Janeiro ( leia-se Globo e Record) com o intuito de serem vistas e chamadas pela televisão. Neste ano, vamos profissionalizar o nosso Curso Livre de Teatro e aproveitar a oportunidade para também profissionalizar mais 4 ou 5 atores, formando uma Com-

panhia de 10 atores, todos com DRT- Carteira Profissional dos Atores. Vamos “tentar”, paralelo a isso, a união da vontade política, aspecto dificílimo aqui em Bauru, pois cultura é, no mandamento dos políticos locais, ponto de quarta ou quinta categoria, e além do mais não dá votos para essa ilustre Câmara Municipal! Os empresários, por sua vez (em sua maioria), não estão nem um pouco preocupados com o teatro, pois não rende dividendos (lucros) a não ser quando um ator da Globo vem à cidade com um texto de terceira categoria e a massa lota a casa - e se satisfaz pedindo autógrafo ao final do espetáculo ou levando uma foto de recordação que vai ficar em cima da geladeira para o resto da vida, junto ao inevitável pinguim. Cultura, para a maioria, é isso aí! Muito pouco, convenhamos!. Não temos um trabalho de formação de platéia - existia um trabalho no Automóvel Clube, mas foi extinto... o que é bom dura pouco ou não dura! Botucatu, Lençóis Paulista, Bernardino de Campos, Marília, Tatui, Presidente Prudente, entre outras, têm o seu Festival de Teatro. Em

Teatro lotado em São Paulo: as casas do interior sofrem com falta de opções e investimentos. Bauru, ficamos esperando o apoio da Secretaria Estadual da Cultura. É importante a preocupação de ter público, de formar uma platéia, de fazer com que os alunos de todas as séries assistam a bons espetáculos, pois o Teatro Municipal está aí exatamente para preencher esse buraco cultural, para fazer as pessoas se viciarem no teatro. Quan-

do o teatro comercial é bom, aumenta o público do teatro experimental e aumenta mais ainda o público dos Cursos Livres. Profissionalismo se faz pela qualidade, pela persistência, pela ética, pela dignidade de trabalho, pela competência, pelo comprometimento com o Curso, com a cidade, com as pessoas, pela força moral de quem vai fazer. É

É importante a preocupação de ter público, de formar uma platéia no interior para assistir bons espetáculos.

importante não se iludir pensando que ser profissional é ter DRT, registro no sindicato. Ser profissional é ter bagagem, moral, vergonha, qualidade, persistência, hombridade e não demagogia! Em Bauru temos exiguidade de espaços públicos, mas a demanda também é pouca. É preciso fazer investimentos na idéia da função histórica do artista, transformar o incentivo fiscal em uma trincheira. Hoje temos um público refém de uma mídia. Meu filho Thiago Neves, Coordenador do Curso Livre de Teatro, está trabalhando sozinho para recuperar a exresidência da professora Celina Lourdes Alves Neves e transformá-lo em um Espaço Cultural (na rua Gerson França, para quem é daqui), sem apoio político e financeiro de ninguém. Esse espaço seria para teatro, cinema, aulas de balé, violão, enfim, um espaço cultural real para a cidade. Pequeno, mas de muita funcionalidade. Afinal, a continuidade do trabalho da família Neves traz a qualidade e a profissionalização. Esse é um aspecto...tantos outros existem, mas a falta de vontade política e trabalho nos deixa desanimados. Paulo Neves- Coordenador do Curso Livre de teatro Paulo Neves e Professor de História do Brasil do DINCAO Instituto de Ensino


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ESPECIAL - HISTÓRIA

A curiosa e trágica história de Maximiliano do México Como o irmão do imperador austro-hú-ngaro foi levado ao trono e à morte no México Luis Paulo Domingues

O

México teve dois Impérios não contínuos, cada um deles com apenas um Imperador, que ficou no poder por pouquíssimo tempo. Esses dois períodos ocorreram em épocas extremamente conturbadas da história do país e ambos os Imperadores morreram fuzilados por opositores. O primeiro foi Agustín de Iturbide, um general exrealista que foi aclamado Imperador após a independência do México diante da Espanha, em 1821. Iturbide foi coroado em 21 de Julho de 1822 para ser um Imperador provisório, enquanto não achavam algum nobre europeu que aceitasse o título. O novo Imperador não conseguiu apoio do congresso, enfrentando uma oposição duríssima dos republicanos, que queriam derrubá-lo. Temendo pela própria vida, abdicou do trono em 19 de março de 1823 - ficou, portanto, apenas oito meses no poder -, partindo para a Itália. A república foi proclamada durante esse processo. Iturbide foi considerado traidor pelos republicanos e fuzilado quando retornou ao México em 1824.

