:revista 2012 | edição 02
Equipe do projeto em 2012
Curadoria e Gestão de Projeto Daniele Ramalho
Gestão | Canto da Viração Mônica Behague
Boi Brilho de Lucas {RJ}
Joel Rufino dos Santos {RJ}
Hassane Kassi Kouyaté {BURKINA FASO} Coralia Rodriguez {CUBA}
Cia. Deux Temps, Trois Mouvements {FRANÇA}
Equipe de Produção
Rui de Oliveira {RJ}
Martha Bicalho Ana Brasil
Dj Marcelo B Groove {RJ}
Benita Prieto
BNegão {RJ}
Luciano Guirelli
Verônica Santos Renata Souza
Cristiane Guimarães Apoio
Participantes do II Encontro África Diversa de 20 a 25 de maio de 2012
Caixeiras do Divino {MA}
A segunda edição da revista que você temTrês em suas mãosFolguedos traz artigos Brasileiros {RJ} Marias
escritos por palestrantes que participaram do II Encontro África{MG} Diversa, Sérgio Pererê
que ocorreu em maio de 2012, sob o patrocínio da Prefeitura da Cidade do Ana Lúcia Rabelo
Reginaldo Prandi {SP}
Vanessa Alves Rio de Janeiro por meio da sua Secretaria Municipal de Cultura.
Clementino Jr. {RJ}
Design Visual
Marcos Corrêa
Juliana Manhães {MA}
Os textos e as imagens reunidos nesta publicação têm o intuito de
Dona Antônia {MA} Produção Gráfica lorização da memória e cultura de origem afrodescendente e de toda sua diMarcos Corrêa
reforçar a política que a atual gestão vem implementando no sentido da va-
Carlos Daniel Medeiros Cenotecnia
versidade cultural.
Luciano Guirelli
Boa leitura!
Álvaro Souza Fotografia
Celso Pereira Filmagem
Felipe Rodrigues
Walter Fernandes Júnior Edição de vídeo Felipe Rodrigues
Assessoria de Imprensa
Target Assessoria de Comunicação Webdesign
Plano B Design
Realização
Dona Gercy {MA} Seu Dorô {MA}
Emilio Kalil Milton Teixeira {RJ}
Secretário Municipal de Cultura Luiz Carlos Prestes Filho
Camila Soares {RJ}
{RJ}
Pimpolhos da Grande Rio {RJ} Verônica Santos {RJ} Aline Valentim {RJ}
Elisa Larkin Nascimento {RJ} Gustavo Pereira {RJ} Valéria Monã {RJ}
Tânia Andrade {RJ}
Besouro Cordão de Ouro {MG|RJ}
Em mais de uma ocasião ouvi o griot Sotigui Kou-
ditadura - ele não queria que o menino pensasse que seu
yaté, um dos mais respeitados portadores da palavra na cul-
pai estava num presídio por ter feito algo errado, mas que
tura da África Ocidental contemporânea, dizer a pessoas
soubesse que foi preso por sua coragem. Um homem de
que o encontravam e pediam um rápido ensinamento ou
grande integridade, que emocionou cada participante do
respostas às suas questões mais imediatas a seguinte fra-
encontro - e que certamente fará cada leitor desta revista
se: “Primeiramente, você saberá quem eu sou e de onde eu
refletir sobre questões fundamentais da cultura afro-bra-
vim”. E após muitas histórias, conversas, reflexões e ima-
sileira contemporânea. O espetáculo “Besouro Cordão de
gens sobre Burkina Faso, país africano onde cresceu, ele
Ouro” que narra as histórias de Besouro Mangangá nos leva
revelava finalmente aquilo que as pessoas buscavam escutar.
para a mesma direção: da resistência e da luta. Como diria
Sotigui veio três vezes a nossa cidade, ocasiões em que mui-
Guimarães Rosa: “O que a vida quer da gente é coragem!”.
tos escutaram sua palavra.
A cubana Coralia Rodríguez e o angolano Ondjaki,
Na segunda edição do África Diversa, realizada
entre outros artistas, escritores e pesquisadores que parti-
em maio de 2012, recebemos no Rio de Janeiro artistas
ciparam desta edição, consolidaram a abordagem diversa e
como Hassane Kassi Kouyaté, griot, ator e diretor teatral,
consistente que buscamos para o projeto - com novos olha-
que falou sobre a tradição do griot e sua presença na so-
res, questões e reflexões sobre a questão da influência afri-
ciedade contemporânea. Participou do encontro também a
cana no Brasil.
Cie. Deux Temps, Trois Mouvements, criada pelo diretor
A construção sólida deste caminho em parceria com
na França e sua nova criação, o espetáculo “The Island/A
a Secretaria Municipal de Cultura nos permitiu a continui-
Ilha”. Neste espetáculo, vimos em cena Hassane Kouyaté e
dade do encontro África Diversa e a garantia da gratui-
Habib Dembelé, importante ator malinês, que é reconhe-
dade de todas atividades realizadas, um importante passo
cido internacionalmente não só por sua importância no te-
na democratização do acesso aos bens culturais.
atro contemporâneo (trabalhou com diretores como Peter
Esperamos, num futuro próximo, ampliar as ações
Brook) e suas participações em filmes, mas por seu ativis-
para que possamos cada vez mais utilizar os espaços públi-
mo e engajamento político. “The Island/A Ilha” contou a
cos do Rio de Janeiro, assim como iniciar a construção do
história de dois prisioneiros que utilizam o imaginário e o
que chamamos de “a ponte do retorno”, um caminho para
teatro como formas de resistência contra a dura realidade
intercâmbio cultural entre artistas do Brasil e da África, re-
que vivem.
novando o diálogo com o continente africano e reparando
A resistência também foi o tema que permeou a fala de nosso homenageado: o escritor Joel Rufino dos Santos,
uma dívida histórica com as culturas que formaram a cidade e o Brasil.
reconhecido defensor dos direitos humanos, que proferiu palestra sobre seus livros “Na rota dos tubarões” e “Quando eu voltei, tive uma surpresa”. Neste último foram publica-
Daniele Ramalho
das as cartas escritas por Rufino para seu filho durante a
Curadora do África Diversa/Editora da Revista África Diversa
2012 | edição 02
:sumário 9} Homenagem a Joel Rufino dos Santos
46} Ponolani
História de uma menina escrava
17} O Griot Moderno
Coralia Rodríguez
Hassane Kouyaté 54} Tambor de Crioula
24} The Island/A Ilha
ensaio fotográfico de Celso Pereira
ensaio fotográfico de Celso Pereira 63} A caneta é a arma do pioneiro: reflexões
29} Valongo, chão da nossa identidade
Luis Carlos Prestes Filho
35} Alguns aspectos da produção cultural
sobre infância e imaginação Ondjaki 69} Mitologia dos Orixás: espelho para o
da Pequena África: séculos XIX e XX
Milton Teixeira
41} O ridículo e o sagrado do cazumba: uma performance do avesso
Juliana Bittencourt Manhães
mundo em que tudo se repete
Reginaldo Prandi
74} Besouro Cordão de Ouro
ensaio fotográfico de Celso Pereira
Homenagem a
Joel Rufino dos Santos
N
a abertura do II Encontro África Diversa homenageamos o escritor Joel Rufino dos Santos, que conversou com o público. Na palestra, que
contou com a mediação de Cristina Warth, ele apresentou reflexões sobre diversos temas, entre os quais destacamos:
Racismo e prisão Vou começar pelo momento em que acordei para a luta organizada contra o racismo. É claro que, antes, preciso contar, eu senti o racismo como tantos negros no Brasil, mas houve um momento em que dei uma acordada para a questão racial. Foi durante minha prisão política em São Paulo. Éramos 60 homens e talvez 50 mulheres. Havia mais presos políticos que isso, mas estavam espalhados por diferentes presídios, em São Paulo e Ilha Grande. Os presos políticos ficavam numa ala, dentro de um presídio grande. E a maioria esmagadora dos presos comuns era negra. Entre os presos políticos havia um só negro, que era eu. Essa situação poderia ter passado despercebida, mas eu comecei a notar que havia algo estranho, que precisava ser explicado. Um preso comum, que tinha fama de bandido feroz, cruel, sempre que me encontrava na escadaria do presídio me perguntava: - Ô neguinho, qual a tua manha pra ficar com os terroristas? Eu dizia: - Ô rapaz, eu não sou terro-
10 } ÁFRICADIVERSA:revista
ÁFRICADIVERSA:revista { 11
rista, eu sou preso político. E ele dizia: - É tudo a mes-
do movimento negro. Parece muito simples, mas foi uma
talvez fosse justo, mas não a ponto de considerar esta luta
ma coisa! Qual é a tua manha pra ficar com os terroristas?
mudança na minha vida. Logo participei da inauguração
isolada, distinta, separada da luta geral da sociedade brasi-
“Quando voltei, tive uma surpresa” - quem deu o
O que ele chamava de terroristas eram os presos políticos,
do Memorial de Zumbi na Serra da Barriga, que foi um
leira pela democracia. Então, em poucas palavras, era essa a
título foi minha mulher, que foi muito feliz com a ideia.
que tinham conquistado certos benefícios. Coisas conquis-
marco no movimento. Não sei se vocês sabem, mas a Ser-
minha divergência com ele. Uma breve descrição de minha
Foram cartas que escrevi para meu filho. É um livro que
tadas pelas famílias dos presos, como banho quente, direito
ra da Barriga é o local histórico de Palmares. A capital de
vida como militante do movimento negro.
me emociona muito até hoje. Ele pega o leitor pela emo-
a ter uma cozinha e uma visita maior. Enquanto a visita dos
Palmares. Palmares era duas ou três linhas nos livros didá-
presos comuns era de uma hora, uma hora e meia, qualquer
ticos e o movimento negro valorizou Palmares. Na verdade,
coisa assim, nós tínhamos visita de duas horas. Tínhamos
descobriu Palmares. Começou a promover uma espécie de
alguns privilégios, e ele queria saber qual manha consegui
peregrinação anual a esse local, em Palmares. Essa peregri-
para ficar com os terroristas e não com os presos comuns.
nação cresceu, cresceu. Até hoje há gente que sobe a Serra
Esse rapaz se chamava Cidão. Eu tentava explicar, mas não
da Barriga em novembro. Essa foi minha primeira parti-
conseguia. Ele achava que a explicação que eu tentava dar
cipação no movimento negro. Depois, participei aqui e ali
também era uma manha. Eu não me entendia com ele. Até
em algumas instituições. Mas eu sempre fui militante do
que, finalmente, eu caí em mim. Pensei: - Por que, quando
movimento negro crítico. Bastante na contramão. Consi-
se pensa em preso político, nunca se pensa em negro? E
dero o movimento negro uma das coisas mais progressistas,
por que, quando se pensa em preso comum, quase nunca se
mais auspiciosas da sociedade brasileira, mas estive sempre
pensa em branco? É sempre o negro criminoso, ladrão. Esse
na contramão. E eu digo a vocês rapidamente qual era essa
pequeno episódio me deixou ligado na questão racial. Eu já
contramão. Há uma tendência nos movimentos sociais - e
a conhecia, mas a conhecia teoricamente, racionalizava. Por
no movimento negro não é diferente - de considerar sua
exemplo: eu achava que a luta dos negros contra o racismo
luta a mais importantes de todas e de destacá-la das outras.
dividiria a luta política geral do povo brasileiro, dos tra-
Eu nunca pude concordar com isso e, assim, me considera-
balhadores. Funcionaria como um divisor e, portanto, não
va na contramão. Por exemplo: na minha relação com Ab-
interessava. Era isso que eu achava antes. Depois daquele
dias do Nascimento, que vocês conhecem. Todo mundo o
episódio com o Cidão, eu comecei a cair em mim.
conhece como grande líder do movimento negro brasileiro. Eu divergia de Abdias nesse ponto. Era a nossa diferen-
Movimento negro
ça. Eu tinha grande admiração por ele. E Abdias, ao que
Quando saí da prisão encontrei o movimento ne-
tudo indica, gostava muito de mim. Convivemos muitos
gro em plena ebulição. Havia manifestações, passeatas.
ano, até a morte dele. Eu senti muito, mas eu divergia dele.
Isso em 1973, 1974. E aí, claro, eu comecei a participar
Eu achava que ele supervalorizava a luta dos negros, o que
“Quando voltei, tive uma surpresa”
12 } ÁFRICADIVERSA:revista
ÁFRICADIVERSA:revista { 13
ção. Ele não passa de um poema de amor que você vê nas
nossa faculdades... De modo geral, em nossas universidades,
certamente são descendentes das moças tupinambás que
mortalidade no tempo da escravidão era tamanha que, hoje,
entrelinhas; sobre o receio que eu tinha de me afastar de
o aluno se forma e faz pós sem saber nada disso. Se você
foram encontradas aqui e que se relacionaram com euro-
poucos brasileiros descendem em linha direta de africanos.
meu filho. O livro trata disso. Como Cristina lembrou, se
pergunta “por que Einstein foi importante?” ninguém sabe.
peus e negros. A genética já mostrou o quanto isso acon-
Você não vai encontrar. Se você quiser fazer uma cadeia
parece muito com “ A vida é bela”, o famoso filme italiano
“Isso é de outra área”- esta é a desculpa. Então, no livro, eu
teceu, muito, muito mais do que se pensa. Dizem: - Ah, o
genética, não vai encontrar africanos. Vai encontrar africa-
no qual o autor trata de embelezar o campo de concentra-
tento dar uma sacudida em meus colegas. Quando eu digo
carioca não tem nada de índio. Tem muito. Vieram dessas
nos que vieram para cá e tiveram filhos com índios, negros,
ção. Eu não diria que nossa prisão política era um campo de
“quem ama literatura não estuda literatura” quero falar exa-
moças indígenas, que foram o início das linhagens mesti-
brancos. Essa gente é nossa descendência principal. É por
concentração, embora até se parecesse com um em alguns
tamente o contrário. É uma típica provocação.
