MARMORE NEGRO

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MÁRMORE NEGRO Marcelo Sousa

EDIÇÃO INDEPENDENTE

2016

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Mármore Negro Sousa, Marcelo. 1. Poesia Brasileira

Rio de Janeiro – RJ Edição Independente 2016 Edição e Projeto Gráfico: Katz, Arts & Crafts Diagramação: Tristán Nigro Revisão: Tristán Nigro

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À minha palmeira invencível que penteia os cabelos em plena tempestade. À torre branca de marfim que sobre o mundo mira, e espera, enquanto suas madeixas ardem como labaredas azuis. Ao cavaleiro de prata e sua musa feita de brumas, à formiga vermelha, ao corvo branco, ao bispo, ao mago, à rainha de copas, à gaivota, e à moça do girassol, que foi sorrindo, e não mais voltou. Sobretudo ao menino, um velho infante que de tanto desviar os olhos do espelho encontrou-se: perdido.

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[Dar ouvidos]

“Ao escutar o anjo, Matheus dá ouvidos não ao inteligível, mas ao ininteligível. Não escuta o que pode compreender, e sim aquilo em que pode crer – o concebível. Como consequência, ao escrever não transcreverá o escutado. Isso não lhe será possível. O sentido do sussurro do anjo é equívoco à razão. Só é inequívoca a presença do anjo: o sussurrar, a evidência de que existe alguém fazendo isso. De que fala o anjo é coisa que não se sabe nem se saberá. Mas, para verificar que não se sabe, é imperioso que o anjo esteja ali. O efeito dessa presença é o que se deixará sentir no papel. Infundindo a esse sussurro um sentido, Matheus se fará eco dele; traduzirá o impacto que esse encontro excepcional teve sobre seu coração. A sua será uma palavra inspirada na medida em que consiga atribuir um sentido ao que, de per si, não pode outorgá-lo a si próprio, e, no entanto o requer. Conceberá então o evangelista Matheus então a intenção do anjo, falará de seus propósitos, o que para nós vai parecer suficiente. O ouvir se converte, dessa forma, na instância decisiva. O ouvir, ou seja, o interpretar; o oferecer um valor ao inalcançável murmúrio da fala transcendente. Ao fazer eco à voz do anjo, o apóstolo não repete, e sim o traduz.” - Santiago Kovadloff, in ‘O Silêncio Primordial’. Como poeta, fico imaginando o quanto de tudo o que escrevo não seria resíduo de murmúrios exteriores, de criaturas fantásticas que me visitam, de atavismos, mágoas, desejos, e, sobretudo o eco de tantos poemas meus e de outros poetas, tantas epopeias, tragédias, romances, tantas imagens formadas em mim, mas talvez nem todas formadas por mim. Posso dizer que escrevo porque preciso, movimento quase orgânico, biológico, necessário, como o expandir e contrair dos pulmões, como sístole e diástole no coração, como o pulsar cosmogônico das estrelas, tudo em mim sendo mais antena captadora que transmissora; tudo sendo um vertiginoso criar (e destruir) que se debruça muitas vezes sobre coisas já escritas, talvez inacabadas, muitas equivocadas, outras pobres como deveriam ser, posto que eu mesmo fosse ainda cru, pobre de estilo. Não me acho melhor agora, porém mais calejado, mais sóbrio, mais atento ao canto por baixo dos versos, atacando estrofes que talvez já estivessem prontas, acabadas ainda que imperfeitas, quem sabe eleitas pelos deuses para me castigar ou deixar pleno de gozo e contentamento. Por isso volto a alguns escritos que já haviam sido mastigados, já entregues à meia dúzia de leitores que tenho, na maioria amigos muito amorosos, ainda que severos. Enfim, volto a alguns versos, reescrevo, revejo, trago de volta à luz, uns muito mudados, outros reafirmados como sempre foram, ainda que os rigores que o mundo me impõe na carne tenha refletido na respiração da minha poesia, na dicção estranha dos meus poemas. A criação é um processo doloroso, mas que ao fim causa uma fruição, um êxtase quase divino, independente do aplauso ou do silêncio da plateia. Acho que George Steiner, em seu livro ‘Tolstoi ou Dostoievski – Crítica e Estudos’ soube bem apontar para este 6


dilema, que por fim aceito como satisfatório a esta minha apresentação: “O Homem está, como afirma Malraux em ‘As Vozes do Silêncio’, aprisionado entre a finitude da condição humana e a infinitude das estrelas. Somente através dos seus monumentos de razão e criação artística ele consegue reivindicar uma dignidade transcendente. Mas ao fazê-lo, ele imita e rivaliza os poderes formadores da divindade. Desse modo, no coração do processo criativo, há um paradoxo religioso. Nenhum homem é mais inteiramente lavrado à imagem e semelhança de Deus e mais inevitavelmente Seu desafiante, que o poeta. ‘Sinto sempre’, disse D.W. Lawrence, ‘como se permanecesse nu para que o fogo de Deus Todo-Poderoso me trespasse – e é uma sensação realmente terrível. É preciso ser terrivelmente religioso (ainda que ateu) para ser um verdadeiro artista. ’” Pois bem, o Cosmo, infinito, produz astros demais. Não desejo estar entre eles, confesso que mais por uma não secreta aspiração aos buracos negros e suas promessas, seus mistérios, quiçá de uma extinção gloriosa, quiçá de um ocaso tranquilo, nas sombras eternas. Por isso voltei aos temas que sempre me foram caros, revisitei versos, reescrevi-os, repensei, recortei, colei, editei, num jogo de quem faz bonecas russas e caleidoscópios. Perdoa-me, caro leitor, se te enfado com minhas mudanças, meus saltos e repetições, ou se vez ou outra me perderes na penumbra de um verso qualquer. As mudanças de trajeto, os saltos, os cortes, os ecos e as pausas são necessários, acredite, tanto para o poema quanto para mim mesmo, que preciso reafirmar ideias como quem canta refrões num carnaval já terminado: só cinzas, mas ainda quentes. Essa talvez não seja uma obra solar, mas creio ter deixado nela algumas frestas, suficientes para deixar entrar a luz e mostrar com certo cuidado apenas o necessário, ou – com um pouco mais de atenção - algo mais, que jaz aceso por si mesmo, queimando, iluminando de dentro para fora, projetando no espaço qualquer coisa que reste, que sobreviva, como o lume de uma estrela segue viajando no vácuo, independente da extinção do próprio fogo que a originou.

Rio de Janeiro, 26 de fevereiro de 2015.

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MÁRMORE NEGRO

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Faz frio nos trópicos. Estou sereno, mastigando minha maturidade com a paciência dos que morrem sorrindo. Sou um romântico incorrigível e um cínico adorável, eu sei. É uma pena que o poema não faça jus ao fado que viemos ensaiando por tanto tempo. Sentado no mármore negro da poesia tive vontade de escrever e viver mais um pouco. Peço mais uma taça, ensaio uma prece, e deixo que essa bossa nervosa me embale. Não me calo. Versejo, o que é silenciar de um jeito diferente. Quem puder, por favor, não me entenda. Estou sereno, mastigando minha maturidade com a paciência dos que morrem, sorrindo. O inevitável não é apenas poderoso: é lindo.

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PRIMEIRAS HORAS Amanhece lá fora. A luz dura desta primeira hora quase fere, depois cura. Quebrada, a voz de um pássaro qualquer, inventado, esconde safiras na copa verde, apagada, de uma palmeira linda, alta, e também inventada. Um incêndio espera, espreita, guardado dentro de um verso festivo que por hora ficará calado, porém alerta [como o galo que só existe enquanto canta, num canto do quarto de quem sonha apenas] poemas de bico duro, penas brancas e incansáveis esporas. A palavra que procuro passa rente e não a vejo, pó de ouro que o vento sopra [entre as horas que o tempo ara.]

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A luz dura desta primeira hora quase fere, depois cura. Não há pressa. Um canto lindo, repetido mil vezes, desfaz as pazes com a beleza e os deuses o esquecem e o pó de ouro que o adorna vira apenas aquela poeira que o poema gasta, e que do verso entorna. Mire, veja só. Já não é segredo que não morrerei sem antes fazer do poema ruim o ouro em pó que [entre as horas o tempo, em vão, apara] enquanto espero. Amanhece, mas só lá fora. [Não há pressa.]

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PRIMAVERA Dormes, amor. Talvez jamais estivésseis acordada, ou talvez fosse apenas por mim sonhada, de tanto esperada, a tua presença. Dormes, interrompendo com teus sonhos barulhentos o silêncio frágil, porém violento, da minha vigília. Tudo há de se resolver entre o som do teu sono e o canto da nossa alvorada. Observo pássaros invisíveis afogados na prata líquida dos teus olhos fechados. Mil sóis ignorados sorriem debaixo do teu canto - cirandas, ameaças, promessas, cantigas de morrer, de viver, de ninar. Desço ao fundo de mim e espero que chova punhais sobre nós. O futuro é um baile, uma festa pintada com tinta forte, forte, forte, forte e fosca. Há um cansaço imenso em tudo o que não é rotina: ao meio-dia a lua ainda está no céu - carimbo de breu no firmamento. Esses dias que já nascem podres ainda podem ser fantásticos, 13


terrivelmente belos, é o que o tempo que dorme sob minha pele crê. Manhãs seguem adiante, rosas cancerosas, que se despetalam sujando as horas com sua terrível sentença. Há jardins imensos por vir, eu sei, e por isso não calo o verso. Ouça. Trago uma secreta esperança num canto de olho, um cisco, um borrão, um aceno feito de urgências e esperas bordadas com linhas iguais. Teço uma prece com a pressa pacífica de quem sangra. É tempo de fruta madura e eu estou em flor. Senhor, a ti eu rogo: colha-me logo.

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CORAGEM É preciso passar graciosamente entre os escombros esquecendo (talvez) a rima: qualquer favela carioca tenha os becos dourados de Roma, os telhados gris da velha Praga, e em qualquer ladeira as lajes prateadas de Paris, com seus gigantes de granito e toda pedra maldita, de tropeço, seja o pódio em que uma glória magoada, dolorida, reflita quando enfim receberemos entre lágrimas e aplausos a força divina do recomeço.

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ÓBITO No dia seguinte a morte persiste nas coisas de quem já não está em casa. A gente esquece, acorda, passa, pela sala e dá bom dia a uma cadeira vazia, a gente ouve a melodia do café e seus pigarros, o chape-chape das chinelas, a tevê ligada, o cheiro da pele sobre o sofá, o despertador chamando o morto ao trabalho, a faca no pão, o ronron do gato, o gesto colado no ar, o sebo do silêncio num canto onde uma aranha espera que lhe varram a teia. A vida segue. A gente sorri dolorido. Dourada,a manhã esplende sobre a corola de uma saudade encalacrada na rotina, nos passos ausentes, na roupa deixada no varal, num susto encontrado dentro de um livro, uma gaveta nunca antes explorada, nas moedas escondidas, um bilhete de amor com letra feia, o pavê mordido e guardado de volta no refrigerador, a mão que já não dá a bênção, o cão abanando o rabo para um carinho petrificado no ar, onde o morto era e é, mas já não está. A morte não é o dia fatídico do enterro. Não são as caras solenes sob o guarda-chuva, nem a voz de que se mete ao discurso na hora em que todo silêncio é de vidro, veludo, saudade. A chuvinha fina e a lama grossa nos sapatos, os ritos, as orações, a missa, o teatro dos pêsames, a comédia dos desesperos, os apertos de mão, as partilhas, as sapatilhas das enfermeiras, nada. 16


Nem o acidente, a doença, o tiro certo, o erro médico, o câncer, a unha encravada, um vento encanado, um quebranto, um poema enviesado, mal digerido, uma jura, mandinga, não, nada disso é a morte. Ela é o dobrar das roupas. Escolher quais lençóis ficam, quais vão. O quadro estranho descendo da parede, os óculos sobre a escrivaninha, um peixinho dourado, o canário, a calopsita, os vidros turvos, uma mancha no carpete, os boletos bancários, o estorvo vivo das coisas todas, muitas, que sobrevivem a quem já se foi. Ninguém morre no dia do óbito: morre-se muito depois, e muito aos poucos, na vertigem calma daqueles hábitos que demoram a se diluir, como perfumes que se escondem pelos cantos, a amante desavisada que aparece com um sorriso, uma flor no cabelo e um furor entre as coxas. O cão de olhos murchos, o jornal entregue na porta e desfeito pela chuva, os convites para um aniversário, um projeto infalível, as mãos perdidas de quem fica, aparando memórias como malabarista, a morte, enfim se mostrando não como um susto, mas como um longo aceno, demorado, ópera infinita do tempo restante, nosso tempo, em que se confirma que as pessoas só morrem no dia seguinte, e seguem adiante.

