Um caso de tombamento: a antiga estação de Londrina

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UM CASO DE TOMBAMENTO: a antiga Estação Rodoviária de Londrina

COMAS, CARLOS EDUARDO

PROPAR – UFRGS. Arquiteto, Doutor, Professor. ccomas@uol.com.br

ALMEIDA, MARCOS

PROPAR – UFRGS. Arquiteto, Mestre, Doutorando. almeida.marcos.arq@gmail.com)

RESUMO

Projetada em 1950 pelos arquitetos João Baptista Vilanova Artigas e Carlos Cascaldi, a segunda Estação Rodoviária de Londrina foi concluída em 1952, recebeu complementação em 1954 e escoramento adicional em 1957, sofrendo reforma cerca de 1970. Tombada em nível estadual em 1975, passou a chamar-se Estação Rodoviária Vilanova Artigas em 1985, após a morte do arquiteto. Desativada em 1988, foi convertida em museu de arte cercado em 1993. O artigo trata da Rodoviária e de seu projeto abordado e analisado desde o encargo, passando pela solução apresentada originalmente bem como a sua transformação ao longo do tempo. Os critérios de restauro e tombamento são discutidos sendo apontados equívocos e apresentadas alternativas para solução.

Palavras-chave: Arquitetura Moderna Brasileira, Artigas, Projeto, Preservação, Tombamento.

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1. UM PREÂMBULO

Projetada em 1950 pelos arquitetos João Baptista Vilanova Artigas e Carlos Cascaldi, a segunda Estação Rodoviária de Londrina foi concluída em 1952, recebeu complementação em 1954 e escoramento adicional em 1957, sofrendo reforma cerca de 1970. Tombada em nível estadual em 1975, passou a chamar-se Estação Rodoviária Vilanova Artigas em 1985, após a morte do arquiteto. Desativada em 1988, foi convertida em museu de arte cercado em 1993. A solicitação de tombamento federal é de 2009, antecedendo a contratação de projeto de restauro com a firma curitibana Arqbrasil em 2010. A execução deste projeto iniciou em 2019 e ainda está em curso. O tombamento federal foi efetivado em 2021. 1 São ciclos de aproximadamente 20 anos: maturação (1950-70), envelhecimento e obsolescência (1970-90), reciclagem (1990-10) e restauro (2010- em andamento).

A Rodoviária foi encomendada e inaugurada por prefeitos da UDN, partido de oposição ao presidente Getúlio Vargas, eleito m 1950. Artigas era filiado ao Partido Comunista Brasileiro. O sócio Carlos Cascaldi era irmão do Secretário de Obras de Londrina. O tombamento estadual salientou os valores históricos e paisagísticos do edifício e da Praça Rocha Pombo adjacente. Os pareceres no processo de tombamento federal eram unânimes quanto à sua pertinência, mas não quanto ao livro no qual inscrevê-lo, se no das Belas Artes ou no Histórico.

2. UM ENCARGO

Como a Estação Ferroviária projetada no lado oposto da praça em 1945 e inaugurada em 1950, a Estação Rodoviária devia satisfazer demanda representativa além da pragmática. O programa pedia uma parada de ônibus ampliada que fosse uma segunda porta para Londrina. Articuladas, a estação de ônibus e a de trem se reportariam à catedral, o templo máximo no centro de cidade fundada em 1934 e então com 3400 habitantes. A Ferroviária, periférica, estendia-se na Benjamin Constant entre São Paulo e Rio de Janeiro. Facilitando a integração intermodal, a Rodoviária seria paralela ao longo da Sergipe, no lado oposto da praça, a duas quadras da Catedral centralizada, uma quadra comercial seguida de outra praça.

A Estação Ferroviária tem telhado elaborado com três protuberâncias frente à praça definindo uma simetria transversal e balanço linear contínuo gerando reentrância frente aos trilhos. Ao fundo, a catedral ou 2ª matriz, alongada igual num platô mais elevado. A referência historicista é popular na Ferroviária e erudita na catedral. A Benjamin e a Sergipe são praticamente planas junto à praça; a São Paulo e a Rio de Janeiro, em aclive para o centro. A primeira igreja matriz é de 1935, como a chegada do trem. A segunda inaugura-se sem torres em 1943. A conclusão das torres é de 1949. Notar a assimetria dentro da simetria do plano da cidade: a entrada da Catedral pela Rio de Janeiro torna esta avenida mais importante que a São Paulo.