ças do Rio de Janeiro. Então há isso de bom. Aponta uma
isso que eu não acho tão boa a expressão “afrodescendente”.
coisa boa, a ascendência africana de negros e brancos. Mas
Eu, por exemplo, falo assim, quando me perguntam: - Eu?
tem uma coisa ruim que é saltar de nós, negros de hoje,
Eu descendo de negros, basicamente. Negros trabalhado-
Vou começar por uma referência, pelo livro ”Na rota
para os africanos que chegaram aqui até o século XIX. En-
res, se eu quiser completar. Eu tenho orgulho de descender
dos tubarões”. “Rota dos tubarões” era como se chamava
tre essas duas pontas há ainda o negro brasileiro que viveu
de negros que construíram o Brasil materialmente. Tudo
a rota dos navios negreiros que vinham da África para cá,
aqui do século XVI até o século XIX. É muito comum isso
que temos no Brasil foi construído por esses trabalhadores
Um livro que também marca minha vida é “Quem
para a América. Vocês imaginam o porquê. Era a rota dos
nas histórias dos povos. Historiadores sabem. Você sem-
negros. É deles que deveríamos ter mais orgulho de descen-
ama literatura não estuda literatura”. É um título provoca-
tubarões. Eu escrevi esse livro, que, a rigor, não traz qualquer
pre quer descender de nobre, do mais antigo, do que foi
der. Negros trabalhadores brasileiros.
tivo. Eu sou um grande provocador, um provocador intelec-
novidade, exceto por um fator. Há estudos genéticos muito
rei, do que foi príncipe, do que foi guerreiro, que não foi
tual. Não o provocador policial. Um cara que é de esquerda
interessantes que demonstram algo que, intuitivamente, a
escravo. Mas, na verdade, nós descendemos de escravos já
não é um democrata, mas, de vez em quando, provoca a
gente já imaginava: o negro brasileiro, hoje, descende pri-
brasileiros, já abrasileirados. Tem uma coisa no meio aí, da
Vou dizer a mesma coisa com outras palavras. Se
esquerda com determinados questionamentos, com deter-
mordialmente de africanos, secundariamente de indígenas
qual nós não gostamos de descender, dessa coisa do meio. É
você for à África, verá que é vergonhoso descender de uma
minadas perguntas. Eu sempre interpelei a esquerda. Esse
e terceiramente de europeus. São doses variáveis de mesti-
o trabalhador escravo. Não poderia envergonhar ninguém,
parte dos africanos. Então você é afrodescendente? Cabe-
livro é uma grande provocação, a começar pelo título. Fui
çagem. Aí surge a questão: como designar este negro brasi-
mas envergonha. Ninguém quer descender do escravo. E
ria perguntar: mas de que afro você está falando? De que
professor de literatura nos últimos vinte anos. Depois que
leiro? Há muitas formas de designar. Uma delas é a que se
quem era o escravo? Era um trabalhador. Quem quer des-
África você quer descender? Porque lá você vai encontrar
fui anistiado e voltei para a universidade fui ensinar literatu-
generalizou, hoje, de afrodescente. Eu acho essa expressão
cender de trabalhador? Ninguém quer. Todo mundo quer
generais, golpistas, torturadores, empresários que desvia-
ra brasileira. E esse livro é uma crítica a colegas que ensina-
boa por um lado e ruim por outro. É boa porque aponta
descender de nobres. Mas nós descendemos desse africano
ram ajuda europeia e enriqueceram. Um exemplo mesmo
vam literatura como se fosse nada, como se literatura fosse
a ascendência africana dos negros, a ascendência genética
que foi trabalhador compulsório. Foi escravo. É dele que
é Angola. Se você for a Angola, vai tomar um susto. Você
um compartimento estanque da cultura: os livros, romances,
principal. Mas é curioso perceber que os brancos brasileiros
nós descendemos. Descender de africano é remoto. É por
vai ver que aquela elite negra, empresarial, militar, é o que
os clássicos. Eu achava isso, e continuo pensando assim até
também descendem de africanos. Os brasileiros são, em sua
isso que eu não acho tão boa a expressão “afrodescendente”.
há de pior. Tende-se a idealizar. Ou seja, a África não é tão
que me provem o contrário. Continuo achando que você,
maioria, mestiços. Mas mestiços de quem? Dependendo da
para estudar qualquer disciplina, como literatura, precisa de
área geográfica, da região, são de africanos ou de indígenas.
outra disciplina. Para estudar literatura você precisa saber
Os brancos cariocas, por exemplo. Se eles não fo-
Eu, por exemplo, descendo de negro. Há várias ma-
Existe uma exploração impiedosa de alguns africanos pe-
o que Freud disse, o que Marx disse. Parece óbvio, mas em
rem descendentes de europeus até uma ou duas gerações,
neiras de dizer a mesma coisa. Eu vou utilizar uma delas. A
los próprios africanos. Pronto: o tráfico negreiro. O próprio
aspectos, mas a prisão também é embelezada no livro. Na obra, por exemplo, eu não falo cela, falo quarto. Fez bastante sucesso. Foi premiado, foi um dos livros que mais vendi. “Quem ama literatura não estuda literatura”
Afrobrasilidade e afrodescendência 1
Afrobrasilidade e afrodescendência 3
bonita quanto a gente gostaria que fosse. Porque lá também Afrobrasilidade e afrodescendência 2
há opressão, uma opressão terrível, de negro contra negro.
14 } ÁFRICADIVERSA:revista
ÁFRICADIVERSA:revista { 15
africano vendia africano. De qual africano eu quero descen-
Constituição de 1988, que, quase literalmente, reconhece
no racismo, alguém de uma raça está em alguma posição
ramente, vamos compreender que foi uma injustiça com
der: daquele que vendia ou daquele que era vendido?
que o Brasil não é uma democracia racial. Vejam que eu vou
social, está num determinado lugar, e outra raça está numa
ele, individualmente. Segundo, vamos pedir a este menino
falar da mesma coisa de outra maneira.
outra posição. Ora, mas isso não é mais um fenômeno indi-
branco - se é que podemos pedir - que ele tenha um pouco
vidual. Um acima e o outro abaixo. Isso é problema de outra
de consciência social e veja que, quando os negros tiverem
natureza, é um fenômeno social. Racismo é um fenômeno
uma compensação pelo racismo, quem ganha é a democra-
Cotas Desde o começo do movimento pelas cotas eu me
Preconceito, racismo e cotas
coloquei a favor. O tempo passou, muitos anos se passaram
Veja que falarei da mesma coisa, falando da mesma.
socio-histórico. O Estado deve intervir. Ele tem que inter-
cia brasileira. Aí eu perguntaria a este jovem branco que se
e sou mais convicto hoje do que antes, embora reconheça
No Brasil, pensamos que preconceito racial e racismo é a
vir quando a questão é social. Intervir como? Pondo todos
sente injustiçado: - Você quer uma sociedade democrática
que o sistema de cotas provoque algum ruído, alguns preju-
mesma coisa. Por exemplo: na África, há preconceito racial
para correrem, nesta corrida, saindo do mesmo ponto. É
ou quer manter a exclusão e o racismo histórico brasileiro?
ízos, algumas injustiças. Eu poderia dizer que sou a favor de
em muitas regiões. Na maioria, há preconceito racial contra
por isso que sou a favor de cotas.
Ele vai dizer que é a favor da democracia. Pois bem, se ele
cotas num bloco, como atacado. Sou a favor como política
o branco. Aqui há preconceito contra o negro. Lamentável.
É evidente que, aqui e ali, haverá uma injustiça. Por
é favor da democracia, deve ser a favor das compensações
de Estado. Mas sou contra, em alguns aspectos secundários,
É uma atitude individual, o preconceito racial. Eu não gos-
exemplo: um menino branco que perde a vaga por regime
dadas pelo Estado. Aí ele pode dizer:- Ah, não. Eu tenho
que devem ser corrigidos e se tornar temporários: em algu-
to de negro, não quero negro aqui. Diferente do racismo:
de cotas. É uma injustiça. Não deveria ser assim. Primei-
direto. Está bem. Ele tem direito. É preciso acabar com
ma hora tem que suspender. Vou dizer porque sou a favor:
uma atitude individualista. Mesmo os que sofrem peque-
o Brasil não é uma democracia racial. Isso é um desejo que
nas injustiças, pequenas preterições por conta do sistema
ainda hoje não se realizou. Temos negros, pardos, mesti-
de cotas, deveriam aceitá-lo porque assim o Brasil se torna
ços, toda uma situação racial no Brasil, e eles nunca foram
mais democrático.
iguais. Eles sempre partiram como numa corrida um pouco atrás dos outros. Os brancos partiram sempre à frente dos negros, por exemplo. Num país que tem mais de 500 anos, não se pode falar que negros e brancos são iguais. É ilógico. Ora, se eles não são iguais, não podem ser tratados como iguais. O Estado tem que compensar àqueles que saíram atrás dos outros. É isso que se chama de ação afirmativa ou assistência compensatória, embora o termo prevalescente seja ação afirmativa: colocar os desiguais em outra relação, onde eles sejam iguais. Aí há um mértito. Isso só foi possível após a
Joel Rufino dos Santos nasceu no Rio de Janeiro. É doutor em Comunicação e Cultura, historiados e escritor, com mais de 50 livros publicados. Recebeu do Ministério das Relações Exteriores a Comenda Rio Branco, por serviços prestados ao Brasil. Trabalhou em diversas instituições culturais, sociais e antropológicas de nosso país, como o Museu Histórico da Cidade do Rio de Janeiro. Foi presidente da Fundação Cultural Palmares e membro do Comitê Científico Internacional para a Rota dos Escravos, da UNESCO. Cristina Warth é editora da Pallas, casa editorial focada na produção de livros de temática afrodescendente. Em 2001 participou da formação da Libre – Liga Brasileira de Editora, que congrega editoras brasileiras independentes que organizam a Primavera dos Livros.
Hassane Kassi Kouyaté
A
gradeço primeiramente àquelas pessoas que me deram a oportunidade de estar aqui hoje. Falos de meus ancestrais, meu pai, minha mãe. Agradeço a
eles pela boa ideia de me fabricar e fazer de mim o homem que sou, com todos os meus defeitos e com pequenas coisas para partilhar. Agradeço à equipe que participa deste projeto e a todos que contribuíram para fazê-lo existir. E agradeço sobretudo àqueles que estão aqui nesta noite, que tiveram a humildade de vir me escutar. Vou também agradecer
Transcrição de palestra “O griot na África contemporânea” proferida por Hassane Kassi Kouyaté no dia 22 de maio de 2012.
O Griot Moderno
à minha voz, que faz um trabalho muito difícil. Obrigado. Dizemos que falar é difícil. Dizemos que qualquer
que seja a suavidade de uma língua, ela não pode exprimir tudo que o coração pensa. Então, vou tentar dizer algumas coisas esta noite e partilhar com vocês. Tudo que direi não é a verdade, é a minha verdade. Apenas uma coisa é certa: eu quero partilhar tudo que eu tenho de melhor com vocês. E tudo que tenho de melhor se relaciona com o lugar de onde venho. Eu sou o fruto de tudo isso. Fala-se muito de griot. É preciso saber que a palavra ‘griot’ é um termo colonial. Foram os portugueses que nos deram este nome. Nós dizemos que somos djeli. ‘Djeli’ significa sangue. E ser griot se relacionacom o sangue. É preciso ter um pai griot e uma mãe griotte. Isso se transmite de pai para filho e de mãe para filho. As pessoas confundem muitas coisas. Há pessoas que possuem a função de griot mas não são griot. Há griots que não fazem a função de griot. Eu vou falar. Hoje, griot se tornou um negócio importante. Vou falar disso.
18 } ÁFRICADIVERSA:revista
“Estou aqui para dizer o que é o griot e qual o papel do griot hoje.”
ÁFRICADIVERSA:revista { 19
“Antes não havia dinheiro, mas nós não utilizávamos a troca. Pensávamos em complementaridade. Era diferente.”