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SEMENTE Dentro do poema nota-se que o poeta é um homem, só mais um homem, mas não apenas.

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PEDRA Respiro pedras, perdas, perco o rumo. Tomo fôlego. Pedras pairam no ar, a foto mostra o exato momento em que me atiram, e respiro, mesmo dentro da imobilidade da fotografia, sei que respiro, pedras volantes param, esperam a hora, o flash, e não voam – evolam, evolvem – de fato tudo para, e parado segue, seguimos adiante, o aro quebrado dos óculos, o reparo mal feito, o remédio tardio, o tédio, o frio, tudo, todo mundo não diz, não fala, as pedras perdem altura, apontam, despontam, são estrelas: - esferas prateadas, lindezas afiadas, cortantes, volantes , quimeras violentas vindo em minha direção: e quem atira a primeira pedra com graça esconde a mão.

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FRUTA MADURA Apago candelabros de prata e pó ao som de Chopin. Insolúvel a tarde queima seus caules grossos: é verão lá fora. Dentro das frutas que dormem no calor da fruteira um fogo secreto faz o açúcar virar cor, luz, perfume, deus. Chopin, morto faz sonatas em meus ouvidos, doidos, doídos, crendo em dezembros melhores. Os olhares lá fora não divisam este meu sonho, sua melodia que cisca, farfalha, e pousa em meu ombro, preta, branca, cinza verde marinho e céu rubro, voa, voa, estranha mariposa. Chopin não cessa. Sua bossa escorre, pinga dos brotos das samambaias e nos bicos de papagaio vibra, redobra, melíflua, descascando a tinta dos móveis, dos hábitos, das paredes dos meus tímpanos. Tudo pode não acontecer assim num repente que a gente ensaia solene feito menino quando faz gol num estádio imaginário. 20


Meus candelabros apagados iluminam o melhor de mim. O Flautim de Chopin inaugura manhãs vertiginosas e alvoradas possíveis somente agora, agora, agora, agora! Acordo. Vejo ventanas cerradas, pestanas pesadas sobre minha vontade de viver mais um pouco. A vida reluz na fruteira, que é verdadeira, mas não faria diferença caso não fosse. Dentro de cada laranja, pera, figo, tâmara ou maçã um fogo sagrado arde esplendidamente: a gente envelhece, fica bobo, acorda desgovernado, e faz poemas como esse.

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O MONTURO O monturo respira. Preteja, enquanto o sol goteja em sua fronte escura. Procura, procura, uma palavra, migalha, cavalo de batalha, razão, motivo, o monturo espera, espera, procura, dorme, desmaia, acorda, olha, espera, pede, rouba, mata e morre, ou não morre, levanta, corre, o monturo é duro, não é forte, mas faz o impossível, e procura nos escombros, fuça, olha, espera, respira. Os trapos sujos, a cama caramujada, os andrajos num canto onde se planta um ronco sem sonhos; um barulho, uma buzina, a menina que passa, as sirenes, a mancha sonora que cisca, arrulhando, atalhando a hora, pairando por sua cabeça, - nossa, que força! - nada o faz acordar. Nada incomoda o seu sono de fome. Nada pode roubar-lhe a vida que já não tem. O sino da igreja, no domingo, não o chama. Deus o esquece. A sua mesa não está posta. Jogado no inferno da liberdade ele prende os olhos secos no horizonte. O mar cala em sua pele, o sal não lava suas chagas. Nada, nada o espanta. O monturo respira apenas. Não vive, mas respira. Revira os olhos, fechados. Mas não sonha. Nem sonham com ele. Suas horas passam, ele não. Ele sobra: os cães, os ratos, as cobras tem casas. Não ele. Sua fome sem aspirina transcende o poema, os estatutos, 22


os semáforos, a polidez suja dos arbítrios da gente. O monturo não é como a gente, sua arquitetura é feita de esquecimentos, de procuras, de esperas, de quimeras pouco etéreas: o monturo é fome e mágoa. Alma e estômago. Olhos e estômago. Mãos sujas, estômago. Liberdade. Estômago, só. Quase nenhuma voz. Sob mil anos de pó, fuligem, ferrugem, sal e sol, há o lixo, e no seio betuminoso deste monte de nada talvez um homem. Debaixo dos escombros um homem, um homem! Que apenas cumpre sua sentença. A sua pena, que é respirar, devagar, onde a métrica do poema não alcança.

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A GANGA IMPURA Paro, respiro. Paira sobre minha cabeça uma palavra que esplende mas não ofusca. Perdão, redenção, deus, onde estás, poema perfeito, eleito salvador desta alma emplumada que já não voa? Busco-lhe o significado, mas sobre ela um véu de pedra abafa o sentido de tudo: paro, respiro, procuro outra palavra, resolvo, sigo adiante, absolvo este verso natimorto. Poesia é naufrágio. E toda palavra sabe ser a um só tempo oceano, gaivota e porto.

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TETO, TATO Moro onde subentende-que é longe mesmo estando ao alcance das mãos, ou de um pensamento ruim. Mas vigora também aqui em minha colina a hera, o heléboro, a sálvia brava, o manjericão, e, com alguma paciência, algum bem-querer, manso como um riacho subterrâneo, seguindo firme e lento como a sangue d'uma artéria grossa irrigando vontades rubras demais. Meu teto é o tato do outro. Telhado, flor da pele. Abrigo a céu aberto. A gente mora é num instante, não num lugar. O resto é silêncio, forma grave de festejar, forma triste de se alegrar, forma bruta, violenta, de estar em paz.

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FRESTA Uma fresta se mostra, reluz no céu coalhado de estrelas. Algumas são mais belas, outras, quase apagadas, são fim de festa. É o vão da concha que redime, que salva, que machuca a ostra. É o ruído dos cascos que dá sentido à carroça, aos cavalos em seu tropel. O tempo, tímido, só pode passar quando ninguém estiver olhando.

Estamos quase acordados, e quase amanhece: o arcanjo Miguel sonha conosco e molha a cama. Seu corpo teso, de barro e louça quase quebra. Ele chora? É água ardente o que vem do céu? É vontade? É licor? Mel? Breu de vela? A moça na cama não vê que a luz pinga sobre ela.

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FILM NOIR Sobre a curva do lábio a fenda d'uma aurora. A trave que segura teu riso de repente desaba. Cai. Vai longe a lua, água turva deitada no caminho. Há música onde os brutos gritam. Com o dedo anelar risca um poema no ar, na tarde que te olha de joelhos. De azul, fez-se vermelho o olho vazado do firmamento. És veloz, mas morres de tédio. Se pudesse, eu diria em teus ouvidos caolhos que invejo tuas mãos cegas tateando vias tortas em minha escrita. Gárrulas, garranchos. Desce o pano,

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mas um gancho retém o poente, lindo. Ainda é noite sobre o oceano. Finda a dor, o que resta? Um beijo na testa, um aceno um rasgo na jugular? Julgo saber menos que o pó dos teus artelhos. Tudo é comédia. Uma boca desdentada desdenha desfechos possíveis. Reconheço que por uma fresta podemos escapar, sobreviver, vencer. Desço à primeira esperança sabendo que viver é um enorme baile de máscaras, mas não uma festa. Dai-me forças, peço à moça que dorme 28


coçando feridas imaginárias, dessas

que doem mais quando amanhece. Tudo é comédia. Todo abismo merece um sorriso. És veloz, mas morres de tédio: teu destino é terrível, mas como é linda a tua tragédia.

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UMA FOTO EM MARTE Esperemos. Brumas. Pó, fumaça e fuligem. Passa uma nuvem, a foto se desfoca. Ali acontece um milagre.

Talvez um habitante de Marte tomando Coca-Cola, ou ela, a musa impassível, sorrindo, gargalhando num vibrato inaudível.

Talvez uma lua vermelha, um eclipse, um enigma, o diafragma da máquina

Talvez o próprio Criador, ou um criado seu, mandado especialmente neste momento para nos contar as velhas novidades.

engasgando diante disto: o impossível, justo aqui, agora, perdido.

Esperamos.

Talvez a auréola do seio esquerdo da Madonna, o brinco de prata pendente na orelha direita de Santo Agostinho, o próprio.

Brumas. Pó, fumaça e fuligem. Passou uma nuvem e roubou-nos a foto. Fora de foco, tudo pode ser um milagre.

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FESTA Vamos festejar os contratos não celebrados, os heróis desacreditados, os vilões incompreendidos, os bandidos acovardados, os prudentes que estão falidos, os cautelosos que foram pegos, os amantes sem brilho nos olhos, os amigos que não abraçam, os padrinhos que não cuidam, os pais que não amam, os vivos que não morrem, os mortos que não descansam, os pregos sem cabeça, as tranças sem laço de fita, os ritos sem compostura, as missas sem fiéis, os anéis sem dedos, os brinquedos sem crianças, os infantes sem inocência, os irmãos sem fraternidade, os palhaços sem graça, os leões sem juba, os crocodilos sem dentes, os tubarões que se afogam, os crentes que não vigiam, os cientistas delirantes, os reis que imploram,

os juízes que não decidem, as leis que não vigem, os vigilantes que não enxergam, os cobertores que não cobrem, os cúmplices que não acobertam, as mães que não se afligem, os covardes que não fogem, os tempos que não urgem, os monstros que não rugem, os ventos que não sopram, os incêndios que não arrasam, as casas que não protegem, as primaveras sem flores, os amores sem dor, o labor sem cansaço, o braço sem força, o poço sem água, a mágoa sem paixão, o sim sem um não, a mocinha sem um vilão, os santos sem tentações, as ações sem consequência, as cobras sem veneno, as águias sem penas, e os poemas que não alumbram o que dentro de nós é treva, pó, deserto, silêncio e sombra.

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JOAQUIM Joaquim, meu filho, os ipês estão floridos nas montanhas em nossa volta. Mas tu não vês, não sabes como são lindos os nossos ipês. Joaquim, meu filho, demorastes a nascer, meu querido, e por isso não podes ver o espetáculo desse dia. Todos os ipês amarelos floresceram pintando de dourado as montanhas que dormem embaladas por este mar imenso. O mundo é um lugar terrível mas, vez em quando a gente olha para o alto e os ipês de dezembro trazem alguma esperança. Joaquim, tu olharias maravilhado a silenciosa explosão amarela e dirias que Deus existe, senhor de todas as aquarelas.

Mas, filho, tu que não nascestes, nada sabes, não miras, não olhas, não brincas, não choras, não vês como são lindos os nossos ipês. Nem eles te olham de volta, não sabem da cor dos teus olhinhos amendoados, não ouvem a tua voz, nem reconhecem a tua gargalhada gostosa. Joaquim, meu filho, o mundo é terrível mas nele há dezembros que começam assim mesmo com ipês amarelos brotando no seio da rocha, desafiando as escarpas montanhosas. Mas tu deles não sabes, nem eles sabem de ti. Tu, que no vácuo habitas, nada ouves, nada vês, e por isso, diante desta montanha florida, penso em como são lindos, mas como são tristes esses nossos ipês.

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A FLORESTA Paro. A floresta se move. A montanha, veloz,

A missa prossegue. Reescrevo poemas e salmos. Peço palmas com toda calma.

contorna o aro quebrado dos meus óculos. A luz cai pesada sobre meus ombros.

Um gato se deita sobre a minha sombra. Um cão andaluz paira na tela.

Os escombros da minha alma não me cabem na palma da mão direita.