Profissional em ascensão, Artigas já operava em Londrina desde 1948. O programa de Rodoviária comporta dois setores principais, os serviços- acessos, bilheterias, administração, depósitos etc.- e as plataformas de embarque e desembarque. Vamos chamá-los, conforme Juliana Suzuki, de corpo e gare respectivamente. Havia precedentes de arquitetura moderna para terminais de passageiros de aviões e navios no Rio de Janeiro, a Estação de Hidroaviões (1937-38) e a Estação para Passageiros de Navios de Cabotagem (1942) de Attilio Correa Lima e equipe. O teto plano é real no primeiro caso e virtual na segunda, que vem com um abrigo de entrada abobadado e platibanda escondendo o telhado de duas águas. Os exemplos de rodoviárias mais substanciosos eram americanos e Art Déco em Nova York e Washington, cidades que Artigas visitara em 1947.

1 Processo de Tombamento provisório da Antiga Rodoviária - Londrina/PR. Processo nº: 01458.000045/2011-30 - 1628-T-11. Relator: Carlos Eduardo Dias Comas. 95ª Reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=SWAsZCyvocc

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3. UM PARTIDO

Dispostos em sequência, como carruagem e parelha de cavalos, corpo e gare somam comprimento igual ao da Ferroviária. Corte, aterro e arrimo geram rua interna paralela à Sergipe um andar abaixo. O ônibus entra na rua interna pela São Paulo, sai pela Rio de Janeiro. O partido maximiza a visibilidade pública do funcionamento da estação. Replicando às protuberâncias e à reentrância da estação de trem, uma marquise avança até a Sergipe e um pórtico se escava diante da rua interna; uma empena balança para a Rio de Janeiro. Marquise horizontal e pórtico vertical definem portais contrastantes. A empena cega reparte os fluxos de entrada e saída. O corpo transparente dá ideia de vitrine, onde a cidade se expõe. A laje inclinada sobe reconhecendo a frontalidade da catedral e reforçando o maior desenvolvimento do centro a leste, que inclui o edifício Autolon e o cinema Ouro Verde dos arquitetos. O Hotel Tóquio, posterior, entra no jogo, última dobra do plano de cobertura.

A articulação entre os dois equipamentos maquinistas e o monumento tradicional é tanto óbvia quanto sutil. Não se vai da Ferroviária à Catedral sem cruzar ou tangenciar a Rodoviária. A marquise e o pórtico saguão da última unem-se em diagonal à entrada da primeira em centro de quadra e à da igreja em topo de quadra. A arquitetura moderna coexiste amistosamente com obras de historicismo popular e erudito, evidenciando respeito pelo contexto e pelo passado, ao contrário do que dizem seus críticos. Segue o exemplo da ABI (1936-39) dos irmãos Roberto e do Parque Guinle (1943-48/51/53) de Lucio Costa, que dialogam com préexistências ecléticas mesmo negando-lhes valor artístico.

4. UMA DE-COMPOSIÇÃO

A sucessão de pares de colunas sob as abóbadas continua sob a cobertura inclinada. Os jogos de oposição e progressão no âmbito urbanístico se reiteram no arquitetônico. A gare é aberta e unitária. O corpo com jeito de vitrine se fecha e decompõe. Para a Sergipe, fachada sul, ele se vê planar no envidraçamento, em baixo relevo considerando os elementos opacos. No bloco de ponta, um painel veda serviços sob administração envidraçada, definindo dois planos sucessiva e minimamente mente recuados do conjunto de bordos coplanares de laje, empena em balanço e platibanda, sugerindo uma caixa suspensa. O bloco maior de meio, transparente e vertical, contém vestíbulo entre bilheterias e rampas, o restaurante acima. Onde o patamar das rampas abriga lojas e cabinas telefônicas, o bloco de divisa mostra plano cego coplanar com o conjunto de bordos antes mencionado, sugerindo outra caixa. Os canteiros inclinam-se apontando para a porta de entrada sob a marquise. As caixas e a platibanda emolduram a marquise numa composição assimetricamente equilibrada.

