Livro Tá Na Rua

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Organizadores | Licko Turle e Jussara Trindade

Rio de Janeiro, 2008 Instituto Tรก Na Rua


© Instituto Tá Na Rua para as Artes, Educação e Cidadania | 2008

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ T1 Tá na Rua : teatro sem arquitetura, dramaturgia sem literatura e ator sem papel Organizadores Licko Turle e Jussara Trindade. - Rio de Janeiro : Instituto Tá na Rua, 2008. 256p. : il. Inclui bibliografia ISBN 978-85-61637-00-2 1. Tá na Rua (Grupo teatral) - História. I. Turle, Licko. II. Trindade, Jussara. III. Instituto Tá na Rua para Artes, Educação e Cidadania. 08-1853. CDD: 792.09 CDU: 792(09) 13.05.08 16.05.08 006625

Todos os direitos reservados a Instituto Tá Na Rua para as Artes, Educação e Cidadania Av. Rio Branco, 179/5º andar Centro Rio de Janeiro RJ CEP:20040 007 Telefax: +55 [21] 2220 0678


Instituto Tá Na Rua para as Artes, Educação e Cidadania Diretor Artístico: Amir Haddad Presidente: Disnael dos Anjos Vice-Presidente: Alessandro Perssan Tesoureiro: Alexandre Santini Conselho-Fiscal: Maria Helena Cruz, Amir Haddad, Ana Candida Moura Coordenador Técnico-Pedagógico: Licko Turle

Projeto Memória Tá Na Rua: Alexandre Santini Consultoria Tá Na Rua: Amir Haddad Coordenação Técnica: Licko Turle Coordenação de Pesquisa: Jussara Trindade Pesquisadores: Jussara Trindade e Licko Turle Coordenação de Produção: Filomena Mancuzo Produção Administrativa: Laila Vils Catalogação e Assistentes de Pesquisa: Fernanda Paixão e Mery Alentejo Assistente de Catalogação: Thuany Klinger Assistentes de Produção e Digitação: Henrique Monnerat e Nelson Sanka Ponto de Cultura - Equipe de Digitação: Barbara Braga, Beatriz Flores da Silva, Cássia Melo Olival, Cintia Santana, Fabiana Erana, João Herculano Dias, Karina Assunção, Liana Ébano, Rejane Ramos da Silva, Rica Pereira Mota, Roberto Zanato e Silvia Muniz Werneck Projeto Gráfico e Identidade Visual: Marcos Corrêa | Ato Gráfico Assessoria Jurídica: Ana Candida Moura



A Amir Haddad, Ricardo Pavão, Roberto Black, Sergio Luz (in memorian), Artur Faria, Ana Carneiro, Betina Waissmam, Lucy Mafra, Marilena Bibas e Rosa Douat que, um dia, saíram às ruas para salvar a si mesmos ... e, criaram o grupo de teatro Tá Na Rua para nos salvar.

agradecimentos E, também, a: Adriana Rattes, Ana Claudia Casales, André Motta Lima, Angela Rebello, Claudia D’Mutti, Celso Frateschi, Célio Turino, Eliane Costa, Ernesto Chini, Gilberto Santeiro, Gustavo Dahl, José Araripe Jr, Lauro Góes, Jorge Castanheira, Pessanha, Maria Helena Cruz, Mario Borrielo, Otavio Bezerra, Paula Damasceno, Renato Costa, Ricardo Leo, Tais Reis, Thiago Hausen, Vera Haddad e Zeca Ligiero.



“Nós saímos das camisas-de-força da ideologia e começamos a vestir os trapos coloridos da fantasia, da possibilidade, da transformação, da beleza, do nada pronto, nada definitivo e do eterno movimento”

Amir Haddad



Sumário

Apresentação

16

SOBRE O TÁ NA RUA Chegança

23

Jussara Trindade

A função da função ou O Circo Etéreo

30

Amir Haddad

Alguma coisa acontece no meu coração

36

Sérgio Luz

Tá Na Rua: memórias de um percurso

40

Jussara Trindade

Somma ou Os melhores anos de nossas vidas

52

Alexandre Santini

O papel do apresentador-narrador

58

Ana Maria Carneiro

Uma possível dramaturgia para espaços abertos

64

Licko Turle

A música nas oficinas do grupo Tá Na Rua

78

Jussara Trindade

ESCRITOS SOBRE A MESA DE AMIR HADDAD A formação do ator num teatro em crise

92

Utopia e distopia na formação dos atores

106

Reflexões sobre o trabalho do ator

114

A pedagogia da manifestação

122


Por uma ética e por uma estética libertária: os figurinos

126

O teatro necessário

128

Sobre Nilo Batista

132

Pernas-de-pau

138

Espaço I

142

Espaço II

148

Espaço e ideologia

150

Antunes Filho, José Celso e os teatros

156

TÁ NA RUA APRESENTA: Oi nóis aqui travêis: as apresentações de rua do Grupo Tá Na Rua

162

Ana Maria Carneiro

A Família Tá Na Rua

172

Ana Maria Carneiro

Morrer Pela Pátria: 1984 – o período Villa-Lobos

178

Marcelo Bragança

Iraildes ou A moça que beijou o jumento pensando que era Roberto Carlos

184

Grupo Tá Na Rua

Homens e mulheres – A Ópera

186

Grupo Tá Na Rua

Uma casa brasileira, com certeza

190

Gambarini Camargo

FEBEAPÁ – Festival de besteiras que assola o país

192

Grupo Tá Na Rua

Pra que servem os pobres? Grupo Tá Na Rua

194


Cabaré Tá Na Rua – uma casa de diversões

196

Licko Turle

A revolta de São Jorge contra os invasores da Lua

200

Grupo Tá Na Rua

Dar não dói, o que dói é resistir ou Em paz com a ditadura

204

Licko Turle

AS LITURGIAS CARNAVALIZADAS O teatro e a cidade – o ator e o cidadão

218

Amir Haddad

Liturgias Carnavalizadas: quando o humano e o divino brncam juntos

228

Jussara Trindade

Auto de Anchieta

238

Alvarito Mendes Filho

Auto da Liberdade de Mossoró

240

Licko Turle

Auto de Natal Meu Caro Jumento

242

Grupo Tá Na Rua

O samba mandou me chamar

244

Amir Haddad

Amir Haddad: da Lapa ao Cabral: carnavalizando o teatro, teatralizando o Carnaval

248

Jussara Trindade

Créditos

253


Licko Turle & Jussara Trindade

APRESENTAÇÃO


Este livro é parte do resultado de 21 meses de pesquisa do Projeto Memória Tá Na Rua, que foi contemplado pelo Edital Público “Patrimônio/Humanidade” do Programa Petrobrás Cultural 2005. Somam-se a ele um filme documentário vídeo-digital com depoimentos, entrevistas e imagens daqueles que fizeram e fazem esta memória, o nº 1 de uma nova revista de teatro de rua, um site dinâmico e uma exposição fotográfica sobre a história de 28 anos de trabalho continuado de um dos grupos mais importantes do cenário teatral brasileiro: o grupo de teatro TÁ NA RUA, do Rio de Janeiro. Nossa equipe - formada por pesquisadores, produtores, digitadores, secretários, office-boys, estagiários e estudantes apaixonados pelo trabalho do grupo que, de uma forma ou de outra, chegaram pelas oficinas e espetáculos da ESCOLA CARIOCA DO ESPETÁCULO BRASILEIRO ou por projetos como o do PONTO DE CULTURA TÁ NA RUA BRASIL - manuseou fotos, vídeos, filmes, recortes de jornais e revistas, manuscritos; abriu caixas empoeiradas... escaneou, digitou, fotografou, selecionou, gravou, identificou... Foram quase 100 horas de entrevistas; a ordem era decupar material; recuperar Super-8, BetaCam, fitas-cassete e slides; telefonar, solicitar, marcar reuniões, autorizar, comprar, pagar. Discutir, brigar, chorar, reclamar, desistir, encarar, superar, errar e acertar! Vivenciar um processo arqueológico que, a cada etapa vencida, dava imediatamente lugar a outra como uma cornucópia que não pára de derramar sua riqueza, foi, para nós, beber numa fonte de conhecimento e de saber construído a partir, simplesmente, do desejo de alguns jovens que abandonaram suas possíveis carreiras no teatro para descobrirem o que era isto: o Teatro! Sempre guiados pelas dúvidas e incertezas do mestre Amir Haddad, pelas praças e ruas das cidades, aprendendo com os artistas populares o seu ofício e função social. Devolvendo, não o teatro para o povo, mas o povo para o teatro, como protagonista de seu próprio e legítimo drama.


No intuito de encontrar o espetáculo perdido, aquele que revela as contradições humanas e busca harmonizar o universo, o Tá Na Rua carnavalizou o teatro e teatralizou o carnaval; o seu Circo Etéreo percorreu becos e vielas de muitas nações e conviveu com etnias das mais variadas. Manifestou sua opinião, abriu a gira para todas as entidades, tornou o santo formoso. Não se curvou aos acadêmicos, mas fez escola... Não saiu nos cadernos de cultura, nas colunas sociais, nas críticas de teatro semanais. Ao contrário, seu nome estava presente nos “cadernoscidade”, em eventos e manifestações políticas, no carnaval e outras folias populares. Esta trajetória e o desenvolvimento de uma linguagem possível para o teatro de rua é o que queremos preservar e difundir para todos aqueles interessados no trabalho do ator que se dá em sacrifício para ser devorado pelo público, em oferenda ao Deus Baco. Mas, que difícil é a tarefa de colocar em “ordem” toda uma vida pautada pela visceral necessidade de desconstruir a ordem estabelecida! Seria possível organizar um livro não linear que só permitisse ser aberto pelos que pudessem vislumbrar, saltando de dentro dele nesse momento, reis, mendigos, saltimbancos, heróis, santos, anjos e diabos, dançando a coreografia do tempo com suas cores e sons, como num conto de fadas? Seria possível, com toda essa bagagem de acontecimentos, desejos, experiências, alegrias e dificuldades, montar um “livro-trouxa” que provocasse no leitor o mesmo deslumbramento do cidadão que passa distraído pela rua e de repente é arrebatado pela explosão da arquetípica trouxa de retalhos do Tá Na Rua? Quase como num dos fantásticos-números-perigosos dos seus primórdios, aceitamos o desafio intransponível, preparamo-nos longamente para tal empreendimento e, sob o rufar dos tambores criando o necessário suspense... saltamos um pequenino passo à frente. Aplausos e mais aplausos calorosos! Orgulhosamente, reverenciamos o público, cúmplice nessa deliciosa brincadeira de inventar (ou descobrir?) que o obstáculo a transpor era muito menor do que a gente pensava... Foi com este espírito que mergulhamos na tarefa. Sabendo que é só um passinho de nada o que arriscamos a dar, mas que nele está contido um universo a ser descortinado. Que fantástico número será apresentado, na próxima função? A Parte I é uma coletânea de textos que oferecem diferentes olhares e buscam situar a memória do grupo em momentos expressivos de sua trajetória, mas não se configuram numa seleção baseada puramente no critério temporal. Constituem uma primeira visão panorâmica que evoca os muitos aspectos de seu percurso, realçando apenas alguns que têm sido o foco de seus pesquisadores. Aqui, o Tá Na Rua se apresenta tanto como objeto de amor quanto objeto acadêmico, evidenciando os muitos relacionamentos possíveis com ele através desses vários olhares, vindos de espaços e tempos tão díspares.


Os escritos de Amir Haddad aparecem na Parte II. Refletindo sobre inúmeras questões relacionadas ao teatro e à vida, como cidadania, ética, ideologia, arte, estética e outros, o fundador e único diretor do grupo revela a profundidade do pensamento que norteou todo o trabalho do Tá Na Rua, desde o seu início. Os textos não estão organizados por critérios cronológicos, porém temáticos, enriquecidos com comentários atuais do próprio Amir que os releu, explicando-os e situando-os dentro do dia-a-dia do coletivo. A Parte III apresenta alguns dos mais importantes espetáculos realizados pelo Tá Na Rua. Não foi possível recuperar toda a produção do grupo, porque muitas das suas apresentações foram únicas, irrepetíveis; algumas, livres improvisos e intervenções urbanas; outras, transformadas em material didático para as oficinas de preparação de atores. A maioria não seguiu a lógica de produção de cartazes, folders, fichas técnicas e outros elementos convencionais do teatro, porque nunca compactuou com a fragmentação do fazer artístico. Seus temas tratam das questões universais, do ser humano: o homem e a mulher, seus encontros e desencontros, desde os conflitos dentro da família e da casa, até os do trabalho e da boemia, na busca por prazer, ascensão ou justiça social. Mesmo Dar Não Dói, o que Dói é Resistir, que finaliza o conjunto tratando de um tema histórico – a Ditadura Militar – o faz costurando, na mesma bandeira de luta, retalhos da vida nacional e internacional que transformaram inexoravelmente o mundo desde então. As Liturgias Carnavalizadas contemplam a Parte IV: são as grandes celebrações populares que o Tá Na Rua aprendeu a desenvolver junto com a cultura local de várias cidades desta terra brasilis, promovendo o seu encontro com o teatro, o do ator com o cidadão, em busca da utopia da cidade feliz, da feliz cidade. É o espetáculo brasileiro produzido diariamente pela mixagem das etnias e pelas culturas religiosas católica e afro-ameríndia; pela ginga do futebol e o humor do carnaval. A grandiosidade é a qualidade que melhor define os Autos e Carnavais aqui (apenas, ligeiramente) lembrados. Em complexidade de produção, em número de atores e público, no tamanho dos espaços utilizados, no sentido evocado e na emoção despertada naqueles que tiveram a sorte de vivê-los ou, apenas, assisti-los. Muitos poderiam perguntar: “Mas, por que só 28 anos depois da sua criação sai este livro?” E poderíamos responder: “Por falta de apoio, porque não tínhamos dinheiro, tempo, patrocinador! Porque somos desorganizados”. Ou talvez “Por isto! E aquilo! Quer saber por quê? Sei lá...!” Todos seriam, em si, motivos bons e aceitáveis, mas como Só a Verdade Salva, preferimos dizer que só agora o bolo ficou pronto, o samba tá afinado, a experiência de Amir Haddad chegou à sua síntese:

Tá Na Rua – Teatro sem arquitetura; dramaturgia sem literatura; ator sem papel!




Jussara Trindade


Com os braços abertos e erguidos, olhar direto no público, corpo pleno, fazendo dançar pelo espaço a capa colorida de cetim, o apresentador1 anuncia:

“Senhoras e senhores, este é o grupo...” Os atores respondem em uníssono, frisando cada sílaba do nome:

TÁ... NA...

Pronto. Está apresentado o grupo e podemos começar o espetáculo. Será que é simples assim? Nem tanto.

1. Elemento fundamental das estruturas narrativas adotadas pelo grupo Tá Na Rua, o apresentador é a mediação entre público e atores. É ele quem narra os fatos e as ações, conduzindo a apresentação e desenvolvendo um raciocínio coletivo, a partir do qual é “escrito” cenicamente o “texto” do espetáculo.

RUA!!!


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} Sobre o Tá Na Rua

O Tá Na Rua desenvolveu códigos nãoverbais, nestes vinte e oito anos de estrada. Códigos inscritos na memória coletiva do povo: uma maneira de andar, de se apresentar, de vestir, de dançar, de estar ali, que todos reconhecemos de algum lugar. O Tá Na Rua parece ao mesmo tempo tão incomum e tão familiar! Mal chegou e já criamos com ele uma certa intimidade, uma sensação de estar à vontade com aquelas pessoas que nem conhecemos; um impulso de fazer o mesmo, sair dançando, brincando, rir do próprio absurdo! É o espontâneo, em nós, reclamando seu espaço, neste mundo às vezes tão restrito e de regras determinadas, neste mundo onde temos que viver a aridez do dia-a-dia, a sisudez do adulto; é o popular, em nós, pedindo uma possibilidade de expressão mais ampla e calorosa, sem papéis sociais rígidos a cumprir, sem censuras prévias a temer. É o mundo, em nós, na sua plenitude, que por um momento se esquece de ser pretoe-branco e torna-se de repente, multicolorido. E gira! Tudo aqui mesmo, agora mesmo, ao alcance da mão, no presente. O Tá Na Rua começa assim, apresentando-se com um verbo – ação pura – na forma tornada também mais pura pelo emprego popular:

TÁ! Forma caracterizada pela redução

coloquial do verbo “estar”, conjugado no tempo presente do indicativo. Uma simplificação natural; é a ação tornada substantivo, impondo-se sobre a forma escrita e escolarizada da cultura oficial “está”. O TÁ é do mundo do povo, da comunicação direta, da objetividade, do ato concreto e não intelectualizado. O TÁ aproxima, afirma, coloca-se no espaço, corporifica uma idéia, materializa uma intenção, realiza um desejo. O TÁ tem a vogal primária – A – aquela que o bebê consegue produzir sem dificuldade e por isso é a primeira a ser emitida na fala humana de qualquer idioma, a vogal que soa pela simples saída do ar dos pulmões pela boca aberta – um som aberto, primordial, necessário para todos os demais fonemas da linguagem verbal. O TÁ emitido em alto e bom som pelos integrantes do grupo soa como um instrumento musical percussivo, é uma batida seca, um toque repentino dado pela consoante T; chama imediatamente a atenção de quem passa, exige o olhar de quem está à volta para alguma coisa prestes a ser revelada, carrega uma expectativa de rufar de tambor, apenas esboçada e já prolongada pela abertura do A, de boca – e peito – aberto.


Chegança {

Na velocidade de uma articulação fonética, o

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NA simultaneamente reforça e suaviza a batida

inicial. Reforça pela rítmica com que é emitido e pela entonação de um segundo A, tão aberto quanto o primeiro, e do qual é separado sonoramente por um pequenino lapso de tempo; uma pausa musical que dura apenas o suficiente para o espectador pressentir a segunda batida do tambor imaginário. Mas o NA também suaviza a assertividade do TA; agora o grupo convida a penetrar no mistério. É um chamamento ao mergulho, à entrada em outra dimensão, ao ingresso numa experiência que promete ser fascinante. EM2 é a porta de entrada neste lugar, a passagem para a liberdade e a imaginação, o portal que deverão atravessar aqueles que tiverem coragem de arriscar-se em terreno desconhecido. EM já fundido ao A seguinte –

2. Preposição que, na composição de adjuntos adverbiais, expressa idéia de lugar, tempo, modo de praticar uma ação. (Novo Dicionário

movimento direcionado a um espaço específico, não qualquer lugar. Abertura duplicada,

Aurélio da Língua Portuguesa)

reiterada, porém com destino definido. Pausa. “Para onde vocês estão me levando?” – pergunta-se o espectador. Rufa o tambor, agora longamente: RRRRRRRRRRR e finalmente

UUAAAAAA!!!

RRUUUUUUUU

é revelado o território da magia anunciada: RRRRRR

A palavra é articulada com sabor, substância, e tenta abarcar, com sua sonoridade, a amplidão do espaço aberto sem limites. Mas o som é ainda pouco: os braços dos atores se abrem para ajudar na tarefa, e os corpos giram ao redor do próprio eixo, como se com este movimento pudessem extrapolar sua insignificância pessoal e alcançar os confins de toda a Terra. Braços abertos que se prolongam para além dos dedos, tocando o horizonte e as estrelas, roçando o umbral dos deuses – quem sabe eles ouvirão, também, o chamado e

virão participar da festa? É aqui mesmo neste local e agora, neste mesmo instante; é no aquiagora que a magia do teatro está acontecendo; não no passado remoto ou no futuro incerto, mas já, na rua onde “você”, o transeunte, está. Ao anunciar seu nome, o grupo já expõe um fato, conta uma ação – o grupo está na rua – e vai fazer alguma coisa espetacular, que você não pode perder. Para aquelas populações mais identificadas com as culturas tradicionais de longa duração, festivas, rústicas, anônimas, cômicas, que misturam o sagrado e o profano com uma


26

} Sobre o Tá Na Rua

aparente espontaneidade (Rabetti, 2000), este é um chamado irresistível, pois tem a sua fala, a sua língua. Ao ouvir o chamado, o passante volta seus olhos para o centro da roda onde os atores iniciam seu ofício, e capta aquele universo utópico, capaz de integrar opostos e aceitar o “desqualificado”, o “mau”, o “feio” e o “errado” (Carneiro, 1998, p. 06). É um 3. Percepção do mundo oposta às idéias de perfeição, imutabilidade e eternidade, caracterizada por uma lógica “ao

mundo impregnado por uma percepção carnavalesca3 (Bakhtin, 2002) por excelência, onde o riso é a expressão mais genuína e terrena. São homens e mulheres, reis, diabos, fadas, prostitutas, políticos, cangaceiros, santos, mendigos e outros personagens, mutantes ou

avesso” e pela relatividade das verdades e do poder. Bakhtin encontrou-a na linguagem carnavalesca da Idade Média e do Renascimento que permeia toda

ambivalentes: uma gorila-fêmea rodopia sensualmente em seu vestido de baile e louras tranças; um anjo grita ferozmente e avança para a platéia, empunhando ameaçadoramente um tridente; não é possível, para o público, ficar indiferente a este delicioso absurdo, de

a obra literária de François Rabelais.

forma que durante o espetáculo alguns adentram a roda e participam ativamente. Afinal, para a concepção carnavalesca de mundo não existem espectadores e atores separados – a segunda vida proposta pelo carnaval é para ser vivida e não assistida; alguns conseguem transpor as barreiras da interdição e a vivem, com grande prazer. É uma prática comum, nas culturas de todos os tempos, de povos tanto do ocidente, quanto do oriente, o uso de palavras, frases, canções, sons e gestos ritualizados, no início das mais


Chegança {

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diversas manifestações espetaculares, populares ou não, com o objetivo de delimitar claramente este momento especial, marcando assim a passagem de um estado ordinário da consciência cotidiana a outro, no qual serão exigidas faculdades mais refinadas que as usuais para o alcance de uma compreensão mais ampla da realidade. Mesmo sem fins especificamente devocionais, como os toques dos sinos nas igrejas cristãs e templos budistas, estes elementos estão carregados de energia religiosa, no sentido etimológico de religare4. Buscam religar o homem à experiência divina, da qual este encontra-se distanciado

4. Do latim religare: religar, reunir.

nas circunstâncias comuns da vida, e que tem a necessidade, profundamente humana, de reviver periodicamente. É o silêncio que antecede o trovão: o rufar dos tambores no suspense da mágica circense; o canto de chegança5 da Folia de Reis; o “Abre-te, Sésamo!” de Ali Babá diante da caverna secreta; o “Respeitável Público!” do apresentador para a platéia do circo; as três batidas de Molière6 no início do espetáculo. São formas imemoriais criadas

5. Canto que os foliões executam ao chegar às casas que participam do festejo, cumprimentando seus donos e pedindo licença para nela entrarem.

pelo homem através dos tempos, a fim de partilhar com o outro um conhecimento que precisa ser partilhado e que merece não só atenção, mas exige toda a atenção. Por isso, vem precedido de um suspense que se intensifica e, a seguir, explode como os fogos de artifício que anunciam a escola de samba prestes a entrar no espaço sagrado da Passarela. Referências CARNEIRO, Ana Maria Pacheco. Espaço Cênico e Comicidade: A busca de uma definição para a linguagem do ator (grupo Tá Na Rua – 1981).Dissertação de Mestrado em Teatro - Centro de Letras e Artes/UNIRIO, 1998. RABETTI, Maria de Lourdes. Memórias e Culturas do Popular no Teatro: o Típico e as Técnicas. In O Percevejo/UNIRIO, ano 8 n8 (p. 3-18), 2000. BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de François Rabelais. São Paulo: Annablume Editora, 2002.

6. Jean Baptiste Poquelin, considerado na historiografia do teatro como o gênio da comédia clássica francesa do século XVII.


Ricardo Pavรฃo (1981)

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} Sobre o Tรก Na Rua


Cheganรงa {

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Amir Haddad


“Você entra aqui e se senta à minha direita. Todos os outros, vocês que são do grupo de teatro, se sentem à vontade em torno da mesa.” Vamos almoçar com Tia Neiva, a paranormal responsável pelos trabalhos e pela implantação do Vale do Amanhecer, cidade esotérica situada nos arredores de Brasília. Fomos levados até lá por Vicente Pereira, então, jovem autor de teatro por quem eu tinha grande admiração e em quem depositava muita esperança, como dramaturgo saindo da esterilidade criativa da ditadura brasileira. “Você tem que conhecer a Tia Neiva. A cidade dela é espetacular e seus ritos, encenações, cenários e figurinos são fantásticos. E as emanações energéticas do lugar são poderosas” me dizia ele, que sempre sofrera espasmos místicos, de resto de acordo com a época e a cara da década de 70 que acabara de se encerrar. Estamos em 1980 e o grupo era o então Grupo de Niterói, antecessor do atual Tá Na Rua. Fomos levados a Brasília pelo SESC, há décadas responsável por tantos movimentos de grupos de teatro pelo Brasil. Vicente Pereira achava que não podíamos perder a oportunidade de conhecer Tia Neiva.


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} Sobre o Tá Na Rua

Tínhamos medo de que ela não pudesse nos receber, já que o seu acesso era bastante difícil, até mesmo para os políticos que queriam consultá-la, talvez sobre seus destinos políticos. Seu marido fazia a triagem dos que podiam chegar até ela. À nossa chegada a recepção foi surpreendentemente fácil. “Faz dois anos que esperamos a chegada de um grupo de teatro”. Não sei se foi dito “vocês”. Não lembro. Mas disse que nos estava esperando havia dois anos, que era, na época, o tempo de vida que o grupo tinha! A antiga motorista de caminhão, agora transformada em sacerdotisa e pitonisa, impressionava pelo aspecto e pela força que dela parecia emanar. Tinha os olhos verdes muito claros (ou eram azuis?) cuja luminosidade era realçada por dois grossos traços do delineador de lápis preto que ela usava em torno deles. Parecia que com isto ela enxergava além das aparências. Andamos pelo local/templo aberto e fechado, numa concepção cenográfica que as pessoas da época consideravam kitsch, mas que me impressionava muito. Recebemos passes. Em alguns recintos, as energias liberadas faziam as cortinas tremularem, embora não houvesse brisa nem ventos. Na época, dois mil “médiuns” desenvolvidos por ela trabalhavam no local, todos pareciam estar vestidos de mágicos ou condes, devido aos mantos e grandes golas que usavam.

“Você entra aqui e senta à minha direita” ela disse, depois, à hora do almoço. Seu marido e secretário sentou-se à sua esquerda. Senti-me homenageado. Sentei-me à direita dela e almoçamos. Depois de um tempo ela se voltou para mim e disse:

“você sabe que nos espaços etéreos tem teatro?” Eu tremi. De descrédito, confiança, curiosidade e esperança! “Que teatro? Como, Tia Neiva?” Imaginava formas translúcidas, ausência de matéria. Que teatro? Sempre me preocupara com a fisicalidade e a presença do ator! Que teatro, fora da matéria? Ela me explicou:

“se chama... Circo Etéreo.


A função da “função” ou o circo etéreo {

“Quando desencarnamos, em tese, perdemos peso. Isto possibilita dizer que a nossa energia, liberada pela morte física, perdeu peso o suficiente para se libertar da força gravitacional do planeta e dirigir-se a outras regiões, onde serão saneadas e restauradas em direção a uma maior pureza e luminosidade”. Assim, entendi o que ela me dizia... “Mas algumas almas ou energias estão tão apegadas ao que fizeram quando na carne, que não conseguem se desvencilhar dela. Embora desencarnadas, não conseguem, por apego, recuperar a leveza e se libertar dos grilhões da terra. E se acumulam, ao longo da crosta terrestre, como energia negativa geradora de transtornos e dificuldades para o desenvolvimento do planeta. Estas pessoas não foram as melhores, embora pudessem ter sido as mais poderosas”. Os políticos representavam, mais ou menos, este tipo de pessoas com ambição desmedida, maus propósitos e sentimentos humanos poucos generosos. Por isso, ela quis fazer o Vale do Amanhecer nos arredores de Brasília - para dissipar a energia negativa que paira sobre a cidade, palco e cenário de tantas lutas surdas alimentadas pelos nossos piores sentimentos. Ao desencarnarem, estas energias obscuras não conseguem encontrar o seu caminho em direção à luz. Formam, em torno do planeta, uma camada de negatividade muito grande e prejudicam o nosso crescimento. A aura do planeta fica escura.

“... Aí então é que entra em cena o Circo Etéreo”, ela me disse. O “Circo” se aproxima da atmosfera do planeta e acende todas as suas luzes. Mímicos, bailarinos, atores, músicos, poetas, dança, circo e teatro. Suas luzes transportam melodias para longe, a ponto de atrair a atenção daquelas energias negativas paradas ao redor do planeta. Atraídas pelas luzes, estas conseguem se libertar do peso que as prende ao planeta e se deixam arrastar pelo fascínio do espetáculo de cor e alegria que se desenvolve, iluminado, à sua volta.

33


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} Sobre o Tá Na Rua

Segundo Tia Neiva, ao receber este banho de luz e alegria, tais energias nunca mais voltarão a ser como antes, e poderão seguir seu caminho em direção a mais e melhor luz, que é o seu destino; e ao mesmo tempo estarão limpando e saneando o planeta, para que ele possa

“Esta é a função do Circo Etéreo, eterna e essencial para o desenvolvimento do ser humano, do planeta e do universo”. Parece ter-me dito ela. encontrar os seus melhores caminhos.

Ao passar pelo espetáculo, as almas confusas e pesadas são tocadas por uma luz que as esclarece, permitindo-lhes avançar em direção à consciência e ao esclarecimento. Eu vivia querendo saber pra que servia o teatro que eu estava fazendo. Não conseguia entender por que eu fazia aquilo. Abandonei o Teatro, não encontrava sentido nele. Com a ditadura, parecia ainda mais absurdo e sem sentido. Parei, pensei. Fui fazer teatro nas ruas, mas ainda não sabia por que eu fazia aquilo, para que eu fazia, se tinha alguma função!

A “função” do Circo... A função! “Vai começar a função!” Então será ESTA a função? Qual o sentido, qual a função daquilo que eu estava fazendo ou querendo fazer? Pra onde iria o meu teatro? Minha estrada mal se delineava, o Tá Na Rua nem tinha se formado. E de repente estávamos em Brasília! Nossa primeira viagem, e fomos ao Vale do Amanhecer, Tia Neiva diz que estava nos esperando e conta como funciona o “Circo Etéreo”, que é o Teatro que disse existir no espaço etéreo, e qual a função desta “função”! Muitas vezes representamos nas ruas do Rio de Janeiro, e principalmente no Largo da Lapa. E muitas vezes nós, eu e meus atores do grupo Tá Na Rua, conseguimos tal harmonia em nossos jogos e representações e movimentos e poesia que, por um bom tempo, aquela população de rua que freqüenta a praça abandona tudo o que estava fazendo - droga, cachaça, briga, sexo, assalto - e vem, atraída por nossas luzes e acrobacias, para participar conosco do acontecimento. Ao final, se junta a nós e nos ouvem comentar o trabalho. Dão palpites, participam durante o espetáculo. Alguns fazem coisas muito bonitas e comoventes. Nestes

momentos, não tenho como deixar de pensar no Circo Etéreo.


A função da “função” ou o circo etéreo {

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E... não será esta a função da “função”, não só do meu teatro, mas do Teatro em geral na vida humana? Não é uma mensagem; é uma linguagem, um rito, uma festa, uma celebração.

É a crença de que o ser humano é capaz de ir ao encontro da sua própria luz e que esta é o seu destino natural. A crença na UTOPIA que existe dentro de todo artista. A crença de que o espetáculo representa a harmonia final e recupera o “Paraíso Perdido”. A crença de que o Teatro é a UTOPIA representada.

Só trabalhando nas ruas ou praças, no espaço totalmente aberto, falando de assuntos que interessam a todos, sem distinção de sexo, raça, cor, classe, religião, com todos acompanhando a mesma história, a linguagem eliminando a estratificação social, é que se pode ter esta sensação e a certeza de que o Teatro é a UTOPIA representada. Um minuto de vivência de Utopia e Entendimento poderá abrir caminho para a esperança, eternamente. Como queria Tia Neiva.


Sérgio Luz (in memorian)

ALGU MA COIS A ACO NTEC NO M E EU COR AÇÃ O


“Alguma coisa acontece no meu coração” quando eu estou chegando na rua com a trouxa que contém várias fantasias velhas, panos coloridos, já usados, pra daí a pouco apresentar o teatro de rua.

Eu tô na rua.

E cadê meus pavores de filho da pequena burguesia, de família de médico liberal que misturava marxismo com positivismo, criado num lar que garantia a reprodução do sistema muito eficazmente, enquanto aliviava a consciência numa tradição Getúlio-trabalhismosocialismo utópico? O bumbo do Tá Na Rua bate, a gente canta e a roda se forma. São apresentados personagens do nosso cotidiano. Os nossos atores apresentam suas especialidades: Lucy – a mulher que grita, rodopia e cai. Tão simples, tão rotineiro. Pode acontecer em qualquer lugar. Qual a mulher que não faz isso? Pra que serve? Pra aliviar a tensão, a tesão, sei lá, dizem as pessoas em volta. E alguma coisa acontece no meu coração. Agora, o Artur – ele aprendeu nas melhores escolas do mundo a fazer uma coisa que parece fácil, mas só com muitas lições se vai à rua fazer isso: Artur coça o saco. O povo dá risada. Será o marido da Dona Lucy? Enquanto Dona Lucy grita, rodopia e cai, Seu Artur coça o saco. Quem não sabe fazer isso? Qual o homem que não faz? Que espelho é esse? - pergunto eu. Quem dá risada, reconhece. Se reconhece. É o avesso do avesso, penso eu. E alguma coisa acontece no meu coração. E vem a Rosa. A Rosa sabe sofrer. Não é pra qualquer um. Mas com o que a Rosa sofre? Ela não diz... Mas as pessoas na roda dizem. Depende da roda em que se está. Pode ser com o salário mínimo, trem, gasolina, homem, repressão... E a Rosa tem que saber morrer. Porque não é qualquer coisa que mata a Rosa. Tem que ser uma coisa forte, que no momento se sinta como tal. Mas “a mente apavora o que ainda não é mesmo sério”. Pois a Rosa sofre, morre e renasce a cada dia. Mas, o que a faz reviver? E as pessoas revelam seus íntimos e – engraçado – mais públicos desejos. E a Rosa tem que saber renascer. Porque não é com qualquer coisa. Com tantos desejos, só um igual ou maior do que a força do motivo que a matou. E as pessoas aplaudem a volta olímpica da renascida. E ficam tão felizes quanto eu. Será o esperanto? Pergunto eu. Que linguagem é essa que provoca a linguagem das pessoas? Que ator é esse que tá na rua pleno de contradições e que revela as contradições do povo em volta? “Você disse que não sabia mas tá coçando o saco...”


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} Sobre o Tá Na Rua

“É preciso estar atento e forte...” Eu me lembro de 1969. Tinha deixado de fazer cinema em final de 68. Tipo risonha promessa, sendo afilhotado pelo cinema novo para entrar na militância política através do movimento secundarista. Não queria falar da revolução pelo cinema. Não queria mais falar de sociedade dividida em classes sem levar uma luta concreta pela transformação desse estado de coisas. Luta armada. Negava um passado que eu já tinha de muitas leituras, muitos cinemas, teatros, muito prazer. Um firme revolucionário. Dezesseis, dezessete, dezoito anos. Uma repressão horrorosa no Brasil. O belo encontro com o povo na rua ficou postergado para depois da revolução. A quase clandestinidade. Rio – cidade fechada. Agora é o negro do grupo. Ricardo. Louro, compridos cabelos lisos. O que o negro faz? Trabalha. E os senhores botam o negro pra trabalhar. Violentamente. Se eu sou a cabeça, ele é o corpo. Eu boto a minha máquina pra trabalhar pra mim. E o povo dá risada, pede ao negro pra trabalhar pra ele. Tem muito negro botando o negro pra trabalhar e dando cascudo nele. É divertido entrar nesse teatro. Mas quem quer fazer o papel do Ricardo? Ninguém, é claro. E agora Marilena, a índia, índia sangue tupi. Que no atual momento já está na beira da estrada, biritando muito. Que rebola ao som de “Maria Helena és tu...” Perfeita imitação de índia. Que atriz é essa, se pergunta Marilena, que tem que estar fazendo a índia com todo sentimento e esse sentimento tem que estar aberto para compreender que a índia já saiu da selva e está na beira da estada, pelo movimento daqui e de agora, daquela apresentação? Quando eu encontrei o Amir como um professor do curso do Teatro dos Quatro, foi um desafogo. O seu teatro não era mágico. O ator não era dotado pelos deuses de um sublime sopro espiritual, mas sim alguém que precisava estar presente com toda sua consciência, informação e canais de sensibilidades abertos para um jogo que pode ser simples se se quiser, com esse jogo, revelar as contradições que estão presentes em todos os personagens, as contradições que encontramos nas relações que os homens estabelecem entre si. Econômicas, culturais, afetivas. Embora eu tivesse uma tendência cultural a querer ser um Marlon Brando ou James Dean, isso era absolutamente atormentante, difícil e ridículo, enfim, para mim. Muito especial e vazio. Pesado. Sem graça. Ganhar o Oscar e ficar gordo e enfastiado. Esse filme eu já vi. Essa papel eu não queria pra mim.


Alguma coisa acontece no meu coração {

E agora vem a Ana, com o filho dando cambalhotadas na barriga e já na rua. Presença antevista em Xuxa e Krikeroa. E Betina, a mulher que se vira dando estrelas na rua.

E eu, o cigano que não tem papel previsto nessa sociedade que se conhece. Que saltou fora da vida de bancário para um outro futuro. Alguma coisa acontece no meu coração. E tem Amir Haddad, o homem que fala sem parar. Que chuleia e borda com as contradições na rua, no teatro e na própria vida. Que quer mostrar o avesso do avesso. O homem que fala sem parar quer que todo mundo fale. Papa fina esse teatro que parece ser o deus Príapo: rústico, obsceno, 2000 anos de idade.

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Jussara Trindade

TĂ NA RUA:


memórias de um percurso O grupo Tá Na Rua é resultante de um longo processo. A fim de elucidar os pontos mais importantes de sua trajetória, recorro a Ana Carneiro, atriz fundadora que nele atuou por muitos anos: As origens mais remotas do Tá Na Rua vão ser encontradas, sem dúvida, nas inquietações de Amir Haddad, coordenador do grupo, sobre o fazer teatral. As possibilidades de aprofundar as questões propostas por sua prática, porém, só se deram em âmbito tão amplo e profundo devido à permanência de um núcleo de atores igualmente inquietos e dispostos a com ele trilhar os caminhos de uma pesquisa teatral nem sempre clara e da qual, de início, se sabia apenas o que não se queria (CARNEIRO, 1998, p. 222). Tais inquietações relacionavam-se a questões fundamentais do teatro: dramaturgia, uso do espaço, modos de produção, trabalho dos atores; e isto justamente num período em que

a “ordem do dia” mundial era derrubar as estruturas vigentes – contingência histórica que assumia, no Brasil, o caráter de resistência cultural contra o regime político instalado pelo golpe militar de 1964.


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} Sobre o Tá Na Rua

A COMUNIDADE Grande parte dessa contestação, oriunda do meio teatral, encontrava-se instalada no segmento mais jovem, o qual tendia a formar equipes de criação auto-geridas por regimes de produção cooperativados (FERNANDES, 2000). Um dos coletivos de maior destaque na época 1. O grupo A Comunidade foi criado por Aylton Escobar, Paulo Afonso Grisolli, Marcos Flaksman, João Rui Medeiros, Tite de Lemos e Amir Haddad. Ainda faziam parte do coletivo: Geraldo Torres, Maria Esmeralda, Jacqueline Laurence, Joel de Carvalho e Nelly Laport. Acervo Tá Na Rua.

foi A Comunidade1 - importante grupo experimental carioca que estréia em 1968 apresentando Parábola da Megera Indomável. No espetáculo, o autor-diretor Paulo Afonso

revoluciona o espaço, abolindo completamente, pela primeira vez no teatro brasileiro, a divisão entre espectadores e acontecimento cênico (MICHALSKI, 1985). Grisolli

Logo, A Comunidade já tinha como diretor o paulista Amir Haddad, que voltara recentemente de Belém do Pará trazendo o desejo de trabalhar não mais com elencos profissionais, mas com coletivos de criação que poderiam dar continuidade às suas experiências teatrais. Sobre o primeiro espetáculo de A Comunidade dirigido por Haddad, o crítico de teatro Yan Michalski analisa: Numa linha algo próxima do Oficina, o grupo carioca Comunidade produziu um espetáculo emocionante, A Construção, onde a partir de um texto um tanto ingênuo de Altimar Pimentel o diretor Amir Haddad teceu um comentário cênico ousado e desenfreado sobre as crenças míticas do povo nordestino. Sobretudo em matéria de experimentação original do espaço cênico, A Construção constituiu-se num marco importante e projetou Haddad para a primeira linha dos criadores do novo teatro (MICHALSKI, 1985, p. 40). Um grande sucesso de público e de crítica, A Construção recebeu o prêmio Molière de melhor espetáculo de 1968. A Comunidade continua suas pesquisas formais através de Agamêmnon, de Ésquilo (1970); em 1971 encena Depois do corpo, de Almir Amorim, espetáculos também dirigidos por Amir Haddad, concebidos e realizados no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro. Neste ano o diretor recebe novamente o prêmio Molière – com O Marido vai à caça, de George Feydeau.


Tá Na Rua: Memórias de um percurso {

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Seguindo uma tendência típica dos conjuntos da época – uma vida intensa e breve - A Comunidade encerra seu ciclo em 1972 e os integrantes se dispersam. Amir Haddad, por sua vez, mesmo tendo conquistado por duas vezes o prêmio acima citado, sentia-se insatisfeito com os rumos políticos do país e de seu ofício, e decide então viajar para o exterior, onde permanece por vários meses num trajeto que tem início em Paris e se estende a outros países da Europa e continente africano.

O TEATRO MÁGICO Alguns dos atores daquele coletivo, como Geraldo Torres e Maria Esmeralda, passam a integrar o Teatro Mágico, pequena companhia teatral formada por ex-alunos da então Escola de Teatro da FEFIERJ2. Neste momento, o grupo se encontrava no início de uma carreira promissora, como conta seu diretor na época, José Luiz Coelho Ligiéro: Eu tinha montado um espetáculo: As Loucuras do Dr. Qorpo Santo, em 1973, com atores

2. Federação das Escolas Federais Isoladas do Estado do Rio de Janeiro, atual Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO.

formados na Escola de Teatro aqui da UNIRIO, antiga FEFIERJ, e eram todos meus colegas. Nós terminamos a escola e tentamos fazer um grupo profissional. Convidei o Ivo Fernandes, Reinaldo Machado, e Thaia Peres, que era mulher dele e já tinha trabalhado profissionalmente em Hoje é Dia de Rock, junto com Marisa Short e Luiz Joseli. Maria Esmeralda foi minha assistente de direção e Toninho Vasconcelos foi um ator, amigo, que veio trabalhar conosco; enfim, eu montei um espetáculo a partir da vida e da obra de Qorpo Santo. A gente fez uma temporada, recebemos excelentes críticas. (...) A gente se apresentou no Teatro Glaucio Gil, no Teatro Brigitte Blair e vários teatros da periferia3. De volta ao Brasil, e com o desejo de retomar o trabalho de pesquisa e criação coletiva

3. Zeca Ligiéro, em entrevista concedida a Jussara Trindade.

interrompido pela sua saída do país, Haddad convida o Teatro Mágico para a montagem de

um espetáculo – a síntese de uma profunda reflexão sobre o ofício teatral, iniciada anos antes – Somma ou Os melhores anos de nossas vidas. Ligiéro conta como se deu o início da formação do novo coletivo: Todo esse pessoal que estava trabalhando comigo tinha sido aluno do Amir na escola. O Amir tinha sido expulso da escola [FEFIERJ], de forma inesperada e inexplicada. Então eles tinham vontade de voltar a trabalhar com o Amir, e foi esse encontro. E aí eu acabei trabalhando como ator, e entrando também, participei de todo o processo. E foi muito bom, foi uma experiência muito rica, porque eu já tinha tido experiências como ator, mas era uma coisa intuitiva, uma coisa que eu me auto dirigia, quer dizer, eu nunca tinha sido dirigido por alguém. Foi a primeira vez que eu trabalhei com um diretor. E foi bastante interessante.


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} Sobre o Tá Na Rua

4. Somma tem especial importância para a história do grupo Tá Na Rua, pois é a partir desta experiência cênica que irá

Somma ou Os melhores anos de nossas vidas4 foi um espetáculo construído coletivamente, com improvisações realizadas pelo elenco a partir da coletânea de textos com os quais Amir Haddad trabalhara nos últimos anos de sua carreira como diretor teatral. Para dar conta de

se estruturar toda a pedagogia teatral desenvolvida posteriormente por Amir Haddad junto ao coletivo, em suas oficinas teatrais.

tarefa tão complexa, os atores do Teatro Mágico trabalharam em torno de seis horas por dia, seis vezes por semana, de novembro de 1973 a julho de 1974, quando estreou no palco do Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro. Toda a dedicação do grupo foi, todavia, destruída pela ação predatória da censura. Proibido após quinze apresentações apenas, o espetáculo foi considerado “uma apaixonada e corajosa, mas desorientada e confusa colagem de trechos de trabalhos anteriores de Amir Haddad, que acabou, aliás, sendo retirada de cartaz pela censura no meio da sua carreira” (MICHALSKI, 1985, p. 61). E foi com estas concisas palavras que o eminente crítico aludiu ao segundo e último espetáculo do Teatro Mágico. Embora a interdição tenha sido, em si, um dos inúmeros episódios lamentáveis da ditadura relacionados ao teatro no Brasil, foi esse fato que levou ao nascimento do núcleo embrionário de pesquisa teatral que tornar-se-ia o precursor do Tá Na Rua. Aos remanescentes, que se afastaram dos palcos depois da fracassada tentativa de mobilização das autoridades cariocas quanto aos prejuízos advindos da censura de Somma, unem-se novos integrantes e, juntos, formam um grupo de estudos teatrais que batizam

5. “Do período inicial (dez. 1974) até seu final, são diversas as formações do Niterói. Do grupo de atores oriundo de Somma, a maioria se afasta ainda nos inícios da pesquisa. Permanecem no grupo: Zeca Ligiéro e Duca Rodrigues (até 1976); Haylton Farias (até 1979) e Toninho Vasconcelos (até 1980). Há também atores que não participaram do Somma, como Ângela Rebello e Jana Castanheira, que permanecem até 1977. Em 1976, ao grupo então existente, juntam-se: Ana Carneiro, Artur Faria (ex-alunos da Escola de Teatro da Fefierj) e Betina Waissman (aluna de Amir Haddad no curso de Teatro Brasileiro Contemporâneo, na Escola de Teatro Martins Pena, em jan. – fev. 1976), que serão também integrantes do grupo TÁ NA RUA; Anderson, (aluno de Amir na Escola de Teatro Martins Pena; permanece até 1977); Valéria Moreira (ex-aluna da Fefierj) e Carlos César Galliez (psicoterapeuta; trabalha no grupo como ator), que permanecem até o rompimento do Niterói (1980)” (CARNEIRO, 1998, p. 223).

como Grupo de Niterói5.