Peço ajuda. Ninguém ouve. Aplausos na plateia.

Feita a prece derradeira volto a pecar.

Uma torre branca está para cair: seus cabelos pegam fogo, ela não grita.

O mar recebe meu corpo mas não me ama.

O cavalo amarelo, um bispo negro, um galo português, um falcão maltês,

Suas ramas ateiam fogo nos cabelos das sereias. Há fuligem sobre as marés.

um monge cego, a estrela negra ardendo em pleno dia. Os signos estão postos, em vão.

Trago pentagramas tatuados na pele. Reitero contratos.

Não morrerei. Nem vivo. Comemoro: a ruína é um berço de ouro.

Tortos, os cornos de um cavalo erram-me a carne.

Paro. Quebrado, o aro dos meus óculos acompanha a curva do horizonte que se afasta. Todo poema é uma floresta.

Sorte é saber inventar outras órbitas nos relógios.

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PERIGOS Há tanto o que não se falar, meu filho. Tanta coisa não devemos dizer nesta hora que julgo ter sido sorte, minha e tua, não teres nascido ainda. Mas espia, espia só! Nas ruas os operários e os barões gritam e os soldados, os marechais, os coronéis, as prostitutas, os poetas, os menestréis gritam. Todo grito é familiar, meu filho. Neste mundo, ou no mundo dos sonhos, quem estiver calado é que será o estranho. Os partidos de uns e outros repartem as cidades e dividem o povo - esta serpente emplumada em fatias finas ou grossas, servidas cruas; a carne dos homens é assim devorada aos poucos, ou consumida em loucas e furiosas garfadas, tudo dependendo da fome de quem os come. As bandeiras são agitadas sobre as cabeças destes que são futuros mortos, corpos que hoje festejam a vitória de uns sobre os outros, irmãos que são, na mesma dor e alegria de não saber nada e julgar a tudo, a todos, segundo o peso da luz dos seus olhos embotados, cinzentos. Nas ruas o clamor das bombas e dos atabaques chama o furor das palmas, dos risos, dos estilhaços, dos rojões, das cornetas, dos tiros para o alto, do asfalto sendo pisado por botas pretas, lustradas com a baba cáustica dos que foram vencidos, nós inclusive, filho meu, porque não sabemos por qual time torcer e por isso fomos decretados perdedores antes mesmo do fim da partida. Há tanto o que não se falar! 34


Todos já disseram o suficiente, falaram demais, e continuam discursando sobre a vigência dos signos que as nações carregam no lombo destes asnos gloriosos... E a vida segue. São seis horas da manhã em algum lugar do mundo, e em algum lugar do mundo um homem tomará o seu café com pão, esperança e obediência. N' algum lugar deste mundo um homem beijará a cruz, mas não a sua mulher, forte como o café, útil como tal. Normal não beijá-la, a mulher, nem o filho, mas à cruz sim, pois isto o ensinaram, e aquilo não. Beijar a mão do padre, do patrão, a bandeira, a camisa, a insígnia, beijar o signo, a figura: pensar no céu, olhar pro chão. Há tanto o que não se falar! Aquele homem do povo, que acordou hoje cedo com a voz rouca de tanto gritar a vitória do seu partido, vai morrer. Todos vamos. Mas antes disso gritamos, e festejamos, e passamos (passeamos) assim pela vida, aos berros, aos gritos, enquanto a sorte - ou a morte faz seu festim silencioso debaixo da nossa pele. Filho, tu que estás calado, é que estás certo! Há tanto, tanto ainda o que não se dizer sobre esses tempos, há tanto o que não se falar nesta hora que julgo ter sido sorte, minha e tua, não teres nascido, não teres vivido, não teres lido os clássicos, os cânones, não saberes da política, do futebol, das religiões, das paixões que movem os homens a gritar demais. Filho meu, bem fazes tu por não teres lido em voz alta os cantos pagãos, os manifestos, os protestos, qualquer salmo ou poesia: meu filho, há muito que não se falar, porque o silêncio nos consome mas apenas o grito vicia.

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O ARCO Manhã muda, onde se amolam facas ao longe, e os inquilinos do horizonte acordam bêbados de asas brancas, e sobre as casas voam à toa, à toa. Voa, menino! Há uma tamanha beleza no salto, que o mar, arauto dos abismos, faz cantigas bonitas para embalar a tua morte. Tudo, tudo é por enquanto. Estás vivo, no entanto. E por mais que chames o fim em ruins poemas, continuarás sendo só mais um homem, só mais um homem, mas não apenas. Voa! Tua sorte não estará lançada antes que desafies esta verdade, este enfado: vais ser feliz mesmo que não queiras e o estrume do teu remorso acenderá no solo a chama de flores doloridas, perfumadas, trazidas pelo teu desejo de não ser, sendo. É preciso falar. Uma coisa podre, escondida embaixo das palavras, se insinua. As regras não valem, minhas verrugas brotam da ponta dos meus dedos como pingos de tinta, uma audácia, enfeitar de cicatrizes meu corpo, herança que não queria, os pertences, improvisos, badulaques, um brinco de pérola falsa na orelha direita do espírito.

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Falo demais. Trago alfarrábios à foz dos lábios desta musa que aos poucos me olvida. Ouço, há pés demais, pernas, a usura dos sapatos que ousam esquecer caminhos, inventar palavras, o chape-chape das chinelas pisando almas sem calma alguma, sem calma alguma, nenhuma calma, sob as palmas de todos. Vem, olha pra mim agora que estou guardado num verso ruim, e digo bobagens, voragens, como quem vertiginosamente desce aos infernos onde a seda e o medo vigem, vigiam, virgens de esperanças ainda, virgens ainda, tão virgens, meu Deus!

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UM GALO Um galo, um raio de sol nasce, a crista vermelha faz uma sombra veloz sobre as rosas azuis que bocejam quase mortas, muito tortas, debaixo deste imenso meio-dia. Cobras rubras-e-pretas passam rente à silhueta das crianças que catam escorpiões amarelos com potes ensebados de maionese. Viver é simples e perigoso. Debaixo de uma nuvem qualquer um poeta qualquer rabisca um poema fácil como viver. Mas sua rima quebrada ensina a ver o tempo entre as moitas a voz entre os gestos, o rosto das gentes rente o seu nome, os apelidos dos dias, as senhas que o vento finge que sopra nos ouvidos dos velhos e as calçadas onde os heróis passam, gordos, todos confortáveis, esperando a hora certa de morrer. De repente - num repente que pra quem olha despercebido pode levar um século, um segundo, um quinto de meio dia de descanso ou de trabalho um menino que vê o canto mas não enxerga um galo pisando com fé (em falso) no chão de terra ou não pode aceitá-lo como galo, pois na guerra santa de cada dia não há tempo, muito tempo para poesia, digo, volto ao menino, ele acha no vácuo do dia uma bala perdida no oco daquele canto de galo, digo, um bicho, um grito, acha um facho de escuridão no meio de tanta luz, o penacho provando o vento que vibra por baixo do canto e o perfume feio do galinheiro 38


elaborando o cheiro sujo da cor primeira, cor de coisa nova, que é sangue, destino, poema, miasma de cloacas que em uníssono criam vida e morte e descartam o fúcsia e o magenta que vibra no vão das coisas santas, coisas nojentas, do que se percebem como espaço e tempo, coisa e não-coisa, canto primal, primevo, o primeiro que se ouve e não se escuta quando se acorda, ainda menino, para a sorte de outra morte a esfregar os olhos e crer no bem que mora, talvez, lá fora onde os homens fazem poemas de barriga cheia e lançam bombas, adentram vulvas, velejam, tocam violão, pregam farpas numa cruz e oram, imploram, peroram, pelo agora e o amanhã, pelos gargalos das horas presas no bico de um galo qualquer, que hoje levanta o seu pranto. Sigamos talvez nem sempre em frente, mas gentilmente adiante, conforme os tratores da vida ordenam: os homens pintam quadros, escrevem compêndios, apagam incêndios, nascem aos berros e morrem, quase em silêncio enquanto os galos cantam, ou gritam, ou berram, mas nunca erram o tom e a letra da sua salmodia, que não é poesia, veja só: aquele menino de antes olha ainda, pensa ainda, e talvez nem esteja mesmo acordado, talvez nem mesmo vivo, digo, este menino, que acorda e ouve o canto de um galo que desce a madrugada (poleiro sujo de alvorada) planta nos ouvidos dos outros

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meninos as rimas que dizem que é preciso nascer, sobretudo brilhar [antes de morrer] como brilha o canto (obscuro) que do bico de um galo pende e esplende no ar denso como vidro em pedaços. É preciso nascer, sobretudo brilhar, esplender como cristal explodindo, galo cantando, gente crendo num um bom dia, dizendo bom dia ao próprio dia que pode vir a ser grande se a manhã trouxer, azul, qualquer promessa de que amanhã, hoje, seja onde e quando for, nascerá (inshalá) uma flor, um sol bordado pelo canto de um galo que não se sabe onde canta, não se sabe se existe ou se levanta da vontade de um qualquer menino na prometida manhãzinha em que seu canto irromper vermelho como coração de mãe que desponta e conta sobre a rosa azul de um poema qualquer que vir a ser o ovo de um dia novo que sobre a campina desponta como a rima boa ou precária, seja na doce figura de um galo imaginário ou em sua dura imagem, a sombra branca com os pés na lama, na impura realidade das flores e fezes que jazem ao redor deste que se atreve a chamar de poesia tudo isso, este vômito feérico que deságua de cada horinha besta que se acumula aqui e ali nos hábitos e nos gestos, mesmo os que são desfeitos antes que o arco dos membros os dê força, trajetória e sentido, sendo apenas a matéria-prima do poema esses primeiros restos de qualquer novo, novíssimo dia que pende do bico de um animal 40


que existe apenas enquanto barulho, explosão de qualquer coisa grávida expulsando qualquer outra coisa também atrevidamente grávida que é uma promessa, (sentença?) uma profecia uma celebração, um chamamento aos bravos e aos desanimados, enfim uma novíssima prece ao deus-menino dono de cada novo dia, esse dia tão antigo quanto o susto de uma bala encontrada, quanto o repentino canto de um galo que entre as penas do tempo diz apenas, infalível, sem fazer poesia: bom dia.

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CANSAÇO Aro a hora pressentida descendo a mão sobre a fala que mói malabares de tensa dicção. Cabe sempre um tombo no passo desgovernado e na salmodia dos cães. Longe ladram. Ouço. Moços bonitos com roupa de festa chafurdam em minha sala, mesa posta. Aposto que por um triz não sorriremos, contentes por partir os últimos cristais da casa. As asas de Ícaro derretem sem pressa. O horizonte não se afasta. Hoje, quando os poetas chegarem, não me encontrarão desarmado, desprovido de palavra. As heras vigoram sobre o aço mantendo de pé o arcabouço do verso. Mão em concha, bebo desta mágoa, deste vinagre, dessa paz tão diversa. Era assim o meu poema, disperso, até que de perversas constelações vestiram minhas auréolas, ogivas já estragadas, inúteis, potentes como a bomba de prótons que falhou e ficou - baobá de césio, cobre e lata plantado na planície, nos charcos, perto de onde ninguém mora, onde vigoram meus melhores dias.

Amanhece. É preciso que amanheça para dar sentido aos relógios que escondi na madrugada. Ninguém virá, [pés descalços, braço armado] lutar em meu favor, pisando os espinhos que plantei. Espero. Meu olhar esmerilha a montanha que surge, que vige, que vigia lá fora. Rocha, magma, pó. Minhas têmporas latejam mas, talvez, um beijo seja minha redenção: não sem culpa, nem sem dolo, pois a rima não existe, mas ressoa, melodiosa ainda. O mar chega sem sal às minhas orlas, espraiadas sobre a tez tropical desses tempos. Mas um canto sustenta este minuto. Entre os cabelos de uma palmeira invencível os ventos que irão me matar cantam. É linda a sua cantilena. Jangadas de pedra porosa partem mar a dentro, vida a fora. É preciso arar com fé essas horas finais, de paz sem descanso.