O arrimo da esquina chega ao alinhamento como pódio de pedra. A estratificação horizontal do bloco de ponta a leste e norte é função do balanço da laje intermediária. A leste, o balanço cobre escada de serviço sobre o pódio expandido. A norte, sombreia o pano de vidro térreo. Tripartida em alto relevo, a fachada norte evidencia a configuração em U do corpo sob projeção retangular. O bloco de ponta encompridado inclui painel que veda a cozinha quebrando a planeza do envidraçamento, similar ao painel correspondente na fachada sul; o pódio de pedra vira embasamento recuado que é parede externa do semi-subsolo. O bloco do meio corresponde ao pórtico saguão, que surge vertical com as rampas ao fundo. O bloco complementar de divisa aparece como caixa correspondente à da fachada sul, em balanço sobre passagem aberta. A fachada norte só ganha brise-soleil em 1954, numa versão em L que não tapa o painel cego na ponta.

As colunas extremas para a Rio de Janeiro se destacam soltas sobre o pano de vidro térreo, mas truncadas pelo pódio de pedra, enquanto outras se perfilam por trás do vidro e da pedra. O pórtico saguão é precedido por duas colunas soltas limitando uma galeria de pé direito e meio de altura, uma escadaria protegida por prolongamento do pano de vidro e um patamar de pé-direito normal, a escadaria e o patamar atrás desse pano. A composição tripartida de elementos de mesma profundidade (galeria/ pórtico/ passagem sob o patamar das rampas) e altura diversa (a galeria e a passagem flanqueando o pórtico de maior altura) constitui

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uma serliana2 distorcida que ecoa e enriquece a composição tripartida do corpo como um todo. No trecho superior das laterais do pórtico, a coluna da galeria se corta por pequeno balanço da laje intermediária e se prolonga frente ao vidro do restaurante; oposta, a coluna da passagem mais próxima do pórtico se prolonga e esconde atrás do vidro no patamar das rampas. O oco da galeria num extremo do bloco de ponta responde à opacidade do painel no outro extremo. A obliquidade dos apoios na fachada oeste conversa com a escad a de serviço da fachada leste. Na gare, as abóbadas conversam com os tetos dos ônibus.

Tem arrimo ao longo das fachadas norte, leste e sul, definindo nesta última pátio estreito de ventilação para o semi-subsolo do corpo, onde ficam os sanitários e o maleiro. A estrutura comporta vão longitudinal central de 6 m, com balanços de 2,20 m. Os módulos transversais são 8,50 m (abóbadas, rampas e pórtico-saguão) e 4,25 m (os demais vãos); o vão inicial com os apoios inclinados junto à São Paulo é 16,50 m. O pé direito básico é 2,40 m e a altura das colunas da gare é 5,15m. O térreo ocupa um retângulo desenvolvido em dois níveis. O nível da Sergipe tem configuração em L de denotações assimétricas e oblíquas. A perna é o vestíbulo, retângulo com comprimento de dois vãos e meio, prolongado pelo conjunto das rampas de igual largura. As bilheterias opostas às rampas fazem o pé do L, outro retângulo comprido de dois vãos e meio, mas de maior largura. O nível da rua interna, retângulo encostado ao vestíbulo e às bilheterias, comporta patamar, escadaria e galeria de largura igual à do pórtico saguão com as rampas de fundo. Limitada por duas colunas soltas, a galeria tem pé direito e meio e vão e meio de comprimento. A escadaria (com coluna no meio) e o patamar são protegidos por extensão do pano de vidro fechando as bilheterias.

A integração de corpo e gare se apoia na comodulação dos vãos transversais e pela alternação de reentrâncias baixas e altas na sequência galeria (pé-direito e meio), pórtico saguão (pé-direito duplo, teto de inclinação variável), passagem sob o patamar (pé-direito simples) e a gare mais profunda (pé-direito duplo, teto abobadado). Artigas faz uso hábil dos vários pontos promovidos (mas não inventados) por Le Corbusier desde 1926 e engenhosamente desenvolvidos pelos arquitetos modernos cariocas desde 1936. Ora aparentes, ora veladas, colunas soltas das paredes sinalizam o esqueleto independente que possibilita a planta e a fachada livres. A limpidez dos planos de teto coopera nessa afirmação de liberdade e essencialidade, redução dos elementos primários da arquitetura à sua geometria elementar. A leveza da estrutura é realçada pela transparência, que recorda a caixilharia corrida de muita varanda luso-brasileira do século XIX. O brise soleil, nascido de inspiração muçulmana em função dos problemas de aquecimento do pano de vidro, sombreia onde necessário com lâminas de espessura mínima. Mas teto-terraço a Rodoviária não tem, reiterando sua condição de edifício especial que convida à viagem, ou ao passeio arquitetônico, como diria Le Corbusier.

