FOLHA DO EDUCADOR 2011
N0 6
U MA P U B L I C AÇ ÃO D O D ' I N C AO I N S T I T U TO D E E N S I N O
Educação e democracia A história e a função da escola
ARQUITETURA
Em busca da sustentabilidade
PÁG.08
CINEMA
O Nazismo como um projeto estético PÁG.14 CULTURA
A babel cultural do interior nos anos 80
PÁG. 12
EDUCAÇÃO
Bullying em debate
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PEDAGOGIA
As contradições da educação a distância
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2 FOLHA DO EDUCADOR
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EDITORIAL A Folha do Educador traz novamente a educação como tema principal de sua edição 6. O professor Carlos
D’Incao (que também edita este jornal) fez um retrospecto crítico da história da escola e de como ela deve desempenhar
um papel democrático e despertar a consciência crítica em seus alunos. O artigo principal é complementado
por um artigo sobre o bullying e outro sobre os malefícios da educação a distância. A edição 6 da Folha do Estudante
também apresenta artigos e matérias de outros professores e especialistas em educação e ciência e cultura.
CARTA AO LEITOR
Esopo e o capital
Fábula do sapo e do escorpião ilustra a natureza perversa do capitalismo: explorar para sobreviver Carlos D’Incao
U
ma das mais populares fábulas de Ésopo é sobre o sapo e o escorpião. De forma sucinta, a fábula conta a história de um escorpião que necessita da ajuda de um sapo para atravessar o rio. Após dialogar com o sapo, salientando que seria insensatez de sua parte matá-lo ao longo da travessia (o que mataria ambos) e enorme ingratidão matá-lo após a travessia, o escorpião enfim convence o sapo a ajudá-lo e sobe em suas costas. Ao longo da travessia, porém, o escorpião desfere uma ferroada mortal no sapo. O mesmo olha paralisado para o escorpião e diz: “Seu tolo, agora morreremos ambos! Por que fizestes isto?”, sendo que o escorpião lhe responde: “Assim fiz porque sou um escorpião e esta é a minha natureza...”. Esta fábula em geral é utilizada para salientar que o Homem ou alguns homens possuem uma natureza que é imutável e que não nos cabe tentar entendê-la ou mesmo mudá-la. Nesse sentido, alguns nasceriam bons, outros maus; uns com moral, outros imorais; e tais comportamentos não poderiam ser entendidos sob a luz da razão. Essa leitura da fábula se configura como claramente conservadora e naturalizante do comportamento. Provavelmente, trata-se de uma leitura que o próprio autor partilhava na antiguidade. Porém, essa mesma fábula considerada à luz de nossos tempos nos abre outras possibilidades de interpretação que não apenas podem como devem ser propostas de modo
a dar vida à história e ao próprio autor da fábula. Sabemos que a partir do mundo aparente, visto em sua superficialidade, não é possível compreendermos sua lógica de funcionamento. O mundo aparente em nossa sociedade é - na realidade - uma das manifestações da ilusão. Na análise das sociedades humanas até o presente, Marx observa que os Homens fazem sua própria história, mas não como querem e nem de acordo com suas consciências pois justamente estão cercados em sua essência por relações alienadas que produzem consciências alienadas. Entender a natureza dessas relações é passo importante, senão fundamental, para superar a alienação em si. A partir de onde podemos iniciar esse caminho? Vejamos. Sabemos que a sociedade capitalista, que produz as relações alienadas de trabalho, é dotada de uma intrínseca contradição que confronta continuamente os interesses da classe produtiva com os interesses dos detentores dos meios de produção. Essa contradição se desdobra, em seus mais elevados níveis de abstração, em uma oposição contínua entre os processos de humanização da sociedade através do trabalho e forças que controlam o trabalho e usurpam sua riqueza, degenerando de forma tendencial o sentido do trabalho e os outros tecidos sociais (trabalhadores) que, alienados dos frutos do próprio trabalho, se desumanizam ou se humanizam de forma precária.
Capital e governo: Henry Paulson, da Goldman Sachs, comanda o tesouro da era Bush. Essa contradição está sob a lógica de um tipo de movimento: o movimento dialético, que cria condições de superação, mas também forças e movimentos de regressão que podem conduzir a sociedade a processos visíveis de degeneração e de desumanização das relações sociais como um todo. Quando afirmamos que esses movimentos são sempre processos globais, afirmamos que tanto a classe trabalhadora quanto as classes dirigentes capitalistas se debilitam diante do processo de desumanização das relações sociais de produção. A classe dominante também é parte integrante das relações alienadas de produção e, como
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Uma publicação D’Incao Instituto de Ensino
força central de expoliação e descaracterização do sentido do trabalho, seu triunfo é o triunfo das forças degeneradas e desumanizadoras da sociedade. Por outro lado, a elite alienada tende a desconsiderar um fato elementar: são as forças produtivas aquelas que são dotadas de um inominável e irresistível poder de transformação e superação das condições sociais das quais elas advém. É o esquecimento desse fato elementar que causou o enorme espanto das elites mundiais com a queda do czarismo na Rússia em 1917, edificado por mais de quatrocentos anos de opressão. Hoje, causa igual espanto nas elites internacionais a sublevação dos povos do Oriente Médio que derrubam com notável facilidade ditaduras consideradas tão sólidas como eternas e tirânicas. As transformações ocorrem, assim, nesse sentido dialético. Caso haja algo certo nesse mundo é que ele sempre muda, mesmo quando nada parece mudar, ou quando as mudanças parecem rumar na contra-mão da história. Eis aqui que entender esse movimento e não nos
arrefecermos diante de conjunturas aparentemente pessimistas é um dos primeiros passos a caminho da superação da sociedade capitalista através do engajamento político. Nesse momento podemos dar um novo sentido para a fábula de Ésopo. A História precisa rumar e não pode mais carregar as relações capitalistas em seus ombros. Conduzida sob os interesses do escorpião (o capital), a sociedade estará condenada à paralisia do progresso e à destruição de todos os laços sociais e dos recursos naturais que são vitais a todos - trabalhadores e capitalistas. Não podemos aceitar a possibilidade de um dia olharmos para os banqueiros, grandes industriais e seus políticos lacaios e, diante de um mundo destruído em guerras e catástrofes naturais, os questionar: “Seus tolos, por que fizeram isto? Agora morreremos todos”. Sabemos a resposta dos capitalistas: “Assim fizemos porque somos o capital e esta é a nossa natureza...”. Carlos D’Incao é professor de História e diretor do D’Incao Instituto de Ensino.
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CAPA
Escola e democracia
Uma breve análise do papel de independência e vanguarda que a escola detém nas sociedades Carlos D’Incao
A
luta pela democracia é, sem sombra de dúvidas, a principal luta na qual a maior parte das sociedades contemporâneas se envolveu (e ainda se envolve), ora com êxito, ora com fracasso, no último século. Não restam dúvidas também de que a escola, uma das mais importantes instituições existentes no mundo contemporâneo, esteve e ainda está diretamente relacionada a essa luta que ainda encontra-se em curso nos dias atuais. Diante dessa conjuntura, é de suma importância o debate sobre o papel que a escola deve desempenhar no caminho para a construção de uma sociedade democrática. Além disso, é de vital importância debater-se sobre a possibilidade de ações progressistas para o avanço da escola em direção à democracia. Mas para isso, é preciso definir com considerável solidez (e lucidez) um conceito adequado sobre o que é a escola e quais são seus principais sujeitos: o Universidade de Oxford: construída na Idade Média, mas professor e o aluno. Entendemos que a escola seu olhar se dirigia ao futuro significaria descaracterizar a esnão vai colaborar para a construque, corretamente, julgava ser cola, não apenas como instituição de uma sociedade democrámais promissor e complexo. As- ção presente, mas também signitica se ela, em si, não for demosim, as Universidades não eram ficaria negar seu caráter histórico crática. Nesse sentido, entendeapenas reprodutoras da ordem e progressista. mos a escola como uma instituimas, sobretudo, estavam atentas No interior da escola enção que não pode ser concebida ao movimento da sociedade, ba- contram-se os dois sujeitos pricomo mero reflexo das relações tendo com mais lucidez do que mordias - sem os quais sua razão existentes na sociedade, mas qualquer outra instituição me- de existir se esvazia: o professor como uma instituição que pode dieval nas portas da modernida- e o aluno. Sobre esses dois pere deve desempenhar um papel de que se delineava no horizonte sonagens flui a essência do que também autônomo no interior europeu. é educar, neles encontraremos dessa mesma sociedade, gerando No início da modernida- o ato que muitas vezes se antedebates, críticas e contradições de até os dias atuais, a educação cipa ao verbo e a ele dá sentido que podem sinalizar soluções como um todo irá passar por e significado. Historicizar esses positivas para todos. Em suma, uma constante luta para se tor- personagens, assim, se faz iguala escola tem o potencial de ser nar cada vez mais ecumênica. mente necessário para definiruma instituição que estabelece, A sociedade medieval criou as mos um conceito adequado de muitas vezes, relações mais elevaUniversidades. A modernidade como os mesmos devem atuar das e democráticas do que outras foi além: criou a ideia da univer- no sentido da concretização de instituições e do que a própria salidade da educação, pensada uma educação verdadeiramente sociedade em geral. - como bem salientava o pai do democrática. humanismo, Petrarca - para serEscola e história vir ao bem comum, para servir a O professor todos os Homens. Assim, é mais A escola como instituição uma vez salientado o caráter vanComo vimos, a escola possui sua própria história. Esta- guardista da escola, local onde como instituição sistematizada belecer um olhar sobre essa his- mais do que em qualquer outro foi uma criação do mundo metória é uma atividade que pode lugar, aspirou-se uma autêntica dieval. Entretanto o professor, elucidar de forma contundente democratização do saber, muito personagem central dessa instio que é a escola em si. Criada antes de os iluministas pensarem tuição, já existia há muitos séno baixo medievo europeu, as na democracia universal. culos atrás, remontando-nos à Universidades foram as primeiNessa breve exposição Antiguidade. Parece haver quase ras instituições educacionais histórica da origem da escola, já um consenso entre os historiadosistematizadas da história da podemos definir que trata-se de res de que os primeiros professohumanidade. Cumpriam com uma instituição compromissada res da humanidade surgiram na uma função que ia muito além com o conhecimento produzido Grécia: os sofistas. Educavam e da reprodução das relações feu- pela humanidade, preocupada eram pagos para isso. Justamente dais - muito embora fossem pri- em atender às necessidades da essa remuneração é o que distinvilégio apenas da nobreza e do sociedade e, sobretudo, com um gue o surgimento de uma cateclero. No intuito de organizar o olhar sempre à frente de seu temgoria específica de profissionais conhecimento acumulado pela po, adiantando-se aos desafios a que chamamos de professores. humanidade e formar um clero futuros e guiando a sociedade Esse ato de remunerar o trabalho e uma nobreza mais capazes e para direções progressistas, que daquele que ensina dividiu opiaptos ao exercício do poder, as geraram e ainda geram desenvolniões na Grécia e não faltaram Universidades estavam compro- vimento. Entendemos que retiaqueles que criticaram duramissadas com o presente, mas rar qualquer um desses atributos
sobre uma concepção que ia além da Idade Média. mente os sofistas por esse gesto, visto como vil e vulgar. Porém, na mesma Grécia antiga encontraremos a chave para entender o significado positivo do surgimento desses profissionais da educação, nas obras de um grande pensador: Aristóteles. Aristóteles foi o primeiro filósofo que analisou as relações de troca existentes nas sociedades humanas e, entre muitas admiráveis conclusões, chegou a uma que é de suma importância para o debate aqui estabelecido: não há troca sem igualdade. No caso das mercadorias, o elemento comum para a existência de trocas é o
trabalho. Para facilitar o mundo das trocas a humanidade criou o dinheiro, a mercadoria universal. Assim, para qualquer troca que envolva produtos oriundos da atividade do trabalho, é comum encontrarmos a troca na forma financeira. O professor realiza trabalho e por isso é remunerado, mas para que haja troca, como afirma Aristóteles, deve-se haver igualdade. Assim, o professor só exerce de forma autêntica sua atividade quando o seu ato de educar está compromissado com uma troca que se estabeleça pelo princípio da igualdade.