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O GRUPO DE NITERÓI Esses atores convidam Amir Haddad para ser o seu coordenador, dedicando-se a partir de então à investigação de uma linguagem teatral diversa daquela considerada “oficial”, baseada na arquitetura espacial e ideológica do palco italiano6 e na existência na quarta parede7, ou seja: a de um teatro fundamentado na herança do realismo burguês do século XIX, com o qual não compactuavam. Nesse período, em que ocupavam uma sala do Diretório

6. Lídia Kosovski define cinco tipologias básicas de palco, inscritas em cada período histórico: o anfiteatro grego, o palco múltiplo medieval, o palco

Central dos Estudantes da Universidade Federal Fluminense – o DCE da UFF -, os integrantes do Grupo de Niterói foram levados a aprofundar outros conhecimentos, principalmente sociológicos e psicológicos, tendo como principal fonte os estudos de Stanislavski8 e Reich9

triplo elisabetano, o espaço renascentista da tragédia clássica e o palco italiano, “o espaço mimético, como espaço de espelhamento da realidade,

sobre a interferência da rigidez muscular nas emoções e na capacidade expressiva do ator.

criado progressivamente durante

A necessidade de compreender a realidade brasileira, discutir o poder e o autoritarismo de

o decorrer do século XVIII para

que haviam sido vítimas naquele momento, estabeleceu um fio condutor para o

século XIX, na própria medida em

entendimento daqueles fatores repressivos, atuantes não só na organização política do país como um todo, mas também nos cidadãos, artistas ou não, afetando individualmente seus corpos e suas relações humanas. Realizando um verdadeiro “mergulho” nas matrizes

chegar ao seu coroamento no que a burguesia constrói o lugar concreto de suas próprias coisas”. (KOSOVSKI, 2005, p. 10). 7. “Parede imaginária que separa o palco da platéia. No teatro

conceituais geradoras da sociedade brasileira, os atores iniciaram um estudo com o texto

ilusionista (ou naturalista), o

dramático Morrer pela Pátria, de Carlos Cavaco (1936). Nesse período, eles procuravam

que se supõe rolar

discutir textos, dramáticos ou não, que iluminassem os processos ideológicos presentes na

espectador assiste a uma ação independentemente dele, atrás de uma divisória translúcida. (...) O realismo e o naturalismo levam ao extremo essa exigência de separação entre palco e platéia, ao passo que o teatro contemporâneo quebra deliberadamente a ilusão, (re)teatraliza a cena, ou força a participação do público”. (PAVIS, 2003, p. 315). 8. Stanislavski, teatrólogo russo criador de um método teatral baseado nas sensações e vivências pessoais do ator, desenvolvido no Teatro de Arte de Moscou, no início do século XX. 9. Wilhelm Reich, psicanalista austríaco dissidente de Freud que, na década de 20, elaborou a Teoria do Orgasmo com base em estudos sobre a rigidez muscular e rompeu com a tradição verbal da psicanálise, trabalhando diretamente com o corpo de seus pacientes.


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} Sobre o Tá Na Rua

sociedade, que se expressavam na defesa de certos valores nacionais muito exaltados naquele momento, como “Deus”, “Pátria” e “Família”. Esse texto, descoberto por Zeca Ligiéro - que se mantinha próximo da equipe embora não participasse dela ativamente – foi para os integrantes um verdadeiro tesouro, como ele mesmo nos revela: Mas enfim, eu era casado com a Ângela Rebello, e ela começou a participar do grupo, e começou a procurar textos. E eu falei: “olha, tem um texto maravilhoso que eu gostaria de montar algum dia, mas tudo bem, vou abrir mão dele porque também agora eu não vou montar”. E aí ela levou, e todo mundo e o Amir também se encantou com o texto, porque contava a história de um militar, e tal, Revolução Comunista... Era um texto fascista. E eu tinha montado apenas um ato desse texto na escola. Só que eu montei como farsa, não 10. Zeca Ligiéro, em entrevista concedida a Jussara Trindade.

montei como querendo acreditar muito nele. E foi muito engraçado, era muito provocante10. Detectados como o âmago do conservadorismo brasileiro, aqueles conceitos apresentavamse entrelaçados não somente às concepções especificamente autoritárias da direita reacionária, mas também às da esquerda política, num substrato mais profundo, presente, inclusive, nas ações e discursos dos próprios membros do grupo, e que se desvelava à medida que o processo de pesquisa se desenvolvia. São esclarecedores alguns depoimentos de integrantes do Grupo de Niterói, que vivenciaram essa experiência: “Ficamos lá noites, anos, desvendando a nossa pesquisa de linguagem

11. O termo “ideologia” é utilizado por Ana Carneiro no sentido “napoleônico”, isto é, designando “um sistema de

teatral, desvendando Morrer pela Pátria e, com ele, toda a ideologia11 autoritária de que cada um de nós estava impregnado” (REVISTA TÁ NA RUA... 1981).12 Os participantes desse grupo de estudos esforçavam-se, através da reflexão crítica sobre uma obra teatral, entender as

idéias condenadas a desconhecer sua relação real com a realidade” (CHAUÍ, 2005, p. 28).

estratégias por meio das quais uma determinada visão de mundo é inculcada nos membros da sociedade:

12. Depoimento de Ana Carneiro.

Foi um tempo de muito questionamento, trabalhando em cima de nossas contradições. Descobrimos que não basta rir do ridículo, do reacionarismo desses princípios. Primeiro, é preciso nos livrarmos de nossa identificação com essa ideologia. Afinal, nós nascemos no Brasil, filhos da pequena burguesia, metidos a artistas engajados, impregnados dos 13. Depoimento de Artur Faria.

valores da ideologia dominante13 (REVISTA TÁ NA RUA... 1981).


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Tais reflexões levaram o grupo ao enfrentamento de questões que se infiltravam na própria vida pessoal e profissional de cada um, e surgiam abundantemente nas improvisações livres que o Grupo de Niterói utilizava como estratégia para pesquisar a estrutura dramatúrgica e ideológica de um texto dramático. Nós começamos a estudar esse texto e a ver como nós nos reuníamos como grupo; a gente reproduzia esse modelo calmamente (...) aí começamos a mexer nisso, como nós podemos representar essa peça de maneira que as pessoas saibam que nós estamos falando isso, mas que nós não somos isso (...) você botar um olho falso, botar nariz, fazer o bandido ficar assim, aí é fácil (...) nós não podemos botar defeito físico para diminuir esses cidadãos, porque essa ideologia está no poder, eles são dominantes (...) vamos fazer com distância e mostrar que é real, que isso existe (HADDAD, 2004, p. 59-60). Foi um período de intensa reflexão acerca do trabalho teatral que se buscava, o qual mesclava questionamento político e auto-conhecimento pessoal; porém, a pesquisa centrava-se mais na leitura das cenas e nas discussões que estas proporcionavam; “num trabalho que muitas vezes beirava os limites de um processo analítico/psicológico, e que se afastava dessa possibilidade ao se firmar, sempre, no contato com a realidade” (CARNEIRO, 1998, p. 229). A necessidade de intensificar este contato com a realidade impeliu o Grupo de Niterói a buscar a presença de público: a partir de maio de 1977, os integrantes começam a realizar ensaios abertos, em espaços diferenciados. Beneficiado com edital do Serviço Nacional de Teatro (SNT), sediou-se na Sala Joel de Carvalho do Centro Experimental Cacilda Becker, no Rio de Janeiro, onde passa a atuar em contato direto com as pessoas presentes, rompendo com o espaço teatral tradicional. Ensaios abertos eram realizados também em salas de aula da Universidade Federal Fluminense (UFF), cine-teatros e associações de moradores, sempre estabelecendo, nestas apresentações, uma relação muito próxima com os espectadores. Após anos de leituras e experimentações, foi dado início à montagem de Morrer pela Pátria. Em meio a este novo movimento, ou talvez mesmo por causa dele, em fevereiro de 1980 o Grupo de Niterói se rompe, nele permanecendo apenas três integrantes: Ana Carneiro, Artur Faria e Betina Waissman. A esse núcleo, ainda coordenado por Amir Haddad, vêm agregar-se Ricardo Pavão, que participara de Somma, e José Carlos Gondim.

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} Sobre o Tá Na Rua

A FORMAÇÃO DO TÁ NA RUA Paralelamente a estas atividades, Haddad ministrava cursos livres de teatro em outros espaços. Um desses, realizado no recém-criado Teatro dos Quatro, no Rio de Janeiro, foi crucial para o surgimento do Tá Na Rua. Na ocasião foram utilizados, como material pedagógico, 14. A moça que beijou um jumento pensando que era Roberto Carlos, de Dilson da Cruz; A revolta de São Jorge contra os invasores da Lua, de Erotildes Miranda dos Santos; Antônio de Lisboa e a sereia do fundo do mar, de Mivelino F. da

textos de cordel14, teatralizados anteriormente pelo Grupo de Teatro Livre da Bahia15, e músicas do cancioneiro popular brasileiro carregadas de grande dramaticidade, como Vingança (1951) e Nervos de Aço (1947), de Lupicínio Rodrigues, e Lama (1952), de Paulo Marques e Aylce Chaves. Neste momento, já se percebia a introdução de um repertório da literatura popular brasileira nas experimentações dramatúrgicas propostas por Amir Haddad.

Silva. Acervo Tá Na Rua.

A culminância do curso em questão - uma adaptação do cordel A Revolta de São Jorge contra

15. Os cordéis citados haviam

os Invasores da Lua, de Erotildes Miranda dos Santos – foi realizada não no palco do Teatro

sido adaptados em 1977 para o teatro por João Augusto Azevedo, diretor do grupo baiano

dos Quatro, mas no espaço da galeria do Shopping Center da Gávea, já indicando o futuro

(CARNEIRO, 1998, p. 231).

caminho daquele coletivo. Após a conclusão do curso, parte dos alunos16 propôs continuar o

16. Às atrizes Lucy Mafra,

trabalho ali iniciado, mantendo a coordenação de Haddad. Auto-batizando-se como Têve Na

Marilena Bibas e Rosa Douat, do Tá Na Rua, uniu-se ainda Sérgio Luz, aluno de outro curso de teatro ministrado por Amir Haddad, na Casa do Estudante Universitário do Rio de Janeiro (CARNEIRO, 1998). 17. Entrevista de Betina Waissman a Alexandre Santini. Acervo Tá Na Rua – Projeto Memória Tá Na Rua.

Rua17, o grupo estabeleceu como o princípio fundamental de sua prática teatral a realização de espetáculos em espaços abertos (praças, ruas, favelas, conjuntos habitacionais), o qual tornar-se-ia, daí para a frente, determinante para a definição de sua “singular linguagem atorial” (CARNEIRO, 1998, p. 02).


Tá Na Rua: Memórias de um percurso {

Em março de 1980, os remanescentes do Grupo de Niterói e o Têve Na Rua participam da Semana do Teatro Alternativo, evento realizado no Teatro Cacilda Becker. O saldo positivo deste encontro terminou por unir os dois coletivos, que manteve o nome

Tá Na Rua,

por sintetizar a sua determinação de continuar atuando em espaços abertos. A partir de então, há um crescente enriquecimento e diversificação do material dramatúrgico utilizado pela nova formação: letras de músicas, piadas, textos de cordéis e improvisações. O estudo de textos clássicos, como A Vida de Galileu, de Bertolt Brecht e A Tragédia do Rei Ricardo III, de William Shakespeare, passa a fazer parte do treinamento dos atores, e também de seus ensaios abertos, cada vez mais próximos da idéia de oficinas teatrais. Em 1984, é finalmente realizada a montagem de Morrer pela Pátria pelo Tá Na Rua, dez anos após o início da pesquisa iniciada pelo Grupo de Niterói. O espetáculo é apresentado no Teatro VillaLobos, no Rio de Janeiro, mas fica em cartaz pouquíssimo tempo, pois não é bem recebido, nem pelo público, nem pela crítica. Sobre esse fracasso, um dos poucos de sua carreira, reflete Amir Haddad muitos anos depois: “(...) era surpreendente que daquela aridez nascesse esse outro teatro. Então à medida que a gente se afastava dele a possibilidade era outra, outra, outra. Nós chegamos a encenar a peça. Não ficou nada legal, mas nasceu essa outra oportunidade” (HADDAD, 2004, p. 61). No aspecto técnico, os estudos relacionados à montagem de Morrer Pela Pátria significaram a aproximação daquele coletivo às investigações de Bertolt Brecht sobre o distanciamento no jogo do ator, pela necessidade de “uma atuação (des)envolvida, que apresentava uma realidade, em vez de representá-la” (HADDAD, 2005, p. 66).

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} Sobre o Tá Na Rua

No trajeto percorrido pelo Tá Na Rua, desde os seus primórdios até o momento de sua definição como grupo de teatro de rua, podemos identificar alguns pontos fundamentais que se apresentavam como desafios para a nova geração, insatisfeita com as formas já estabelecidas no meio teatral, e com as limitações impostas pelo regime ditatorial em vigor:

atuação dos atores em espaços cênicos não convencionais, procedimentos técnicos mais adequados a estes espaços e um modo de produção teatral alternativo ao esquema empresarial dominante. Se, no início de suas investigações, esses atores foram movidos pela busca de compreensão da realidade político-cultural do país, seu caminho foi-se desdobrando na descoberta de um discurso teatral próprio, mais livre e despojado, caracterizado pela relação igualitária com o público, com quem passou a estabelecer uma comunicação franca e direta. A busca de uma proposta teatral que traduzisse os seus anseios levou-os a uma aventura ética, estética e pedagógica que se iniciou com o espetáculo Somma ou Os melhores anos de nossas vidas e o extinto Teatro Mágico, prosseguiu com os estudos teatrais do Grupo de Niterói e as experiências de campo dos alunos-atores do Têve na Rua que, encontrando-se em suas respectivas convicções, formaram o Tá Na Rua propriamente dito. Com a fusão dos dois grupos em 1980, tentou-se criar uma unidade equilibrada entre pólos complementares, vividos parcialmente por ambos em suas atividades anteriores: a reflexão teórica do Grupo de Niterói e a prática vivencial do Têve Na Rua. À coragem de mergulhar no escuro de si mesmo e enfrentar os fantasmas ali ocultos, somou-se outra coragem: a de

expor-se por inteiro, à luz do dia, para o encontro imprevisível com um público ainda desconhecido.


Tá Na Rua: Memórias de um percurso {

Uma aventura, não vivida, porém, sem percalços. Transpassada pelo paradoxo de conciliar essa busca do novo com a necessidade de subsistência, mas sempre movida pela paixão de seus integrantes, a formação desse coletivo sintetiza, a seu modo, os benefícios e dificuldades resultantes de uma intensa forma de conceber e viver o teatro, diversa dos modelos tradicionais que até então predominavam no teatro brasileiro.

Referências CARNEIRO, Ana Maria Pacheco. Espaço cênico e comicidade: a busca de uma definição para a linguagem do ator (Grupo Tá Na Rua – 1981). 243 f. Dissertação de Mestrado em Teatro – Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 1998. CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. São Paulo: Ed. Brasiliense, 2005. FERNANDES, Silvia. Grupos teatrais: anos 70. Campinas, SP: Ed. Unicamp, 2000. HADDAD, Amir. A experiência do Tá Na Rua. In: Cooperativa Paulista de Teatro. Teatro de Rua em Movimento I. São Paulo: Tablado de Arruar, 2004. p. 43-85. ______. O teatro e a cidade. O ator e o cidadão. In: TELLES, Narciso e CARNEIRO, Ana (orgs.). Teatro de rua: olhares e perspectivas. Rio de Janeiro: E-Papers, 2005. p. 64-74. KOSOVSKI, Lídia. A casa e a barraca. In: TELLES, Narciso e CARNEIRO, Ana (orgs.). Teatro de rua: olhares e perspectivas. Rio de Janeiro: E-Papers, 2005. p. 8-19. MICHALSKI, Yan. O teatro sob pressão: uma frente de resistência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2003. REICH, Wilhelm. A função do orgasmo. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1992. REVISTA TÁ NA RUA. Eu quero é movimento. FUNDAÇÃO RIO – RioArte, nº 3, mar/abr. 1981. STANISLAVSKI, Constantin. A preparação do ator. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

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O espetáculo SOMMA ou Os Melhores Anos de Nossas Vidas estreou no dia 13 de maio de 1974, no Teatro João Caetano, Rio de Janeiro, com direção de Amir Haddad. O espetáculo, com temporada prevista de três meses,

foi proibido

Alexandre Santini

pelo Departamento de Censura de Diversões Públicas após quinze apresentações.


A coletânea de textos que configura o roteiro do espetáculo SOMMA compreende

fragmentos de 18 obras dramáticas dos mais diversos gêneros, épocas e nacionalidades. Organizada por Amir Haddad, a coletânea traz diversas peças que foram encenadas anteriormente pelo diretor, como A construção, de Altimar Pimentel, Agamenon, de Ésquilo, Fim de jogo, de Samuel Beckett e O marido vai à caça, de George Feydeau. No entanto, o espetáculo não era uma transposição cênica literal deste roteiro. O roteiro era a base dramatúrgica sobre a qual se estabelecia a encenação, sendo a ordem e a própria apresentação de cada fragmento variável a cada nova apresentação.

Jean - Pierre Ryngaert, em seu livro Introdução à análise do teatro, coloca algumas advertências a respeito deste período da história do teatro que são pertinentes à nossa discussão: Quando a encenação se afirma todo-poderosa, a natureza do texto perde em importância. Durante duas décadas, grosso modo dos anos 60 aos 80, o espetáculo prevaleceu sobre o texto; a teatralidade foi buscada fora da escrita teatral (RYNGAERT, 1996, p. 06). O espetáculo SOMMA, concebido e realizado nos anos 70, traz consigo características que o associam diretamente ao panorama da produção teatral do período dos anos 60 aos 80, porém com algumas singularidades que o diferenciam da caracterização, a “grosso modo”, feita por Ryngaert sobre o teatro desta época. Se, por um lado, pode-se concordar que a encenação prevalecia sobre o texto, sendo o roteiro uma base textual dinâmica e alterável a cada apresentação, por outro lado o roteiro é integralmente constituído por fragmentos de peças teatrais, o que demonstra que a busca da “teatralidade” se dava também por dentro, e não somente por fora, da escrita teatral. O espaço do espetáculo é a arquitetura do Teatro, que concentra a área de atuação, a platéia e

Não há bastidores. A explosão do espaço se dá literalmente por dentro da caixa cênica.

os camarins.

Os estudos sobre dramaturgia ocupam um lugar central em qualquer análise possível deste espetáculo. Levando-se em conta a impossibilidade da “recuperação” da experiência própria da representação, a coletânea de textos que constitui o roteiro do espetáculo torna-se necessariamente o principal registro documental existente sobre este trabalho.


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} Sobre o Tá Na Rua

Este espetáculo é um divisor de águas para o diretor: uma dramaturgia aberta, baseada em uma coletânea de

A ordem das cenas mudava a cada dia, e cada espetáculo se convertia em um acontecimento único.

fragmentos de textos encenados por Amir Haddad.

Público, atores e técnicos dividiam o espaço do palco, que estava ocupado por restos de cenário, figurinos, discos, material de demolição.

A platéia participava intensamente

e se misturava com os atores pelo palco e pelos camarins. A

crítica se dividiu em suas opiniões

sobre o espetáculo. Em artigo publicado no Jornal Diário de Notícias, Aldomar Conrado afirma que: Sem nenhuma dúvida, SOMMA ou os melhores anos das nossas vidas (como sempre acontece com os trabalhos de Amir) é uma experiência capaz de contribuir para um novo impulso de revitalização da nossa linguagem cênica. E sendo que desta vez com uma matéria-prima generosa e fraternal, sem o fechamento neurótico e agressivo que caracterizava os trabalhos da antiga Comunidade. O resultado da SOMMA

é um gesto de amor.

Podemos discordar, aqui e ali, de como esse gesto é expresso. Mas nunca ficarmos indiferentes a ele (CONRADO, 1974). Já Yan Michalski considerou o espetáculo um exercício de “autogratificação em circuito fechado”, e que a relação de cumplicidade e confiança mútua existente entre os atores não se estendia ao espectador: Para quem vê SOMMA de fora – e obviamente só os próprios intérpretes podem vê-lo de dentro – resta a impressão de uma curtição inócua, monótona e ingênua, embora

indiscutivelmente sincera e às vezes alegre. Resta a sensação de um grande desperdício de talento, tempo e esforço. Resta a melancolia de sentir uma confissão de falta de fé no teatro, no teatro concebido como uma tribuna de idéias e de intercâmbio coletivo de emoções, por parte de quem teria condições de dignificá-lo e fortalecê-lo como tal. Resta a decepção de ver um grupo sério, dinâmico, inteligente e generoso com o seu esforço optar por abrir mão de uma apesar de tudo sempre possível tomada de posição diante da realidade, e preferir refugiar –se no anarquicamente omisso caos de uma autogratificação em circuito fechado (MICHALSKI, 1974).

Venha somar, não conferir. Esta era a relação que o grupo que realizava o

SOMMA propunha aos espectadores, traduzida nesta frase que se tornou o slogan do espetáculo. Evidentemente que a abertura para o improviso e a possibilidade de a cada noite apresentar um espetáculo diferente, se por um lado era o elemento que mais estimulava o grupo em seu processo de criação, por outro atraía a desconfiança de certos setores da crítica especializada (que questionavam se o espetáculo poderia realmente ser compreendido como uma realização teatral), e gerava uma ainda maior


SOMMA: Um divisor de águas {

por parte das autoridades policiais que exerciam a atividade de censura dos espetáculos. Enquanto durou a temporada, o espetáculo foi assistido por censores em praticamente todas as noites. Os próprios

censores se dividiram quanto à decisão de censurar ou não o espetáculo. A alegação foi de que as alterações feitas no espetáculo, em relação o que fora aprovado no ensaio geral, estavam em desacordo com o estabelecido e tinham o intuito de mostrar os atores em situações obscenas: Os textos que foram proibidos pela censura foram colados no cenário, com o carimbo da censura. O que a gente não podia falar pelo menos estava escrito, assim colado. E alguns a gente falava... Um dia um ator ficou muito excitado, ficou pelado, tirou a roupa na frente de um policial. Aí ele falou: ‘porra, isso agora não dá mais pra eu segurar pra vocês, ficar pelado na minha frente’. Foi aí que eles tiraram mesmo a gente de cartaz, porque não tinha controle, cada dia era de um jeito,

cada dia a vida se manifestava

de um jeito, era muito interessante

1

1. Entrevista de Amir Haddad

A interdição do espetáculo, em junho de 1974, conduziu a uma dispersão do grupo e do

a Zeca Ligiéro, realizada em 2004 na UNIRIO.

trabalho. As tentativas de mobilizar a classe teatral contra a decisão da Censura e de reverter a suspensão do espetáculo foram inúteis. A realização de SOMMA significou para Amir Haddad um momento de profunda transformação de seu trabalho, cujas conseqüências podem ser percebidas até hoje em sua metodologia de trabalho e no desenvolvimento da linguagem do grupo Tá Na Rua: Eu acho que o SOMMA é a base de tudo que veio depois. Dessa proposta de roupas, atores, músicas, objetos e liberdade é que nasceu tudo, e hoje o meu trabalho parte disso. O exercício básico do meu ator é esse exercício do SOMMA, já desvinculado da natureza do espetáculo, da qualidade do espetáculo que se queria fazer, e é um treinamento. Mas é um treinamento que é um espetáculo. Então

tudo nasceu aí

do SOMMA. O SOMMA foi um divisor, para fazer uma piada: soma, divisor, entendeu? (idem)

bibliografia RYNGAERT, Jean – Pierre. Introdução à análise do teatro. São Paulo: Martins Fontes, 1996. MICHALSKY, Yan ; O Teatro Sob Pressão: Uma Frente de Resistência. Coleção “Brasil, Os Anos de Autoritarismo”. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1985.

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} Sobre o Tá Na Rua

Somma ou os melhores anos de nossas vidas: 2. REBELLO, Ângela Maria. Monografia de graduação

Arqueologia de um exercício teatral2

Pág (trechos das entrevistas-depoimento de Amir Haddad e . 45 “[... ] ma cons Teoria do Teatro como requisito atores de Somma a Ângela Rebello, realizadas em 2004) t r uç s dep ão d ois e final para a obtenção do grau de e esp o esp u fu etác etác i pe r Bacharel em Artes Cênicas: ulo ulo c eb e [ f [ ...] e raca ...] e Habilitação: Teoria do Teatro. ndo ssa v u es u tin que t a Linha de Pesquisa Historiografia a o qu m h v a a deix [ s . d a e est . . escon ído ] eu ado do Teatro Brasileiro. Orientadora ava do B já n s ama t r me i u r ão q indo pens asil, rgur Profa. Dra. M. Flora Sussekind. nter ue r i , ei as ado, eu t p essa o a r inha que sim: Escola de Teatro, Centro de Letras pega as co ndo de t t p o f r isas icad das ra e não u udo m e Artes, da Universidade Federal e u a o a era r s am que faze mui peça min nen mui eu p to d r tea ente do Estado do Rio de Janeiro h p hum a r o s t e asse nde r n o t s t a r e t t a o n a p r , eu ... en i, pr tativ onta istes UNIRIO, 2005. no p n a d porq t e a ã ã o r r s o e e o e , u t d s , a p ente oma e con ue q eu e não osso dita , pra r, pr stou uan que r com st r u dura Som a sa do c e f s ir i o ç a a a b r b a do r de rasi nem ome ber er q ma leira ond ça va ual ond teat f e a f z a e é e er te ro! bota la va tinh estou a so o me estou atro r ess am mar : va u fu , eu agor e a da mos m a t t u a s a e ro, m nho is. E coisa cons [...] qui ensa que egui ntão pr im s den que r as eu iar t f a [.. a o e eu t a z q i r sabe l cen ro, e e o de ue br r um .] ag uma r me a...e ssa e ei a mim espe o r a r u m se e vis cara a ge tácu , na eu v pass ão nte gun , fui lo, e da s não ou m ad o , ensa do, e u qu oma m mon a p u r r i i c a s v e t a a s t r o a a v m r amo ia d ...eu sur p aed essa em t e esta s um esm reen e r ce pega cena aí eu mos onta espe i d . ?”, n r v . i o f . do, a as ala v , ago r, [.. eu n tácu ingu desm cena a: bo .] na ra e lo... ão c ém s onta s u m o d v a n v o , ago erda ngú abia segu ou f ndo mei stia aze r de S ra e ia fa ,en um o, e u vo dos o em e espe z o m e r que r o a m u t n t t u e á o a a i culo res, sabi era r d est r u e o a r a um e nã !, eu poss med am ond tura o n í u o e eu espe vel f ão q s, ch ito t prep tácu e s ta aze r vam o ro s ue ri amb arad va c lo de , am os en é i p m s a s a o o , v onta s p m e m s o t r u só em p r... “ o at rar a co onta quem r e br o s o n r a r d e tar h que bia cisar o ali n [ inc a sabe . . . é d i ] e s nós o isso, ter u r com tor i ?, a uma mov a ne ond ma orde coisa esse ime e nhu m? m , nto, que ma a te r quem nega o esp [...] eu e ial t vai ndo stav aço, odo, d a t e a u s t e e rm do i mar q que r ü ênci inar sso, c açã o um a e ? ? o stou ,o ,of a gr igur arre gran and ino, bent de d e de and estou sord esor o com nen dem em [ hum . p . t . ra sa o udo ] eu a ou or iss be r isso, que r poss tra o mep o e o e d n ibili r u r d o v dem e el a iver dad nova rque esta essa me l es de pela uma os, po á d va s r a e e r v e v deso uma a, p endo ão ha desesp rdem orqu orde poss lando em, n fic am d e r mn s [...] o e s í r e ém fa v o d t u el [. g a ova a ” . (A l s a m ..] a as têm mir terão ve r u olto. O s que ova. M mais o hou Had eix o s n a ã j d n a s r u e e i p l s e E e , assa dad es... man a, ou e que r ) er, às as vez ment adeir e uma t a d d t n r , i e a , mav e t r f v e t a r , o l e g g o e i p u ã l v o í que que n lgum ou com , poss ntend [...] e tensa abalh lecida do a a [...] e a r e n “ i n t i b g a , a á o 2 s g t j l e e s 5 h a del a ideo pré-e . Você Pág. ocê aba c que v inte r n assim rdem ..] um ta, ac o . é o n [ m a h o o e r l c d a a m m b h se dá da ma or so e co nenhu rabal eu tra iante pessoa rem u om is lho a a de t c d b r a a o i s o b c e e o ã s s a n d ç e r , t a í si sd esulta ma m vo de ia, po o. E a ou ele ão, ente r adan coleti aquil com u m d e i r z l a hist r i c e e a d f ] i u v m q p e m a u a a o o r ó c s i t mas btém s. Tem faz is e se r s ubme nho, [ e dele você o ha qu não s u d n o e a i m t d u e m i t q l o o s i ã or tos, c m te e, e n sensib isso p os afe ver co se del a om a a s r c o t a f s i d m e e n ,n ia, qu em na admi ve zes ad) não t dadan e vo c ê o i s c u s Hadd q I e . r d é i o o o t m ã u i m d p ro opin .]”. (A diz co r uma cia [.. isso em e n t a â e t m s u r q fo cir cun inha trans do da ator t n e O d ] . n e [.. r dep vida. chora e r i r de c ap a z apresentada ao Departamento de


SOMMA: Um divisor de águas {

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e e tipo d istia ess x e a c o ép r uma . Nessa m, faze olagem e c g a a l m o c u eus f a z er er u m a Resolvi as dos m as e faz n n .] e e c .. c [ o “ s d a 4 i n r Pág. 6 so, pega sim, eu egar vá faze r is sabe, as agem, p l a i o m c e u e u e d q e o e ntão qu trabalh da um, de mim pensei e ço de c a u a e d e e p perdido , a e m t v i u n t e r a e r m a ro, faz coope absolut l o i n t ei os [...] a l u c v u c á a t t á e s t e e p s ais esp ltimo e rque eu e. [...] princip [...] Po . Meu ú o o t h i n u i Molièr m m a m e c , u o i u d e e u h t om l eu gan abalou . [...] retomo e lo qua etáculo e 1968 p p u s , e q o r o ã o ç d P u o [...]. Constr nst r uçã mesmo táculo, e foi A de desco d o a s d s r e e c do espe o b o i r l ã p ç a i l m o m u u ão, dem erdade, com alg o um demoliç a, na v h m n e i t ç ã o com a á u v j r a t l u s a e f n í , o o Mas a va A C nst r uçã anto a resenta m desco p e a a u v ente qu a E l a . a r e f t d a á a j o d i vendo tã Eu eal da r u a ção era u o da, da r i r i e t s v m n a o o c d n es ão ando aradas que a d demoliç va b u s c essoas p e dizia a p t , s r a e e n v u í e l u o em r possíve .] Entã edifício iretor ndo. [.. o. [...] É e ã ç v u , r o ho um d t d s n i n e m con v a c , . E que emolida quele st r ução ra ser d m se r a n e o s c s a e i d g r uma ob a i ramatu tro dess c o n s t ró aço de d ia nho den i p s e m e a c m e se des u u u m q r u q a é h o l o i o r m uã r entre utor, co Como t am sag rio? Po ia te r? e pelo a p o i abi r ó c e l í r s f d p r o e e o p p o h o nã c amin mp to na su and tá escr i eles char um av a s a e u r , a á r j t q a a e p u e q addad) es po en ais rpr desse ti [...] Amir H o... r ( o u ã , e ç d .” s u t .] a e r t .. [ ns m áli s la ma t r ução uma co a com fe rn rote descons ra u o a a a e s d s r m e e d ] m a a s . p bro ca av om “[.. os escom nt r u el a e los 74 ce r t q p E . a s g ] m o . . co Pá am am zid r [. les tinh vam trav ndu tece Págs. a as e o n o c n c o ã i o m c f n , 90/91 n s m ac , o er ele oe ul c a era c c . e “[...] l h , . t á . a o t n l n r i e p a a o quan t u p t e c st r u t u a es no en ão esc do o A a n i m m m r a . u e a u . d . e mir p u a v n r t r s e q o a a p n c r t e e n o e ç ropõe t m as, ele ão um g en o nt en m s a d o a traba , i c a a e i s s r s r a e t b o à o s á a t l a d r lhar a a p ] utura ropon co rp ... os ei ha l [ e a ã u s cena n a d d g t o q n o ã r um p c a u o , u s i m l , m l o s sem e v e m a a escr ocê qu túrgi d m pi ia úb os í a c b p c i m i c a e n t a n b a o v u s i a r e r a g a v , r i o a b r s a o c a s a p ênic a o é um nde z a espin nã çã os, par ost e ha do a que do tex cub a mo, rma ém ns g o o b r a e m b c f s a r t h v u a o l m n a , o i d n d m i a s j a i m ã e t m a o t t t p s i radiçã radiç as me a e or tân , ão oci na, sab ivr ..] o nsage inh cia do o, edo denta ltro o [. ra l ir t n m r não a o e s o d , u m d m p r t n o o o p m l , a ç , r A t e a o e q g p a i a t x c u a e lo qu c to, a eéa mbém eir che esp va o do pre grand e ele t com a c ad uir lado b alh aa fic a a, o g e i b l m v v e o q a q s a m a a ü u r u ência arta p dize r rguês ic nt con ot ) mu , , [...] , foi a te f arede or ie até des o co am dize r c i , e n gen i b c e r q l l u a e e u a r a b a r g , n h o n u q s r ú u m d e n u e b s e o p e ia qu a do e brou ele F e co ost u so ve z e cr io o text specta platéi ma (Ivo é ac s qu u o pa o t , d . o , o ” q a a a , r u ] o j o seu e brou untos lco ita [... hos ab cara a qua e a es liano como oda ntin ativ t t r [ r t t a . u a . c c . t a u ] e p ura d m jog que r arede cois o espe elos e xp o, que , coloc ela táculo organ mp b a u r a a a q t v t ores e ambé iz ado é tam r, a fic a mop r do c bém m oda a a s p m o e a e n s o l , l t e c então do di ar, nã ável, retor , não se a o tem como tem d um só anárq ireção ponto uicos, , não de vi e não tem l s t inver a t e , ugar m m o tal as vá teu a para texto r ios, m regra p do jog ara v últipl ocê se os e o [...] guir a ” . (Z e histór c a Li giéro ia, v o ) cê


} {

Ana Carneiro

OR D A R R A -N R O D A T SEN o papel do APRE


O espetáculo, como acontece com o de todos os mamulengueiros é, na sua maior parte, improvisado. É claro que ele tem um roteiro para a história, jamais escrita, mas os diálogos são inventados na hora, ao sabor das circunstâncias e de acordo com a reação do público (Borba Filho, 1966, p. 113).

Organizadas a partir de roteiro básico, as apresentações do Tá Na Rua constam geralmente da chegada, com o canto de Ói nóis aqui traveis1, música que se transforma no “hino” do grupo; do desfile dos atores exibindo suas especialidades; e da teatralização de uma piada, de músicas e/ou de um tema previamente trabalhado. Roteiro sempre passível de alteração — em parte ou até mesmo em seu todo —, de acordo com a leitura que o grupo venha a fazer dos acontecimentos da roda. A opção por utilizar um material de estrutura narrativa — meia dúzia de cordéis, músicas, piadas —, que não “ignora” a presença do público e, assim, dá espaço ao ator para acolher suas reações e vibrar com sua participação, determinou a presença de um apresentadornarrador e estabeleceu traços performáticos marcantes em suas apresentações, criando uma forma bastante peculiar e única.

1 . Ói nóis aqui travêis — música de Geraldo Blota e Joseval Peixoto (1952).


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} Sobre o Tá Na Rua

Elemento essencial no jogo teatral do Tá Na Rua, o apresentador-narrador tem relação direta com todas as figuras que exercem, no teatro, o papel de elo entre ator e público, abrindo espaço para maior intimidade numa relação que é, geralmente, distanciada. A ele cabe, no momento mesmo da ação, selecionar o fio da meada, determinando a seqüência dos números e das apresentações. Como o compère do teatro de revista, o apresentador-narrador é o condutor do espetáculo, costurando-o no momento mesmo da apresentação, escolhendo a seqüência dos números. Cabe a ele desenvolver o “texto” do espetáculo, o que adquire grande relevância num tipo de apresentação como a do Tá Na Rua, sujeita a tantas modificações, sempre à beira do caos, que exige do apresentador-narrador uma atenção constante, ampla, total, que lhe permita absorver e decodificar os acontecimentos, jogando-os na roda, para os atores — que atuam como um coro, comentando os acontecimentos, levando informações que possam ser acrescentadas ao discurso —, e para o público. É também o apresentador-narrador quem fortalece os lados lúdicos, a comicidade possível e desejável diante da pesada realidade e, para isso, como os apresentadores de espetáculos populares, [lança] mão de todos os movimentos, das frases mais loucas e das obscenidades mais agudas. (Borba Filho, 1966, p. 118).

As relações público/ator e o papel do apresentador-narrador A informalidade que permeia as apresentações do grupo surgiu principalmente a partir da observação das rodas de camelôs que vendiam suas mercadorias no centro da cidade do Rio de Janeiro: longas conversas com o público, comentários sobre acontecimentos que vão ocorrendo no armar a roda, caçoadas e brincadeiras com os que, pouco a pouco, vão permanecendo ao redor, constituindo a roda. Da mesma maneira, os atores do Tá Na Rua nunca iniciam seu trabalho, sem um longo período de entrosamento com o público que se aproxima. Afinal, “um espetáculo de rua é feito mais de boa conversa do que de números perfeitos” (Carvalho, 1997, p. 84), uma vez que, grande mediadora das relações dentro do espetáculo, ela pode determinar seu sucesso ou seu fracasso. É principalmente a partir dela que o ator conquista seu público: um público não pagante, que fica se houver interesse; para quem o ator — tal qual os atores de teatro de revista e dos cabarés — se mostra, faz graça, ironiza, a quem fala diretamente, a quem olha e por quem se sabe olhado.


O papel do apresentador-narrador {

Ele sabe que as pessoas só permanecerão se forem cativadas pela proposta do grupo. Este é, portanto, o momento de lhes desejar um “Bom dia!”, de convidá-las a participar das brincadeiras, de anunciar os fantásticos números que serão apresentados, de cantar, dançar e organizar o material cênico — a trouxa de roupas, bandeiras, máscaras e instrumentos musicais — no recém-formado espaço de trabalho. O público, por sua vez, à medida que ganha confiança na brincadeira e percebe as possibilidades de participação no jogo que está sendo proposto, se sente à vontade para opinar, participar, respondendo às provocações que lhes são dirigidas, interferindo muitas vezes diretamente no desenvolvimento de alguns números. Por outro lado, não podemos deixar de observar também que é especialmente por meio da figura do apresentador-narrador que se estabelece um mínimo de organicidade nos acontecimentos da roda. Agindo como filtro/mediador, ele acata ou apara as interferências, alimentando participações que possam contribuir para o desenvolvimento do “espetáculo” ou, pelo contrário, impedindo intervenções que possam interferir negativamente nesse processo. Exerce, assim, o papel de aglutinador, comentarista dos acontecimentos da roda; de contador de causos, de piadas, animador e, principalmente, gerenciador da dinâmica desse pacto com o público, tão característico do teatro popular (RUIZ, 1988). Ao mesmo tempo, é a ele que cabe, a partir de sua própria capacidade inventiva, a recriação dos números desenvolvidos pelo grupo, reatualizando-os a cada situação particular e, dessa forma, modificando-os sem, contudo interferir na sua estrutura fixa. Outro ponto importante a considerar, é o modo como o apresentador-narrador desenvolve sua narração: é a partir de seus gestos, tom de voz, da maneira como monta e desmonta os fatos da narrativa, da resposta que oferece às intervenções do público, que os fatos narrados poderão tornar-se deflagradores de uma reflexão, tanto sobre o acontecimento narrado como, a partir dessa referência, sobre a realidade que circunscreve. Paralelamente, é principalmente por meio da figura do apresentador-narrador, que se fortalecem os lados épicos da linguagem atorial desenvolvida pelo Tá Na Rua. Finalmente, um último ponto se torna essencial de ser observado em nossa análise. Assim como, no teatro de revistas, o papel do compére era geralmente reservado ao primeiro cômico da companhia, durante os primeiros anos de trabalho do Tá Na Rua o papel do apresentador-narrador foi exercido exclusivamente por Amir Haddad, “mentor intelectual”, coordenador e orientador da pesquisa de linguagem teatral que o grupo desenvolvia.

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} Sobre o Tá Na Rua

A memória individual de cada um dos componentes do grupo é certamente rica de lembranças relacionadas com a presença de Amir nas diversas apresentações realizadas, como apresentador-narrador “oficial” de suas rodas — e, nas entrevistas, algumas observações pontuais sobre esse fato podem ser colhidas. Os arquivos documentais do Tá Na Rua, entretanto, revelam poucas anotações específicas sobre a figura do apresentador-narrador e sobre sua participação, nesse papel. Além das parcas (mas importantes) observações em matérias jornalísticas, encontramos apenas um pequeno comentário em um dos escritos feitos pelos atores, sobre este papel preponderante que ele exerceu dentro do trabalho: E tem Amir Haddad, o homem que fala sem parar. Que chuleia e borda com as contradições na rua, no teatro e na sua própria vida. Que quer mostrar o avesso do 2. Depoimento de Sérgio Luz. In: TÁ NA RUA: Eu quero é movimento (1981:3-5)

avesso. O homem que fala sem parar quer que todo mundo fale.2 Certamente, a presença do coordenador do trabalho em cena, como ator e como diretor, enfrentando as mesmas situações, se expondo, correndo riscos junto com os demais participantes do grupo, é essencial para o desenvolvimento da pesquisa.

3. Nos referimos aqui a material colhido a partir de entrevistas realizadas com os atores do grupo, para minha dissertação

Através da memória dos atores3, podemos perceber como as investidas de Amir auxiliam o grupo a quebrar alguns limites da representação, à medida que, ousando ir além de parâmetros sociais/culturais oficialmente estabelecidos, abre novos caminhos a serem

de mestrado (Carneiro, 1998)

percorridos pelos atores. Talvez esta ousadia possa ser avaliada como a forma mais interessante da direção exercida por Amir Haddad, nesse processo: indo

junto com seus atores, provocando passagens, transformações, jogando na roda os primeiros palavrões, quebras de corpo, o contato direto com o público, a exposição, o correr riscos. Por outro lado, uma liderança tão forte e tão presente também determina que outra discussão se faça cada vez mais presente, no trabalho: a de quem ocupa e como ocupa “o centro” da roda— discussão árdua e bastante consciente no grupo, relacionada com sua organização interna. Uma discussão que muita vez se faz de forma bastante lúdica, como na


O papel do apresentador-narrador {

primeira apresentação do grupo no III Festival Internacional de Teatro, em São Paulo (SP) (02 ago. 1981, na Praça da Sé), quando o grupo “brinca” com essa questão: um a um os atores se fazem presentes, fortes; ousam instalar-se em lugar normalmente ocupado por outrem, no trabalho (no Tá Na Rua) e no país (ainda sob o domínio da ditadura militar): o centro da roda, o espaço do poder. A jocosa maneira crítica com que isso é feito amplia o âmbito da discussão, extrapola a questão para além das relações pessoais/internas do grupo e transforma uma temática, a princípio tão séria e delicada, em divertimento. Um divertimento diante do qual não podemos deixar de pensar nas propostas de Brecht, de um ator politicamente consciente e um teatro que fizesse pensar, que levasse a questionar a realidade, sem deixar de lado a diversão. Referências BORBA FILHO, Hermilo. Espetáculos populares do nordeste. São Paulo: São Paulo Editora, 1966. CÂNDIDO, Vera; PEIXOTO, Lucila de Beaurepaire P. Teatro de rua nas ruas de Paraty. Ensaio. Teatro 4. Rio de Janeiro, Edições MURO, p.38-43, 1993. CARNEIRO, Ana Maria Pacheco. Espaço cênico e comicidade: a busca de uma definição para a linguagem do ator (Grupo TÁ NA RUA — 1981). Rio de Janeiro, 1998. Dissertação (Mestrado em Teatro): Faculdade de Letras e Artes, Universidade do Rio de Janeiro, 1998. __________ . A rua enquanto espaço privilegiado da relação público/ator: o papel do narrador. In Telles, Narciso e Carneiro, Ana (org). Teatro de rua: olhares e perspectivas. Rio de Janeiro: E-Papers Serviços Editoriais, 2005. pp. 116-139 CARVALHO, Luciana Gonçalves de. Os espetáculos de rua do Largo da Carioca. Rio de Janeiro, 1997. Dissertação (Mestrado em Filosofia e Ciências Sociais). IFCS-UFRJ, 1997. RONDELLI, Beth. O narrado e o vivido: o processo comunicativo das narrativas orais entre pescadores do Maranhão. Rio de Janeiro: FUNARTE/IBAC. Coordenação de Cultura Popular, 1993. ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Buriti, 1965. RUIZ, Roberto. O teatro de revista no Brasil: das origens à primeira guerra mundial. Rio de Janeiro: INACEN, 1988. TÁ NA RUA: Eu quero é movimento. Revista TEATRO, São Paulo, n.3, p.3-5, mar-abr, 1981.

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Licko turle

Demonstrando ao pĂşblico que


uma apresentação de teatro é somente uma construção social e, como tal, pode ser modificada e até melhorada pelo homem, a linguagem do grupo Tá Na Rua atua des-envolvendo as instituições sociais e suas ideologias, des-naturalizado-as em seus espetáculos. Por isto, revelar a ideologia que está por trás de certos comportamentos sociais é a base da sua dramaturgia, que procura compreender aquilo que legitima determinadas institucionalizações.