Antes, gostaria de contar
sangue na perna de seu irmão. E ele compreendeu tudo: o
hierarquia de griots. E espera-se de nós que façamos a arbi-
namentos atra-
a história do primeiro griot. O
irmão mais velho cortou sua carne para mantê-lo vivo. En-
tragem dos conflitos entre todas as pessoas. Mesmo os con-
vés de contos,
período dessa história, de acordo
tão, o mais jovem disse: - Você me deu o seu sangue, a sua
flitos entre os griots. Mas qual a função primária do griot?
adivinhações
com a nossa tradição, é do quinto
carne para me manter vivo. A partir de hoje, todos aqueles
Ele é, em primeiro lugar, conselheiro do rei, das famílias,
e charadas. E,
ou sexto século. Eram dois irmãos
que vierem de meu sangue vão se colocar a seu serviço, vão
das pessoas, das cidades, de tudo. É organizador de tudo
claro, ele é res-
que caminhavam e marchavam.
contar sua história aos outros, vão cuidar de você, o farão rir.
que chamamos de cerimônias e manifestações do povo. Ele
ponsável ainda
Eles caminhavam. Eles marcha-
Vão estar a seu serviço até a morte deles; e os descendentes
organiza o que chamamos de triângulo da existência, que
pela
vam. Eles caminhavam. Eles marchavam. Eles marcharam
deles serão os servos de seus descendentes.Por isso que o
possui três pontas: a primeira é o nascimento; a segunda,
Vejam, então, que são muitas funções para uma pessoa. É
muito, muito tempo e o mais novo ficou cansado. Eles
irmão mais novo é primeiro djeli; é o griot. As pessoas per-
a iniciação; e a terceira, a morte. E, da morte, voltamos ao
por isso que o casamento acontece dentro da mesma casta.
estavam em pleno deserto. O mais jovem caiu. Eles não
guntavam: - Qual é pacto que vocês fizeram? - É um pacto
nascimento. São as três pontas do triângulo que a gente
É preciso saber que a organização da casta na Áfri-
tinham mais o que comer; não tinham mais o que beber.
de sangue. Então, todos os descendentes viraram djeli. E
reúne na vida. É o círculo da vida. Da harmonia. É por isso
ca e nos mandengues - é a África mandengue que abordo
Ele dizia a seu irmão mais velho, enquanto tentava se le-
nós viemos de lá.
que muitas cerimônias acontecem em círculos.
aqui, porque sou um griot mandengue, daquelas regiões das
distração.
vantar: - Se você tentar me carregar, vamos ficar os dois
Em 1235, nós, os Kouyaté, nos chamávamos Yanku-
O griot tem como missão organizar as cerimônias de
quais falei a vocês. De onde eu venho, as castas não são
no deserto e morremos sem terminar nossa missão. Se eu
mandua. Recebemos o nome Kouyaté em 1235. Kouyaté
nascimento, de iniciação, casamentos, batismo e de morte.
castas superiores e inferiores como as que vemos em outros
morro e você parte, você terminará a missão e assim nossa
quer dizer “há um segredo entre eu e você”. E de onde vem
Mas, entre a vida e a iniciação, há a vida. A vida tem o bom
lugares; são diferentes das castas da Índia, por exemplo.Em
família não terá vergonha. Enquanto o irmão mais novo
o segredo? É uma história que eu poderia contar toda a noi-
e tem o mau. Ele tem que encarar isto e distrair as pessoas.
nossa cultura há castas que chamamos de castas comple-
falava, o mais velho olhava em volta dele e, no deserto, viu
te. Mas não ficaremos a noite toda, então não contarei esta
E como tudo acontece com música, canto e dança, o griot é
mentares ou castas de funções. Há os ferreiros, que fazem
um arbusto. Um arbusto espinhento. E disse ao irmão mais
história. Estou aqui para dizer o que é o griot e qual o papel
cantor, músico e dançarino. Ele é o mediador da sociedade.
instrumentos de defesa. Há os tecelões, que, fazem tudo
novo: - Com licença, vou para trás do arbusto. Preciso fazer
do griot hoje. A partir de 1235, nós e nossos ancestrais, que
Entre duas pessoas, entre duas famílias, entre duas cidades,
que precisamos para nos vestir e portar as crianças. Há os
minhas “necessidades”. Deixou o irmão mais novo lá e foi.
se chamavam Balafassekê, tornaram-se Balafassekê Kouya-
entre dos vilarejos, entre dois países, entre dois continentes:
coreiros, homens que trabalham com couro. Há os cultiva-
Passaram-se cinco minutos, dez minutos, quinze minutos.
té. Meu ancestral era o griot de Soundjata Keita, imperador
a prova é que estou aqui hoje.
dores, que normalmente são os guerreiros. E, no meio disso
O tempo passou e o irmão mais novo pensou que o irmão
do Mali durante o Império Mandengue. É preciso saber
O griot é curandeiro porque ele também é detentor
tudo, há o griot, que cimenta tudo. Para ter certeza que o
mais velho havia partido. Mas, algum tempo mais tarde, o
que o Império Mandengue agrupava o atual Mali, que
da história do povo. E quem fala da história do povo fala
equilíbrio da sociedade vai continuar, dizemos que os fer-
irmão mais velho voltou com um pedaço de carne assada
era apenas sua capital, e também Senegal, Burkina Fasso,
também de seu poder de guerra, seu poder de cura e seu
reiros se casam entre os ferreiros, os tecelões com as tecelãs
e disse:- Olhe, eu achei um rato do deserto. Eu o matei, o
Gâmbia, Serra Leoa e o sul da Argélia. E era dirigido por
poder de organização social. Ele é ainda psicólogo. Em al-
e assim por diante. Poderiam dizer que há problemas de
grelhei e aqui está a carne. Você pode comer. Eu já comi
um imperador que se chamava Sundjata Keita. Balafasse
guns países vamos ver seu psicólogo. Em minha terra, dize-
consanguinidade, mas existem várias famílias de ferreiros,
minha parte. Assim, o irmão mais novo comeu a carne. Ele
Kouyaté era o griot deste imperador, Soundjata Keita. E,
mos que a calma interior começa por uma orelha amiga. O
várias famílias de tecelões sem este problema. Se um filho
ganhou um pouco de força e ambos puderam seguir a via-
desde este tempo, os Kouyaté são conhecidos não apenas
griot é a orelha amiga. Ele escuta. E ele responde com um
de ferreiro se casa com a filha de um tecelão, como garantir
gem. Mas, quando chegaram perto da cidade, foi o irmão
como os griots do rei, mas também como os reis dos griots.
provérbio, um conto e uma adivinhação. E você parte com
que haja um novo ferreiro? A criança poderá ter uma edu-
mais velho que caiu. O irmão mais novo percebeu que havia
É preciso saber que há muitas famílias de griots. Há uma
isso. Dizemos também que ele é a escola. Ele passa os ensi-
cação híbrida e poderíamos perder uma função.
20 } ÁFRICADIVERSA:revista
ÁFRICADIVERSA:revista { 21
“É preciso que nossos filhos conheçam a cultura deles, para saber como eles pensam, para resistir.”
é meu primero filho, este é meu
Hoje, nós, os griots, em combate, decidimos utilizar
cado. Somos tão fortes que, se não tivermos atenção, vamos
primeiro filho. E, assim, os filhos
os objetos e as técnicas contemporâneas para fazer resistên-
abusar deste poder. Somos alguém que conhece a história
dos reis e dos griots não foram le-
cia à globalização. Fazemos o teatro, o conto, a música, o ci-
do povo, alguém que conhece a história das famílias. Seus
vados para as escolas do coloniza-
nema, a escultura, a dança. Fazemos em nossa terra e na terra
segredos. Esqueci de dizer a vocês: nós somos os notários
dor, em primeiro lugar. Mas meu
deles, dos que nos colonizaram. Mas, agora, somos nós que
também. Isso quer dizer que somos nós que dividimos a
avô disse: - É preciso que meu
colonizamos. É verdade. Hoje tudo acontece de outra forma.
herança das pessoas após a morte de alguém, numa família.
filho vá a essa escola. Porque os
O que eu, Hassane Kouyaté, faço? A Europa foi
Hoje, por exemplo, há certas famílias nas quais as pessoas
colonizadores chegaram em nossa
uma espécie de lupa para que eu pudesse ver a minha África
pensam que é é um equívoco terem recebido uma herança.
da, veio aquilo que nós chamamos de moeda. E, mais tarde,
terra e teremos dificuldades para mandá-los embora. É pre-
de modo ampliado, com “zoom”. Dizemos que “se você para
E eu sei que não deveria ser delas, mas tenho que viver com
os colonos chegaram. E não podíamos ter mais o nosso di-
ciso que nossos filhos conheçam a cultura deles, para saber
num lugar e não se mexe um pouco, não consegue ver o que
isso. Porque eu sei quando alguém não é realmente filho de
nheiro. Era preciso entrar na escola, aprender a cultura do
como eles pensam, para resistir. Foi assim que meu pai foi à
há sobre seus pés”. A África também foi para mim uma
uma pessoa, mas filho de um adultério e os velhos fizeram
colonizador. Eles quiseram quebrar nossa organização.
escola. E isso fez de mim, hoje, uma zebra, com uma dupla
lupa, que me permitiu ver a Europa e o resto do mundo.
um pacto de silêncio para manter a paz. Há muitos segre-
cultura: a do branco e a do negro.
Hoje, eu tento fazer a ponte e apreender o que há de bom
dos que eu sei. Tenho à minha disposição quilos e quilos
Quando converso com franceses e entramos em
de todos os lados. Todos os povos do mundo possuem o
de ouro. Como, em minha dificuldade, não fico tentado a
questões de ideologia, eu pergunto: -Você se dá conta de
bom e todos os povos do mundo têm o pior. Porque, quan-
utilizar o ouro que me disponibilizam para ganhar algum
Como naquele tempo o casamento era endogâmico,
que falo contigo em sua língua materna? Eles esqueçem. Eu
do falamos de povo, falamos do ser humano. Em todos os
dinheiro, apenas um quilinho ou dois?
isso nos permitiu manter o equilíbrio em nossa sociedade.
digo: - Você, com sua língua materna, não pode dizer nada
lugares há o humano bom e o humano mau. Os negros não
Não quero fazer o griotismo de modo pejorativo,
A partir do momento em que o dinheiro surgiu, a sociedade
sem que eu te compreenda; porém, se eu falar duas pala-
são superiores a ninguém e ninguém é superior ao negro.
cantar apenas as honras dos homens de Estado, as dos ho-
se desequilibrou. E, então, tivemos de nos reorganizar para
vras de minha língua materna, você não saberá nada. Eu sou
Eu me dei conta de uma coisa. O espaço do diálogo se re-
mens ricos para ter dinheiro. Todos aqueles que têm poder
reencontrar um certo equilíbrio. E, hoje em dia, com a glo-
mais forte que você. Nós damos a vocês a ilusão de sua força.
duziu e, tanto o espaço do diálogo for pequeno, isto será
querem ter um bom griot ao seu lado para usufruir de poder
balização, nós estamos em outro combate.
Mas eu tenho sua cultura além da minha cultura, e você não
interessante para algumas pessoas e fará, nos dois lados, o
político, poder financeiro.
tem a minha cultura; não conhece a minha cultura.
medo crescer. E este medo nos faz esquecer que todos vie-
Antes não havia dinheiro, mas nós não utilizávamos a troca. Pensávamos em complementaridade. Era diferente. Na troca, num dia eu te dou isto e você leva aquilo. Ou você traz isto e eu levo aquilo. A ideia não era esta. Mas, depois, a troca chegou. Em segui-
Os primeiros griots tinham ciência disso. Isso tudo que explico vai nos permitir falar da evolução do griot até hoje. Mas não estamos no tempo de hoje ainda.
O pai de meu pai, meu avô, pai de Sotigui, tinha um nariz. Quando os colonizadores buscaram nossas crianças
Você tem o odor de minha cultura. Você tem a cor,
mos ao mundo entre duas
para levar às suas escolas, disseram: - É preciso pegar os
a casca de minha cultura. Mas você não tem a semente de
mãos, de uma pessoa. Vie-
filhos do rei e os filhos do griot para que sejam exemplos
minha cultura, sua essência. E isso é que eu tenho hoje.
mos entre as mãos das pes-
à população, para que os outros aceitem levar seus filhos às
Posso falar da tradição a que pertenço porque fui iniciado,
soas e partimos nas mãos
nossas escolas.Os africanos, mesmo que alguns pensassem
mas isto não me faz esquecer em momento algum que fiz
de pessoas. Somos todos
que serviam apenas para portar ossos em seus narizes, não
os estudos mais elevados na França. Hoje vivo na França e,
seres humanos.
eram tão bobos assim. Eles mostraram aos colonizadores
quando chego em minha casa, em Paris, chego em minha
os filhos do tecelão, os filhos do ferreiro, dizendo: - Este
terra; normalmente.
Hoje, na África, ser um griot é algo muito deli-
Hoje em dia, somos confrontados por uma parte
“Hoje, nós, os griots, em combate, decidimos utilizar os objetos e as técnicas contemporâneas para fazer resistência à globalização.”
dos griots que venderam suas almas. Nós, os griots, fazemos um juramento com relação à palavra. A língua não tem osso, mas ela pode ferir muitos ossos. Uma flecha disparada por uma língua, mesmo à distância,
22 } ÁFRICADIVERSA:revista
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pode matar. Dizemos que “um homem que tem palavras em
cantar foi banido. Salif descende de um imperador e não
ção, apesar de nos encontrarmos no século da não-comu-
sua boca é o mestre da palavra, mas o homem que permite
poderia ser cantor. Nos dias de hoje, eu, como griot, recuso
nicação e deixarmos de conviver e escutar as pessoas para
que a palavra ultrapasse a fronteira de seus lábios é um es-
este banimento porque ele não corresponde à nossa realida-
usarmos nossos computadores.
cravo da palavra”. Por isso dizemos que “é preciso dobrar sua
de. Antes, nós dizíamos que devíamos guardar o casamento
língua antes de falar”. Para refletir. Dizemos que “quando
entre as profissões para manter o equilíbrio da sociedade.
os pés de um homem o deixam em algum lugar, você pode
Hoje é diferente. Eu prefiro ouvir Salif Keita cantando que
sair. Quando suas mãos te engajam numa direção, você pode
ouvir Hassane Kouyaté cantando. Mesmo que eu seja o che-
retirá-las. Mas, quando a sua boca se engaja, quando sua
fe griot. Se eu canto, chove. Quando Salif canta, a chuva
palavra é proferida, você sairá disto com muita dificuldade.
para. Temos que dar àqueles que têm capacidade os meios
Uma palavra que sai
para que eles façam aquilo que sabem fazer. Com essa jus-
não pode ser reco-
tiça é que devemos nos equilibrar. É o que eu penso sobre o
lhida”. A palavra é o
griot contemporâneo.