A partir do século 11, com a demanda por conhecimentos mais práticos na área do comércio e da negociação, as Universidades surgiram, inicialmente controladas pela Igreja. Em diversos pontos da Península Itálica, na França e na Inglaterra apareceram essas primeiras instituições de ensino superior. Já no final do século 14, havia mais de 40 instituições desse tipo espalhadas pelo continente europeu.
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CAPA
Não foi por acaso que ao longo da História o professor sempre educava aquele que ele julgava um igual, membro da mesma classe social. O professor que educa a todos, sem distinção, só nos aparece quando surge a ideia de que todos somos iguais - seja perante a Deus (como os jesuítas propagavam), seja perante as leis. Muito embora o papel do professor possa ser solitário, individual, não restam dúvidas de que o professor só pode cumprir com essa monumental função de educar a todos em uma sociedade que julga que todos sejam iguais, a partir de uma instituição que organize e sistematize o seu trabalho, e essa instituição é a escola. Dessa forma, vemos que a necessidade de obter conhecimento gerou o professor e sua atividade em muito colaborou para a evolução da sociedade, ao ponto da mesma atingir um conceito mais universal e igualitário de ser humano, o que por sua vez abriu as condições para o surgimento de uma instituição para viabilizar esse novo conceito: a escola. Acreditamos assim, que ao historicizarmos o professor, veremos que o mesmo é, antes de tudo, um trabalhador, um profissional que cria valor e por isso é remunerado. Ele é um personagem que estabelece sua relação de troca por um princípio centrado na igualdade e também é, enfim, um dos sujeitos centrais para o surgimento da escola e da própria concepção de uma educação universal e igualitária. O professor, portanto, é um dos su-
jeitos centrais para a construção de uma sociedade democrática. Novamente, retirar qualquer um desses aspectos que identificam o professor seria, ao nosso ver, descaracterizar o próprio conceito do que é o professor em si.
O aluno autônomo Por fim, veremos que o último - porém não menos central - personagem é o aluno. A necessidade de aprender é uma necessidade vital tão antiga quanto a humanidade. Sobre ela temos o surgimento do ato de ensinar, pois não se ensina nada que não seja necessário aprender, seja para as necessidades mais imediatas, seja para as necessidades mais elevadas, abstratas e de utilidade muito mais complexa. Entretanto, na história da educação apenas muito recentemente atribui-se a esse personagem, o aluno, especial relevância. Por muito tempo pareceu-se crer que o aluno poderia ser quase que completamente anulado e, ainda assim, haver educação. O próprio nome dado ao aprendiz, “aluno” - do latim “a luminus”, isto é, “sem luz” -, é convidativo a essa ideia detrativa de sua função. A luta por uma educação democrática é, assim, sem sombra de dúvidas, a luta por um conceito adequado do que é o aluno. Como vimos, trata-se de um personagem que representa a vontade e a necessidade da sociedade de aprender. Poderíamos inclusive afirmar que o aluno é a força social que impulsiona a existência do professor e da pró-
pria escola. Assim, o professor, ao se relacionar com o aluno, deve estar atento ao seu duplo significado, isto é, atento ao aluno presente como indivíduo e às forças sociais de que o mesmo é representante. Portanto, o aluno deve ser atendido em suas necessidades objetivas como indivíduo e deve também ser atendido como um representante das necessidades existentes na sociedade, apropriando-se, sempre, do conhecimento produzido pela humanidade. Entretanto, a relação de ensino, o método de aprendizagem - isto é, a pedagogia -, deve ser adequada de modo que a transmissão de conhecimento seja possível e aqui entramos no centro da questão da escola e da democracia, onde todos os pontos parecem convergir em uma síntese conclusiva: não há conhecimento que possa ser aprendido sem sentido e sem significado; não há ensino que não se estabeleça sem uma relação de igualdade e universalidade entre professores e alunos; não há aprendizado que seja viável sem escola e sem método pedagógico; em suma, não há autêntica educação sem democracia. Por isso, enfim, concluímos que a luta pela escola democrática é mais do que uma luta pela democratização do acesso e das relações postas entre professores e alunos. É, sobretudo, uma luta pela educação autêntica. Se é verdade que um novo mundo não poderá surgir apenas pela escola, é igualmente verdade que uma nova socieda-
de democrática não existirá sem uma escola democrática, onde o ato de educar seja, enfim, autêntico e democrático.
Obs: a imagem desta página é do quadro “Escola de Athenas”, de Rafael.
Foto da capa: esta foto histórica retrata Elizabeth Eckford entrando na escola, em Little Rock, Arkansas (EUA), no ano de 1957. Ela integrava um grupo de nove jovens que foram os primeiros afro-descendentes a frequentar aulas nos EUA, desafiando o preconceito vigente na sociedade americana.
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EDUCAÇÃO - ENSINO A DISTÂNCIA
Educação a distância e o distanciamento da educação Instituições prometem o impossível: ensino a distância com qualidade Carlos D’Incao
O
s cursos à distância proliferam em nosso país e também em boa parte do mundo desenvolvido. Tais cursos são ministrados na internet e com apenas alguns momentos presenciais, nos quais o aluno geralmente realiza exames que o vão qualificar para outros níveis, até a sua formação. Reconhecido pelos órgãos governamentais, esse modelo de educação ainda não foi aceito plenamente pela sociedade - e nem pelo mercado de trabalho, que olha para esses cursos com desconfiança e cautela. Diante do atual quadro, cabe a questão: qual é o significado desses cursos para o universo educacional, considerando principalmente os papéis dos professores, dos alunos e do campo pedagógico que os sustentam? Antes, porém, é importante termos uma visão clara do que, a nosso entender, significa a educação em si. Muito além da simples transmissão de conhecimentos, o ato de educar é também composto de uma interação professor-aluno enriquecedora, onde o processo de aprendizagem não cumpre apenas a função da transmissão de conteúdo, como também instrumentaliza metodologicamente o aluno a pensar de forma sistematizada, crítica e atuante, através do debate com o professor e com os seus pares. Não é incomum, inclusive, a existência de alunos que, após saírem da escola, possuam uma memória mais relacionada com o método do professor do que com o conteúdo por ele ministrado e, vis a
vis esse fato, são educados mais pela metodologia do que pelo conteúdo. Assim, vemos que a educação só é possível com a existência de um mediador. Nas sociedades até então estabelecidas ao longo da história, o professor é o profissional mais qualificado para essa empreitada. Por isso, uma visão clara do que é e do que deve fazer o professor - do seu papel no processo educativo - é de fundamental importância. Não caindo na nostalgia de um professor tradicional e conteudista, mas também não caindo no radicalismo daqueles que defendem a total exclusão ou minimização do papel educacional do professor, entendemos que ele pode e deve ocupar um papel central (mas não absoluto) no processo educacional. Ao invés de uma oposição entre aluno e professor, não conseguimos ver uma autêntica educação sem considerar professor e aluno igualmente no centro do processo educacional. Sem isso, teremos uma educação esvaziada e alienada na medida em que um dos personagens é alheio ao processo. A escola é ainda, nessa conjuntura, o fórum privilegiado para a efetivação de uma autêntica educação. É o espaço onde o aluno apreende o conteúdo e vai muito além deste, aprendendo a dialogar, respeitar, ter limites, conviver com as diferenças, obedecer regras e exigir seus direitos através de agremiações estudantis e de outras formas participativas existentes no cotidiano de uma verdadeira escola democrática. Portanto, a educação à distância, ao suplantar a escola como ambiente educacional
privilegiado - e ao descartar ou minimizar o papel do professor, impondo ao aluno a lógica sistemática do auto-didatismo -, só é uma autêntica educação com muitas reticências. A propagação desses cursos só poderia ter justificativa em uma conjuntura de total impossibilidade ou escassez de recursos físicos e econômicos para uma educação adequada, o que não é o caso. Qual pedagogia poderia vir a defender a quase total nu-
lidade do professor, da escola e do aluno no processo educacional, se não o antigo tecnicismo - e suas apostilas? Trata-se de um modelo pedagógico superado, que não solucionou o problema da marginalidade escolar nas décadas de 50, 60 e 70 no Brasil - e que possui hoje bem menos recursos para solucionar problemas de uma sociedade ainda mais complexa e com desafios ainda maiores dos que os de 40 anos atrás. O uso da tecnologia,
enfim, pode se converter em uma ferramenta auxiliar rica no cotidiano educacional, mas uma educação reduzida ao uso da internet não é uma autêntica educação e nem mesmo uma educação à distância. Quando muito, é o distanciamento da educação.
Carlos D’Incao é professor de História e diretor do D’Incao Instituto de Ensino.