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} Sobre o Tá Na Rua

Segundo Duarte Jr., em seu livro O Que é Realidade (1988), a sociedade é formada por um conjunto de instituições legitimadas por ideologias e por seus vários mecanismos de manutenção do poder, gerando por meio desse processo uma suposta naturalização da realidade. O Tá Na Rua procura, com seus trabalhos, demonstrar como esta ‘realidade’ é construída, utilizando uma dramaturgia que apresenta as contradições implícitas nesta construção através de imagens cênicas. Estas revelam que a

realidade é um fenômeno social e não natural, construído a partir de um discurso lingüístico, veiculado principalmente pelo signo verbal. Tal processo é aparentemente simples, mas bastante complexo, em sua realização pelo ator. Mostrá-lo para o público requer do grupo muitas informações e a conquista de uma opinião clara sobre o assunto, para que aquele possa perceber, nas entrelinhas e na tessitura dos textos escolhidos, as imagens de um texto paralelo crítico e revelador que é mais ‘visto’ que ‘lido’ ou ‘ouvido’, e que visa levar o espectador a uma reflexão. Essa dinâmica exige um 1. Para Walter Benjamim (1994), o desaparecimento da arte de contar é o resultado do declínio de uma tradição e de uma memória comuns, que garantiam a existência de uma experiência coletiva, ligadas a um trabalho e um tempo compartilhados, em um mesmo universo de prática e de linguagem. É possível reconhecer, no trabalho artístico do Tá Na Rua, esta dimensão artesanal preservada na dramaturgia - o modo de contar a história, e não o texto - que está sempre em processo de

treinamento permanente1 que capacite o ator a encenar, improvisar, jogar com outras estruturas textuais, não lineares ou necessariamente dramáticas. A estrutura dialogada do texto dramático é típica do drama burguês. Este traz a ação para dentro da casa, para a instituição ‘família’ (COSTA, 1998). Por isso, o Tá Na Rua raramente

usa textos dramáticos tradicionais2, optando por materiais de outra natureza, que possam ser adequados para espaços abertos: letras de músicas, crônicas, e até ‘bula de remédio’ (o que não deixa de ser um texto oficial, uma prescrição lingüística hermética para leigos e, portanto, ideológico). É, por exemplo, o caso da música Bodas de Prata, utilizada para a encenação de um número constante no repertório do grupo. Essa valsa brasileira da década de 40 - cuja letra é uma apologia à instituição do casamento - é cantada

construção, aberta ao devir.

por um homem, evidenciando a ótica masculina tradicional sobre o assunto. Ela apresenta,

2. Exceções: os espetáculos

romanticamente, o lado bom de um casamento que já durou vinte e cinco anos. Os atores

Morrer Pela Pátria, de Carlos Cavaco (1984), e Uma Casa Brasileira, com Certeza, de Wilson Sayão (1989).

simplesmente mostram tudo o que, provavelmente, é produzido e reproduzido durante este longo período de relacionamento entre um homem e uma mulher como, por exemplo, a divisão desigual do trabalho doméstico e a atenção aos filhos. O processo dramatúrgico é desenvolvido da seguinte forma: a música é cantada pelo noivo, que dança com a noiva enquanto os outros atores ritualizam, por meio de movimentações pelo espaço, a imagem da cerimônia de casamento com todo o glamour possível: a festa, a valsa dos noivos. Quando a letra é repetida, os atores desconstroem aquele discurso inicial, trocando o véu da noiva por um lenço de cabeça; sobre o vestido é colocado um avental sujo; o buquê, substituído por uma vassoura. O ator, sempre cantando, tira o paletó e senta em uma poltrona. A mulher corre para lhe entregar o jornal, tira os sapatos do marido e volta a varrer o chão. O homem abre o jornal, de forma que este lhe cubra a visão do que está


Uma Possível Dramaturgia para Espaços Avertos {

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acontecendo na casa: a confusão doméstica e a briga das crianças agarradas ao avental da mãe, a comida queimando, etc. No final da canção, o homem puxa a mulher e a faz sentar-se em seu colo, com as crianças a seus pés. Pose para a foto. Fim. Para o Tá Na Rua, o fluxo destas imagens compõe a realidade da instituição ‘casamento’, e é o que precisa ser apresentado teatralmente. Esse processo cria, em relação ao texto ‘oficial’, um texto paralelo que estabelece uma contradição entre a letra da música e as imagens que vão sendo formadas, revelando como o discurso ideológico legitimador da instituição do casamento é incutido na consciência das pessoas como um relacionamento de dominação natural entre homem e mulher. Na ocasião do movimento pela volta das eleições diretas para presidente no Brasil, intitulado Diretas Já, o grupo optou em ‘sair’ para as ruas do centro do Rio de Janeiro e participar do comício da Candelária, em 1984, pedindo ao público presente a volta da monarquia ao país. Durante a função era mostrada, assim, a estrutura sócio-econômica de um regime monárquico e as relações senhor-escravo: o ator branco (Amir Haddad) era o rei, e o ator negro (Roberto Black), o escravo. Todos os outros atores, que eram brancos, não faziam nada: eram todos nobres. A imagem mostrava, então, que um trabalhava para o sustento de vinte. O grupo se deslocava pelas ruas adjacentes ao comício, pedindo a volta da monarquia e explicando ao povo estupefato que era este o melhor sistema para o país, ‘que sempre tinha sido assim’, e cantando em coro, ao final: ‘Tudo está no seu lugar, graças a Deus, graças a Deus... Não devemos esquecer de dizer, graças a Deus, graças a Deus!’3

3. Tudo está no seu lugar,

Ou seja: a realidade é natural, é divina!

música e letra de Benito Di Paula.

Outra ação, nesta linha, foi o espetáculo Para que servem os pobres?,

Copacabana, 1976.

montado para o I Fórum Global Rio-Eco 92. Naquela ocasião, a cidade do Rio de Janeiro foi escolhida para sediar o grande debate sobre como criar alternativas ao grave problema da fome e da pobreza no Terceiro Mundo. Dentro da lógica da estrutura dramatúrgica do grupo aqui investigado, foi escolhida a tese do antropólogo norte-americano Herbert Gans, que descreveu dezenove assertivas explicando, ironicamente, a importância e a necessidade da pobreza para a manutenção do equilíbrio social mundial. Uma das cenas desenvolvidas pelo grupo foi a ‘Festa Grã-fina’, que por falta de pobres para trabalharem como criados, não acontecia. Não havia garçons, cozinheiros, motoristas, músicos, para servirem... aos ricos! A montagem revelava a inversão entre causa e efeito (da pobreza e da divisão de classes no capitalismo) que a ideologia produz naturalizando a idéia de pobreza.

Rio de Janeiro: Gravadora


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} Sobre o Tá Na Rua

Dentro dessa lógica, a realidade é imutável. A

dramaturgia desenvolvida pelo Tá Na Rua apresenta, então, alternativas para a construção de outra realidade, mostrando as brechas, as falhas das estruturas sociais, indicando possibilidades de quebrar o jogo ideológico ao demonstrar como se manifesta a superestrutura social de um país capitalista. Então, os fatos históricos, os cordéis, etc, enfim, todo material escrito lhe serve como leitmotiv; menos o texto dramático, porque este circunscreve a realidade a partir da ótica de determinada classe social, levando a discussão para o âmbito do privado. Em Dar não dói, o que dói é resistir (2004), o Tá Na Rua optou por ‘contar’ ou ‘narrar’ parte da história recente do país, aproximando-se do gênero épico porque, nele, o narrador está sempre presente no ato mesmo de narrar, com onisciência sobre tudo o que aconteceu na história e com os personagens, seus pensamentos e emoções, e descreve objetivamente as circunstâncias da história. A voz utilizada é a do pretérito, procedimento que cria uma distância entre o narrador e o mundo narrado, permitindo um posicionamento objetivo, sem identificação ou fusão com os personagens. O ator jamais se “transforma” nos personagens que apresenta; evita sofrer qualquer metamorfose nesse sentido. Na narração, ocorre um desdobramento: sujeito (narrador) e objeto (mundo narrado), em que os atores-narradores apenas mostram como esses personagens se comportaram. Esta opção pela narrativa permite, aos atores e também ao público, uma liberdade de reflexão e a possibilidade de analisar a estrutura social brasileira, devido ao efeito de ‘distanciamento’ que a mesma provoca. Segundo Rosenfeld (2004), apresentar a nossa própria situação, época e sociedade, como se estivessem distanciadas de nós pelo tempo histórico e/ou pelo espaço geográfico, permite ao público reconhecer que as próprias condições sociais são apenas relativas e, como tais, fugazes e não enviadas por Deus. Isso é o início da crítica, no teatro épico de Bertolt Brecht. O célebre efeito de distanciamento começa a funcionar, portanto, a partir da própria estrutura épica das peças. A ação ‘dramática’ propriamente dita é distanciada pelo pretérito, quando a narração é posta em cena. O espetáculo utilizou vários recursos de distanciamento, como a apresentação simultânea e sucessiva de quadros, música incidental, canções, acrobacias, imagens técnicas, intervenção de um coro, etc. A idéia neles implícita é a de que o teatro deve opor-se à realidade,

não disfarçando o seu caráter lúdico e teatral, mas retirando o espectador da vida cotidiana, fazendo-o sentir que está inserido em uma celebração. Para isto, procuram criar um ambiente formoso e festivo, cercando o público de cores luminosas, lembrando-o de que está participando de uma manifestação ritualística, litúrgica, de puro jogo, e que aquilo não é a ‘vida’, em seu sentido mais comum.


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Para o Tá Na Rua, o texto dramático tradicional (construído por meio de diálogos) aponta para uma dramaturgia adequada ao palco à italiana; logo, não serve para suscitar o processo dialético que o grupo propõe. Este precisou, portanto, sair em busca de uma outra possível dramaturgia. DND é a síntese dessa pesquisa – uma montagem cuja estrutura dramatúrgica permite que o espetáculo seja lançado em todas as direções, atuando de forma multidirecional e atingindo lugares não previstos – base da relação intrínseca entre o teatro e o espaço aberto da rua. Neste, tal confronto acontece com micro-ações se propagando em diferentes planos e intensidades. Pois ali tudo está em movimento, atingindo lugares inusitados que o teatro convencional não poderia atingir, devido aos seus limites espaciais e ideológicos.

Espaço Pensemos em futebol! Fazer

teatro dentro do prédio teatral é ‘jogar na casa do adversário’, onde ‘a torcida é toda contra’. É uma armadilha,

porque esses edifícios já são ideológicos em si, construídos para fazer a manutenção da ideologia burguesa. Tanto é, que só uma classe, basicamente, tem acesso a esses espaços: aquela que detém o poder. O espaço fechado, mesmo com uma dramaturgia aberta, resulta no mesmo: é um teatro para uma única classe. Não modifica a realidade, porque o público que o assiste é formado, basicamente, pelo grupo social que detém um poder, do qual obviamente não deseja abrir mão. Ou, então, o público é formado por intelectuais, uma micro-sociedade que não pretende revolucionar a realidade dada já que, em última análise, é o segmento intelectual dessa mesma elite sócio-econômica. Apresentar-se nestes equipamentos significa proporcionar, a essa elite, os instrumentos necessários à construção de mecanismos de defesa contra as ações divergentes dela, num fenômeno de apropriação e aniquilamento ou até de incorporação da linguagem, com o intuito de reduzi-la. Ali, no edifício teatral, a realidade oficial e seus mecanismos, como censura e outros, conseguem atuar fortemente. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o espetáculo Somma, criado e dirigido por Amir Haddad em 1974. Nessa ocasião, a crítica teatral agiu de forma aniquiladora. Ela, que é formadora da consciência de toda uma classe social e do pensamento teatral, atuou no sentido de desqualificar o próprio caráter de teatralidade do espetáculo, eximindo-se de qualquer tipo de apoio ao elenco do Grupo Teatro Mágico, quando a peça foi arbitrariamente interditada pela censura (REBELLO, 2005).

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} Sobre o Tá Na Rua

Apresentados em espaço fechado, certos espetáculos têm uma proposta revolucionária e transformadora que funciona como um ‘chamamento’ contra o ‘massacre’ ideológico do sistema neoliberal, mas sendo acessíveis somente às classes alta e média, cumprem a ambígua função de um teatro classista que se quer conscientizador. Isto fica claro, por exemplo, se analisarmos a situação pelo viés da acessibilidade à informação. Para assistir ao espetáculo, o público tem que pagar! Nesse caso, a informação é paga; terá acesso a ela somente quem tiver dinheiro para comprá-la. Aquele que não tiver condições de realizar este ‘negócio’, não poderá apreender o universo simbólico ali proposto; não obterá o novo conhecimento que o espetáculo pretende ‘compartilhar’. Assim, dilui-se o seu potencial transformador, porque passa a ser propriedade de uma só classe social. Ainda que a intenção seja questionar, criticar ou revolucionar a realidade, o próprio teatro, etc, cria-se um paradoxo, ou talvez uma simples incoerência entre desejo e ato.

Ao se apresentar em espaços abertos, onde a informação não é paga, o Tá Na Rua rompe com essa distorção. Leva a discussão ideológica para a rua, restaurando a idéia da Ágora grega, onde os grandes temas que interessavam à pólis eram discutidos pelos cidadãos das cidades-Estado. Na rua, as instituições são expostas, esgarçadas, carnavalizadas; enfim, ‘viradas ao avesso’ pelos atores. Assim, deixam à mostra o material de que são constituídas: a sua verdadeira anatomia – as vértebras, os membros, os órgãos que a mantêm viva. A idéia é desestruturar este organismo (DELEUZE, 1995). O simples ato de levar a instituição para fora do espaço privado, tornando-a pública, já inverte a lógica a ela inerente e questiona as suas regras, torna-a vulnerável; relativiza a verdade absoluta de seu discurso ideológico. No espaço aberto, é criado um campo de batalha, uma liça, uma arena, um ‘palco-ringue’ onde será travado o confronto entre o cidadão e a cidade (HADDAD, 2005). Por isso, o Tá Na Rua denomina grande parte de seus espetáculos como ‘autos’, com o sentido medieval de que um fato importante para a comunidade é exposto à


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opinião pública, para então ser analisado e julgado coletivamente. É ela quem escolhe o lugar do embate, e não a instituição em foco. A lógica aqui presente é a de não estabelecer um combate direto. Para que confrontar a política no próprio Senado, ou questionar o casamento dentro de uma igreja? É

no campo das artes que se dá a dimensão estética da política, isto é, a ‘partilha do sensível’.

Segundo Jacques Rancière, (...) a arte não é política antes de tudo pelas mensagens que ela transmite nem pela maneira como representa as estruturas sociais, os conflitos políticos ou as identidades sociais, étnicas ou sexuais. Ela é política antes de mais nada pela maneira como configura um sensorium espaço-temporal que determina maneiras do estar junto ou separado, fora ou dentro, face a ou no meio de… Ela é política enquanto recorta um determinado espaço ou um determinado tempo, enquanto os objetos com os quais ela povoa este espaço ou o ritmo que ela confere a esse tempo determinam uma forma de experiência específica, em conformidade ou em ruptura com outras: uma forma específica de visibilidade, uma modificação das relações entre formas sensíveis e regimes de significação, velocidades específicas, mas também e antes de mais nada formas de reunião ou de solidão. Porque a política, bem antes de ser o exercício de um poder ou uma luta pelo poder, é o recorte de um espaço específico de “ocupações comuns”; é o conflito para determinar os objetos que fazem ou não parte dessas ocupações, os sujeitos que participam ou não delas, etc. Se a arte é política, ela o é enquanto os espaços e os tempos que ela recorta e as formas de ocupação desses tempos e espaços que ela determina interferem com o recorte dos espaços e dos tempos, dos sujeitos e dos objetos, do privado e do público, das competências e das incompetências, que define uma comunidade política. 4

4. IN: “São Paulo S.A., Práticas

Então, a

estéticas, sociais e políticas em

estética do Tá Na Rua produz uma nova ética que busca resensibilizar os sentidos e reeducar o cidadão comum pela emoção, pela maneira de perceber, ver e ouvir, vivida coletivamente.

debate: situação estética e política”. 17 a 19 de abril de 2005, SESC Belenzinho, SP, Brasil. Tradução: Mônica Costa Netto.


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} Sobre o Tá Na Rua

Linguagem lingüística versus linguagem estética

Os discursos ideológicos têm na linguagem verbal o seu meio privilegiado de comunicação. As palavras, por serem polissêmicas e passíveis de múltiplas interpretações, são apreendidas de acordo com o universo simbólico de cada um. Em termos práticos, isso significa que sua inteligibilidade não é igual para todos; a prerrogativa de sua compreensão é dada a apenas uma parcela da sociedade que, deste modo, coloca as demais sob o seu domínio. Por exemplo, a maioria das pessoas não entende o que está escrito nas entrelinhas de um contrato de aluguel, nos manuais de equipamentos eletrônicos, na bula de um remédio e, principalmente, nas leis. A Constituição e os textos oficiais são elaborados segundo um vocabulário e uma gramática que pertencem a um determinado grupo social e intelectual. Pela sintaxe - dessa elite – a população, em sua maioria, é mantida na ignorância. E como o mundo e a sociedade capitalista estão divididos em classes e papéis, o conhecimento também é dividido: alguns acabam lendo, muito bem, os textos oficiais das instituições (são eles quem os fazem, aliás) e, por isso, inscrevem esses textos na sociedade. Mas, a maioria não consegue ter acesso às informações cruciais. O Tá Na Rua tenta fazer uma ‘tradução’ desses textos para a linguagem popular. ‘Todo

O grupo torna-se, portanto, um ‘bom’ tradutor para o povo, uma vez que trai o texto oficial. Substitui a linguagem lingüística pela linguagem estética, (o universo simbólico da arte) ‘traduzindo’ o

5. Traduttore, traittore.

tradutor é um traidor’5.

mundo em imagens e não só em palavras, porque os que conhecem mais palavras acabam assumindo o poder desse mundo explicado pelas mesmas. O Tá Na Rua se afasta propositalmente deste campo, onde a realidade é construída oficialmente, e traz o confronto para o terreno da sensibilidade, do sensível e do afetivo. Traz a ‘realidade’ para perto, onde

Em lugar de ler a realidade e a sociedade, propõe ver e tocar a realidade e a sociedade. Esta ‘tradução’ é a dramaturgia do grupo Tá Na Rua. ela é mais palpável.

Dramaturgia Existe uma estrutura dramatúrgica, um modus operandi, na construção dos espetáculos do Tá Na Rua. O primeiro momento se dá quando o coletivo de atores conversa sobre o tema que lhes é apresentado. Este pode ser sugerido por um integrante, pela leitura de um jornal, por um momento específico que o grupo está passando, um fato político novo, um ‘movimento’6. Todos conversam sobre o assunto e expõem 6. “Movimento significa, para um grego, toda e qualquer alteração de uma realidade, seja ela qual for” (CHAUÍ, 2005).


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o que sabem, tanto quanto o que não sabem a respeito do mesmo (sendo às vezes o último, o mais importante). Este trabalho tem um objetivo: ‘cercar a franga’, ‘achar o mote’. Poderíamos traduzir de outra maneira estes códigos internalizados da cultura popular: estudar o assunto amplamente tem, como objetivo, o ‘rastreamento’ da ideologia e das contradições implícitas no tema, na tentativa de descobrir qual é a instituição que responde pela mesma, (Pátria, Família, Igreja, Teatro, etc.), com suas regras e mecanismos de coerção, manutenção, aniquilação, conversão ou exclusão (DUARTE Jr., 1988). Os atores do Tá Na Rua já possuem um treinamento desta dinâmica, o que lhes possibilita produzir coletivamente este ‘novo conhecimento’ e, simultaneamente, iniciar uma produção gestual de imagens que possam revelar o discurso ideológico ali presente, que percebem estar agindo naquela situação e atuando sobre a formação do pensamento e da consciência dos nela envolvidos. Utilizam, para isto, recursos estéticos: música, elementos cenográficos, figurinos, adereços, objetos simbólicos.

O que antes era pensado e dito com palavras,

agora é pensado e visualizado. Nesta fase, a liberdade de criação do ator é fundamental. Não pode haver censura nem julgamento, mas somente a liberdade de improvisar, com humor, a crueldade da verdade que a ideologia falseia e manipula. A partir deste raciocínio, pode-se dizer que

o Tá Na Rua é uma anti-ideologia

que atua na periferia do poder, à margem da realidade-sociedade, com o intuito de apresentá-la como o produto de uma construção arbitrária, não-natural. Nas suas ‘montagens’ não há mensagens nem heroísmos. Não existe um propósito de ‘salvar’. E em momento algum a idéia que o move é converter ou coagir, mas tão-somente revelar outros pontos de vista sobre certa questão, para que uma nova visão da realidade amplie as possibilidades de reflexão crítica sobre essa mesma realidade.

Este é o jogo!

Deleuze e Guatarri (1995) propõem uma figura conceitual – rizoma – como uma forma de pensar que questiona os princípios evolutivos comumente aceitos – os processos de desenvolvimento ‘em árvore’ ou ‘arborescente’ - que se perpetuaram no ocidente sob a forma de paradigma científico. Para os autores de Mil Platôs, trata-se de uma estrutura de pensamento organizada pela lógica binária e linear que construiu a psicanálise, a lingüística, o estruturalismo e até a informática. A esta lógica, eles propõem outra: a do rizoma, que produz um mapa aberto, conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível a modificações. Este pode ser rasgado, revertido, adaptado a montagens de qualquer natureza, ser preparado (por um indivíduo, um grupo, uma sociedade). O mapa rizomático tem múltiplas entradas, como uma toca de animal.


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} Sobre o Tá Na Rua

Derrida (2005) aponta, em Freud, a tendência da cultura ocidental, desde Platão e Aristóteles, de ilustrar prioritariamente por imagens gráficas as relações entre razão e experiência, percepção e memória. Contrariando essa histórica tendência, o Tá Na Rua vai além da criação de imagens visuais e investe na produção de imagens sonoras, capazes de levar o espectador a uma reflexão crítica profunda a partir de um - aparentemente menos importante - estímulo musical. Deleuze e Guatarri (1995) também falam sobre a memória. Os autores distinguem uma longa e uma curta, cuja diferença não é apenas quantitativa, mas qualitativa: a curta seria rizomática, enquanto que a longa, arborescente e centralizada. A primeira se relaciona ao esquecimento como processo; ao rizoma coletivo, temporal e nervoso. A segunda está relacionada à família, à raça, à sociedade. Os sistemas arborescentes são hierárquicos, têm memórias organizadas, mas um elemento só recebe informações de uma unidade superior. Na construção de DND, o Tá Na Rua trabalhou com a memória curta, ou seja, com a memória rizomática que recebe informações múltiplas, e não apenas de uma unidade superior centralizadora. Dito de outro modo, esta poderia ser considerada uma memória ‘inteligente’, que está sempre em busca de linhas de fuga com um espaço fora, construindo multiplicidades e não estabilidades. Jacques Rancière (2005) aponta a mistura entre as artes como uma das marcas do regime estético da arte. Em

DND, o grupo Tá Na Rua adotou esse regime de pensamento que des-hierarquiza as artes, onde o real precisa ser ficcionado para ser pensado. Por isso, a linguagem musical adquiriu, nesse espetáculo, um status de igualdade com o teatro, corroborando o pensamento daquele autor acerca da possibilidade de outras formas de se pensar a arte. O processo de criação de DND seguiu o raciocínio de Rancièrie sobre a questão da denúncia da ‘crise da arte’ pelas grandes teorias e experiências vanguardistas de fusão entre a arte e a vida que, segundo esse autor, ‘evidenciam que a batalha centrada no debate sobre a história – suas ilusões e desilusões – se dá hoje no terreno da estética’ (RANCIÈRE, 2005, p. 11). Ao escolher o tema da ditadura militar, o Tá

Na Rua opta por discutir a história do país por meio da sua prática estética, efetuando uma forma de partilha do sensível que busca superar a hierarquização do poder. Esta é a sua forma política de manifestação, plenamente vivida no terreno da estética. Uma possibilidade de comparação entre as opções éticas/estéticas do Tá Na Rua e de outros grupos brasileiros é vislumbrada pela proposta metodológica que Michel Foucault denomina como arqueologia em sua obra A Arqueologia do Saber (2007). O autor a define como uma análise comparativa que não pretende reduzir a diversidade dos discursos analisados, nem delinear a unidade que deve totalizá-los, mas contrariamente, se dirige a um complexo


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horizonte constituído por um emaranhado de interpositividades. Desse modo, a comparação arqueológica não teria um efeito unificador, como se dá em geral com os objetos históricos, mas multiplicador. Segundo Foucault, na usual história das idéias, uma comparação é sempre limitada, regional, e dirige-se para a busca de formas gerais. Na confrontação de diferentes discursos, ela tende a perguntar o que os mesmos tinham em comum, que postulados implícitos compartilhavam apesar da diversidade das teorias, e a que princípios gerais obedeciam silenciosamente; o que a arqueologia propõe é justamente libertar a história do jogo das analogias e das diferenças, procurando desenhar configurações singulares e definindo o modelo arqueológico de cada formação discursiva, mostrando como uma única noção pôde abranger dois elementos arqueologicamente distintos, implicando em possíveis defasagens arqueológicas; enfim, com base no pensamento de Foucault acerca de uma arqueologia dos fatos comparativos, é possível perceber que muito mais poderia ainda ser revelado sobre o discurso dramatúrgico do grupo Tá Na Rua, se comparado a outros projetos teatrais da contemporaneidade7, em possíveis análises que, certamente, permitiriam reconhecer neles uma configuração discursiva pertencente basicamente a uma mesma região de

7. O Grupo Oficina (SP), dirigido por José Celso Martinez Corrêa, por exemplo.

interpositividade, embora totalmente definidos em suas configurações particulares.

Espaço fechado x espaço aberto O teatro brasileiro contemporâneo, em muitas de suas manifestações, apresenta a necessidade visceral de desterritorialização e de, rizomaticamente, criar ligações com o espaço exterior ao prédio teatral. Pode-se dizer que alguns grupos atuais, entre eles o Oficina, de São Paulo, ‘brincam’ com a possibilidade de conectar os espaços internos (do teatro) com os externos (da cidade), mantendo, entretanto, os primeiros como um referencial seguro de onde pode, sem os riscos de sair, enxergar os segundos. Dito de outra forma, algumas experiências recentes desse coletivo8 convidam o espectador a ‘espiar’ o mundo à sua volta; insinuam um movimento nessa direção; criam ‘aberturas’ arquitetônicas através das quais tenta estabelecer contato com esses espaços externos; chegam a revelar, simbólica e concretamente, essas passagens (espaciais,

8. Espetáculos do ciclo de Os Sertões, de José Celso Martinez Corrêa e o Grupo Oficina, sobre a obra homônima de Euclides da Cunha.

corporais, éticas) que se situam entre o dentro e o fora. Mas tudo isso permanece como desejo, não indo além da possibilidade. Amir Haddad e o grupo Tá Na Rua radicalizam esse mesmo desejo; saem – literal e metaforicamente – do espaço interno, privado, da segurança, para aventurar-se do lado de fora. Não ‘espia’: mergulha. Não sonega o próprio desejo de rizoma: deixa-se penetrar e ser penetrado pelo rizoma do mundo; ‘faz rizoma’ nele e com ele. O que lá ‘dentro’ era reflexão intelectual sobre a percepção corpórea torna-se, ‘aqui fora’, intensidade corporal vivida como experiência corporal pura: pulsação, calor, suor de um corpo único que, ao menos temporariamente,


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} Sobre o Tá Na Rua

abandona suas individualidades de atores/atrizes/espectadores para tornar-se Corpo sem Órgãos (DELEUZE, 1995). Não o corpo paranóico ou masoquista produzido por uma sociedade esquizofrênica que insiste em dicotomizar as relações sociais, o mundo e a própria vida, mas o corpo-ovo, pulsante, vivo, simultaneamente sexual e anti-genealógico. Na desterritorialização consumada pelo Tá Na Rua, a necessidade maior é a de conter o ímpeto rizomático que dificulta a colocação de limites saudáveis entre o dentro e o fora.

Trabalhando prioritariamente em espaço fechado, outros grupos brasileiros conseguiram proporcionar maior visibilidade e respeitabilidade em relação ao seu projeto teatral, uma vez que a crítica e a classe intelectual - públicos formadores de opinião – têm como atividade usual assistir aos espetáculos ‘em cartaz’, estabelecendo aprioristicamente com os mesmos uma relação de disponibilidade, ainda que esta possa ter um caráter mais profissional do que de simples ‘gosto’ pessoal. Este fato é praticamente inexistente quando se trata de uma apresentação teatral ‘de rua’, ou como Haddad prefere colocar, ‘em espaços abertos’. Para verificá-lo, basta abrirmos um jornal de grande circulação e observar que, no espaço reservado à crítica teatral, as análises são dirigidas, única e exclusivamente, a espetáculos realizados em salas. Favorável ou desfavorável, um comentário escrito e divulgado num meio de comunicação sempre funciona como um atrativo, retroalimentando o estreito círculo de relações sociais e profissionais existente dentro do universo dessa arte. De qualquer modo, e em que pesem as reais dificuldades econômicas, uma produção teatral ‘em sala fechada’ estará sempre mais apta a conseguir sustentabilidade financeira, através da bilheteria ou da venda de espaço publicitário para patrocinadores, do que um espetáculo ‘de rua’, onde o ‘passar o chapéu’ é somente tradição. Do ponto de vista do acabamento estético, o Tá Na Rua muitas vezes não consegue obter um grau de refinamento tão apurado quanto o de outros grupos brasileiros que investem seus esforços em espetáculos em salas fechadas. Não seria exagero afirmar que um tal nível de acabamento só é possível nos espetáculos realizados em espaços privados. Não porque o público da rua seja


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menos inteligente ou exigente que o outro, mas devido à natureza transitória e fluida desse teatro que, para existir enquanto tal, precisa estar permanentemente aberto aos imprevistos de um espaço público, os quais são, em si, parte integrante do próprio espetáculo. Sendo a agilidade – mental e física - a sua natureza essencial, as qualidades imprescindíveis ao artista ‘de rua’ relacionam-se mais com a capacidade de ‘jogar’ e improvisar rapidamente, de interagir com todos os tipos de pessoas durante o espetáculo, do que com as habilidades técnicas convencionalmente atribuídas individualmente ao ‘bom’ ator, ainda que estas estejam baseadas na corporalidade, sensibilidade e inteligência. Trata-se, enfim, de uma questão de escolhas éticas e estéticas, que os grupos brasileiros mais permanentes já têm muito bem definidas, defendendo-as com igual paixão e empenho. E o Tá Na Rua, do lado de fora do edifício teatral, se mantém firme no propósito de buscar um teatro desclassificado que alcance a todos os cidadãos.

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Jussara Trindade

a utilização da

MÚSICA


NAS OFICINAS DO GRUPO tá na rua

Explode a música. O espaço é amorosamente invadido pelos acordes iniciais da famosa valsa de Strauss, O Danúbio Azul. Tecidos coloridos são lançados ao ar, rodopiam, levados por mãos humanas desejosas de viver o vôo livre das borboletas. Depois é Mambo-Jambo, um grande sucesso dos anos 50, cuja sensualidade latina aproxima os corpos, convidando-os a estabelecer um contato mais íntimo com o outro. Os atores, sem verbalizar, estimulam o público a participar daquele momento, convidando-o por meio de gestos, olhares, sorrisos. A cada música, o espaço vai sendo tomado, e já não é possível distinguir atores de não-atores: multiplicam-se os corpos e os movimentos. Personagens, até então aprisionados dentro de cada figurino, objeto, máscara, criam vida.


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} Sobre o Tá Na Rua

Surge o jogo, a cumplicidade, a cena. 1. Expressão utilizada pelo grupo Tá Na Rua para qualificar um estado peculiar de disponibilidade que o seu

Do grupo, em pleno estado de teatro1, emana uma força, um campo de energia tão impalpável quanto

trabalho visa estimular naqueles que dele participam, sejam atores ou espectadores. Este se caracteriza pela intensa disponibilidade corporal e

poderoso. Forma-se a roda, espaço cênico virtual criado por essa intensa movimentação, que estabelece uma

emocional dos participantes, possibilitando-lhes improvisar, jogar lúdica e criativamente dentro de uma oficina.

área de atuação visível: ela determina quem está dentro e quem está fora do jogo teatral neste momento – mas este limite é sutil e flexível o bastante para modificar-se, de acordo com o movimento coletivo. O ritmo da música acelera, e neste crescendo os atores e os não-atores preparam-se para finalizar uma grande improvisação. No acorde final, o grupo estanca, e cada um encontra o seu espaço individual dentro deste organismo vivo. Todos

pulsam, juntos. Ecoando através das névoas do tempo, ouve-

se o clamor do sacerdote - o ator primitivo - na oferenda de seu sangue e espírito. A magia imortal do teatro faz renovar, mais uma vez, o pacto entre homens e deuses. Este ensaio pretende descrever algumas possibilidades de utilização da música na formação e desenvolvimento do ator, nas oficinas realizadas pelo grupo de teatro Tá Na Rua, do Rio de Janeiro, que venho acompanhando desde 1998, quando ministrei pela primeira vez a oficina A 2. Dirigido por Amir Haddad, o grupo criou em 1999 o Instituto Tá Na Rua para as Artes, Educação e Cidadania, com o

Musicalidade do Ator2. Percebi, neste período, que a música é, talvez, o mais importante elemento do jogo de improvisação proposto pelo coletivo. Articulando-se com o discurso visual, ela colabora ativamente na composição de uma partitura teatral polifônica,

objetivo de administrar e fazer a coordenação pedagógica de suas oficinas teatrais.

representando muito mais que apenas uma trilha sonora para as cenas improvisadas. Ao contrário, parece desempenhar um papel primordial como estímulo sensorial que povoa o imaginário do ator com imagens sonoras, tornando possível uma produção ininterrupta de imagens cênicas. Como um dos aspectos constituintes da cultura, a música pode ser considerada, também, um fenômeno de comunicação e de linguagem. Considerando-se que estes [fenômenos] só comunicam porque se estruturam como linguagem, pode-se concluir que todo e qualquer fato cultural, toda e qualquer atividade ou prática social constituem-se como práticas significantes, isto é, práticas de produção de linguagem e de sentido (SANTAELLA, 1990, p.14). Entendida aqui como objeto semiótico – produtor de sentido – no interior da proposta pedagógica do grupo Tá Na Rua, a música pode ser analisada brevemente à luz das formulações do cientista e filósofo norte-americano Charles Sanders Peirce (1839-1914), um


A utilização da música nas oficinas do grupo Tá Na Rua {

dos nomes fundamentais da ciência dos signos3.

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3. “O nome Semiótica vem da raiz

No início do século XX, este pesquisador estabeleceu as bases da Semiótica sobre uma postura científica de observação dos fenômenos para, através de sua análise, postular as

grega semeion, que quer dizer signo. Semiótica é a ciência dos signos”, ou ainda, “ciência geral de todas as linguagens”

propriedades universais dos mesmos. Peirce considerava que, na natureza, somente o homem seria capaz de converter os sinais - qualquer estímulo emitido pelos objetos do mundo - em signos ou linguagens, ou seja, em produtos observáveis pela consciência.

(SANTAELLA, 1990, p. 07). Para a autora, o século XX testemunhou o desenvolvimento de duas ciências da linguagem: a Lingüística, ciência da linguagem

Assim, todo fenômeno humano pode ser examinado como fenômeno de produção de

verbal que tem em Ferdinand de

significação e de sentido – este é o vasto campo da Semiótica. A partir dessa postura

Saussure o seu expoente

fenomenológica, Peirce estabeleceu as categorias do signo4 que, segundo ele, expressam

que estuda toda e qualquer

toda e qualquer experiência: ícone, índice e símbolo. Não caberia, nos limites deste ensaio, uma longa exposição da teoria peirceana. Parece-me,

máximo. A outra é a Semiótica, linguagem – os sistemas sociais e históricos de representação do mundo – proposta por Charles Sanders Peirce. A autora destaca

contudo, ser necessária uma rápida tentativa de compreender a música como objeto produtor de significação a partir das categorias semióticas de Peirce, uma vez que, nas oficinas do grupo Tá Na Rua, é este o ponto de partida para a produção de imagens cênicas. Na categoria “ícone”, o signo não chega a ser representável; ele só pode ser apresentado globalmente em suas qualidades essenciais ou, em outras palavras, é algo que “se dá à

ainda, como outras vertentes da Semiótica, os estudos realizados pelo Círculo Lingüístico de Praga e o Círculo de Bakhtin. 4. Na perspectiva de Peirce, o signo é aquilo que está no lugar do objeto, produzindo na mente de um intérprete a

contemplação” (idem, p. 86). Para Peirce, quanto mais alguma coisa se apresenta em seu caráter qualitativo, mais ela tenderá a nublar a racionalização dos sentidos. É a capacidade de absorver ícones, por exemplo, que faz a criança (ou o artista) ficar muito tempo em pura contemplação, pois, justamente por não representarem nada a rigor, os ícones têm alto poder sugestivo: são capazes de produzir, na mente humana, as mais diversas e subjetivas relações de comparação. Uma pintura abstrata, por exemplo, só existe em seu caráter qualitativo (cores, luminosidade, volumes, texturas, formas). De forma análoga, a música em estado puro (ritmo, timbres, alturas), tende a colocar o ouvinte num estado de contemplação estética, pois, trata-se da percepção de uma massa de ícones sonoros que, a princípio, não representam nada. Este apenas absorve o som, e sua mente começa a construir relações totalmente livres com ele; associações abertas que impossibilitam a figuração clara de uma imagem sonora, levando-o freqüentemente a experimentar estados alterados de consciência. É o caso, por exemplo, da techno music e de alguns tipos mais complexos de música instrumental contemporânea, assim como daqueles em que predomina o aspecto rítmico, como nos rituais das sociedades tribais. Todas estas têm, em comum, o caráter essencialmente qualitativo dos seus parâmetros sonoros, conforme a categoria de ícone elaborada por Charles Peirce.

representação desse objeto (SANTAELLA, 1990).


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} Sobre o Tá Na Rua

Pelas suas qualidades semióticas, esse tipo de música não parece ser o mais adequado para uma utilização pedagógica nas oficinas teatrais do grupo Tá Na Rua, o que se evidencia na dificuldade de improvisação que um grupo enfrenta para construir uma imagem cênica coletiva, diante de um estímulo musical como esse. À medida que uma música apresenta maior entrelaçamento de ritmo, melodia e harmonia – numa estruturação musical característica da música ocidental – estará se encaminhando em direção ao índice, o qual estabelece uma relação um pouco mais “fechada” com algo que representa, isto é, indica ter uma ligação factual com outras instâncias extra-musicais. Uma obra artística é, assim, um vestígio, um resíduo, enfim, “um índice dos meios materiais, técnicos, construtivos de seu espaço-tempo, ou melhor, da sua história” (idem, p. 90). Assim, um gênero musical – valsa, mambo, flamenco, xote ou chorinho, por exemplo -, tornase o testemunho vivo de uma época e de um lugar, de uma cultura, de uma estética, com a qual mantém uma conexão intrínseca. Utilizada durante uma oficina do Tá Na Rua, age como um dispositivo detonador dessa memória coletiva onde estão armazenados tais vestígios, tornando-se o estímulo sonoro ideal para improvisações coletivas, devido às imagens sonoras que evocam de forma imediata nos participantes. Quando, entretanto, uma música encontra-se na categoria de símbolo, é porque, segundo Pierce, já se tornou uma lei. Ou seja, ela “extrai seu poder de representação [de] uma lei que, por convenção ou pacto coletivo, determina que aquele signo represente seu objeto” (idem, p. 92). Isso traz, para as músicas que poderiam estar incluídas neste conjunto, uma utilização restritiva de suas possibilidades imagéticas. O sentido excessivamente óbvio e direto de tais músicas tende a fixar o campo de significação, oferecendo-o praticamente “pronto” para a pessoa. É o que acontece, por exemplo, quando numa oficina é colocado um samba-enredo: imediatamente os participantes mais extrovertidos passam a representar personagens fixos de uma escola-de-samba - principalmente a rainha da bateria e o casal de porta-bandeira e mestre-sala - exibindo performances estereotipadas, com gestos marcados. Este tipo de música-símbolo pode se transformar numa camisa-de-força musical que reduz as infinitas possibilidades de improvisação coletiva em meia dúzia de “truques” ou passos de dança cristalizados. Por isso, ela pressupõe uma experiência maior por parte dos participantes de uma oficina, e não costuma ser usada com iniciantes ou de forma aleatória. Somente um grupo


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que alcança estágios mais avançados do aprendizado teatral proposto pelo grupo Tá Na Rua, é capaz de aproveitar o potencial espetacular dessa categoria musical. Observando os exemplos musicais mais freqüentemente adotados nessas oficinas, é possível perceber que os gêneros mais eficazes no processo de produção de imagens cênicas são justamente os que se localizam na categoria intermediária, de índice. Num primeiro esforço de sistematização, venho desenvolvendo recentemente uma tipologia dessas músicas, a partir do objetivo sensório-motor mais imediato a ser atingido naquele momento. É interessante observar que são, estes, gêneros musicais representativos de outras épocas e/ou culturas (valsas, boleros, chorinhos, etc), capazes de evocar um passado impessoal pertencente a uma memória coletiva e cultural que, nos momentos iniciais de uma oficina, funcionariam como um “convite” para sair do mundo cotidiano e ingressar noutras dimensões espaço-temporais. Poder-se-ia dizer que diferentes

tipos de músicas, utilizados em momentos específicos, podem operar um deslocamento significativo da consciência ordinária, tal qual sugerido nas capas dos antigos long-plays de vinil utilizados nos primórdios do Tá Na Rua (o álbum de “O Mundo Encantado da Música Popular”5, por exemplo). No início de uma oficina, segue sem interrupções uma seqüência de músicas que mantém o objetivo de explorar o espaço, de forma gradualmente mais intensa e cada vez com maior exigência corporal. São os mambos, o chá-chá-chá, a rumba, gêneros latinos que estimulam o contato, a sensualidade, a mobilização da cintura pélvica e o jogo em dupla; a tarantella italiana que propõe uma maior coletivização, o dançar em roda e as palmas ritmadas; as polcas russas e polonesas e o can-can francês, que exigem grande vigor físico e já proporcionam a produção de imagens mais elaboradas; os dobrados circenses e a inevitável memória do picadeiro com suas artes milenares; as marchas militares que, como o próprio nome o diz, incentivam o andar marcado, o pisar forte, as formações coletivas em linhas ou colunas retas, as imagens viris. Já as marchinhas carnavalescas têm o apelo da nossa cultura popular, cuja memória traz, diferentemente das formações retilíneas anteriores, o caminhar em círculo, muitas vezes proporcionando uma primeira imagem totalmente coletivizada do grupo.

5. Coleção “Seleções do Reader’s Digest das Melodias Mais Queridas de Todo o Mundo”. Rio de Janeiro, s/d.


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} Sobre o Tá Na Rua

São músicas para “pernas” e “cintura”, utilizadas sem nenhuma ordem pré-estabelecida e colocadas pelo sonoplasta de acordo com a receptividade do grupo que ali se encontra. Uma determinada oficina pode exigir esse trabalho durante um longo tempo; outras esgotam rapidamente essas expressões. Seja como for, as mesmas músicas tornam-se, freqüentemente, o ponto de partida para improvisações completamente diferentes, que surgem a cada encontro. A essa altura, os participantes já estão aptos a entrar naquele estado de teatro que o Tá Na Rua considera como o de prontidão – física, emocional, intelectual – para o jogo teatral propriamente dito, e que poderia ser atribuído a uma entrada definitiva no território do imaginário. As músicas são, agora, mais suaves, e a supremacia do ritmo tende a dar lugar ao desenho de linhas melódicas definidas, seja pelo solo de um instrumento de sopro (principalmente a flauta transversa e o clarinete), seja pela própria linha de um canto, quando surgem melodias conhecidas, de uma certa complexidade poética, cujo raciocínio o grupo pode acompanhar, buscando uma harmonia entre a música e o conteúdo da letra. O Carinhoso, de Pixinguinha, é um “clássico” do Tá Na Rua bastante representativo desta etapa. Outros exemplos do cancioneiro popular brasileiro, como Nervos de Aço, de Lupicínio Rodrigues, ou Você é Linda, de Caetano Veloso, dão o clima sonoro para esse aprofundamento na esfera dos sentimentos amorosos. Ainda que essas músicas sejam instrumentais, ou em língua estrangeira – um bom exemplo disso é One More Kiss, Dear, o tema de amor do filme Blade Runner - costumam gerar as improvisações românticas, o devaneio, a sedução delicada, a declaração de amor. Os contatos físicos se estreitam, surgem abraços e casais de namorados, emergem cenas repletas de gestos poéticos, movimentos lentos e sonhadores. São músicas “para o peito”. Acompanhando esta evolução “topográfica” da música, aparecem os exemplos que poderiam 6. De fato, a maioria das peças musicais aqui utilizadas pelo Tá

ser atribuidos “à cabeça”: são peças popularmente conhecidas como “clássicas”6, como a Valsa

Na Rua está inserida, na

das Flores de Tchaikovsky, A Cavalgada das Valquírias, de Wagner, a Abertura de Carmen, de

historiografia musical do

Bizet. Outras músicas, até bem menos conhecidas, também fazem parte deste repertório que

ocidente, dentro do período Romântico (1800-1900), que se caracterizou pela busca da complexidade técnica, da interpretação performática do virtuose e do exotismo de lugares distantes, e pela eclosão da chamada “música programática” – que “conta uma história ou, de certo modo, é descritiva, evocando imagens na mente do ouvinte” (BENNETT, 1986, p. 60).

pode exigir um maior esforço do aluno, na visualização das imagens sonoras por elas evocadas: músicas instrumentais brasileiras, jazz contemporâneo, trilhas de espetáculos como Saltimbanco, do Cirque du Soleil. Alguns compositores e conjuntos brasileiros são bons


A utilização da música nas oficinas do grupo Tá Na Rua {

exemplos dessa categoria: Antônio Nóbrega, Hermeto Paschoal, Uakti7, Mawaca8. Não por acaso, essas músicas consideradas “cerebrais” pelos atores do Tá Na Rua são, musicalmente, extremamente complexas. Apresentam, propositalmente, “quebras” das

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7. Conjunto paulista que explora sonoridades de instrumentos musicais artesanais, criados pelos próprios integrantes a partir dos mais diversos materiais

convenções musicais ocidentais, em todos os parâmetros sonoros de que são constituídos: utilização de timbres sonoros inusitados, criados pelo manuseio não convencional de

(bichinhos de plástico, tubos de pvc, etc). 8. Grupo musical feminino, de São

instrumentos musicais acústicos e objetos do cotidiano; distorções sonoras produzidas por instrumentos e equipamentos eletrônicos; experimentalismo rítmico, com variações de compasso, acentuação métrica inesperada, fusão de ritmos gerando novas estruturas; resgate de sonoridades vocais étnicas, com variação extrema no parâmetro das alturas sonoras, melodias atonais e modais, sem a previsibilidade e linearidade da música tonal ocidental; mudanças repentinas (de ritmo, estilo, tonalidade, etc) dentro da estrutura musical; enfim, exemplos que, ao incorporar elementos inesperados ou inusitados, tendem a operar desestabilizando os referentes espaço-temporais habituais. Se o grupo já tiver conquistado um bom nível de prática, essa poderá ser uma experiência fascinante, pois a

indeterminação de qualquer referência estável, a priori, deixa o caminho totalmente livre para o imaginário. É, a partir desse ponto que podem ser produzidas cenas dinâmicas, complexas, onde se verifica a construção de narrativas dramáticas sem palavras – mas com começo, meio e fim - no esforço de improvisar coletivamente, acompanhando a nem sempre óbvia trajetória desse discurso musical e atribuindo-lhe um sentido inteligível.

Paulo, especializado na pesquisa de música étnica, também conhecida por world music.