5. UM CIRCUITO

O passeio começa com compressão sob a marquise muito baixa, em apoios algo estrambóticos. O vestíbulo surge dual: parte fenda atravessada que se expande na vertical, limitada por colunas colossais presas por cachorros à laje do restaurante, parte é canal baixo sob esta laje. A esquadria em L original permitia ver a sequência aberta patamar-escadaria-galeria; a reforma de 1970 eliminou o térreo em L. Um giro de corpo 90° à esquerda leva às rampas: seja a que vai ao patamar expandido no bloco complementar de divisa prolongando a fenda, seja a rampa que leva a um patamar inferior no nível da gare prolongando o canal baixo. Um giro de 180° no patamar expandido conduz à rampa que leva ao restaurante; no patamar inferior, ao semi-subsolo. Do patamar expandido se pode ver tanto a gare quanto o pórtico-saguão, e antes da reforma a galeria também: expansão vertical seguida de compressão gradual em profundidade do restaurante se vê o contracampo, o pórtico saguão e a passagem sob o patamar expandido levando à gare; uma escada leva à administração. Aberto para o vestíbulo, espaço com algo de atalaia, o restaurante é um clímax opcional.

2 Serliana, conhecida também como veneziana ou paladiana, é um recurso arquitetônico muito utilizado durante o Renascimento e posteriormente no período neoclássico, que consiste em combinar um arco de volta perfeita com vãos retos. Deve o seu nome a Sebastiano Serlio, o primeiro a teorizar sobre esta forma arquitetônica. https://pt.wikipedia.org/wiki/Janela_serliana

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Indo ou vindo do patamar expandido para o vestíbulo, a combinação de obliquidade e verticalidade impressiona. Do vestíbulo, um giro de corpo 90º à direita levava às bilheterias, espaço de compressão expansiva horizontal. Outro giro 90° à direita enfrentava a esquadria original que se transpunha em direção à gare, passando, sob o restaurante, pela sequência de patamar, escadaria, galeria precedendo o pórtico saguão. A descompressão gradual proposta pela sequência patamar, escadaria e galeria virou justaposição abrupta do espaço baixo do térreo e o espaço alto do pórtico- adicionalmente conspurcado em suas proporções pela nova escadaria que nele se constrói. Vistas anteriores à reforma são claras quanto à experiência interna da serliana, mostrando a coluna solta na ponta da galeria, a expansão vertical significativa no pórtico saguão, a rápida compressão na passagem sob o patamar das rampas, e o vislumbre do clímax definitivo na gare em superfície e altura, a que se segue, para alguns, a compressão fetal e final num assento de ônibus.

6. UMA CARACTERIZAÇÃO

Alusões figurativas enriquecem o passeio. Tanto a coluna quanto a obra de arquitetura tem sido identificada com o corpo humano ereto, de configuração tripartida: base ou pedestal, corpo e capitel ou coroamento, e a ideia da arquitetura como extensão do corpo é fato, mais que metáfora. Se isso procede, a Rodoviária é corpo reclinado, com as abóbadas de acolchoado, e o brise-soleil de mantilha, à maneira da Maja Vestida de Francisco Goya. As distorções são vanguardistas, como nas mulheres alongadas de Pablo Picasso (Nu couché au lit blanc, 1946, museu Picasso, Antibes). Instância de antropomorfismo subsumido e suplementar, a fachada leste faz-se uma herma, corpo partido, sentinela guardando a marquise e o pórtico saguão. As abóbadas remetem de um lado a morros em sucessão e de outro a cavernas, habitat primitivo. Evocando arte estrangeira como nativa, paisagens de Paul Klee ou Tarsila do Amaral na década de 1920, esse geomorfismo tinge-se de mecanomorfismo na sobreposição das abóbadas aos tetos abaulados dos ônibus de carroceria aerodinâmica da década de 1940. Os amigos animais tampouco são esquecidos, o louva-deus rápido no bote, a centopeia vagarosa, o joão-de-barro construtor de cavernas artificiais, os burros e cavalos de tração.