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Canto. Minha fala mastiga essas cirandas. Girândolas amenas repetem seus poemas.

Cabe sempre um tombo nesses voos de asa barroca, quase branca. De minha boca não ouvirás mais que isso. Horas melhores virão, finjo. Longe, escuto sorrindo seu lamento: Ainda há tempo! Ainda há tempo? '"Muitos temores nascem do cansaço e da solidão.'" Este poema termina. Meus temores, meu cansaço, meus amores e minha alegria, não.

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O QUERER O que eu quero não tem tamanho. Não cabe na mala, tampouco no sonho. O que eu quero não se paga com moeda. Tem a consistência gostosa do cetim, do éter, palha, pêlo e pedra. Quero o que é bom para o filósofo, para o burocrata, o herói e o vilão, o monge, a prostituta, o florista, o santo e o vigarista, o medroso, o malabarista, o velho e o rapaz. Mas se, qualquer dia desses, um gaiato der nome e sobrenome a isso que eu quero, danou-se: morreu, perdeu a graça, e já não vou desejá-lo nunca mais.

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ALÇAPÕES Não posso me mover. Fluo, portanto. Aceito.

dos andarilhos, dos trilhos dos trens que não vêm, não virão, mas passarão, decerto.

Miro horizontes repentinamente descerrados.

Sobretudo, hão de me re-com-pensar, muito, sempre, pelo desnecessário que me corre nas veias.

Só hoje percebi o quanto vale a mão vazia, a mochila cheia, os pés com asas. As casas dos caramujos serão sempre mais bonitas. Há janelas - e muros em frente. É preciso cegar todas as paisagens, negar a dor, diz o amor. Rente à pele o tempo roça, planta destinos, destila caminhos que se pesam, ao contrário, debaixo das chinelas

Vim, vi, voltei. Perdi, e só por isso ganhei a chance de tentar um novo, lindo, fabuloso fracasso. Todos, antes, sábios ou rufiões, já haviam aceitado e dado como certo o lance, a flecha atirada: jangada de pedra, asa longa de pluma rochosa, e um amor imenso, enorme, potente, pleno de alçapões. [Eis aqui um sim para todos os senões.]

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ÔMEGA Certo de que pão é pão e pedra também, segui adiante galopando os anos como quem atravessa um planalto no escuro fazendo pazes com inimigos presentes e futuros. Desfiei rosários coloridos enquanto ensaiava morrer cruzando alvoradas em vão pois havia sempre a promessa de um sorriso à beira de qualquer abismo, ou colo de mulher. Era preciso revisitar os mesmos versos para abrir caminhos diferentes, como faz o verme voraz na carne viva do animal que morre aos poucos, mas pulsa ainda nele algo que talvez você, inadvertidamente, chamará esperança, asa quebrada, única, esquerda, pendente, inútil ao voo, mas não ao ofício imprescindível de sonhar. Ao contrário do que muitos pensam o fim não é um alçapão, um poço sombrio, nem é fria a nossa extinção. Pelo vão desta porta vejo - imagino – um sol abrasador, porque a luz dourada chama com labaredas que dançam sinuosas como espadas sacerdotais. O que mais haveria por trás dessa porta, senão outras, milhares, num corredor estreito, que não termina jamais?

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O poema. No fim, ao cabo, ao longo, e sempre. Mas não importa: abertas ou fechadas creio que essas portas já não levarão mais a nada. O que digo? Nenhum vinho acolherá o torpor dessa noite em que estou só, com minha sobriedade. Há musgo entre os ossos das figuras desenhadas na parede. Por baixo da pele das tintas o concreto armado sonha ser nuvem e todo edifício, por isso, pode um dia desabar, vir abaixo, virar pó, luz, névoa, mar. Ontem mesmo eu tinha vinte e três anos de idade e as cidades da Europa eram flores com nomes estranhos mas perfumes já muito conhecidos: eu era imune aos venenos trazidos pelos sorrisos das mulheres, dos homens e das crianças. Hoje um verso quebrado me completa e a métrica dos meus dias futuros perde fôlego sob a sombra das rimas que já se cumpriram: minha história diz o que a carne calada sente, e por um triz não grita, mas reverbera sem saber. Paro. 47


Respiro. Respire comigo. Perceba: o verso divisa, revisa, o verbo conjugado por tuas narinas. Poesia é voo e tropeço. Não há rima que não possa - não deva - ser quebrada. A asa perde as penas, o ritmo do seu bater é tudo, e nada importa mais que isso. O poema. No fim, ao cabo, ao longo, e sempre.

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CIDADE AZUL [‫]ب ندرع باس‬ O céu azul de Bandar-Abbás naquele verão de 2011, às quatro e vinte da tarde, sob a marquise do Hotel Turmaline, era vermelho como os olhos da moça que se esvaía, quase-morta, na calçada perto do poste cor-de-lápis-de-cor-azul, no meio de uma pequena multidão de gente de roupa branca e preta (com alguns tons de marrom e cinza) com olhos negros e pele de petróleo ou cor-de-azeitona-preta, gente que podia jurar que o céu azul de Bandar-Abbás naquele verão de 2011, às quatro e vinte da tarde, sob a marquise do Hotel Turmaline, era tão azul quanto os olhos vermelhos da moça que morria naquela calçada perto do poste cor-de-lápis-de-cor-azul, no meio de uma pequena multidão de gente sob o céu azul de Bandar-Abbás.

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GARIMPOS Estrelas mortas brilham sem cessar.

Tragam violões, mas não os toquem.

Noites inventadas rolam no teatro do dia.

Há tanto o que dizer, que é melhor calar.

A salmodia dos pássaros envolve a manhã com o celofane rosa azulado da alvorada.

Cantar é precioso, não preciso.

O mar - chumbo derretido ronrona baixinho. Oceanos dormem, não é necessário marulhar demais, porque silêncios clamam por silêncios, e fazem, sem pressa, uma sinfonia delicadamente terrível. É preciso cantar. E cantar, e cantar, e cantar. O tempo se assenta em finas camadas, inaugurando todos os abismos guardados com pressa nos relicários da rotina. A tez, os pelos, os cheiros da madrugada. Tudo é muito perfeito, e por isso precário. Aceitamos açoites imaginários enquanto chicotes reais rodopiam no ar. Queremos grunhir, cantar, sorrir, sofrer, gozar. Os versos se repetem, vida ao avesso. [Poesia é asa e tropeço.]

Tudo o que não for poeira de estrada, é mar. Sejamos fortes, sigamos o mestre do canto: há um sorriso guardado em seu lamento. Tudo é bom, e mal percebemos isso. No meio do lodo é que nasce a flor-de-lis. Note, a voz de um deus inexistente preenche todos os espaços armando laços, desfazendo nós, rejuntando a massa dos corpos, descombinando rimas fáceis suas cantigas vem como ondas, e mais ondas, e mais ondas de mágoa clara e limpa. Tudo é bom, e mal percebemos isso. E só o poema poderá achar fácil o que com dificuldade a vida garimpa.

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MEMÓRIA Naquela manhã em Vladivostok perdi mais do que tinha, e desde então segui adiante em vertiginosa carreira: descalço, leve, levíssimo das coisas deste mundo, mas com o peso de universos interiores sobre minhas costas marcadas. Vi outonos coloridos rastejando sobre montes calvos. Surpreendi verões irascíveis escalando a crista de ondas geladas. Mas as primaveras e os invernos, trago-os dentro de mim. As rosas de Salamanca, tímidas e murchas, espalhadas por todos os canteiros que ladeiam a metrópole ainda são infinitamente mais vermelhas que as daqui. Nas coxas das negritas de Havana enrolei o fumo de uma utopia perfumada com Cravo da Índia, Alecrim de Lyon, Lima da Pérsia e o mel de vulvas noviças molhadas pelo orvalho do Caribe. Mas onde encontrar margaridas mais morenas e palmeiras assim invencíveis? Entre os carros pretos de Dublin vi passar as bicicletas vermelhas mais bonitas emolduradas pela crueza dos rastros de pólvora sob estilhaços de vida e neve, de vida e neve, de vida e neve. As olivas gigantes da Grécia, na planície salpicada de verdes de todos os tons azeitam o fim da tarde com seu perfume agridoce. Os olhos azuis das loirinhas de Praga refletem casarios velhos como o bem e o mal do mundo sob telhados ungidos de prata, lápis-lazúli e ocre.

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E o sexo perfumado de âmbar-gris numa viela onde os gatos reinavam absolutos: pretos, brancos, cor de mostarda, sal-e-pimenta, todos devidamente pardos sobre os telhados de Turim.

Mas onde encontrar margaridas mais morenas e palmeiras assim invencíveis? No Zaire contei sementes coloridas em cordões cheirando a primavera e suor no colo nu de matronas de peitos murchos e virgens com pele de seda e petróleo. Ouvi o mestre do canto chamar a alvorada sobre os casebres mouriscos onde a meia-lua de pedra vigiava atenta e pesarosa os mendigos invisíveis da bela Marrakesh. Pisei descalço as tábuas de madeira rosada do templo onde dezenove mil Budas sorriam displicentemente e serenamente balbuciavam verdades há muito tempo ignoradas que os monges de olhos riscados e pele de pergaminho liso em Kyoto guardavam entre as sobrancelhas pretas desgrenhadas. Nas festas do Soho conheci línguas de ácido que me lamberam a alma com os carinhos mais vorazes e sob as luzes que piscam velozes no céu de Manhattan perdi meus primeiros anos de maturidade, como um menino. Mas onde encontrar margaridas mais morenas e palmeiras assim invencíveis? Não planejo resistir a todos os vícios, nem enfrentar todos os demônios de cara limpa e mãos vazias. Não conto os giros da terra. Mas devia ter contado moedas e medos. Sua falta hoje me condena, e eu sorrio. Todo abismo merece um sorriso. Os círculos de poesia no Leblon. As rodas de samba em Madureira. O peixe com molho de coco no Vietnam.

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A aguardente cheirosa com larvas de cor fúcsia numa esquina de Tegucigalpa, debaixo da goiabeira. A moça feia de Zurich, a boca vermelha, as coxas tectônicas, a forma biônica dos seios pequenos sob a rubra sombra das macieiras. Volto sem perceber pertencimento. Em algum lugar no tempo a minha terra não prometida aguarda esses meus ossos cansados de vagar. Nada lembrado pode ser mais cruel que as memórias que inventamos. [ Mas onde encontrar margaridas mais morenas e palmeiras assim invencíveis? ]

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HERANÇA Trago comigo um sorriso que foi herdado e aprendido, estudado, observado, auscultado, como quem inspeciona uma engrenagem que pulsa, que faz um barulho miúdo, como a bomba-relógio prometendo explodir, sem, contudo cumprir seu destino. O trem mineiro, as bananas capixabas, o café paulista, as tâmaras marroquinas, as sardinhas lisboetas, o meio-dia alaranjado que se despeja manso nas ruas sujas do Brooklin, o cheiro de cerveja, urina e perfume de almíscar e rosas num baile de Madureira, o cheiro amanteigado das fogueiras juninas, o livor agridoce das vulvas adolescentes de Bangu, as lâminas verdes guardadas nos caules de coentro, manjericão e alecrim no centro de qualquer manhã em Niterói, Turim, Praga, Creta, quiçá na discreta Medellín. Tudo isso é o pouco que tenho e carrego comigo num possível sorriso enorme feito de corolas e ogivas, de fachos de escuridão e borrões de luz, de asas quebradas, de caminhos partidos, de vórtices de pó, de abraços sumidos na pele de quem partiu (ou nem chegou) e de vontades muitas vontades, quase querências, a ciência dos gestos que afagam doendo de verdade. O riso que trago navega por verões inverossímeis e monções temperadas de sal, meu riso é a precisão do bote das dróseras e aldrovandas, o rumor de lavanda sobre os campos já invernados, a tinta das lulas em suas covas abissais, os tentáculos dos polvos fazendo rendas nas anáguas do mar, o arco iluminado na curva da boca aberta das serpentes, a cabeleira esvoaçante dos dentes-de-leão em chamas na campina devastada. 54


Este meu riso, essa minha irrisão, reluz como o verso bom dentro de um poema ruim, ouro de tolo, prata antiga, que trago como quem traz consigo uma lanterna. Acendo-a no meio do dia, debaixo das luzes: ela mesma, a gargalhada, a sonrisa, a brisa que evola do peito até a boca, e ejeta este som que tremeluz, um clarão, um facho embotado, embaçado, desperdiçado, como um sim embrulhado em um não.