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} Sobre o Tá Na Rua

A fim de elucidar esse tipo de “dramaturgia sonora” proposta pelo grupo Tá Na Rua, será apresentada a descrição etnográfica de uma improvisação coletiva, realizada em setembro de 2006, durante uma aula/oficina da terceira turma do Projeto Ponto de Cultura do Instituto Tá Na Rua para as Artes, Educação e Cidadania. A equipe pedagógica deste encontro foi formada pelos seguintes integrantes: atuando como coordenadores, Alexandre Santini e 9. A monitoria é uma função pedagógica que os atores e aprendizes mais experientes vêm exercendo com regularidade nas

Licko Turle; como sonoplasta, Roberto Black; a função de monitoria9 foi exercida pelos atores Alessandro, Monique, Ana Cândida e Paulinho. Início da oficina marcado para 18:00h. Devido a um problema com a chave da porta, houve o

oficinas do Tá Na Rua. O seu objetivo é estimular as improvisações coletivas, pela sua participação ativa junto aos iniciantes.

atraso de quase uma hora. Todos esperaram na calçada, em frente à Casa do Tá Na Rua. Ao subir, o grupo encontra a sala totalmente suja, por causa de uma atividade da noite anterior. Alguns alunos tomam a iniciativa de limpá-la, enquanto outros permanecem observando e conversando. Roberto Black se posiciona dentro da “ilha” de som e logo dá início ao trabalho, enquanto o espaço está sendo arrumado e limpo. Alguns começam a dançar com a vassoura, já improvisando alguns movimentos, ao som de Roberto Carlos cantando velhos sucessos em espanhol. Outros levantam da arquibancada, onde estavam sentados, e começam a arrumar os figurinos nas araras, já escolhendo alguma peça para si. Estou sentada na arquibancada, ao lado dos coordenadores da oficina. Licko Turle comenta que, em sua opinião, este grupo já está “no ponto” de fazer uma montagem, pois no final de semana anterior o mesmo estivera na cidade de Resende (RJ) participando como coro do

10. Criação coletiva do Grupo Tá Na Rua; roteiro organizado por Alexandre Santini e direção de Amir Haddad.

espetáculo Dar Não Dói, o que Dói é Resistir10, e havia sido muito bem sucedido na tarefa. Black continua colocando outras músicas do mesmo CD, sem que se note alguma mudança na movimentação dos alunos. Na quarta música, quando o mesmo Roberto Carlos inicia as primeiras notas da melodia, Licko diz: “Black fica ‘louco’ quando coloca um estímulo musical claríssimo como esse e ninguém se dá conta de que a oficina já começou”. Olho novamente para o espaço da sala, e percebo que os participantes realmente não “entraram” na oficina, pois estão dispersos, conversando em duplas ou grupinhos, esboçando algum início de brincadeira que logo se esvai, sem que se estabeleça um jogo. De repente, Black sai da “ilha” de som e se dirige para um microfone de pedestal que faz parte do seu equipamento. Diminuindo um pouco a intensidade da música, inicia uma atrapalhada narração, em “portunhol”, de tudo o que está acontecendo naquele momento, na sala. Cita alguns, nominalmente, descrevendo suas “fantásticas performances” com as vassouras e panos de limpeza. Imediatamente os participantes começam a interagir com ele, aproveitando os seus comentários absurdos para começar, de fato, alguma improvisação teatral. Satisfeito com o resultado de sua intervenção, Black volta para a “ilha” e troca o CD, colocando agora grandes hits da música latino-americana: rumbas cubanas, salsas


A utilização da música nas oficinas do grupo Tá Na Rua {

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portoriquenhas. O clima latino se fortalece com a produção de uma bela imagem coletiva, das alunas todas rodando juntas as saias floridas, evoluindo por todo o espaço da sala, enquanto os alunos, agrupados numa das laterais, batem palmas no ritmo da música, estimulando a coreografia improvisada. O final dessa cena determina, também, o término da seqüência latina. Black reinicia com Olê, Mulher Rendeira, de modo que as saias em movimento continuam como o centro visual da cena. A predominância da figura da mulher, neste momento, é evidente. Os alunos tentam, mas não conseguem jogar com as alunas, que estabeleceram um forte núcleo feminino, improvisando movimentos e trocas de pares apenas entre si. Black coloca O Malandro, de Chico Buarque, induzindo à entrada do elemento masculino no jogo, mas os dois grupos não interagem. Santini, que até esse momento estava apenas observando o andamento da oficina, levanta e passa a atuar como monitor: colocando um chapéu branco, “de malandro”, aproxima-se gingando do grupo das garotas e começa a se insinuar para elas. O grupo permanece “frio”, sem responder a essa proposta de jogo de sedução, e Santini se retira, voltando para a arquibancada. Um pouco irritado, diz: “Não sei o que está havendo hoje”, e Licko responde: “É por causa do espetáculo em Resende. Foi muito, muito bom, então eles relaxaram. É como no futebol: se num jogo fizer goleada muito fácil, no outro leva”. Black resolve alterar totalmente o clima emocional do ambiente, e coloca La Vie em Rose, magistralmente interpretada por Edith Piaf. Identificando imediatamente essa proposta de mudança, os participantes dirigem-se às araras para trocar de figurino e experimentar outros adereços. Ficam nessa atividade praticamente por todo o tempo da música, dando a impressão de que estão tentando ganhar tempo para reorganizarse mentalmente. Quando a canção francesa termina, Black surpreende a todos com Acender as Velas, de Zé Keti, um samba carregado de dramaticidade pela letra trágica que fala da miséria na favela, por meio da morte de uma criança11. O grupo improvisa, maravilhosamente, uma cena de violência rápida em que um dos atores é baleado e cai, “morto”. Então o ritmo da improvisação se lentifica, ajustando-se ao da música. Estão todos à sua volta, velando o

11. Acender as velas já é profissão: quando não tem samba, tem desilusão. Foi mais um coração que deixa de bater; um anjo vai pro céu. Deus me perdoe, mas vou

corpo. Apesar do número razoável de atores – alunos e monitores - na cena, cada um se posiciona de modo a não impedir a visibilidade para nós, os “espectadores”, demonstrando um notável domínio da espacialidade em arena. As mulheres usam “lenços” (pedaços de

dizer: o doutor chegou tarde demais, porque no morro não tem automóvel pra subir, não tem telefone pra chamar, e não tem beleza pra se ver. E a gente morre

tecidos) sobre a cabeça, os homens abaixam os olhos. Alguns consolam a própria “esposa” ou “namorada”, com afagos delicados. Outros estão em pé, outros ajoelhados. Uma mulher, provavelmente a “mãe”, chora ajoelhada ao lado do corpo, para depois ir consolar-se nos braços do “marido”, que estava em pé, a seu lado. Dois monitores, depois de circular lentamente em torno do grupo (como que numa ginga de capoeira à distância, em “câmera lenta”), pousam suavemente um grande tecido preto sobre o “cadáver” e retiram-se vagarosamente do centro da cena, misturando-se novamente na “multidão”.

sem querer morrer (Acender as Velas, de Zé Kéti).


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} Sobre o Tá Na Rua

No final da música, a imagem ali produzida é de uma clareza total: a mensagem transmitida ao “público” é simples, inteligível; cada um encontrou o seu espaço de atuação, contribuiu com algum elemento original para a formação dessa imagem coletiva. Não há mais o que acrescentar a esta seqüência: como a própria narrativa da cena, a improvisação teve nascimento, desenvolvimento e chegou ao final, fechando o seu ciclo. O grupo alcançou a imagem-síntese, 12. Com a explosão tecnológica na música, principalmente nos anos 70, foi colocada no mercado uma grande quantidade de

ápice desse grande exercício teatral. Black coloca uma versão “hooked”12 do Messias, de Häendel, e todos saem da cena como que renascidos, saltando e correndo pelo espaço em grande júbilo – principalmente o “morto”, é claro! No acorde final da Aleluia, este ator – que é

versões estilizadas dos “clássicos” mais conhecidos, remixados com ritmos contemporâneos produzidos por sintetizadores eletrônicos que,

um dos alunos – é erguido por dois monitores e, elevado acima do grupo, transforma-se na própria imagem viva do Cristo ressuscitado, pairando sobre a multidão em festa. O pequeno “público”, formado apenas pelos coordenadores, pesquisadora e alguns alunos

na época, foram popularizados como hookeds. O acervo musical do grupo Tá Na Rua tem, ainda, muitos destes discos em vinil, cujas músicas, já em suporte digital (CDs), são freqüentemente utilizadas em suas oficinas.

retardatários, aplaude calorosamente. A improvisação coletiva, gerada apenas pela seqüência de músicas, teve o impacto de uma cena teatral “pronta”, embora criada naquele mesmo momento. Com base nas considerações acima, observa-se a importância atribuída à música nas práticas teatrais realizadas nas oficinas de preparação de atores do grupo Tá Na Rua. Mais do que uma ferramenta metodológica ou simples apoio a procedimentos e técnicas teatrais, a música pode ser considerada um elemento condutor do jogo de improvisação que se dá no interior da proposta. Buscando facilitar o acesso irrestrito à arte do teatro, esse coletivo propõe uma forma peculiar de ensiná-lo, mergulhando os seus alunos-atores, desde o início, em um ambiente de teatralidade, rico em estímulos visuais e sonoros, no qual a aprendizagem se dá sobre o visto e o ouvido, de forma intuitiva, numa verdadeira pedagogia da escuta cênica. É

uma proposta que, no entanto, ainda não foi totalmente conscientizada por seus próprios integrantes, e nem sistematizada por pesquisadores. Não me é possível concluir ou afirmar que estou diante de um novo método de formação de ator, mas, esta experiência coloca-nos algumas questões, tais como: a) poderia a cena ser


A utilização da música nas oficinas do grupo Tá Na Rua {

compreendida como um evento regido e estruturado sobre bases musicais?; b) seria possível formular uma educação do ator para a musicalidade da cena, baseada na similaridade entre os modos de percepção do tempo e do espaço na música e no teatro?; e c) poderia o ator tornar-se o agente ordenador dessa espaço-temporalidade cênico-musical? Estas são indagações cujas respostas pretendo buscar, na continuidade e aprofundamento de minhas pesquisas no campo da pedagogia teatral.

Referências BARCELLOS, Lia Rejane Mendes. A movimentação musical em musicoterapia: interações e intervenções. VI Congresso Mundial de Musicoterapia, Rio de Janeiro, julho de 1990. BENNETT, Roy. Uma breve história da música. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1986. ______. Elementos básicos da música. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. DURAND, Gilbert. O imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Rio de Janeiro: DIFEL, 1998. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1978. KOUDELA, Ingrid Dormien. Jogos teatrais. São Paulo: Editora Perspectiva, 2006. RYNGAERT, Jean-Pierre. O jogo dramático no meio escolar. Coimbra: Centelha, 1981. SANTAELLA, Lúcia. O que é semiótica. São Paulo: Ed. Brasiliense , 1990. SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. São Paulo: Ed. Cultrix, 1960. SCHAFER, Murray. O ouvido pensante. São Paulo: Ed. Universidade Estadual Paulista (UNESP), 1991. SCHECHNER, Richard. El teatro ambientalista. Colección Santa Cruz Atoyac. México: Árbol Editorial, 1988. WISNIK, José Miguel. O som e o sentido: uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das Letras/Círculo do Livro, 1989.

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A FORMAÇÃO DO ATOR NUM TEATRO EM CRISE


Nosso teatro vai mal. No texto e no espetáculo. Tirando as exceções (cada vez mais raras) que confirmam a regra, o teatro brasileiro vê-se, dia a dia, assolado por uma onda irresistível de mediocridade que se torna a cada ano mais poderosa, numa progressão assustadora. Vivemos numa sociedade cada vez mais condicionada a aferir a realidade pelas falsas aparências e a ignorar suas necessidades cotidianas mais primárias; uma sociedade onde valores determinados são disfarçados atrás de rótulos coloridos e excitantes. Dentro deste quadro e neste clima, o nosso teatro é tomado por uma série interminável de comédias inconseqüentes, por pseudo-contestações, por modismos nacionais e estrangeiros, pela exploração gratuita do sexo e da pornografia, pela importação de sucessos insignificantes até mesmo em seu país de origem, etc, etc, etc. Desinteresse e tédio, silêncio e castração é o que se ouve e se vê no teatro brasileiro. A pouca inquietação restante tende a desaparecer. Nosso teatro regride. E nós apenas constatamos esta regressão e nos conformamos com ela, justificando-a e nos justificando. Constatamos e não agimos. Nos acomodamos no fato como se o mesmo fosse inevitável. As pessoas que fazem teatro agem com a convicção de que nada pode ser feito e esperam que as dificuldades se resolvam magicamente, por si mesmas. Deixam-se envolver numa nuvem morna de indiferença e na esperança de um milagre que as desperte. Mas milagre não existe, é bom lembrar... Tudo depende de nós: o diagnóstico e a cura. E, mesmo se existisse, ao chegar o “doutor” Milagre encontraria todos mortos, na sala de espera. Pois a doença é progressiva e se não for tratada desde o início, é mortal. Não nos podemos omitir. No caso do ator, que é a nossa preocupação no momento, vivemos dizendo que a falta de bons atores ou de, pelo menos, atores bem-treinados, dificulta a melhoria do nível do espetáculo e do repertório brasileiro. Dizemos sempre que nossos atores estão aquém das possibilidades de um bom texto e que as peças ficam ruins porque não sabemos representálas. E isto na maior parte das vezes é verdade. É um problema do teatro brasileiro, assim como a falta de público, a censura, etc, etc, etc. Mas, o que tem sido feito para resolver este velho problema do nosso ainda jovem e já cansado teatro?

Nada.


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} Escritos sobre a mesa de Amir Haddad

Mas nada, mesmo! Constatamos a dificuldade e nada fazemos para eliminá-la. Omitimo-nos sempre. É claro que hoje, no Brasil, o problema do ator é apenas um dos muitos. Porém, nem ele, nem nenhum outro talvez mais importante (repertório medíocre, espetáculo conformista, censura, entre outros) irá se resolver, se não sairmos do nosso comodismo e indiferença. Não basta dizer que o nosso ator é mal treinado. Isto, todos nós sabemos. Precisamos é compreender o problema e agir em função desta compreensão. Este ensaio é uma tímida tentativa neste sentido. A primeira, e esperamos que não a última. Apesar de sua importância para o teatro (tanto o espetáculo, quanto a dramaturgia, precisam dele para crescer), o ator brasileiro, dentro do abandono geral em que é colocado o teatro no país, é o seu elemento mais desprotegido. Desde a proteção legal pura e simples (só agora se cogita seriamente a regulamentação da profissão), até a indiferença com que é feito seu treinamento, o ator está sempre só e abandonado. Freqüentemente acusado - mais do que culpado - ele é vítima de uma atividade teatral desestruturada e marginalizada. Que atividade é esta e como se condiciona a formação e o comportamento do ator, é o que precisamos investigar (e rapidamente) para sabermos como é preciso agir, para podermos tentar resolver o problema de seu treinamento. Em outras palavras: primeiro, conhecer quais são as condições atuais da formação profissional do ator brasileiro; depois, analisar as condições que determinam o seu comportamento; observar as conseqüências desta formação para o nível qualitativo do teatro brasileiro. Para somente depois, tentar mudar.

O treinamento do ator Para o jovem que se atreve a escolher o teatro no Brasil, há dois caminhos a seguir: a escola e o autodidatismo. As escolas podem ser oficiais (poucas) e particulares (cursos esporádicos, sem currículo e sem qualquer garantia de qualidade). As escolas particulares possuem uma única filosofia de ensino: ganhar dinheiro de qualquer jeito, usando as palavras da moda referentes à profissão, tais como: liberação, expressão corporal, treino de sensibilidade, treino sensorial, etc. Geralmente são cursos ministrados por pessoas marginalizadas do teatro e que encontram nestes cursos seus meios de sobrevivência. Justo. Muito justo. Afinal, o regime é o da livre empresa. Mas e o ator? Onde fica? Quanto à qualidade do ator, não tem importância, desde que pague pontualmente. Porque, na realidade, a maioria destes cursos não nasce da necessidade de se melhorar o treinamento do ator. Nasce isto sim, do oportunismo. Há mercado (atores querendo aprender), há mercadoria (o ensino) posta igualmente à venda, sem nenhum cuidado na sua produção. O resultado é um só: ao estado já precário do teatro brasileiro, vêm juntar-se novos atores, despreparados e principalmente prejudicados por uma orientação deficiente. E depois a culpa é do ator que, dizem, não tem talento ou vocação.


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As escolas oficiais são raras e entravadas por mil dificuldades burocráticas, sem falar naquelas propriamente ditas artísticas e didáticas. Da falta de verbas, até professores matusalêmicos, tudo as prejudica. Currículos deficientes, professores incapazes, visão ultrapassada do teatro e do ator, falta de bons professores disponíveis, tudo faz com que a escola seja encarada pelo aluno apenas como um meio cômodo, uma porta larga, para entrar na profissão, embora ele nem sempre consiga ultrapassá-la. Ou quase nunca, porque nelas quase sempre o aluno/ator se perde, ou quando muito, se mantém no mesmo nível da sua chegada. A escola não se interessa por ele. E é claro que, com o tempo, ele também deixa de se interessar por ela, saindo de lá da mesma maneira que entrou, isto é, ignorando praticamente tudo sobre o ofício. Tais instituições funcionam mais como um bom meio de contato inicial com a atividade teatral, uma maneira de convívio com pessoas que tenham

a mesma ambição, falem o mesmo assunto, usem as mesmas roupas ou cabelos. Nestas escolas, oficiais ou particulares, os atores são treinados (quando o são!) para “realisticamente” atender às exigências (e não às necessidades) do

mercado consumidor. Ora, se o nível destas exigências for medíocre e superficial (como é o caso do teatro brasileiro, hoje) é evidente que se a escola preparar, “realisticamente”, atores para este nível, estará na verdade, formando atores medíocres e superficiais, sem nenhuma visão crítica do mercado. Em outras palavras, profissionais preocupados apenas com os aspectos mais epidérmicos de seu trabalho (imagem, aparência, modismos, etc) já que, por formação, desconhecem seus aspectos mais profundos. São estes os atores que escolhem entrar para o teatro pelas portas pseudo-abertas da escola. E A alternativa que se oferece para ele é entrar direto na profissão, pelos caminhos alegres e despreocupados do autodidatismo. Ao jovem ator, que escolhe não perder alguns anos de sua vida em escolas deficientes (velhos atores sempre aconselham jovens a não procurar escolas...), resta o caminho do autodidatismo, isto é, aprender sozinho. Jamais, porém, isto acontecerá, porque na verdade sempre haverá alguém ensinando: os atores mais experientes, os diretores de espetáculos e, principalmente, os três “professores” mais influentes: o gosto do público, o nível médio do

é esta a escola.


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espetáculo e dramaturgia do país, e a filosofia empresarial. Isto, sem falar dos críticos e dos assim chamados intelectuais. E da censura, que não é exatamente um professor, mas um inspetor de ensino, que quando chega imobiliza os alunos e os professores. Os atores mais experientes só podem ensinar ao jovem ator os truques que aprenderam na própria carreira. Pois também eles são autodidatas, e não têm dentro de si a consciência pedagógica do que sabem fazer, embora às vezes saibam muito. Não têm como transmitir sua experiência em profundidade. E por isso, não transmitem. Se o diretor de espetáculo for ruim, deixará o ator entregue à própria sorte e aos seus vícios de representação, cristalizando-os. Isto, quando não o destrói. Se for bom - avis rara - não pode, no prazo de dois meses (tempo médio de ensaio para uma produção), ensiná-lo a representar. Vê-se sempre perdido, o diretor: entre ensinar o ator e fazer o espetáculo. De qualquer maneira, não se faz um ator em dois meses, e a atividade profissional não proporciona a ele a possibilidade de um trabalho de longo prazo, livre de interferências e pressões econômicas. Mas ele não tem escolha. Se este aprendizado autodidata aconteceu na televisão, a situação atinge níveis catastróficos, dada a natureza do meio e principalmente devido às condições em que é feito o trabalho do ator na televisão. O ator de teatro se sujeita à TV porque seu mercado de trabalho é pequeno e instável, e ele precisa viver. Até aqui, com exceção de contatos esporádicos com bons diretores, nosso ator autodidata aprendeu lições de sobrevivência, e teve pouco contato com o significado mais profundo de sua profissão. Mas falta-nos, ainda, ver como é o seu contato com os “professores” mais influentes. Num mundo onde o valor das coisas é determinado pela aceitação que elas têm no mercado, o gosto do público – o único comprador de teatro no país - torna-se um “professor” implacável e intolerante. Embora não necessariamente mau, é profundamente variável, e está sujeito às violentas pressões dos meios de informação do mundo moderno. A televisão, os jornais, as fotonovelas, as divulgações pseudo-científicas, as enciclopédias de banalidades, o cinema vagabundo e alienante, etc, etc, são a mercadoria que, oferecida ao público, vai formar (ou deformar) esse “gosto” e determinar o seu nível cultural. Acrescente-se a isso a precariedade escolar e a censura, e o quadro está feito. Ora, parte deste é o público de teatro, que naturalmente quer o mesmo que as outras modalidades de diversão lhe oferecem. E é ele quem paga, não se pode esquecer. Fica claro, portanto, que do ator não será exigido mais do que a qualidade da novela, fotonovela ou de um cinema puramente digestivo e inconseqüente: basta ver a quantidade de filmes estrangeiros de má qualidade que inunda o mercado, satisfazendo e ao mesmo tempo deformando o gosto do público. Para sobreviver, o ator terá de satisfazer ao gosto deformado deste público e, neste atendimento diário, se despreparado ou indefeso, atrofia sua criatividade e perde toda a capacidade de aprofundamento, transformando-se num


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instrumento de trabalho medíocre, com suas inquietações e suas possibilidades reduzidas a zero. Num processo destes, um bom ator pode transformar-se num campo estéril e definitivamente prejudicado.

É bom lembrar, porém, que no país há uma parcela de público ávida de bons espetáculos que, no entanto, perece à míngua. Para satisfazê-la, seriam necessários esforços e riscos maiores. E quem, no Brasil, está disposto a corrê-los? Se o ator, isoladamente, é vitimado por estas pressões, é claro que o espetáculo também se ressente em todos os seus aspectos. Não só porque o ator se mediocriza, mas porque a idéia mesma do significado do teatro se perde. O teatro deixa de ter importância para quem o vê e faz, e com isso a dramaturgia nacional desaparece, o repertório se empobrece e os espetáculos se tornam ruins e inconseqüentes, como são ruins e inconseqüentes os filmes e os programas de televisão. E, pior ainda, a própria inquietação desaparece, ausentando-se da formulação dos espetáculos sérios, que se transformam assim em espetáculos frios e conformistas. O ator fica, assim, privado do verdadeiro teatro, que poderia ser para ele um refúgio e um meio de resistência contra os ataques da mediocridade dominante. Desprotegido e a ela sujeito, o ator só tem a perder, pois é claro que não são necessários grandes atores para tal nível. Pelo contrário. E assim, inexoravelmente, o nível médio do teatro vai se revelando um “professor” intolerante e impositivo, só aceitando o ator que se submete aos seus ensinamentos, que não se rebela contra eles. Assim, em pouco tempo o talento desaparece e em seu lugar se instala a atrofia, a

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incapacidade, a esterilidade, a não criação, a inconseqüência. Em resumo, a própria atividade aliena e mal-treina, transformando o ator num instrumento dócil e humilde, a serviço da 1. Esta descrição certamente levou em conta o clima da época, a repressão e a mediocridade intelectual a que fomos

mediocridade1. A filosofia empresarial sujeita o empresário às mesmas pressões que esmagam o ator e condicionam o gosto do público. O que precisamos saber é como ele resolve o problema de

submetidos após o golpe militar. Nem o teatro escapou desta provação. Não havia refúgio possível onde se pudesse esconder e não ser contaminado. Televisão dominante, territorial e freqüente, currículos escolares e universidades atomizados e censura arbitrária e ignorante, foi o projeto cultural elaborado pela ditadura. Parece-me que a situação, hoje, não mudou muito. A universidade e o ensino público

viver num mundo hostil e ameaçador, onde o dinheiro é a última proteção possível. Isto, para podermos compreender a sua influência na formação do ator brasileiro. Parece-nos que no Brasil há dois tipos de empresários: o consciente e o inconsciente. O empresário consciente reconhece, pelo menos em hipótese, a importância que o teatro pode ter no panorama das atividades criativas do país. Mas se sente culpado porque, uma vez dividido entre a própria consciência e o medo dos riscos de seguí-la, prefere sacrificar a primeira. Para ele, um bom espetáculo implica em riscos muito grandes, acima de sua capacidade de resistência. Não porque são caros, mas porque ele considera não ter

não se refizeram totalmente. A televisão se ampliou, colorindo com tecnologias variadas o alcance dos seus tentáculos no tempo e no espaço, e a censura

condições de recuperar o capital empregado. Não se importaria de gastar muito dinheiro, desde que tivesse certeza de seu retorno. Acha que aquilo que sua consciência exige não tem mercado ou só raramente o terá. Assim, os riscos se tornam

deixou de ser política e passou a ser ideológica, econômica e financeira, premiando o conformismo e desestimulando a inquietação. O teatro luta para sobreviver e redescobrir seu papel na construção de uma identidade para a nação brasileira. São poucos os resistentes, justamente os que não passaram por nenhuma lavagem cerebral, imunizados pelas conquistas da década de

muito grandes; o medo cresce, transformando a produção de um bom espetáculo numa fonte ininterrupta de preocupações e angústias que abalam a sua capacidade psíquica de resistência, afetam a sua capacidade de achar soluções para suas dificuldades econômicas, aumentam o seu medo, num movimento interminável. Sentindo-se, portanto, sem condições emocionais, e sem o dinheiro que lhe permitiria suportar os riscos de uma produção

60, no Brasil e no mundo.

não comercial que lhe possibilitaria atender aos apelos da consciência que ele afirma ter, o empresário brasileiro prefere se entregar à produção de espetáculos vazios, superficiais e de baixo custo, que não exigem nenhuma atenção especial do público. Ou realizam produções de alto custo, desde que já tenham sido testadas com sucesso no exterior.


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Sendo a sua única preocupação e critério diminuir os riscos, coloca seus esforços na produção de espetáculos inconseqüentes, o que aparentemente lhe garante, pelo menos, a sobrevivência econômica. Assim, diminuindo a intensidade de seu medo, sente-se em melhores condições emocionais para exercer a sua atividade empresarial, embora se confesse culpado e afirme só agir assim por absoluta necessidade de sobrevivência. Amparado e justificado por este esquema de pensamento, nosso empresário se coloca em ação e passa a produzir espetáculos de pouco risco econômico e baixo nível qualitativo. Em outras palavras, se arma de um esquema realista para enfrentar a realidade. Em pouco tempo, porém, ele descobre que a má qualidade de seu espetáculo não lhe garante público certo, e que um pequeno risco econômico não lhe permite a tão desejada estabilidade financeira, visto que o teatro brasileiro continua em estado de insolvência permanente. Aí, então, a coisa se complica, pois ao descobrir que satisfazer as necessidades de sua sobrevivência é tão arriscado quanto atender aos apelos de sua consciência, entra em pânico, percebendo que em todas as partes há perigo; que é impossível ficar livre dos riscos que o apavoram e tiram seu sossego. Encalacrado e sem saída, o que é que o empresariado faz? Procura estudar a realidade mais profundamente? Não. Tenta mudar as próprias opiniões e rever alguns conceitos seus?

Também não. Procura descobrir se há (e qual é, caso haja) a relação entre os seus espetáculos e o pouco público?

Também não. Assume que o risco é inevitável e resolve enfrentá-lo?

Não. Enfim, faz alguma coisa para resolver o problema, procura mudar alguma coisa?

Não. Infelizmente, a resposta é sempre

não .

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Achando que o teatro torna-o vulnerável e compreendendo que o teatro “comercial” não atende às suas necessidades de proteção, em vez de enfrentar os fatos e tentar compreendêlos, o empresário brasileiro vai tentar resolver o problema da única maneira que ele conhece, ou melhor, buscando a única maneira que ele é capaz de achar boa e plausível: a subvenção. A subvenção milagrosa e salvadora de todas as angústias e tensões que a detestável 2. A lei Sarney e seu desdobramento, a Lei Rouanet, foram sancionadas, em tese, para cobrir o vácuo aberto pela

realidade provoca2. Prejudicado pela superproteção das estruturas político-econômicas paternalizantes, o empresário brasileiro tem diante dos fatos a mesma reação que o brasileiro médio.

ausência de políticas públicas para a Cultura durante a ditadura militar. Entretanto, acabaram por cumprir função semelhante, ao afastar o Estado de sua função -

Apavorado pela necessidade de se resolver sozinho num mundo hostil e difícil que o impede de criar defesas e, principalmente, formas de ataque próprias, nosso empresário prefere se colocar sob a proteção e na dependência de subvenções oficiais (não há mecenato sem um

estabelecer políticas públicas para o setor – e transferindo esta tarefa para a iniciativa privada (embora realizada com dinheiro público). Com isto, passou a existir um controle ideológico da produção cultural brasileira, pelo pensamento privatizado das empresas particulares. Ou, do pensamento neoliberal vigente na época. Só agora, com a retomada do investimento público nas diversas áreas da

capitalismo desenvolvido!) e da previsão da bilheteria (de resto imprevisível, ele parece esquecer). Proteção geral: tanto para o espetáculo “comercial” quanto para o “não comercial”. Totalmente protegido e totalmente dependente. Em nome da proteção e por causa dela, chega mesmo a ansiar pela dupla “sucesso artístico” x “fracasso financeiro”, que lhe permite voltar com a consciência tranqüila para produção de textos comerciais. Sua estrutura psicológica paternalizada faz com que nele a proteção se torne mais importante que a própria atividade, e isto apesar de sua “consciência”. Já o empresário inconsciente está acima do bem e do mal, e por isso não se sente

Cultura, esta situação começa a ser modificada, de uma maneira mais democrática e semeadora. Embora as dificuldades ainda existam e sejam muitas, somente

responsável por nada. Produz como quem vende laranjas ou como quem tem certeza de que está tudo certo. Oferece o que o público quer em qualquer época, com qualquer qualidade, desde que atinja o maior número possível de pessoas. Não tem vergonha de usar o teatro

agora, trinta anos após a decretação do A I – 5, o projeto cultural da ditadura começa a ser transformado, com o pensamento de que na área cultural não pode haver “estado mínimo” e que alguns setores necessitam de investimentos a fundo perdido, a médio e longo prazo, livrando a produção cultural, a pesquisa e a investigação artística, das leis esterilizantes do mercado. E isto, para que o desenvolvimento

para ganhar dinheiro. E ganha. Mas de tal maneira tal que destrói o teatro e seus atores. Mas aí vai tentar outro ramo de negócios, porque o teatro - ele dirá - está em crise. Mas todos os empresários, com culpa ou sem culpa, conscientes ou inconscientes, têm um traço em comum: estão mais preocupados em recuperar rapidamente o capital empregado do que em ampliar seu mercado comprador. Assim, esperam diminuir o tempo em que se sentem ameaçados, estando para isso dispostos a fazer qualquer concessão, só vendendo o que acham que tem mercado certo. Não arriscando nada. Insistem em produzir um teatro inócuo para um público agonizante, ignorando a existência de outro, mais vivo e exigente.

cultural possa acompanhar e sustentar o desenvolvimento econômico e social do país.

Talvez menor, mas com mais possibilidades de crescer e sobreviver. Colocando-se passivamente nessa relação produtor/público, o nosso empresário transformase em mau professor, pois irá produzir espetáculos de baixo nível e exigir atores compatíveis com os mesmos. Estes não têm como resistir, pois o mercado de trabalho é pobre e a sobrevivência, uma dura realidade. E mesmo que queiram morrer de fome, não podem.


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Mesmo porque não têm opções. Um espetáculo ou outro é a mesma coisa. Medíocre. Pois falta, ao nosso empresário, lucidez e consciência. Uma mentalidade empresarial aberta, que o leve a criar o mercado para aquilo que sua lucidez e consciência produzirem. Os críticos poderiam, talvez, oferecer oxigênio dentro deste panorama sufocante, mas a crítica no país se coloca prudentemente na retaguarda, protegendo diligentemente os nossos flancos contra ataques imaginários e deixando, às vezes, de ver onde está o perigo real. Recomendam, pois, a prudência, a olhar para trás, a tomar cuidado, a zelar pelo terreno conquistado, quando deveriam estar organizando o combate no terreno estético, fornecendo dados para novas estratégias, liderando os avanços e, principalmente, orientando o público para o crescimento de sua capacidade de avaliação e não, de maneira oposta, reforçando a inconseqüência do público. A crítica no Brasil é má professora, pois não tem coragem de errar junto com o aluno. O ator sujeito a ela vai procurar apenas a estabilidade. O seu prestígio (e às vezes, salário...) depende da opinião dos críticos e esta, disfarçada de imparcialidade, muitas vezes leva a conformismos e comodismos. Outro possível mau professor é o intelectual espectador. Que se prefere definir como espectador intelectual. Mas, na verdade, é apenas espectador. Pois se coloca à margem do processo, e nenhuma de suas palavras ou idéias é transformada em ação - no que acaba confundindo sua função com a dos críticos. E, colocando-se à distância de qualquer ação, terá sempre a respeito das coisas uma opinião pré-concebida e abstrata. Tais abstrações e preconceitos são a matéria que estes professores ministram ao teatro e aos seus executantes, os atores.

Pobres atores.

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A quem interessa o ator (bem) treinado? 3. Talvez, a dramaturgia tenha sido o setor do teatro mais prejudicado pela ditadura, uma vez que até hoje sentimos

Quanto melhor for a qualidade do teatro, maior será sua capacidade de sobrevivência e resistência às pressões a que está sujeito. O bom espetáculo resiste mais que o mau. O bom texto dura mais que o texto medíocre, e o ator bem treinado está profundamente ligado ao

profundamente este prejuízo. Proibindo peças que pudessem ter qualquer relação com a realidade ou qualquer conotação político-social, e até reforçando

bom espetáculo e à boa dramaturgia. Sem bom ator, não há bom espetáculo. Sem bom espetáculo, não há desenvolvimento dramatúrgico. Fora da boa dramaturgia (dramaturgiaroteiro) e do bom espetáculo, o ator encontra profundas dificuldades de sobreviver. Há uma

preconceitos e hipocrisias em defesa de uma pseudo-moral, a situação vigente foi, pouco a pouco e durante anos, mudando o foco do olhar de muitos

vinculação dialética no trio espetáculo – ator – dramaturgia, e daí a importância do ator bem treinado3. Treinar o ator é lutar pela possibilidade de se fazer um teatro num nível decente. A melhoria

escritores brasileiros e obrigando os mais maduros e consagrados a buscarem uma linguagem “simbólica” no intuito de driblar os censores. A censura ao noticiário político e à imprensa em geral, aliadas à repressão, acabaram por fazer uma

do treinamento do ator interessa não só a ele pessoalmente, mas a todo o teatro brasileiro. Não pretendemos dizer que, resolvido o problema do ator, esteja resolvido o problema do teatro brasileiro. Longe disso. Achamos apenas que o ator está no centro da manifestação teatral e que dele depende uma parte importante do espetáculo. São estas, a nosso ver, as condições de formação do ator brasileiro que determinam o seu comportamento.

verdadeira lavagem cerebral na cabeça da “inteligência” brasileira. A derrocada do governo soviético e o crescimento do pensamento

Massacrado por uma atividade medíocre, na escola ou fora dela, nossos atores se alienam e parecem perder completamente a consciência de sua importância para o teatro. E da importância do próprio teatro, sua opção vocacional. Sem essa consciência, o ator brasileiro

neoliberal acabaram por completar o quadro. As grandes questões desapareceram e o teatro se voltou para o seu próprio umbigo. Até hoje, não

não tem condições de perceber a importância de seu treinamento e de sua participação na transformação de uma realidade teatral insatisfatória e castradora. Parece esquecer que, sem ele, o teatro não existe. E que se ele for medíocre, o teatro também será. E vice-versa.

sabemos ao certo quais são os novos temas e qual é a nova dramaturgia. Em alguns momentos, o “besteirol” foi a única forma de pensamento e reflexão critica sobre a vida brasileira. Hoje já percebemos alguma luz no fim do túnel.

Um treinamento que dê, ou que devolva esta consciência ao ator, o desenvolvimento de uma técnica a serviço dela, é o nosso objetivo. Achamos que o ator está no centro da manifestação teatral e que dele depende parte importante do espetáculo. Qualquer país só terá seu espetáculo e sua dramaturgia no dia em que tiver o ator para representá-lo. E viceversa. Portanto, a melhoria de treinamento do ator brasileiro interessa não só a ele

Antes, não.

pessoalmente, mas a todo o teatro brasileiro. Daí, a absoluta urgência de melhorar a 4. As condições de formação dos atores brasileiros no período de repressão não foram diferentes daquelas que formaram a

qualidade deste treinamento4. O teatro nasce da necessidade que o homem tem de especular sobre sua própria condição; seu alimento, suas religiões, sua maneira de se agrupar, sua sexualidade, seu amor, seu

cidadania brasileira. Os militares ficaram no poder por cerca de trinta anos, tempo suficiente para formar o perfil de uma geração inteira, nascida depois de 64. O modelo de ator e de cidadania responsável foi sendo diluído e substituído pelo conceito de ator neoliberal, com olhos apenas para sua trajetória pessoal e politicamente despreocupado. Mas a historia não acabou...

ódio, suas guerras, sua paz, sua magia e sua natureza política; sobre o mundo conhecido e o desconhecido, ainda por conhecer.


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E é através do homem vivo que o teatro indaga sobre o homem vivo. O pintor, nas telas e nas tintas. O escultor, no espaço e na forma. O ator, em si mesmo. Não há teatro sem a carne e o sangue, sem as vísceras ou a alma do ator (diz-se de um bom ator que ele “tem vísceras”). Para que o teatro aconteça, é essencial a presença do HOMEM VIVO, O ATOR, agindo. E outro homem vivo, O PÚBLICO, envolvido nessa ação. E esta é a característica essencial do teatro (essencial porque só se encontra nele, em mais nenhuma das chamadas artes ou atividades criativas). No centro do teatro está o ser humano, não a sua projeção. Não os seus símbolos, mas ele mesmo. O homem vivo, gerando seus sinais. Criador e criado, o homem no teatro é o deus, o sacerdote e a vítima do sacrifício. É ele, em busca de si mesmo, descobrindo e integrando em si a sua própria natureza. Sendo o homem a própria razão de ser do teatro, e o ator o seu executante, fica claro que o ator, ser humano, tem que se preparar para a tarefa de representar a si mesmo. Para isso, é preciso que todas as suas potencialidades de ser humano sejam desenvolvidas. O homem é a própria razão do teatro, e o ator é o laboratório onde ele se auto-indaga para determinar sua química e sua alquimia. Para se conhecer em cada tempo. Em cada espaço. No teatro, o ator é o cientista e a cobaia. Ele é, ao mesmo tempo, o instrumento e o executor do teatro. E é este o instrumento básico que precisa estar afinado, lubrificado, recondicionado. O ator, ser humano, tem que se preparar para a tarefa de representar a si mesmo. Ele

não representa o que sente, mas sente o que representa. Para isso, é preciso que todas as suas potencialidades de ser humano sejam desenvolvidas. Não podemos afinar o instrumento ator só em suas cordas vocais, porque ele vibra inteiro.

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Não podemos desenvolver só o seu físico, porque suas emoções não se separam de seu corpo, seu instrumento de expressão. Suas sensações, emoções, percepções, serão mais profundas, quanto mais ele for visto como pessoa inteira e viva, cujo crescimento como ator está definitivamente ligado ao seu crescimento pessoal. É preciso treinar o ator em todos os seus aspectos, compreendê-lo como sujeito do mundo em que vive, saber qual é a sua realidade social, conhecer as pressões a que está submetido, entender o teatro que ele vem recebendo como herança, para ensiná-lo a questionar esta herança e ter uma visão mais abrangente de si mesmo e do mundo à sua volta. Enfim, aumentar as suas capacidades perceptivas, ampliando assim as suas possibilidades emissoras e receptoras. Do exposto acima, fica clara a necessidade da reformulação - ou formulação - de uma filosofia de ensino de teatro no país. Nosso trabalho é uma tentativa neste sentido. Destas reflexões, ainda incipientes, poderá nascer, futuramente, um primeiro esboço de currículo para as escolas de teatro do Brasil.


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Comentário [atual] de Amir Haddad

É interessante notar que,

o momento em que escrevi este texto, e no qual me mostro tão inquieto e preocupado com o ator e sua prática, foi justamente aquele em que estive mais ausente de minha militância nesta área. O período era 68 / 69. Era professor da Escola de Teatro da UNIRIO, o antigo Conservatório de Teatro, e minhas idéias provocavam reações antagônicas e extremadas de meus colegas professores desta época. Vivíamos em plena ditadura, o que era o suficiente para justificar qualquer atitude repressora do corpo docente da escola. O corpo discente adorava minhas aulas e faltava às aulas dos outros professores para assistir às minhas, pois as achava mais interessantes, o que aumentava ainda mais a animosidade contra a minha presença nesta escola. No momento em que produzi estes textos abordando minhas idéias sobre o ator, seu treinamento e formação, eu já estava praticamente impedido de dar aulas. Uma “comissão” de professores, muito conhecidos até hoje, se encarregara de fazer este boicote. Acobertados e irmanados pela obscuridade da ditadura. Isolado e sem condições de trabalho, dispus-me a escrever estas reflexões, com a intenção de, quem sabe, estabelecer princípios para a elaboração de um currículo de teatro para a UNIRIO, já que continuava contratado, mas não podia trabalhar. Sem poder dar aula, o professor e diretor da instituição, B. de Paiva, sugeriu que eu ficasse fazendo trabalhos fora de sala para matar o tempo (?). Comecei então a produzir este texto, como introdução a um esboço de currículo para a Escola de Teatro, mais condizente com a realidade e com as tendências do teatro contemporâneo. Antes que eu entregasse a ele, no reinício do período letivo do ano seguinte, a Profª Maria da Glória Beuttenmüller preveniu-me para não voltar à escola (localizada então na antiga UNE, na Praia do Flamengo), pois estava demitido e minha entrada na escola seria vetada. Avisou-me para impedir o vexame. Ela era uma das poucas amigas que eu tinha lá dentro. Até hoje, não recebi nem um aviso de que meu contrato não seria renovado. A ditadura serviu para justificar e revelar comportamentos contraditórios e preconceituosos de pessoas que até então mantinham pose de democratas, socialistas, libertários. E que hoje, depois do fim da ditadura, continuam com esta máscara, como se nada tivesse acontecido. A história destas adesões não declaradas à ditadura, para resolver questões e interesses particulares de pessoas que ainda hoje estão vivas, está aí para ser contada...

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Texto de 20/08/96

UTOPIA E DISTOPIA na for mação formação

dos atores O Grupo Tá Na Rua, ao longo dos seus dezesseis anos de vida, vem desenvolvendo trabalho em todos os sentidos; de preservação cultural, imobiliária, e de desenvolvimento de práticas e idéias novas, como contribuição às novas maneiras de educação na sociedade brasileira, levando em conta as características e identidade desta sociedade. De que maneira funciona o Tá Na Rua, para que isto se dê?


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1º MOBILIZAÇÃO A mobilização dos interessados em nossos trabalhos é feita da maneira mais aberta possível. Nenhum procedimento que possa nos identificar ideologicamente com instituições tradicionais de ensino ou voltadas para a formação de mão-de-obra especializada. Assim, nenhum pré-requisito é exigido. Nem lenço, nem documento. A identidade do aprendiz se faz e se configura ao longo do processo de aprendizado. Aos poucos, quem chega vai adquirindo presença e figura, enquanto se destaca dentro do grupo. Portanto, começamos por propor, aos que chegam, que se integrem em um coletivo, em um coro, e que a partir da dinâmica das relações coletivas, desenvolvam suas potencialidades e a própria individuação. Queremos, com isso, evitar que o indivíduo se sobreponha ao coletivo, mas principalmente que o coletivo não seja formado pela massificação dos indivíduos que o compõem. O aprendiz chega sem nome nem endereço. E, ao longo do processo, conhecemos suas capacidades e características, e suas possibilidades de conviver com responsabilidade dentro de uma coletividade produtiva.

2º DESENVOLVIMENTO Enquanto se integra, o candidato irá executando diversas tarefas e exercícios, determinados mais pelo seu desejo do que por qualquer outro critério. Assim, há os que se interessam pelos problemas de luz, ou de som, ou de carpintaria teatral. Naturalmente, dirigem-se para os setores que seu desejo determina. Assim, nas atividades chamadas artísticas e criativas, aquele que prefere a música aí avança, ou em direção à dança, ou à cenografia; mas, todos envoltos na mesma idéia: a idéia do teatro e de sua construção, com os melhores pedaços de suas almas. Assim como nada lhe é pedido quando chega - a não ser uma participação estimulante também nada lhe é perguntado ao sair. A partida se faz sem traumas e sem explicações. Apenas nós, da equipe central, nos questionamos quando a evasão é muito grande e nos regozijamos quando funcionamos longos meses em plena capacidade de lotação (o que acontece a maior parte das vezes). É evidente que, ao ser recebido deste modo, quem chega poderá ser assoberbado por algum tipo de angústia, já que a maneira com que é recebido é totalmente contrária a qualquer tipo de expectativa que possa ter um jovem brasileiro, embora muitas vezes isto corresponda a seus anseios mais profundos e até mesmo desconhecidos. Os que suportam esta angústia sobrevivem e continuam, iniciando seu processo de crescimento e identificação.


Utopia e distopia na formação dos atores {

3º ADESTRAMENTO X DESENVOLVIMENTO Outros obstáculos irão se colocar diante do aprendiz, e um deles - o principal, depois da identificação - é o tipo de treinamento que lhe é oferecido. Por aí há centenas de procedimentos técnicos que têm por objetivo promover o adestramento de um ator. E, certamente, este chega esperando encontrar alguns. Muitas vezes, tivemos que abandonar dolorosamente seqüências de aulas e exercícios que deixavam a todos satisfeitos, mas que nos faziam, porém, pensar que talvez fossem bons no sentido de adestrar o ator, mas que talvez não lhe proporcionassem, necessariamente, o desenvolvimento mental, físico, intelectual e emocional que buscávamos. Por isso, entre o adestramento, que forma atores com recursos técnicos eficientes, e o desenvolvimento, que forma atores bem constituídos integralmente, preferimos sempre trabalhar na busca de atividades teatrais que procuram o segundo. Preferimos isso ao simples adestramento, que muitas vezes não leva em consideração características pessoais importantes de cada indivíduo; que massifica, coloniza e até o declara incompetente para algumas coisas, sem revelar suas possibilidades para outras. Simplesmente, porque temos dificuldade em adestrá-los. Abandonamos isso, e criamos no jovem cidadão que trabalha conosco uma reversão de expectativa que, paradoxalmente, muitas vezes o leva a desistir de nossas propostas. Os que entenderam tudo são os que ficam, e crescem intensamente desse momento em diante. Assim, é o próprio candidato que faz a sua escolha e seleção, e sua decisão certamente passa por uma intensa reflexão interior. Dos que ficaram, dos que ficam, e dos que ficarão saberemos sempre e cada vez mais: seus nomes e características.