Ensino fantasma e a distância (fonte: Zero Hora 2/05/2011)
Os cursos a distância oferecidos pela Ulbra (Universidade Luterana do Brasil), com sede no Rio Grande do Sul, sofrerão uma “drástica redução” no número de vagas em função de irregularidades verificadas na oferta em alguns polos. A instituição já está sob supervisão, segundo o secretário de Ensino Superior do Ministério da Educação (MEC), Luiz Cláudio Costa. Ontem (1º), uma reportagem veiculada na imprensa mostrou casos de alunos selecionados para receber uma bolsa do Prouni (Programa Universidade para Todos) em cursos a distância da Ulbra que não existiam. Foram identificados cerca de 100 alunos em Água Branca (AL) que se inscreveram e foram selecionados para receber uma bolsa do Prouni em cursos a distância da instituição. Mas o polo de atendimento onde é feito o acompanhamento presencial dos estudantes, requisito para o funcionamento de um curso a distância, não existe. O MEC afirma que a Ulbra assinou um termo para abrir o polo na cidade, determinando um número específico de vagas, com reserva de bolsas para o Prouni, e foi surpreendido com a notícia. Segundo Costa, o fato é “gravíssimo” e o MEC está discutindo com a instituição uma forma de realocar esses estudantes para que eles não sejam prejudicados.
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ARTIGO - SOCIOLOGIA / GLOBALIZAÇÃO CULTURAL
O próprio e o alheio: uma oposição que se desfigura Uma profunda análise da queda de nossas fronteiras culturais e identidades Néstor Canclini
E
m meados deste século (XX), era frequente em alguns países latino-americanos que uma discussão entre pais e filhos sobre o que a família podia comprar ou sobre a competição com os vizinhos terminasse com a seguinte máxima paterna: “Ninguém está satisfeito com o que tem”. Essa conclusão manifestava muitas ideias a um só tempo: a satisfação pelo que tinham conquistado aqueles que passaram do campo para as cidades, pelos avanços da industrialização e a chegada à existência quotidiana de novos itens de conforto (luz elétrica, telefone, rádio, talvez o carro), tudo aquilo que os fazia se sentirem habitantes privilegiados da modernidade. Quem pronunciava essa frase estava respondendo aos filhos que chegavam à educação de nível médio ou superior e desafiavam os pais com novas demandas. Respondia à proliferação de aparelhos eletrodomésticos, aos novos signos de prestígio, às inovações da arte e da sensibilidade, às aventuras das ideias e dos afetos aos quais estavam se incorporando. As lutas de gerações a respeito do necessário e do desejável mostraram outro modo de estabelecer as identidades, afastando-se da época em que as identidades se definiam por essências. Passamos então para um panorama em que as identidades se configuram no consumo e dependem daquilo que se possui ou que se pode chegar a possuir. As transformações constantes nas tecnologias de produção, no estilo dos objetos, na comunicação mais exclusiva ou intensiva entre sociedades - e do que isto gera na ampliação de desejos e expectativas -, tornam instáveis as identidades fixadas em repertórios de bens exclusivos de uma comunidade étnica ou nacional. Aquela política de se vender a ideia de estar conten-
te com o que se tem (que foi o nacionalismo dos anos sessenta e setenta) é vista hoje como o último esforço das elites desenvolvimentistas das classes médias e de alguns movimentos populares para conter, dentro das vacilantes fronteiras nacionais, a explosão globalizada das identidades e dos bens de consumo que as diferenciavam. Finalmente, a frase perdeu sentido. Como estar feliz com o próprio (aquilo que é seu) se sequer sabemos o que é? Nos séculos XIX e XX a formação de relações modernas permitiu transcender as visões das aldeias de camponeses e indígenas. E ao mesmo tempo evitou que as identidades se dissolvessem na crescente dispersão do mundo. As culturas nacionais ainda pareciam sistemas razoáveis para se preservar. Dentro da sociedade industrial, certas diferenças estavam enraizadas no conceito de território, que determinava, de forma geral, o que era produzido. Comer como espanhol, brasileiro ou chinês significava guardar tradições específicas de sua cultura, pois a comida nacional era muito mais barata que a importada. Uma peça de roupa, um carro, um programa televisivo, tudo era mais acessível se fosse nacional. O valor simbólico do “nosso” era sustentado também por ser a única opção da maioria das populações. Procurar e consumir itens estrangeiros era um ato de prestígio e exclusividade - e algumas vezes refletia a procura de mais qualidade no produto internacional. O que diferencia a internacionalização da globalização é que no tempo da internacionalização das culturas nacionais era possível não se estar satisfeito com o que se possuía e procurá-lo em outro lugar. Mas a maioria das mensagens e dos bens que era consumida era gerada na própria sociedade, sob fronteiras restritas e leis que protegiam o que se produzia em cada
Perda de referências: a eternidade das tradições tenta se integrar ao imediatismo global. país. Agora o que se produz no mundo todo está aqui, imediatamente, e é difícil saber o que é o próprio. A internacionalização foi uma abertura das fronteiras geográficas de cada sociedade para incorporar bens materiais e simbólicos das outras. A globalização supõe uma interação funcional de atividades econômicas e culturais dispersas, bens e serviços gerados por um sistema com muitos centros, no qual é mais importante a velocidade com que se percorre o mundo do que as posições geográficas a partir das quais se está agindo. Há duas maneiras de interpretar o descontentamento contemporâneo provocado pela
globalização. Alguns autores pós-modernos defendem que o problema não é tanto a falta ou a impossibilidade de se possuir bens, mas o fato de que tudo o que se possui torna-se a cada instante obsoleto e fugaz. Uma visão integral deste assunto, porém, deve dirigir o olhar em direção aos grupos em que se multiplicam as carências. A maneira neoliberal de fazer a globalização consiste em reduzir empregos para reduzir custos, competindo entre empresas transnacionais cuja direção se faz desde um ponto desconhecido, de modo que os interesses sindicais e nacionais quase não podem ser exerci-
Néstor García Canclini (La Plata, Argentina, 1939) é um antropólogo argentino contemporâneo. O foco de seu trabalho é a pósmodernidade e a cultura a partir de ponto de vista latino-americano. É considerado um dos maiores investigadores em comunicação, cultura e sociologia da América Latina. Estudou Filosofia e concluiu o doutorado em 1975 na Universidade Nacional da Prata. Três anos depois, concluiu o pós-doutorado na Universidade de Paris. Atuou como docente nas universidades da Prata (1966-1975) e Buenos Aires (1974-1975). Foi também professor nas universidades de Stanford, Austin, Barcelona e São Paulo. É professor desde 1990 da Universidad Autónoma Metropolitana do México, onde está radicado.
dos. A consequência de tudo isso é que mais de 40% da população latino-americana se encontra privada de trabalho estável e de condições mínimas de segurança, e sobrevivem nas aventuras também globalizadas do comércio informal, da eletrônica japonesa vendida junto a roupas do Sudeste Asiático, junto a ervas esotéricas e artesanato local, em volta dos sinais de trânsito: nesses vastos subúrbios que são os centros históricos das grandes cidades há poucas razões para se ficar contente, enquanto o que chega de toda parte se oferece e se espalha para que alguns possuam e imediatamente esqueçam.
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ARTIGO - EDUCAÇÃO
O Bullying e a escola
A escola não é o ambiente exclusivo do Bullying; ela apenas reproduz a violência da sociedade Carlos D’Incao
A
questão da violência estudantil tem sido objeto de grande preocupação e debate nas últimas décadas, não apenas no Brasil, mas em boa parte do mundo desenvolvido - principalmente nos Estados Unidos. Este tema mobiliza a atenção não apenas de pedagogos e professores, mas também de psicólogos, psiquiatras e pediatras, transpondo a questão para outras áreas que transcendem significativamente a instituição escolar. Para haver um debate mais objetivo, porém, é necessário uma melhor definição dos diferentes personagens que estão envolvidos na questão da violência em geral e na questão do bulling em particular, de modo a estabelecer de forma mais efetiva uma sólida compreensão do problema - e possíveis soluções para superá-lo. É importante salientarmos que a violência está longe de ser um problema exclusivamente escolar. Ao contrário, trata-se de um problema social mais amplo e complexo, no qual a escola está inserida e, por esse mesmo motivo, é legítimo questionar qual é o papel da escola na lógica da violência - isto é, em quais momentos essa instituição é vítima, até quando é co-responsável e reprodutora da violência e, enfim, até que ponto pode atuar no sentido de minimizar ou até superar a existência da violência dentro de seu ambiente. Não restam dúvidas de que um ambiente social marcado pela desigualdade social e pela existência de poderes e instituições públicas que se utilizam recorrentemente de métodos repressores e violentos para com a população em geral - e a população mais carente em particular - acaba irradiando sua lógica quase que de maneira irresistível ao ambiente escolar. Porém, um breve conhecimento da história
da escola nos leva a reconhecer que trata-se de uma instituição formada, desde sua origem medieval, com força suficiente para impor uma lógica muitas vezes resistente e à frente de seu tempo. E escola não é, portanto, um mero espelho da realidade social concreta, mas antes uma peça marcada com suficiente autonomia para, inclusive, ditar as linhas do futuro através de uma compreensão mais lúcida - em comparação com qualquer outra instituição - do presente e do passado. Assim sendo, simplesmente salientar que a questão da violência é uma fatalidade a qual a escola deve se curvar, é uma interpretação no mínimo desprovida de historicidade e conhecimento sobre o papel da escola no passado e seu potencial de atuação no presente. Ainda nos remetendo às origens da escola, devemos nos lembrar de um dos grandes objetivos das universidades medievais nas palavras de São Tomás de Aquino, em sua Suma Teológica. O pensador afirmava ser a escola a instituição que deve “estabelecer a luz e a ordem, quando o caos e as trevas parecem predominar”. Transpondo aos nossos dias, vemos que a escola ainda pode e deve ser uma ferramenta para a elucidação dos problemas e uma indicadora para a saída de muitos deles. Uma grande obra será a princípio realizada pela escola, para superar a questão da violência, se a mesma atuar na clarificação dos diferentes papéis que cada um dos sujeitos desse problema possui: a sociedade em geral, a família, o professor