Entre as referências disciplinares estão a ordem colossal, o pórtico saguão e a superestrutura figurativamente elaborada do Ministério da Educação (de Lucio Costa e equipe incluindo Niemeyer, 1936-45) e da ABI, assim como a composição tripartida dos dois edifícios e a serliana modernizada incluindo o pórtico saguão . Formas recorrentes afirmam uma linhagem que dá pistas para entender o edifício enquanto equipamento, obra que abriga atos, ações e atividades da vida associada, e enquanto monumento, obra que celebra atos, ações e atividades da vida associada. Formas inusitadas, mas evocativas, despertam interesse, diferenciam o edifício do cotidiano e operam no mesmo sentido. Monumento comedido, a Rodoviária recusa a celebração grandiloquente. Equipamento realçado com sutileza, a Rodoviária não é palácio, mas tampouco é cabana.

7. UM TEMA

A celebração, pode-se argumentar, tem por tema primário o movimento exaltado por um século como sinal de época historicamente distinta e inovadora. Movimento veicular, motorizado, coletivo, rodoviarista, interurbano, interestadual, pedestre, de quem chega ou parte ou vem esperar quem chega e parte, que viaja a trabalho, lazer, para reunião familiar ou estudo, transportado por uma cabina sobre rodas popular, sem o prestígio do automóvel privado, a trajetória comprovada do trem sobre trilhos, ou a tradição do navio remontando ao mito da arca de Noé, a arquitetura naval era até os 1700 um ramo primário da disciplina. O zoomofismo, homem incluído, não é absurdo.

O movimento inclui a viagem eventual e a migração sazonal ou permanente. Londrina é terra de migrantes. Quer se trate de pessoas, bichos, carga e veículos, o movimento se integra à expansão da economia e modernização da vida quotidiana no pós-guerra em termos mundiais e locais. A Rodoviária é fruto e testemunho da prosperidade de Londrina bem como da crescente industrialização do Sul- Sudeste. Ao mesmo tempo, movimento pressupõe assentamento: sentar enquanto se espera ou após adentrar o ônibus,

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assim como assentar, estabelecer um lugar que suporte e proteja a espera, a entrada e a saída , articulado com o assentamento maior que é a cidade. O nômade também para e acampa. A estação celebra a própria cidade nova de que é porta.

De outro lado, nada que foi jamais renasce, mas tudo se transforma, diz Alvar Aalto. Elementos de composição arquitetônica, "corpo" e "gare" não foram inventados em Londrina, mas nas estações ferroviárias do século XIX, duramente criticadas pelos arquitetos da vanguarda moderna por sua dualidade. Arquétipos e tipos persistem por trás de aparências diversas. Plus ça change, plus c'est la même chose. A celebração do movimento e persistência de ideias arquitetônicas ao longo do tempo se acompanha da celebração da transmissão e desenvolvimento de ideias na mesma escola, em que arquiteto ainda jovem de fama mundial influencia arquiteto pouco mais moço, de reputação em crescimento, que trabalha e transfigura as ideias do primeiro e as faz suas.

Tal movimento acontece entre Le Corbusier e Niemeyer, de pai para filho, e entre Niemeyer e Artigas, meiosirmãos, correligionários de partido.3 A obra de Niemeyer atraía Artigas desde "Brazil Builds: new and old, 1652-1942", a exposição e o catálogo do MoMA, pela economia com que manejava as liberdades oferecidas pelo sistema da arquitetura moderna. Tem configuração em U sob laje de projeção retangular nas casas próprias dos dois, com circulação de travessa e vazio elevado entre as pernas. No Rio, o arranjo compreende teto plano, rampas, salão envidraçado, perna defasada de meio pavimento. Em São Paulo, o arranjo compreende teto inclinado, escada, varanda em parte baixa, uma perna mezanino. O prelúdio da Rodoviária é doméstico.