Maximiliano de Habsburgo Os interessados em uma monarquia no México

Um Império com menos de 3 anos O novo Imperador foi coroado em 1864, mas como era liberal, logo perdeu o apoio dos

eram os grandes proprietários de terra, que exerciam o poder desde o período colonial. Temendo por reformas que lhes tirassem as terras e o poder político, ansiavam por um monarca europeu, que viesse de alguma casa real forte, secular e que garantisse a soberania e a permanência dos valores conservadores, além das benesses que o conservadorismo lhes garantia. Os franceses também queriam um império no México. Na época, o território mexicano ia do atual Oregon, nos Estados Unidos, ao Panamá. Porém, desde a proclamação da República - que teve 36 presidentes em 40 anos -, o território havia entrado em processo de desintegração. Mesmo assim, os franceses pensavam poder explorar as riquezas dessa enorme extensão de terra, instalando pequenas monarquias comandadas por príncipes europeus obedientes à França nos recém-criados países da América Central. Essas monarquias seriam, então, capitaneadas pelo Império Mexicano. Por causa do tamanho da maioria das famílias reais, na Europa da época havia um grande número de príncipes e nobres que não tinham onde governar, e que poderiam ser usados nessa empreitada. Maximiliano de Habsburgo foi escolhido pelo imperador francês, Napoleão

III, para assumir o trono mexicano. Condenado a sempre ser o irmão do imperador austrohúngaro, Maximiliano contraíra dívidas por causa do luxuoso castelo que mandara construir em Triestre (hoje Itália), no litoral do Mar Adriático: o castelo de Miramar. Teve que se casar, então, com Carlota, a filha do Rei Leopoldo da Bélgica, cujo dote possibilitou o pagamento das dívidas. Relutou muito em

aceitar o trono mexicano, pois não estava certo das intenções francesas. Os ingleses também apoiaram o plano, pois o presidente mexicano, Benito Juárez, havia decretado o não pagamento da dívida externa, além de hostilizar os estrangeiros. Maximiliano, por sua vez, era liberal. Seu desejo era estabelecer uma monarquia constitucional no México e queria ter certeza do apoio do

povo mexicano, coisa que ele não tinha. Percebeu isso do pior modo. Para retaliar o governo do México pela moratória da dívida externa e coroar Maximiliano, as tropas francesas invadiram o país em 1863 e já perderam mais de mil homens no desembarque. Benito Juárez foi deposto, mas continuou vivo e muito atuante no interior, onde estabeleceu uma nova capital e lutou o tempo todo contra o Império.

conservadores mexicanos e só se manteve no poder por causa da presença das tropas francesas. Tentou fazer uma grande aliança com seu primo, o Imperador D. Pedro II do Brasil, e garantir as-

sim a sobrevivência das duas monarquias. A aliança foi recusada e a situação se agravou quando os Estados Unidos não reconheceram o novo Império, exigindo a retirada das tropas francesas.

Napoleão III percebeu que uma guerra contra os Estados Unidos seria um fardo muito grande para a França e decidiu chamar suas tropas, que se retiraram entre 1866 e 1867. Maximiliano desprezou os conselhos de Napoleão III e se recusou a abdicar - dizem que amava o México. A partir daí, o Imperador foi obrigado a comandar ele mesmo as tropas monarquistas restantes. Em 15 de maio de 1866, Maximiliano foi preso em Querétaro - a capital já estava tomada pelos republicanos. Os guerrilheiros ofereceram-lhe a fuga, mas ele recusou e foi fuzilado em 19 de junho de 1867, pondo fim à segunda e última experiência monárquica do México. Suas últimas palavras foram: “-Viva o México”. O entusiasmo e o aparente patriotismo diante da morte, porém, não

livraram Maximiliano de passar para a história como um fantoche dos franceses - e pelas palavras do historiador francês Yves Bruley, mais próximo do ridículo do que da glória.

Famosa pintura de Manet, retrata o momento de execução do segundo e último imperador no México

Castelo de Maximiliano no mar Adriático: luxo dos Habsburgos foi deixado para trás no México.

Fonte: Maximiliano do México - Um Fantoche Francês, de Yves Bruley O Primo Desventurado, de Javier Torres Medina

Manet e Maximiliano A história do segundo Imperador mexicano foi imortalizada por Manet, grande pintor francês. Assim que a notícia do fuzilamento chegou a Paris, Manet passou a trabalhar - usando relatos dos acontecimentos no México - em três pinturas imensas que retratavam os últimos instantes de Maximiliano de Habsburgo.


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ESPECIAL - LITERATURA

Oscar Wilde: excêntrico, genial, à frente de seu tempo Amado e odiado pela sociedade britânica, Wilde foi reconhecido, mais tarde, até pela rainha Luís Paulo Domingues

P

oderíamos dizer que a maior obra prima do escritor irlandês Oscar Wilde foi sua própria vida. Dândi intelectual, genioso e extremamente excêntrico para a Inglaterra vitoriana, Wilde foi autor de contos, dramaturgo festejado e autor de apenas um romance: “O Retrato de Dorian Gray”. (Trata-se da incrível história do burguês lindo, invejado por todos, que não queria envelhecer e contratou um artista para pintar seu retrato, fazendo um pacto com ele: o retrato envelheceria em seu lugar - o que acabaria revelando-se sua desgraça.) Suas peças mais importantes dividiram opiniões. Foram aclamadas e odiadas pelo público e pela crítica, como “Salomé” e “Um marido ideal”. Isso porque Wilde nunca foi um escritor trivial, tendo a polêmica e a excentricidade como aspectos intrinsecamente ligadas ao seu nome.