e o aluno. Quando debate-se na escola um tema tão amplo e de apelo social tão grande, é importante essa instituição não cair na armadilha da ubiquidade e acreditar que tudo pode solucionar. A escola não pode resolver os problemas de desigualdade social, distribuição de renda e o problema policial de sua localidade. Quando muito, pode e deve ajudar na formação de sujeitos críticos e aptos a lutarem por seus direitos, seja
na participação coletiva em entidades sociais, seja por meio do voto consciente. O problema da ubiquidade da escola se revela ainda mais dramático quando a questão familiar entra no centro do debate. É muito comum a ideia de que a escola deve assumir o papel da família - ao menos quando ela é ausente - e educar em um sentido que a escola não pode e não deve educar, sob o risco de descaracterizar todos os papéis existentes no seu interior: professores, direção e alunos. A escola deve, sim, indicar soluções, orientar os pais, ajudá-los a potencializar a educação de seus filhos, mas não deve e não pode resolver problemas conjugais e muito menos problemas de ordem afetiva entre pais e filhos. Longe de se
esquivar de problemas, a escola, ao elucidar qual é o seu papel e seus limites, ajuda a família e a sociedade a encarar de forma igualmente lúcida as suas responsabilidades diante do processo educacional de seus filhos e cidadãos, respectivamente. Definidos e esclarecidos os papéis distintos que a escola, a sociedade e a família devem ocupar, a escola se torna mais potencializada a se dedicar com maior objetividade e acertividade a seus domínios internos. Sabemos que, como centro do saber objetivado historicamente ao longo dos séculos, cabe à escola sobretudo transmitir esse mesmo saber, mas não de qualquer forma, isto é, não sem pedagogia e sem sentido social. Sobre o professor, recai, sobretudo, a monumental e central meta de transmitir o conhecimento dentro de uma relação pautada em profundas raízes democráticas, onde o aluno é considerado em sua integridade, seja como indivíduo concreto, seja como representante de uma força social que necessita apropriar-se do conhecimento. Essa apropriação, se desenvolvida em suas máximas potencialidades, pode gerar desenvolvimento para todos. Uma escola que viabiliza e objetiva o ensino - e que, em seu interior, está bem cercada de professores cumpridores dessa meta - realiza não apenas o ato da educação, mas também um ato de respeito ao aluno e à sociedade. A apropriação do conhecimento requer, por parte do aluno, disciplina, auto-
-controle e estabelecimento de limites que lhes são úteis para a vida e para um bom convívio com o próprio corpo docente. Assim, nesse tipo de ambiente, está claro que resta pouco espaço para a disseminação generalizada da violência e, em específico, do bulling entre os estudantes. Ao contrário, uma escola que não cumpre com suas funções primordiais acaba se auto descaracterizando e encontrando enormes dificuldades de impor limites no seu interior, caindo, por vezes, nas armadilhas já citadas da ubiquidade. Essa escola revela-se tão inviável, que ironicamente acaba se tornando o seu contrário: uma escola que pensa poder tudo não realiza nada. Assim, nesse ambiente marcado pela entropia, encontraremos toda sorte de problemas, principalmente o bulling generalizado. Isso é um sintoma de que há espaço de sobra para outras atividades que não fazem parte da autêntica educação. Podemos afirmar, portanto, que o bulling escolar é fruto de um problema mais amplo: a violência social. A escola é, assim, vítima de um problema global, para o qual ela não possui meios de dar solução definitiva. Porém, como instituição que se define como um centro privilegiado de transmissão do conhecimento historicamente acumulado pela humanidade, a escola pode clarear e estabelecer limites à sociedade e à família, atuando como mediadora para a superação dos processos geradores da violência. No mesmo sentido, ela pode dar uma forte resposta à violência geral e ao bulling estudantil, impondo limites ao corpo discente e criando um ambiente de elevada democracia, que objetivaria, principalmente, o direito inalienável do aluno de aprender dentro de uma conjuntura respeitosa, coerente, igualitária e responsável.
8 FOLHA DO EDUCADOR
2011
MEIO AMBIENTE - ARQUITETURA
Em busca da sustentabilidade
Arquitetura sustentável só existe integrada com demandas sociais Luís Paulo Domingues
A
arquiteta Maria Teresa Pinho Meca conversou com a Folha do Educador sobre sustentabilidade. “-O senso comum acabou identificando a sustentabilidade com a reciclagem, pois a reciclagem é uma atividade em evidência - também por causa dos catadores de papelão, latinhas e outros materiais”, diz Maria Teresa. “-A reciclagem, porém, é apenas um dos aspectos da sustentabilidade”, garante ela. “-No caso da arquitetura, refletir sobre as necessidades do projeto junto ao cliente, reduzir as demandas de material e reaproveitar elementos já existentes significa, geralmente, muito mais benefícios ao meio ambiente e ao bolso do cliente”, sugere a arquiteta. Segundo Maria Teresa, Projetos ambientalmente sustentáveis sempre privilegiam a distribuição natural da luz e a amenização de temperaturas extremas. a sustentabilidade não pode ser o empreendimento irá enfrentar “-Se você optar, por “-É comum que o cliente O que o cliente quer e o que alcançada se não forem vislumo problema da violência. E todos exemplo, por um piso que vem peça para incluir no projeto ele realmente precisa?”, explica brados a sociedade e o espaço em os esforços poderão ser prejudi- da demolição de outra edifica- diversos itens que ele talvez não Maria Teresa. que o projeto é desenvolvido. “-É cados”, exemplifica a profissio- ção, deve-se ficar atento para al- utilize quando a casa estiver preciso ter uma visão ampla dos nal. guns pontos”, explica a arquiteta. pronta”, conta a arquiteta. “-Se O papel do poder público desejos e das carências de uma “-Será preciso cortar o piso para os filhos, por exemplo, estão na comunidade para se desenvolver Maria Teresa pontua que Sustentabilidade é caute- adequar ao projeto, por exem- idade de entrar na faculdade e a sustentabilidade, sempre tendo losa plo? Se a resposta for sim, have- morar sozinhos, o cliente pode geralmente a boa vontade para em vista o conceito da redução rá gasto de energia e a sobra do ter um gasto desnecessário com projetos sustentáveis vem da de materiais e da economia de Maria Teresa explica que material vai acabar na caçamba, espaços que logo ficarão ociosos”, iniciativa privada, mas é o poder energia”, define. a sustentabilidade consiste na re- causando os mesmos problemas explica. “-Se construísse uma público quem deve dar o exemplo As questões da sustentadução de danos e no menor im- que o lixo convencional causaria. casa menor, com menos itens, ele e adequar as leis à realidade, bilidade esbarram muitas vezes pacto possível ao meio ambiente. De onde virá esse piso? Se ele poderia poupar essas despesas e para que a sustentabilidade seja nos problemas sociais de um país “-Um iglu ou uma oca vier de muito longe, a gasolina investir de diversas outras formas incentivada. grande e jovem como o Brasil. podem ser ecologicamente cor- que será gasta para transportá-lo, que também estariam ligadas à “-Você pode construir retos, pois se forem deixados ao o preço do frete e outros fato- sua qualidade de vida, como sua 1)Aproveitamento do lixo um hotel modelo em sustentatempo acabarão se reintegrando res acabarão descaracterizando a aposentadoria, fazer uma viajem 2)Compostagem (galhos e folhas bilidade, dar todas as condições podem virar adubo para jardins ao meio ambiente”, diz Maria sustentabilidade da obra. Nesse , etc...” de trabalho para que os funcioTeresa. “-Mas nas construções caso, um piso novo será mais in- Ainda segundo a e praça, ou ser fornecido para nários se sintam felizes naquele convencionais do mundo mo- dicado”, completa. profissional, esse tratamento, pequenos agricultores) ambiente (pois o bem estar dos derno não há como zerar o imque muitas vezes entra em 3)Políticas de incentivo (como funcionários e dos clientes é oupacto da atividade humana. De- Desejo e necessidade choque com o desejo imediato abater o IPTU de quem utiliza tro ponto importante na sustenvemos, portanto, tentar reduzir do cliente, é essencial para que a água de chuva, por exemplo) tabilidade), mas se o hotel estiver ao máximo os danos ambien- Maria Teresa argumenta questão da sustentabilidade seja 4)Disseminar o costume de se em uma área de altos índices de construir calçadas com grama tais.” que um aconselhamento sincero considerada. criminalidade, como na cidade E esse processo de redu- ao cliente é o ponto de partida “-É preciso colocar frente para absorver a água e diminuir do Rio de Janeiro, por exemplo, ção de danos deve ser cauteloso. da arquitetura sustentável. a frente desejo e necessidade. o calor.
Todo impacto social é ambiental Outro ponto importante ressaltado por Maria Teresa é o social. “-Imagine que uma determinada prefeitura em uma pequena cidade do interior de São Paulo barrou a vinda de uma fábrica, pois a cidade teria que se adaptar para receber uma obra daquele tamanho”, conta Maria Teresa. “-Eles teriam que construir casas para os trabalhadores da obra, que viriam de fora, refeitórios e outros equipamentos que não teriam serventia quando a obra terminasse”, explica. “-A fábrica operaria com quase tudo automatizado, necessitando de poucos empregados”, salienta. “-Qual seria o custo social e as consequências ambientais de uma obra dessas em uma cidade pequena, se não geraria empregos fixos? Nesse caso, é melhor vetar”, declara a arquiteta. Maria Teresa Pinho Meca fala sobre arquitetura sustentável.