4º AVALIAÇÃO Por ser este um processo novo, as nossas atividades têm de passar por um constante processo de reflexão e avaliação, para que os passos seguintes possam ser determinados. Portanto, nós também vivemos a angústia de não sabermos tudo a respeito do que queremos ensinar - o que, de uma certa maneira, nos coloca em igualdade de condições com nossos companheiros, evitando assim que se estabeleça a idéia tradicional de que as “autoridades” são possuidoras de todos os saberes e que o resto... bem, que “o resto é o resto!” Com isso, queremos valorizar o poder do saber, em oposição a uma idéia de poder e dominação pelo saber. É com estas idéias e práticas aparentemente simples que o nosso trabalho de educação e reeducação não-formal se desenvolve, no sentido de buscarmos um ator e um cidadão que tenha muito mais a ver com suas inclinações, do que com qualquer procedimento ideológico que se lhes queira impor.

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E aí chegamos ao principal, que é a questão da ideologia no treinamento, formação e educação do ser humano!

5º EDUCAR OU CONFORMAR Em sua maior parte, os procedimentos educacionais e de formação de mão-de-obra especializada estão impregnados de conteúdos ideológicos. Procuram, muito mais, formar cidadãos e/ou profissionais ideologicamente conformados (metidos numa forma) do que instrumentalizá-los para atuar socialmente de maneira rica e transformadora. Ao tocarmos na questão da ideologia, um mundo novo se abriu para nós. Isto, porque ao começarmos a derrubar os padrões e comportamentos consagrados pela ideologia na formação dos atores/cidadãos, um novo modelo começou a surgir em nossa prática e a se confirmar em nossas cabeças. Embora já tivéssemos, dentro de nós, algumas idéias a respeito deste ator, acabamos sendo surpreendidos pela quantidade infinita de questões e respostas que nossas buscas nos proporcionavam.

6º UM NOVO ATOR A primeira, e mais importante constatação, talvez tenha sido a respeito da conceituação do que seja um ator popular, e de como se chega até ele. Ao desmontarmos as estruturas ideológicas que eram utilizadas na formação dos atores, e que os conformavam, começamos a perceber o aparecimento de uma nova forma e de uma nova maneira de representar que, por coincidência, se aproximava do que tínhamos em mente. Era, ao mesmo tempo, muito mais do que tínhamos pensado ou imaginado. Assim, do desmonte dessas estruturas e das cinzas, ou ruínas de sua desconstrução, uma nova construção começou a se insinuar em nossa prática e a fazer com que nós passássemos a perseguir, em nossas buscas, um novo modelo de ator popular, que tem a ver com todos os modelos dos grandes atores populares do Brasil, mas com a novidade de podermos conceituá-lo política e ideologicamente face à estrutura da sociedade de classes em que vivemos. E, depois de conceituá-lo, partir para a elaboração de métodos e maneiras, firmando a possibilidade de criação de uma escola não tradicional (que nega o próprio conceito da escola tradicional) para uma formação de atores com a força e a capacidade de nossos atores populares mais fortes e representativos, como por exemplo: Oscarito, Grande Otelo, Dercy Gonçalves, etc. E poder dar a eles a capacidade histriônica destes grandes modelos brasileiros, além de uma capacidade de reflexão que os habilite a


Utopia e distopia na formação dos atores {

representar bem; tanto uma comédia, nos moldes de uma chanchada de Atlântica, quanto um texto de Shakespeare, ou qualquer representação dramatúrgica do moderno e/ou antigo teatro brasileiro. Um ator sem medo e sem sentimento de inferioridade diante da pretensa e sempre afirmada superioridade dos outros atores, que atingem camadas superiores do firmamento onde brilham os “astros” da arte criativa brasileira. E sem inveja!

7º O CIDADÃO Para isso, tivemos que dar ao jovem iniciante a liberdade de atuação e participação que lhe permitissem entrar em contato com si mesmo, depois de recebê-los em nosso convívio, sem nenhum pré-conceito ou pré-requisito, fazendo com que nossos contingentes de trabalho sejam realmente representativos da variada formação étnica e intelectual de que se compõe a sociedade brasileira. Como um todo, sem distinção de classes! O que só foi possível, dada a nossa recusa em aplicarmos técnicas de “adestramento” sobre este universo tão rico, variado e surpreendente. Mas, insistindo no desenvolvimento de sua expressão mais livre e profunda – e na nossa procura de buscar novas maneiras, no sentido de provocar estas manifestações e incorporá-las, ao nível de consciência, em nossos corpos e nossas almas – melhorando assim o conhecimento de nós mesmos, de nossas verdadeiras possibilidades e tendências, e nos permitindo um profundo trabalho de identificação e reconhecimento de nós mesmos, do que somos e do que gostaríamos de ser e/ou de fazer. Um ator libertado dos procedimentos ideológicos dominantes, capaz de buscar caminhos próprios a respeito de sua prática e desenvolvendo sua opinião a respeito de si mesmo e do mundo que o cerca e envolve. Portanto, um ator des-envolvido. Capaz de separar o joio do trigo, consciente do seu valor e necessidades, de suas possibilidades, direitos, obrigações e funções sociais – um cidadão de primeira classe, portanto – sem, no entanto, pertencer a nenhuma classe, mantendo-se livre da prisão que significa a estratificação social. Um des-classificado e des-envolvido cidadão/ator de primeira classe! Enfim, negar os conceitos e os conteúdos ideológicos da educação recebida, negar os procedimentos que conduzem a este tipo de educação – detectar e localizar o que se manifesta através desta construção, entender, elaborar e, com isto, trabalhar na informação e formação de um ator/ cidadão – e, por conseqüência, encontrar um novo espetáculo, que se quer também des-ideologizado e popular, isto é, que atinja a todos os seres humanos sem distinção de classes ou grupos sociais, raciais e/ou étnicos.

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8º UTOPIA E DISTOPIA Com isso, queremos crer que estamos trabalhando através de uma mobilização realmente democrática, com todos os contingentes sociais, sem exclusão, tanto no campo do ator e do espetáculo quanto no campo da formação de platéia para o espetáculo, dando ao brasileiro médio a possibilidade de se conhecer e se expressar, reconhecendo-se em atividades expressivas, sem ser manipulado pelos meios de comunicação de massa, nem ter que agir segundo padrões e procedimentos ideológicos do consumo e da produção cultural vigente no país. Buscamos uma política - educacional, artística e cultural - que resgate para o convívio social este enorme contingente de excluídos que forma a grande maioria da sociedade brasileira. Desenvolver formas de educação e formação para este contingente, que o libere, em vez de colocá-lo a serviço de idéias e procedimentos que o excluem e aprisionam ainda mais, mantendo o povo brasileiro afastado de sua possibilidade concreta de redenção. Os militares traçam e defendem fronteiras – são os feitores da Pátria! Os políticos estabelecem as formas de governo e de representação, legislam e governam são os feitores do País! Os artistas livres permitem o livre fluxo de seus afetos e reflexões, e através disso se expressam, dando ao país suas verdadeiras dimensões e características, alargando nossas fronteiras e definindo os sinais capazes de nos identificarem. Eles são os feitores e construtores da Nação. Na verdade, ainda estamos no início da verdadeira formação da nação brasileira, pois só agora começamos a pensar e a encarar sem medo a questão cultural e educacional. Há muito a fazer, pois as conquistas são ainda relativamente pequenas, as resistências ideológicas/conservadoras são muito grandes - assim como a arrogância e ignorância de certos setores da “inteligência” e do pensamento acadêmico brasileiro - mas estamos dispostos a continuar insistindo nesses caminhos de transformação política, social e cultural. Num tempo de desespero “distópico”, nós continuamos, dia a dia, a construir nossa Utopia. Ainda é muito pouco, diante do tamanho de nossas possibilidades e necessidades, mas continuamos a trabalhar. Esta é a nossa contribuição.


Comentário [atual] de Amir Haddad

Utopia e distopia na formação dos atores {

Este texto fala do grupo TÁ NA RUA, mas foi escrito para o projeto desenvolvido por Antonio Pedro Borges no TUERJ (Teatro da Universidade Estadual do Rio de Janeiro), então sediado no Teatro Odylo Costa Filho, no campus da UERJ. Embora toda a prática descrita no texto já existisse, a elaboração teórica dela advinda ainda não existia. Ao fazê-lo, tive de retomar alguns caminhos teóricos já anunciados pelo Tá Na Rua depois de anos de trabalho, e que se encaixavam perfeitamente bem e com grande facilidade no processo em andamento no TUERJ. Foi uma tentativa de canalizar e orientar esta prática no rumo de uma possível institucionalização do teatro no corpo da Universidade. Fomos rechaçados e depois despejados. O TUERJ permanece submerso, não sei se ainda sobrevive. Mas o Tá Na Rua continua vivo e colocando em prática as idéias aqui apresentadas, cada vez com maior entendimento de seus significados. Poder-se-ia ler igualmente TUERJ ou TÁ NA RUA, mas foi, o segundo, a origem e a continuidade das idéias contidas neste texto.

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(São Paulo, outubro/2000)

do espetáculo Os Lusíadas.

Oficinas preparatórias


Hoje foi um dia muito interessante e cheio de acontecimentos. Então, há muito para conversarmos: o que estamos buscando; qual o caminho; com que linguagem vamos trabalhar; com que corpo; que tipo de disponibilidade física e afetiva nós precisamos, para construir o que chamamos de circo etéreo; como é que a gente deve trabalhar para obter essa luminosidade. Não estamos trabalhando forma; estamos trabalhando conteúdos. Com isso, a gente vai, talvez, entrar num universo de formas vivas, que tem mais a ver com esses conteúdos. Então, não há nada a fixar. Os conteúdos são aquilo que vai ganhando expressão e se modificando. Você vai ficando cada vez melhor, porque seus conteúdos estão sendo vividos. Então, jamais é um trabalho de forma, de fora para dentro1. A gente está em processo. Daqui a pouco, você vai ver que conquistou coisas que nem imaginava conquistar. Daqui a pouco, vai estar senhor(a) de outras possibilidades, sem

1. Hoje chamamos esta maneira de trabalhar de “manifestação”, ao contrário da incorporação que aprisiona o ator e ‘ilude’ o espectador.

precisar congelar coisa alguma. Cada dia é um dia. É o mesmo dia, só que é diferente; é outro dia. Eu nunca trabalho com requentado. Nunca. Nunca fixo nada. Sempre é a possibilidade daquele dia. Sempre em avanço. Não estamos aqui buscando fórmulas para fazer um espetáculo. Nós estamos nos desenvolvendo. Depois, nós até poderemos construir algo mais permanente, mas nunca trabalhar em função da memória. Às vezes, a memória é um inimigo do ator, porque o impede de viver a luminosidade do minuto presente. Ele está em cena vivendo o ensaio, como se sua mente dissesse: “eu estou aqui; depois, eu vou pra ali; depois eu vou pra lá...” e nunca está em jogo. Então, o trabalho convencional de ator dá sempre a sensação de requentado. É ao vivo, mas dá a impressão de vídeo-tape. E isso é uma questão séria, no teatro. A minha maneira de tentar resolver esse problema é colocar as coisas em fluxo, sempre em movimento. Amanhã, você vai fazer outras coisas.


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} Escritos sobre a mesa de Amir Haddad

É assim: embora pareça a mesma coisa, nunca é igual. O dia de hoje foi um dia completamente diferente daquele que será amanhã. Isso é muito agradável, muito prazeroso, mas também não será vivido sem angústia. Vai chegar um momento em que vocês vão se sentir absolutamente v a z i o s . Vão dizer: “Meu Deus, eu não tenho mais nada para dar!” Mas não saiam. É nessa hora que a gente começa a dar. É a hora em que esvaziamos todos os estereótipos, e aí gente começa a chegar mais fundo na expressão. Então, vamos buscando, e assim conseguiremos estabelecer um contato mais profundo com o nosso mundo interior, com essa possibilidade de ser eternamente fértil que o ser humano tem. É a questão do mito da cornucópia. A cornucópia é o chifre da cabra de Zeus. O deus dos deuses tem, no Olimpo, uma cabra que dá leite pra ele. Em épocas de escassez de comida, os gregos cortavam o chifre da cabra de Zeus. Dele saíam frutos e tudo o mais que precisavam. Esse chifre acabou sendo um símbolo da humanidade, um símbolo de fartura; e eu sempre o vejo também como uma metáfora das possibilidades criativas de cada um de nós, seres humanos.

Somos cornucópias.

A cornucópia é infindável. Quanto mais você tira, mais ela dá. É um sonho da humanidade. Uma fartura que dê a ela alimentos eternos, para todo mundo; é um objeto desejado. Mas na verdade, nós somos essas cornucópias. Nós podemos jorrar infinitamente. Jorrando, nunca se fica vazio. Porque no momento em que se começa a dar, também se começa a ganhar. O 2. A ‘decantação’ dos afetos.

que você dá é o que fica. É o fenômeno da decantação2. A questão da nossa liberdade, de quebrar os estereótipos, de buscar mais profundamente nossa expressão mais verdadeira, é uma questão a ser trabalhada. Na verdade, é um desmonte ideológico o que vamos fazendo com o nosso corpo, com o nosso afeto, para podermos estar em contato permanente com as nossas melhores coisas. Para cada um de nós buscar a sua luz. Porque todos a têm. Todos nós temos luz; não vi ninguém aqui de lamparina. Podemos ter um cômodo fechado, estar com o outro apagado. Mas a luz é um dom de todos nós, da natureza humana. É o nosso lado divino, a coisa que mais importa. E a luz vem com o conhecimento; e este, através do exercício da sensibilidade. Então, na verdade, estamos é atrás dessa luz. Quebrando nossas barreiras, “tirando o gesso”, trabalhando. No encontro com o outro, na confiança, na generosidade, na horizontalidade das relações, na liberdade, na possibilidade de errar exaustivamente. Essa coisa


Reflexões sobre o trabalho do ator {

chamada “erro” não existe – o que existe é correção de órbita – existe o movimento de investir, de conhecer, de botar pra fora. Porque dentro é uma coisa, fora é outra. Como está na Bíblia: “O que dentro de ti te mata, fora de ti te salva”. Não procuramos nenhuma perfeição, ou coisas “bem feitas”. A gente busca o melhor possível, mas não a perfeição. Então, a nossa postura é sempre dionisíaca; mas o pensar sobre tudo isso vem de Apolo, que nos ajuda a refletir. Se os gregos tinham os dois deuses, é porque eles precisavam dos dois deuses. Se nós temos influência grega, também precisamos dos dois deuses. Nós precisamos de Apolo, que passa no céu e ilumina, esclarece, tem uma trajetória. E de Dionísio, um deus “de baixo”. Dionísio nunca subiu ao Olimpo. Ele é um bastardo. E é o nosso patrono! É o deus do mistério, daquilo que você não sabe explicar, mas que se manifesta o tempo todo. É a vida, a semente que fica enterrada por cinco mil anos, mas que se você a puser na terra, ela faz trouff! Somos nós a cornucópia, a fartura, a transformação, a fertilidade. Então, nós trabalhamos com Dionísio e nos regulamos com Apolo.

Em chinês, o ideograma usado para se falar de teatro, para descrever teatro, é o que significa possibilidade. Então, quando o chinês fala em teatro, ele se refere a possibilidade. Quando a gente fala em teatro, pensa em prédio. Para

os gregos, theatron

era o “lugar de onde se vê”; tinham uma imagem: ver. A gente, hoje, diz teatro e não vai nem ver; a primeira coisa que vem à cabeça é o prédio. Porque não temos uma definição, nem clareza, a respeito da linguagem. Como os chineses, eu também acho que possibilidade é uma boa palavra para se entender o teatro porque, afinal, por meio dele nós vamos ao encontro de nossas possibilidades - as que conhecemos e as que não conhecemos ainda. O teatro é um universo que abre possibilidades infinitas. É um caminho para o ser humano; enorme, gigantesco, sem fim. O espetáculo é uma elaboração da realidade, a mais sofisticada que o ser humano poderia fazer. Porque, na verdade o espetáculo é a possibilidade do equilíbrio, da harmonia definitiva, de um entendimento desse universo complexo que é a manifestação dos nossos afetos, puramente dionisíacos, trabalhados com doses de Apolo. Porque o semi-deus Dionísio não gosta que se exagere na adoração dele. Por isso, o espetáculo é a harmonia dessas coisas todas.

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Artaud dizia que o teatro é a mesma busca dos alquimistas. Ou seja,

o espetáculo é ouro.

É o ouro que você não encontra na natureza, é o ouro produzido pelo ser humano. A harmonia, o equilíbrio de muitas forças, tudo isso bem trabalhado é, enfim, um mundo que se reorganiza.

O espetáculo é a possibilidade da felicidade. É a possibilidade da organização do mundo. O espetáculo é utopia realizada; é o encontro das coisas diferentes que se harmonizam e se transformam em ouro, em linguagem, para se chegar ao outro. É o paraíso perdido que a gente, desde que perdeu, tenta recuperar. É o paraíso recuperado através do conhecimento.

No teatro, o afeto coletivo é a rede na qual os atores se jogam. É o que dá segurança para os atores jogarem. Então, se você está desligado dessa teia afetiva, fica difícil também a sua manifestação. Esta exige confiança, solidariedade, apoio, generosidade coletiva. À medida que isto for conquistado, teremos “santos” mais ativos, se manifestando aqui com a gente. Vocês viram como é importante ter estímulos, aqui. As roupas, os objetos, ajudam o “santo” a se manifestar. Às vezes você “está com o santo”, mas não sabe o que fazer. De repente você põe a roupa, e a entidade inteira se manifesta. Então, ajuda muito o pano cair em cima de você, no momento certo.


Reflexões sobre o trabalho do ator {

Eugênio Barba diz que o ator não representa, manifesta o personagem. Na manifestação você está presente, não perde a consciência. O personagem está “vindo” e você está sabendo. Você está vendo, está lendo, essa coisa toda. Existe um tipo relação do ator com o personagem em que se trabalha com uma idéia de incorporação, em que se perde contato com tudo. O ator fica cego, surdo, mudo; não vê mais nada, tão incorporado ele está naquela “tarefazinha” que está fazendo ali! Não sobra espaço para ver, para ouvir, para participar. Por isso, eu falo para os atores: -

“Pensem em dança!” - porque quando a gente

pensa em teatro, pensa num certo cacoete que já se tem. E quando se quer modificar esse vício, tirar esse “calo” (há um para cada ofício), eu digo aos atores: - “Olha, é melhor pensar em dança, espaço, movimento, equilíbrio, volume, horizontalidade, afeto, do que pensar em teatro”. Porque quando pensa em teatro, o ator já tem um modelo em mente. Mas nós trabalhamos com uma linguagem de movimento, que é como uma dança dentro da qual se pode fazer o que quiser: o ator sobe, desce, sobe em cima de um, sobe em cima de outro, vira circo, vira dança.

O que a gente faz, o tempo todo, é tentar unir três linguagens: circo, teatro e dança. Nessa liberdade, você cria uma linguagem corporal; depois, pode ir para o circo, depois, para o teatro, ou para a dança. Procuramos a unidade dessas expressões todas porque, na verdade, elas estão vivas dentro de nós como possibilidade. Desenvolvem-se, cada uma no seu próprio caminho. Buscamos uma possível integração entre elas, tentamos descobrir o que é comum a todas. O circo tem um corpo, o teatro tem outro corpo, a dança tem outro corpo. Mas será que não existe um corpo igual pra todo mundo? Será que não existe um corpo que é nosso, do ser humano, por baixo de cada corpo que a gente constrói? Além da construção do corpo pelos ofícios, existe também um corpo que a ideologia fabrica. E, muitas vezes, construímos uma linguagem sobre esse corpo ideológico, em cima do nosso corpo verdadeiro. Para mim, há um corpo que a ideologia, a educação, a cultura, enfim, o mundo, criou na minha cabeça; mas há um outro, que é o meu corpo mesmo, que eu nem sei mais como é, de tão deformado ideologicamente. Então, de certa maneira nós estamos trabalhando a desconstrução desses corpos ideológicos, para descobrir qual é o corpo com o nível possível de liberdade, sem a perda das nossas habilidades - teatrais, circenses ou de dança. Estamos trabalhando na busca de um corpo com menos couraças, com o “gesso” quebrado, para conseguirmos uma expressão livre, uma possibilidade expansiva, o avanço no sentido de uma anti-angústia. Vamos quebrando tudo isso, para descobrir a nossa verdadeira e possível expressão. Para depois fazermos o que quisermos: dançar, fazer teatro, fazer circo, cantar. Aos poucos, nós iremos “limpando” o nosso discurso e o nosso diálogo; vamos entendendo as coisas, e a própria prática vai se encarregar de ilustrá-las. O que é isso que acontece aqui dentro? Que tipo de inteligência nós temos que desenvolver para ter a percepção do espaço

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} Escritos sobre a mesa de Amir Haddad

inteiro, para compreender o que está acontecendo aqui, fazer uma leitura de tudo e, em conjunto, levar adiante os acontecimentos? Que coletividade é essa? Qual a percepção possível e necessária para desenvolver esse trabalho? E o que é que nos permite estar lúcido, durante a manifestação de um personagem? Existe um teatro que propõe ao ator “concentrar-se” para entrar em cena, de modo a negar tudo à sua volta. Faz dez minutos de yoga e entra em cena. Fica tudo dentro dele.

A gente gosta é de cair dentro,

olhar o jogo e dizer: - “Eu vou lá, tá chegando a minha vez!” – e não ficar fechado em si mesmo! Brecht dizia que os maquinistas do teatro achavam muito engraçado o ator que entra ator no camarim e “sai rei” de lá. Nunca sai um cidadão dali, dizendo “ Opa, agora é a minha vez”. Ele precisa estar olhando a sua cena, sentindo o jogo. Igual a um jogador de futebol, que fica na reserva vendo o jogo; ele vai jogar numa determinada posição, mas fica olhando tudo. Imagina, se o jogador deita ali e faz um relax! Não dá pra ele entrar! Ele entra numa realidade! O futebol também é um espetáculo, que eu gosto muito de usar como analogia para os atores, para apagar as referências tradicionais. Eu gosto do espetáculo do futebol; é mais interessante como modelo e como entendimento da possibilidade de um jogo aberto, franco, livre, inteligente e com participação do ator, do que o modelo de teatro que mantém o ator prisioneiro de si mesmo, do discurso articulado do diretor, do personagem. O personagem é a Liberdade! Então, o futebol dá uma imagem boa. “Pensa em futebol! Pensa em dança!” Você tem que estar conectado ao jogo, para poder entrar. É um tipo de concentração absoluta, estar em contato com o mundo. Mas isso não o deixa tenso. Você vai se entregar, mas isso não o arrasa. Você não tem medo de ser rejeitado, não tem medo de ser abandonado. Diz: “Esse é meu ofício; essa entrega absoluta faz parte dele. Não há limite para o que eu vou entregar ou naquilo que eu posso fazer”. É uma entrega total. No 3. O ator é zen. Peter Brook diz que o difícil para o ator é se colocar diante do vazio. Nós dizemos: o ator acompanha os acontecimentos, não os determina.

vou lá para ser consumido3.

teatro eu me exponho;


Reflexões sobre o trabalho do ator {

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Artaud dizia também que o trabalho do ator é igual a um ato de fé. O sacrifício público que o ator faz. Igual ao daqueles monges que tocavam fogo na roupa. A nossa entrega é dessa natureza. Então, você vai, em sua totalidade. Você trabalha, conquista isso. É um ato de entrega total, sem limite, sem defesa. É uma entrega generosa. E é essencial haver generosidade; é essencial que as pessoas que vivem no mundo do espetáculo tenham a generosidade de uma entrega sem limites. Porque você está sendo generoso não só com o outro, mas principalmente consigo mesmo. Não é possível ser generoso com o outro, se não for generoso consigo mesmo. A total ausência de reserva de domínio é sempre uma entrega muito grande. Isso é generosidade! E a gente, ainda, vai falar muito sobre isso; vai ter que aprender muito mais, ainda, sobre a generosidade do ator4.

4. Teatro se faz com nossos melhores sentimentos. Mesmo quando os personagens são “maléficos”.

Comentário [atual] de Amir Haddad O espetáculo não se consumou. A grande experiência humana e artística que estava sendo preparada através deste projeto teve que ser interrompida. Os produtores do evento / espetáculo não conseguiam ver onde este processo poderia levar. Chegamos muito perto de realizá-lo. Já estávamos fazendo nossas primeiras experiências narrativas, que seriam a forma de desenvolver nossa dramaturgia, a partir do poema épico do poeta português. Bosco Brasil era nosso escritor, quando paramos. Ainda não apareceu um produtor qualificado para este tipo de trabalho que eu proponho. Serão necessários outros meios de produção desenvolvidos especialmente para este processo. O modo de produção de afetos não pode ser determinado pela esteira de produção da empresa. Mas é!


Rio de Janeiro, 2008

De todos os procedimentos usados em nossas oficinas de formação de atores para os espaços abertos, o momento da “elaboração” é, talvez, o mais importante. Por isso, é crucial que esta avaliação não seja coordenada por qualquer pessoa, no sentido de reduzi-la a uma aplicação mecânica de procedimentos.

O Tá Na Rua nunca pretendeu, nem quer, desenvolver um “método” de trabalho. Não temos um “sistema didático”. Temos, entretanto, muitas reflexões genéricas sobre essa arte, sua prática, sua função, e também sobre o ator, ou o conceito de ator que queremos buscar para o teatro como desejamos e idealizamos. Nem Brecht, nem Peter Brook, nem mesmo Stanislavsky escreveram métodos ou regras para “treinar” os atores. Mas pensaram o teatro profundamente e modificaram a sua prática ao longo deste século que acabou.


Portanto, sem regras rígidas a seguir, a leitura dos acontecimentos livres das salas de aula (oficinas) vai depender sempre da maior e melhor sensibilidade dos atores e daquele que estiver, no momento, conduzindo os trabalhos. Uma

elaboração, bem feita, inteligente, sensível e visionária pode levar os atores à total modificação de seus modos de atuar, de um dia para o outro. A natureza dá saltos. Saltos de qualidade. Da mesma maneira que uma elaboração mal feita, superficial e insensível, que analisa resultados e não esclarece procedimentos, pode levar à repetição de “truques” e efeitos, fazendo com que o ator se preocupe mais com a forma e menos com a manifestação dos conteúdos. Assim, não é irrelevante o papel do coordenador dos trabalhos. Um orientador medíocre não vai saber conduzir o grupo a nenhum lugar. Pior, ainda, seria a ausência de uma coordenação, dado o extremo grau de liberdade com que trabalhamos.


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} Escritos sobre a mesa de Amir Haddad

A hora da avaliação é essencial para que as horas de prática e de livre exercício durante a aula não se percam completamente.

A vivência só se transforma em experiência se for bem apreendida e avaliada. Um médium, em trabalho de formação no Candomblé, passa três meses internado, desenvolvendo a sua mediunidade e o santo que irá “reger a sua cabeça”. Neste período, o contato com o Pai-de-Santo é intenso. É ele quem faz a construção do “Orixá”, mas a manifestação de seus conteúdos é tarefa exclusiva do aprendiz. Quando, finalmente, o “Santo” fica pronto, se diz que está “formoso”, e é apresentado à comunidade. A festa da “saída de santo” é dos momentos mais emocionantes desse ritual afro-brasileiro. É como uma estréia teatral, depois de muitos meses de ensaio. Conduzindo a sua obra, o Pai-deSanto segue à frente do cortejo, justificadamente orgulhoso. Quanto mais competente for o “Pai-de-Santo”, melhor será a elaboração mediúnica.


A Pedagogia da Manifestação {

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De modo semelhante, os atores do Tá Na Rua desenvolvem a sensibilidade e a capacidade de “manifestação”. Mas não o fazem sozinhos. O que foi praticado e vivido é esclarecido, na medida do possível, e transformado numa elaboração teórica que poderá orientar as práticas subseqüentes. No Tá Na Rua,

a prática sempre antecedeu a teoria, e por isso o grupo

desenvolveu excelente capacidade de reflexão. Se for bom, este exercício de raciocínio poderá provocar avanços muito rápidos, ao passo que um trabalho mal feito pode atravancar o processo. As nossas aulas são acontecimentos vivos, não uma aplicação de técnicas de adestramento.

Nós não ensinamos. Aprendemos. Pois quem não aprende, não ensina. O grupo Tá Na Rua investe no teatro

como pedagogia, mas sonhando com uma

pedagogia para o seu desenvolvimento e crescimento.

Uma “Pedagogia da Manifestação”.


POR UMA ESTÉTICA E POR UMA ÉTICA LIBERTÁRIA:


OS FIGURINOS Os atores do Tá Na Rua trocam de roupa toda hora e por qualquer motivo. A nossa idéia é estimular a subjetividade do ator, sempre massacrada pelas outras subjetividades do espetáculo (direção, adereços, figurinos, músicas, etc.) e raramente ouvida por elas.

Nossos atores são os seus próprios figurinistas.

Eles se aperfeiçoam ao longo do processo, mas podem mudar a qualquer momento em que sentirem a morte se aproximando, com a roupa se transformando em uma armadilha, uma couraça da qual não se pode escapar. Já tentamos trabalhar com figurinistas profissionais, mas não deu certo! A idéia de autoria, assinatura, etc, transforma o ator em um manequim, o que não combina com o nosso conceito de ator/cidadão, com um discurso e opinião próprios. Os nossos atores escolhem, de um universo variado e inacabado, o que lhes é proposto: as cores, formas e texturas que mais apelam aos sentidos, de acordo com o tema que estamos desenvolvendo. A liberdade é total, e quando a escolha destoa, não há quem não perceba. Ficamos, todos, mais inteligentes. Devo dizer, ainda, que o Tá Na Rua improvisa muito também: no texto, na música e no movimento. Nosso teatro é feito ao vivo, para uma platéia viva estimulada pelo jogo livre de atores que rejeitam o “mistério”.

A cidade é o nosso cenário.

Mas sentimos que há espaço para uma reflexão sobre a utilização do espaço público. Não se encontra, com facilidade, quem se disponha a pensar sobre estas questões conosco. A questão da definição e da ocupação do espaço de representação é essencial para um trabalho livre, aberto e libertário como o nosso. Procuramos despertar nos atores uma profunda consciência a respeito da sua tridimensionalidade e colocação no espaço. O ator convencional só explora duas dimensões e não conhece sua posição espacial total. O que é diferente, por exemplo, do jogador de futebol, que se movimenta em três dimensões e se desloca no espaço de acordo com o decorrer do espetáculo. Espaço, figurino, criação cênica, movimento, dramaturgia, são conceitos ao mesmo tempo absolutamente livres, independentes, e ao mesmo tempo inseparáveis. Assim como o espetáculo é a construção



QUÂNTICO - Jornal da Cia. Quântica de Encenação. Número 1, set/out de 2000.

Quando Galileu, de Brecht, pede aos sábios da corte dos Médici que olhem pelo seu telescópio, para verem as até então desconhecidas luas de Júpiter, estes se recusam a fazê-lo sem antes discutirem filosoficamente a questão: estas estrelas são possíveis? E, sendo possíveis, são necessárias? Esta era a maneira que os antigos tinham para provar que uma hipótese merecia ser vista, estudada, considerada e eventualmente provada, mas acontece que o cientista estava de posse de um instrumento que tornava imediatamente obsoleto qualquer raciocínio sobre hipóteses, já que permitia ao observador ter uma visão clara, direta e iniludível do fato. Mas os sábios da época se recusaram a olhar por um telescópio, instrumento através do qual se pode ver coisas que “não existem, pois não são possíveis” (não há como “pendurar” as luas de Júpiter no Céu – diz o matemático – seguro dos seus conhecimentos) e nem necessárias – diz o filósofo – já que o mundo não precisou delas para existir até então (segundo a visão que tinha Aristóteles sobre este mundo). Portanto, não existiriam luas em Júpiter. Porque não são possíveis nem necessárias, e um instrumento que mostrasse o contrário certamente seria um instrumento falso, ou mentiroso, ou até mesmo ignorante, por não respeitar a autoridade de Aristóteles. Por desrespeitar uma autoridade respeitada por todos os sábios da época, Galileu é levado ao Tribunal da Inquisição. O resto é história.


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} Escritos sobre a mesa de Amir Haddad

Estas considerações me vêm à cabeça, quando tento lembrar os acontecimentos ocorridos no encontro realizado no teatro Carlos Gomes, organizado pelo diretor de teatro Aderbal Freire Jr. com participação de diretores e escritores de teatro, que estavam participando do Festival Internacional de Teatro. O grupo reunia personalidades importantes do teatro da Europa, América Latina e evidentemente do Brasil. Oportunidade rara de encontro e reflexão. Eu já havia participado anos antes, no Festival Internacional de Teatro de Londrina- PR, de um debate - “O teatro necessário neste final de século” – o que levava a entender que há um teatro necessário e outro, desnecessário. “Necessário” seria o teatro político de Bertholt Brecht? O teatro engajado? Os procedimentos didático-pedagógicos que o teatro pode desenvolver? O teatro nas escolas? A educação artística? E “desnecessário”? Seria o quê? As produções comerciais? As experiências vanguardistas? O teatro escorado na popularidade suspeita da televisão? Mas, ao mesmo tempo, o que se via e o que se vê ainda hoje, é que o público parece gostar mais do “teatro desnecessário” do que do outro! Qual seria, portanto, a necessidade verdadeira que o teatro estaria satisfazendo no teatro “desnecessário”? Por outro lado, anos de “teatro de rua” ou, como prefiro, “teatro em espaços abertos”, em contato direto com a população, nas ruas e praças da cidade e seus bairros, favelas ou não,

o teatro é uma arte extremamente viva, viável, importante e necessária, e tão essencial para o ser humano quanto respirar ou alimentar-se – e que a possibilidade eu havia compreendido e aprendido que

de saúde da organização social em que estamos inseridos depende muito desta possibilidade expressiva do ser humano. E que isso faz parte da nossa natureza; não foi inventado por nenhum intelectual esclarecido e genial.

A capacidade expressiva, lúdica e inteligente manifesta-se naturalmente em todos nós


O Teatro Necessário {

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e também nos animais, dependendo de nós desenvolvê-la ou não. Essa recuperação de um sentido e uma função social para o teatro só foi possível, para mim, no momento em que saí para as ruas e diversifiquei, de maneira absoluta e radical, a noção de espaço e a composição da platéia que assistia aos meus espetáculos. Esta possibilidade de vida eu já não conseguia perceber, nos espetáculos que eu fazia para a platéia anterior das salas fechadas, homogênea e manipulada pelos meios de comunicação de massa. E com a linguagem teatral a que ela estava acostumada. Na rua e nos espaços abertos, eu aprendia uma nova linguagem, e também a diferença entre a vida e a morte. O que provavelmente me livrou de hemorróidas, hipertensão ou ataques cardíacos, na faixa dos quarenta para os cinqüenta. E restaurou meu amor e minha paixão pelo teatro e suas infinitas possibilidades, no sentido da promoção de um encontro ritual e litúrgico, sociológico e antropológico, político e filosófico. Enfim, a possibilidade da utopia para os seres humanos livres. Em tempos de “distopia” absoluta, estimulada pelos massmedia (para não faltar palavras estrangeiras...) o teatro é o sonho da “utopia”, do encontro entre os seres humanos, sem diferença de classes e em igualdade de condições, realizado. O que não é pouco, neste mundo de meu Deus. Com estas idéias e reflexões na cabeça, dirigi-me àquele encontro, no Teatro Carlos Gomes. Ao chegar, encontrei um grupo de homens e mulheres, de várias partes do mundo, cujas vidas tinham sido e continuavam sendo totalmente dedicadas ao teatro; a um teatro que se quer transformador e alimentador de nossos melhores sonhos. Lá estava uma assembléia impressionante. Pensei, com os meus botões, que qualquer discussão seria quase impertinente diante da qualidade daquelas pessoas e de suas vidas dedicadas ao teatro. Elas eram para mim “as luas de Júpiter” que os sábios de Florença haviam se recusado a ver no telescópio de Galileu. Elas eram a prova de que o teatro está vivo e é necessário. As provocações de Aderbal Freire Jr. e sua política de ocupação dos espaços públicos são sempre úteis e reveladoras. Saí de lá, mais do que nunca, confiante na utilidade de meu ofício e, mais ainda, acreditando que quando nada mais houver de humano nas comunicações e o apocalipse desmoronar sobre nossas cabeças, somente o teatro será capaz de nos fazer reencontrar a nossa essência divina e nos dará forças para, a partir destas ruínas, construir uma sociedade mais justa e harmoniosa do que esta, cujos estertores agônicos estamos assistindo, e principalmente sofrendo.

Uma arte possível e necessária. O teatro está morto!

Viva o Teatro!


O violento se combate com a violência. E a violência, se combate com quê? Polícia não é o melhor e nem o único meio de combater a violência. Dar combate à violência não pode ser, unicamente, combater os violentos. Saberia a polícia combater a violência sem confundi-la com os violentos? Quando não se distingue a violência daqueles que a praticam, será possível ver e perceber que a violência é uma forma de atuação do ser humano? E que é possível localizá-la em todos os segmentos da estratificação social? Quando combatemos apenas os violentos, sem nos preocuparmos com a violência em si, quais são os alvos a serem alcançados, atingidos, localizados? Os pobres? Os negros? Os marginais? Qual o perfil dos violentos e qual a característica de suas ações violentas? Há alguém que não tenha sofrido sinais de violência de outra origem, procedência e característica? Não

existem outras formas de violência?

Política, policial, econômica, financeira?


Podemos afirmar, com segurança, que vivemos num mundo tão bom que, ao serem eliminados aqueles que a nossa imaginação e fantasia classificam como violentos, tornarnos-emos imediata e instantaneamente livres da violência? E quando a violência vem de um nicho ou setor social que não se costuma associar a ela? Estes representantes também poderão ser punidos e eliminados com o mesmo delírio, prazer e convicção com que nós autorizamos nossos defensores legais a eliminar os outros, dos outros nichos sociais diferentes dos nossos? Somos capazes de perceber a violência em todos os seus aspectos? Ou só naqueles que dizem respeito ao nosso preconceito, ignorância e ideologia? E a violência em nós mesmos? Nós a vemos? E as “artes”? Adianta oferecer aulas para pessoas pobres, sem escola e ocupação, para que mais tarde não venham a se transformar em assaltantes, que mais cedo ou mais tarde irão se confrontar conosco em algum ponto da selva urbana? Qual a diferença entre formar um artista de circo ou um outro, de qualquer espécie, e um cidadão de primeira classe? Quais valores são embutidos na formação de um profissional das artes e quais deverão ser privilegiados para a formação de um bom cidadão? A cidadania “artística” no nosso mundo garante cidadania social e política ao cidadão? Uma coisa é a mesma que a outra, no mundo em que vivemos? Todo artista tem cidadania e responsabilidade social? Criar alguns seres humanos especiais para vencer na vida resolve a questão da violência contra aqueles que não conseguiram furar o bloqueio até o paraíso dos bem sucedidos? Isso não acaba resultando também em algum tipo de violência discriminatória? O que é pior: achar que é possível - e não conseguir - furar o bloqueio da imobilidade social, a não ser excepcionalmente, ou simplesmente achar que não? Que os “outros” são melhores? Formamos cidadãos para a construção de uma sociedade justa, para o mundo em que vivemos, ou os preparamos para uma luta de vida e morte em busca de uma vitória social que raramente se manifesta?


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} Escritos sobre a mesa de Amir Haddad

Quando governador do Estado, e antes, como Secretário da Justiça, Nilo Batista várias vezes manifestara sua opinião: que a violência não era apenas um caso de polícia. E que não se resolveria com ela. A Lapa era escura e aterradora. Os que, como eu, gostavam de sua atmosfera romântica e pesada, e do cheiro de história que escorria de suas paredes, a freqüentávamos bebendo o clima de suas sombras. Fora as memórias, só restavam à Lapa, (exceto alguns cabarés que hoje já fecharam), os dois restaurantes tradicionais do bairro, antigos como ele e testemunhas de seu apogeu: O Bar Brasil, e principalmente, o Restaurante Capela, cuja generosidade democrática abria espaço para todos os tipos de freqüentadores. O Largo da Lapa, várias vezes re-urbanizado, era então um buraco negro de cujos bueiros saíam os moradores que não entregavam seu rosto à luz. Apesar de todas as urbanizações, o Largo até hoje não está iluminado. Está apenas mal iluminado. Mas o resto da Lapa se abriu em luzes, afastando para mais longe ainda os que precisam da sombra para sobreviver. O bairro reviveu, e a cidade encontrou novamente uma alternativa de crescimento e desenvolvimento que a libertava das avenidas largas e urbanizadas, do concreto e do vidro fumé, que pareciam querer ser o único destino possível. A cidade encontrou o seu coração, que conseguiu oxigenar o norte e o sul, reintegrando e diminuindo o apartheid.


Sobre nilo Batista {

Quando o então governador Nilo Batista ofereceu a nós e a outros, ligados à área da cultura e com grande respeitabilidade (Centro de Teatro do Oprimido, Grupo Hombú, Federação dos Blocos e Afoxés do Rio de Janeiro, Casa Brasil-Nigéria), em contratos de comodato para a ocupação das casas de n° 31, 33, 35, 37, 39 e 41, era o ano de 1989 e a Lapa estava ainda imersa em plena escuridão. Os assaltos se sucediam no Largo deserto e abandonado. Nilo achava que a polícia não resolveria nunca a questão da violência contra os passantes temerários que por ali caminhavam. Por isso, fomos convocados a assumir um comodato, segundo projeto elaborado pelo professor Licko Turle, que trabalha hoje comigo e já trabalhara antes com Augusto Boal. Aquelas casas eram propriedades estaduais ocupadas por posseiros e/ou invasores que acabavam por constituir uma população marginal que alimentava ainda mais a má-fama do bairro - com exceção de algumas poucas famílias, é claro. O prof. Nilo Batista encampou totalmente o projeto. Viu nele a possibilidade que esperava para mudar o perfil e a fisionomia da região, além de restaurar seu antigo esplendor com as cores dos novos tempos. Recebemos as casas no estado em que estavam. Um dos posseiros, que alugava cubículos em uma delas (a de n° 41), em represália à atitude do governo tocou fogo em sua “posse”, que era um bem tombado.

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} Escritos sobre a mesa de Amir Haddad

Foi preso e pagou a pena conforme determina a legislação. Os outros todos, inquilinos de posseiros, foram respeitosamente encaminhados a novas moradias no próprio bairro, todas melhores do que aquelas até então habitadas.

O Tá Na Rua, meu grupo, foi o primeiro a se instalar ali. Durante anos ocupáramos um sobrado na Rua do Rezende, de onde só saímos por indisposição com o proprietário. Amávamos a Lapa, o Rio de Janeiro, seu centro, e de nenhuma maneira queríamos sair desta região. A Zona Sul nunca fora um endereço sonhado ou desejado por nenhum de nós.

Queríamos a Lapa, fosse como fosse.

A memória, o clima, a tradição e a traição, o romantismo desta cidade com tanta historia e sem memória era a inspiração para o nosso trabalho. Fomos os primeiros a ocupar o sobrado. Os outros beneficiários só vieram mais tarde. As casas nos foram entregues em ruínas. Mas, para o Tá Na Rua, estava bom, muito bom. Era tudo o que queríamos e precisávamos, um lugar no centro do Rio. Quanto às condições físicas do imóvel, tínhamos a promessa de Nilo Batista, então vice-governador, de que o Estado nos ajudaria nas obras de reforma e restauração dos prédios. O governador Leonel Brizola renunciaria ao cargo e seria candidato à presidência. Mas a promessa não pôde ser cumprida, tal foi o bombardeio de aleivosias, mentiras e calúnias lançadas sobre o então governador em exercício e cuja finalidade era, evidentemente, desestabilizar a campanha presidencial de


Sobre nilo Batista {

Brizola. Mas nós não desistimos. Assim como não desistimos, quando Wellington Moreira Franco derrotou Darcy Ribeiro no pleito do governo estadual, apoiado pela demagogia do Plano Cruzado de José Sarney. Uma vitória que o povo não comemorou. Parecia estar adivinhando! A primeira medida do novo governo foi acabar com os CIEPS – que, de todos os projetos sócio-educacionais de nossa história, era o mais bem sucedido. Se esse projeto tivesse continuidade, a violência que vivemos hoje seria a mesma? Terminar com os CIEPS foi, entre todas, uma das maiores violências que este país, este estado e esta cidade já sofreram. E por que não dava certo? Porque dava certo! E era uma vantagem muito grande para Leonel Brizola ter este trunfo. “DELENDA CARTAGO” exigiam os senadores romanos que se fizesse com a cidade africana que ousava enfrentá-los: “DESTRUA-SE CARTAGO”. Não se pode deixar pedra sobre pedra. Não foi melhor com o projeto das casas. Nenhum olhar sobre nós. A Prefeitura não se interessava, porque era um projeto do Estado e do tempo de Brizola. Hoje isto já é historia. Mas foi o impulso inicial dado pelo secretário de justiça, vice-governador e depois governador do Estado do Rio de Janeiro, o que nos trouxe até aqui onde hoje estamos, e onde está também a Lapa e a vida do carioca. Durante dois anos, a janela do sobrado da Casa do Tá Na Rua foi a única fonte de luz na densa escuridão da Lapa. Na noite da solenidade de entrega das casas, atrevi-me a fazer uma profecia gritada para a noite à minha frente, escura, cheia de histórias e fantasmas. Eu disse, então, que aquela pequena luz era o símbolo de uma nova luz que viria sobre a cidade e sobre a região, e também sobre a nossa identidade e vida cultural. O governador Nilo Batista sabia que a vida cultural esvazia a violência e pode desarmar os violentos. Hoje as dificuldades ainda são imensas. Mas já avançamos muito, e só não avançamos mais porque nos faltam humanistas, políticos, artistas, advogados, estudantes de teatro como Nilo Batista. Temos a certeza de que, com ele, estaria sendo investido muito mais na qualidade de vida da cidade, e os interesses comerciais, de classes, não seriam predominantes. O que existe de luz, ainda viva dentro da Lapa, vem da sua visão de mundo e da sua gestão, como governador e cidadão.

Ainda há muito a ser feito.

Temos que tirar o atraso.