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ACENTO Und die stimme unter den worten scheinen glass zwischen baumwolle zweigen gebrochen. E a voz por baixo das palavras parecia vidro sendo quebrado entre ramas de algod達o.

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COROLA Na corola da manhã o azul ultramarino de ontem escorre líquido por entre as montanhas. Há paz e medo na íris embaçada que vê outros olhares alhures. Dísticos se desencaixam com sôfrega beleza: os ritmos não rimam, os poemas são pomares de frutos roxos que não justificam nem perdoam o açúcar mascavo desperdiçado pelos sonhos dos infantes. Prossigo encarando minha finitude como quem espera uma ave matutina que vem de longe trinando seu canto de cristal quebrado e pousa sóbria, antes do enquadramento perfeito da foto. Minha palmeira invencível dorme, mas está atenta. Em seu sono os ventos passam alisando-lhe os cabelos que a noite pintou com as mais bonitas chagas e broqueis, como quem salpica estrelas de fogo-fátuo num céu nublado. É preciso arar entre os versos que vigoram para compreender que não há beleza neles 57


e ainda assim encher os olhos de águas claras, lavando o azulejo colorido das almas restantes desses delírios mais-que-perfeitos. Não entender é essencial nessa hora. Só com as mãos de quem ignora é possível reter a paz que vigia de dentro desse turbilhão, e dormir o sono dos bobos, com a firmeza rubra dos inconstantes. Divago, cansado de estar certo em vão. Errar por certos lugares tornou-se o pão de cada dia. Há algo ameaçadoramente bom no horizonte, convém, por isso, quebrar as pernas de qualquer ave branca, e com isso fazer com que voe sem pouso e sem uso para o chão, faça tensa a pena leve, e breve a cena imensa, desfazendo a aliança frágil e triste entre o que é e o que deveria ser. É possível que o tempo faça sentido desfazendo meu corpo de areia como faz o vento soprando as dunas para onde não se pode vê-las, grão a grão, para dentro do oceano. Repito, é preciso quebrar as pernas de qualquer esperança, qualquer pássaro alvo, qualquer bicho alado que voe sobre nossa cabeça. Sem chão, hão de voar melhor. Como Ícaro entre os escombros, a memória do voo será feliz como a memória do tombo. Deixem que as aves não pousem jamais, nem usem o horizonte como faz o poeta, que ara horas acesas enquanto sonha: na corola da manhã o azul ultramarino de ontem escorre líquido entre as montanhas. 58


DEPOIS Houve quem dissesse que eu poderia ter me salvado, ter escapulido por entre os dedos grossos daquele breu, acaso tivesse em plena luz me escondido. Mas senão por azar, foi por sorte, que a seta afiada do teu olhar me abateu em pleno voo. Tua voz mansa como o trovão meu sono embalou e de minh'alma inacabada fizestes outra, completa. Houve quem dissesse que não fiz por merecer de tuas mãos prêmio e castigo, como um campeão derrotado, um coitado feliz. Ora, senão por azar, garanto ter sido sorte, que me fizestes seu protetor e seu inimigo, ensinando-me a viver para além desta morte.

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POMPÉIA [Anotações sobre os meus passos na cidade devastada de Pompéia.]

Há flores novas crescendo no solo negro e quebradiço. Algumas casas resistiram, os lares, mesmo os menores, são maiores que qualquer mero edifício. Quando o Vesúvio acordou de um sono intranquilo o sol envergonhado cobriu sua face dourada e a lua chorou lágrimas de sal sobre o mar. Marés de condenados assomaram sobre as campinas que amarelavam em labaredas de um inútil desespero enquanto os deuses se fartavam de gargalhar. Mas, em alguns cantos da cidade desolada, mãos frágeis, humanas, se procuravam na escuridão fria que precedeu o inferno. E quando as cinzas faiscantes cimentaram a paz de Pompéia o mundo calou, desfeito em chamas que lamberam do cais às montanhas varrendo poemas, evangelhos, jornais, homens, crianças, e tudo mais. Mas, em alguns cantos da metrópole que ruía, restaram estátuas eternamente abraçadas, lindas, que venceram as brasas do grande Vesúvio. A tola montanha, hoje apagada, é apenas a sombra de algo maior, mais belo, mais forte, porque o vulcão, dono da morte, não conseguiu apagar a chama voraz que violentamente ainda queima no peito daquelas estátuas de cinza e esperança.

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NATUREZA MORTA 1. Olho aquelas maçãs nas mãos pequenas de uma moça. Noto a hesitação proposital que faz perfeito o que ainda não aconteceu mas já existe, no calor do momento delineado pelas mãos frias do pintor.

2. Ouço o irromper da primeira mordida que em cacos parte o perfume da fruta. Por mil anos aquela maçã de louça resistirá, intacta, ainda que maculada. Intacta, pois a menina já seria mulher e a mulher sempre fora senhora de todas as ninfas e as paixões deste quase extinto planeta terão sido apenas sombras criadas na penumbra dos versos de carne e sonho riscados pelas mãos rudes dos poetas.

3. Quando o sol se apagar e todas as histórias forem ecos petrificados

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haverá ainda aquela maçã na manhã seguinte ao fim dos tempos na memória angustiada de um deus que procurará em vão as mãos brancas, os olhos grandes, a boca rosada, o semi-sorriso daquela criatura quase alada, quase caída, pintada na natureza morta deste poema.

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FLOR-DE-LIS Faço mira. O arco, por demais retesado, arrebentará sem alarde, em tempo breve.

Oremos. Tenhamos força e fé e em qualquer desespero aguardaremos de pé.

Flecha de imburana, a seta de pedra de fogo, a mão soberana, erradia, desafiando a paz dos lobos.

Aprendi palavras novas. Não as usarei jamais.

Vontade é manobra difícil, exigência sempre inoportuna: o azo de seguir, prosseguir, porque todo vento é contra, ainda que empurre para a frente. Tudo é tensão. Não faz sentido fazer poema. Não faz sentido fazer amor. Sob a pele jaz a espuma do ser. Entre os pelos, as ramas do querer. Debuto desesperanças festivas. Abismos me atraem. Tudo é voo, salto ou tropeço. Procuro sempre uma pulga atrás da orelha de louça de um santo qualquer; talvez um pequeno deus com olhinhos de serpente num corpo de mulher.

Trago nas mãos esses versos soltos, versos ruins, porque o bom verbo quero-o bem guardado, bem longe de holofotes, distante das ribaltas. Minto. Esquivo-me das boas causas. Desvio o olhar dos favores mais doces. Estou envergonhado demais para acreditar no mel venenoso de cada manhã. Calo. Resvalo em ninharias. Morrer é sempre um susto que se instala a conta-gotas. Do lodo brotará a flor de lótus. Nascerá branquíssimo o lírio d'água na foz das mágoas rasas desta vida. Aqui, no pântano há pouca esperança. Mas, cedo ou tarde, haverá redenção. [O resto é poesia, pedra e pão.]

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NUVEM Estive e fui. Sobretudo tive. Hoje, flutuo com pesos nos artelhos. Do alto pareço estar ainda de joelhos. Divago com pressa. Cobram-me abraços e sorrisos espremidos: entrementes, entre dentes, é estridente o som deste silêncio. Estive e fui. Tive. Mas dói saber que foi tardio compreender que toda dor vinha do peso, da posse, dos ossos cansados, loucos para ser penas, talvez plumas, e voar. Voar apenas. Mas preciso demais de um pouco mais de tempo e umas poucas coisas que muito custam chegar, porque aqui do alto fica difícil alcançá-las: quem me entender, não diga. Estive. Fui. Tive. Agora toco ágoras douradas com as pontas dos meus pés. “Viver é foda. Morrer é difícil.” Há de se ter paciência e alguma pressa. 64


Pisar a lama tendo nuvens na cabeça. Sapatear, meu bem, sapatear miudinho, como a palmeira que penteia os cabelos na tempestade.

A gente vive mesmo é quando não quer nem precisa. Deve ser por isso que a vida é preciosa. Minhas filosofias derreteram-se no último verão. Os blocos passam, passarão. Até as moças, oh, as moças por baixo da purpurina e do cetim, também são carne e osso. Ócio. Tudo é possível. Mas nem tudo se pode, disse aquele que me fortalece. Minhas preces sobem e descem, descem e sobem, na partitura. Hoje flutuo, quase voo. As correntes balançam no ar e o som que elas fazem ao tilintar, inúteis e pesadas, é lindo.

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RELICÁRIO Peço um trago. Mais um, e um amigo que me ouça, uma onça que me morda a carne propícia, um vilão que me abrace, um benfeitor que chicoteie, um salvador que castigue. Mas o mundo é grande, e dizem que a vida é urgentemente justa, e que a ninguém é entregue esta chama – que é a Poesia – sem que se inflame antes (e enfim) algo misterioso, guardado inocente num relicário de malvasia, calma e medo, malandragem, pesar, pavor, esperança e um falso, porém enorme, bonito, improvável contentamento.

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VERÃO Haja sol e na pele da tarde o sal das pessoas arde faiscando poderes que apodrecem. Novembro partiu. A primavera estertora nos caules de dezembro. Em breve será carnaval para sempre. Haverá verão, veremos. Os pescadores pecam, levam para casa a raia miúda. Pouco posso reclamar: tenho dores que me confortam e vícios que só saciam aos poucos. Pássaros grandes partem em revoada sobre a lagoa. Os colhereiros, as garças, gaivotas, os maruins, os caranguejinhos chama-marés invocam novas rotas dentro da hora primeira, na órbita dos meus olhos fechados, no centro de uma moita onde o tempo, vilão voraz, vige sem pressa. Faço vista grossa a estes sonhos. Narro num mau poema o que vejo todos os dias neste caminho de minha casa até o mundo dos homens. O resto, resta reluzente.

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SOBRE AS ÁGUAS Algo de mim na alga que se deita sobre a água afaga a maré que vaza sem prazo.

Alguma poesia sobra, soçobra na alga que devagar se deita e afaga a pele de prata deste que morre.

O anzol procura entre os sargaços a carne, o cerne do peixe que só por causa do cansaço

Reza a lenda que é o sal da terra que tempera os mares e é o pó das montanhas que dá a cor dos ares.

do pescador deixa-se levar, fisgado, mas não morto, o peito rasgado de alegria porque vai matar em breve

Assim também é o sal da carne de quem morde os anzóis que dá sentido e sabor ao cerne desse tempo que nos rói.

a fome de quem quer que o leve embora porque agora o peixe é quem nos consome.

Correm as águas, morrem os homens, e o espírito de deus boia sobre as mágoas.

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O CÉU DAS OSTRAS Enxames de olhos vesgos examinam através do rasgo de sol ainda morno que pela axila esquerda do firmamento vaza sobre as casas sentadas à beira-mar nesta cidade vizinha àquela em que estive ontem entre espasmos e risos. Olhinhos pretos percevejam certeiros por ventanelas inúteis: pode-se ver um seio rosado, um lábio mordido, a mão direita crispada, a vulva perolada, o umbigo, o calcanhar, o púbis e os artelhos desenhados na noite onde dormem os astros. Dizem que naquela hora uma concha deitada no deserto mirava o céu, azul de doer, e pensava com os miolos que nunca teve, em fazer um único pedido, um poema, que lhe faria crescer plumas na alma e pelos nos ossos parar rugir como o leão e voar como as águias pois até mesmo as ostras, já quase mortas sonham com este mar imenso, que é o céu refletido no fundo de um poço.