“Uma palavra que sai não pode ser recolhida. A palavra é o instrumento primeiro do griot.”
instrumento primeiro
Hoje, anualmente, há um congresso de griots no
do griot. Fazemos um
Mali. Cada família de riot manda uma delegação para
juramento em torno
pensar o mundo hoje e como nós podemos encontrar uma
disto. Mas há muitos
aneira de apoiar a sociedade contemporânea. E, cada en-
griots que utilizam
contro, á em torno de 5 mil, 6 pessoas. Há comitês sociais,
este juramento e o
políticos e econômicos, e tiramos grandes conclusões. Isso-
manipulam. É um
mostra um pouco do que fazemos hoje.
contem-
Poderíamos falar a noite toda, mas gostaria de di-
porâneo do griot. Os
zer uma última coisa,para terminar. Os griots tentam hoje
griots são homens ri-
popularizar ( mantendo sua essência, sua semente) coisas
cos hoje em dia. Não
que são essenciais em nossa sociedade, e, com isso, atingir
são apenas ricos culturalmente, mas também ricos material-
um número maior de pessoas. É por isso que os griots co-
mente, porque os homens ricos e de poder os financiam. Se
meçaram a escrever teses, fazer cinema e assim por diante.
vocês forem ao Mali, verão que as vilas mais belas, localiza-
Hoje, muitos de nós, griots, usamos a escrita, mesmo que
das à beira-mar, pertencem a griots. Há canções que vocês
sejamos os mestres da palavra. Não acreditamos que a es-
ouvem dos griots, as canções de Salif Keita. Vocês conhe-
crita vá contra a palavra.
problema
cem? Salif Keita é da trigésima quinta geração de Sundjata
Acreditamos que, enquanto houver língua e orelha,
Keita, o imperador. É por isso que quando ele começou a
não haverá problema para a oralidade ou para a comunica-
Mas tenho certeza de que estamos voltando para a palavra. Muito obrigado.
Hassane Kassi Kouyaté nasceu em Burkina Faso. É griot, ator e diretor, atuou em várias companhias africanas e teatros europeus e trabalhou com diretores como Peter Brook. Atualmente vive entre a Europa e a África. É diretor artístico da companhia Deux Temps Trois Mouvements, em Paris. É diretor do Festival Yeleen (“iluminação” em djoula) e da Casa da Palavra – Centro Regional das Artes da Narrativa e da Literatura Oral – situada em Bobo Dioulasso, em Burkina Faso.
The Island/A Ilha
JOHN: Você não está sozinho na cela. Eu também estou aqui. WINSTON: Meu Deus! Sabia que eu não tinha nem notado? JOHN: Não devemos nunca esquecer que temos responsabilidades para com os outros.
WINSTON: Fico feliz de ouvir isso... porquee stava prestes a lembrar-lhe que é a sua vez hoje. JOHN: O que você está dizendo? Não foi minha vez ontem? WINSTON: Como é que é? Você não tem memória?
Luiz Carlos Prestes Filho
U
m pequeno fragmento do Cais do Valongo hoje
ato público no Cais do Valongo: uma homenagem póstuma
está protegido e devidamente apresentado ao
ao líder maior de ações afirmativas em defesa da raça negra
público na região portuária do Rio de Janeiro,
no Brasil, Abdias do Nascimento. Naquele dia, o passado
território conhecido popularmente como Pequena África.
e o presente se fundiram num único corpo. Pois, quando o
Devemos a valorização deste espaço aos esforços da pro-
Valongo foi definitivamente descoberto e identificado, Ab-
fessora Tania Andrade Lima, Doutora em Ciências pela
dias faleceu. Portanto, o renascimento do Valongo demons-
Universidade de São Paulo e coordenadora do Programa
trou que Abdias, suas causas e suas lutas não morreram.
de Pós-Graduação em Arqueologia do Departamento de
A prefeitura do Rio de Janeiro criou o circuito da
Antropologia do Museu Nacional da Universidade Federal
identidade africana no Porto do Rio, dentro do âmbito do
do Rio de Janeiro, e – claro – a toda a sua equipe científica.
projeto Porto Maravilha. Assim como o Valongo, foi valo-
A professora afirmou que, para ela, a descoberta do
rizado o Centro Cultural José Bonifácio, espaço dedicado
Cais do Valongo foi a “realização de um sonho de uma vida
à cultura afro-brasileira, o Cemitério dos Pretos Novos e a
inteira”. Gostaria de ampliar a dimensão destas palavras
Pedra do Sal, local emblemático para a afirmação do samba
sinceras. No meu entender, esta descoberta foi a realização
de sambar. Mas por que proteger somente um circuito pon-
de um sonho para todos brasileiros que buscam conhecer
tualmente? Por que não proteger todo o território africano
em profundidade a identidade nacional. A possibilidade
do Rio de Janeiro?
de tocar as pedras pelas quais passaram centenas de mi-
Dentro da Pequena África estão os bairros da Saú-
lhares de africanos escravizados, desembarcados dos navios
de, da Gamboa e do Santo Cristo; os morros da Conceição,
negreiros que ancoravam no porto do Rio de Janeiro, traz
do Livramento, do Pinto, da Providência e São Diogo; a
a oportunidade de sentir ”parte da nossa História que foi
SAARA; as praças da República e Tiradentes; a Cidade
deliberadamente escondida”.
Nova e o Mangue. Dentro de suas fronteiras nasceram Ma-
Foi extremamente simbólico presenciar o primeiro
chado de Assis, Ernesto Nazareth e Paulo da Portela, para
30 } ÁFRICADIVERSA:revista
citar alguns nomes emblemáticos. Na antiga Praça Onze,
O Cais do Valongo durante as escavações arqueológicas,
na casa da mãe de santo Tia Ciata, nasceu o samba; e, no
2011. Os especialistas retiraram as camadas do aterro re-
Estácio, nasceu a Deixa Falar de Ismael Silva, a primeira
alizado durante a 1ª República, início do século XX, que
escola de samba do Brasil.
foram executadas sobre o Cais da Imperatriz, realizado
A denominação Porto Maravilha indica um projeto
no século XIX, para o desembarque da futura esposa de
de transformação urbana – que todos concordam ser fun-
Dom Pedro II, Teresa Cristina de Bourbon-Duas Si-
damental para a integração da cidade com a zona portuária.
cílias. Por sua vez, ao escavar abaixo do Cais da Impe-
Porém, este projeto não deveria rebatizar todo um terri-
ratriz foi identificado o Cais do Valongo. Aos fundos um
tório, sua história e identidade. O Cais do Valongo é um
antigo trapiche, obra realizada pelo engenheiro André
dos fragmentos do que foi a Pequena África. Merece toda
Rebouças, local que hoje abriga a Ação da Cidadania.
ela ser protegida e devidamente apresentada ao público. A proposta do historiador Alessandro Ventura para a criação de um programa que promova uma ocupação cultural completa de todas suas ruas e praças pode potencializar o patrimônio material e imaterial local. Desta maneira, verificamos que a descoberta do Cais do Valongo está avançando sobre territórios e conceitos antes não identificados, ocultos pelos interesses da elite cultural e econômica que não aceita as tradições populares como marcos na formação da nação. O Valongo, desta maneira, muda sua função, deixa de ser somente o cais trágico do passado, passa a ser o porto de um projeto de valorização da nossa identidade étnica e cultural.
Luiz Carlos Prestes Filho é especialista em Economia da Cultura. É autor do livro “A economia produtiva da economia do carnaval” e coordenador do Núcleo de Estudos da Economia da Cultura.
O piso em pedras não alinhadas, irregulares, formavam o Cais do Valongo. O piso de paralelos ordenados, regulares e bem assentados, formavam o Cais da Imperatriz.
A Pequena África
1. Antiga Praça Onze de Junho 2. Casa da Tia Ciata 3. Concentração de alfaiatarias de judeus 4. Mangue (zona de prostituição de mulheres negras e judias) 5. Antiga fábrica de cerveja Brahma 6. Comerciantes judeus e árabes (área hoje ocupada pela Saara) 7. Cais do Valongo
Milton de Mendonça Teixeira
E
studos recentes da história do Rio de Janeiro convencionaram denominar o trecho da cidade oficialmente identificado como Cidade Nova, que vai
da Praça da República até a avenida Francisco Bicalho, de Pequena África, por conta da aglomeração de afrodescendentes na região e nas proximidades. Entretanto, é preciso frisar, nunca existiu um gueto negro à semelhança ao de Nova York ou qualquer tipo de isolamento racial, algo visto em algumas cidades europeias antes da Segunda Guerra. A constituição da população da Cidade Nova esteve longe de ser homogênea. Judeus de todo o mundo, imigrantes europeus e brasileiros também formavam parcelas significativas de sua ocupação, mas podemos afirmar com segurança que, se não se constituiu num gueto racial, era-o do ponto de vista social. A maioria de seus ocupantes estava entre as classes mais baixas da população e, se existiam alguns que podemos considerar dentro de uma classe média, estes não eram numerosos e viviam em condições próximas de seus vizinhos desafortunados. Nesse artigo, pretendo apenas levantar alguns aspectos da ocupação afrobrasileira e sua contribuição para a cultura brasileira.
36 } ÁFRICADIVERSA:revista
Com a chegada da Corte ao Rio de Janeiro, o Príncipe D. João acabou indo residir em São Cristóvão, numa propriedade rural que lhe fora doada por um mercador de escravos. A distância da residência oficial para o Centro velho fez com que fosse criada por decreto de 1810 a Cidade Nova, nome pomposo para
ÁFRICADIVERSA:revista { 37
“Os cronistas relatam que o acesso ao palácio era tão dificultoso que, não poucas vezes, o monarca preferia ir trabalhar de barco.”
Entretanto, os terrenos alaga-
ões regadas a boa comida, nas quais o som era garantido
palco de adaptações aos ritmos africanos, em especial a ca-
diços e baratos somente atraíram ha-
pelos muitos músicos que lá iam, atraídos pelo ambiente
poeira, abrindo caminho para as futuras gafieiras, batizadas
bitantes de baixa renda, em especial
acolhedor.
assim na década de 30 e, desde então, procuradas por gente de todas as cores.
ex-escravos libertos após a Guerra
Dos pioneiros do choro, até os sambistas partideiros
do Paraguai, muitos vindos da Bahia
do século XX, passando pelos cantadores de modinhas, lun-
Baianos fundaram no Morro da Conceição nos últi-
para tentar a sorte na Corte. A cons-
dus e dançarinos de maxixe a casa de Tia Ciata tornou-se
mos anos do século XIX os ranchos, grupos de danças po-
trução, em 1851, de uma fábrica de
um centro de cultura afro que se espalhou, de início, pela
pulares de matriz religiosa, inspirados nos cucumbis e que
gás, seguida pela estrada de ferro e da
Cidade Nova e, depois, por todo o Rio.
desfilavam durante o período natalino, quando louvavam
ampliação do porto e dos negócios
Já na década de 1880, nenhuma festa popular do-
o nascimento do menino Jesus. No alvorecer do novo sé-
definir os pântanos e mangues que iam do Centro até o
da área central da cidade, garantiu emprego a essa gente,
méstica ou pública podia prescindir dos conjuntos de choro
culo, despidos do sentido religioso, passaram a desfilar nos
bairro real. Os cronistas relatam que o acesso ao palácio era
sem necessidade de grandes deslocamentos.
da Cidade Nova, inclusive as produções teatrais da Praça
festejos de carnaval, granjeando imenso sucesso, imitados
tão dificultoso que, não poucas vezes, o monarca preferia
Mesmo antes de 1850 há registros da presença de
Tiradentes. José Antônio da Silva Callado, admirador e tal-
por toda a cidade, das zonas Norte e Sul, influenciando
ir trabalhar de barco. No decorrer do século XIX a região
grupos de negros que ali se reuniam para realizar suas festas
vez amante da maestrina Chiquinha Gonzaga, populariza-
posteriormente na década de 20 a formação das primeiras
recebeu melhorias, mas nunca se tornou um local atraente
e batuques, e não são raras as referências em que a polícia
ra o ritmo na década anterior, adaptando as modinhas com
escolas de samba. A própria Tia Ciata fundaria um rancho,
para uma elite Imperial. Lixões e aterros cobriram os char-
era convocada a reprimi-las, em especial as danças do jongo
os lundus urbanos. Chiquinha levaria o ritmo ao paroxismo
o Macaco é Outro, para brincar com a ofensa de um desa-
cos, proibiu-se a criação de animais e, em 1815, foram cor-
e a capoeira, ambas pelo barulho dos tambores e alaridos
contagiando os salões da elite, que começava a aceitar com
feto. Mas sua morte, em 1924, aos 70 anos, não a permitiu
deadas diversas ruas. No Império, seria criado o Largo do
que incomodavam não só os moradores de São Cristóvão
reticências as danças e músicas populares. Pouco depois sur-
conhecer os primeiros desfiles de escolas de samba.