Niemeyer já havia transposto elemento de programa institucional para doméstico- as abóbadas no transepto da Capela da Pampulha (1942-1945) viraram garagem solta no projeto bem difundido da casa de praia californiana Burton Tremaine (1948) na Califórnia. À primeira vista distante do problema londrinense, a Pampulha propunha a referência rica na representação de movimento, não esgotada na Capela. O Iate Clube de cobertura borboleta emula a proposta de Le Corbusier para a Casa Errazuris (1932) usando concreto em vez de madeira e barro ao transpor elemento de programa doméstico para o institucional. Dessa mistura de sede de clube náutico e hangar de barcos, feito casa-barco lançando-se à água, interessou para Artigas a metade frontal: caixa de empena cega sobre pilotis enfrentando a rua e entrada lateral. Na mesma Pampulha, o Golfe Clube remete a outro projeto, o da casa de campo Oswald de Andrade (1938), da qual interessou o volume estreito, a laje inclinada com mezanino sob o trecho mais elevado e a abóbada acomodando pórtico de dupla altura. Casas secundárias, vale reparar, pressupõem movimento de e para a casa principal.

A operação projetual na Rodoviária pode imaginar-se em três atos. O pórtico da casa de campo migra para debaixo da laje inclinada, o volume rota para que a empena cega enfrente a rua principal de acesso à maneira da casa-barco, e uma sucessão de abóbadas à maneira da casa de praia se acrescenta. A ampliação de escala se dá em paralelo, o esqueleto independente final referido à casa secundária maior e coletiva, sede de clube. Si non è vero è ben trovato. Implicando o transporte e transfiguração de elementos niemeyerianos, a Rodoviária aparece também como fruto e testemunho da dinâmica do processo criativo em arquitetura, que não prescinde da interação entre passado e presente, nem da interação entre indivíduo e grupo.

8. UM TOMBAMENTO

3 Como dito por Baxandal (2006): “A palavra" influência” é uma das pragas da crítica de arte. (...) É espantoso que um vocábulo de fundo astrológico tão impróprio tenha tamanho papel em nosso ofício, já que vai diretamente de encontro à dinâmica profunda do léxico. Pois basta atribuir a ação a Y e não a X para que o vocabulário se torne mais rico, diversificado e muito mais interessante: inspirar-se em, apelar a, fazer uso de, apropriar-se de, recorrer a, adaptar, entender mal, referir-se a, colher em, tomar a, comprometer-se com, reagir a, citar, diferenciar-se de, fundir-se com, assimilar, alinhar-se com, copiar ou imitar, remeter a, parafrasear, incorporar, fazer uma variação de, ressuscitar ou fazer reviver, dar continuidade a, recriar, mimetizar, emular, parodiar, fazer pastiche de, extrair, deformar, prestar atenção em, resistir a, simplificar, reconstituir, aperfeiçoar, desenvolver, defrontar-se com, dominar, subverter, perpetuar, reduzir, promover, responder a, transformar, atacar... qualquer pessoa consegue pensar em outras fórmulas. A maioria dessas relações não tem equivalente na direção oposta (quando se diz que X agiu sobre Y e não que Y agiu sobre X). Pensar em termos de influência embota o raciocínio e empobrece os meios de captar essas nuanças mais sutis”

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As considerações feitas não esgotam a riqueza da obra, mas contribuem para o seu entendimento ao detalhar o jogo das oposições e progressões formais que a anima e ao precisar a carga iconográfica a que o jogo se associa para mobilizar sentimento e pensamento. A obra merecia tombamento federal no Livro de Belas Artes, como advoga a maioria absoluta dos pareceres no processo do IPHAN. Trata-se de equipamento urbano que é monumento intencional desde sua concepção, documento pela própria natureza, e não mero equipamento que virou documento dos anos 1950 e logo monumento. A apreciação é bem resumida no parecer aprovado pelo Conselho Consultivo do IPHAN em maio de 2021, que recomenda a inscrição no Livro do Tombo de Belas Artes pelo seu valor artístico enquanto:

obra exemplar da arquitetura moderna brasileira (1950-52), contribuição original do arquiteto João Batista Vilanova Artigas (1915-1985) à tipologia das estações rodoviárias em particular e à caracterização do monumento cívico moderno em geral, através de jogo de oposições e progressões formais que, com eficiência e elegância, coreografa e representa tanto o movimento quanto a pausa; obra realizada com a colaboração indispensável do arquiteto Carlos Cascaldi (1918-2010) e do engenheiro Augusto Carlos de Vasconcelos (19222020), ilustra igualmente o diálogo profícuo da equipe com as realizações da escola carioca em geral e de Oscar Niemeyer em particular, assim como as possibilidades técnicas e econômicas ofertas por um entorno progressista na cidade, no estado e no país.