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LAMENTO POR UM IDIOTA QUALQUER É que também os tolos, os idiotas, os brutos e os maus morrem. E amam, sobretudo. Uma vez tenham sofrido, talvez tenham feito uma íntima parcela de algo que possamos chamar de bom, pode ser que tenham sinceramente amado alguém, feito-lhe bem, e conseguido, por descuido dos anjos, um lugar no céu também. Pode ser que o diabo compadecido por eles, tenha reservado no inferno alguma frigideira limpa, novinha, para servir-lhes de berço. Pode ser que um terço de todos os filhos-da-puta deste mundo tenham se arrependido na hora derradeira. É possível que mil imbecis morram hoje sem que suas mães vertam lágrima por eles. Mas é possível também que esses idiotas tenham um amor, de filho ou esposa, de amigo ou de puta, que chorarão copiosamente, sinceramente por eles, como choram (choramos) os mais tolos pelos seus heróis no cinema. É que também os tolos, os idiotas, os brutos, truculentos, os odiosos, os ardilosos, e os que são simplesmente maus merecem o nosso olhar, nosso pesar, e até mesmo nossos poemas.

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MÃE Moça, dizem que teu útero de cristal e betume erra, mas não falha. Ontem eu soube que hoje não saberíamos mais nada e que nossas batalhas estariam perdidas, mesmo antes de declaradas. E ainda assim vencedores se aninhariam em teu colo, no fim da noite imensa que só teu abraço infalível alcança. Dos seixos ignorados fizeram diademas, e entre ramas de sargaço teceram-se as cantigas de uma triste festa, num sabá onde os velhos olvidaram as cenas dos próximos capítulos. Outrora, tuas mamas enormes vertiam memórias, leite,presságios, vestígios de vitórias, amores, sucessos, glórias, fel, breu, toda sorte de pecados, a liturgia dos malandros, o fogo lilás por trás de cada hora, e a lágrima lenta que te ofereço agora. Agora, mãe é um monumento de bronze que na curva desta manhã perdeu o brilho, mas não a magnífica estatura. Mesmo que reinasses linda entre os dejetos dos pássaros e os objetos do mundo, cedestes tuas lantejoulas a homens vestidos de púrpura e outras mulheres, quase despidas, quase tão amadas, e a meninos com mãos de gaivota e olhos de gavião.

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Mãe, estás linda e cantas cirandas encomendadas pelos fantasmas infantes que guardam o meu sono de menino velho. Meus joelhos cansados já nem doem mas eu permaneço como me deixastes até que tua mão invisível colha a minha e me ordene levantar. Tu, que habitas o esquecimento e me olhas do fundo tectônico das minhas preces não tenhas pressa em tragar meus ossos quando chegar a boa hora: estou cansado, mas só por isso corro, fujo, atribulado como um homem de consciência tranquila, pacífico e amoroso como o soldado raso que passa empertigado espezinhando as cinzas das casas. Paciência é tua força mas o teu sorriso também move as cordilheiras, teu bocejo aquece os trópicos, um tremor de tua sobrancelha faz balançar os castelos e os casebres, tua lágrima arrasa todas as colheitas, teu aceno deita ao solo os impérios da terra, teu riso arranca florestas inteiras pela raiz, mãe, antes sofrer a guerra que suportar o crivo do teu olhar descontente ou feliz. [Não há júri ou juiz mais perfeitos que teus olhos.] A sobra da tua mão faz o côncavo onde o sol se guarda, o ferro do teu sangue é a forja de todos os escudos, um vibrato seu voa pelos ares com uma doçura voraz que dobra todas as espadas. Dizem, mãe que estás morta e que meu poema é um canto em vão. Não posso crer, mas compreendo. Tudo o que não tenho devo a ti, querida mãezinha, e o que possuo veio também deste ventre pleno de 72


promessas, e por isso meu poema é um tesouro oculto em meus gametas, selado por um signo forte, inapelável, onde guardo a memória da tua voz, o calor do teu abraço, e o terror aconchegante das tuas profecias. [O resto, mãe, será sempre e tão simplesmente, poesia.]

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ENTREATO As palavras não ditas ficaram grudadas – fina película – naquela manhã ladrilhada de silêncios. Os cães ladraram sem som, e os pássaros passaram apenas, porque é tudo o que sabem fazer por baixo do alvedrio das penas, plumas, pelos e canto. Minhas mãos não procuraram novos engenhos, firulas, mesuras,. Nenhuma ciência desembrulhou mistérios perante meus olhos castanhos, estranhos. Não fiz poema. Qualquer rima seria inútil. Desejei gritar, mas fui educado, magoado, forte em vão. Flácido, fluo. De repente, tudo é fácil. Calar, desistir, retroceder é possível. Toda manhã é uma promessa, uma sentença. Viver é um rio, e é preciso navegá-lo sempre contra a corrente, pra longe do mar, evitando as pedras escondidas pelas marés. Feérica, a hora certa não vem, mas há minutos simples e quase bons, feitos de pedra porosa, erva daninha, pimenta caiena, mexericas mofadas, morangos silvestres, nuvens de cimento, moscas mandarinas, sorrisos de criança, pontes inventadas, abraços de látex, e tempo, tempo, sobretudo o tempo. 74


O tempo bom e rasteiro guardado dentro de um cigarro, uma xícara de café, um olhar por sobre os ombros, um beijo de lábio seco, um poema ruim, uma serpente emplumada, qualquer jardim sem flor, um versinho de amor. Tudo, de fato, é entreato. Tudo o que não foi dito nesta manhã reluziu, reluzirá em festa solene, azulejando nossos salões antes vazios, agora povoados de silêncios festivos demais. Guardemos então este momento áspero e doce pois a hora certa não virá como o pássaro bonito, mas como o míssil voraz e certeiro, sobre nossas cabeças. Há paz no vácuo das bombas e as palavras não ditas ficarão grudadas – fina película - sobre a pele dos sobreviventes nessas manhãs imensas ladrilhadas de silêncios.

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A COLHEITA É preciso arar o céu devagar, olhar dentro das sementes já plantadas, esperar murchar as folhas dos baobás, calar os pássaros de todas as florestas futuras, lamber feridas, abrir abismos como quem roça canaviais com colherinhas de prata,e sobretudo ter paciência, esperança, para que a hora certa por fim nos escape, obscura e gloriosa, conforme prometido. É precioso escolher as rosas mais perfeitas e deixar que sejam pisoteadas na praça, guardar moedas enferrujadas em relicários de cristal, engendrar tecidos com palha dourada e deixá-los sobre a mesa posta, para que a carne das frutas perfume a atmosfera desta sala tão suja onde farejas o arpejo das cordas que apodrecem dentro do poema. Só assim poderemos provar – juntos, mas cada um numa vida separada talvez por um milênio, talvez por um fio de cabelo, uma gota de orvalho, uma palavra de desamor – a gota leitosa e quente que rente escorre, bendita, do ventre da fruta podre que enche apressada os odres da nossa alma, essa alma diversa que se inflama com a paciência nervosa de quem sabe que não pode, não deve saber de quem é a mão que oferta esses versos nesses tempos em que se faz tão preciso [precioso] saber esperar.

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INSOFISMAVEL [ou O CARAMUJO]

Convém explicar a chuva à chuva que acende uma faísca verde no coração da planta que olha e sabe que a água -a mágoaàs vezes não molha? Convém dizer ao mar que todas aquelas estrelas já estarão mortas, muito mortas porém ainda brilhantes quando seu fulgor bater à sua porta? Convém dizer à flor que é flor, e à palmeira que é inteira a metade do amor que o vento lhe traz fazendo dançar as lâminas ocultas em seus cabelos? Convém desfazer as caramiolas, os novelos, os nós que em nós se fazem

tão belos justamente quando o poema quebra o joelho da rima? Conviria explicar à sua (minha) amada que cada dia que não passa é um dia a mais, e os dias amenos só abrasam as traças da minha existência? Convém, enfim explicar assim: que cada minuto de desamor é também um passo em direção a outro tipo, talvez maior, de amor cuja brasa rubra se enterra, se guarda, se perde, e arde num relicário de prata suja que é a alma do amante, esta caramujo de vidro sem casa?

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HIDRA Aceitemos as rosas e seus espinhos. As pedras e os caminhos. A palmeira e a erva daninha. O hálito, o respiro, o oxigênio queimando na sagrada pira, e o mundo que roda, roda, dá voltas, mas não gira: o mundo pára, estaca, olha, mira, mas não vê. O inferno, o eterno, o outro, o estrangeiro e você. O teatro dos vampiros, os tiros na tevê. A paixão e a rotina. O afago, a repulsa. Andrômeda, Cassiopéia, mas também Teseu e a Ursa Maior. O gozo, esposo da dor. Os bandolins e os violões. Um sim com muitos senões. Os turcos, os mandarins, americanos e alemães. As fadas, o fado. As palmas e os safanões. Os santos e os sãos. As tintas e os borrões. Os sonhos e as manhãs. As dentaduras,

as maçãs. As nações e as guerras. A terra, as cercas. Os gatos nos becos. O cinza, o branco e o preto. Os poetas e essa desesperança festiva, quase alegre, regada à palavra e por ela ferida mortalmente. E o verso seminovo, o ovo do filósofo, o magma, o gelo, o feio, o mais feio, e o belo, na berlinda, a linda flor no prelo. O sopro empurrado pelo diafragma, o canto, o pranto e o confete, a festa, o texto, o poema, este poema, esse versinho, essa trova, pó, carvão, diamante, pólvora. A coisa nova, o refrão, o poema, ah esse poema que se repete e se repete novamente, tão ruim, tão bonito, tão aflito, tão valente, repetindo, repetindo, repetido (...) mortalmente. 78


ANTES DO SONO Não sou eu, isto que temos o costume de chamar de meu, meu, meu, ainda que sob um estranho véu de carne e sonho, de sombra e som, e sol, e só. Senão, só estes olhos, dispersos, ventanelas semicerradas segurando a hora última, íntima, como um facho vertiginoso a queimar o tempo antes do sono. Durmo? É preciso morrer aos poucos, sorrir aos poucos, e ver, observar, deslumbrando-se devagar com tudo o que se perde diante do primeiro olhar. É uma pena a gente se gastar tanto gostando tão pouco uns dos outros. Durmo. Uma torre de marfim que arde esplendidamente no horizonte crepuscular me acena, e eu não vejo. Vivo. Os ratos cantam, contam segredos, fazem dos gatos seus brinquedos, tocam jazz, declamam poemas, oram, pedem a Deus que salve suas almas pequenas, e riem do próprio destino. 79


Vejo. Até mesmo os ratos tem seus propósitos, seus ritos. Viver requer uma coragem matreira e uma alegria cega como faca de açougueiro. Estou feliz e finito. Cada minuto de calma, na fotografia, parece uma festa de cegos lambendo celulóides de cromo. Tomo um gole da água ardente deste oceano e o ouro de tuas lágrimas decora, emoldura essa hora, ou ao menos este minuto. Estou feliz pois sou forte e finito. Sonho. Não desperdiço bemóis em meu canto, nem meu latim poderia transbordar em poemas sem uso, coisa pré-fabricada, como casa de marimbondo. Todo animal de asas conhece, antes do voo, o tombo. Há de se ter esperança e desesperar sem pressa quando preciso for seja em guerra, em paz, ou pior - no amor. 80


Espero. Vigio. Tudo no mundo só é bom sem querer. Não sou eu quem diz, quem usa o verso, quem escolhe (acolhe) isto que chamamos meu, meu, meu... mas o breu desta íris é um aconchego, facho de vida que passa devagar como o próton fugidio, fruto maduro que sobra da fissão d'um átomo de carbono: meus olhos pesados, abertos como ventanelas semicerradas, nesta hora última, íntima, ínfima, que me embala antes do sono.