Rocio Pequeno, rebatizado em 1865 para Praça Onze de
como os nobres que vinham de outros cantos visitar o im-
ge o novo ritmo da Cidade Nova, o maxixe, dança e ritmo
Quanto a estas últimas, pode-se dizer que o samba
Junho, efeméride ligada à batalha naval que deu a suprema-
perador.
populares de passos rápidos e sensuais, inspirados no lun-
surgiu do amálgama de ritmos negros trazidos ao Brasil nos
cia ao Brasil na guerra contra o Paraguai. Em 1848, o largo
A concentração de negros oriundos da África Oci-
du e na capoeira de Angola, cujos trejeitos mais licenciosos
últimos três séculos permeados pela música urbana moder-
ganhou um chafariz projetado por Grandjean de Montigny
dental no entorno da Praça Onze de Junho foi acentuada
chegaram a irritar as autoridades eclesiásticas que tentaram
na. Quando Donga registrou o primeiro samba, em fins de
e, em 1872, a primeira escola pública da cidade, a São Se-
pela presença das “tias”, baianas ialorixás do terreiro de can-
proibi-lo sem sucesso. Nair de Teffé, primei-
bastião. O mangue já havia sido regularizado em 1854 por
domblé de João Alabá e líderes comunitárias locais. Uma
ra dama da Republica, causaria escândalo ao
um grande canal aberto por iniciativa do Barão de Mauá,
delas, Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata, moradora da
tocar o “Corta Jaca” de Chiquinha Gonzaga
e seria arborizado 25 anos depois com frondosos renques
Rua Visconde de Itaúna desde o terceiro quarto do sécu-
num violão em 1914 no palácio presidencial.
de palmeiras. Duas linhas de bondes puxados a burro já o
lo XIX, ganhou notável ascendência sobre os demais, haja
Os clubes de dança começaram a surgir
percorriam em 1873, facilitando o transporte popular pela
vista não só sua importância como mãe de santo no terrei-
na mesma década na Praça Onze, onde negros
região. A Central do Brasil já circulava suas composições
ro como sua imunidade, garantida pelo fato de seu marido
rejeitados pelos clubes da elite fundaram seus
desde 1858, e próximo a ela passariam, em 1878, os trens
ser funcionário da polícia, sempre infensa às manifestações
próprios estabelecimentos. De início desejosos
da Estrada de Ferro Leopoldina.
de cultura popular. Em sua casa eram organizadas reuni-
de imitar os bailes da corte, logo tornaram-se
“Foi, portanto, o samba fruto da cidade e não das senzalas, se bem que sem estas ele não existiria.”
1916, na Biblioteca Nacional, ele em verdade criara um maxixe, cuja maior parte da música fora moldada na casa de Tia Ciata, por uma plêiade de compositores. Não foi o primeiro maxixe a ser denominado samba, mas foi o que fez mais sucesso. “Pelo Telefone” denunciava o antigo problema da corrupção policial,
38 } ÁFRICADIVERSA:revista
então muito comentada à época e combatida pelo jornalista
samba na Praça Onze de Junho. Eram mais blocos que
minadas do mapa com a abertura da Avenida Presidente
Irineu Marinho, que chegou a montar uma roleta de jogos
escolas, sendo que o efetivo de algumas não ultrapassava
Vargas, logradouro que homenageava o líder que os apoia-
Mas a semente fora plantada e logo germinaria. O
no largo da Carioca, defronte às forças policiais. Foi, por-
50 participantes. Contudo, eram novos tempos. O Estado
ra anteriormente. Como uma gigantesca plaina, o Estado
samba ressurgiu das ruínas, os desfiles só fizeram crescer em
tanto, o samba fruto da cidade e não das senzalas, se bem
Nacional surgido após 1930 buscava o apoio dos trabalha-
destruía toda a Pequena África, e a perda material não foi
importância, e, para eles, seria afinal erguida, em 1983/1984,
que sem estas ele não existiria. Nos anos 20, os composito-
dores para consecução de seu programa de modernização
pequena: quatro igrejas coloniais, uma sinagoga, duas pra-
uma avenida que restituiria o local a seus devidos donos.
res da Pequena África foram moldando o samba moderno,
da sociedade brasileira e os sambistas aceitaram essa aju-
ças e parte do Campo de Santana, o edifício da Prefeitura
O Monumento à Consciência Negra, chantado nos
ou “corrido”, como então o denominavam. Em 1928, quan-
da política sem relutância. Samba não era mais assunto de
e as casas de negros, judeus, imigrantes, etc. Boa parte dos
anos 80 onde existiu a Escola Benjamim Constant, ape-
do Ismael Silva e outros fundaram no Estácio a primeira
polícia, e a parceria Estado-escolas de samba começara e
moradores se mudou para o morro vizinho da Providência,
nas comprova que a Pequena África recusou-se a morrer,
escola de samba, a Deixa Falar, o samba moderno já estava
prometia aumentar.
onde, desde 1897, existia uma pequena comunidade fave-
tendo-se mantido como referencial inalienável da cultura
A vitória do desfile da Estação Primeira de Man-
lada. Referenciais importantes da cultura negra foram de
popular carioca.
gueira em 1932 jamais poderia permitir conceber aos mo-
um dia para outro suprimidos, a tal ponto que, até nos dias
Em 1932, com um tímido apoio da Prefeitura do
radores da Pequena África que, dez anos depois, a Praça
de hoje, o passante da Cidade Nova não imagina que an-
Distrito Federal, ocorreu o primeiro desfile de escolas de
Onze de Junho e boa parte da Cidade Nova seriam eli-
tes daquela avenida cercada por desertos de terrenos vazios
sedimentado como ritmo popular e começava a ser aceito, ainda relutantemente, pelas elites.
existiam ruas cosmopolitas, fervilhantes de gente.
Milton Teixeira é arquiteto, professor e historiador, com muitos trabalhos publicados sobre a História do Brasil, em especial a do Rio deJaneiro. Consultor da Rede Globo para assuntos relacionados à História.
Juliana Bittencourt Manhães
O
bumba-meu-boi no Maranhão é a maior manifestação popular do estado, envolve, o ano todo, milhares de pessoas que trabalham e brincam
em louvor a São João, tendo como princípio fundamental o ciclo festivo, que vai da aleluia à morte. O cazumba é um personagem dos bois da região da Baixada, território com campos baixos, que alagam na estação das chuvas. As cidades vivem metade do ano rodeada de campos que depois viram lagoas. São bois com um ritmo cadenciado pela presença do badalo1. Há ainda pandeirões menores ou caixas, enormes chapéus bordados com penas de ema e o cazumba. É uma figura mascarada; sua indumentária é chamada de bata ou farda. Trata-se de um vestidão cheio de bordados e coloridos com um cofo2 de palha usado na cintura, formando uma personagem grotesca, com uma bunda enorme que balança. Numa mão leva um badalo, tipo sino de boi, avisando que o bando de cazumbas está chegando.
ÁFRICADIVERSA:revista { 43
Mestre Abel Teixeira, artesão, cazumba e mentor, que me incluiu na roda do boi como brincante3 dde cazumba, diz que “a careta parece com um bicho, tem feições tortas, não é para ser certinha, porque é feito na risca do olho”. É uma máscara com expressão animalesca, que assusta, incomoda e ao mesmo tempo traz o riso, dizem que pode ser homem, mulher ou bicho, que vive no “reino do entre”. É chamado também de espírito da floresta, carregado de mistérios e simbolismos, tem a função de iniciar a brincadeira, abrindo a roda e brincando com a plateia. Quando todos os brincantes formam a roda da brincadeira, os cazumbas preenchem o miolo com o vaqueiro, a onça, a burrinha e o boi, realizando uma performance com liberdade de ges-
“a careta parece com um bicho, tem feições tortas, não é para ser certinha, porque é feito na risca do olho”
tual e movimentação ese comunicando com o público, interagindo com qualquer personagem da brincadeira. O entendimento do cazumba é híbrido, cheio de dualidades. Portanto, induz a algumas suposições e questionamentos a seu respeito, partindo de sua movimentação e relação dentro da roda do boi e atuando nos rituais de batismo e morte. O cazumba é um mascarado, oculta sua verdadeira identidade, comete ações que são proibidas por outros personagens. Viola algumas regras, é considerado um transgressor. Mas, como é compreendido neste lugar do esquisito, do estranho, e transita entre o religioso e o profano, ele é aceito e respeitado, ocupa o lugar do ridículo e da comicidade, sua função é fazer graça e trazer o riso. O cazumba é uma figura liberta e desmedida, seu limite transborda. Segundo Bataille, “o limite nos é dado senão para ser excedido.”(BATAILLE, 1987:135).
“O cazumba é uma figura liberta e desmedida, seu limite transborda...”
Que lugar é este que ele ocupa, permitindo preencher duas funções ao mesmo tempo? Ser ridículo e sagrado, sentir medo, atração e fascinação, tudo junto? É sobre este confronto que pretendo me debruçar, acreditando que a dualidade é ambígua e tem uma lógica que não é a tradicional. A tradição é concebida através da construção de um conjunto de valores da sociedade. Nas festas, a tradição é a garantia da consciência histórica e da continuidade. A festa e a brincadeira são lugares que modificam a realidade das coisas, por pertencerem ao tempo do sagrado. A máscara é um objeto que esconde a face e, por isso, foi perseguida pela Igreja por
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muito tempo, associada a rituais diabólicos e recriminada pela sociedade. Desde então, a máscara é questionada como um lugar de poder, que se encontra nesse diálogo entre o homem e seus deuses ancestrais. A máscara confere autoridade, autentica e legitima o ato ritualizado. O ato estético e simbólico de se mascarar, disfarçando o “eu” convencional e desnudando o gestual corporal, traz um estado de predisposição e entrega ao brincante o personagem que ele vai ser, imbuído de muitos fun-
“(...) sobre a relação do cazumba com o reino do entre, (...), fica-se no precário da incerteza, tem mais liberdade e traz a questão da escolha, não tem um modelo, ocupa um lugar de reinventar.”
mim, a boa é assim. Pra brincar cazumba, tem que ter a condição de se arrumar.” (MAZILLO, 2005:119). O feio também tem uma condição para ser bom, necessita de uma arrumação para se legitimar no lugar da feiúra, que tem a ver com a diferença, está ligado a uma experiência sensorial mais selvagem, crua, rude, incontrolável e assustadora. Já a beleza seria uma experiência sensorial afetiva que a gente consegue filtrar e que, no feio, é difícil digerir. Não é que o cazumba seja feio, mas
damentos e mistérios. “A máscara contém uma síntese de
ele ocupa uma posição que traz sensações mais de horror
bases históricas, política e religiosa” (LODY, 1999:11).
que de prazer para quem vê; ele amedronta pela sua careta
A máscara do cazumba tem um estilo bem diverso, cada brincante faz sua invenção. O cazumba e artesão Zi-
e faz rir por ter um corpo engraçado e atitudes diferentes, mas é este espanto que se espera dele.
mar, da Turma de João de Pixilau, do município de Mati-
Outro questionamento importante é sobre a relação
nha, Baixada Maranhense, apropria-se do seu jeito de fazer
do cazumba com o “reino do entre”, permitindo um sentido
careta e mostra que mesmo a expressão feia precisa estar
abstrato, que, apesar de ser julgado como inferior, é susten-
arrumada, é necessário ter um cuidado, condição. E, para
tado pelo valor simbólico, fica noprecário da incerteza, tem
a brincadeira rolar solta, é preciso ser espontâneo: “A pri-
mais liberdade e traz a questão da escolha. Não tem um
meira careta que fiz foi aquela que tem um narigão. Depois,
modelo, ocupa um lugar de reinventar.
fiz essa que tem uma cicatriz. Eu vou fazer essa bicha com
A nobreza do cazumba está na possibilidade de des-
o queixo torto. Vamos dizer, pego um talho, os pontos, e
pertar diferentes sensações. Mesmo sendo estranho provo-
faço a cicatriz. Vou botar um tumor, pra dizer que é um
ca alegria, e essa capacidade de rir nos aproxima dos deuses.
tumor. Pra uma careta ser boa, ela tem que ser feia. Pra
Mas, como sua comunicação é no gestual, seu entendimen-
“Pra uma careta ser boa ela tem que ser feia. Pra mim a boa é assim. Pra brincar cazumba tem que ter a condição de se arrumar.”
46 } ÁFRICADIVERSA:revista
ÁFRICADIVERSA:revista { 47
to é cercado de simbolismos e nos recoloca diante da nos-
mundo sagrado, que são as duas formas complementares.