A fama e a desgraça

Wilde conheceu a fama extrema e a execração pública em vida. Homossexual (quase) assumido, levava uma vida boêmia e teve diversos relacionamentos amorosos completamente indiscretos - um deles, com o jovem Lord John Alfred Douglas, provocou seu processo por depravação. Oscar Wilde foi julgado e condenado a dois anos de prisão. No entanto, sua defesa no julgamento, feita por ele mesmo, é digna de uma outra obra prima sobre a liberdade e a autenticidade do ser, sobre a hipocrisia e a coerção das instituições. Tal passagem de sua vida foi imortalizada no filme “Wilde”, de Brian Gilbert, lançado em 1999, com uma atuação estupenda de Stephen Fry (que era praticamente o próprio Wilde no filme). Após sair da prisão, em

Texto de Wilde

Estátua de Oscar Wilde em uma praça de Dublin: o escritor foi posturamente reconhecido como orgulho do Reino Unido. 1898, foi viver em Paris, onde achou um ambiente menos opressor. Completamente falido, morreu num hotel miserável em 1900 em total esquecimento. Seus dois filhos, envergonhados da biografia do pai, fizeram questão de mudar de sobrenome.

Imortalidade póstuma Décadas depois, a obra de Oscar Wilde foi redescoberta pelos próprios ingleses e sua memória foi absolvida pela mesma austeridade britânica que anteriormente o havia condenado. Hoje Wilde é considerado um gênio e um visionário - principalmente na dramaturgia -, além

de um crítico feroz dos costumes de sua época. Com sua postura, suas roupas espalhafatosas, seu modo de andar e sua personalidade singular, o escritor é um dos orgulhos do Reino Unido, reconhecido até pela Rainha Elizabeth. O lugar miserável onde viveu seus últimos dias transformou-se num disputadíssimo hotel para astros da música pop, intelectuais e milionários de toda sorte. Em frente ao hotel, há uma placa de prata, que ostenta os dizeres: “Aqui viveram Oscar Wilde, no final do século XIX, e o escritor Jorge Luis Borges (assunto para os próximos números do jornal), na década

O Artista

Uma noite, nasceu-lhe na alma o desejo de esculpir a estátua do prazer, que dura um instante. E saiu pelo mundo em busca do bronze, pois só podia imaginar sua obra em bronze. Mas todo o bronze do mundo tinha desaparecido e em nenhuma parte da Terra podia encontrar-se bronze

de 1980”. De uma forma ou de outra, é lamentável que Wilde tenha vivido seus últimos dias sem dinheiro até mesmo para

pagar a conta da, então, miserável espelunca. Isso nos faz refletir sobre como o preconceito e a arrogância são, cedo ou tarde, condenados pela História.

É lamentável que Wilde tenha vivido seus últimos dias sem dinheiro até para pagar a conta da, então, miserável espelunca. Isso nos faz refletir sobre como o preconceito e a arrogância são, cedo ou tarde, condenados pela História. algum, exceto o da estátua da dor, que dura uma vida inteira. Ora, mas fora precisamente ele quem, com suas próprias mãos, havia moldado aquela estátua, colocando-a no túmulo do único ser a quem amou na vida. Erguera aquela estátua, sua criação, no túmulo da criatura morta, a quem tanto amara, para que fosse um sinal do amor do homem, que é imortal, e um símbolo da dor

humana, que dura para sempre. E no mundo todo não havia outro bronze, senão o daquela estátua. Tomou, então, a estátua que havia modelado, colocou-a em um grande forno e entregou-a ao fogo. E com o bronze da estátua da dor, que dura a vida inteira, modelou a estátua do prazer, que dura um instante. Oscar Wilde


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ESPECIAL - MEIO AMBIENTE

O que fazer com todo esse lixo?

A prefeitura de Nova York se depara com um grave problema: não tem onde colocar seu lixo Luis Paulo Domingues

A

Nova York produz 11 mil toneladas de lixo por dia, graças ao progresso econômico. Mas o que poderia ser um índice de conforto e de excelência no padrão de vida pode se tornar um inferno para os novaiorquinos. O único aterro sanitário da cidade foi desativado em 2001, pois já havia atingido seu limite máximo de absorção. O lixo, então, começou a ser levado para locais distantes, em New Jersey, Pensilvânia e Virgínia, chegando a percorrer 500 quilómetros. Obviamente, essa não é uma solução barata. Além disso, os governos dessas localidades começaram a reclamar pelo fato de Nova York estar transformando suas cidades em depósitos de lixo e passaram a impor barreiras. Segundo artigo de Lester Brown, fundador do World Watch Institute, o problema do lixo novaiorquino tem três vertentes: econômica, cultural e de relações públicas. É muito caro, para um país que não tem a reciclagem Solução paliativa: boa parte do lixo de Nova York é transportada em grandes comboios para cidades de outros estados. e a preservação ambiental arraigadas em sua cultura, tomar o mo exacerbado é outro agravan- tura de Nova York, desde a época Nova York sairia caro. Além dis- estradas e ruas da região, somado so, a população das cidades “con- à poluição, engarrafamentos e baprimeiro passo. Construir usinas te. O norte americano é louco do prefeito Ralf Giuliani. por produtos descartáveis e a inO governador da Virgínia templadas” com o lixo reclamou rulhos. A medida tornou-se imde reciclagem, educar o povo, dústria investe pesado em embapropôs, em 2001, um imposto dos transtornos que a medida ge- popular, mesmo que em algumas estabelecer parcerias, criar leis lagens one way. Ou seja, vai tudo, de 5 dólares para cada tonelararia. localidades mais carentes tenha nem sempre populares parecem O comboio de reboques sido vista como uma boa oporprojetos ambiciosos demais aos mesmo, para o lixo. E ainda há o da de lixo despejada no Estado. problema das outras cidades e de Isso geraria uma grande receita de lixo formaria uma fila de 14 tunidade de receita, gerada pelo governantes norte americanos. seu relacionamento com a prefeipara os cofres públicos, mas para quilómetros, todos os dias, nas pagamento e pela reciclagem. A mentalidade de consu-