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A Fernando Peixoto

Achamos interessante quando alguém anda sobre pernas-de-pau, criando imagens e figuras inesperadas, além dos limites humanos. Um bailarino ou um casal, por exemplo, exibindo-se sobre pernas-de-pau na arena de um circo. Ou um ator no palco, tendo sua figura ampliada ou transformada pelas pernas-de-pau, de acordo com a concepção do diretor ou do cenógrafo, ou do figurinista. Ou, então, o vendedor ou propagandista de alguma loja ou de algum produto, que utiliza pernas longas para chamar atenção sobre si mesmo ou sobre o produto que vende. Tudo isto nós achamos interessante. O que nós não achamos interessante é quando estas pernas-de-pau assumem a função (desnecessária, na nossa opinião) de aumentar a imagem dos atores de modo que todos possam vê-la com conforto visual, como se aqueles estivessem não sobre pernas-de-pau, mas sim sobre o palco italiano convencional - e um dos mais altos! Elevar os atores para que sejam melhor vistos é quase buscar, para a questão dos espaços abertos, as mesmas respostas que o teatro da burguesia já havia dado para elas há alguns séculos atrás. É evidente que os atores, os produtores e os diretores de então criaram as pernas-de-pau porque precisavam delas. Eles inventaram o palco na sua configuração italiana até desenvolvê-lo totalmente em suas possibilidades, para uma sala fechada diferente da sala elisabetana ou espanhola renascentista, ou da medieval, ou até mesmo dos espaços teatrais greco-romanos. Portanto, este palco, na estrutura arquitetônica da sala italiana fechada, resolvia totalmente as necessidades de um espetáculo que começava a deixar de ser popular e público, e passava a ser a forma de entretenimento cada vez mais restrita a uma pequena parte da população que tinha acesso a estas salas. Questões como conforto, visibilidade e até a nova relação (hoje a tradicional) entre atores e espectadores, estavam sendo satisfatoriamente resolvidas, permitindo a este pequeno grupo social desenvolver o “seu” teatro, do ponto de vista tanto estético quanto ético, político e econômico-financeiro, ao seu potencial máximo.


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} Escritos sobre a mesa de Amir Haddad

Quando, por algum motivo, abandonamos estes espaços e vamos para as ruas, deparamo-nos com os mesmos problemas que os antigos expropriadores do teatro tiveram. Só que estamos no extremo oposto da questão. Para aqueles artistas e produtores, e até pensadores do teatro, aquela atitude em busca do palco significava um avanço e uma conquista já que, até então, pouco se sabia sobre estas questões; o palco como tal não existia antes e agora começava a existir! Portanto, tudo era descoberta. Hoje, entretanto, quem quiser se movimentar no sentido de buscar a modificação destas soluções de conforto, visibilidade, ética, estética, relação público-espectador, etc etc, não pode ignorar os acontecimentos

Quero dizer que estamos no limite extremo, oposto ao daqueles que nos sucederam. teatrais relacionados ao palco italiano nos último 300 anos.

Perguntamo-nos: será que aqueles que abandonaram a cena elisabetana, ou medieval, ou espanhola, ou ainda a cena aberta das ruas, levaram muito tempo para se livrarem das soluções diretamente ligadas a estes espaços? Por quanto tempo usaram as soluções antigas, antes de varrerem por completo de suas memórias os procedimentos anteriores? Carlos Goldoni, em sua peça O Teatro Cômico, faz com que um jovem produtor-diretor ensine aos atores antigos das ruas e da Commedia Dell’ Arte os procedimentos da nova comédia, colocando com uma clareza quase explícita, por volta de 1750, o conceito (contrário ao da época) de que o ator deveria trabalhar como se estivesse atrás de uma quarta parede e que deveria também fingir que o público não estava ali, assistindo ao espetáculo. Mas só mesmo em 1790, com Mirandolina, o criador do teatro realista burguês elimina totalmente a máscara teatral dos seus personagens e os assenta, realisticamente, dentro do espaço cênico, sem comunicação direta com a platéia - o que seria mais verossímil, dadas as características deste novo espaço, nova dramaturgia, nova ética, nova estética, novo espetáculo. Assim, também nós, se nos quisermos livrar de procedimentos da cena italiana e modificar as características do ritual desenvolvido pela sociedade então emergente - burguesa, capitalista e protestante - provavelmente iremos levar algum tempo até sabermos o que realmente precisamos transportar do regime antigo para o atual. Assim,

ao sairmos para a rua, nós do Grupo Tá Na Rua procuramos abandonar ou ir abandonando todos os recursos, ou efeitos, ou soluções, que trouxessem

respostas velhas para um problema novo.


Pernas-de-Pau {

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Os artistas daquele período não mantiveram as pernas-de-pau porque arranjaram soluções melhores para a questão: as tábuas elevadas do palco, o tablado! E agora, nós vamos para a rua descobrir novos espaços, externos, experimentando juntamente isso - novos espaços!!! Que sentido teria, para nós, buscarmos novos espaços em cima de pernas-de-pau? Tiramos o ator do palco, do teatro das salas fechadas, mas não o colocamos no chão, onde de uma maneira ou outra ele sempre esteve. Pelo contrário, nós o colocamos numa posição ainda mais elevada em relação ao expectador, e até mesmo em comparação ao palco onde ele poderia estar. Então, se o nosso anseio, desejo ou sonho é tirar o ator das estratosferas, onde foi colocado pela idéia de que o artista é um ser humano especial, super-especial, noção esta desenvolvida pela sociedade burguesa, as pernas-de-pau colocam ainda um outro grande problema, que é o da especialização. Quero dizer que, desta maneira, colocamos o ator em situação especial por duas vezes (mais do que no palco italiano, portanto). Primeiro, por elevarmos a sua estatura muito acima da média dos espectadores; e, depois, por criarmos uma especialização. Tornam-se pessoas especiais, que sabem fazer coisas especiais e que, portanto, estão bem acima da média dos mortais que os assistem embriagados e impotentes diante de tantas habilidades. Como a dança clássica (nas pontas dos pés) ou a ópera (com o uso da voz em regiões sonoras a que só os “sagrados”, embora monstruosos, têm acesso). É a deformação pela especialização, que cria para o ser humano um modelo insuperável ou inatingível, transformando os circunstantes espectadores na casta inferior de uma sociedade cruel e discriminatória!

Por isso não gostamos das pernas-de-pau. Elas são parcelas mínimas (as menores possíveis) do palco italiano que, mantidas sob os pés dos atores, os transformam em criaturas ainda mais especiais do que aquelas apresentadas pelo espetáculo das elites nas salas fechadas da cultura dominante. Para nós, trabalhar em cima de pernas-de-pau, desenvolvendo cenas, textos ou espetáculos significaria, portanto, uma contradição muito grande. Mas isso não impede que eventualmente usemos pernas-de-pau em nossas apresentações. São bonitas, surpreendentes e podem ser utilizadas de maneira criativa. Mas detestamos a idéia, corrente em alguns segmentos, de associar inevitavelmente teatro de rua a pernas-de-pau.

Comentário [atual] de Amir Haddad O teatro é uma arte pública. Ao submetê-lo às limitações dos espaços fechados, a burguesia privatiza esta manifestação e dela se apropria. O teatro que aí está pertence a este mundo e o seu futuro pertence ao futuro deste grupo social. Nós trabalhamos pensando em outro futuro. Não fazemos teatro para o que está aí, mas para o que sempre foi e poderá vir a ser. O Teatro é eternamente jovem e eternamente velho, é patrimônio da natureza humana, do ser humano livre e não poderá nunca pertencer a apenas um grupo social. É público, horizontal, de baixo para cima e de dentro para fora.



Artigo de 1994

As pessoas se surpreendem quando digo que vou fazer teatro de rua para avançar mais em minhas indagações a respeito da questão do espaço, ou o espaço do espetáculo. Na verdade, o meu primeiro grande rompimento com a arquitetura teatral italiana se deu em 1968, junto com o grupo A Comunidade, no Museu Arte Moderna do Rio de Janeiro. A Construção foi o meu primeiro prêmio Molière. Antes disso, porém, já tentara ocupar espaços alternativos em Belém do Pará, na primeira metade da década de 60. Porém, foi a partir de 1968 que a questão do espaço começou a ter, para os meus trabalhos, a mesma importância que a cenografia (às vezes, a substituía), a música ou a dramaturgia, e isto para não falar ainda de interpretação.

Em que espaço eu quero fazer este espetáculo? Além de qual roupa, qual elenco e qual dramaturgia, era essa a questão nova que se colocava para mim e para os diretores mais inquietos daquele período. O Paulo Afonso Grisolli no Rio, o Victor Garcia em São Paulo demolindo os espaços internos, o Celso Nunes, as produções de Ruth Escobar. Na Selva das Cidades o Zé Celso jogava tudo para baixo do palco, não me lembro se sobre a platéia – Roda Viva invadia a platéia e propunha contatos de terceiro grau – Gracias, Señor finalmente propunha a saída do Teatro. Embora a questão do espaço não estivesse ainda colocada com clareza, as modificações geográficas do espetáculo eram evidentes.


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} Escritos sobre a mesa de Amir Haddad

Os motivos aparentemente agressivos e anárquicos revelavam um desejo inconsciente, talvez incontrolável, de romper com os espaços tradicionais e modificar as relações entre atores e espectadores. Até que o aumento da repressão no país fez com que o Teatro lentamente abandonasse suas inquietações e passasse a ser espantosamente conformista na forma e nos conteúdos. O limite de nossas inquietações passava a ser determinado pela mediocridade da censura da época. A censura às mensagens se estendeu também à linguagem. Em 1974, meu espetáculo Somma ou Os Melhores Anos de Nossas Vidas foi proibido pela censura. Era um trabalho que ocupava todo o espaço do palco do Teatro João Caetano. Camarins, palco e platéia reunidos no mesmo espaço. A platéia, com suas poltronas, era ignorada. Terminado o espetáculo, a cortina se abria revelando a sala escura e fria, com suas poltronas vazias mergulhadas na penumbra. O espetáculo se improvisava sobre tema diversos, a cada noite. Há muito que eu descobri que devia trabalhar a favor de minhas idéias e crenças, e não contra as idéias e crenças alheias, por pior que fossem. Assim, também meu trabalho deixou de ser “político” e passou a ser ideológico. E as questões se dirigiam muito mais à linguagem do que à mensagem propriamente dita. Com isso, consegui atravessar as ondas da censura até 1974, quando Somma foi proibido (era

proibido

improvisar, evidentemente!) Com o estreitamento dos limites da investigação, da pesquisa, da inquietação, e da discussão política e ideológica, o teatro brasileiro perde muito do seu interesse e do seu público. A televisão acelera e aprofunda esse processo de alienação. Os cursos de teatro passam, então, a ser uma alternativa para pesquisa e experiência, pelo menos para mim. E nestes cursos, a questão do espaço também passou a ser crucial. Os teatros não serviam mais para os exercícios que eu queria praticar; muitas vezes solicitei quadras de esporte para realizar minhas oficinas, ou qualquer outro espaço aberto e livre das convenções da cena italiana. No início, meus empregadores não acreditavam e me colocavam em teatros (até hoje o Teatro Cacilda Becker, no Rio, é para mim o melhor espaço


Espaço I {

teatral da cidade, porque o mais livre e aberto, apesar das arquibancadas incômodas), mas o teatro - o edifício, é claro - sofria muito com minhas aulas, e aqueles passaram então a me oferecer espaços menos convencionais. Minha inquietação com a questão do espaço ultrapassou as experiências vanguardistas dos anos 60 e início dos anos 70, entrou pelo final de 70 ao início dos 80. Depois das quadras, percebi que somente nas ruas eu poderia saber melhor sobre as limitações do espaço aberto. Paradoxalmente,

só num espaço maior e sem paredes eu poderia descobrir os limites do espaço do meu espetáculo, e de que forma este espaço poderia se fechar ou abrir em ruas e praças públicas, ou nos dois. E também, que tipo de ator seria necessário desenvolver para a atuação nesse espaço. Aí é que as pessoas se espantam. Então

você não foi à rua para salvar os pobres? Para ensinar os ignorantes? Para levar cultura aos incultos? Para dar lições de saúde? Higiene? Sexualidade? Política? Não! Fomos às ruas porque minhas descobertas sobre espaço e as relações do ator e do público no espaço aberto, seus limites e possibilidades me levaram a isso. Não havia em minha atitude nenhuma postura messiânica, evangelizadora-evangélica. Pelo contrário! Não

fui à rua para salvar ninguém, mas sim para salvar a mim mesmo da morte, da pasmaceira em que eu me via metido, em um teatro brasileiro envergonhado e acovardado, ou segregado. O teatro era a minha opção de vida, e não acreditava que eu pudesse ter me enganado tão profundamente. Mas estava também cada vez mais evidente que os procedimentos tradicionais das salas fechadas não nos ofereciam qualquer alternativa de saída. Assim, minhas perguntas começaram a obrigar-me a buscar respostas em outros lugares, em outros espaços. Recusava-me ao conformismo ou à cooptação. Tinha, portanto, a necessidade de atuar em outros espaços. Dos palcos às salas abertas, das quadras às ruas e às praças, eu estava abrindo meu caminho em direção a um teatro que eu queria vivo e transformador, para quem o visse e fizesse.

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} Escritos sobre a mesa de Amir Haddad

É evidente que, ao sair à rua e radicalizar o processo, as revelações se precipitaram num ritmo alucinante, e as revisões de conceitos e pré-conceitos a respeito do teatro, do ator, do público, do espetáculo e de suas formas de produção passaram a ser inevitáveis.

Aí sim, começamos a perceber que o teatro era uma arte viva dentro de cada uma das pessoas que estavam na rua, mesmo daquelas que nunca tinham visto um espetáculo antes, em suas vidas. E mais: que havia muitas coisas sobre as quais queríamos falar e das quais o povo na rua sabia mais do que nós. E tivemos que aprender a trocar e a abandonar a atitude de seres especiais que sem querer tínhamos adquirido como artistas do espaço fechado. Livres da arrogância, da vaidade, e da pretensão de sermos especiais, começamos a descobrir outras formas de comunicação muito mais eficazes e democráticas.

Aí sim, a troca de saber se iniciou. Foi a primeira sensação verdadeira de rompimento com a “quarta parede” italiana (como no “Teatro Cômico” de Goldoni) e um entendimento mais apropriado das idéias “distanciadoras” e “anti-ilusionistas” do teatro brechtiano, ou das peças de Mayakovski ou de Garcia Lorca, ou ainda da força popular dos atores da Commedia dell’Arte ou dos grandes autores clássicos de todos os tempos, como Sófocles, Lope de Veja, Shakespeare, ou Molière; todos eles, atores e/ ou autores de teatros de espaços abertos e comunitários. Em suas platéias não havia unidade, ou homogeneidade de público. Todos, em tese, assistiam aos espetáculos gregos, em seus anfiteatros de céu aberto, assim como era aberto o céu e o espaço do teatro medieval, do teatro espanhol da Commedia dell’Arte ou do Teatro Elisabetano. Todos eles distantes da quarta parede e próximos da grande teatralidade, feita para um público heterogêneo. Hoje, se o teatro quiser recuperar a sua força comunitária, deverá romper com os 300 anos de isolacionismo e ilusionismo em que os valores, a ética, a estética e a moral burguesa o envolveram, e buscar novos espaços e novas maneiras de se relacionar com seu público, sob pena de ficar cada vez mais hermético e fechado sobre si mesmo, e cada vez mais distanciado de sua platéia, que nele não se reconhece e através dele não cresce; o que faz como espetáculo passa a ser não mais do que um aparato visual para a contemplação de uma platéia passiva e desinteressada.


Espaço I {

Modificados o espaço, o ator, a dramaturgia e a relação com o espectador, qualquer lugar que julgarmos apropriado para o nosso espetáculo será o melhor lugar para aquele espetáculo, quer seja um teatro (edifício) ou não. E as possibilidades de encontro e

explosão festiva de afetividade serão muito maiores, recuperando para o

espetáculo seu sentido de

festa e celebração.

Comentário (atual) de Amir Haddad Hoje, passados alguns anos (na verdade, mais de uma década), temos desenvolvido, junto ao grupo Tá Na Rua, formas e procedimentos para o desenvolvimento de um ator capaz de apresentar grandes narrativas épicas em espaços abertos. E o melhor ator dos espaços abertos poderá ser também o melhor nos espaços fechados, pois terá rompido a ilusão imobilizante da “quarta parede”.

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Artigo de 1996

Todo o meu trabalho de teatro, nos últimos anos, vem girando em torno da questão do espaço – as modificações que o espaço teatral no ocidente sofreu nos últimos milênios, desde a Grécia até nossos dias, e as implicações e significados que estas modificações trazem em si. Enfim, a idéia de que espetáculos e arquitetura estão intimamente ligados, que as sociedades erigiram seus teatros e construíram seus espetáculos de acordo com seus valores e com suas necessidades, e de que a dramaturgia e o ator, inseridos nestes espaços e espetáculos, estarão necessariamente de acordo com estes interesses, valores ou necessidades. Esta integração entre arquitetura e espetáculo pode ser claramente observada na Grécia Clássica, onde o teatro teve uma definitiva ressonância comunitária, produzindo escritores da importância de Sófocles ou Aristófanes. Porém, o maior momento dessa integração entre arquitetura, dramaturgia e ator talvez tenha se dado no período Elizabetano, e creio que não é por acaso, portanto, que esse período tenha produzido o maior gênio do teatro de todos os tempos: William Shakespeare, o velho Bill. Ler uma peça grega ou um texto desse período, tendo claras em mente as características dos locais onde foram apresentados, nos dá a sensação desta integração e de como o espetáculo e a vida pública e social estavam perfeitamente entrosados ou articulados. Da mesma maneira, ao lermos uma peça de Ibsen poderemos ter a sensação de que este autor escrevia para um espaço apropriado às suas idéias, seus sentimentos do mundo e do grupo social que seu teatro representava e cujos problemas discutia. Seus dramas burgueses, de forte conteúdo social, tinham, no entanto, um único interlocutor – a classe que ele representava. Autores modernos que tentaram ampliar o âmbito deste discurso, como Brecht, Lorca ou Mayakóvski, tiveram também que mexer fundo com a questão da arquitetura – seja no questionamento da maneira de representar do ator na cena italiana, “protegido” pela “quarta


parede” e sem opinião sobre o que está fazendo - como em Brecht, na concepção do próprio espaço de representação contido nestas dramaturgias, como em Mayakóvski (o circo) ou em Lorca, que tinha um elenco ambulante, representava nas ruas e escrevia para bonecos. E até hoje, ao longo deste século e, seguramente, pelos anos que estão ainda por vir no próximo século e milênio, esta discussão permanecerá e as indagações a respeito do local dos espetáculos não cessarão, porque está em questão não apenas uma estética, mas também uma ética, uma moral, uma política, uma maneira de viver em sociedade. Que

arquitetura seria hoje capaz de organizar o mundo, para nele receber o teatro do mundo? Cada diretor ou elenco, ou grupo, ou até mesmo o produtor discutem qual o melhor espaço para o seu espetáculo. Todos são possíveis; o que não podemos é achar que passadas essas ondas espaciais, o teatro voltará serenamente para o lugar onde sempre esteve nestes últimos 300 anos, e que esta questão de espaço não passa de moda passageira. Quem pensar assim, estará definitivamente condenado a representar para uma platéia cada vez mais “selecionada” e desinteressada do espetáculo à sua frente, vendo ela, também, um espetáculo cada vez mais desinteressado dela, numa dinâmica de interesses desinteressados entre palco (lá em cima) e platéia (lá em baixo). Como se tudo e todos fossem apenas entrevistos, através de telas nebulosas.

Pensar o espaço, o local dos espetáculos e, associado a isto, pensar a dramaturgia, o ator e as suas relações com o espectador, é também pensar o mundo. O grande espetáculo do mundo não cabe no espaço reservado para o espetáculo do grupo social que se julgar dono do mundo, “Há mais coisas entre o céu e a terra do que imagina nossa vã filosofia”, disse o velho Bill. E isso é verdade, hoje e sempre. O

– e o teatro é filho da história, não da ideologia.

conhecimento não tem limites



Artigo de 1996

Ao longo dos séculos o lugar do espetáculo na civilização ocidental sofre modificações em sua concepção arquitetônica, que revelam de forma nítida a função e o sentido do espetáculo na sociedade onde ele está inserido. Se o teatro grego, com seu anfiteatro e o espaço para atuação do coro, guarda a memória da origem religiosa do espetáculo naquela região, ao mesmo tempo, por sua amplidão de espaços, revela a total adesão da comunidade grega àquele tipo de manifestação e confirma a importância comunitária desta forma de expressão para os gregos. Os festivais de teatro na Grécia tinham, na época, tanta ou maior importância que os desfiles carnavalescos na cidade do Rio de Janeiro.


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} Escritos sobre a mesa de Amir Haddad

1. Cidade da Grécia antiga. Da inclinação de seus cidadãos para as guerras e os enfrentamentos, deriva o termo espartano.

É até mesmo possível que alguém de Esparta1, amante das guerras e inimigo do prazer, tivesse dito em algum lugar que Atenas não era uma cidade séria, pois ali tudo parava por ocasião do carnaval, quero dizer, dos festejos teatrais. Assim também em Roma, a cópia descarada do Teatro Grego revela que os romanos não inventaram nada de teatro, guerreiros imperialistas que eram, mas criaram para seu espetáculo favorito, o “Circo Romano”: o grande edifício do Coliseu onde gladiadores, bigas, leões e cristãos se degladiavam em uma grande arena, para delírio dos patrícios romanos sedentos de paixões sangrentas e emoções violentas. Depois, o teatro desaparece enquanto edifício, durante uma dezena aproximada de séculos, e mantém-se vivo apenas pela atividade isolada dos atores, que caminhando sós pelas estradas da época se exibiam para um mundo atomizado e dividido. Sacerdotes de uma religião em decomposição, só com o avanço do poder religioso na Idade Média estes atores irão se reagrupar e ornamentar com seu talento, poesia e histrionismo as igrejas e as praças medievais, onde a Igreja Católica, poderosa e absoluta fazia suas celebrações religiosas, devolvendo ao teatro sua força aglutinadora e seu sentido de festa, por ocasião das datas religiosas mais importantes, com calendário fixo. Aí então, mais uma vez o teatro é público, e os cenários são montados em praças ou igrejas, de modo a permitir a participação de toda a população. Abandonado pela Igreja como forma

de catequização e engrandecimento dos seus fiéis, o

teatro é recuperado pelos homens

sem Deus, os quais imaginam que, se esta forma de

expressão era boa para falar e

mostrar a vida dos Santos, não deveria ser menos

eficiente para falar da vida dos

homens para eles mesmos.


Espaço e Ideologia {

Saídos da Idade Média, o Teatro Espanhol do Renascimento e o Teatro Elizabetano da Inglaterra de Shakespeare trazem, dentro de si, esta herança grega de um teatro de ressonância comunitária ao qual toda a sociedade tinha acesso, mesmo que se sentando (ou não) em lugares diferentes. Assim, tanto em um como em outro, o povo, todo o povo, público original do espetáculo, permanecia de pé diante do palco (ainda quase que apenas um tablado), lembranças dos tempos em que o espetáculo era feito nas ruas, em espaços abertos, assistidos por todos. Evidentemente com os burgueses e os aristocratas mais distantes, com medo da população, mas apaixonados também eles pelo espetáculo. Talvez ficassem em algumas janelas de algumas casas vendo tudo de longe. Estas janelas, estas casas se transformaram nos camarotes do palco elizabetano e nos quartos das hospedarias, em cujos pátios centrais se exibiam os atores espanhóis enquanto representavam Lope de Vega, ou outro que a história esqueceu de registrar. Mas em todos eles, com divisão de classe ou não, em todos eles, repetimos: toda a estratificação social se fazia representar. Não se perde o sentido de festa e mantém-se a idéia de celebração, que faz com que todos, democraticamente, se encontrem para participar do mesmo acontecimento comunitário. Com a ascensão da burguesia e o desenvolvimento do modo capitalista-protestante de produção, o teatro perde estas características de festa e celebração populares, e passa pouco a pouco a se transformar num produto especial, a ser consumido por um grupo social homogêneo que se apodera desta forma de manifestação popular e a submete às nascentes regras do mercado. Os melhores lugares, que eram ocupados pelos homens do povo, em pé, perto do palco, naturalmente eram invejados pelo burguês ascendente que assistia ao espetáculo. Com dinheiro e visão do comércio, o primeiro produtor de teatro, ou o segundo, ou o terceiro, ocupa o espaço do povo com cadeiras, que são vendidas para quem tem dinheiro para comprá-las. No caso, os burgueses emergentes, afastando desta maneira o contato do ator com o público que se aglomerava de pé ao lado do palco, como os torcedores atrás do gol, na “geral” dos grandes estádios de futebol.

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} Escritos sobre a mesa de Amir Haddad

Aos poucos a sala se homogeneíza, e com a Revolução Francesa, e depois, nem mesmo os camarotes para a aristocracia se mantêm por muito tempo. Até chegarmos fisicamente na sala de espetáculos como a que conhecemos hoje: uma grande sala com cadeiras (poltronas) igualmente e democraticamente distribuídas por todo o espaço, diante do palco, numa relação que se costuma chamar à italiana, por ter nascido na Itália das Cidades Estado e da burguesia poderosa ascendente. Em seu aspecto final, estas salas eram e são absolutamente democráticas, pois ali dentro todos são iguais. Só que a elas, como na democracia burguesa liberal, o povo não tem acesso. Como não tiveram acesso às conquistas das reformas de Calvino e Lutero, os camponeses / servos da gleba feudal, ou os miseráveis trabalhadores da França de Marat e Robespierre! E assim chegamos ao nosso século, com esta forma arquitetônica perfeitamente representativa de sociedade e da época em que vivemos, abrigando um espetáculo, ele também carregado dos conteúdos ideológicos que platéia e arquitetura teatrais dele exigem. Ao pensar as possibilidades de resgatar para o teatro o seu aspecto de festa e de celebração comunitária, ao pensar a Universidade como devendo ser a mais democrática das instituições de transmissão de saber e ao querer resgatar para ela, também, o sentido de integração comunitária de seus membros entre si, e entre estes e as comunidades 2. O TUERJ foi um projeto teatral desenvolvido na década de 90 na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) coordenado por

circunvizinhas, foi que o TUERJ2 pensou na reconstrução do Teatro Odylo Costa Filho. Em recuperar, para o Teatro, este espaço de liberdade das praças onde a formação rígida das poltronas não inibe o visitante e admite um esvaziamento ideológico daquela organização,

Amir Haddad, Antônio Pedro e Anselmo Vasconcellos. A proposta do TUERJ para a remodelação do Teatro Odylo Costa Filho não foi contemplada na reforma do

permitindo o afloramento de novas maneiras de ver o espetáculo e até mesmo de modificá-lo com este novo olhar. Além disso, quem sabe até desinibir o cidadão do povo, que traz dentro do seu inconsciente coletivo a memória desta expulsão e da paixão pelo Teatro, que embora

espaço, que foi reconstruído como um teatro tradicional.

nunca visto por ele, o reconhece quando o vê pela primeira vez. E, quem sabe, com isso, colocar dentro da sala uma representação coletiva relevante, de todos os extratos sociais que compõem a nossa comunidade.


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Comentário [atual] de Amir Haddad

Espaço e Ideologia {

Estas idéias estão aqui desenvolvidas para justificar o projeto de reforma do Teatro Odylo Costa Filho da UERJ no Rio de Janeiro, que previa metade da platéia (a dianteira) sem poltronas, permitindo maior mobilidade às pessoas que fossem visitá-lo e assistir os espetáculos ali realizados. Isto é, evidentemente, uma solução híbrida e conciliatória, já que no TUERJ a questão do espaço não era tratada de maneira tão radical quanto no Grupo Tá Na Rua, que abandona totalmente a idéia de se valer de qualquer recurso usado pela burguesia e parte definitivamente para um rompimento arquitetônico/espacial com os valores representados pela chamada sala italiana, ou qualquer outro espaço (arena, ou palco, etc) que seja separado do mundo por quatro paredes e um teto. Nosso rompimento deseja ser total e não queremos guardar nenhum resquício do espetáculo anterior. Fazemos espetáculos para os valores éticos, estéticos, ideológicos deste mundo que, acreditamos, irá se modificar. Nós trabalhamos no presente para um outro futuro. Procuramos recuperar para o teatro a sua vocação pública perdida. Tradição, e não ideologia. Traímos para voltar a amar. Lisboa, janeiro de 2008


Para mim, não é indiferente se um espetáculo se dá num ou noutro espaço. Pelo contrário, a modificação do espaço coloca tudo em perspectivas e significados próprios. Os espaços teatrais gregos e elisabetanos (sem falar do medieval, das igrejas e praças) se desenvolveram de acordo com os valores ideológicos e arquitetônicos das sociedades que os criaram. Não poderia ser diferente.

O Teatro é filho da história e não da ideologia. A sociedade burguesa/capitalista/protestante também desenvolveu seu espaço e sua arquitetura para a celebração de seus ritos de representação. Dentro desta perspectiva histórico/ideológica, quero confessar e declarar que nunca vi, no Brasil, alguém que soubesse utilizar com tanta clareza e maestria o espaço convencional da cena italiana quanto Antunes Filho. Bebi em suas fontes. Pic-Nic, Plantão 21, As Feiticeiras de Salem deixaram marcas definitivas em meus olhos e sensibilidade afetiva. Desde então, o trabalho de Antunes Filho tem sido um permanente desenvolvimento em direção ao teatro que seus grandes espetáculos iniciais já revelavam. E, como todos nós diretores de teatro sabemos ou deveríamos saber, a modificação essencial do espetáculo não se dá, nem se dará, se a questão do ator não for encarada de frente. Antunes teve que sair em busca de um ator que pudesse ajudá-lo na construção dessa Utopia que é o espetáculo. Assim, ele cria a sua marca e o seu estilo, firma o seu modelo de ator, apto a desvendar os mistérios de seus espetáculos, dentro de espaços especialmente destinados ou construídos para estes fins. A liberdade do seu estilo de encenação revela o prazer que o contato com este espaço lhe proporciona. Antunes obtém, com o mínimo de recursos, o máximo de resultados no espaço que lhe é proposto. Nosso mestre. Retirou o nosso teatro das mãos de diretores estrangeiros com grandeza, competência e elegância. Todos nós, diretores brasileiros, somos dele

Rio, 30 janeiro de 2008

Artigo escrito para a REVISTA BRAVO

ANTUNES filho, JOSÉ CELSO corrêa E os TEATROS

Sou uma pessoa absolutamente preocupada com as questões de espaço.


devedores. Foi uma real modificação no teatro que se fazia em São Paulo e no Brasil, onde o modelo do TBC e dos diretores estrangeiros imperava absoluto como critério de qualidade. Antunes Filho abriu espaço para os jovens diretores brasileiros que viriam logo depois dele, todos com excelente nível de utilização do palco italiano, como foi o caso de Flávio Rangel (Gimba, A Semente). Porém, a primeira modificação relevante quanto à questão do espaço se dá com a criação do Teatro de Arena, de José Renato e Augusto Boal, e sua platéia circular que envolvia o ator por todos os lados, obrigando-o, de alguma maneira, a considerar as necessárias três dimensões, em oposição à bi-dimensionalidade italiana. Entretanto, mesmo com a modificação formal do espaço, a relação expectador/ator se mantém inalterada, criando uma tênue, porém inequívoca, barreira entre o espetáculo e o espectador, justificando o sentido da palavra “teatro”, que é “lugar onde se vai para ver”. José Celso Martinez Corrêa é o primeiro diretor brasileiro que faz um ataque frontal à “quarta parede”, fazendo os móveis e objetos de Na Selva das Cidades serem atirados em sua direção, revelando claramente o vazio entre platéia e palco. Em Roda Viva e Gracias, Señor os atores vêm de todos os lados. Porém, a maior conquista se dá com O Rei da Vela, onde os atores incorporam definitivamente técnicas e modos de representação originais do Teatro de Revista - sem quarta parede - que tinham sido abruptamente abandonados com a chegada dos diretores europeus, portadores da “modernidade”. Foi como se o teatro brasileiro recuperasse o momento e o fio de sua história. José Celso rompe a partir daí e cada vez mais com a cena italiana, ou a forma em arena, de seu antigo Teatro Oficina, onde realizara seus melhores espetáculos dentro do realismo psicológico, como Os Pequenos Burgueses. Primeira e última grande encenação do teatro realista brasileiro, porém absolutamente necessária para a construção e desenvolvimento do nosso espetáculo moderno. Ele também já aparecia ali como um encenador capaz de grandes movimentos internos em seus espetáculos, e de uma magnífica condução dos atores tendência que iria consolidar e aperfeiçoar ao longo dos anos.


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} Escritos sobre a mesa de Amir Haddad

Ainda jovem, tive que faltar a um ensaio de A Incubadeira, texto seu que eu estava dirigindo no começo do grupo Oficina. Ele me substituiu. Quando voltei no dia seguinte, fui ver a cena que tinha sido trabalhada. Fiquei, nos meus jovens anos (22,23?), estupefato com o resultado apresentado, que parecia estar dizendo “veja como é que se faz!”. Fiquei calado e admirado. Poucos anos depois, participei como ator de uma leitura dramática de Roda Viva no Teatro Glória, no Rio de Janeiro, dirigida por ele. Mais uma vez, e muitos anos depois, surpreendi-me com a sua extrema habilidade de abrir, com paixão, um significado dramatúrgico profundo, visto apenas por ele, e inquestionável depois de revelado. Também ele, cada vez mais maduro na busca de um ator capaz de realizar o seu sonho dramatúrgico de resgatar para o teatro o sentido de “Paraíso Perdido”. A “Idade do Ouro” recuperada através do rito e da celebração. Com este ímpeto desconstrutor do pragmatismo burguês-protestante, Zé Celso rompe também com as paredes do edifício teatral e vai para as praças, ruas, vilas e vielas levar sua mensagem, muitas vezes de aspecto messiânico, mas sempre generosa, libertadora e transformadora. Com ele o teatro anda, sai de casa, processiona e desfila. Talvez, aí, ele tenha descoberto que o teatro é cortejo, é movimento, é procissão, como foi na Grécia, na Espanha, na Idade Média e no Renascimento. O pragmatismo burguês o transforma e acomoda dentro de suas limitações arquitetônicas. Para escapar a elas, José Celso desmonta a convenção espacial do teatro e procura trazer para dentro do espaço fechado a liberdade, o fluxo e o movimento que conheceu nas ruas, em um espaço modificado onde ele poderia, com facilidade, desenvolver suas habilidades espetaculares de uma maneira nova e inovadora. Mexe no publico, no espaço, no ator e na dramaturgia. Um exemplo de transgressão, que nos coloca em contato imediato com as mais profundas tradições de um teatro de todos os tempos.


Antunes Filho, José Celso Corrêa e os Teatros {

Todos nós nascemos do bom teatro italiano, mas cada um, como deve ser, escolheu seu caminho particular, como o Teatro do Oprimido, de Augusto Boal, que não se quer um teatro, mas sim uma pedagogia. Para mim, todos os teatros são, de alguma maneira, uma espécie de pedagogia, desde o seu nascimento. São uma maneira de fazer com que os homens entrem em contato consigo e com a sua natureza divina. Neste sentido, Antunes Filho e José Celso levaram o teatro às suas últimas conseqüências. O primeiro, explorando os desafios cênicos do espaço italiano até o máximo de suas possibilidades. E o outro, na ânsia de libertar o teatro de suas amarras, trazendo a liberdade dos espaços abertos para dentro da sua casa de espetáculos. Trazendo a rua para o teatro. O que cada um, concretamente, conquistou para o nosso teatro, jamais saberemos com segurança, dentro dos acanhados limites de nossa visão histórica. Em qualquer momento, um e outro serão lembrados como marcos, eixos, colunas de sustentação de um teatro brasileiro que ainda teve que enfrentar anos de ditadura e consumismo neoliberal. Saberíamos muito pouco sobre nós mesmos, sobre nossos caminhos e identidade, se os dois não existissem. Um para dentro e outro para fora, tentando explicar o mundo e nos fazer entender a nós mesmos como etnia, cultura e religião. Para terminar, quero dizer que ao teatro brasileiro se oferece ainda outra forte e atuante alternativa, além da sala italiana fechada e dos espaços polivalentes das salas abertas conhecidas. Essa alternativa é a do teatro fora do teatro. A do teatro livre da construção - ou desconstrução - dos espaços fechados/cobertos da burguesia: a do espaço livre das ruas, com suas possibilidades dramáticas, dramatúrgicas e cenográficas ainda por serem descobertas.

Mas isso, meus irmãos, já é uma outra história.

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oi nóis aqui travêis: as APRESENTAÇÕES DE do grupo tá na rua

Esse artigo teve como base, para sua elaboração, a dissertação Espaço e comicidade: a busca de uma definição para a linguagem do ator (Grupo Tá Na rua – 1981), por mim apresentada junto ao

Ana Carneiro

Mestrado em Teatro/UNIRIO, 1998.


Eu acho que a grande originalidade do trabalho do TÁ NA RUA é o trabalho de rua; é o trabalho de um acontecimento no aqui e agora, no não haver nada preestabelecido, de nós vivermos a situação presente, o absolutamente improvisado, em contato direto com o público, [este] podendo mandar qualquer informação [...] que nós integramos dentro do trabalho. Quer dizer, é realmente um acontecimento, não tem nada de estabelecido. É uma coisa que eu acho que foi e ainda é, o que eu não vejo em nenhum outro trabalho de grupo de Rua. (Sérgio Luz)1

1. Sérgio Luz, ator fundador do Tá Na Rua, em entrevista a Ana Carneiro (1996).

O lugar do público Ano: 1980, mais exatamente no mês de março. Local: o Teatro Cacilda Becker. Evento: a Semana do Teatro Alternativo, organizada pela CONFENATA.2 Acontecimento: a apresentação conjunta das duas frentes da pesquisa de linguagem desenvolvida, desde 1975, pelo diretor Amir Haddad: o Grupo de Niterói, visto como o

2. CONFENATA – Confederação Nacional de Teatro Amador, então sob a presidência de Almério Belém, diretor de teatro. As Federações de Teatro

laboratório central da pesquisa, e o Tá Na Rua, grupo resultante de uma oficina orientada por Amir, em 1979, considerado uma espécie de ponta-de-lança do processo até então realizado.

Amador, no período, eram locais onde os então chamados grupos de teatro alternativo encontravam espaço para desaguar suas discussões enquanto grupos que não seguiam o sistema empresarial de produção, procurando força e ações coletivas que firmassem seu reconhecimento e solidificassem conquistas.


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} O Tá Na Rua apresenta:

Embora nem mesmo nós, atores participantes dessa empreitada, o soubéssemos, nascia ali o 3. Além de Amir Haddad, faziam parte do elenco original: Ana

gérmen de um dos principais grupos de teatro brasileiros: o Grupo de Teatro Tá Na Rua3. Os bons resultados da apresentação haviam indicado a única saída possível: unir as duas

Carneiro, Artur Faria, Betina Waissman, Lucy Mafra, Marilena Bibas, Ricardo Pavão, Sérgio Luz. O ator Luiz Carlos Gondin, presente nas primeiras

frentes da pesquisa. A tranqüilidade de estar realizando uma pesquisa foi o fator que nos levou a abandonar, nesse movimento, tudo que conhecíamos como “teatro” e a procurar o que era isto, o “teatro”.

apresentações, permaneceu apenas até julho de 1980.

Foi assim que, ocupando a periferia do poder (político, social e cultural), agindo paralelamente à cultura oficial — sem modelo a seguir, sem censura, sem cobranças — partimos para ruas e largos de favelas e bairros da periferia do Rio de Janeiro, com uma trouxa de roupas que carregava nosso material de trabalho: restos de figurinos usados em outras apresen tações teatrais, alguns filós coloridos, perucas, uma vistosa bandeira de cetim e um bumbo. Como espaço de representação, a roda — a velha e generosa roda dos atores de rua de todos os tempos, que propiciava o contato com um público preponderantemente popular. Anunciando nossa chegada, a música que se tornou símbolo do grupo: Se oceis pensa Qui nóis fumos embora Nóis enganemos oceis Nóis fingimos qui fumos E vortemos Oi nóis aqui travêis. Nóis tava indo Tava quase lá Arresorvemo E vortemo pra cá Agora nóis vai ficá freguêis

4. Ói nóis aqui traveis — música de Geraldo Blota e Joseval Peixoto (1952).

Oi nóis aqui travêis.4 Como repertório, histórias de cordel, músicas do cancioneiro popular brasileiro, algumas piadas — ou seja, um material propositadamente escolhido entre o que não é considerado como dramatúrgico, na acepção do termo, mas que era ideal para os trabalhos do grupo naquele período, à medida que, por sua estrutura narrativa, não “ignorava” a presença do público e, assim, dava espaço ao ator para acolher suas reações e vibrar com sua participação. Os cordéis, entretanto, foram rapidamente abandonados, após algumas tentativas de apresentá-los em espaços abertos. Logo no início das apresentações na rua, para a


Ói Nóis Aqui Travêis: as apresentações de rua do Grupo Tá Na Rua {

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participação na II Mostra de Teatro do Centro de Arte e Cultura (maio 1980), em Juiz de Fora, preparamos a encenação de Iraildes ou A moça que beijou o jumento pensando que era Roberto Carlos, cordel de Gilson da Cruz. Entretanto, na primeira participação na Mostra5, o cordel não foi apresentado: brincadeiras desenvolvidas nas apresentações dos atores, a encenação de algumas piadas e músicas ocuparam todo o tempo da mesma. Ainda nessa Mostra, porém, foi feita uma apresentação de Iraildes, em uma feira popular. As anotações de trabalho registram observações interessantes:

5. Apresentação realizada no calçadão de compras da Rua Halfed, no Centro da cidade de Juiz de fora/MG.

... e depois começamos a Iraildes. Mas somos interrompidos por um fiscal da feira. [...] Retomamos a Iraildes. Uma mulher bêbada, Maria, fica na roda cantando as músicas do Roberto [Carlos] junto conosco. Só que nós só cantávamos uns pedaços das músicas e ela cantava a música inteira, embolando com a nossa apresentação, que continuava apesar da “interferência”. Não sabemos, nessa ocasião, integrar uma situação dessa com o nosso trabalho, que ainda é muito novo para nós. Conseguimos chegar ao fim de Iraildes.6 Em apresentações realizadas em Brasília (julho 1980), os cordéis tiveram aceitações diversas, colocando algumas questões claras. O tranqüilo público constituído por hóspedes de um

6. Anotação de trabalho. Apresentações de rua - 1981.

hotel, assim como as pessoas presentes em uma exposição de artes onde também fizemos uma participação, permitiram que a história fosse contada até o final, se divertindo e participando sem interferir em seu desenvolvimento. Em outra apresentação, porém, realizada na cidade satélite de Guará (Brasília), pela primeira vez o grupo apresentou o cordel A revolta de São Jorge contra os invasores da Lua, de Erotildes Miranda dos Santos. A grande movimentação do local, o barulho, o não uso de equipamentos sonoros pelo grupo, apontaram algumas das dificuldades de se contar uma história longa linearmente, na rua, naquele momento da pesquisa. Dificuldades que eram, em parte, ligadas às características do espaço aberto de ruas e praças: espaço do cotidiano, do profano, daquilo que é público. Espaço que “não tem dono”, que escapa do controle, e por isso permite mais facilmente a insubordinação, a espontaneidade, a rua, pelas relações que estabelece, sempre fluidas e com um caráter indelével de escolha (DaMatta, 1979), permite mais facilmente o fortalecimento do coletivo, transformando a todos em apenas “um rosto a mais na multidão”. Como imenso cadinho social, ela facilita a vivência de experiências socializadoras e transformações intensas, conferindo um estado de permanente instabilidade, de transformação contínua, a tudo que abrange.

Acervo Tá Na Rua.


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} O Tá Na Rua apresenta:

Foi perceptível, para o grupo, que esses fatores atuavam diferentemente em suas apresentações: negativamente durante a apresentação dos cordéis, enquanto, por outro lado, enriqueciam nossas investigações na realização das piadas, das músicas, dos números, já então percebidos como o caminho mais instigante a ser percorrido, uma vez que despontavam enquanto fonte para discussão de questões sociais e, principalmente, abriam espaço para o estabelecimento de relações mais ricas e generosas com o público, propiciando irmos ao encontro do épico, do nosso des-envolvimento enquanto atores. Ao longo das apresentações, esse material foi sendo selecionado, sempre levando em consideração alguns critérios que, pouco a pouco, iam sendo percebidos como essenciais para os caminhos que começávamos a conquistar, dentre eles, a possibilidade que apresentavam de manutenção da abertura permanente do espaço da roda para participação do público, possibilitando que a discussão se fizesse de forma não autoritária, à medida que havia espaço para a colocação da opinião de todos nas brincadeiras. É preciso lembrar que já as primeiras apresentações feitas pelo Tá Na Rua evidenciaram para nós, do grupo, o “público ideal” para o nosso trabalho: um público freqüentador de largos e praças do Rio de Janeiro, constituído muitas vezes por migrantes nordestinos, oriundos de regiões em que as brincadeiras e festas populares ainda se conservam presentes, acostumados a comentarem os acontecimentos dessas brincadeiras, e a participarem ativamente, permanecendo debaixo de chuva ou sol, desde que tivessem uma boa diversão. Um público que nada tinha a ver com a platéia das salas fechadas, que se mantém em silêncio e se movimenta o menos possível, de modo a não perturbar os acontecimentos da cena, que estabelece sua comunicação com o espetáculo mediante formas polidas de expressão e que em nada corresponde ao público do Tá Na Rua que lembramos, vemos em fotos ou observamos nos comentários de reportagens: alegre, participativo, interventor, que reconhecia a representação enquanto jogo, brincadeira, e que nos remetia aos espectadores que cercavam os palcos elisabetanos ou ocupavam os pátios das hospedarias, assistindo de pé aos espetáculos, em contato direto com os atores, a quem se dirigiam e provocavam. Um público transgressor, compromissado apenas com a possibilidade do lúdico e com a diversão e que, como sabemos, foi gradativamente deslocado para longe do palco até que lhe restou como espaço restrito a chamada torrinha, as distantes galerias situadas no andar superior dos teatros. Um público que estabelecia uma troca real e efetiva com a representação, se coletivizava e participava ativamente, levando essa interação a constituir-se ponto vital das apresentações, tornando os anônimos participantes das rodas do Tá Na Rua um dos elementos mais determinantes no processo de definição da linguagem atorial do grupo.


Ói Nóis Aqui Travêis: as apresentações de rua do Grupo Tá Na Rua {

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As palavras de Amir Haddad, proferidas no Encontro realizado pelo Festival Teatro D’Outras Terras (27 jun, 1993)7, traduzem — com a clareza que o tempo e o amadurecimento do trabalho foi propiciando — o fio condutor básico do pensamento que orientou essa relação: Quando a gente saiu [...] do palco e foi para a rua, foi [ao] encontro do espectador, a gente

7. O Festival Teatro D’Outras Terras, organizado pelo Grupo Oikoveva, realizou-se ao longo do ano de 1993, em Petrópolis, em diversos módulos. A

foi resolver a questão da verticalidade e da horizontalidade. [...] A gente desceu porque não queria ficar daquele tamanho; a gente queria dar uma medida humana do ator, para o espectador. [...] A gente queria ter esse encontro, queria correr esse perigo: da carne tocar

participação do grupo Tá Na Rua ocorreu no segundo módulo do festival, realizado de 24 a 27 jun. 1993, com a apresentação do espetáculo FEBEAPÁ —

na carne, de um ser humano ver o outro e, de repente, esse ser humano que está aqui,

Sérgio Porto Revisitado, uma

igual a ele também, começar a representar, olho no olho, sem medo de perder a

oficina orientada por Amir

concentração, com um nível de horizontalidade muito grande.

momento de conversa com Amir

... e a verticalidade possível, é a que vai nascer do encontro de nós todos aqui. Porque

Haddad e um Encontro — Haddad, sobre o trabalho do grupo, com encaminhamento de

isso leva para o alto. Porque estamos aqui numa relação verdadeira; não há truque; não

questões realizado por Márcio

há sedução. Apenas um ser humano voluntário se expondo de corpo e alma diante de

Anônimo

outro. E isso eleva; isso cria um centro, uma elevação maior.