A poligonal de entorno aprovada reconhece o conjunto urbano historicamente constituído pelas duas estações e a Praça Rocha Pombo. O conjunto não deixou de existir quando a Rodoviária foi convertida em museu, porque a Ferroviária fora desativada em 1982 e convertida em Museu Histórico da Cidade em 1986. Consagrado localmente, o conjunto tem dimensão cultural e social além da urbanística.

9. UM PROJETO

Tombamento não se confunde com restauro, mas os seus termos são fundamentais para definir os cuidados na preservação do bem tombado. O parecer aprovado destaca cinco pontos.

Primeiro, o tombamento do edifício pelo valor artístico do projeto executado de Artigas faz da condição inaugural do edifício a referência máxima, como registrada na documentação gráfica e fotográfica existente e na própria obra. Contrapõe-se, nesse sentido, a tombamento pelo valor histórico, em que o registro das vicissitudes do edifício no tempo tem valor preponderante. O tombamento não visa congelar o edifício no seu estado presente, mas tampouco implica em retorno à condição inaugural de modo absoluto. Apenas define uma hierarquia de preservação e, portanto, de restauro, em que são elementos essenciais o envelope do edifício e a limpidez de seus tetos, paredes e colunas, em sintonia com a "redução dos elementos de arquitetura à sua geometria essencial" endossada por Artigas enquanto arquiteto moderno. Note-se ainda que nem todos os elementos originais tem igual mérito: o guarda-corpo das rampas e a marquise são elementos grosseiros.

Segundo, a preservação requer a conciliação das demandas da rememoração e as da exposição. Uma vitrine não é ambiente favorável para museu de pintura e artes gráficas, reconhece o Memorial Descritivo da Restauração do Museu de Arte de Londrina, da Arquibrasil (2011). A situação se agrava porque os espaços para apoio são pequenos, o auditório improvisado. Contudo, um museu não precisa incluir obras de pintura e gravura, ou pode mostrá-las em exposições rápidas em que os efeitos da luz se controlem com dispositivos leves. Um museu tampouco necessita acervo próprio; pode funcionar como galeria ou centro de eventos artísticos. Além disso, há um ponto em comum entre estação de transporte e museu. Ambos são tipos arquitetônicos em que a coreografia do movimento dos usuários é fundamental. A situação pede a concretização de uma tipologia híbrida, o museu-estação de arte, e a perspectiva para tanto não é desanimadora.

Terceiro, a preservação não é incompatível com a ampliação das atuais instalações. Duas possibilidades se registram nesse sentido. Uma é a construção em subsolo no recuo frontal ao longo da Sergipe. O arrimo na prumada do edifício não oferece maior obstáculo para a abertura de passagem ou passagens vinculando o novo subsolo ao existente e à gare. Outra é a colonização da gare: ela se inspira e respalda na presença

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concreta e fundamental dos ônibus sob suas abóbadas no passado, que acarretava visão entrecortada de seus pilares. A conexão com o corpo pode fazer-se diretamente pelas rampas. As duas operações podem fazer-se separada ou isoladamente. A cobertura da construção em subsolo constituiria um novo jardim frontal. Para além de qualquer vantagem prática, a colonização da gare com construção a seco em metal recordaria os ônibus antigos.