A única saída é a educação cheias são os mesmos que levam A única saída parece ser a educação - do povo, das indústrias e da prefeitura. Veja alguns dados obtidos através do site da WWI (Worldwatch Institute): -Nova York: 18% do lixo reciclado. -Los Angeles: 44% do lixo reciclado. -Chicago: 47% do lixo reciclado. Todas essas cidades estão muito longe das taxas europeias, que chegam a 72% em alguns países. O homem tem tecnologia para reciclar todos os componentes do lixo. Além disso, pode mudar as atitudes prejudiciais ao meio ambiente. Uma dessas atitudes é proibir o uso de recipientes one way. Na Dinamarca e na Finlândia, a proibição já vigora, sendo que os dinamarqueses já convivem com essa realidade desde 1977. Os benefícios de se utilizar garrafas retornáveis, por exemplo, não se restringem apenas ao lixo. Como os caminhões que entregam as garrafas

de volta as vazias, economizase combustível, diminui-se a poluição e minimiza-se os engarrafamentos. Isso, em uma cidade como Nova York, deve contar muito. obs: A cidade de São Paulo também já adota a transferência de toneladas de lixo para cidades vizinhas. Fonte: dados de artigo escrito por Lester Brown, fundador do WWI-Worldwatch Institute e do EPI-Earth Policy Institute, no site http://www.wwiuma. org

A saída é incômoda Podemos enxergar essa questão do lixo em Nova York de uma outra maneira: não se trata apenas de um problema de espaço em relação ao número de pessoas. Aliás, limitar a gestão do lixo ao estudo do espaço e das pessoas não nos proporcionará muitas saídas para o caos dos grandes centros. Devemos ter em mente que o problema do lixo exacerbado

Mesmo em frente aos mais caros endereços, o lixo permanece à vista dos nova-iorquinos. tem origem numa premissa do capitalismo: a de que é sempre necessário criar novas demandas, que devem ser incorporadas pela cultura do consumo de cada país. Essas mercadorias serão compradas por um número sempre crescente de consumidores, que por sua vez alimentarão os cofres das empresas. Depois, começando um novo ciclo outra vez, as empresas destinarão parte

desse lucro para o investimento em pesquisas para, mais uma vez criar novas demandas, e esse círculo vicioso só poderá terminar na geração de mais e mais lixo. Podemos concluir, portanto, que estamos diante de um desafio muito maior. Como mexer com uma cadeia de produção tão rentável, que se constitui na espinha dorsal do capitalismo principalmente em se falando de

Nova York, o grande lar da cultura do consumo compulsivo? Sendo a criação de demandas e a optimização dos lucros uma condição primeira para a existência e o desenvolvimento do capitalismo, é bem plausível que tenhamos que conviver com a cultura do lixo enquanto o capitalismo for o sistema hegemônico de produção.


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ARTIGO - MEIO AMBIENTE

Muito barulho por nada

Uma proposta de intenções inútil fez cair o presidente da comissão de mudanças climáticas da ONU Ulisses Antonio de Andreis

Se daqui a 500 anos o capitalismo não existir mais, deverá ainda ser lembrado por uma poderosa máxima, que diz: tudo tem seu preço. Essa ideia é tão importante, que o próprio conceito de energia tem suas raízes muito bem firmadas nesse mandamento sagrado do capital. O efeito positivo desse princípio econômico é o de nos fazer pensar de modo responsável. Isto é, as coisas no mundo não acontecem por acaso. É necessário haver recursos adequados para realizar qualquer tarefa. E o bom senso nos ensina que recursos devem ser utilizados com assertividade, na medida certa. Entretanto, Os EUA mantiveram suas restrições em adotar medidas existe o lado perverso da interpretação. Ao se atribuir preço às de dezembro de 2009, tinham crescimento mundial, após um coisas, aqueles que dispõem dos como um dos objetivos resol- ano de 2009 extremamente difírecursos adequados (dinheiro, ver o dilema citado logo acima. cil, repleto de notícias ruins para na maioria das vezes) passam a Resultado: nenhum! Todos os os mercados financeiros globais. O Brasil assumiu um paser proprietários e delas podem recursos investidos no evento foram desperdiçados. De lá saiu pel de destaque devido a nossa dispor como bem entender. Aí está o dilema imposto uma simples e vaga carta de in- matriz energética limpa para a ao modo de vida capitalista. Ou tenções, livre de comprometi- geração de eletricidade - cerca de se considera que todos os atos mentos. Uma carta de igual teor 85% da energia elétrica oferecido homem sobre o planeta têm poderia ter sido escrita por um da ao consumo vem de matrizes conseqüências, logo não se pode grupo de amigos sentados em renováveis, e 73% de toda eletridispor de seus recursos como se torno de uma mesa de bar e o cidade consumida no país vem fossem infinitos, ou, de outra resultado prático seria exata- da energia hidráulica. Entretanforma, pode-se continuar acre- mente o mesmo. Países impor- to, seria verdade que nosso país ditando que o homem vive num tantes como os EUA e a China busca a expansão crescente do imenso supermercado e o que exerceram o legítimo direito de uso das fontes renováveis? O reexiste sob e sobre o planeta está defender seus interesses e irão se latório “Balanço Energético Narecusar a mudar no curto prazo cional de 2009” mostra que do à disposição de quem precisar. Os líderes mundiais e seus processos de produção. Se- total de toda a energia gerada, os técnicos reunidos na cidade ria um “absurdo” fechar os olhos as fontes renováveis participam de Copenhague, Dinamarca, para os índices econômicos favo- com 45,3% e as não renováveis durante duas semanas do mês ráveis apontando a retomada do com 54,7%. Como referência,