Além desse momento da roda da brincadeira, o cazumba
seguindo trazer a pureza de mostrar o seu próprio ridículo
sa mais pura essência animal. O cazumba tem histórias de
O mundo sagrado é o mundo da festa, dos soberanos e dos
é encarregado, com Pai Francisco, de criar e improvisar os
e mantendo uma performance viva com sua gestualidade
atrapalhar até a reza na hora do batismo do boi, mas, por ser
deuses. A festa é por excelência o tempo sagrado!” (BA-
diálogos e as toadas que serão cantadas, indicando que o
cômica, trazem a alegria e o prazer da vida e engrandecem
uma figura cômica, seus atos são admitidos; ora transgride
TAILLE,1987:63).
boi será preso até sua morte simbólica, efetivada na dis-
o gosto de poder dar uma boa gargalhada sem exigir um entendimento lógico.
com suas brincadeiras e ora se torna objeto sagrado; conse-
Alguns brincantes dizem que, no ritual da morte, o
tribuição do vinho, que representa seu sangue. Morre um
gue se comunicar no “reino do entre”, ou seja, da permissão
cazumba atrapalha o vaqueiro na hora de laçar o boi, outros
boi de verdade, que serve de alimento para a comunidade
O ridículo e o feio no cazumba simbolizam a possi-
dos excessos, entre o tempo sagrado e o tempo profano.
dizem que o cazumba é o responsável pela matança do boi,
participar da festa, e morre o boi simbólico bordado, o boi
bilidade de conviver com uma realidade do avesso e, dentro
É profano porque faz parte de um cotidiano, o boi
ou seja, ajuda o vaqueiro a laçar o boi e a prendê-lo no mou-
de brincar para São João. Nos rituais de morte, o cazumba
deste lugar, é permitido transgredir. É a partir desta mu-
funciona na vida das pessoas envolvidas como um ciclo. O
rão. Uma informação poderia anular a outra, mas, tratando-
tem responsabilidades na representação, cantando e dando
dança de perspectiva que sobrevivem os seres que estão no
ciclo do boi se entranha nessa vida e na maneira de se or-
-se do cazumba, é a soma dessas histórias orais que auten-
direção à história, e na maneira como executa sua perfor-
“reino do entre”.
ganizarem, isso permite pensar que o tempo profano é o
ticam sua personalidade; o que importa são estes equívocos
mance enrolada e espalhafatosa.
que está fora dos momentos de ritual, mas que pode estar
sobre o que de fato ele é. Estes sentidos são o alimento para
O cazumba traz elementos estéticos e funções que se
associado e imbuído dele, como nos momentos em que a
o brincante cazumba se imbuir de liberdade na execução de
afinam com a ética de brincadeira exercida pela figura do
festa ainda não começou de fato, mas nos quais já existe
sua gestualidade, sua movimentação acontece no formato
palhaço, através do seu revés. “O palhaço é um transgressor,
um enorme engajamento coletivo com a criação de novas
de um cordão ou uma fila com um bando de cazumbas,
um excêntrico; está fora dos eixos, das regras, da lógica, do
1. Badalo ou chocalho é o instrumento característico do personagem do cazumba, é
toadas, o aperfeiçoamento das coreografias e a organização
que não precisam estar enfileirados de forma harmônica.
bom senso, do bom gosto e das boas maneiras. Um palhaço é
diária dos brincantes festeiros.
Vão se remexendo em um movimento de zigue-zague, um
um ser estranho que bota a mão no fogo, que põe a cabeça na
do no fogo e coberto com pele de animal, é como um pandeiro maior. Matracas são
O tempo sagrado se faz presente nos momentos de
brincando de passar o outro, sendo surpreendidos pelo boi
guilhotina e se expõe nu em sua tolice e estupidez. O palhaço
festas e rituais, focado na crença da brincadeira ao santo
querendo dar uma chifrada ou pelo vaqueiroperseguindo-
é diferente do comediante. Ele não conta uma história en-
e fundamentado no compromisso que dá continuidade à
-os como se quisesse dar uma laçada. O cazumba vive nesse
graçada. Ele é a graça, ele é o risível.”(CASTRO, 2005:257).
manifestação. “A sociedade humana não é somente o mun-
movimento dentro da roda, dialogando com um corpo e
Os cazumbas, assim como os palhaços, são funda-
do do trabalho, ela é composta pelo mundo profano e pelo
uma careta que provoca o riso e fascina com seu jeito de ser.
mentais para manter o equilíbrio da brincadeira, pois, con-
Juliana Manhães é atriz, bailarina e performer. Fez, na Uni-Rio, mestrado em artes cênicas sobre o personagem cazumbá dos bois da Baixada e, atualmente, é doutoranda sobre as danças de umbigada.
como um sino, que fica preso no pescoço do boi. Pandeirão é um instrumento afinatábuas de madeira que são batidas umas nas outras produzindo um som bem alto.
2. Cesto feito de palha de carnaúba, utilizado para guardar mantimentos e na indumentária do cazumba.
3. É um integrante do grupo, é aquele que brinca participando da brincadeira através da dança, da música ou do canto.
Coralia Rodríguez
Ponolani
Historia de uma menina escrava
Conto afro-cubano de Dora Alonso, em versão de Coralia Rodríguez
P
onolani menina africana, nascida numa aldeia chamada Sama Guenguení. Sua mãe a amava muito e preparava sempre sua refeição favorita: malan-
ga com molho, batata-doce com pimentão e peixes secos. Tudo amassado conjuntamente. Ponolani era bonita e sorridente. Ela ria alto, às gargalhadas, com as histórias de seu avô, um velho de cabelos brancos e olhos brilhantes. A menina também gostava de dançar nas festas de sua aldeia. Naquelas ocasiões, sua mãe cantava com uma voz que era forte e terna ao mesmo tempo. Uma voz que ecoava em toda floresta como um eco selvagem. (Canto Ero ba mima) A vida na aldeia era tranquila e pacífica. Até que um dia sua mãe pediu que ela buscasse água no rio, numa cabaça ... Ponolani, makua negrita, obediente, correu com os pés descalços e ágeis em meio a becos da floresta silvestre, caminhando pelas trilhas molhadas. As trilhas molhadas daquela aldeia de um continente distante escondido. Era de manhã e a menina estava entretida observando o voo das borboletas de cores fortes. Depois parou mais adiante, ouvindo a música da cachoeira, onde as pedras adivinhavam molhadas o que estava por vir.
Os olhos da menina estavam muito brilhantes e re-
que eram amigos da terra, pequena, sonhando as maravilhas
fletiam tudo aquilo que se movia na selva. Ponolani viu seu
de seus dez anos. Ponolani não viu nada diferente naquele
Ponolani, Ponolani! Oh, Ponolani ...
reflexo na água clara e então fez caretas. Depois abriu um
dia. Sua pequena orelha de cristal não ouviu nem mesmo
E a alma sozinha, encolhida, encolhida. Sem resposta.
sorriso cristalino. Respirava aquele ar fresco, cheio de luz
um só ruído diferente. Mas ali perto, estavam à espreita. E
E assim chegou em minha ilha Ponolani, makua ne-
e de pássaros. Ponolani sentou-se por um momento num
quando menos esperava, ela sentiu presas e garras. Estavam
tronco a relembrar as histórias que ouvira na noite anterior,
prendendo Ponolani.
rosa dos círculos de silêncio e de medo na selva intranquila:
grita de dez anos. Quando fez 12, um par de estrelas jovens desperta-
contadas por seu avô. Quando seu avô começava a contar
Quando tentou fugir, era tarde demais.
ram em seu peito e seu amo a levou ao estábulo, onde com
histórias, a lua parecia maior e mais redonda. E, enquan-
Quando quis gritar, era tarde.
uma punhalada de carne, roubou sua inocência.
to ele contava, Ponolani observava o brilho da lua acima
A golpes de pau, quebraram seu braço. Como asa
da cabana, derramando sua luz sobre a selva adormecida e
de pássaro caído, caía quebrado o braço da menina africana
refletindo-a nos olhos das leoas.
da vila de Samá Guenguení . E em sua asa mutilada sem
Nos campos de cana sujos de sangue, ela deu à luz
respeito ou justiça, surgiam correntes dos homens que a le-
muitas crianças que não pôde criar porque eram arrancadas
varam e a colocaram aos empurrões num barco.
de seus braços e levados para longe.
De repente, Ponolani levantou-se. Tinha que voltar para casa. Lembrou-se que sua mãe precisava de água. A cabaça em seu ombro tinha pele fina. A pequena
O mar azul de Iemanjá embalava a menina e o barco,
mão de Ponolani a abraçava, segurando firme. Novamente
tirando-a de seu rumo, afastando-a das borboletas e de sua
Ponolani andou com passo silencioso, com seus finos pés
mãe, que clamava por ela, que a buscava aterrorizada, teme-
Na minha terra cubana, Ponolani conheceu os horrores da escravidão: a humilhação, a tortura.
A seiva da vida que emanava de seus seios estava destinada para amamentar os brancos filhos de seu amo. Enquanto os alimentava, com os olhos secos de dor e com a alma rasgada de tanta ausência, Ponolani cantava baixinho os cantos de sua mãe, como um hino de amor que levava sua memória do Caribe até a aldeia africana de Samá Guenguení. O tempo passou, e um dia, seu amo veio com sorriso irônico, trazendo uma carta cujo significado ela não sabia ler, dizendo que ela estava livre.
ÁFRICADIVERSA:revista { 53
Ponolani fez uma trouxa com os poucos pertences
Agora Ponolani é uma mulher livre, com cinco fi-
que tinha e, sem dizer adeus, sem olhar para trás, começou a
lhos que nada pode lhe tirar! Cinco crianças para quem ela
caminhar sem rumo fixo. Ah! Gostaria tanto de voltar à sua
canta e conta as histórias de sua inesquecível aldeia Sama
terra. Porém, a África estava muito longe, demasiadamente
Guenguení. Histórias contadas a Ponolani por seu avô. As
longe, lá até onde não se pode caminhar e Ponolani não é
crianças escutam espantadas e me pergunto: como tanta
um pássaro para voar nem peixe para atravessar os mares.
beleza pode salvar alguém que foi tão maltratada pela vida?
Ninguém sabe quanto tempo ela andou; ninguém nunca saberá. Foram muitos dias de sol escaldante, muitas noites de tempestade, muitos amanheceres de fome e desamparo. Do que se lembre bem é o dia em que conheceu Pedro, seu homem, mulato de riso fácil e palavra sincera, que, com ervas de Osaín curou os pés de Ponolani, gastos por tantos caminhos percorridos.
Como o feio pode desaparecer, dando lugar à beleza na fecundidade da palavra? Coralia Rodríguez é atriz e contadora de histórias cubana com larga experiência internacional. Ocupa os cargos de diretora artística do festival de conto AFROPALAVRA de Havana e de presidente da associação cultural Os Tecedores da Palavra, de Genebra, na Suíça. Integra o Fórum Internacional de Narração Oral do Grande Teatro de Havana e recebeu importantes prêmios da arte, como Cuentería, Juan Candela e Chamán.
Tambor de Crioula
“Maranhão sou eu, Maranhão sou eu. Terra de Gonçalves Dias, Maranhão sou eu”
“Eu vou, eu vou, eu vou mais o meu bando eu vou.”
“Parou pra aquentá, parou pra aquentá, parou pra aquentá, parou pra aquentá”
“Para saudar São Benedito, cheguei que eu sempre quero saudar, cheguei Cheguei, cheguei Cheguei com minha turma cheguei”
ê coreira!
Ondjaki
(...) “Raízes e asas. Mas que as asas enraízem e as raízes voem.” Juán Ramón Jimenez
1. As armas dos pioneiros...
C
resci num tempo e num lugar onde havia gente de todas as cores e peles para todos os tons. Nesse tempo, um mais-velho era um mais-velho.
Na Luanda em que cresci respeitávamos os gestos, as vozes e as estórias dos mais velhos. Nós, as crianças, éramos crianças de inventar tudo outra vez. Como se inventássemos, entre nós, um modo de contar as coisas, e de as sabermos dizer já aumentadas. Os
A caneta é a arma do pioneiro: reflexões sobre infância e imaginação
mais-velhos sorriam, descansados, porque esse era o modo de as coisas acontecerem tranquilamente, de boca para ouvido, de voz para sorriso. Tudo isto se passava numa cidade muito urbana, cheia de políticos ocos e de uma ideologia que se experimentava ali para ver se resistia aos fortes ventos internacionais mais ou menos comunistas, mais ou menos imperialistas. Os meus mais-velhos eram mais-velhos de cidade. A Avó Maria da Praia do Bispo, que vendia kitaba e falava um kimbundu que nós, as crianças de Luanda dos anos 80, não sabíamos falar. A minha avó de sangue, mãe da minha mãe, que falava um português corretíssimo e cujas estórias, contadas e aumentadas ao longo dos anos, falavam de casos urbanos, do Sul e do Centro, de traições, de feitiços preparados e acontecidos em cidade, de mulheres que pariam sacos de formigas ou bebês com cabeça e asas de pássaro que fugiam da maternidade porque a janela estava aberta e voar era talvez melhor destino que ser simplesmente humano. O meu avô de sangue deixou a escola porque a professora lhe batia demais e, com doze anos, decidiu ser pescador,
64 } ÁFRICADIVERSA:revista
como o pai dele. Passou cinquenta e cinco anos no mar, mais de treze horas por dia a navegar, primeiro navegou a vento, depois navegou a diesel, e no fim dos seus dias todas as suas palavras, os seus sonhos, os seus provérbios e as suas verdades eram construídos a partir de universos molhados e cheios de sal. Se recuar um pouco mais no tem-
“ Todo o continente africano, (...) era uma entidade viva e dinâmica. Secular e complexa. Sofrida e ternurenta. Cheia de estórias contadas e repleta de estórias secretas.”
daqueles que julgam que o conti-
ensinavam-me a respeitar os deuses inventados e os deuses
nente africano é um só país, algu-
de verdade – porque os deuses, afinal, não passam de es-
mas reflexões me foram chegando
pectadores ávidos de encontrar um bom sonho ou uma boa
e tive que as frequentar.