Quarto, o tombamento pelo valor artístico comporta exigências dispensáveis no tombamento pelo valor histórico. A ampliação do térreo no nível da Sergipe destruiu a serliana e arruinou a integridade plástica do pórtico-saguão. A escadaria atual trunca as proporções do pórtico e da coluna de ponta à esquerda. O serrilhado dos degraus avança até o plano da fachada sujando o espaço e desfigurando o seu caráter de remanso, de parada. O guarda-corpo acrescenta mais uma dose de canhestrice. A solução ideal é o retorno à situação original- acarretando a demolição da ampliação feita. O compromisso, em função do custo da demolição e não porque os usuários estão acostumados, como argumenta Arquibrasil, é uma demolição da escada que libere a coluna de ponta. Eliminar o acesso ao pórtico diretamente do térreo ampliado não prejudicaria a sua vocação de pátio de esculturas, sugerida por fotografia recente. A saída do corpo ao nível da gare se daria exclusivamente pelas rampas. O pórtico se comunicaria diretamente só com a gare e o espaço combinando a antiga bilheteria com a antiga galeria não seria cruzado por circulação, o que pode ter seu interesse funcional para o museu. Alternativamente, uma escada menor e recuada em relação à coluna de ponta mencionada pode ser tentada, em metal talvez para marcar a sua novidade, com guarda-corpo em chapa lista e opaca como a dos brises. Se cabe pintar de preto as escoras da São Paulo e esquecê-las, particular atenção precisa ser dada a instalações elétricas e de ar-condicionado. A referência exemplar é o museu de Alvaro Siza para a Fundação Iberê Camargo (1998-2008) em Porto Alegre, onde os planos brancos primam pelo silêncio visual, livres do emporcalhamento por tubulações negras, dutos cinza chumbo, rebaixos de gesso, luminárias móveis e ventoinhas furibundas. A retirada dos aparelhos de ar-condicionado da fachada norte como parte do restauro em curso foi um avanço, mas ainda há margem para refinamento do projeto da ArqBrasil nesse sentido.

Quinto e último ponto, o cercamento do terreno no alinhamento é inadmissível. Neste caso, a obrigação é taxativa. O cercamento presente resulta de uma colocação equívoca, que se aferra a uma solução em vez de examinar o problema que está por trás. É preciso terminar com as intervenções efêmeras que se tornam permanentes, os estrupícios que se arrastam por anos a fio, vidas inteiras, sob o pretexto e a desculpa da reversibilidade, como os toldos conspurcando os terraços do MAM-Rio. Se a questão é segurança, ela deve tratar-se em conjunto com o planejamento do futuro do museu e o seu projeto. A proteção do bem, a executar-se num Plano de Gestão Conjunto com o IPHAN, deve integrar-se a um paisagismo equacionado junto com projeto envolvendo a finalização do restauro em curso nos moldes aqui postulados e a ampliação desse imóvel novo-velho, o Museu-Estação de Arte Vilanova Artigas de Londrina. Na paisagem verticalizada de hoje, que inclui uma catedral mais nova e maciça, a delicadeza do edifício continua ressaltando vista à distância. Cabe esperar que ela ressalte também vista de perto, de fora ou dentro.

Referências Bibliográficas

ARTIGAS, R. C.; ARTIGAS, J. B. V. Vilanova Artigas. São Paulo, Brazil: Terceiro Nome, 2015.

ARTIGAS, V.; FERRAZ, M. C. Vilanova Artigas. São Paulo: Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, 1997.

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8 14º Seminário Docomomo Brasil | Belém, 27 a 29 de outubro de 2021
9 14º Seminário Docomomo Brasil | Belém, 27 a 29 de outubro de 2021
Mindlin, 1956 Cartão Postal, desconhecido, c.1952
10 14º Seminário Docomomo Brasil | Belém, 27 a 29 de outubro de 2021
Figura 4. Ferroviária, rodoviária e catedral. Museu Histórico de Londrina - Autores, 2021
11 14º Seminário Docomomo Brasil | Belém, 27 a 29 de outubro de 2021
Figura 5. O pórtico saguão com colunas soltas limitando a galeria de pé direito e meio de altura, com rampa ao fundo Museu Histórico de Londrina, c.1952
12 14º Seminário Docomomo Brasil | Belém, 27 a 29 de outubro de 2021
Figura 6. Um projeto, o primeiro ponto: tombamento x restauro. Levantamento e comparativo de intervenções. Arquibrasil, 2021 Figura 7. Rodoviária Vilanova Artigas conversão Museu de Arte de Londrina - vista desde a calçada, Avenida Rio de Janeiro. Nelson Kon, 2009
13 14º Seminário Docomomo Brasil | Belém, 27 a 29 de outubro de 2021
Figura 8 Rodoviária Vilanova Artigas conversão Museu de Arte de Londrina - marquise de entrada, rua Sergipe Nelson Kon, 2009 Figura 9. Rodoviária Vilanova Artigas conversão Museu de Arte de Londrina - com a nova Catedral Metropolitana ao fundo. Nelson Kon, 2009

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