para conter a emissão de poluentes na atmosfera. dados de 1970, três anos antes da primeira crise do petróleo, a participação das fontes renováveis era de 58,4%, contra 41,6% das não renováveis. Diferenças marcantes separam os anos de 1970 e de 2010. Contudo, não se pode deixar de mencionar que naquela época as questões ambientais representavam uma preocupação justificável, porém, relativamente distante. Desde a Eco 92 passaram-se 17 anos e os inúmeros discursos, as grandes ideias, os excelentes projetos e as boas intenções conduziram a participação das fontes renováveis de 49,1% em 1990 a 45,3% em 2008, de acordo com o mesmo relatório do Ministério de Minas e Energia. Uma outra comparação interessante é de

Visível empolgação: imagina-se que os participantes do COP15 já vieram sabendo que nada seria decidido.

que entre 2007 e 2008 a participação da energia renovável caiu 1,5%, enquanto a das não renováveis subiu 37,9%! A energia hidráulica reduziu 2,7%, a Eólica, 0,4%. A energia provinda do gás natural aumentou 92,8%! Devemos lembrar que durante o ano de 2008 havia certa possibilidade de crise de geração em virtude de um período de escassez de chuvas. Entretanto, não será lícito perguntar se o modelo não estaria ainda equivocado? Será que o Brasil, de fato, optou, incondicionalmente, pelo uso de fontes limpas e renováveis? A crise financeira de 2009 e a descoberta do petróleo na região do pré-sal, na Bacia de Santos, mostraram que a necessidade de recompor reservas, diminuir prejuízos, manter níveis de produção e emprego são motivos fortes o bastante para deixar as dramáticas e inadiáveis questões ambientais para depois. As notícias “vindas de um futuro” ainda não escrito são mais importantes que os fatos do presente? O que entende o cidadão comum quando ouve a recomendação do IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change), afirmando em tom profético, que, até o final do recém inaugurado século XXI, a média da temperatura global pode elevar-se até 4,5 oC? O que entende um governante, quando ouve a mesma previsão e se lembra de que naquele momento não precisará mais do voto do cidadão comum?

Ulisses Andries é professor de Física


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ESPECIAL

Por que o socialismo cubano não fracassou? Estudo aprofundado percorre a história de cuba em 6 partes Carlos D’Incao

Como e por que não se consumou em Cuba a liquidação de regimes não capitalistas vigentes nesses anos? O fato político fundamental foi a coesão, a disciplina e o respaldo ativo da maioria dos cubanos à maneira de viver criada em Cuba, apesar de esse modo de vida ter sido submetido a uma forte erosão pelos efeitos da crise e também, em parte, pelas medidas tomadas contra a crise. Desenvolveram-se muitas estratégias de sobrevivência, mas nunca se questionou a continuidade do regime. Esse comportamento social foi a chave da política desse período e expressou uma consciência que se guia por três certezas: a de que a unidade entre os cubanos era vital para enfrentar tantas dificuldades e desafios; a de que o regime político lutava com energia e honestidade para manter a justiça social e a redistribuição sistemática da riqueza nacional, defendendo eficazmente a soberania e controlando a economia; e a de que um retorno ao Capitalismo em Cuba significaria um desastre para a maioria dos cubanos, em perdas de direitos sociais, soberania popular e qualidade de vida, exploração do trabalho, pobreza e humilhações. Consciente do respaldo que essa cultura política oferecia, Fidel convocou as eleições de deputados de fevereiro de 1993 como um plebiscito a favor ou contra o socialismo: 7,85 milhões de votantes elegeram por via direta seus deputados e o socialismo triunfou.

O orgulho pela pátria é a maior característica do povo cubano; fato visível em todos os ambientes públicos da ilha. A emigração para os EUA A emigração para os Estados Unidos tem sido politizada durante décadas. Em 1980, ante a liberação repentina dos entraves que os Estados Unidos impuseram desde 1973 para a entrada de imigrantes cubanos legais, emigraram 125 mil pelo porto de El Mariel. No verão de 1994 – o momento mais agudo da crise social –, o êxodo ilegal dos “balseiros”, tolerado pelos dois países, foi de apenas 37 mil pessoas. Mariel foi uma correção da média anual de 31 mil emigrantes no período

entre 1959-1973 – embora tenha evidenciado a existência de novos problemas ideológicos -, uma geração depois do triunfo revolucionário. Os balseiros de 1994 – se desconsiderar-se a gigantesca manipulação midiática internacional – formaram parte do quadro migratório da segunda metade do século. A imensa maioria dos cubanos ficou em seu país. A emigração dos anos 90 mostrou, porém, duas novas peculiaridades: uma despolitização conseqüente do fato de emigrar como um desejo de obter êxito com base nas capacidades e nas expectativas pessoais - motivação sobretudo dos mais jovens. Por outro lado, já estava em marcha o crescimento da emigração para outros países que não os Estados Unidos. Essa tendência se mantém até os dias atuais e é muito provável que seu montante exceda um terço do total de emigrantes. A existência de uma Cuba socialista nega uma exigência básica da ideologia que prevalece na atualidade: de que é necessário resignar-se ao triplo domínio do capitalismo sobre a existência cotidiana, a organização social e a vida de cada país, e a mesma coisa em escala mundial. Apenas trinta anos depois que os Estados Unidos impuseram o primeiro corte de relações , o país viveu pela segunda vez outra interrupção brusca e sem indenizações de suas relações econômicas principais, pac-