Libar, diretor do Grupo Teatro de


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} O Tá Na Rua apresenta:

Foi na busca dessa comunhão com o público, tentando reencontrar o caráter “religioso” do teatro — religioso no profundo sentido que encontramos em sua raiz, de religio, religare: ligar, atar, indicando a reintegração do homem com o mundo —, que estabelecemos uma relação tão específica e direta com nosso público. Busca que refletiu a necessidade de resgatar alguma instância perdida do jogo da representação: o sentimento de que o ator “pertence” àquela comunidade e, principalmente, de que o teatro é uma atividade intrinsecamente política, não só pelo que nele é representado, mas pela própria representação: sua existência, sua constituição, “física”, por assim dizer, como assembléia, reunião pública, ajuntamento.(Guénoun, 2003)

Foi no contato com esses inesperados “atores” da rua, que se divertiam participando de nossas brincadeiras, que conquistamos, profundamente, o jogo distanciado. Foi por intermédio deles que se abriram os caminhos em direção ao riso, ao lúdico e ao que o Tá Na Rua considerava ser a “verdadeira” história do teatro: a história de uma forma de expressão ancestral, enraizada na alma desse povo, que respondia às nossas provocações como se tivesse assistido teatro por milênios.


Ói Nóis Aqui Travêis: as apresentações de rua do Grupo Tá Na Rua {

O acontecimento da roda: números, músicas, improvisações O riso não é uma forma exterior, mas uma forma interior essencial a qual não pode ser substituída pelo sério, sob pena de destruir e desnaturalizar o próprio conteúdo da verdade revelada por meio do riso. Esse libera não apenas da censura exterior, mas antes de mais nada do grande censor interior, do medo do sagrado, da interdição autoritária, do passado, do poder, medo ancorado no espírito humano há milhares de anos. [...] O riso revelou de maneira nova o mundo, no seu aspecto mais alegre e mais lúcido (Bakhtin, 1993, p. 81) (grifos do autor).

A roda do Tá Na Rua se constituiu, sempre, como um espaço governado pelo riso — um riso largo, amplo, profundo, que muitas vezes se revestia com características baixas, grosseiras. As apresentações do grupo eram marcadas pela irreverência e pelo despudor com que qualquer assunto era discutido, por meio de uma abordagem lúdica e crítica, posicionamento político claro e visão de mundo transformadora. Por meio de brincadeiras em que a alegria e a sexualidade estavam sempre presentes, o grupo começou a apontar um “jeito seu” de atuar. Na roda, tudo era material possível de ser trabalhado. Alguns números se desenvolveram a partir da apresentação dos atores e surgiram por intermediações do apresentador do “espetáculo”, geralmente relacionadas às características dos atores ou acontecimentos anteriores: Rosa era a mulher-quesofre, porque rolava pelo chão, sofrendo, ao cantar Lama (música de Paulo Marques e Aylce Chaves), no curso do Teatro dos Quatro (1979). Lucy, no mesmo curso, rodopiara e caíra ao fazer a cena da amada, na teatralização de Coração Materno, de Vicente Celestino. Assim, virou a mulher-que-grita-rodopia-e-cai. Sérgio, um dia, disse que saltava e, a partir daí, passou a ser o homem-que-salta. Artur, jovem, namorador, era o galã do grupo, sempre disposto a ser beijado pelas mulheres da roda; mas também era apresentado como o protótipo do homem brasileiro: o homem-que-coça-o-saco-e-chupa-palito.

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} O Tá Na Rua apresenta:

Criaram-se assim algumas “máscaras” que terminaram por caracterizar tipos sociais, cada um com suas peculiaridades e reações perante as vicissitudes da vida. Assim é que, sempre através de sugestões lançadas pelo público, a mulher-que-gritarodopia-e-cai se desesperava na frente do fogão, na beira do tanque cheio de roupa para lavar, na fila do mercado para comprar feijão (artigo em falta, na época), porque o marido a abandonara ou mesmo porque tinha muitos filhos para criar. Quanto à mulher-que-sofre, ela sofria com o alto custo de vida, porque o salário não aumentava, porque não tinha emprego ou porque tinha de enfrentar as filas dos postos de saúde — onde, geralmente, terminava por morrer. Um número que revelava o pensamento maior que orientava o trabalho do grupo: a possibilidade de transformação. Pois, da mesma forma como ela morria todos os dias, todos os dias ela renascia, e sempre, mais uma vez, a partir do estímulo do público — o beijo de uma criança, um abraço sincero, as palavras de alguém que lhe pedia para não morrer “porque o brasileiro é forte”. Aos poucos, os números passaram a adquirir naturezas diferentes, exigindo sua separação em blocos específicos. Algumas improvisações a partir de temáticas estabelecidas apresentavam discussões em que aspectos de inversão, contraditórios, ambivalentes, ressaltavam novos e inesperados olhares sobre a situação apresentada. Louro, classe média, universitário, Ricardo, um dos atores, era o negro do grupo — era ele quem fazia esse papel, trabalhando, apanhando e, depois, ainda tocando e cantando para “as brancas” dançarem (colocando, assim, que as questões de exploração, humilhação e subserviência abrangiam universo mais amplo que aquele designado pela cor). A bandida era presa porque seu patrão tinha certeza de que ela o roubara — a empregada fora flagrada com a geladeira cheia e fazendo uma feijoada completa, mas ele sabia que o ordenado que lhe pagava não dava para isso. Quanto às piadas, de todas que o Tá Na Rua teve em sua bagagem, a do namorado e da namorada foi aquela que, pelas amplas possibilidades de estabelecimento de uma reflexão coletiva que apresentava em sua estrutura, permaneceu como um dos grandes momentos das apresentações do grupo. Sempre contextualizada no local da apresentação, ela falava de acontecimentos muito próximos do cotidiano do público que compunha as rodas do grupo. Afinal, o namorado e a namorada estavam ali mesmo naquela praça quando, depois de beijos e abraços, bem na hora “h”, no momento em que a coisa toda ia esquentar, chegou o pai da moça e gritou: “Êpa! O que você está fazendo aí com a minha filha?”


Ói Nóis Aqui Travêis: as apresentações de rua do Grupo Tá Na Rua {

“O que o senhor faria se fosse o pai da noiva? E a senhora, o que faria se fosse a mãe dela? E você, rapaz, o que faria no lugar do pai dela?” A interrupção da narrativa e as perguntas feitas provocavam respostas rápidas, muitas vezes carregadas de preconceitos, de atitudes conservadoras: “Dava uma surra nela (ou nele)”, “Fazia casar” “Cortava o pau dele fora”. Mas muitas vezes também, liberadoras: “Deixava continuar”, “Vão namorar lá em casa”. De todo modo, sempre revelando o pensamento daquela pequena comunidade reunida em torno da roda e que tinha assim a oportunidade de refletir, diante da representação de cada uma das sugestões apresentadas, sobre os caminhos que percorria, sobre as transformações sociais que agitavam o mundo e se faziam presentes em suas vidas. Referências Bakhtin, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec; Brasília: EdunB, 1993. DaMatta, Roberto . A casa & a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. Guénoun, Denis. A exibição das palavras. Uma idéia (política) do teatro. Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto, 2003.

Comentário [atual] de Amir Haddad Nossas “rodas”, nossa “gira” De todas as formas de apresentação do Tá Na Rua, estas rodas - tão bem descritas aqui por Ana Carneiro, sócia-fundadora e escriba maior de nosso trabalho, além de testemunha ocular da história - constituíram nossos melhores momentos ao longo de quase trinta anos de trabalho. Nenhuma descrição de “repertório” poderá explicar a fantástica experiência, vivida pelo grupo, de costurar o acontecimento no momento de seu recorte e apresentação. De trabalhar com a realidade circundante e ter o espectador como eterno parceiro. Foram centenas de apresentações. Não estão oficialmente registradas, mas explicam profundamente o que fazemos hoje. Mesmo aqueles atores que estão conosco há pouco tempo, são também o produto desta intensa, lúdica e prazerosa experiência teatral vivida por este grupo. E desfrutam de sua liberdade. Esta liberdade nos ensinou a dos nossos espetáculos, abrindo caminho para uma possível “dramaturgia sem literatura”, para um possível “teatro sem arquitetura” e um competente e confiável “ator sem papel”.

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Esse artigo se constituiu, originalmente, como parte do Capítulo III da dissertação Espaço e comicidade: a busca de uma definição para a linguagem do ator (Grupo Tá Na rua – 1981), por mim apresentada junto ao Mestrado em Teatro/

Ana Carneiro

UNIRIO, 1998.


Nascida em meio às festividades do Dia das Mães1, a primeira anotação

1. Apresentação no calçadão de compras de Madureira, subúrbio

de trabalho que se refere à Família Tá Na Rua, assim pontua seu aparecimento: Trabalhamos a mãe, que já tinha começado a surgir na terça-feira. Ana fazia a mãe; estava

do Rio de Janeiro, realizada na véspera do Dia das Mães – 09 maio 1981.

nesse momento se reintegrando no trabalho. Ana tinha se afastado para parir Thiago. Tivemos o canal de passagem pela maternidade, mas tivemos de separar Ana-mãe do Thiago e Ana-atriz do grupo — que faz o papel da mãe da família. E foi muito rico. Aproveitávamos a proximidade do Dia das Mães e fazíamos essa discussão, nos preparando para a rua. De repente Amir falou de não ser uma família e de ser uma família, e pintou uma família, a família do circo. E descobrimos que tínhamos agora três níveis de trabalho no nosso circo – a família, a companhia e o grupo que as apresenta. Foi muito bom e era novo, alguma coisa nova na nossa prática. Nos sentíamos agora em contato com o novo que estávamos trabalhando há semanas e que ainda não tinha fluído inteiro2. Algo maior do que um número estava sendo criado; brincar com a estrutura familiar, definir os papéis que cada um ocupava nessa família, possibilita, pela primeira vez, um olhar distanciado de questões que dizem respeito à sua própria organização, relações, afetos. Mais uma vez, o grupo lança mão de sua própria linguagem — a linguagem carnavalizadora que conquistara no contato com a rua, com um público extremamente popular, e que o tornara capaz de olhar com humor e ironia os dramas do cotidiano, de brincar com o lado cruel da vida e seu constante movimento — para tratar de suas próprias questões.

2. Anotação de apresentação. Madureira, Rio de Janeiro (RJ),09 maio 1981. Acervo Tá Na Rua


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} O Tá Na Rua apresenta:

É interessante percebermos que, na tentativa de reconhecer sua própria organização, o grupo se refere ao circo — sua estrutura em aberto, com apresentações constituídas por números isolados que, no final, resultam num único espetáculo, com a organização de trabalho de seus membros sendo muitas vezes permeada por relações familiares, é a que mais se aproxima daquela que o grupo vem desenvolvendo e se soma aos aspectos lúdicos, populares e festivos presentes em sua linguagem. Ao mesmo tempo que permite a organização de uma árvore genealógica da família, que reflete com transparência a organização interna e as relações pessoais no coletivo, o trabalho sobre a família Tá Na Rua permite também a estruturação da pirâmide de poder que rege a companhia do circo. Assim, Amir, o pai, é o chefe da Companhia, enquanto Ana, a mãe, é a dama central. Os filhos, numerosos, ocupam posições diferenciadas na companhia, determinadas por suas posições no espaço familiar. Artur, o primogênito, é o galã e deverá suceder o pai na chefia da Companhia. Rosa, a filha mais velha, é a atriz trágica; solteira, ajuda a mãe a cuidar dos filhos. Ricardo, o filho do meio, ama a mãe e defende o pai sempre que necessário; é o segundo ator da companhia. Lucy, a filha do meio, sempre nervosa; é a atriz dramática e está sempre arranjando namorados não bem vistos pela família. Sérgio, o filho mais novo, rebelde, é o jovem galã; Betina, a filha mais nova, é a ingênua da Companhia, e os irmãos brigam com qualquer rapaz que se aproxime dela. Marilena, a enteada, é cria da casa; filha do boto, foi trazida do Norte pelo pai; faz o papel da vamp. Dessa forma, o grupo elabora cenicamente sua estrutura e a insere teatralmente em suas apresentações. Na apresentação em Madureira (1981), o grupo, a família e a companhia se mesclam e se alternam, interferindo mutuamente nos espaços uns dos outros. As brigas entre os irmãos, as discussões entre o pai e a mãe, a todo momento, interrompem e impedem o desenvolvimento dos números da companhia. O pai, autoritário, reclama de tudo e de todos, o tempo inteiro; a mãe, sem voz diante daquele poder, não sabe o que fazer e chora, impotente. Nos poucos momentos em que a companhia consegue realizar um número completo, o pai, satisfeito, exibe os seus atores, a sua família. O grupo se percebe lidando com um momento importante de aprofundamento do trabalho, sobre o qual há necessidade de reflexão, de escrever, de elaborar e botar para fora com


A Família Tá Na Rua {

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profundidade. Há um crescimento geral, que precisa ser mais atentamente observado: Pela primeira vez sentimos que o trabalho foi de todo mundo, girando no [universo] de Copérnico. As órbitas abandonando o mundo de Ptolomeu. Era ainda o caos da explosão. Ainda estávamos mais para meteoritos, [do] que para planetas. Atingimos juntos o mesmo nível, na prática, no afeto. Uma passagem coletiva. No espetáculo, tudo (todos) era(m) integrado(s). O pai nunca consegue fazer o espetáculo [...] Amir na elaboração, se perguntava: “Foi pra isso que eu trabalhei vocês?” E ele mesmo se respondia: - “Foi”. O pai não sabia o que fazer com aquilo. O Amir sabia (a diferença entre os dois). As diferenças [entre as] nossas relações e as do núcleo da família nos [dão] distância no grupo [...] Trabalhando a contradição, criticamos a família, unimos o grupo [...] É a dialética do distanciamento. Quanto mais se aproxima, mais de distancia. Quente, forte, próximo de cada um; cada um inteiro, próximo de si mesmo, podendo trabalhar com distância3. O processo aqui iniciado foi aprofundado ao longo das preparações que se seguiram,

3. Anotação de apresentação. Madureira (Conclusão), Rio de Janeiro (RJ), 09 maio 1981.

levando o grupo a conversar sobre a necessidade de não tirar a força e importância da família, transformando-o apenas no número-da-família-que-briga. Essa preocupação é perceptível nas anotações de trabalho do grupo: É preciso ver que há camadas diferentes – tem o grupo (nós), tem o circo com seus atores (a companhia) e tem a família que faz essa companhia. Ela surge [...] desse jogo, podendo pintar ou não, mas sempre [...] dele. Se ela fica determinante, nos aprisiona. Além disso, é preciso ver que a família não pode enlouquecer, impedir que aconteça o espetáculo, porque tem interesses em conseguir trabalhar, da mesma forma que nós (grupo) temos os nossos interesses em conseguir fazer nosso trabalho [...] ...temos que lidar com isso para que não vire uma família, um ponto estratificado do nosso trabalho. Temos que ver que ela também está em movimento, para permitir que ela se transforme4.

4. Idem.

Mediante a reelaboração do trabalho, o grupo segue adiante na estruturação desse novo número, revendo dificuldades acontecidas em apresentações anteriores, tentando esclarecer sempre melhor seu conteúdo: o interesse da família em apresentar sua companhia, da mesma forma que o interesse do grupo em realizar o seu trabalho, é o que permite que todos sejam apresentados, que todos façam os seus números. Ao mesmo tempo, por meio da abertura possibilitada pela relação familiar, dá pra dar todos os toques [...], ajudando os atores a se soltarem5.

5. Anotação de apresentação. Largo do Machado, Rio de Janeiro (RJ), 17 maio 1981. Acervo Tá Na Rua.


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} O Tá Na Rua apresenta:

6. Referência a apresentações realizadas na Feira de São

Em outras apresentações6, os problemas percebidos dizem respeito à “dramaturgia” que vem

Cristóvão, Rio de Janeiro (RJ), 28

surgindo por intermédio da Família Tá Na Rua e que está prendendo os números ao

jun. 1981 e na Cinelândia, Rio de

subordiná-los às características dos personagens da família: filha mais velha, solteirona/

Janeiro (RJ), 03 jul. 1981.

mulher-que-sofre; filha do meio, nervosa/mulher-que-grita-rodopia-e-cai... Com isso, a apresentação está ficando muito no diálogo, na oralidade, no texto, o que fecha a roda, pois 7. Anotação de apresentação. Feira de São Cristóvão, Rio de

[o grupo] ocupa menos espaço, usa menos o corpo7.

Janeiro (RJ), 28 jun. 1981. Acervo

Assim, é preciso aprofundar a separação entre grupo e família, observar melhor suas

Tá Na Rua.

diferenças: ...aprofundar a discussão política da família, como isso atua [...] no grupo. Uma reflexão mais social, político-ideológica da família [...] temos de ver tudo isso em nós, para não repetirmos essas coisas dramaticamente [...] Ana ia descobrindo isso ontem, em São Cristóvão, quando trabalhava solta, sem se deixar prender pelo Thiago, pela mãe que ela tem e que está indo à luta, trabalhar. Percebendo essas diferenças, sacando o papel dessa mulher: sem vida própria, presa pela família; vendo a relação dessa mulher com o marido. Primeira vez que apareceu mais essa relação, marido-mulher; antes era só a mãe dos

8. Idem.

filhos e não a esposa/mulher do marido8.


A Família Tá Na Rua {

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É evidente, no conjunto dessas observações, o aprofundamento contínuo que a Família Tá Na Rua, da mesma forma que os outros números, sofre ao longo do trabalho. Não há, nunca, um número considerado “pronto”; eles estão sempre “em processo”, “em aberto”. E, de modo bastante perceptível também, esse aprofundamento se dá sempre no sentido do social, do político-ideológico, de modo a inserir suas discussões no contexto da comunidade em que o grupo se apresenta, na realidade do país e do mundo. É esse mergulho que leva os atores a se distanciarem de seus personagens, ao mesmo tempo em que estabelece a contemporaneidade do trabalho, constituindo-o enquanto um trabalho que busca ser capaz de viver as contradições de seu tempo, acompanhar os acontecimentos, estar em contato com o tempo que se está vivendo e que é um tempo de transformação9.

9. Anotação de apresentação. Largo da Carioca (preparação), Rio de Janeiro (RJ), 15 jul. 1981.

Comentário [atual] de Amir Haddad

Acervo Tá Na Rua

Este texto é muito interessante, pois de uma maneira ou de outra, tudo está nele. Tudo o que está aqui se atualiza com o passar do tempo, dada a sua suscetibilidade às transformações sutis da realidade. Assim, ao somarmos as idéias, poderemos entender como se constrói, talvez, o Circo Etéreo e a sua função.


MORRER PELA PÁTRIA: 1984 - o período villa-lobos Texto de Carlos Cavaco, escrito em 1936. Baseado na ideologia integralista, vertente brasileira do nazifascismo atuante na década de 30, o texto discute a suposta “ameaça comunista” que pairava sobre o Brasil a partir da perspectiva de uma família de classe média. Este texto foi um material fundamental na pesquisa empreendida por Amir Haddad desde a década de 70, visando o desmonte da linguagem teatral tradicional e das estruturas autoritárias reproduzidas pelos coletivos de trabalho. Morrer pela Pátria foi encenado pelo Tá Na Rua em 1984,

Marcelo Bragança

no Teatro Villa–Lobos do Rio de Janeiro.


De repente, os temas político-militares que sacudiram o país nas décadas de 20 e de 30 voltam à tona com uma força inaudita, como se o seu tempo e a sua importância necessitassem ser resgatados para a memória nacional; mas redimensionados, distantes do maniqueísmo e da impostura de qualquer imprensa vendida ao sistema e comparsa incondicional de uma pequena minoria privilegiada, no que tange a manter intactos e perenes os valores que só aviltam na verdade e a nação como um todo.


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} O Tá Na Rua apresenta:

A falta de informação é a mãe da ignorância; a deturpação da informação, sua tia solteirona e antipática; o menos informado, além de leigo, torna-se alienado dos valores mais decentes e viáveis para uma existência sadia e útil. A bem dizer da verdade, alienados não são somente os que caem à margem do jogo das decisões; muitas figuras ditas proeminentes e consideradas como verdadeiros heróis, hoje, à luz do distanciamento histórico, muitas vezes parecem não ter passado de loucos apaixonados, almofadinhas românticos, cruéis sanguinários, fanáticos e doentes morais. A história oficial, verdadeira bíblia do latifúndio e da espoliação, os ‘pinta’, no entanto, e desde a mais tenra infância, como exemplos dignos a serem seguidos por nós todos e por nossos filhos, com a maior devoção e carinho. A verdadeira história do conglomerado das gentes que povoaram este país e que tenta, desde então, viver em condições justas mínimas que sejam, é abafada pelos cravos das botas dos herdeiros dos “heróis pátrios”, cujo maior mérito é o de manter acuado todo o povo, enquanto o estrangeiro rouba e se diverte e nos impõe a peja do ser superior. Entre covardes e heróis, parece existir um imenso abismo e é, este, o termômetro do valor dos caracteres humanos. Ao que parece, a atual busca de uma melhor compreensão dos fatos ocorridos nos anos 20 e 30 passa por este mesmo abismo, onde muitos dos considerados heróis e defensores da ordem moral e pública já caíram de seus pedestais, enquanto que outros nomes que se arrastavam na lama tidos como bandidos, traidores, covardes e etc... reerguem-se para ocupar, na nossa memória, o lugar que lhes é devido. Um romantismo típico das Forças Armadas brasileiras é o de querer considerar que só dela partiram os grandes ideais que “emanciparam o Brasil”; que só de suas fileiras saíram os verdadeiros heróis pátrios, oitenta por cento dos nossos monumentos foram erguidos em homenagem a militares, a outra metade são estátuas eqüestres. Um povo sem cultura é como uma árvore sem raiz, alguém já disse isto e eu aprovo. Um povo sem memória é desmemoriado, mesmo. Logo, um povo à mercê dos que têm memória e sabem como usá-la em detrimento do esforço alheio... Ou o homem não é um predador de si mesmo?


Morrer pela Pátria {

Bem, nisso tudo, o que nos interessa é saber qual papel nos cabe ou caberá diante das mesmíssimas questões. Se as consideraremos banais e ultrapassadas, se não nos dizem respeito, se os atuais valores impostos já nos são suficientes e dignos de serem assimilados, ou pelo menos não ultrajados, ou se ainda quisermos ultrajá-los ou desmitificá-los, corremos um risco sério em nossa integridade física. Enfim, o que nos interessa debater ou inquirir sobre este tema? Por que MORRER PELA PÁTRIA? Quem está interessado na possível profundidade do seu tema? E por que ela não se amplia? Por que o debate não se aclara e nem se incendeia? Ao travarmos uma batalha com um inimigo hipotético, podemos usar armas reais ou hipotéticas, mas quando nos deparamos com um desafio real, tal desafio não pode ser jamais encarado de forma abstrata. É evidente que o clima político não se impõe, mas se estabelece, no mínimo pela sua insuflação, pelo estímulo e é só a partir daí é que se pode estabelecer um clima de compreensão suficientemente sério para o entendimento do papel que cada um tem, teve, ou terá com o tema que a obra propõe. E do que estamos falando agora, senão da peça do escritor Carlos Cavaco, obra escrita bem em cima dos acontecimentos dos idos de trinta, quando da Intentona Comunista, um retrato fiel da classe média, e um rompante manifesto ‘nacional socialista’? No mínimo, foi na verdade uma tentativa patética de exprimir, através do teatro, uma idéia que era consenso dentro de grande parte dos pobres intelectuais brasileiros: a de que os comunistas eram verdadeiros monstros, bárbaros, selvagens e que o povo do Brasil - por eles só reconhecido entre os de classe média - estava ameaçado por esta peste intransigente inútil e covarde, necessitando reagir e convocar todos os seus jovens e heróicos rebentos para defenderem a honra de seus lares, a pureza de suas irmãs, a grandeza de seus pais e o destino de seu país. Isto é, algo de muito explícito. Para quem quer que tenha bom senso em certa dose e um dia pegue o texto e o leia, estas imagens logo saltarão aos olhos e fatalmente nos levarão da perplexidade ao riso, mas quando se redimensionar essas imagens, o que é que irá ocorrer? Que identificações

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} O Tá Na Rua apresenta:

surgirão? Quais forçosas comparações hão de ser feitas ou desprezadas? O que pensava um cidadão da classe média em 1935? E o que ele pensa hoje? Qual o melhor público, ou seja, o mais interessado em discutir esses problemas? Daí a necessidade premente de uma revisão do texto para 1984, o que seria talvez um desgaste ou transtorno para um grupo de teatro que sofreu e se divertiu anos a fio com o referido texto, questionamento este que o levou até onde chegou, passando por centenas de praças e ruas do Rio de Janeiro e até mesmo do Brasil inteiro. Vislumbro um impasse, um desafio seguro, que não sei dizer se consciente ou não, mas que existe e é irônico: se, na verdade, este texto provocou uma reação inaudita no grupo dez anos atrás, hoje volta a fazê-lo e é um risco enorme considerá-lo superado, bem como também atribuir isso à escassez de recursos e às dificuldades acumuladas durante a sua montagem. É claro que um grupo que se separa todo dia, para a manutenção da sua própria condição e que depois, superando todo e qualquer cansaço, sobe ao palco com a mínima reserva de forças para o exercício da expressão que lhe cabe, não pode sair ileso de tal empreitada. Também é claro que a mesma montagem aconteceu em tempo recorde, e que o resultado, sob este aspecto, é sinceramente excelente. Mas isso não basta: urge uma reavaliação de todo o processo; urge também uma reavaliação da proposta, porque os compromissos com o sistema sempre tendem a nos fazer crer mais e mais que com talento e genialidade, se vai a lugar algum divulgando a exceção, incentivando o conhecimento ou, no mínimo, a melhoria da opinião pública... E de repente, sem nos darmos conta, rodamos em círculo feito os perdidos no deserto, e só conseguimos ter a nossa expressão realizada nos oásis dos nossos sonhos, que são sempre, miragens...


Comentário [atual] de Amir Haddad

Morrer pela Pátria {

Texto produzido pelo então ator do grupo Tá Na Rua, o excelente Marcelo Bragança, quando o grupo se propôs executar a difícil tarefa de encenar Morrer pela Pátria, texto básico para reflexões suas sobre a construção de uma linguagem democrática, justamente pelo fato de ser, a peça, o contrário disto. Ou seja, um panfleto aberto de propaganda do pensamento mais conservador e reacionário do Brasil da primeira metade do século XX, solicitando ao governo rigor no combate a infiltração de qualquer modernidade na vida brasileira, quer fosse a Universidade (a Sociologia), os costumes (o cinema, mulheres que fumavam) ou políticas (“infiltrações” ideológicas exógenas no Exército e na vida pública brasileira). Das lutas para desvencilhar-se das amarras éticas/estéticas desta camisa-de-força ideológica, nasceu a vocação histórica eterna e libertária que iria caracterizar o Tá Na Rua e o seu teatro nos espaços abertos. O nosso projeto inicial, então em andamento, era encenar Espelho na Carne, de Vicente Pereira. Mas no último momento, o autor retirou a autorização para a encenação, alegando decurso do prazo estipulado para tal. Era verdade, mas ele não quis renová-lo. Ninguém nunca mais se interessou por fazer sua peça. Que permanece até hoje inédita. Foi adaptada para o cinema, mas não aconteceu. E é boa!

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Grupo Tรก Na Rua

IRAILDES ou A MOร A QUE BEIJOU O JUMENTO


Baseado em texto do cordelista Dílson Silva, este espetáculo é representativo das pesquisas do Tá Na Rua sobre as possíveis dramaturgias para espaços abertos. Com um humor popular, o texto discute as relações entre a cultura popular e a cultura de massa, a partir da história de uma moça que beijou um jumento, pensando que era o cantor Roberto Carlos. Este texto compõe o material de pesquisas do grupo desde a sua formação, em 1980.

Comentário [atual] de Amir Haddad

PENSANDO QUE ERA ROBERTO CARLOS

É a questão do castigo recebido pela moça que recusava a própria cultura. O mergulho nessa história se deu no momento em que o Tá Na Rua se interiorizava, para poder se conhecer. O desmonte de várias amarras afetivas e ideológicas dentro de cada um de nós, através de nossas penosas experiências (no sentido amoroso) e realizadas pelo Grupo de Niterói com um panfleto de direita, uma peça chamada Morrer pela Pátria, acabou por nos revelar uma possível liberdade de afetos e sentimentos, e capacidade lúdica surpreendentes. A isso, na época, nós chamamos de um “resgate do popular dentro de cada um de nós”. Rompidos os nossos laços de identificação com os valores ideológicos deste folheto (incluídos, aí, os afetos), o que aconteceu a seguir foi uma maravilhosa manifestação de liberdade “popular” de dentro para fora. O texto de Morrer pela Pátria já não servia para os nossos objetivos. Fomos surpreendidos pela novidade: oprimido pela aridez afetiva daquele texto, fluía, subterrâneo dentro de nós, um mundo de novas possibilidades. Tínhamos, agora, que testar o oposto. Um novo texto. Outra linguagem. E em nossa opinião, o oposto àquela literatura, era a de cordel. Tínhamos, agora, que experimentar novas fluências afetivas, com os sentimentos possíveis que tínhamos descoberto. Daí a escolha de Iraildes. Na literatura de cordel, trata-se da questão da identidade e o preço que se paga, por não se manter em sua direção. A protagonista nega a sua cultura, e acaba perseguida por um jumento. A representação maior de tudo o que ela queria negar. O texto foi apropriado, e na hora certa serviu-nos para dar passagem a sentimentos novos e à continuidade de nossas investigações sobre o trabalho do ator. Um outro mundo se revelava a nós, sem limites. O mundo da narrativa e do pensamento épico.


Grupo Tรก Na Rua


PRÓLOGO

O SONHO (ele) A REALIDADE (ela) Eu sonhei que tu estavas tão linda Último desejo (Lamartine Babo/Francisco Mattoso) (Noel Rosa)

Eu sonhei que tu estavas tão linda Nosso amor que eu não esqueço numa festa de raro esplendor e que teve o seu começo teu vestido de baile, lembro ainda, numa festa de São João era branco, todo branco, meu amor morre hoje sem foguetes sem retrato e sem bilhete A orquestra tocou uma valsa dolente sem luar, sem violão. preso em teus braços, fomos dançando, ambos silentes Perto de você, me calo e os pares que rodeavam entre nós tudo penso, nada falo diziam coisas, tenho medo de chorar trocavam juras à meia-voz. Nunca mais quero teus beijos mas meu último desejo Violinos enchiam o ar de emoções você não pode negar: e de desejos, uma centena de corações se alguma pessoa amiga pedir que você lhe diga Pra despertar teu ciúme se você me quer, ou não tentei flertar alguém diga que você me adora mas tu não flertaste ninguém que você lamenta e chora a nossa separação. Olhavas só para mim E às pessoas que eu detesto vitórias de amor cantei, diga sempre que eu não presto mas foi tudo um sonho, que o meu lar é um botequim acordei. E que eu arruinei sua vida que eu não mereço a comida que você pagou pra mim.


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} O Tá Na Rua apresenta:

A história de um casal que, no momento da separação, volta ao passado e revive tudo o que foi vivido, quando juntos. Cada um tem a sua versão particular, e do confronto entre ambas nasce o espetáculo. O homem apresenta a sua versão, falando dos seus sonhos de amar e da felicidade que esperava ter ao lado dela. Sonhava com um lar feliz e pacífico, onde pudessem ter filhos, amando eternamente como haviam jurado um dia. Esses sonhos eram os melhores possíveis, mas eram apenas ilusões, pois a mulher a quem amara e que lhe jurara felicidade pôs tudo a perder, traindo-o covarde e inexplicavelmente. Diante de tão graves acusações, a mulher se defende e lembra o quanto o amara um dia, porém, ele não soubera compreender, e nem corresponder, a esse tão fiel e grande amor. Que culpa deveria carregar por causa da omissão dele, do abandono e do desamor que acabou por surgir entre os dois? O diálogo entre os dois “oponentes” se dá basicamente por meio músicas do cancioneiro popular que compõem um panorama do complexo universo das relações entre homens e mulheres. O espetáculo não segue uma linguagem tradicional do que comumente chamamos de texto teatral. As músicas de seu repertório compõem o texto básico, que sempre e invariavelmente é enriquecido pela participação do público e pelos comentários que surgem a partir dessas intervenções. É, portanto, um espetáculo aberto, uma autêntica ópera popular, cujo final é resolvido pelo espectador. O espetáculo se desenrola como uma verdadeira batalha, com áreas delimitadas: de um lado, os homens, do outro as mulheres. Travando incansavelmente uma luta onde se confrontam valores como honra x traição, juramento x perjuros, sonho e desilusão. O conflito inicia no centro do espaço cênico e se espalha por toda a platéia. Enquanto um par de atores atua como protagonistas, os demais ilustram a ação com movimentos corporais, formando imagens que revelam as situações sugeridas nas canções. Homens e mulheres – a ópera é um dos espetáculos mais significativos do repertório desenvolvido pelo Tá Na Rua, criado em 1985 com o título original de Masculino e Feminino, e remontado em 1999 para representar o teatro brasileiro no XII Festival de Teatro Experimental do Cairo (Egito).


Comentário [atual] de Amir Haddad

Homens e Mulheres - A Ópera {

Desde a sua fundação, o grupo Tá Na Rua se preocupa mais com as questões ideológicas lato sensu do que com as políticas stricto sensu. Nunca fizemos teatro de militância, política ou ideológica, o que muitas vezes, aos olhos de muitos, pareceu indiferença. Estávamos, porém, mais preocupados com a linguagem do que com a mensagem. Há tempos o grupo Tá Na Rua já fazia experiências de narrativas dramáticas, a partir de letras de músicas e revelando, através de suas imagens, a realidade que os sentimentos melódicos pareciam ocultar, e os conteúdos ideológicos presentes nesta maneira de sentir e viver o mundo. Assim, Deus, Pátria, Família, racismo e ideologia, opressão e pobreza, brancos e negros, homens e mulheres, e as relações que estes estabelecem no mundo em que vivem passaram a ser os principais temas de nossas encenações. Como é Homens e Mulheres, espetáculo a que chamamos “ópera”, por ser totalmente encenado a partir do canto. A nossa primeira e definitiva incursão neste sentido se dá com Coração Materno, de Gilda de Abreu e Vicente Celestino. Daí à “Ópera” foi uma questão de tempo. Montamos o roteiro apenas com canções - clássicos da música popular brasileira – que são do conhecimento de todos, de propriedade coletiva, sentimento da nação. Dramaturgia de ressonância comunitária, histórias do imaginário nacional, narradas através de canções, apropriada para os espaços abertos. A questão do relacionamento entre homens e mulheres, em nosso mundo latino, já havia sido abordada no espetáculo Masculino e Feminino, para sala fechada em arena, no caso o Teatro Cacilda Becker. Mas, o momento culminante de nossas apresentações, já com Homens e Mulheres – A Ópera, foi a encenação realizada no Largo da Carioca, Rio de Janeiro, em espetáculo conjunto com o Circo de Moscou, então de visita à cidade.

189


de Wilson Sayão

A S A C A UM , A R I E L I BRAS a z e t r e c com

Com ensaio aberto a partir de 27 de março e estréia marcada para 03 de abril, o Tá na Rua, sob direção de Amir Haddad, comemora seus dez anos de teatro de rua

Gambarini Camargo

no mais recente palco italiano da cidade. “Uma casa brasileira, com certeza nos interessa como um todo, embora cada cena isolada configure um texto fechado e completo. Interessa ao grupo discutir as dificuldades dos seres humanos, ricos, criativos, apaixonados e férteis, num mundo


estéril, fechado, preso por ideologias. Queremos falar do mal que isto faz a todos, como isso maltrata as pessoas, sejam ricas ou pobres. Antes de falar de classes, a peça fala de seres humanos que não conseguem escapar dos papéis que lhes foram reservados socialmente” explica Amir Haddad. Apesar da dramaticidade desta situação, Uma casa brasileira, com certeza tem singeleza e muito humor. A emoção dos personagens transparece, assim como o absurdo de suas vidas. Um dos motivos que determinou a escolha do texto de Wilson Sayão nesta montagem é o fato de o autor escrever com o palco italiano em mente. Especificamente, as cenas apresentadas lidam com dois atores por vez, o que se adapta perfeitamente a um teatro pequeno como o do Centro Cultural Banco do Brasil. O Tá Na Rua trabalha em grandes espaços, espaços abertos. Com Sayão, o grupo buscou uma dramaturgia que não aumentasse essa contradição. E Marco Antonio Palmeira, responsável pela cenografia e pelos figurinos do espetáculo, solucionou essa “pororoca”, como ele definiu o encontro do Tá Na Rua com um espaço tradicional e pequeno: (...) “vamos mostrar a caixa do palco até o fundo, vamos tirar todos os reguladores de espaço. Haverá intervenção cenográfica tanto no hall quanto na platéia e no palco”. Quanto a Wilson Sayão, pode-se afirmar que possui qualidades literárias amplamente reconhecidas em um sem-número de concursos ganhos e vários prêmios de dramaturgia, mas que sua qualidade teatral é ainda parcamente reconhecida, já que foi muito pouco encenado. Segundo Amir Haddad, isto acontece porque o teatro brasileiro não sabe fazer uma leitura correta dele: “Falta investigação no nosso teatro. Ou se faz vanguarda da moda, ou século XIX. Um autor que oferece um certo nível de dificuldade, como o Sayão faz - pois ele escreve o que quer, obedecendo apenas à sua vontade dramatúrgica – acaba sendo reconhecido intelectualmente, mas maldito teatralmente. Às vezes, fico pensando que seria bom ficar fazendo experiências formais. Já fui muito ligado nessa coisa toda. Hoje não consigo virar as costas e ficar fazendo só isso, como se o país não existisse. Tenho que produzir um espetáculo que tenha a ver com o mundo em que vivo, senão é pura esquizofrenia”, afirma o diretor. Comentário [atual] de Amir Haddad Wilson Sayão foi um autor que sempre interessou aos nossos propósitos. Escritor de exceção dentro do panorama teatral brasileiro. Sayão nunca teve, ao nosso ver, uma encenação à altura da novidade que sua dramaturgia trazia, fora dos modismos políticos ou da alienação da época. Com a “Casa Brasileira” ele ganhou o prêmio Shell de melhor autor do ano, o que abriu espaço para que outros diretores e/ou atores se interessassem por ele. Mas os espetáculos não conseguiram expressar todas as suas qualidades. A “Casa” foi o último grande espetáculo de palco do grupo Tá Na Rua.


FEBEAPÁ: a realidade brasileira

Sérgio Porto foi um crítico ferino de sua época. Não um desses críticos ácidos e amargurados de porta de botequim, mas um do tipo participante, trabalhando sempre muito, quase demais. Não contente em ser um contista e memorialista de mão cheia (autor dos livros As cariocas e A casa demolida), foi redator e apresentador de tv, compositor (O samba do crioulo doido é sua música mais conhecida), jornalista e – em tudo que fazia, mas também especificamente – cronista. Para assinar suas crônicas, criou, logo depois do golpe militar de 1964, um pseudônimo que acabou ficando mais

Grupo Tá Na Rua

famoso que ele mesmo: Stanislaw Ponte Preta.


Foi como Stanislaw que Sérgio Porto coligiu, nos primeiros anos da “redentora”, os casos que formaram o Festival de besteiras que assola o país ou, em homenagem aos tecnocratas que chegavam com suas siglas pavorosas, o FEBEAPÁ. Sérgio escrevia como se estivesse batendo papo na rua Miguel Lemos, então o centro de uma certa boemia inteligente de Copacabana, lugar onde morou por 45 anos, que conseguiu viver antes que o terceiro infarto o levasse, no dia 30 de setembro de 1968 - alguns meses antes que fosse assinado o Ato Institucional nº 5 - que não teve graça nenhuma. Os livros que assinou como Stanislaw estão todos em catálogo e podem ser encontrados com facilidade em qualquer livraria. Vinte e cinco anos depois de sua morte, eles continuam engraçados e atuais. Esta atualidade lancinante levou o grupo Tá Na Rua a selecionar algumas de suas crônicas que contam casos reais e outras que contam casos inventados, mas não menos verdadeiros. Com estas narrativas, montou dois espetáculos de rua diferentes e complementares, que unem teatro e carnaval, respeito ao autor e desrespeito com o texto (ainda que todas as palavras que Sérgio/ Stanislaw escolheu estejam lá). O Tá Na Rua surgiu há 16 anos no Rio de Janeiro, abrindo caminho para o hoje fértil e heterogêneo teatro de rua brasileiro. A característica principal do grupo é o contato direto e sem frescura com o público, olho a olho, de coração para coração. Daí, para o improviso, é um passo que o Tá Na Rua dá feliz da vida, interagindo com a platéia, aceitando suas opiniões e freqüentemente inserindo-a no acontecimento teatral, seja como argumentista, autora, seja mesmo como elenco. Continho Realista , O Inferninho e o Gervásio, O General Taí, Transporta o Céu para o Chão, Diálogo de Festas e Inferno Nacional são as crônicas que, entremeadas por casos autênticos de idiotices profundas dos militares e seus seguidores, fazem as duas versões de O Festival de Besteiras que Assola o País. Dois espetáculos divertidos e políticos, de uma simplicidade aterradora neste tempo de tantas mensagens cifradas e tantas private jokes que habitam o teatro brasileiro.

........................................................................................................... Informe o seu público. Ele vai gostar de ver atores que não se acham deuses, assistir histórias que são o que são e ouvir músicas que são canções. Um teatro cuja principal proposta é: chegue mais perto, estamos todos no mesmo barco. Ou não estamos?


PRA QUE SERVEM OS A idéia de desenvolver uma dramaturgia própria para o teatro de rua é uma das metas que fundamentam nossa pesquisa de desenvolvimento de um teatro que trabalhe para o presente, buscando um outro futuro. Nesses anos de trabalho — já lá se vão quinze — desenvolvemos inúmeras cenas apropriadas ao contato direto e à possibilidade de participação efetiva do público em nosso teatro. A temática social, a injustiça com as minorias, a indiferença das elites, as relações entre homens e mulheres, o colonialismo cultural, sempre foram abordados encontrando-se neles fértil terreno no consciente e no inconsciente coletivos, e resultando em intensa, surpreendente e reveladora manifestação do público em nossas encenações. Há alguns anos, percebemos que o conhecimento acumulado através de uma teimosa opção preferencial por um teatro popular nos havia capacitado a empreender e a participar de grandes manifestações, onde a cultura do povo encontrasse espaço e voz. Realizamos bemsucedidas festas populares, na re-inauguração do Teatro José de Alencar, em Fortaleza, e no Centro Cultural Banco do Brasil, em comemoração ao seu segundo aniversário. A tentativa de fazer confluir essas duas tendências — uma investigação minuciosa das forças de expressão popular em nossas pequenas e animadas rodas de teatro de rua e sua contrapartida espetacular nas grandes manifestações e expressões da cultura popular — levou-nos ao atual projeto de Pra que servem Os Pobres? Consideramos ser este, dentro de nosso extenso processo de investigação de novas linguagens expressivas, o momento apropriado para o deslanche de um projeto que temos alentado para o desenvolvimento de uma dramaturgia de rua, o qual pretende desenvolver

Grupo Tá Na Rua

uma dramaturgia específica para espaços abertos, a partir da análise dos elementos apresentados pelo sociólogo americano Herbert Gans, sobre o papel dos pobres nas sociedades capitalistas modernas, através de apresentações na rua.

?

pobres


Comentário [atual] de Amir Haddad

As derrotas sucessivas de Brizola e Lula, os efeitos do Plano Collor, os anos seguidos de “neoliberalismo”, desmontaram de tal maneira o sentimento de esperança do povo brasileiro de se ver representado politicamente depois da “queda” da ditadura e da constituinte de 1988, que tivemos que suspender as nossas apresentações deste espetáculo. A revelação de que, sem pobreza, o sistema capitalista não poderia sobreviver, devido à importante função que exerce na estrutura do sistema, era cruel demais para o momento que o país estava vivendo. Além disso, o Plano Real trazia a ilusão de prosperidade, mas esbarrava nos princípios “não-assistencialistas” neo-liberais. Porém, o empobrecimento do país, ocorrido no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, se encarregou de fazer o espetáculo novamente necessário. Já nos preparávamos para reencená-lo quando, finalmente, Lula foi eleito. Achamos, então, que o momento exigia uma reflexão mais positiva sobre o nosso passado: lembrar para não acontecer novamente! Abandonamos “... os pobres” e montamos Dar Não Dói, o Que Dói é Resistir, uma revista histórica do Brasil, de 1964 até o final da ditadura e a conquista do voto direto. O espetáculo “atuou” durante todo o primeiro mandato do presidente Lula, e o medo e o alerta que ele expressava e fazia de uma possível volta violenta do pensamento conservador brasileiro revelavam sua atualidade. Agora, com a retomada do crescimento econômico e fortalecimento democrático, podemos voltar a falar da função da pobreza na economia, pois há novamente esperança no ar. Um esclarecimento: o texto de Herbert Ganz, sobre a “função da pobreza” no capitalismo é o de um sociólogo conservador. Não escrevemos, a partir dele, uma adaptação. Nós o encenamos como estava escrito. Só o Tá Na Rua, com sua liberdade e consciência política, poderia fazer isto. Encenar o pensamento de um sociólogo de direita, como também o do autor de Morrer pela Pátria, transformando-o em um grande espetáculo de rua. Com Pra Que Servem os Pobres? vivemos duas experiências intensas que colocaram, para nós, as profundas relações entre Teatro e Arquitetura. A primeira foi a da apresentação realizada na praça em frente ao principal teatro da cidade, durante o Festival de Teatro Iberoamericano de Cadiz, na Espanha, no ano de 1992. Uma platéia formada por atores, grupos e espetáculos de todas as partes do mundo, assistiu indiferente. Nossa capacidade de jogo, diante de uma platéia - vamos dizer, especializada - diminuiu fantasticamente. Não conseguimos, naquela praça, romper a barreira do Teatro, representado ali pelo edifício imponente, onde se davam as grandes e solenes apresentações do evento. Sucumbimos. Inesquecível. A outra foi a da apresentação no Encuentro de Teatro Popular Latinoamericano (ENTEPOLA), no Chile, em 1998, realizada em um estádio esportivo para 5.000 espectadores ululantes. Os chilenos são politizados e participantes, e o espetáculo extremamente provocador. Também inesquecível.