2011 FOLHA DO EDUCADOR 9
ARTIGO - HISTÓRIA
História e transformação
A consciência crítica da História permite um inestimável potencial transformador da sociedade Luís Paulo Domingues
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odo professor tem a missão de despertar o máximo de consciência histórica e crítica no espírito de seus alunos, como condição primeira para que a sociedade se transforme. Se todos tiverem consciência histórica, compreenderão as terríveis contradições que escoram nossa sociedade e entenderão que essas contradições podem e devem ser superadas. Feito isso, não correremos o perigo de ver muitos tiranos se instalando no poder, pois as ideologias de ódio e os sistemas de governo que privilegiam alguns barões em detrimento do sofrimento da grande maioria não se sustentarão. Certo dia, eu estava falando sobre a revolução russa e uma aluna me perguntou o seguinte, com certa indignação: “-Ah, então você é socialista?” Tentei fazê-la perceber que, naquele momento, não importava qual ideologia norteava minhas crenças, pois debatíamos fatos histórico aceitos por toda a comunidade científica e até pelos pensadores do capitalismo. E que prender-se a um repertório que não permite enxergar os avanços reconhecidos que o socialismo implementou na União Soviética em determinado momento é também não se permitir uma compreensão lúcida e crítica da dinâmica histórica de todo o século XX. O pressuposto de que a classe empresarial não concorda com as ideias marxistas não impede que os que pertencem a essa classe compreendam historicamente os benefícios e as contradições do socialismo na URSS - e que até usem esse conhecimento para atingir seus objetivos. Do mesmo modo, um pai católico pode e deve levar seu filho à igreja tranquilamente para rezarem juntos, mas deve saber que a escola é o local da transmissão do conhecimento científico, artísti-
Cenas finais de Allende: interpretar corretamente a História permite a libertação das versões distorcidas dos vitoriosos. co e filosófico que a humanidade acumulou ao longo de milênios. E que, por isso mesmo, não é adequado tentar adaptar dogmas religiosos aos conceitos da ciência, das artes e da filosofia. Não precisamos da religião para transformar a sociedade. Possuir uma consciência histórica crítica e reflexiva já é o bastante para que o mundo se transforme e evolua, pois chegaremos à conclusão óbvia de que o modo como organizamos esta sociedade e vivemos nela é contraditório, impreciso e insuficiente para atender às necessidades justas dos seres humanos. Penso que o professor também deve esclarecer que o homem
não é o lobo do homem, ou pelo menos não deveria ser. A ideia de que o homem é naturalmente um ser egoísta e um predador social tornou-se a justificativa mais rasa para a exploração. A humanidade atingiu um desenvolvimento científico e tecnológico espetacular. É risível e trágico, portanto, que a totalidade dos seres humanos não tenha um padrão de conforto aceitável para viver, pois nunca tivemos tantas condições para construir essa realidade. Há tecnologia disponível para a erradicação da fome, do analfabetismo, do desemprego e da destruição ambiental no mundo todo. Mas para que isso aconte-
ça, teremos que mudar nossos valores. Quando e se o sopro da realidade nos atingir, saberemos que viver uma vida realmente sofisticada não é andar cercado de puxa-sacos, em meio a jatinhos e iates, com protótipos de mulheres perfeitas nos braços. A verdadeira sofisticação está em enxergar lucidamente o mundo que nos cerca e compreender a beleza complexa que existe na natureza e na sociedade das quais fazemos parte. Interagir com elas positivamente é o grande desafio do homem. Por fim, a consciência reflexiva da história e da sociedade nos permitirá o privilégio de encará-
-las sem paixões rasgadas e defesas agressivas de teorias. Os que costumam agir assim certamente o fazem como um instrumento de defesa. Porque no frigir dos ovos, lá no fundo, não têm certeza sobre suas convicções, não têm argumentos para sustentar seus pontos de vista, e temem constatar que não acreditam realmente no que dizem crer.
Luís Paulo é professor de Atualidades do D’Incao Instituto de Ensino.
Salvador Allende Gossens (Valparaíso, 26 de junho de 1908 — Santiago do Chile, 11 de setembro de 1973) foi um médico e político marxista chileno. Fundador do Partido Socialista, governou seu pais de 1970 a 1973, quando foi deposto por um golpe de estado liderado por seu chefe das Forças Armadas, Augusto Pinochet. Allende foi o primeiro presidente de república e o primeiro chefe de estado socialista marxista eleito democraticamente na América Latina. Seus pilares ideológicos foram o socialismo, o marxismo e a maçonaria. A partir destas convicções, foi muito respeitoso com todas as ideias políticas democráticas e com todas as confissões religiosas. Allende foi um revolucionário atípico: acreditava na via eleitoral da democracia representativa, e considerava ser possível instaurar o socialismo dentro do sistema político então vigente em seu país.
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ARTIGO - INDÚSTRIA CULTURAL / POLÍTICA
Tiririca, Calypso... falar o que, Darwin?
Parece que as atrações que seduzem o povo brasileiro estão na direção inversa do processo evolutivo Paulo Neves
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coisa esta feia. Aliás, muito feia. O nível está baixo, muito baixo. O que me deixa bravo é ouvir: “-Paulo, no passado também havia muita porcaria...”, ou “a decadência está aí...” Nada disso encobre, e muito menos indulta, o fato de que o nível geral das coisas baixou tremendamente na década de 90, e aos 11 anos de vida do século XXI, somos obrigados a ver que a máscara de carnaval mais vendida deste ano foi a do deputado-palhaço (os palhaços não merecem isso!): TIRIRICA. Música popular, publicidade de televisão, jornais, revistas tomam de assalto antigos redutos de sanidade e refinamento. Pergunto daqui para o mundo (quanta pretensão!!!!): que novidade nossa música nos deu ultimamente? Quanto tempo vai durar Maria Gadu? Quanto tempo vai durar Fiuk? Quantos “garotos propaganda” das Casas Bahia seremos ainda obrigados a aturar, vendendo tudo quanto é produto da loja? Já notaram os bancos e suas promoções, com os juros lá em cima e...tome pancada! E não poderia me esquecer: a venda de jóias na madrugada é algo avassalador, bem como o Shoptime. Meu Deus...socorro! E quando chega o carnaval, lá vem protótipos de Sheila Carvalho ou Carla Perez. E tome esteatopígica, isto é, quem tem bunda gorda. O sucesso das esteatopígicas entra em todos os canais e todas as câmeras de televisão, fotógrafos e revistas mostram o tamanho, o volume, o diâmetro, a marca.
A Playboy de fevereiro focaliza o maior e melhor bumbum do Brasil - desculpem minha total ignorância em esteatopigia, mas nunca tinha ouvido falar da Dany Giehl, o bumbum mais bonito do Brasil. Aí esta a prova mais contundente da deterioração de nossa cultura popular. Começo a pensar na Gretchen... estou até perdoando!!!! Tiririca, Ana Maria Braga, José Sarney, Márcia Goldsmith, Gugu, Eduardo Costa, Raul Gil, Ratinho, Calypso, Calcinha Preta, Wando... convenhamos, é muita porcaria para uma geração só. João Gordo (faz tempo que não o vejo) falou em determinado momento, que Tiririca fazia um humor inglês. O que é isso? Tudo bem, vindo do João Gordo vamos aceitar, mas um país que teve Piolim (extraordinário), um Carequinha (genial), um Arrelia, só pode gerar e consagrar um pateta (eleito deputado pelo povo brasileiro) chamado Tiririca, num momento de extrema penúria cultural. Ao contrário do que Darwin disse, involuímos feio! Acredito que o grande cientista não esperava por esta... E não adianta despejar a culpa na pasmaceira reinante do início do século (“-Afinal, só foram 11 anos, ainda!”). Isso é varrer a sujeira pra debaixo do tapete ou enfiar a cabeça na areia. Inícios de séculos passados nos legaram arte, beleza, pensamento, filosofia, música... percam um minuto do tempo do programa da Sonia Abraão e vejam o que aconteceu no início do século XVIII, XIX, ou mesmo no século XX. Acompanhem
a poesia da França no início do século ou Zezé Gonzaga no Brasil. Simples! Tudo está nivelado por baixo. Cultura e educação não dá mais para comentar. O mundo vive um acelerado processo de
idiotização e a curto prazo não há saída. Falar o que dos zumbis do século XXI? Falar o que do Jim Carrey, Beavis and ButtHead, Debi e Lóide... meus amigos, estamos vivendo um momento de baixo nível em todas as áreas:
cinema, televisão, teatro, música, imprensa e, sobretudo, no ventre disso tudo: a educação! Termino dizendo que o Darwin não esperava por essa. Mas talvez eu seja mais um DUMB nessa selva...fazer o quê?
Palhaçada de primeiro mundo O prefeito de Reikjavik, capital da Islândia, também é um palhaço profissional. Sua plataforma de governo durante a campanha era dar toalhas de graça para as pessoas que frequentam as piscinas públicas - uma inutilidade, num país com um dos mais altos IDH’s do mundo e onde certamente todos têm sua própria toalha. Mesmo assim, venceu com folga, pois os habitantes estavam “tiririca” com os políticos tradicionais do país, que deixaram o caos financeiro se abater sobre os bancos da Islândia. Na campanha, o prefeito palhaço dizia claramente que queria ser prefeito porque a profissão de palhaço era muito instável e ele precisava de um rendimento fixo. Quem quiser conferir, leia a notícia no site do colégio D’Incao. www.dincao.com.br/noticias/2010/09/14/palhaco-municipal
Jón Gnarr, prefeito de Reikjavik e palhaço profissional: toalhas para o povo.
2011 FOLHA DO EDUCADOR 11
ARTIGO - FILOSOFIA / TEORIA DA EVOLUÇÃO
Por que é preciso existir Deus para a vida ter sentido?
O paradoxo de um mundo sem referências e sentidos conduzido pela temática religiosa Luís Paulo Domingues
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oda vez que um professor de biologia explica a teoria da evolução, esbarra na problemática da existência ou não de Deus. Uma esmagadora maioria dos seres humanos aceitou o pressuposto de que a teoria da evolução e a existência de Deus são eventos completamente antagônicos. Ou existe um, ou existe outro. Mas se Deus criou o macaco, o ornitorrinco, o uirapuru e o vírus ebola, por que não criaria o processo evolutivo, que é algo muito mais sofisticado e digno de Sua inteligência? Acreditar em Deus é algo que está tão presente na vida das pessoas, que o ateísmo é ainda tratado como uma anomalia psicológica ou moral. Ser ateu, portanto, seria o mesmo que possuir um defeito na personalidade, e costuma ser visto como algo demoníaco - mesmo que os ateus não acreditem na existência do capeta.