estória. E as boas estórias são os nossos trilhos internos, as
Entendi que um lugar,
nossas verdades sociais e a nossa capacidade de saber con-
mesmo que demarcado geogra-
tar o que é sagrado e tem de ser dito – para mais tarde ser
ficamente, era e seria sempre um
repetido. Ou como diria o poeta Juán Ramon Jimenez, “as
espaço de variedades linguísticas
árvores não estão sós: estão com suas sombras.” Eu penso
que apontavam, obviamente, para
que todas as vozes e todas as estórias também podem ter
variedades étnicas e culturais. En-
sombras.
tendi que a modernidade e todas
Certa ocasião, no Sul de Angola, encontrei um mais-
as suas consequências, as boas e as
-velho pescador que dava costas ao mar para ficar, quieto, a
Cabinda e se juntou à minha bisavó negra de olhos escuros
más, não eram exclusivas da América ou da Europa. Todo o
olhar o deserto. Mas olhando como quem pesca. Em busca
para fazerem a minha avó, mãe da minha mãe, que um dia
continente africano, nas suas múltiplas crenças, cores, tradi-
de um camaleão. Um camaleão de um corpo só e mil cores
me disse que o futuro não era um segredo, só que para che-
ções, ideologias, expressões tradicionais e expressões tradi-
nas suas escamas, e mil sonhos que aparecem escondidos
gar a ele tinha que se saber olhar muito para trás.
cionais revistas pelos criadores atuais, todo esse continente
no seu olhar; um só olhar com muitas coisas contempladas;
Cresci nesse lugar cheio de estórias urbanas, portan-
era uma entidade viva e dinâmica. Secular e complexa. So-
apenas quatro patas, mas milhares de marcas desenhadas
to a oralidade que conheço e que me foi passada aconteceu
frida e ternurenta. Cheia de estórias contadas e repleta de
na areia.
num cenário urbano, alimentado pelas constantes faltas de
estórias secretas.
po, chego ao meu bisavô holandês loiro de olhos azuis que chegou a
Dizia o mais-velho, como quem pescava palavras:
água, de luz, e referências a todas as guerras que aconteciam
Os autores africanos que eu lia, ou pelo menos assim
“...o camaleão não repete as pegadas dele, não é por-
muito mais a Sul de Luanda. A escola foi, verdadeiramente,
eu os li, iam murmurando verdades suaves: que a literatura
que não sabe o caminho de volta; é porque lhe interessa
a minha segunda casa, e naquele tempo, em pleno socialis-
se fazia dos lugares, das geografias, das cores e das gentes,
mais estar sempre a pisar um chão que ainda nunca tinha
mo angolano, disseram-me – e eu acreditei – que “a caneta
mas que os lugares eram, também, coisas internas; que o
pisado...”
era a arma do pioneiro”.
escritor, africano ou outro, podia falar do seu lugar e partir
Sou de um país onde um mais-velho é um mais ve-
Sem querer, ou porque era já o destino, a caneta
das suas tradições para se reinventar na sua ficção, mas não
lho. Onde cada gesto e cada olhar pode ser uma verdade ou
transformou-se em algo tão importante para mim quanto
esquecendo que, no ato sagrado da escrita, as geografias que
um segredo. Para mim, um camaleão solitário de rosto vira-
íntimo. Escrevi porque me era urgente escrever; falava do
mais gritam são as de dentro; as que abordam a sua prove-
do para o chão, não esqueceu nunca a cor do Sol. Ele apenas
que sentia, não para contar realidades angolanas, ou afri-
niência, que fazem falar criativamente sobre as verdades do
busca a certeza daquilo que já pressentiu: que é num chão
canas, mas para ouvir e ler o eco de tudo o que eu tinha
continente com a habilidade de não ferir a dignidade da
profundo que o arco-íris esconde e inventa as suas raízes.
ouvido ou visto. Mais tarde, confrontado com as perguntas
nossa casa e dos nossos mais-velhos. Os autores que eu lia
...
66 } ÁFRICADIVERSA:revista
Nasci e cresci num país livre, com muitos proble-
ÁFRICADIVERSA:revista { 67
2. As canetas dos pioneiros...
mas, com todas as guerras que atravessamos, e com uma
Parece-me que as crianças não disseram ainda (no que seria,
“Escolhemos (o que vamos lendo) porque fomos em busca ou somos vítimas do que nos chegou aos olhos?”
gente e uma cultura maravilhosa. Um país africano, com
.....Havia era um mar de incertezas no tocante à
digamos, uma “voz coletiva”) o que
todas as questões modernas confrontando-se com todas as
definição da chamada literatura infantil: nada afinal é tão
buscam (ou encontram) num livro
questões tradicionais... em direção ao futuro....
simples, e o olhar de quem a lê também a constrói – no
‘infantil’. Essa literatura é feita por
modo como a recebe e interpreta.
adultos, num esforço maior (ou menor) de imaginar que
Cresci num país de gente com vontade de ser feliz. Felizmente, cresci num país livre.
Escolhemos (o que vamos lendo) porque fomos em busca ou somos vítimas do que nos chegou aos olhos? Aqui reside, talvez, a diferença entre a leitura do adulto e da criança. O adulto escolhe a literatura infantil que deseja ler; a criança recebe o livro como oferta de quem já tomou a decisão por ela. Chegamos assim ao conteúdo e à sua possível função. se é conteúdo ‘infantil’, por que é procurado por um
des dificuldades do ato de escrever “para” crianças: como fazer o texto simultaneamente profundo e inteligível? Que lugar reservar para a ilustração? Esta deve ser parte do
projeto ou um suporte secundário?
sabem dos “gostos literários infantis”. Terá resultados reais
Acho que não há uma fórmula a ser descoberta ou
este esforço? Que outros mecanismos teremos de inventar/
apresentada. O chamado “texto infantil” é tão complexo,
descobrir para nos aproximarmos das expectativas de leitu-
misterioso, difícil, delicado como qualquer outro. Simpli-
ra de uma criança?
ficar tornando a linguagem “básica” ou remetendo para ex-
Fica claro que a grande maioria da chamada litera-
plicações visuais pode resultar no desinteresse do leitor.
tura infantil é feita por criadores adultos. Mas tem de ser
Talvez confiar na sua inteligência, no seu poder inter-
assim? Ou poderemos reinventar os procedimentos da es-
pretativo (e aumentativo), na capacidade de ver e ouvir o que
crita dessa literatura?
não estava concretamente dito, talvez esta via seja um dos ca-
adulto? Se realmente for material ‘infantil’ será que a crian-
...
minhos possíveis que leva, sobretudo ao respeito da criança
ça se identifica ou ao menos de diverte (a apreensão pode
Penso que um dos caminhos para trabalhar neste
como um “leitor”, e não, simplesmente, “um leitor infantil”.
advir também pelo lado lúdico da obra...) com o presumível
tipo de literatura (existirá este ‘gênero’?) talvez seja esquecer
Talvez a ‘literatura infantil’ tenha de ser catalogada
conteúdo infantil?
as excessivas preocupações objetivas, pedagógicas. Talvez o
por quem tem a missão de catalogar livros e gêneros literá-
caminho seja escrever um livro, sem a preocupação concreta
rios. Mas não deverá o escritor, adulto ou não, fazer o esforço
de pensar no público-alvo.
de se desprender destas designações no momento da criação?
Certamente, quem oferece um livro o faz com um determinado objetivo. Por mera formalidade, eventualmente. Com a função da passagem do conhecimento? Para que
Isso levanta problemas. A questão dos conteúdos, do
a criança se ‘divirta’? Ou, talvez, tudo isso ao mesmo tempo.
formato e da linguagem. Sobretudo a linguagem, ainda que
Mas, de fato, o que não sabemos ao certo é o impacto
sem uma formatação pedagógica rígida, deve levar em conta
que a obra tem sobre a criança. Nem tão pouco compreen-
a idade do leitor. Mas o que pretendo ressalvar é que a sim-
deremos o que leva a criança a abrir, ler e terminar um livro.
plicidade da linguagem não deverá comprometer o conteúdo. Ou, por outras palavras, trabalhar a simplicidade de um texto (e os seus conteúdos) não tem, necessariamente, que tornar o texto excessivamente simples. Há, pois, que confiar na capacidade de interpretação e de imaginação da criança. E aqui talvez resida um dos segredos e das gran-
... Acho que o escritor deve criar. Em liberdade. Do resto, o tempo dirá. O tempo e as crianças... Ondjaki nasceu em Luanda, Angola, em 1977. É doutor em Estudos Africanos (L’Orientale/Itália). Prosador e poeta, é membro da União dos Escritores Angolanos. Recebeu os prêmios Sagrada Esperança (Angola, 2004); Conto – A.P.E. (Portugal, 2007); FNLIJ (Brasil, 2010) e Jabuti juvenil (Brasil, 2010). Suas obras foram traduzidas para o francês, espanhol, italiano, alemão, inglês, sérvio e sueco. Escreve crônicas para jornais de Angola e Portugal.
Reginaldo Prandi
:sáxirO sod aigolotiM Mitologia dos Orixás: odnum mu arap ohlepse espelho para um mundo eteper es odut euq me em que tudo se repete
N
o candomblé, acredita-se que cada pessoa descende de um orixá diferente: cada ser humano é filho de um deus particular. Muito diverso da
ideia judaico-cristã de que nós temos uma mesma origem e que somos todos filhos de um Deus único, descendentes do primeiro casal, Adão e Eva. O orixá não é único nem é o mesmo em cada pessoa. Somos, segundo o candomblé, uma diversidade desde nossa própria origem. Nossa primeira identidade vem da natureza, da variedade das forças e dos acidentes naturais. Os orixás, antes de mais nada, são espíritos da natureza. Por exemplo: há o mar e pessoas que se originam do mar, os filhos do mar. Outra pessoa pode ter sua origem no rio, enquanto outra mais é proveniente da chuva. Alguma virá da lama, há as que vêm do trovão, do raio. Cada um tem seu orixá. O espírito da natureza, o orixá, é cultuado como um deus e ganha atributos humanos e mitologia própria.
ÁFRICADIVERSA:revista { 71
Mas orixá não é somente natureza, é a sociedade em
raio, da tempestade, guerreira, deusa dos mortos e protetora
suas múltiplas dimensões. Os orixás são também os pri-
das mulheres. Os filhos de Xangô, assim como os de suas
meiros homens, as primeiras mulheres. De suas vidas na
rainhas, são cópias imperfeitas de seus primeiros avatares.
Terra, as dos humanos são apenas cópias que se repetem
Os orixás são, por tudo isso, espelhos em que os hu-
desde os tempos míticos primordiais. Porque, na concepção
manos podem enxergar a si mesmos, seus mitos são os rela-
dos povos iorubás — etnias africanas que introduziram no
tos de suas vidas agora revividas. Basta conhecer a mitologia
Brasil, na esteira do tráfico escravista, a religião dos orixás —, o tempo é circular e não retilíneo, como define a concepção ocidental de mundo. Tempo circular significa repetição, que nada é novidade, que o amanhã é a reprodução do hoje, que nada mais é do que o ontem. Os orixás estão na origem do tempo, e depois deles tudo é apenas retorno, tanto os eventos quanto os seres humanos, em suas reencarnações sucessivas, seu renascimento sem fim. Em suas aventuras terrenas, conta-se que Xangô, orixá do trovão,
“Os orixás são, por tudo isso, espelhos em que os humanos podem enxergar a si mesmos, seus mitos são os relatos de suas vidas agora revividas.”
de seu orixá para ver a si mesmo, em seu passado, presente e futuro, porque tudo se repete. Ogum, orixá do ferro, ferreiro e inventor, senhor da guerra e do trabalho, tem filhos impulsivos, rudes, trabalhadores. Oxóssi, senhor da floresta, o caçador, é o provedor do sustento diário da família. Junto a Ossaim, em cujas veias corre a seiva das plantas, Oxóssi é patrono da ecologia moderna. Seus filhos são quietos e pacientes, como convém a um caçador que vive à espreita. Omulu, o solo em que pisamos, sabe tudo sobre as doenças, daí
foi rei, supremo magistrado de seu povo. É deus da justiça
seu recato e sua tristeza, como a de seus filhos. Nanã é o
e da arte de governar. Os que dele descendem trazem na
pântano e a sabedoria dos velhos; Oxumarê, o arco-íris, a ser-
alma o trovão, a justiça, a majestade e também os defeitos
pente, a ambiguidade. Logum Edé é rio e mata, água e terra,
que são próprios dos governantes absolutos. De acordo com
feminino e masculino. Ah, seus filhos, criaturas difíceis de
o sistema poligínico iorubá, Xangô teve, entre outras, três
definir. E tem Euá, misteriosa e temida, que se transformou
esposas principais: Obá, a primeira, a que dirige o domicí-
na fonte para dar de beber aos filhos sedentos. E os gêmeos
lio, também um rio que leva seu nome; Oxum, igualmente
Ibeji, que brincam, se divertem e enganam a morte.
rio, água doce, dona da beleza, do ouro, da fertilidade da
O quadro não está completo. Falta Iemanjá, o mar,
mulher, deusa do amor e da vaidade; e Iansã, a senhora do
a imensidão salgada, o eterno movimento de vaivém das
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águas, a mãe primordial, maternidade e proteção, ancestral
ram escritos aos poucos e, hoje, podem ser lidos nos livros.
de filhos maternais. E o pai, o grande orixá, Oxalá, o ar, que
A mitologia dos orixás conta quem são eles, como viveram,
fez a humanidade, tantas vezes enganado pelo irmão Odu-
o que fizeram, quais são seus gostos, o que lhes desagrada.
dua, é velho, lento, cansado, vergado sob o peso dos huma-
Cabe à mãe de santo ou ao pai de santo, sacerdotes-
nos, tão difíceis de carregar. Seus filhos são isso, mas, como o
-chefes dos terreiros de candomblé, revelar, por meio do
pai, criativos, brilhantes, supremos. Oxalá é limpo, é branco,
oráculo do jogo de búzios, a origem do consulente, desco-
insípido e insosso: o começo, quando o pano ainda não foi
brindo de que orixá ele descende. A cada um, seu espelho
tingido. Sua forma jovem é Oxaguiã, que vai à guerra com
mítico. Diz o candomblé que, para alguém ser feliz, é preci-
Ogum, inventa o pilão para processar o inhame, comida de
so que haja coerência entre seu modo de ser e de viver e sua
seu povo. É o criador da cultura material, o que destrói para
verdadeira essência, que não pode ser contrariada, seu orixá.
refazer tudo mais odara, como gostam de fazer seus filhos.