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O POEMA NÃO RESISTE O poema não resiste ao medo do minuto seguinte, à flacidez da carne, ao desemprego, ao vinho demais, ao dedo que acusa, ao verbo que malogra, à frase que, guardada com cuidado, escapa com dolorosa minúcia no meio da noite estilhaçando taças e sonhos. O poema não resiste ao momento em que, lúcido, o amor desiste, cansa, procura um canto escuro, guarda o rosto evitando a luz de um olhar que antes alumbrava, alegrava, mas agora anuncia tempestades, acende luzes fortes num salão de nus grotescos, que se julgavam belos. O poema não resiste. Por isso, não ames como quem faz poesia. Porque poesia é bruma, fumaça branca, a asa vítrea da libélula, o metal brilhante dos olhos das moscas, o ouro que aos poucos verdeja nas ervas e depois vira um ocre pálido que feliz anuncia a sua morte, sorte única de tudo o que é vivo. O vento que conversa entre as maçãs, o açúcar na ponta do ferrão das abelhas, a prece que não se precisa fazer de joelhos, o passo de dança à beira do abismo, os engenhos secretos, higiênicos, ternos, do corpo preparando-se para amar ou para 82


morrer, para o sexo ou para a morte, o sexo, a morte, esta sorte. O poema não resiste ao cimento e ao ferro, ao pão de cada dia, ao remendo na calça, ao despertador das cinco da matina, à repórter bonita na tevê, ao amigo bem-sucedido, ao dia de limpar latrinas, levar o lixo para fora, a conta de luz e gás, a paz dos vizinhos, não resiste à aguardente que rasga as finas vestes do juízo, à festa que nos empobrece a alma, bendita, trazendo espelhos rente o nosso rosto, revelando a feiura do outro, pobre poema, suas mãos vazias pouco podem, nada podem, não evitam perdas e danos, não resolvem os problemas do cotidiano, não libertam, nem despertam na gente qualquer centelha divina escondida talvez entre as cinzas da rima, porque a poesia não nos salva de amar sendo isto que somos: irremediavelmente humanos.

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NOTÍCIAS DO FRONT Os ventos trazem notícias de que há ranger de dentes nas cidades, e que no campo as famílias observam temerosas e as crianças percebem nos olhos dos seus pais uma verdade aterradora feita não de certezas, mas de esperanças cozidas em vinagre, suor e sangue. Não há paz entre os irmãos, embora a máquina do mundo siga em frente, sempre em frente, sobre os corpos dos que tombaram antes da hora. Dizem que nação precisará de braços fortes e de olhos atentos, e de bocas abertas, gritantes. Os jovens veem os velhos com desconfiança, enquanto os mais velhos ainda manipulam a juventude como quem dá vida a bonecos de cordas e madeira. O noticiário não é bom, e a cada hora surge um herói, um vilão. Há pessoas trabalhando, pagando contas, vendendo doces, batendo palmas em rodas de samba, tocando piano, coando café, pintando unhas, fazendo camisetas de protesto em escala industrial, tomando cerveja, comprando sexo, suando em bicas, ouvindo jazz, orando aos santos, pegando onda, remando contra a maré. Diante de tudo isso os poetas perderam a vez, a voz. Não porque estivessem surdos ao ronco da manada, mas porque sabiam que nada poderia salvá-los 84


- nós poetas - de uma derrota retumbante. Os deuses bocejam enquanto os homens se matam. Não poderemos evitar, contudo, que a manhã surja na campina e o sol brilhe novamente sobre todos, os bons e os maus. Enquanto isso, os poetas miram a lua, o cosmo, a estrela sobre o alpendre, o pistilo túmido das flores, as rachaduras entre os dedos do homem forte, os desígnos de deus tatuados nas auréolas das moças, o movimento do mar imenso, o assentar da poeira nos olhos dos velhos, a beleza cruel do gavião e da cotovia, o bordado dos urubus na estrada, a infinitude das almas afogadas numa gota de orvalho. Os poetas, hoje estão calados. Secretamente escrevem sobre o amor e a flor, e tecem rimas bobas, doloridas, sobre tantas miudezas, tantas delicadas coisas, coisas tão mínimas e tão pequenas que não se pode dizê-las nesses tempos tão atarefados, em que a nação parece precisar de braços, bíceps, bombas, eloquências, diligências, cadeados, paus, pedras, delegados, juízes e sobretudo réus. Os céus serão testemunha de que os poetas, estes inúteis, nada fizeram quando a revolução desceu sobre nossa terra como uma noite de aço impenetrável e cheia de alçapões. Os poetas, estes inúteis, estavam ocupados catando cacos de vida entre os escombros. Anotando os matizes da alvorada, as pequeninas variações no silêncio das montanhas 85


e no bocejo do oceano quando a praia traz ao continente a monção paridora de gaivotas. Os poetas, esses inúteis, precisam calar, e assim calados permanecer, porque a revolução importa mais que tudo agora. Importa agora que sejamos fortes enquanto uma sorte horrenda descerra seus dedos gordos sobre nós. Após a guerra haverão poetas mortos, outros presos, muitos caçados ou expulsos daqui. É natural que hajam perdas, muitas, em nossas fileiras. Após a guerra, caso sobre alguma terra sob nossa bandeira, pode ser que os poetas restantes sejam chamados, e louvados por sua inutilidade tão perfeita no vácuo das bombas. É que em seus cadernos o inferno da guerra foi cantado com a doce tristeza e com a invencível beleza das palavras dos que souberam andar no meio da turba como as crianças passeiam nos salões de um baile onde os pés dos adultos esmagam as rosas que enfeitavam a casa. Alguém deve ser fraco e calar para registrar o que será perdido no caminho. Um dia, caso a guerra acabe e os olhos vendados dos soldados se abram de repente, talvez alguém possa lembrar que havia flores, que havia nas ruas antes do golpe, ervas pequeninas, e pardais, e rimas tolas e decididamente necessárias, 86


e poemas enormes, ainda que precários, e debaixo de todas as coisas grandes talvez uma centelha, uma faísca, um grão de pó luminoso, que um dia chamamos de deus. Nesse dia os poetas, esses inúteis, poderão sair às ruas, não como vencedores, jamais como heróis, mas ao menos sem ser investigados, interpelados, questionados, apedrejados. Este será o seu dia da liberdade, quando a luz, a beleza, a esperança, as delicadezas esquecidas pelos fortes serão resgatadas, ainda lindas, guardadas nos relicários frágeis das cabeças ocas destes loucos.

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O SENHOR NA ESCADARIA Desço escadas imaginárias no escuro. Procuro o cheiro verde-metálico das rúculas selvagens, das vulvas virgens, da fuligem dos corpos, das campinas devoradas pelo cimento que arranhará os céus, dos campos com a grama orvalhada e dos santos mofados na sombra silenciosa de uma igreja vazia, terrivelmente vazia. Desço a ladeira do poema em pleno meio-dia. Queria provar o sol que molha de luz as tangerinas, as romãs, enquanto a manhã apodrece resplendendo nos olhos dos peixes da feira. As roseiras mastigadas pelos olhos das moças, os dentes-de-leão em chamas, na foz de uma tarde qualquer, num verão violento, impiedoso, onde milagres são desperdiçados com uma alegria torta e desdentada. Desço esta vida inteira à procura de algo que me valha um sorriso, uma lágrima, uma gota de suor, um piscar de olhos, um gesto, um punho cerrado, 88


um espalmar de mãos, uma oração, mas não acho. O facho que me foge vige no oculto, no distante, no insofismável, naquilo que não possuo nem entendo, mas continua sendo, ou melhor, insiste em ser meu: eis que no poema te escondo e tu me guardas, meu fim, meu começo, esse estranho verso - meu Deus.

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SOB O AZUL Marulha na areia o barulho do mar menor na concha vasta do ouvido interior todas as fábulas, as lendas mais lindas, o orgulho das marés, o perfume, a dor que o peixe fisgado sente, o amor do pescador que o mata, enfim, a prata das ondas resvalando no horizonte de hoje, o maruim dançando na poça, as roças marinhas e as vinhas oceânicas, o torpor, o vento alazão, o aragano, a monção, a reza boa, deixando o ontem para a frente, o futuro para trás, a luz dura que reverbera na vaga avassaladora traçando rimas de sal e sol sob o arrebol deste poeminha marejado, que sobeja, rumoreja, beija a boca seca do poeta que se esvai, afogado, talvez morto, talvez salvo, talvez banido, talvez falido por apostar todas as suas moedas (e seus medos) num lance por outra mão dado, um verso copiado à pressa, este poema pleno, ainda que inacabado.

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ANTIMATÉRIA A chama verde-azulada - que em verdade é feita de noventa e oito mil tons de vermelho aos poucos se apaga, esplêndida como a estrela que vemos agora no oceano lívido da Via Láctea ou melhor, nos seus arredores. No centro, seu umbigo negro engole matéria e tempo. Seu coração rubro pulsa cansado dentro de um cofre de carne, osso e fé. Estamos vivos. É esplêndida e sombria esta nossa condição. As pálpebras pesadas dos homens degolam os caules tenros das manhãs. É bom não negar os engenhos deste mundo: somos todos engrenagens cuja ferrugem atinge mais a uns e menos a outros. Existir é pouco. É preciso ser feliz. Plantei muitos relicários dentro da noite, sob tempestades, entre ramas de pedra calcária, flores de vidro colorido, dolorido, aguardando festas, tragédias, silêncios não proclamados e gritos jamais recolhidos. Quero viver mais um pouco ao lado de quem me ama em vão.

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Tão logo eu me apague, tragam seus olhos para o campo e procurem vestígios, vivos, de que morri. Não encontrarão mais que estrelas, milhares delas, fulgurantes como olhares desviados de um desastre, de repente. Sorrir é o trabalho, o exercício, o vício necessário a cada dia. Há uma alegria nervosa embrulhada no papel pardo do poema. A chama verde-azulada esplêndida como a estrela que vemos agora, com calma se apaga no oceano lívido da Via Láctea, ou melhor, longe dos seus olhares. Cansado, o miolo de luz pulsa insistente, tão brilhante, dentro de um cofre de carne, osso e fé: meu coração. Todos os olhares desviam-se, depois voltam curiosos, furiosos, as órbitas vazadas de paixão. Quero viver mais um pouco, e sorrir o riso trabalhoso de cada dia ao lado de quem me ama em vão.

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À SOMBRA DO MARTELO Verdades líquidas escorrem das falas enquanto não é noite nem dia. Esperanças fugidias fazem ninho em moitas de silêncio e mágoa. Estamos em estado de festa, ou de luto, o que é, no fim das contas, a mesma coisa. Estamos bem como o cristal à sombra do martelo. Descubro cobras e lagartos, de vidro colorido, enterrados no peito d'uma palmeira solitária. Venta: o mar arrebenta contra meus rochedos particulares, minhas verdades, medos, minhas apostas, meus lances de fé e cinismo. Amar, fato registrado em ata, firmado em contratos e lavrado nos autos resvala, escapa quando se tenta retê-lo. Amor, monstro maldito e belo!

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Quanto custa voltar atrás para encontrar a mesma história, renovada em erros luminosos e promessas frágeis e lindas como as algas que se desfazem todas as manhãs, ao chegar à praia? Há verdades firmes como a espuma branca das marés. Creio nelas e no poder de mil fadas afogadas, mortas, decompostas, dentro de uma garrafa de vodka, vinho, ou coisa que o valha. Esses diabinhos guardados nos odres nunca falham. O amor rescinde à fruta podre. Fui romântico em vão, como são e serão todos os poetas fracassados, mas aplaudidos por hordas de paquidermes que nunca dormem. Enorme, o caminho de volta some na poeira do oceano. A pé, à nado, com remos ou braçadas fortes, decididas, não importa, já não posso voltar. Inteira, minha sombra é maior que meu corpo. Morto, valho menos, mas sirvo ainda.

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Servir e amar é quase o mesmo para muita gente. É preciso contar moedas e garantir as incertas vias do viver. Cada vez mais raras essas horas de paz e bem precisam ser compradas a peso de ouro e carvão animal. Assino promissórias. Penhoro relicários de prata suja. O amor falha mas não tarda. Mesmo em vão, não podemos desacreditar do seu poder. Calar, amar, seguir em frente, rente à costa, cortando a pele, a carne, nos corais, nos recifes, nos hábitos pontiagudos, nos costumes afiados, nas horas pesadas de descanso, no armistício do sono, na paz da ausência. Só assim é possível, obrigatório, imperioso viver, sobreviver aos falsos confortos da noite e aos verdadeiros (porém tão caros) prazeres do dia. Para todo o resto há Deus, o dinheiro e a poesia.