Eu não sei se Deus existe. Suponho que possa existir. Até torço para que exista, pelo menos em sua versão de Pai piedoso, que traz alívio para os infortúnios do mundo. Mas se Ele existe, creio que se trata de uma forma de existência tão complexa (ou distinta deste aglomerado de carbonos que somos nós), que escapará eternamente de uma compreensão possível pelo cérebro humano. Por que será que em uma sociedade tão problemática, interesseira, corrupta e inescrupulosa quanto a nossa, insiste-se, mesmo entre as classes dirigentes, na ideia de Deus como algo inexorável e imprescindível para que a vida tenha algum sentido? Não é uma contradição? Vivemos aos tapas em meio às atividades mais simples do quotidiano, locupletamo-nos de todo o tipo de exploração e desfaçatez - mesmo quando o que está em questão é o amor, ou coisa parecida -, e depois
"Não tento imaginar um Deus pessoal; basta admirar assombrado a estrutura do mundo, pelo menos na proporção em que ela se permite apreciar por nossos sentidos inadequados." Albert Einstein Para nós, humanos, qual é a vantagem de Deus existir? O que a crença em Deus pode melhorar em nossas vidas? Ter mais esperanças, talvez - partindo do princípio de que o poder dos céus sempre poderá intervir em nosso favor? Se tem um ponto onde Nietzsche e os marxistas se encontram é na denúncia do um caráter perverso e escravizador das religiões. Os desígnios de Deus já foram desculpa para inúmeras barbaridades cometidas pelo homem. Instaurar um ambiente de medo e de insegurança para tirar proveito dele foi a estratégia aplicada na Idade Média e também pelo governo Bush. O Afeganistão e o Iraque foram invadidos e ocupados pelos Estados Unidos na esteira de uma ameaça externa e da instauração de um clima de terror entre a opinião pública americana.
apelamos para que Deus interceda por nós. Se eu fosse Ele, não intercederia. Se Deus existir, deve estar cheio de ver seu nome usado para os mais diferentes fins, geralmente relacionados à opressão, ao lucro e às mais perversas estratégias de sedução. Se Deus for mesmo um “cara” legal, não deve concordar nem com a Al Qaeda, nem com o puritanismo falso dos americanos e nem com um pastor que eu ouvi estes dias, que pediu para todos orarem para que uma fulana de tal, sua ovelha, fosse aprovada no vestibular. Ouvi isso da rua e não me contive. Fui perguntar para a assessora do pastor se ela não achava que Deus faria uma baita sacanagem colocando a fulana na lista de aprovados e tirando alguém que ralou pra caramba (estudando) para conseguir a vaga.
Charles Darwin torna-se Deus em exposição fotográfica na França: tabu ideológico.
Um descrente profundamente religioso O menino descansava de bruços na grama, o queixo apoiado nas mãos. De repente, sentiu-se invadido por uma percepção exacerbada das raízes e dos caules entrelaçados, uma floresta em microcosmo, um mundo transfigurado de formigas e besouros e até — embora na época ele não soubesse dos detalhes — de bactérias aos bilhões no solo, sustentando silenciosa e invisivelmente a economia do micromundo. De repente, a microfloresta de grama pareceu inflar e se unir ao universo, e à mente extasiada do garoto que a contemplava. Ele interpretou a experiência em termos religiosos e ela acabou levando-o ao sacerdócio. Foi ordenado padre anglicano e tornou-se capelão de minha esco la, um professor de quem eu gostava. É graças a religiosos liberais e de- centes como ele que ninguém jamais pôde dizer que tive a religião enfiada goela abaixo. Em outro tempo e lugar, aquele menino podia ter estado sob as estrelas, fascinado pela Órion, pela Cassiopéia e pela Ursa Maior, com lágrimas nos olhos pela música inaudível da Via Lác- tea, intoxicado pelo perfume noturno dos jasmins e das solan- dras num jardim africano. Não é fácil responder por que motivo a mesma emoção levou meu capelão para uma direção e a mim para outra. A reação como que mística à natureza e ao universo é comum entre cientistas e racionalistas. Ela não tem nenhuma conexão com a fé sobrenatural. Em sua meninice, pelo menos, presumo que meu capelão não conhecesse (como eu também não conhecia) as linhas que encerram A origem das espécies o fa-moso trecho da “margem emaranhada”, “com pássaros cantando nos arbustos, com vários insetos revoando e com vermes raste- jando pela terra úmida”.** Se ele as conhecesse, certamente teria se identificado com elas e, em vez de ao sacerdócio, teria sido levado na direção da visão de Darwin de que tudo foi “criado por leis que atuam à nossa volta”. Do livro “Deus, um delírio”, de Richard Dawkins.
12 FOLHA DO EDUCADOR
2011
ESPECIAL - CULTURA
Clínica Geral: babel cultural na Bauru dos anos 80
Na década de 80, Bauru teve uma casa multifuncional para produção e consumo de cultura Luis Paulo Domingues
Q
uem tem mais de trinta anos deve se lembrar do mix de loja, confecção, bar e gravadora de fitas K7’s raras que era a Clínica Geral, lá na rua Virgilio Malta. Capitaneada pelo arquiteto Cássio d’Abril, agora com 47 anos, a Clínica foi o celeiro das festas alternativas, das exposições de arte e da agitação cultural de uma geração que, ainda sem internet, já vivia ligada a tudo o que era patrimônio cultural e estilístico que fazia sucesso nas cabeças pensantes de outras épocas.
Diário
de
(Cássio D’Abril)
Old England “-Mas a parte sonora da Clínica tomou forma mesmo com a minha estada na Inglaterra, em 1985. Lá eu fiz contato com muita gente, assisti a muitos shows e conheci uma pancada de bandas que eu não conhecia. Trouxe tudo o que pude trazer para cá e aí montei a loja”.
Aberta ao público
o jeito dele”, conta Cássio. “-Então, ao invés de só gravar uma fita e levá-la para casa, os clientes – principalmente quem vinha de um tempo pelo exterior – começaram a levar e deixar coisas (discos, roupas e tudo o que desse na telha) para serem comercializadas lá. Era um verdadeiro provedor da internet, bem antes de ela chegar no Brasil”, define.
Mais do que música e “-Se eu não me engano, roupa
a Clínica começou a funcionar, com sede e aberta para o público, em 87. Mas na verdade ela já existia, pois a Clínica era, é e sempre será um conceito. Um
“-É mesmo. A gente não focou só a música e a roupa alternativo-independente. Eu tive vários estagiários de arquitetura e
Bordo
-1979 a 1984: curso de arquitetura na UNB, em Brasília. -1985: estágio na Inglaterra. -1987 a 1992: Clínica Geral. -a partir de 1993: trabalho como arquiteto. -últimos anos: estufa e paisagismo com bromélias e orquídeas. “-Bom, na verdade a Clínica – ou melhor, a concepção da Clínica – começou lá na UNB. Desde aquela época eu já trazia fitas e discos (LP’s) importados que eu conseguia com o pessoal de lá e mostrava aqui em Bauru, nas férias, para os amigos”, diz Cássio D’Abril, o proprietário e idealizador do estabelecimento que atiçou corações, mentes, violência e paixão nas tardes e noites do ainda existente underground bauruense. “-Dessa época da UNB, eu cheguei a trazer uma fita com o Aborto Elétrico (primeira banda do Renato Russo) tocando numa festa no Campus. Eu mesmo gravei da mesa de som do show. Se já era raridade pura, agora nem se fala”, completa. “-Além disso, para fazer uma grana, eu era revendedor da Shot (grife de nossa terrinha) lá em Brasília. Daí eu comecei a estampar as camisetas e vender. Naquela época não tinha camisa de banda. Se você aparecia com uma camisa do Talking Heads, era um alvoroço. Eu comecei a fazer camisetas do Cure, de um monte de outras bandas, de Cannabis e de outros elementos que tinham apelo na época, mas que o público ainda não tinha acesso. E vendia tudo. Então, essa primeira dupla (música e roupa) foi o embrião de tudo o que veio a ser a Clínica Geral.”
Broken Social Scene : coqueluxe alternativa da cena atual. conceito musical, estilístico, de comportamento, de festas e de atitude”, revela Cássio. “-Depois de muito procurar, eu achei o imóvel perfeito, com a cara que eu queria, que é a sede que todo mundo ia, lá na Virgílio Malta 13-78. Eu queria um lugar como aquele, pois era uma loja e uma casa para morar e trabalhar. Coloquei aquele vidro (é uma vitrine) na frente para expor algumas roupas, LP’s e revistas importadas e foi só convocar o pessoal. Logo aquele lance, aquele apelo de múltiplas facetas, começou a semear o pessoal antenado da cidade”.
Provedor da Internet “-Rapidamente, o lugar transformou-se em uma comunidade. O pessoal Indie, alternativo, underground(sei lá!), queria saber as novidades do som e aproveitava para comprar ou encomendar uma camiseta exclusiva. Na clínica não tinha uma camiseta igual a outra. A maioria das pessoas preferia encomendar a camiseta ou a estampa na calça ou no Blazer e definir o que viria escrito, com qual imagem, etc... E tudo sem computador, usávamos catálogo de fontes!! Tínhamos imagens prontas, que o pessoal podia escolher, ou a gente desenhava o que o cliente queria, com os dizeres, a fonte e
Futuro da Clínica A prova de que é possível uma volta da Clínica Geral estava na sala da frente da casa do Cássio, quando esta reportagem foi feita. Todos os móveis da loja estavam guardados em um cômodo que faz frente para a rua e tem uma vitrine igual à da casa da Virgilio Malta. “-Eu parei com a Clínica em 1992 porque fui trabalhar com arquitetura e urbanismo público, casas populares, em Prefeituras e etc. E também porque o público já estava mudando. Só que eu acho, sim, viável. Eu gostaria de fazer tudo de novo. E agora com computador! Ia sair um monte de coisa boa, assim como saiu antes. Só que não dá para ser mais naquele imóvel, porque hoje funciona uma república da Unesp lá.”
2-ANIMAL COLECTIVE
Bromélias
18) PAJO
Hoje, o idealizador da Clínica trabalha com paisagismo e cultivo de bromélias. Cássio tem um viveiro com 20.000 vasos e comercializa sua produção no Seasa. Faz projetos paisagísticos para residências e outras construções e promove a preservação ambiental através do reflorestamento. “-Desde 1998, eu já recoloquei 300.000 plantas na região. Os caras arrancam, eu vou lá e planto de volta”, explica.
19) SUNSET RUBDOWN
Serviços: arquitetura, decoração, design (sem computador!!), logomarca, comunicação visual, silk, adesivos, convites, moda, gravação de LP’s importados, revistas Música para ouvir importadas, promoção de Para provar que o espíeventos, cerveja.
desenho industrial da Unesp e então eu pegava projetos para fazer. A gente desenhava, por exemplo, o vestuário dos funcionários do Centrinho (quem fazia mesmo era o Marcinho, estagiário). Fizemos exposições de quadros, promovemos 8 vernissages. A Jú Machado, super conhecida com sua galeria hoje, começou interagindo lá. Pegávamos também os convites das boates de Bauru para desenhar e imprimir. Fazíamos festas animadíssimas; chegamos a receber o cônsul da Malásia, com vários convidados chiques e frufus da cidade, mas que, naquele dia, queriam ir lá. Era uma gama grande de atividades. Tinha até o Evil, um cara que, além de pintar, manipulava marionetes. Hoje ele está em uma companhia conhecidíssima, em Curitiba”.