Ao identificar o orixá de alguém, a mãe de santo legitima
Por último, Exu, que não é o último, mas o primeiro.
seu comportamento e aparência, oferecendo-lhe um mode-
Senhor do movimento e da transformação, ferro e laterita,
lo de conduta cujos traços mais característicos se baseiam
o mensageiro entre este mundo e o dos orixás, guardião da
na mitologia dos orixás. Essa identidade deve propiciar cer-
porta, brincalhão, matreiro, que gosta de enganar os incau-
to bem-estar à pessoa, uma vez que diz como ela é, por que
tos e os pretensiosos se fazendo passar pelo diabo, que não
age daquele modo, como deve se pôr no mundo. Sobretudo
é. Orixá da reprodução humana, senhor da ereção.
porque, segundo o candomblé, toda pessoa deve ser o que é
As aventuras vividas pelos orixás na Terra estão nar-
e assim ser aceita por sua comunidade, com suas qualidades
radas nos mitos transmitidos oralmente de geração a geração
e seus defeitos, que se acredita herdados do orixá. Depois,
na África, depois trazidos ao Brasil pelos escravos iorubás e
ritos iniciáticos serão celebrados para consolidar a ligação
aqui preservados nos terreiros de candomblé, até hoje. Fo-
entre a pessoa e seu orixá. Mas isso já é religião.
Reginaldo Prandi é Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor titular de Sociologia aposentado e docente permanente do programa de pós-graduação em Sociologia da instituição. É autor de mais de 30 livros, incluindo obras de mitologia, literatura infantojuvenil e ficção policial. Entre outros prêmios, recebeu o Érico Vannucci Mendes 2001, outorgado pelo CNPq, pela SBPC e pelo Ministério da Cultura por seu trabalho depreservação da memória cultural brasileira. Tem o posto de axogum no candomblé Casa das Águas.
“Diz o candomblé que, para alguém ser feliz, é preciso que haja coerência entre seu modo de ser e de viver e sua verdadeira essência, que não pode ser contrariada, seu orixá.”
Besouro Cord達o de Ouro
“É de Angola, Camará, que me veio essa cantiga, De Luanda, É um jogo, é uma dança, é uma briga De Benguela, No quilombo da Serra da Barriga, De Aruanda, Capoeira chegou com a caravela.”
“ Mãe África engravidou em Angola Partiu de Luanda e de Benguela Chegou e pariu a capoeira No chão do Brasil, verde-e-amarela”
“Numa roda de gente eu sou pacato
Numa briga de morte eu sou sereno Arrodeio valente que nem gato
Estudando primeiro o seu terreno”
“O crioulo me diz que eu sou mulato O branquelo me diz que eu sou moreno Tem quem diga que sou bicho do mato Porque me fazem mal mas eu não paro Nem com furo de bala eu não me abato Nem com corte de faca muito menos Pois meu corpo eu fechei com meu trato Na medalha de São Bento Pequeno Camará, capoeira eu sou de fato Quando chamam Besouro eu olho e aceno Quem quer briga eu jamais deixo barato Já começo com o pé no duodeno”
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legendas: Todas as fotografias utilizadas em África Diversa: revista são de Celso Pereira exceto as que citam o crédito de outro fotógrafo.
CAPA___ Participante do encontro África Diversa 2011. Foto: Flávia Correia.
4_______ Altar feito no Centro Municipal de Artes Calouste
Gulbenkian, durante abertura do África Diversa 2012 pelas Caixeiras do Divino, maranhenses - residentes em Nova Iguaçu e Ilha do Governador - que organizam festas do Divino no RJ.
Caixas das Caixeiras do Divino e do grupo As Três Marias, durante abertura oficial do África Diversa 2012.
8 e 9____ Joel Rufino dos Santos, doutor em Comunicação e Cultura, historiador e escritor durante palestra no encontro África Diversa 2012.
11______ Joel Rufino dos Santos e Cristina Warth, editora da
Pallas, durante palestra no encontro África Diversa 2012.
14 e 15__ Joel Rufino dos Santos durante palestra no encontro África Diversa 2012.
16 e 17__ Hassane Kassi Kouyaté, griot, ator e diretor da Cie.
Deux Temps, Trois Mouvements em sua palestra no encontro África Diversa 2012.
23______ Hassane Kouyaté, ator da Cie. Deux Temps, Trois
Mouvements no espetáculo “The Island”, durante o África Diversa 2012.
24 a 27__Hassane Kouyaté e Habib Dembelé, atores da Cie.
Deux Temps, Trois Mouvements em cenas do espetáculo “The Island”, durante o África Diversa 2012.
27______ Trechos do texto “The Island”, dos sul-africanos Athol Fugard, John Kani e Winston Nsthon.
28______ Detalhe do Cais do Valongo. Foto: Marcos Corrêa. 31______ O Cais do Valongo durante as escavações arqueológicas, 2011. Fotos: Luis Carlos Prestes Filho
Detalhe do Cais do Valongo durante as escavações arqueológicas, 2011. Fotos: Luis Carlos Prestes Filho
32______ Mapa da Pequena África. Concepção: Camila Soares e Luis Carlos Prestes Filho. Historiador: Milton de Mendonça Teixeira. Design: Mariana Moraes.
34______ Detalhe de roupa da porta-bandeira do Grêmio Re-
creativo Cultural Escola de Samba Mirim Pimpolhos da Grande Rio, do Rio de Janeiro.
38 e 39__Integrantes do Grêmio Recreativo Cultural Escola de Samba Mirim Pimpolhos da Grande Rio.
40______ Cazumbá com badalo. Boi Brilho de Lucas, grupo de bumba-meu-boi residente em Parada de Lucas, Rio de Janeiro em apresentação na Praia de Copacabana durante a abertura do África Diversa 2012.
42______ Detalhe de um cazumbá durante apresentação do Boi Brilho de Lucas na Praia de Copacabana. Abertura do África Diversa 2012.
45______ Cazumbá durante apresentação do Boi Brilho de
Lucas na Praia de Copacabana. Abertura do África Diversa 2012.
46 e 47__Detalhes da apresentação do Boi Brilho de Lucas na
Praia de Copacabana. Abertura do África Diversa 2012.
48 e 53_ Coralia Rodríguez em seu espetáculo “Contos Afro-cubanos” durante o encontro África Diversa 2012.
54 e 55_ Detalhe de roda de tambor de crioula, realizada por
Juliana Manhães e As Três Marias, na Praça XV, na abertura do África Diversa 2012. Trecho de toada/ música de Mestre Felipe.
56 e 57__Detalhes do minicurso “Danças Populares Maranhenses” realizadas pelo grupo As Três Marias, coordenado por Juliana Manhães.
58 e 59__Roda de tambor de crioula, realizada por Juliana
Manhães e As Três Marias, na Praça XV, na abertura do África Diversa 2012.
60 e 61__ Senhora do público entrando na roda de tambor
de crioula, realizada por Juliana Manhães e As Três Marias, na Praça XV, na abertura do África Diversa 2012. Trecho de toada/música de Mestre Felipe.
62 e 63_ “Quase mimese”. Desenho e estilingue sobre caderno. Conceito e foto: Marcos Corrêa.
65 e 66_ Ondjaki, escritor, prosador e poeta angolano em sua palestra no África Diversa 2012.
68______ Detalhe de guias de candomblé. Foto: Raquel Paoliello (www.sxc.hu)
70______ Reginaldo Prandi no minicurso “Orixás” durante o encontro África Diversa 2012.
73______ Detalhe do minicurso “Orixás” ministrado por Regi-
naldo Prandi durante o encontro África Diversa 2012.
74 a 79__Ensaio fotográfico de cenas do espetáculo teatral
“Besouro Cordão de Ouro”, realizado pela JLM Produções Artísticas no fechamento do África Diversa 2012. Direção: João das Neves. Texto, letras e música original: Paulo César Pinheiro. Elenco: Alan Rocha, Anna Paula Black, Cridemar Aquino, Iléa Ferraz, Letícia Soares, Marcelo Capobiango, Sérgio Pererê, Valéria Monã, Victor Alvim “Lobisomem”, William de Paula, Wilson Rabelo.
74______ Na foto menor: cena de capoeira com Cridemar Aquino e Valéria Monã.
75______ Na sequência: cena de Iansã com Valéria Monã. 76 a 77__ Cena final do espetáculo com todo o elenco.
Trechos da música “Toque de Benguela” e “Toque de São Bento Pequeno”.
78______ Anna Paula Black em cena. Trecho da música “Toque de São Bento Pequeno”.
79______ Sérgio Pererê em ensaio. Trecho da música “Toque de São Bento Pequeno”.
Equipe do projeto em 2012 encontro de cultura afro-brasileira
Prefeito da Cidade do Rio de Janeiro
Realização
Vice-prefeito
Criação, Curadoria e Gestão de Produção
Eduardo Paes
Carlos Alberto Vieira Muniz
Secretário Municipal de Cultura Emilio Kalil
Chefe de Gabinete
Rita de Cassia Samarques Gonçalves Subsecretário de Cultura Walter Santos Filho
Subsecretária de Gestão
Canto da Viração Produções Artísticas Daniele Ramalho
Gestão | Canto da Viração Mônica Behague
Identidade Visual do Projeto Marcos Corrêa
www.africadiversa.com.br
Editoria
Rosemary Fernandes Lessa Vidal
Daniele Ramalho
Pedro Igor Alcântara
Joel Rufino dos Santos
Assessor Técnico de Assuntos Estratégicos Assessor de Comunicação Roberto Blattes
Coordenadora de Arte e Educação, Livro e Leitura Lêda Maria da Fonseca
Gerente de Livro e Leitura Gisele Mota Lopes
Assistente da Coordenação Carla Rodrigues
Coordenador de Artes Visuais e de Museus Robson Bento Outeiro
Gerente dos Centros Culturais Sônia Candida Gentile Gerente de Museus
Andréa Rizzoto Falcão
Artigos
Hassane Kassi Kouyaté
Luiz Carlos Prestes Filho
Milton de Mendonça Teixeira
Juliana Bittencourt Manhães Coralia Rodriguez Ondjaki
Reginaldo Prandi Revisão
Carlos Monteiro Fotografias
Celso Pereira
Flávia Correia (capa)
Luis Carlos Prestes Filho Marcos Corrêa
Edição de Imagens
Daniele Ramalho e Marcos Corrêa
Projeto Gráfico e Direção de Arte Marcos Corrêa
O II Encontro África Diversa foi realizado no:
Centro Municipal de Artes Calouste Gulbenkian
Rua Benedito Hipólito, 125. Praça Onze. Rio de Janeiro. RJ.
Curadoria e Gestão de Projeto Daniele Ramalho
Gestão | Canto da Viração Mônica Behague
Equipe de Produção Martha Bicalho Ana Brasil
Benita Prieto
Luciano Guirelli
Verônica Santos Renata Souza
Cristiane Guimarães Apoio
Ana Lúcia Rabelo Vanessa Alves
Design Visual
Marcos Corrêa
Produção Gráfica Marcos Corrêa
Carlos Daniel Medeiros Cenotecnia
Luciano Guirelli Álvaro Souza Fotografia
Celso Pereira Filmagem
Felipe Rodrigues
Walter Fernandes Júnior Edição de vídeo Felipe Rodrigues
Assessoria de Imprensa
Target Assessoria de Comunicação Webdesign
Plano B Design
Realização
Participantes do II Encontro África Diversa de 20 a 25 de maio de 2012
Boi Brilho de Lucas {RJ}
Joel Rufino dos Santos {RJ}
Hassane Kassi Kouyaté {BURKINA FASO} Coralia Rodriguez {CUBA}
Cia. Deux Temps, Trois Mouvements {FRANÇA} Rui de Oliveira {RJ}
Dj Marcelo B Groove {RJ} BNegão {RJ}
Caixeiras do Divino {MA}
Três Marias Folguedos Brasileiros {RJ} Sérgio Pererê {MG}
Reginaldo Prandi {SP} Clementino Jr. {RJ}
Juliana Manhães {MA} Dona Antônia {MA} Dona Gercy {MA} Seu Dorô {MA}
Milton Teixeira {RJ}
Luiz Carlos Prestes Filho {RJ} Camila Soares {RJ}
Pimpolhos da Grande Rio {RJ} Verônica Santos {RJ} Aline Valentim {RJ}
Elisa Larkin Nascimento {RJ} Gustavo Pereira {RJ} Valéria Monã {RJ}
Tânia Andrade {RJ}
Besouro Cordão de Ouro {MG|RJ}
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