tuadas a longo prazo. Esse golpe provocou uma crise econômica muito profunda e uma grande deterioração social, mas pela segunda vez Cuba conseguiu sobreviver. Cuba não se somou à cadeia das “quedas do socialismo” ocorrida em 1990, em que pesem os agravantes que sofreu com o fim de uma assombrosa bipolaridade entre superpotências. Precisou empregar esforços gigantescos e sistemáticos ao longo dos anos 90 para conseguir que a sobrevivência do regime se tornasse viável, mas atualmente ninguém nega que esse objetivo foi alcançado. Em síntese, pode-se afirmar que a Cuba atual é um complexo composto de sua acumulação social revolucionária, de elementos da crise dos anos 90 e suas conseqüências e das mudanças e permanências que estão em curso. A continuidade de seu tipo de organização social socialista é a tendência dominante em suas expressões políticas e no balanço que se pode fazer de sua sociedade.

se demandava. Desde 1995, sua economia vem se recuperando em ritmo paulatino, mas sustentado, e tem crescido em produtos, serviços e eficiência, apesar de se ver obrigada a realizar enormes mudanças em várias esferas. Uma razão básica desse êxito é que Cuba utiliza com eficiência suas próprias forças. Sua população tem altos níveis gerais de conhecimento, capacidades e hábitos úteis, que em muitos aspectos são realmente notáveis e estão bem consolidados; a economia possui apreciáveis níveis de reprodução, controle, diversificação e outros aspectos positivos; a infra-estrutura se desenvolve; o sistema de serviços sociais está entre os mais avançados do mundo e tem resistido bastante à deterioração que a crise lhe inferiu: a paz social e política favorece bastante a atividade econômica; o Estado e as estruturas do poder em geral se mostram capazes na realização de suas tarefas.

Socialismo e resistência

É insólita a combinação que o sistema possui quanto à capacidade na atividade econômica, flexibilidade e exercício de controles severos, graus de liberdade em políticas econômicas e grande capacidade negociadora externa. Seguem-se alguns dados por áreas. O turismo, que quase não existia, cresceu velozmente e se associou a empresas estrangeiras; já em 1998 trouxe 50% do total da receita em divisas. Atualmente, é um setor consolidado e dinâmico – com cerca de cem

A extraordinária resistência cubana conseguiu ultrapassar a crise da primeira metade dos anos 90. O país mostrou ser viável sem aplicar as medidas econômicas que se exigem no mundo atual e seguiu adiante sem prejudicar a vida das maiorias, ao contrário de toda a América Latina. O Estado continuou sendo muito forte e intervencionista em altíssimo grau em matéria econômica, ao contrário do que

Políticas e práticas culturais


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ESPECIAL mil empregados -, que enfrentou bem os difíceis primeiros anos desta década e recebeu dois milhões de visitantes em 2004. O açúcar despencou desde 1993, mas não entrou em colapso; reduziu ordenadamente sua produção e seu plantio a menos da metade; o pessoal excedente foi recolocado e, em grande parte, requalificado. O níquel multiplicou sua importância, registrando uma sólida expansão produtiva e comercial – mais de 70 mil toneladas métricas em 2004, com vendas a numerosos países -, alta eficiência e renovação tecnológica, proveitosa associação com o capital estrangeiro, ótima conjuntura de preços e grande perspectiva de ampliações. Na área energética a estatal Cubapetróleo aproveitou o enorme conhecimento acumulado e, em plena crise, continuou sua expansão produtiva de petróleo - de 0,8 milhão de toneladas métricas em 1991 para 3,7 em 2003 - e de gás, que no mesmo período pulou de 33 para 658 milhões de metros cúbicos - uma conquista estratégica e de substituição de importações - , e criou empresas mistas com companhias de outros países. Descobertas recentes evidenciaram um grande potencial de produção. A área de telecomunicações, por sua vez, é uma das mais dinâmicas, em franca ampliação, contando com fortes investimentos estrangeiros, modernização e trazendo, desta forma, grande contribuição para o desenvolvimento econômico e social do país. A combinação de formação maciça de profissionais de alta qualificação com o investimento em pesquisas científicas aplicadas no campo da saúde uma política mantida durante várias décadas - está rendendo ótimos frutos: alta qualidade de vida dos cubanos devido à prevenção e ao atendimento à saúde; o sistema de saúde cubano também se tornou ao longo das décadas uma importante fonte de divisas com descobertas na área da farmacologia, grande competitividade internacional e vendas de vacinas, medicamentos e equipamentos para o mundo inteiro. Cuba não está sujeita a orientações do FMI nem do Banco Mundial, e controla suas relações com investimentos estrangeiros, em vez de ser controlada por eles. Nos primeiros anos da década de 1990, encorajaram-se muito os investimentos externos e se conseguiram relações notáveis em alguns campos, em uma amplitude modesta e sob o recrudescimento das medidas de perseguição dos Estados Unidos contra os interesses e a soberania de outros países que se relacionavam com Cuba. Consciente de suas forças e debilidades, não cedeu em seus controles ao negociar com os interesses externos. Mantiveram-

Os centros das cidades cubanas estão repletos de edifícios históricos que o Estado conserva com muita preucupação. se centralizadas suas decisões e principais dotações de recursos, o ônus da poupança interna e o equilíbrio entre gastos sociais e investimentos. Depois de 2002, diminuiu o número de empresas mistas e aumentou o controle da economia, concentrando-se mais na relação com sócios de grande envergadura nos campos que o país considerava mais estratégicos.