1-COCOROSIE
rito e a concepção da Clínica Geral está mais vivo do que nunca, pedimos para o Cássio fazer uma lista dos melhores sons (aqueles imperdíveis) de hoje. “-É, eu poderia ficar aqui falando Smiths, The Cure, Sisters of Mercy, Siouxsie and the Banshees, Echo... que eram, entre outras muitas, as bandas que bombavam na época em que a Clínica estava aberta. Mas eu prefiro montar uma lista só com bandas que lançaram discos recentemente.” Obs: D’Abril fez questão de mostrar banda por banda em seu computador. Esta primeira lista de 20 bandas diz respeito ao mundo inteiro. -FM’s para ouvir bons sons: Auckland University 95BFM95; WOXY de Cincinatti; PSDR FM89,7 da Rhode Island University.
3-AKROM FAMILY 4-BROKEN SOCIAL SCENE 5-DECEMBERICES 6-AU REVOIR SIMONE 7-MUM 8-ARQUITECTURE IN HELSINKY 9-BEIRUTE 10- SMOG 11-BLACK HEART PROCESSION 12-PAVEMENT 13- FOR CARNATION 14) MAPS 15) MENOMENA 16) MIRAH 17) PIN BACK
20) SUFJAN STIEVENS
Como, na visão do idealizador da Clínica Geral, o Reino Unido perdeu o espaço de grande celeiro cultural de bandas alternativas, vamos a uma lista só de bandas da Nova Zelândia, o novo celeiro: Phoenix Fundation Over the Atlantic Munt Chicks SJD Tall Dwarfs Cochercot Honeys Haunted Love Lian Finn Fat Freddy’s Drop Brunettes Fangs Shocking Pinks
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DESIGN - MEIO AMBIENTE
Design sustentável e marketing de guerrilha Designer de Bauru-SP vence premiação internacional de design sustentável Luís Paulo Domingues
O
site “Nosso Impacto” é dirigido ao público que trabalha e pensa a sustentabilidade. Desenvolvido como projeto de conclusão de curso por dois estudantes de design, o “Nosso Impacto” foi um dos premiados, em 2010, no concurso “Talentos do Design”. O concurso é promovido pelo banco Santander, e avalia projetos em design sustentável do mundo todo. O site “Nosso Impacto” ficou entre os cinco melhores do mundo na última edição. O designer gráfico Marcelo Rino é um dos autores do projeto (junto com Diego Lima) e mantém o site atualizado com notícias sobre eventos e ações sobre sustentabilidade que ocorrem no mundo todo. “-Como se trata de um site desenvolvido por designers, dentro de um curso de design, é claro que nosso foco é sempre direcionado para essa área”, explica Marcelo. “-Mas procuramos abordar a sustentabilidade em toda sua complexidade”, completa.
Marketing de Guerrilha
Outra atividade desenvolvida pelo “Nosso Impacto” é o
Design Sustentável
O designer gráfico Marcelo Rino fala sobre sustentabilidade para a Folha do Educador. marketing de guerrilha. “-O conceito de marketing de guerrilha vem da propaganda tradicional”, define Rino. “-Pode ser definido como uma ação de impacto, que ocorre de surpresa e atinge um público que não está esperando que a mensagem da propaganda aconteça em um determinado lugar. Por isso, o marketing de guerrilha costuma ficar marcado na mente do público”, diz o designer. Como exemplo, Rino falou sobre uma ação do Gre-
enpeace, quando os ativistas colocaram um imenso bloco de gelo dentro das águas do rio Sena, para alertar as pessoas sobre os problemas do aquecimento global. “-O marketing de guerrilha é perfeito para temas como preservação e sustentabilidade, pois são temas que necessitam do impacto visual e do inusitado”, explica Rino. “-É muito mais eficiente do que uma mensagem textual, pois convence mais e di-
reciona a atenção do público alvo de maneira irresistível”, salienta. Marcelo frisa que o “Nosso Impacto” não tem finalidade comercial, pois a sustentabilidade é um tema que atinge mais o público se não tiver intenção de lucro. “-Diante da destruição de nosso planeta, por meio da degradação dos recursos naturais, do consumismo exagerado, da poluição do meio ambiente e do uso
desregrado dos recursos naturais, o que devemos fazer? Até quando o planeta vai suportar?”, diz Marcelo, citando um dos textos do site. “-Pensando nessas perguntas, o nosso trabalho é detectar o impacto na Natureza causado pelo ser humano, em determinada atividade, e assim demonstrar nossa visão sobre o assunto, por meio de um projeto de design e marketing de guerrilha”, completa.
Design Sem tradução em português, “design” possui o significado de projetar, desenvolver, criar. Sua aplicação geral é a de desenvolver soluções que possam atender determinada necessidade, mesmo quando o objetivo é inovar, quebrar paradigmas ou até mesmo provocar o mercado produtivo. Essas soluções trazem aperfeiçoamentos no que diz respeito à qualidade de vida e à competitividade. Podemos assim definir design como ferramenta de solução e evolução. Sustentável Essa palavra é proveniente do termo “Desenvolvimento Sustentável”, surgido pela primeira vez em 1987, no Relatório de Brundtland – também conhecido como Our Commom Future, esse documento foi apresentado à Comissão Mundial da ONU sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (UNCED). Etimologicamente, a palavra sustentável significa: at. sustento, as, ávi, átum, áre ‘sustentar, suportar, resistir, continuar, suster; defender, equilibrar, proteger; apoiar; firmar, manter, conservar, cuidar; auxiliar, vir em socorro; alimentar, manter; sofrer, suportar, resistir a; diferir, adiar… Design Sustentável É um conjunto de ferramentas, conceitos e estratégias que visam desenvolver soluções para a geração de uma sociedade voltada para a sustentabilidade. Assim, temos: Desenvolvimento sustentável como o desenvolvimento que “satisfaz às necessidades do presente, sem comprometer a capacidade de as gerações futuras satisfazerem suas próprias necessidades.” Devemos lembrar também que o conceito de desenvolvimento sustentável se alicerça especificamente em um tripé formado pela economia, sociedade e meio ambiente. Dessa forma, entende-se, sobretudo, que “sustentável” nada mais é que algo que possa ser durável. Podemos afirmar, portanto, que quando design e sustentabilidade se fundem, uma solução para determinada demanda imediata será projetada, sendo a melhoria e longevidade as características mais privilegiadas, ecoando nos âmbitos econômico, social e ambiental.
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2011
CINEMA - ARQUITETURA DA DESTRUIÇÃO
O Nazismo como um projeto artístico Documentário fundamental enxerga o Nazismo como movimento estético Luís Paulo Domingues
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os primeiros longos minutos de “Arquitetura da Destruição”, imagens aéreas passeiam por uma paisagem rural no interior da Alemanha. Campos, bosques, pequenas aldeias e lagos são apresentados ao espectador como uma realidade presente (a única realidade) íntima e perpetuamente na vida do povo alemão. A narração de Bruno Ganz (que interpretou Hitler no definitivo “A Queda”) sugere que, para o cidadão comum, as aspirações triunfais do Füher e dos nazistas estavam extremamente longe de sua compreensão. Com essa introdução, o diretor Peter Cohen sentencia que a grande maioria dos alemães não tinha nem mesmo uma ideia da avalanche moral que os soterraria. Marcados eternamente pela tenebrosa mancha do Holocausto, o povo alemão fora conduzido à desgraça ética pela crença cega de uma nova elite, profundamente ressentida com a derrota e com a punição (segundo eles, desmerecida) oriundas da Primeira Guerra Mundial. Mas esse não é o ponto central do documentário, lançado em 1992 - resultado de uma garimpagem que durou dez anos à procura de imagens perdidas por toda a Europa. O que Cohen deseja provar com sua obra prima é que o nazismo, muito mais
Comício nazista em Nuremberg: presença de elementos teatrais e operísticos como estratégia de convencimento. que um movimento político, foi um movimento estético. Assim como acreditava Nietzsche em sua “Genealogia da Moral”, Hitler pensava que a humanidade só havia atingido plenamente suas potencialidades na antiguidade, mais
precisamente na Grécia helenística e em Roma. Depois disso, segundo Nietzsche e Hitler, o homem caíra em desgraça e confusão, a nobreza natural do espírito humano desaparecera e dera lugar a uma propensão para comportamentos e per-
Propaganda e solução final
sonalidades mundanas. Um conjunto de “morais escravas” (termo de Nietzsche) era agora visto como exemplo de conduta e esse empobrecimento da virtude humana teria atingido o seu ápice na auto piedade dos judeus, que usavam a ameaça
externa aos seus direitos e valores como um instrumento de convencimento e coerção para unir os próprios judeus em busca de seus “objetivos sombrios”.
O filme também enfoca o cinema como um dos instrumentos mais utilizados pelos nazistas. Diante da quase unânime condenação do fascismo alemão depois da guerra, ficou difícil para os críticos comentarem produções como “O Triunfo da Vontade” e “Olympia”, da cineasta oficial do Reich, Leni Riefensthal, principalmente porque suas inovações técnicas em relação ao cinema da época eram belas e surpreendentes. Goebels, o Ministro da Propaganda, encarregava-se pessoalmente das produções cinematográficas oficiais, que iam de filmes sobre o combate a pragas domésticas, passavam pelos programas de limpeza e comportamento nas fábricas e chegavam à odiosa inter-relação entre os judeus e os germes. Nessa altura do filme, Cohen mostra como os alemães desenvolveram os gases para o extermínio de judeus a partir do programa de extermínio de ratos, traças e baratas.