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O DEDO DE DEUS MANCHADO DE TINTA AZUL

Talvez eu esteja morto como a luz que beija a pele fria de uma estrela anã ou deveras torto, torto como a linha reta outrora traçada pelo pincel de um holandês apaixonado, de orelha cortada, afogado em azuis de cobalto coruscante e amarelos pungentes, rascantes, deliciosos como a maçã mordida por um casal de bobos, expulsos do paraíso, naquela (nesta) manhã prateada, congelada no dedo (de deus, esperto) que aponta o deserto e com carinho condena. Talvez a pena que escreve persiga a pena que se paga ao fazer o poema: nada, nada pode perdoar essa nossa falha. Sonhei com o umbigo ambíguo de uma quase amiga, a tez branca salpicada de estrelinhas coradas e nas entrelinhas (proibidas) a palavra dada, oferecida com a relutância franca de quem faz uma prece pedindo pressa, muita pressa aos deuses - que voltem logo mas não agora.

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SORTE Cada minuto dourado dura apenas o necessário, então preteja, latejando sob nossa pele. Devoro a hora boa com esses olhos de mirar à toa. Viver é prestar atenção, muita atenção, a tudo o que for colocado ao lado de cada detalhe. O entalhe do morro onde as nuvens se escondem. O coqueiro torto que à direita prepara suas ogivas esverdeadas e suculentas. As lâminas que pendem dos caules; prata, alumínio, chumbo no céu da tarde, pardais, e mais, todos iguais, pedindo haicais aos monges, longe, onde léguas imaginadas nos separam. Um gesto que lança os dados errados, uma curva que nos perde, o pingo de malvasia, o vidro moído entre os dentes, a resposta dada, a chuvinha que arde, a espuma de um cansaço que escorre dos poros, o verso de ouro que a gente pensa, pensa, corre, procura o papel, acha caneta, mas perde a letra. Não dei sorte, venci. Houvesse perdido, sido mais um, seria mais feliz? Escapo. Por um triz não fui. O musgo cresce feliz entre os hábitos da gente. 97


A hera, viçosa, faz parecer alegria o que era apenas descuido. Tudo é bom, e é preciso esquecer-se disso a cada dia, e recomeçar, escorregar, cair, levantar, sorrir, fingir, e chorar como quem aplaude. Todo santo dia uma flecha envenenada me acerta o peito, e eu sorrio, ensaio um salamaleque, e malandro, moleque, sigo em frente dizendo que não doeu. Repare, é tudo verdade, mas nem tudo aconteceu.

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APOLO DEVE MORRER Por uma fresta vê-se o torso de Apolo: o monstro de mármore nu pulsante, o peito encalacrado na imobilidade roça o movimento, a pedra arfante, ofegante, horripilante como tudo o que é perfeito em nossa memória, respira. Apolo, perfeito, criado pelo suor da mão firme do artista, engendrado pela finitude de quem um dia desejou o eterno, deu-lhe mãos e pernas, o movimento belo como a pantomima de um boneco bonito, o arco teso que ensaia, ensaia, por toda a eternidade ensaia o gesto salvador, mas não o faz. Apolo não realiza mas nós por ele o fazemos, inflamos pulmões de ardósia, pedra-sabão, o granito que pulsa, o grito de guerra, a palavra de amor, o escárnio, a repulsa, a convulsa condição de estar parado em movimento. A tez leitosa brilha sob o clarão desta hora: poderoso, as moscas não lhe pousam, não ousam tocar o braço imóvel, o braço forte cujas veias saltadas carregam este sangue azul, que é o tempo. Olhamos, miramos, contemplamos o gigante do alto (ou por baixo) dos seus mil anos e ele nos olha de volta, quase chora, implora que martelemos seu corpo 99


e o destruamos com pesar, com amor, com muita calma. Ele é perfeito e precisa morrer. Eu, finito, bato palmas. É que Apolo, lindo, enorme, magnífico, não ama, não amará jamais. Porque, ao contrário de nós, a estátua do deus é eterna, mas não tem alma.

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OS PÉS DA SEREIA Fazer do mar a cama que transborda, Canto, manto, pranto, o chão do mar. Fugir. Ficar. De repente, um salto. Paisagem de azul cobalto e pedraria vulgar. No olhar adiante a teia dos dias idos e dos vindouros. O ouro que cada folha nova não xa em vida mas, por sorte, volta a fixar na morte. O armistício. Devolver o abraço dado sem os braços, com o olhar apenas. Nego. Trafeguei com fé entre meus próprios demônios. Não venci, e por isso estou redimida, e viva, ainda que afogada. Retiro tiaras, arcos. Os barcos passam, vejo-os como peixes cuja barriga de madeira podre atrai cardumes de bichos improváveis, quem sabe peixes, quem sabe sereias. Entrego meus tesouros por memórias de bem-querer. Ser ou não ser? É possível debridar com calma as feridas da alma ou tudo precisa existir assim como um tenso navegar sobre as mágoas? 101


Saberei respirar na água? Tão distante de ser tão bela sou tua luz negra, namorada, já transfigurada na criatura que elabora o canto mais bonito, som de cristal quebrado nas poças da retina. Canto como quem implora ao mundo que não ouça esse riso-lamento, e danço com minha cauda equilibrista, meus cabelos de ondas negras e olhos pretos e bons, como os olhos da serpente marinha, como a noite no oceano, como o encanto do peixe pelo arpão. É possível perder-se na rotina e se encontrar no labirinto. Por isso canto. Abrir comportas, deixar-se levar. Lavar com palavra os retalhos do existir. No peito maremoto. A in til rosa-dos-ventos. O astrolábio a bei ar mapas imaginários. A cartografia do afeto. O retrato sem luz. A chaga aberta mas sem pus. Navegar: moto-perpétuo. Perder-se é preciso, precioso. Talvez eu tropece e não saiba distinguir a queda e o voo.

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Mas posso, ainda, fazer da alga desgarrada - sargaço boiando na espuma talvez um poema, sol refletido na bruma, olho que flutua no quartzo vidrado na tez da praia. No lugar da cauda, pé humano: invencível para todos os caminhos. Já não será preciso pôr pedras nos casacos. A água salgada não sacia. Pele, pêlo, escama, pedraria. Maresia e sangue agridoce. Fosse eu outra, estaria perdida. Mas meu herói há de vir. O escudo, a espada prateada e as telas de arminho. Meu herói há de chegar no devir do esperado dia e eu, quase inocente fá-lo-ei beijar, devagar, esses meus lindos pés de sereia. [digo, serpente.]

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MÁRMORE NEGRO Reparo que há um veludo muito bem gasto no gesto comum e que sobre o mármore negro do cotidiano há pequenas manchas de contentamento e mágoa. Trago ânforas de cansaço nas costas, espáduas, quadris, artelhos, no espírito e na alma. O tempo flui, pesado, mas veloz, com a calma nervosa dos que morrem aos poucos escorrendo por caminhos tortuosos por veias, vias rubras onde guardam-se tesouros ignorados. A gente sorri, diz bom dia e boa noite, pede desculpas, concede a bênção, dá licença, e sobrevive, por que é preciso [precioso] sobreviver, resistir, fingir que não é dolorida a vida. Há tempo para pisar flores, levantar a guarda, cultivar amores vãos, cavar trincheiras, palavrar poemas inúteis, como todos hão de ser, sempre e sempre. Aquele veludo gasto no gesto comum é que dá sentido a tudo isso. Minhas unhas, desafiadas, arranham o mármore negro do cotidiano, desenhando este verso (talvez o derradeiro) que erra tranquilo, em círculos de virtude e vício. Estou bem. 104


A máquina do mundo mói os dias, mastiga as carnes, torna os anos mais amenos, anos a menos contados a mais, distribuindo acenos que ignoramos se de chegada ou de adeus. Há tempo para pisar flores, levantar a guarda, cultivar amores, cavar trincheiras, palavrar poemas inúteis como todos hão de ser, sempre e sempre, amém. Além disso, faz frio nos trópicos. Estou sereno, mastigando minha maturidade com a paciência dos que morrem sorrindo. Sou um romântico incorrigível e um cínico adorável, eu sei. É uma pena que o poema não faça jus ao fado que viemos ensaiando por tanto tempo. Sentado no mármore negro da poesia tive vontade de escrever e viver mais uns dias. Peço mais uma taça, ensaio uma prece, e deixo que essa bossa nervosa me embale. Não me calo. Versejo, o que é silenciar de um jeito diferente. Estou sereno, mastigando minha maturidade com a paciência dos que morrem, sorrindo. O inevitável não é apenas poderoso: é lindo.

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A garça branca faz graça tendo as plumas branquíssimas e os pés afundados na lama.

De quem ela ri? A quem ela chama?

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Sentada, sobre as mágoas claras da lagoa, tece toscas dobraduras n’alma feitas com precisão, com decisão, mas não com calma.

Ela dança? Equilibra a própria sombra num pé só?

Uma pirueta, duas, três, e o baque seco no chão sem eco.

Palmas, por favor.

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Ônibus lotado. Fevereiro ferve vulvas. É carnaval lá fora.

Cristo crispa a testa. O texto, o rito, o cânon foi subvertido, para o bem dos homens.

A mulher do outro pertence a si mesma.

Mas é também tesouro dos olhos deste que não saberia amá-la pouco.

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Há tantos carinhos, tanta ternura soterrada no coração dos brutos.

No peito válvulas falham, Tendões ralham, embaralham, atrapalham a carne, os pensamentos deslizam como vermes fluorescentes.

Será justo desejar com o espírito e querer apenas de leve com a carne?

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As escolhas pesam como as plumas da asa de um anjo caĂ­do.

Mas se deixasses cair tua mão sobre a minha, ou um sorriso, um olhar daqueles lascivos, como o dos santos martirizados ou dos anjinhos de louça

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algo se inauguraria, impossível, inabalável, incorrigível: da alma aos ossos de uma vez por todas nosso.

Oremos. Haurimos palavras inexatas em outros versos.

[Meu cálice transborda. Acordo. A caravana passa.]

A verve dos cães sobre o asfalto serve de inspiração: viver é saber onde pisa.

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E tudo, tudo o que não for brasa é – de fato – brisa.

Faz sentido alguém amar demais, com força, fé e ternura, mas recusar a procura de um torrão de açúcar sob o lençol. [?]

Aremos estas planícies tão nossas, no outrora.

Um sol novo, há de brilhar. Ou não.

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HĂĄ noites que tambĂŠm merecem ser celebradas.

Um vira-latas e sua sina, ensinam: amar, amar, amar

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n達o exatamente o homem que o alimenta, mas a sua m達o.

A m達o suja que ataca e alisa, que alimenta e reprova, que tateia, que duvida, debaixo de toda lama dever, precisa ser linda.

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A mão que não se lava, pois nesta lógica absurda, ela, suja ou limpa, com pedras ou vazia

precisa mesmo é ser amada

esta mão que mata e afaga.

[A mão que escreve cartas de amor.]

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[Um corte. Um clarão.]

Em redor da palavra bordei bonitas desiluminuras.

Perdi tempo.

Trago tréguas não declaradas.

Trago-te rosas, lindas, perfumadas, espinhosas.

Poesia se faz também (ou somente) assim.

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‘In die tiefe seines bauches nach wörteralgen taucht der dichter am weißen strand des papieres spreiter er sie zum trocknen aus: es wird gebeten das seegras nicht vor seiner zeit zu wenden danke.’ Mergulhando no ventre profundo do oceano a catar muitas algas-palavras o poeta emerge na praia branca do papel e lá descansa, enxugando sal e mágoa, rogando ao tempo não criar musgo sobre seu corpo, antes que ele mesmo possa dizer obrigado.

– H.C. Artmann

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Finalizado na Rua Marina dos Coqueiros 06-A, na Ilha Primeira, nesta cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, num outono frio, sob chuva fina, com muita dor nos tendões sãs mãos, braços e costas, e com a minha sempiterna companheira, a dor de cabeça, junto a uma xícara de chá de erva cidreira, ao lado de minha mulher, d o cão e dos gatos, graças a Deus.

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