Cultura socialista A cultura socialista é sustentada vigorosamente pela política social do poder revolucionário. Seu mecanismo principal é a dotação de recursos por meio do orçamento central do Estado, que os redistribui em benefício da saúde, educação, previdência social e outros serviços sociais, setores estatais priorizados e iniciativas que interessam à sociedade; os gastos sociais têm crescido a cada ano e essa tendência é visível até os dias atuais. Essa governabilidade mantém a confiança nos objetivos das medidas e políticas econômicas. Na questão do emprego, o regime rechaçou a “solução” capitalista de “racionalização”. Nos primeiros anos da década de 1990, modificou-se a composição do trabalho (94,4% eram estatais em 1988); aumentaram muito as cooperativas e também o número de trabalhadores por conta própria.

Mas o emprego estatal tem sido protegido até os dias atuais, sem que prevaleçam critérios de eficiência contra ele. De todos os modos, a renda ganhou um bom terreno na estratégia trabalhista e é vital na vida de muitas pessoas e famílias. Centenas de milhares se tornaram trabalhadores por conta própria, seja como atividade exclusiva ou como complemento ao salário estatal, que não aumentava, apesar de os preços dos produtos terem disparado. Associada ao risco de alta do desemprego, a gestão privada seguiu sendo necessária diante das carências e dificuldades no campo do consumo de produtos e serviços e da insuficiência de grande parte dos salários em virtude dos altos preços de muito do que se necessita ou se deseja. O Estado trata de diminuir seu papel e seu peso, oferecendo mais produtos e serviços, mas também estabelecendo controles e normas cada vez mais restritivas dessas atividades. Entre 1999 e 2004, os salários estatais aumentaram, ainda que muito modestamente. A renda média dos assalariados se elevou paulatinamente e, além disso, entre 33 e 50 % deles receberam estímulos variados: pagamentos por produção, divisas (dólares), alimentos, roupas e outros artigos. E, diante da conjuntura financeira favorável, em 2005, o Estado elevou notavelmente as pensões, o salário

mínimo e as recompensas de um amplo setor. Invocou-se a justiça de aumentar as modestas aposentadorias daqueles que trabalharam tanto. Quase um milhão e meio de pessoas começaram a receber um incremento de 1,035 milhão de pesos ao ano, e a Assistência Social, que cuida diferencialmente das pessoas de baixas pensões e outras menos favorecidas, elevou os benefícios de outras 476 mil pessoas. O salário mínimo aumentou de 100 para 225 pesos mensais, favorecendo 1,6 milhão de trabalhadores. Outro aumento, a técnicos de saúde e de educação - totalizando 857 mil - , somou 523 milhões de pesos ao ano. Os novos pagamentos totalizaram 3,5 milhões de pesos anuais, a cargo do orçamento nacional. O governo declarou que esses incrementos, que faziam parte de uma política de aumentos que continuará, eram modestos diante das necessi�������� dades, e que se devia evitar um desequilíbrio financeiro interno. Começaram a ser distribuídos suplementos alimentícios e alguns novos bens domésticos duradouros para toda a população, utilizando-se a “libreta” que a Revolução implantou desde 1962 e que até os dias atuais vende ao consumidor produtos subsidiados. O consumo de alimentos per capita diário foi se recuperando, até chegar em 2003 ao

que se havia chegado em 1989, e subiu para 3.305 calorias em 2004; atingiu o requerido em proteínas e manteve um déficit em gordura. Aumentou a oferta estatal nos mercados “liberados” e sua rede gastronômica. A sociedade cubana é capaz de mitigar os efeitos de secas e ciclones tropicais, e de atender regiões afetadas ou prejudicadas; a defesa civil e o sistema de prevenção e atuação ante desastres naturais de Cuba estão entre os melhores do mundo, por sua cobertura e eficiência. Sua organização social e as prioridades que ela determina é que abrem caminho para essas conquistas. Isso permite que um país que enfrenta fortes carências e dificuldades seja celebrado por sua destacada atenção à infância e à sua política de emprego, confronte o envelhecimento de sua população, destine somas ingentes ao gasto social, tenha um enorme programa de universalização dos estudos superiores e priorize os centros de saúde e educação em relação a construções e reformas. E também faz com que seus cidadãos e seu governo expressem incomodidade e preocupações ante necessidades básicas que continuam insatisfeitas, como a escassez e o mal estado das mo radias, ou ante a crise recente do abastecimento de energia elétrica. Carlos D’Incao é professor de história formado pela FFLCH da USP


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OPINIÃO - TECNOLOGIA & EDUCAÇÃO