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CINEMA - ARQUITETURA DA DESTRUIÇÃO A purificação helenística contra o barbarismo
O que “Arquitetura da Destruição” quer provar é que o nazismo propôs um novo renascimento da cultura clássica-helenística naquela sociedade técnica e intelectualmente avançada - porém destruída. Muitos dos valores das classes dominantes de Roma e Grécia foram trazidos à tona pelo nazismo, que incorporou seus símbolos, seus pressupostos artísticos, os signos de sua arquitetura e até seus gestos (“Heil Hitler!) ao projeto de uma sociedade que se pretendia asséptica, purificada e salva das confusões multiculturais espúrias do restante da humanidade. Para tanto, era preciso que os alemães enxergassem o povo como um imenso organismo único, onde seriam necessárias algumas intervenções cirúrgicas precisas, que aniquilariam todos os males que atingiam aquela sociedade. Isso evoca e explica os imensos comícios do partido, com suas parafernálias visuais e toda a encenação envolvendo a massa como ator fundamental. Cohen insiste em um ponto: as pretensões artísticas de Hitler o colocaram em contato com a determinação ruidosa e romântica das óperas de Wagner, que concedia ao povo - e ao seu passado germânico rural e bucólico - uma sacralidade limpa, pura, simples, ingênua e pragmática. Para que o povo vivesse plenamente esse idílio humanizador, Hitler empreendeu programas de comportamento, etiqueta e limpeza nas fábricas, que eram o verdadeiro núcleo produtor da Alemanha. Sua ideia era eliminar o perigo e mesmo a existência das relações de produção que os marxistas apontavam como a fonte dos males do mundo, elevando o operário e o camponês alemão à condição de apreciador das manifestações artísticas burguesas e elitistas. Hitler imaginava que o bem estar social aliado à educação (precisa e coordenada pelos interesses do partido) iriam apagar qualquer ranço e revolta por parte das bases populacionais. O partido tornou comum, por exemplo, a apresentação de música erudita para os operários nas fábricas. “Arquitetura da Destruição” é uma obra profunda sobre os fatores que moveram as mentes dos nazistas e provocaram o maior acontecimento do século XX. Voltando ao seu tema chave, verificamos que ele continua muito plausível: o nazismo era um movimento estético, muito mais do que político. Era um projeto de embelezamento do
Hitler inspeciona tropas com destino à guerra: soldados e médicos para "sanear", "limpar" e "embelezar" o mundo. mundo (segundo um determinado conceito de beleza), que se propunha construir um paraíso de estabilidade, de erudição e de tranquilidade,
destinado a uma parcela da humanidade que seria merecedora desse paraíso. Para atingir seus objetivos, os nazistas eliminaram as “pragas” que afli-
giriam sua sociedade vindoura e cortaram as partes podres do “grande organismo” que representava o povo da Europa. Não se importaram, contudo,
com o fato de que as “pragas” e as partes podres do organismo eram, na verdade, milhões de seres humanos.
Arte degenerada
Outro tema presente em “Arquitetura da Destruição” é a purificação da produção artística. Associada aos interesses judaicos, a arte moderna foi banida dos espaços públicos e culturais na Alemanha. Na verdade, Hitler costumava realizar semanas de arte (ele mesmo era um dos maiores compradores de telas), quando mandava expor, em edifício anexo, coleções de artistas judeus modernistas para serem enxovalhadas por críticos nazistas, que as viam como retrato e valorização da doença mental e orgânica do mundo.
Tela de Oskar kokoschka: visão de um mundo doente.
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OPINIÃO - TECNOLOGIA & CIÊNCIA
Cultura do medo: celulares e câncer E Ulisses Andreis
m um livro de pouca repercussão no Brasil, Michael Crichton afirma, a certa altura, que a sociedade contemporânea vive um contínuo estado de medo (Estado de Medo, Editora Rocco). Medo das epidemias, do terrorismo, das catástrofes naturais (como os terremotos, os tsunamis e as erupções vulcânicas), das crises econômicas globais, da violência urbana, das mudanças climáticas. Todos os dias surgem mais motivos para termos medo. Numa passagem muito interes-
nhas de dados são despejadas por todos os meios de comunicação, servindo para dar confiabilidade à uma quantidade infindável de notícias importantes durante 15 minutos. É claro que a Estatística é uma ciência séria e útil, fundamental para inúmeras questões importantes, como definição de políticas públicas, avaliação do nível de aprendizado de uma população, veracidade de um depoimento e até distúrbios psicológicos. Contudo, mesmo sofisticados métodos estatísticos são capazes de dar respostas a todas as questões?
Espectro de ondas eletromagnéticas. sante, o autor corajosamente resolve combater as hipóteses de aquecimento global, citando o exemplo da evolução de temperatura de uma cidade americana. Se o intervalo considerado for entre 1931 e 2000, a temperatura diminui cerca de 0,3 oC. Entretanto, mudando para um Período entre 1900 e 2000, a temperatura media aumenta cerca de 0,5 oC. Logo, a temperatura média aumentou ou diminuiu? As duas interpretações surgem do mesmo conjunto de dados. Basta organizá-los de modo diferente e as conclusões mudam. Como é possível construir o conhecimento assim? Aqui ele combate algo muito importante para o dia a dia de uma sociedade bem informada: a própria informação. Além dos medos, somos movidos por estatísticas. Monta-
Celulares e câncer Um grupo de trabalho de 31 cientistas de 14 países reuniu-se (entre 24 e 31 de maio) na sede da Agência Internacional para Pesquisa sobre o Câncer (IARC, em inglês), em Lyon, França, para avaliar a extensa literatura disponível sobre o potencial de dano carcinogênico devido a exposição de campos eletromagnéticos de radiofreqüências. Foram consideradas as exposições de tipo ocupacional a radares e a microondas e exposições ambientais associadas a transmissões de sinais de rádio, televisão, telecomunicação sem fio e exposições associadas ao uso de telefones sem fio. No último dia 31 de maio, Kurt Straif, chefe do grupo de
trabalho, declara pela primeira vez a necessidade de pesquisar a relação entre o uso de aparelhos celulares e alguns tipos de câncer do sistema nervoso central (glioma, meningioma e neuroma) que podem afetar, principalmente, crianças e adultos jovens. Em uma tradução livre, a declaração diz o seguinte: “-Vocês precisam ver tudo isso num contexto completo do quadro de avaliação. Grupo 1 significa que está totalmente claro que determinado elemento causa câncer em humanos. Nós estamos dois passos abaixo, no Grupo 2B (possível), e até o momento não é possível afirmar de modo confiável que [o uso de celulares] causa câncer em humanos. Isto está baseado em estudo de câncer usando modelos epidemiológicos apenas como estudo de controle de caso. Olhamos para a totalidade das evidências destes estudos epidemiológicos e estes estudos sugerem que talvez haja trinta a quarenta por cento de aumento [de casos de câncer] naquelas pessoas altamente dependentes do uso intenso de tecnologia recente”. Em relação à categoria citada durante a declaração acima (grupo 2B, ver quadro), vale a pena esclarecer que, pela OMS, ela é aplicada a agentes para os quais existe evidência limitada de carcinogenidade em humanos e menos que evidência suficiente de carcinogenicidade em experimentos com animais, acompanhados de evidências de processos e outros dados relevantes que podem ser colocados neste grupo. Um agente pode ser colocado neste categoria unicamente nos casos de forte evidencia de processos e outros dados relevantes. O termo evidência limitada de carcinogenidade significa uma associação positiva observada entre exposição ao agente e o câncer para a qual uma interpretação causal é considerada crível pelo grupo de trabalho. Porém, existe chance de ocorrer confusões e desvios por fatores concorrentes difíceis de ser controlados.
O termo evidência suficiente de carcinogenidade deve ser utilizado quando existir uma reação causal entre o agente e a ocorrência de câncer em seres humanos. Isto é, foi determinado um relacionamento positivo entre exposição e o câncer em estudos nos quais as interferências ligadas a fatores concorrentes puderam ser controlados, com razoável confiança. Como se pode ver, a definição do grupo em que as ondas eletromagnéticas de muito baixa freqüência estão inseridas, a partir de agora, não é capaz de definir se existe ou não uma relação direta entre o usos de celulares e câncer. O que a OMS, de fato, pretende, é tirar a dúvida. Até o momento, a grande quantidade de estudos já realizados são estatísticos. Apesar de sua importância, constituem apenas uma etapa inicial da pesquisa científica. A relação causal deve ser superada pelo aprofundamento dos conceitos científicos que possam esclarecer como as ondas eletromagnéticas de quaisquer freqüências podem interagir com tecidos vivos. Muitas áreas de pesquisa pertencentes à física, à engenharia, à biologia e à medicina deverão ser mobilizadas para transformarem levantamentos estatísticos em conhecimento novo e mais preciso das leis da natureza. Até o momento, as pesquisas básicas estão no princípio. A polêmica gerada após a publicação envolve muito mais que conflito de interesse econômico. Envolve inclusive uma mudança da interpretação aceita da interação entre ondas eletromagnéticas de baixa freqüência(ver figura) e tecidos vivos. Até o momento, a explicação corrente é a de que a energia transmitida por estas ondas, ao interagir com tecidos vivos, seriam inocentemente convertidas em calor, não causando qualquer mudança na estrutura molecular. Ao mesmo tempo que a notícia apresenta um problema de saúde pública, os cientista, médicos e engenheiros atravessam um momento de crise, pois defensores do conhecimento estabelecido e aqueles que
pretendem revisá-lo organizam-se e se preparam para um intenso período de batalhas. Quando se observa como a OMS trata o assunto das ondas eletromagnéticas, percebe-se que as preocupações vão muito além do uso intenso dos celulares. Dizem respeito a questões incômodas - talvez, há mais de 40 anos. Qual o risco de morar próximo a linhas de transmissão de alta tensão? E próximo a transmissores de estações de rádio e TV? Do ponto de vista ocupacional, o que dizer de operadores de tráfego aéreo? E os pilotos de avião? E sobre os técnicos que trabalham na produção e na transmissão de imagem nas estações de rádio e TV? E todos os milhões de pessoas, assim como eu, que neste instante estão usando computadores, desde o início da manhã, e ainda o farão por várias horas até o final do expediente, quando poderão voltar para a casa e relaxar diante da TV, ouvir músicas em seu tocador de MP3, ou continuar usando seu computador pessoal para comunicar-se com seus amigos, ouvindo música e vendo TV num único aparelho? Para compreender melhor a o que diz Kurt Staif, é necessário entender como são classificados, pela Organização Mundial de Saúde (OMS), os agentes ambientais ou ocupacionais que estão associados a algum risco de causar câncer em humanos: Grupo 1: O agente é carcinogênico em seres humanos. Grupo 2A: O agente é provavelmente cancerígeno em seres humanos. Grupo 2B: O agente é possivelmente cancerígeno em seres humanos. Grupo 3: O agente não é classificado como cancerígeno em seres humanos. Grupo 4: O agente provavelmente não é cancerígeno em seres humanos. Fonte: OMS Saiba mais: www.dincao.com.br/ folhadoeducador Ulisses Andreis é Professor de Física do D’ Incao Instituto de Ensino