Qual o caminho da tecnologia nas escolas? Pedro D’Incao

D

esde a década de 80, verificamos um imenso empenho, sobretudo nos Estados Unidos, para a criação de maior acesso e incorporação de novas tecnologias nas escolas, principalmente as que envolvem o uso de computadores. Porém, apesar dos grandes esforços e investimentos nesse sentido, o modelo de implementação norte-americano tem obtido resultados muito abaixo das expectativas propostas. Esperava-se uma melhoria no desempenho acadêmico dos estudantes e também um avanço no desenvolvimento das práticas pedagógicas em sala de aula. Porém, o maior problema é o fato de os americanos terem adotado o modelo que as instituições educacionais, públicas e privadas, têm adotado aqui no Brasil. Os objetivos e metas desse investimento calcaramse em estratégias “nebulosas” - poderíamos até afirmar, equivocadas, pois giram em torno dos seguintes aspectos: 1.Para tornar as escolas mais eficientes e produtivas, é estabelecida uma relação direta e perigosa entre o universo empresarial e as escolas. Como a informática e a tecnologia aumentaram a eficiência de bancos e empresas em geral, nada mais óbvio seria pensar que a tecnologia tivesse o mesmo papel e desempenho nas escolas. O problema é que não podemos pensar uma escola como uma empresa, mesmo que haja uma relação financeira entre família e mantenedores, como no caso das instituições privadas. 2.Transformar o aprendizado numa atividade conectada com a “vida real” passou a significar a desvalorização das formas clássicas de ensino, relacionadas com aulas expositivas, uso de livros didáticos e sistema de avaliação que cobram conteúdo. Segundo os que coordenam as implementações tecnológicas nas escolas de nosso país, os métodos

E necessário que a tecnologia seja usada para a dinamização do aprendizado, ajudando assim o entendimento do aluno. clássicos de ensino são obsoletos e incompatíveis com a nova era, a era da informação. Afirmam ainda que as novas tecnologias exigem uma prática pedagógica centrada no aluno e voltada para o seu cotidiano. Além disso, como a tecnologia possibilita o acesso “livre” e “irrestrito” às informações, o objetivo das aulas não deve ser trabalhar o conteúdo (já disponível “em todo lugar”), mas sim correlacionar essas informações. Assim, a ilusão da “era da informação” e o esvaziamento quase que completo dos conteúdos escolares transformaram esse objetivo numa grande armadilha. 3.Para preparar as futuras gerações para as exigências mercadológicas deste século, apoiase na crença de que os empregos do futuro irão requerer prioritariamente conhecimentos e habilidades tecnológicas. Neste caso, um dos objetivos principais da tecnologia nas escolas passa a ser o preparo de mão de obra qualificada para o mercado de trabalho. Com esses objetivos em mente, o então Presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, destinou em 1996 uma verba de dois bilhões de dólares para a implementação tecnológica nas

escolas americanas. Clinton firmou, então, quatro pilares para o sucesso desse projeto: -Modernos computadores devem estar disponíveis e serem de fácil acesso a todo estudante. -As salas de aula devem estar conectadas umas com as outras e com o mundo. -Softwares educacionais devem ser incorporados aos currículos. -Professores deverão estar preparados para usar e ensinar com tecnologia. Os pilares 1 e 2 foram rapidamente estabelecidos e acreditava-se que o terceiro e o quarto iriam surgir como uma consequência natural dos dois primeiros. Mas isso não aconteceu. Hoje o projeto de implementação tecnológica nos Estados Unidos está em xeque. Apesar da abundância de computadores nas instituições de ensino, o seu uso efetivo como ferramenta pedagógica é extremamente questionável, principalmente pelo fato de os professores não os terem incorporado às suas práticas. O problema, segundo especialistas em tecnologia aplicada à educação, é o professor. O professor acabou por adaptar as novas tecnologias à sua já existente prática pedagógica. São

apontados como grandes falhas dos professores o fato de: -Não abrirem mão do “controle” da aula - como vimos anteriormente, o aprendizado através da tecnologia deve ser centrado no aluno. -“Insistirem” em trabalhar o conteúdo através de livros didáticos - como o conteúdo está “disponível na internet”, essa prática inibe o uso dos computadores. -Serem tecnofóbicos. Pesquisas feitas nos Estados Unidos refutaram essa última afirmação, ou seja, os professores não têm medo da tecnologia. Ainda sobre as críticas feitas aos professores, esses pretensos especialistas citam diversos profissionais, tais como arquitetos, engenheiros e médicos, que incorporaram a tecnologia no seu cotidiano e melhoraram substancialmente sua eficiência e produtividade. Então, por que o profissional da educação é tão resistente? Ora, a resposta está justamente no caminho que foi(mal) traçado como sendo o correto para a implementação tecnológica: o uso de pedagogias associadas à tecnologia que esvaziam os conteúdos escolares, que retiram do professor o seu papel e a sua essência. A implementação tecnológica não exige, por

exemplo, que o engenheiro deixe de ser engenheiro. Mas, em relação ao professor, tal como está sendo feito nos Estados Unidos e agora no Brasil , exige-se que o professor deixe de ser professor. Definitivamente, esse não é o caminho. O caminho para uma implementação tecnológica eficiente é aquele que leva ao uso do computador como uma ferramenta que fortalece e aprimora os métodos de aquisição do conteúdo. Isso envolve o desenvolvimento qualitativo da relação professor-aluno, para que eles façam uso dos computadores como ferramentas de produção multimídia, análise de dados e para realização de trabalhos colaborativos. No Brasil, com o uso de notebooks de baixo custo (que impedem a realização de trabalhos mais sofisticados) e que estão sendo utilizados como uma mera substituição do caderno ou apostila (e principalmente para realização de atividades pré-fabricadas online), o insucesso e o esvaziamento total da utilização tecnológica serão, num breve espaço de tempo, um fato. Pedro D’Incao é professor de Física, formado pelo IF-USP.


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