CABARÉ uma casa de

A Lapa manteve, ao longo desses anos, mesmo com o processo de deteriorização física que sofreu, a sua vocação boêmia que sempre seduziu malandros e otários, turistas e travestis, políticos e secretárias, estudantes e intelectuais. Bares, boates, restaurantes, casas de shows, camelôs e o poético vai-evem do bondinho sobre os Arcos continuam colorindo e iluminando a paisagem noturna do bairro e dando vida aos seus personagens, inundando de

Licko Turle

fantasias os seus ilustres visitantes.


TÁ NA RUA diversões Na Lapa, “onde tanto valente morreu, onde tanto malandro viveu” moraram e viveram Di Cavalcanti, Manoel Bandeira, Carmem Miranda, Vicente Celestino, Madame Satã, Mário de Andrade, Moreira da Silva, Antônio Maria, Cecília Meireles... Iniciaram suas carreiras, Cazuza, Paralamas do Sucesso, Blitz, Ed Motta, Legião Urbana e tantos outros. Chico Buarque, Caetano Veloso, Tim Maia, James Taylor, Gilberto Gil, já se apresentaram no “cabaré” Circo Voador que, infelizmente, se encontra interditado pela Prefeitura. “A Lapa tá voltando a ser a Lapa...” nela existe, desde 1993, o projeto estadual “Quadra da Cultura”, implantado em seis sobrados do início do século, na Avenida Mem de Sá. Entre os novos ocupantes estão Amir Haddad e o Grupo Tá na Rua, Augusto Boal e o Centro de Teatro do Oprimido, Aderbal Freire Filho e o Centro de Demolição e Construção do Espetáculo, o Grupo Hombú de Teatro para a Infância e Adolescência. O Espaço Cultural Casa do Tá Na Rua, mesmo sem ter conseguido recursos financeiros ou patrocínio para sua reforma e adaptação, vem se destacando na mídia, devido à sua irreverente programação. É uma mistura de teatro, centro cultural, bar e cabaré dos anos 90 que se tranformou no ponto de encontro da classe teatral. Nele já aconteceram dezenas de shows, festivais de teatro, temporadas populares, exposições, cursos e projetos de socialização com meninos e meninas de rua, através da arte.


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} O Tá Na Rua apresenta:

O Cabaré O Cabaré Tá na Rua pretende ser uma homenagem bem humorada e irreverente à Lapa de ontem e de hoje, imaginando a Lapa de amanhã, fazendo uma leitura contemporânea de suas histórias, da história e da cultura que fez e faz a fama do bairro mais boêmio e interessante da cidade. Os cabarés Danúbio Azul, Leiteria Bol, Novo México, Azteca, Casanova, os dancings Avenida, Brasil, Cruzeiro, Café Nice, Café Indígena; a Pensão Imperial, o Bar Apolo, o Bilhar Palácio, a Gafieira Asa Branca, o Circo Voador, a Fundição Progresso, os Arcos da Velha, e seus respectivos freqüentadores são lembrados e citados no espetáculo. A primeira parte apresenta a Lapa de 1909 a 1930. Cantam Donga, Chiquinha Gonzaga, Pixinguinha, fazendo a ambientação sonora. Os atores recebem, com total elegância, os clientes. O convite “façam o seu jogo” dá o tom. O garçom, a moça do cigarro, a cantora decadente e o salão de jogos climatizam o Cabaré. O pianista acompanha a cantora com os sucessos da época. Pequenas cenas explodem sobre o balcão do bar, nos banheiros e nas mesas, simultaneamente.


Cabaré Tá Na Rua {

A segunda parte do trabalho vem colorida com piadas e pequenos textos e esquetes de Stanislaw Ponte Preta, Mauro Rasi, Jean-Paul Sartre, e com poemas de Elisa Lucinda e Manoel Bandeira. Os atores entrevistam personalidades famosas e fazem críticas políticas sobre notícias e fatos importantes. As músicas são tangos, boleros, sambas, salsas e merengues, que o público canta e dança junto com os atores. O terceiro e último momento é metálico e tecnológico - a Lapa atual e suas festas mix, GLS, “das tribos”. O Cabaré se transporta para o Terceiro Milênio e as músicas antigas recebem arranjos e coreografias techno. A luz é estroboscópica e o ritmo também. É quando o Cabaré apresenta a sua atração da noite. O Cabaré Tá Na Rua é um cabaret teatral, com humor carioca, atual e crítico, que vem homenagear a todos (malandros e otários) que fizeram e fazem a história desta cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

Comentário (atual) de Licko Turle Este espetáculo teve a sua segunda montagem no ano de 2001, com o apoio da Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro, que financiou o projeto através de edital público. No elenco, alunos da Oficina de Formação e Desenvolvimento do ator, ministrada por Ana Carneiro e Licko Turle, que também assinaram a direção. A produção foi profissionalizada e o subtítulo, alterado para Salve a Lapa! Este texto ainda é utilizado como exercício nas oficinas e cursos do Instituto Tá Na Rua para as Artes, Educação e Cidadania, e faz parte do repertório do grupo.

199


Grupo Tรก Na Rua


Teatro é a arte de contar histórias através da representação. E há histórias que permanecem no imaginário coletivo de um povo, fazendo parte de sua bagagem cultural, de suas origens, de suas tradições – são os contos populares, os “causos”, os cordéis, os cantares. Em todos os tempos, vários foram os autores que lançaram mão dessas fontes, recriando-as de acordo com as necessidades e a visão de mundo de seu tempo e a sua própria em particular, de modo a dar-lhes um sentido mais amplo e universal. É na pretensão de trabalhar diretamente sobre esse material popular, tão generosamente abundante no imaginário de nosso povo, procurando despertar o interesse sobre essas histórias anônimas que o Tá Na Rua elabora esses espetáculos, mantendo a estrutura original do conto, em sua forma narrativa, teatralizando as imagens nele contidas.


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} O Tá Na Rua apresenta:

A REVOLTA DE SÃO JORGE COM OS INVASORES DA LUA, de Erotildes Miranda dos Santos, é um cordel que conta como o homem chegou até a Lua, e lá chegando encontrou São Jorge o Santo Guerreiro - que expulsa os três astronautas, debaixo de sermão e espada. Mas esses três homens, ao voltar para casa, contam somente a vitória e são aclamados como grandes heróis, por todo o povo da Terra. E São Jorge, no final dessa batalha, acaba contaminado por uma doença deixada pelo homem na Lua.


A Revolta de São Jorge contra os Invasores da Lua {

A partir desta história, que é parte da cultura popular religiosa brasileira, são abordadas questões fundamentais, como a poética fantasia de que “São Jorge mora na lua” e as contradições humanas: vitória X derrota; homem X natureza; conquista X destruição; verdade X mentira... É impressionante e maravilhosa a mescla de simplicidade desta forma narrativa com a complexidade de seu conteúdo. Portanto, o Tá Na Rua tem o imenso prazer e privilégio de estar encenando este cordel para o público,

Comentário [atual] de Amir Haddad

e sem dúvida contando com a benção de São Jorge, o Santo Guerreiro.

O espetáculo colocava 80 atores em cena, e trabalhava com grandes cortejos. A festa, a procissão das ruas encenada nas praças, como recurso dramático. O sagrado e o profano. Grandes espaços, grandes manifestações, como nas praças renascentistas, hoje vazias. Esta versão litúrgica da história, narrada pelo cordel, foi apresentada apenas por duas vezes, no Largo da Lapa, Rio de Janeiro. Merecia mais.

203


Licko Turle


Dar não dói... O que dói é resistir! - que passarei a grifar somente DND - foi um espetáculo construído e realizado pelo grupo de teatro Tá Na Rua, do Rio de Janeiro, e dirigido por Amir Haddad, entre junho de 2003 e dezembro de 2006. Tornou-se um marco referencial na história do grupo, que comemorou 25 anos em 2005; foi assistido por públicos diversos e por um grande número de pessoas, em distintos espaços do Rio de Janeiro, Brasil e exterior1; para seu diretor, representa a síntese das experimentações de uma possível dramaturgia para espaços abertos, em termos da concreção da linguagem teatral e das propostas ética e estética que o Tá Na Rua vem buscando desde 1980.

1. Rio de Janeiro-RJ, Campos dos Goytacazes-RJ, Campina GrandePB, Fortaleza-CE, Angra dos ReisRJ, Resende-RJ, São Paulo-SP, Jacareí-SP, São José dos Campos-

O projeto de encenação de DND não pode ser considerado populista ou panfletário, muito

SP, Nova Iguaçu-RJ, Paris-FRA.

menos uma provocação retrô, conforme uma leitura superficial do trabalho poderia sugerir e, sim, uma tentativa do grupo de buscar sua identidade e posicionamento dentro da conjuntura política nacional após a eleição de Luis Inácio Lula da Silva2. Naquele momento, Amir Haddad e o Tá Na Rua não sabiam exatamente qual seria o seu novo projeto teatral, uma vez que havia a expectativa e perspectiva de um governo popular. Isto caracterizava uma

2. Candidato do Partido dos Trabalhadores, vitorioso nas eleições presidenciais de outubro de 2002.

situação inédita para o grupo, que desde o início tivera muita facilidade para definir os temas de seus espetáculos3, quase sempre baseados na crítica social e política.

3. Auto de Natal Meu Caro Jumento, de Patativa do Assaré (1986 e 2006); A Revolta de São Jorge Contra os Invasores da Lua, de Erotildes Miranda dos Santos (2001); Cabaré Tá Na Rua – Salve a Lapa! (2001 e 2003); Auto de Natal Só a Verdade Salva, de Racine Santos; Pra Que Servem os Pobres?, de Herbert Ganz (1992 e 1998); FEBEAPÁ, de Sérgio Porto (1993 e 1995); A Mulher que Beijou o Jumento Pensando que era Roberto Carlos, de Dílson Silva (1982); Uma Casa Brasileira, com Certeza, de Wilson Sayão (1989); Homens e Mulheres – A Ópera, criação coletiva (1980 e 1999); Morrer pela Pátria, de Carlos Cavaco (1984); Coração Materno, improviso sobre a canção de Vicente Celestino (1981); A Família Tá Na Rua, criação coletiva (1981); As ‘Máscaras’ do Tá Na Rua, improviso coletivo (1981). (Acervo Tá Na Rua)


206

} O Tá Na Rua apresenta:

Segundo Amir Haddad, o Grupo Tá Na Rua “é um produto da contradição do Governo Médici”, no sentido de que os primórdios do pensamento deste coletivo já apareciam em 1974 no espetáculo Somma ou Os melhores anos de nossas vidas, que foi censurado pelo regime ditatorial (MOREIRA, 2007). Durante toda a sua existência, o grupo sempre buscou revelar os mecanismos cruéis do modelo sócio-econômico imposto ao país, principalmente ao longo da ditadura militar (1964-1984). Esta se estendeu até o re-estabelecimento das eleições diretas para presidente no Brasil (1989) e propiciou a eleição e re-eleição de dois 4. O presidente Collor sofreu o processo de impeachment e foi substituído, conforme rege a Constituição Brasileira, pelo

projetos neoliberais, personificados nos presidentes Fernando Collor de Mello (1990-1992)4 e Fernando Henrique Cardoso (1994-2002). Com a possível mudança política, social e econômica que era anunciada para a população

vice-presidente Itamar Franco até 1994. Fernando Henrique Cardoso foi seu Ministro da Fazenda e do Planejamento e criou o Plano Real que foi

brasileira e, sendo o Tá Na Rua um grupo artístico comprometido com as questões sociais, o DND nasce da necessidade dos seus integrantes (aqueles que faziam parte do coletivo no ano de 20035) de conhecerem a biografia do grupo e os processos que levaram à criação e

decisivo na sua eleição contra o então candidato Lula em 1993.

desenvolvimento da linguagem teatral por eles praticada.

5. Em 1980, é fundado o Tá Na

O processo de construção de DND por Amir Haddad e o grupo Tá Na Rua teve que levar em

Rua. Em 1992, saem alguns membros e novos atores e não-

conta esta possibilidade, levando posteriormente o espetáculo a encontrar uma estrutura

atores são integrados, formando

dramatúrgica que construiu, ao lado do roteiro teatral6, um outro ‘texto’ paralelo, através do

a 2ª geração. A partir da criação da Escola Carioca do Espetáculo Brasileiro e do Instituto Tá Na Rua para as Artes, Educação e Cidadania em 1999, surge a

qual foi apresentada a visão do próprio grupo sobre a ditadura militar no Brasil. Este texto não foi construído explicitamente, por palavras e discursos acrescentados, mas produzido por procedimentos e signos teatrais que criaram um efeito permanente de distanciamento

terceira geração, já oriunda dos cursos e oficinas ministradas pelo grupo.

entre esse fato histórico e os atores. Trata-se de um discurso mais ‘sonoro’ que verbal, revelado também nas atitudes corporais dos atores, na musicalidade, no tom das

6. Roteiro organizado pelo ator Alexandre Santini.

vocalizações, nos movimentos coletivos dos atores no espaço cênico. No Tá Na Rua, o material utilizado para construir o roteiro de DND foi um recorte da vida nacional, constituído por fatos relevantes ocorridos entre os anos de 1964 a 1984, transformados em narrativas dramáticas. Naquele período, a ditadura militar utilizou vários mecanismos para eliminar posições divergentes ao regime instalado. O principal deles foi construir um ‘texto oficial’ – o de um Brasil ideal – oferecido por meio de uma forte propaganda ufanista àquela geração de brasileiros, que trouxe conseqüências desastrosas na formação do seu pensamento. O projeto de DND trabalhou nesta perspectiva, mostrando como foi formado e forjado o povo brasileiro, contando a sua história, a sua odisséia. Assim como o povo português tem a sua trajetória belamente descrita em Os Lusíadas, DND

coloca no homem brasileiro comum

o seu protagonista. É sobre ele que o espetáculo deseja falar.


Dar não dói, o que dói é resistir: Uma síntese de 25 anos {

207

O processo de construção de DND A idéia inicial do grupo foi fazer um retrospecto do período (anos 70) dentro do qual havia emergido o próprio Tá Na Rua. Gradativamente, essa reflexão foi sendo ampliada para os anos anteriores, passando a englobar os questionamentos da Contracultura7, dos anos iniciais da década de 60, e as grandes tensões sociais geradas naquele contexto político do país e do mundo, que culminaram no Golpe Militar de 1964 e se intensificaram

7. “Disseminado principalmente a partir da década de 1960, o chamado movimento de contracultura teve no teatro um importante difusor do sentimento

dramaticamente no Ato Institucional nº 5, o chamado AI-5. Outro fator relevante que ampliou a pesquisa foi o fato de Amir Haddad ter iniciado sua carreira teatral no período anterior ao golpe militar e ter vivido o momento histórico pré-64.

de revolta contra as instituições que o inspiravam. Herdeiro da rebeldia das vanguardas no início do século, plantado no terreno irrigado pela cultura beat e insuflado pelos ares dos happenings e outras modalidades de livre expressão artística como a action pacting, embalado ao som do jazz e do rock, o teatro que se expande pelas ruas e em locais alternativos não apenas veicula valores que se opõe à tradição burguesa como rompe, também, com o modo dominante de produção teatral, inventando procedimentos coletivos de criação e definindo novas relações com o público (...) no teatro [brasileiro], o grupo Oficina inicia essa tendência, especialmente em sua fase de ruptura, quando José Celso Martinez Corrêa dá novo rumo à história do coletivo, mergulhando na experiência anárquica de Gracias, Señor” (GUINSBURG e outros, 2006, p. 95).


208

} O Tá Na Rua apresenta:

O processo de criação do espetáculo foi totalmente coletivo. A maioria dos atores e atrizes desconhecia os fatos ocorridos naquele período por serem muito jovens. Passaram a pesquisar e estudar documentos, livros, reportagens, filmes, músicas e o próprio acervo do 8. “O acervo Tá Na Rua (Acervo TNR) é composto por anotações de trabalho, dossiês, projetos, relatórios, escritos, releases,

Tá Na Rua8, somando todas essas novas informações com as que já sabiam ou julgavam conhecer sobre o tema. Os que tinham vivido situações reais ligadas à repressão que se instalou no país, e o sabiam por relato de parentes ou por fragmentos de lembranças,

books, reportagens, fotos, filmes S-8, vídeos, gravações de entrevistas em fita cassete e cartazes. Apesar de apresentar lacunas, esse material abrange

compartilhavam-nas com os demais. Assim, foi sendo tecida uma rede de conhecimentos diversos relacionados a uma época, muitos dos quais aparentemente não estabeleciam uma relação direta e unívoca com o golpe militar, mas que faziam parte de um intrincado enredo

praticamente todo o período da pesquisa realizada pelo grupo (de 1976 em diante). Recentemente, o acervo foi acrescido de material referente

onde estavam registrados os fatos mais significativos para toda uma geração. A dramaturgia de DND foi construída (talvez o melhor termo fosse ‘desenvolveu-se’) de maneira rizomática: a cada fato estudado, os atores iam improvisando e produzindo imagens

ao trabalho pessoal do coordenador do grupo, Amir Haddad, desde 1958: entrevistas publicadas, matérias jornalísticas, críticas, escritos, fotos e outros. Esse material também apresenta algumas lacunas. (...) A sede

cênicas que sintetizavam as idéias ali contidas. Os ensaios eram, portanto, momentos de criação/improvisação intensiva, e não de fixação de cenas já estabelecidas anteriormente. A cada encontro, os mesmos temas geravam improvisações novas, imprevisíveis, num movimento de criação aparentemente desordenado, mas cuja ordem interna ia se desenhando pouco a pouco, tecendo uma verdadeira trama de acontecimentos, tecidos de

administrativa do grupo TÁ NA RUA, que abriga o acervo, localiza-se, desde 1990, em espaço gentilmente cedido pelo então Inacem (Funarte), no

forma não necessariamente linear ou cronológica. Simultaneamente, foi sendo escrito um roteiro – um mapa rizomático da peça – que fazia o alinhavo dos fatos já num formato de narrativa, mantendo, contudo, as necessárias aberturas

prédio do Teatro Glauce Rocha, na Av. Rio Branco 179, 5º andar”. (CARNEIRO, 1998, p. 171).

para possíveis transformações (DELEUZE, 1985). Alexandre Santini, um dos atores do grupo que tem formação acadêmica em História, contribuía com a pesquisa de documentos sobre o fato. Outro, Marcelo Bragança, desenvolveu um cordel que fazia ligação entre algumas cenas,

9. “Rápidos quadros cômicos interpretados, numa revista, à frente da cortina colocada atrás do pano de boca, que se

funcionando como uma cortina9 que dava o tom narrativo e popular do espetáculo. Quem vocalizava cada estrofe do cordel eram os atores, não os personagens. Licko Turle, Daniel Rolin, Miguel Campelo e os outros atores levavam diariamente, para os ensaios, material

levantava no início do espetáculo, só baixando no final. Esses números tinham como finalidade, além de divertir o público, possibilitar complexas mudanças de cenários, que estavam sendo feitas atrás da cortina” (GUINSBURG e outros, 2006, p. 101).

musical daquele período.


Dar não dói, o que dói é resistir: Uma síntese de 25 anos {

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Todas as improvisações tinham, na música, o motor impulsionador da dinâmica corporal dos atores em suas evoluções pelo espaço, em busca dos movimentos e imagens coletivas das cenas estudadas. ‘Música’, entendida aqui em seu mais amplo sentido: desde exemplos de músicas propriamente ditas, representativas dos fatos pesquisados10, que iam sendo descobertas pelo grupo num verdadeiro trabalho de arqueologia musical a partir da qual foram sendo ‘desenterrados’ os antigos discos de vinil já esquecidos nas casas de cada um,

10. Música ‘de protesto’, o Hino da Internacional Socialista, o Hino Nacional Brasileiro na voz de Fafá de Belém, o hino católico Queremos Deus cantado

às intervenções vocais livres que os atores e atrizes se permitiam fazer, em diversos momentos das cenas ou, ainda, pelo ritmo de instrumentos de percussão (principalmente o surdo) manipulados pelos próprios atores. A trilha musical acabou tornando-se um outro texto paralelo ao roteiro teatral, uma vez que a memória brasileira está depositada em grande parte no cancioneiro popular e na tradição oral. Considerando ter sido a Música Popular Brasileira um dos mais importantes veículos de protesto e de denúncia ao regime autoritário brasileiro vigente na época da ditadura, o Tá Na Rua mergulhou profundamente no estudo dessas canções e principalmente no de suas letras que, além de complementar o texto em si, também expunham, paralelamente às cenas, o pensamento do próprio grupo. A música passou, assim, a desempenhar múltiplas funções, tais como: a de fio condutor da narrativa; de ambientação cênica; como comentário crítico aos fatos históricos apresentados; como a voz do povo brasileiro que as cantou na época e as manteve em sua memória; de elemento impulsionador dos movimentos dos atores, proporcionando o ritmo do espetáculo. Entre vários exemplos musicais, a opção era por aquele que possuía a musicalidade necessária para sustentar a teatralidade desejada na cena. Às vezes, a mesma música era pesquisada, escolhendo-se um entre vários arranjos e/ou interpretações, quando uma versão continha elementos musicais (andamento, solos instrumentais, tipo de interpretação vocal, etc) que não satisfaziam ao sentido exigido pela cena.

pelas ‘beatas’; a canção-trilha do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, etc.


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} O Tá Na Rua apresenta:

Por exemplo, a versão escolhida do Hino Nacional Brasileiro foi aquela que, interpretada pela cantora Fafá de Belém, relacionava esta músico-símbolo da nação ao fato histórico do Movimento Diretas Já de 1984, que pedia a volta das eleições presidenciais. Tornou-se uma verdadeira ‘música-imagem’ desse fato histórico. A cantora, entoando o hino, transformou-se na própria imagem das ‘Diretas Já’, sendo inclusive este o momento mais aguardado nos comícios por todo o Brasil. Era ela, uma artista e não um político, quem encerrava os comícios. A música é que trazia a imagem da cena e não o contrário. Depois, nos espetáculos, o público viria a identificar aquele fato pela música e também cantava, inclusive repetindo o movimento corporal realizado pelos vários públicos dos comícios passados: braços erguidos, mãos dadas. O Samba Plataforma, de João Bosco e Aldir Blanc, pelo virtuosismo instrumental e vocal do primeiro em sua versão original, não sustentava ritmicamente a cena, que sugeria um ‘blocode-sujo’ de carnaval. Optou-se, então, pela utilização da versão interpretada pelo Quarteto em Cy, musicalmente mais singela que a anterior, porém mais eficaz na obtenção do sentido necessário à cena. Já O Bêbado e a Equilibrista, dos mesmos autores, embora fosse uma música bastante popular no país, cuja letra foi transmitida à geração pós-ditadura e veiculada nas mais diversas celebrações sociais (acampamentos de jovens, bares, etc), não guardava mais a memória política do fato histórico ao qual aludia. Talvez, justamente pela sua popularização acrítica, em função de uma divulgação massiva pela indústria fonográfica, esta música não era mais associada à ditadura militar. Ela foi, por assim dizer, despolitizada, e portanto o grupo teve a necessidade de reconstituir o conteúdo político de sua letra, revelando 11. A palavra ‘metáfora’, em

através da produção de imagens visuais o que estava oculto naqueles versos, como metáfora11.

grego, significa ‘transporte’.

O trabalho corporal... não existiu, no sentido estrito do que comumente se compreende pelo termo. O grupo Tá Na Rua não tem, absolutamente, nenhuma preocupação com algum tipo de performance corporal técnica. Todo o seu trabalho de preparação do ator é realizado através de um único exercício coletivo, corporal em si, realizado de forma orgânica, fluida, ininterrupta, não fragmentada e muito menos, individualizada. Todo o trabalho corporal que as improvisações exigem se dá por meio da atividade coletiva, festiva, dançante, conduzida


Dar não dói, o que dói é resistir: Uma síntese de 25 anos {

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prioritariamente pela música – de reprodução eletrônica ou acústica – que ‘é o principal elemento condutor do jogo de improvisação livre12 praticado pelo Tá Na Rua’ (MOREIRA, 2007). A utilização dos objetos cênicos, figurinos e adereços, acrescida às improvisações orientadas pelo mapa-roteiro, seguiram uma lógica de bricolagem – figura conceitual proposta por Lévi-

12. Em A Pedagogia Teatral do Grupo Tá Na Rua (2007), Jussara Moreira diferencia o jogo de improvisação livre, praticado por esse grupo, do jogo de

Strauss (2005) para designar o pensamento mítico ou ‘selvagem’ das culturas tribais – que opera agrupando livremente materiais heteróclitos (sobras de figurinos, máscaras de carnaval, materiais artesanais e industrializados, objetos e uniformes militares ‘reais’ adereçados,

improvisação orientado usualmente utilizado por propositores de métodos teatrais, como Viola Spolin, Jean-Pierre Ryngaert e Augusto

objetos eróticos, etc.) na elaboração dos personagens e cenários. Tecidos coloridos, elemento

Boal. Nestes, as improvisações

constante na estética visual do grupo Tá Na Rua, foram de fundamental importância nas cenas

se dão a partir de uma proposta

de grande movimentação, preenchendo o espaço de evolução dos atores, fornecendo

coordenador, enquanto que no

metáforas visuais e acrescentando sentidos à narrativa verbal. Os atores de DND, durante o processo de criação, trabalharam com esses materiais cênicos desdefinindo parcialmente os limites entre sujeito e objeto. Aqui, os materiais cênicos não foram apenas objetos da ação dos atores. Não sendo apenas acionados, mas também acionando, parecendo evoluir por si mesmos, dançando e ocupando o espaço em diferentes planos, potencializados e transformados nos próprios agentes impulsores dos movimentos dos atores, movendo-os em ‘ondas cinéticas’ (Da Costa, 2006). Esta dinâmica com os tecidos iniciou nos primeiros encontros do elenco e permaneceu até as últimas apresentações de DND. Ao material selecionado, foi dado um tratamento de montagem tal como num desfile de escola-de-samba, que é um espetáculo desenvolvido dentro do carnaval, manifestação secular da cultura popular. Este possui características do teatro épico, narrativo, que tem como protagonista o povo. O enredo é contado através de imagens e alegorias, divididas em partes definidas; e cada parte se subdivide em alas. A idéia do Tá Na Rua foi recriar o efeito de apresentação dos fatos que uma escola-de-samba utiliza, abrindo mão de uma ‘interpretação’ no sentido teatral convencional. Assim, as cenas do espetáculo passavam ininterruptamente diante dos olhos dos espectadores, evocando o fluxo de um ‘rio que passou em minha vida’, eternizado nas palavras do samba-enredo do compositor portelense Paulinho da Viola.

verbalizada por um Tá Na Rua, é a partir de estímulos musicais que o grupo improvisa, sempre coletivamente.


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} O Tá Na Rua apresenta:

A estréia – primeira versão de DND A estréia de DND aconteceu no Festival Porto dos Palcos em janeiro de 2004, realizado no espaço do antigo cais do porto do Rio de Janeiro. Na ocasião, foi oferecido ao grupo um dos espaços fechados destinados ao evento, durante o qual aconteciam simultaneamente várias apresentações artísticas. Tratava-se de uma sala retangular, cujos lados de maior extensão foram preenchidos por fileiras de cadeiras que criavam duas áreas de platéia. Este formato foi pensado pelo grupo para que funcionasse como uma liça do período medieval. A visão dos espectadores era, portanto, a de uma larga passarela, com dois praticáveis localizados nas duas extremidades. Num deles permanecia Roberto Black, o sonoplasta do grupo, com seu equipamento de som e inúmeros CDs, além de um reduzido grupo de músicos-atores com seus instrumentos. O elenco era formado por vinte pessoas, entre elas: integrantes do Tá Na Rua (Amir Haddad, Ricardo Pavão, Roberto Black, Marcelo Bragança, Licko Turle, Bida Nascimento) e um grupo de jovens atores egressos de oficinas teatrais da Escola Carioca do Espetáculo Brasileiro do Instituto Tá Na Rua para as Artes, Educação e Cidadania, a maioria com pouca ou nenhuma experiência artística. Esta primeira versão do espetáculo tinha apenas uma hora e meia de duração, e apresentava as seguintes cenas/fatos históricos, estruturados independentemente: a apresentação dos atores, o Brasil pré-64, o golpe militar de 1964. Como em todas as apresentações do grupo, eram revelados momentos dinâmicos do processo de criação do espetáculo. Isto, entretanto, não dificultava o entendimento da proposta pelo público, que era constantemente informado pela ação do narrador, elemento responsável pela ligação entre cada cena ou quadro. O espetáculo propiciava vários momentos de comunhão entre atores e público, que era constantemente convidado a participar das improvisações. Principalmente no quadro relativo à invenção da pílula anticoncepcional nos anos sessenta, a partir da qual foi vivida intensamente a ânsia de liberdade sexual pela mulher, o público feminino sempre surpreendia o elenco com a sua disponibilidade, e até avidez, em participar dessa improvisação, apelidada pelos atores como ‘a suruba’, por apresentar uma cena de sexualidade vivida coletivamente. O espetáculo foi apresentado nos mais diferentes espaços, desde a sua estréia. Esse fato constituiu um grande desafio para o grupo, que se viu frente à necessidade quase cotidiana de repensar e refazer cada cena, em função do


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espaço disponível, explorando novas possibilidades, de movimentação e de comunicação com o público, decorrentes dessas mudanças. Pode-se dizer que as transformações espaciais constantes provocavam transformações na sua própria escrita cênica, propiciando novos quadros e impossibilitando outros a cada situação. Foram elaborados inúmeros roteiros provisórios, que contemplavam, cada um a seu modo, questões importantes quanto à dramaturgia, à narratividade, a relação com o público. Uma das apresentações mais significativas foi a realizada no Circo Voador. Além de ser o evento de reinauguração desse importante espaço cultural da cidade do Rio de Janeiro, foi este espetáculo o evento comemorativo oficial dos vinte e cinco anos do Grupo Tá Na Rua. Aqui, ele ganhou o formato de trilogia, sendo apresentado em três quartas-feiras sucessivas. O primeiro da série estava focado no golpe militar de 64; o segundo, no período compreendido entre este evento e o ano de 1968, cujos descaminhos da política nacional culminaram com a decretação do Ato Institucional nº 5; o terceiro abarcou os momentos de maior endurecimento do regime, até o movimento das Diretas Já em 1984. Em linhas gerais, o espetáculo Dar Não Dói, o Que Dói é Resistir se vale da memória recente do povo brasileiro como estratégia para reconstruir, em cena, concepções políticas opostas – de ‘direita’ e de ‘esquerda’ -, que revelam as ideologias (sociais, morais, sexuais, religiosas) presentes na nossa sociedade, porém ocultas sob o manto desses fatos históricos. Há, nesta encenação, a possibilidade de um teatro capaz de suscitar uma profunda reflexão sobre o processo de construção da história e da formação do pensamento atual da sociedade brasileira, através do desvelamento das ideologias e certezas do establishment vigente no país, principalmente nos anos 60 e 70. O espetáculo apresentou, por meio das imagens produzidas em cena, um caráter fortemente intertextual, multidirecional e polissêmico. Apesar de utilizar textos, não adotou a palavra como elemento fundamental de seu projeto de teatralização; ao contrário, propôs revelar, pelo discurso corporal e produção coletiva de imagens cênicas, as contradições internas dos discursos escritos que, quando traduzidos imageticamente, aparecem em sua face mais crua, de maneira verdadeira e direta. Além da corporalidade propriamente dita, o espetáculo adotou também os discursos da musicalidade e do ritmo; enfim, são elementos preferencialmente não verbais os que delineiam mais intensamente a sua narratividade, colocando Dar Não Dói, o Que Dói é Resistir, como exemplo de um pensamento teatral brasileiro contemporâneo não logocêntrico, para cuja construção o grupo Tá Na Rua vem contribuindo há vinte e cinco anos.

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} O Tá Na Rua apresenta:

Referências CARNEIRO, Ana Maria Pacheco. Espaço cênico e comicidade: a busca de uma definição para a linguagem do ator (Grupo Tá Na Rua – 1981). 243 f. Dissertação de Mestrado em Teatro – Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 1998. DA COSTA, José. Zé Celso e Euclides da Cunha: Os Sertões do Teatro Oficina. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Inédito. DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 1. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. GUINSBURG, Jacó; FARIA, João Roberto e LIMA, Mariângela Alves de (orgs.). Dicionário do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos. São Paulo: Perspectiva/Sesc São Paulo, 2006. LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Campinas, SP: Papirus, 2005. MOREIRA, Jussara Trindade. A pedagogia teatral do grupo Tá Na Rua. 145 f. Dissertação de Mestrado em Teatro – Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2007.

Comentário [atual] de Amir Haddad

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Foi a primeira vez que o grupo Tá Na Rua recebeu auxílio financeiro para a montagem de um espetáculo de rua, depois de vinte e quatro anos de existência. Antes, obtivéramos o apoio do Centro Cultural do Banco do Brasil para Uma casa brasileira, com certeza (1989), mas para um espaço fechado, no caso a cena italiana. Já havíamos decidido que o nosso próximo espetáculo deveria “mexer” com a memória histórica e política do país, uma vez que, pela primeira vez, este elegera um representante popular, um operário, para a Presidência da República. Em nosso passado recente, Jango Goulart havia sido deposto por suas idéias progressistas. Era preciso, portanto, contar essa história. O Dar não Dói... fez isso muito bem. Trabalhando a partir de documentos e textos de livros, às vezes de jornais, o Tá Na Rua avançou, pela primeira vez, no sentido de construir uma possível “dramaturgia sem literatura”. O estilo épico/narrativo, desenvolvido ao longo de décadas de espetáculos, em todos os formatos e tamanhos, nos espaços abertos mais diversos e nas ruas, permitiu-nos ir além das habituais participações do elenco na elaboração das cenas a partir de imagens, reveladas em um texto narrado ou representado. Por isso, costumamos dizer, mesmo, que nós podemos fazer Teatro com qualquer “dramaturgia”, até com bula de remédio! Dois grandes momentos do espetáculo foram: a cena da apresentação pública do documento que destituiu o governo eleito, substituindo-o por militares, conhecido como ATO INSTITUCIONAL N° 1; e a da decretação, conforme relatos jornalísticos, do ATO INSTITUCIONAL Nº 5, seguido de sua leitura. Buscamos, em ambas as cenas, ajustar o tom desses documentos ao nosso estilo de representação. Foi um avanço fantástico em nosso processo de construção de uma possível dramaturgia para os espaços abertos. Problema que todos os grupos que fazem teatro de rua têm que enfrentar. Depois de Dar não Dói... as revelações e sínteses se sucederam em experiências dramatúrgicas muito interessantes: o espetáculo Memórias e o Exercício do Natal - as duas mais recentes produções do grupo. Mas este é assunto para outra nota.


Letra de André Munhoz sobre as “máximas” de Amir Haddad

Dar não dói, o que dói é resistir: Uma síntese de 25 anos {

RAP DO AMIR Um dia pobre, um dia rico, um dia no poder Um dia chanceler, um dia sem comer

Dar não dói, o que dói é resistir Dar não dói, o que dói é resistir

Eu sou do Tá Na Rua, eu tô legal No Palácio Guanabara ou em Vigário Geral

Libera a genitália, solta o sentimento Não me venha com sedução, não!

É roubada , é de graça O Tá Na Rua tá na praça Dar não dói o que dói é resistir Dar não dói o que dói é resistir

Extrato de classe média É muita maconha na cabeça

Porta da rua é serventia da casa

Dar não dói, o que dói é resistir Dar não dói, o que dói é resistir

Libera essa genitália, solta o sentimento

Peito aberto, afeto escancarado

Quer ser ator, olha a vaidade!

Quem não quer nada quer o poder

Dar não dói, o que dói é resistir Dar não dói, o que dói é resistir

Joga esse grupo no lixo Joga esse grupo no lixo

O que dentro de ti te mata Fora de ti te salva

Eles fumam maconha Eles cheiram uma rapa Eles jogam no bicho

Passarinho que come pedra Sabe o cú que tem Só a verdade salva Só a verdade salva

Ôôôô Tá Na Rua é um terror! Ôôôô Amir Haddad é um terror!

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9 de 199 embro v o N , Túnisia nte o io, dura r á in m se ia, rida em , Tunís d profe a d d a m Túnis H e ir o m d A a liz de júri. ano rea icação ente do ro Afric Comun id t s a e e r T p e ld mo aciona ipou co l Intern l partic a u q o Festiva d evento

Existe um teatro imanente na cidade. Há uma possibilidade teatral imanente no cidadão e nos ritos de convivência, não prevista na vida da cidade e conseqüentemente não levada em conta, embora continuamente se manifeste — numa festa, numa barraca de cachorro-quente, num camelô que vende alguma coisa, em tudo. Parto do princípio de que o que provoca isso é a divisão que se estabeleceu, ao longo dos últimos 300 anos, entre teatro e cidade, entre cidadão e artista. A cidade mudou, o teatro não.

Amir Haddad

Venho trabalhando a idéia de que a cidade é por si teatral, é dramática, e que o teatro está impregnado dessas possibilidades de expressão. Idéia que me leva a procurar eliminar, o mais


possível, a diferença entre cidadão e artista, e a criar um espaço onde é possível a cidadania se manifestar artisticamente; a buscar não separar uma parte da cidade para celebrar o teatro ou pegar um pedaço da cidade e colocar dentro de um edifício para que ela esteja ali simbolizada, mas sim, pensar toda a cidade como uma possibilidade teatral — ela é o espaço de representação, suas ruas e edifícios são a cenografia e os atores são os cidadãos. O produto mais avançado das pesquisas que venho desenvolvendo no Brasil, junto ao grupo Tá Na Rua, é a realização de grandes espetáculos-festas, atualmente concebidas como imensos cortejos, a que denominamos liturgias carnavalizadas.


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} As Liturgias Carnavalizadas

Durante anos, nossas pesquisas se desenvolveram em cima de um texto clássico, Morrer pela pátria, de Carlos Cavaco (1936): três atos, com unidade de tempo, espaço e ação. Era um folhetim fascista. A tentativa de elaborar um espetáculo sobre esse texto de pensamento fascista, autoritário, onde ficasse claro que nós não éramos fascistas, levou-nos a mergulhar em verdadeiro estudo arqueológico sobre a formação social brasileira, buscando o profundo entendimento dos valores ali defendidos — Deus, Pátria e Família — fortemente arraigados na formação de nosso povo; a entrar em contato com nossas contradições e a realizar um longo e profundo trabalho de remoção das identificações. Se por um lado, o processo então realizado nos proporcionou descobertas importantes em relação ao jogo do ator, levando-nos a uma atuação des-envolvida, que apresentava uma realidade, ao invés de representá-la e que permitia que nos reconhecêssemos muito próximos das investigações de Brecht e de sua teoria do distanciamento, por outro lado a demolição da linguagem estruturada do teatro convencional foi revelando outras possibilidades, dando passagem a uma linguagem cada vez mais livre, mais aberta e que identificávamos como mais popular. A confirmação de nossas descobertas, porém, só se deu realmente no momento em que fomos para a rua; foi só então que começamos a entender, na prática, que estávamos conquistando outra linguagem. Foi só então que o trabalho realmente começou a se modificar; que as indagações a respeito do palco italiano, da dramaturgia, sobre as maneiras de trabalhar o ator, tudo isso que ficava mais ou menos vago ou teórico, começou a ter concretude.

Quando, em 1980, saímos para a rua, não tínhamos nenhuma intenção messiânica ou evangélica; não

fomos salvar ninguém.

Fomos nos salvar. Tampouco pretendíamos levar cultura para o povo. Fomos para a rua dar continuidade às nossas investigações sobre o espaço — e tivemos muitas informações sobre coisas de espaço. Mas a revelação maior foi trabalhar com um público que desconhecíamos, sobre o qual não sabíamos nada. Foi o contato com uma platéia heterogênea — o povo, na sua concepção mais imediata — que nos obrigou a nos desarmarmos, a rever nossas atitudes, nossos conceitos, nosso modelo de ator, nossa comunicação com o espectador. E a partir


O Teatro e a Cidade - O Ator e o Cidadão {

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daí, a repensar a dramaturgia, a repensar todo o teatro e a chegarmos ao que poderíamos definir como uma linguagem popular, como em Shakespeare, em Molière, os gregos .

A saída para a rua nos levou ao encontro das origens do teatro, do que pensávamos e sentíamos ter existido antes da captação da linguagem teatral pela burguesia, no início dos tempos modernos — período em que se instalou a hegemonia da Razão, rompendo (mais nitidamente, ao menos) o equilíbrio corpo/mente e em que a fala passou a ter mais força. Caminhamos

assim, em direção ao resgate de uma história do teatro que não é contada nos manuais: a do teatro popular; em direção ao resgate do popular que existe em cada um de nós. Porque nenhum de nós era popular! Alguns de nós vivíamos nos endereços mais sofisticados da cidade do Rio de Janeiro; freqüentávamos faculdades... Éramos de classe média, brancos, universitários! Todo o processo que deslancháramos, porém, tinha muito a ver com um sentimento nosso de rebelião contra o estabelecido — sentimento esse que se fortalecia diante da realidade política que então vivenciávamos, em um país submetido a um governo ditatorial. Peter Burke, historiador, em seus estudos sobre cultura popular, ao investigar o aparecimento da dicotomia cultura erudita/cultura popular — que surgiu justamente nessa fase em que se estruturou a sociedade burguesa — faz uma análise muito interessante sobre a obra de Bakhtin e considera que este, quase explicitamente, desenvolve o pensamento de que

popular é tudo

aquilo que se rebela contra o estabelecido. Análise que nos auxilia a compreender o processo então vivido pelo grupo. Durante anos nós estivéramos na luta contra o estabelecido, insatisfeitos, sem uma proposta para substituir. Durante anos ficáramos mudos; não falávamos língua alguma. Quando desmontamos o estabelecido dentro de nós, começaram a aparecer outras possibilidades: surgiu um teatro que reconhecíamos como popular. Como no carnaval, quando o rei momo está reinando e tudo que é estabelecido é abandonado e reina a desordem, ao sairmos para a rua encontramos o outro lado; viramos o teatro de cabeça para baixo, como um saltimbanco — o símbolo de nosso grupo, o Tá Na Rua.

Quando começamos a ir para a rua, praticamente não havia teatro de rua no Brasil. Nosso referencial eram camelôs e artistas de rua; eram aqueles que vendiam mágicas, vendiam remédios para calo e mil outras bugigangas. Nós os observávamos enquanto faziam teatro para vender suas mercadorias: como seguravam a roda, como esquentavam o espaço de atuação, como brincavam com o público — um público que eles em momento nenhum ignoravam, pois sabiam que ele só permaneceria para assistir a suas demonstrações, se soubessem conquistá-lo.


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} As Liturgias Carnavalizadas

Conhecimentos práticos que levamos anos para aprender, para saber ocupar o espaço da roda; para saber abri-la e mantê-la aberta. Depois, tivemos que aprender também quais eram as diferenças entre nós e aqueles camelôs. Por que eles precisavam de uma roda de uma determinada maneira? Por que nós precisávamos de outra? Paralelamente, outras fontes eram utilizadas na formação de nossa linguagem; o contato com ritos religiosos afro-brasileiros, como a gira de umbanda e o candomblé, possibilitavam o estabelecimento de relações muito íntimas entre os processos neles desenvolvidos e as formas de representação que buscávamos alcançar em nosso trabalho.

Pouco a pouco, pudemos ousar mais, alargar nosso espaço de representação. A participação no desfile da Escola de Samba Beija-Flor (Carnaval de 1989), nos deu a oportunidade de testar em larga escala todo o conhecimento adquirido em nossas pequenas rodas. Passamos a realizar grandes espetáculos, grandes festas, ocupando grandes espaços. Mas o próprio movimento de transformação do trabalho nos fez ver que havia raízes ancestrais que nos levavam a recusar aquele teatro que se caracterizava como linguagem de representação da elite cultural; raízes que estavam ligadas às origens religiosas do teatro. Religio / religare — restabelecer as relações entre o homem e seus deuses, entre os homens e seus pares, entre os homens e as cidades onde eles viviam. Essas eram nossas necessidades mais profundas: retomar contato com o sentido de comunhão que é próprio do teatro. Sentido este que exige uma participação muito mais ativa e até mesmo direta de seu público, e tornam pleno o sentido de festa.


O Teatro e a Cidade - O Ator e o Cidadão {

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Utilizando textos narrativos — cordéis, autos sacramentais — passamos a perseguir uma idéia: a da cidade em festa e o teatro acontecendo como parte desse contexto. O teatro deixando de ser um produto cultural isolado num espaço, para se transformar em usufruto da cidade toda. Experiências que, ao se concretizarem, abriram espaço para aprofundamentos ainda mais amplos sobre as questões que envolvem nosso trabalho. A nossa recusa em relação ao teatro burguês — hoje nós sabemos identificar melhor — não se limitava a diferenças políticas e/ou ideológicas. Ela se relacionava também à mudança que ocorrera intrinsecamente no teatro, a partir do momento em que este sofrera um deslocamento em seu eixo religioso e passara a ser informado por uma ética e uma estética protestantes. Em nossos sentimentos, havia um enfado em relação ao teatro protestante, desenvolvido pela burguesia capitalista; em relação a esse teatro pragmático, pai do realismo, que tem dificuldade com os grandes espaços, em falar com a cidade inteira. Porque esse teatro exclui parte da cidade! A burguesia criou uma sala, a que chamou de teatro público, mas que, na verdade, é uma sala feita para ela! No momento em que abri minha cabeça a esse respeito, mudaram as fontes de informação sobre o teatro que atuam dentro de mim e alimentam o meu trabalho. Se nós queremos nos

livrar do teatro da burguesia, temos que beber em outras ou não teremos recursos para criar nossos espetáculos. Vivemos num mundo protestante, mas nossa cultura, no Brasil, é de origem católica, medieval e também islâmica! Comecei a recuperar fontes vivas dentro de mim E aí, o que aflorou foram as procissões religiosas que vi na minha infância e das quais participava toda a cidade. Principalmente uma, a mais dramática de todas, que era emocionante e da qual eu adorava participar — a procissão do encontro. Uma parte dela saía de uma das igrejas da cidade, ao mesmo tempo em que uma outra saía de outra igreja; e ambas se encontravam em determinado ponto. Uma encenação! Uma trazia Jesus Cristo carregando a cruz e a outra, Maria; quando se cruzavam na rua, ela via o filho sendo castigado. Eram aquelas duas estátuas balançando no alto, apoiadas no ombro das pessoas. Mas era de um impacto fenomenal! A partir daí, as fontes religiosas que informavam meu trabalho foram ficando mais claras e um novo momento foi se construindo. Tive de começar a pensar o meu teatro com essa possibilidade: o mundo inteiro está no espetáculo, não só um pedaço do mundo. E aí, o que faço tem a ver com o teatro do Shakespeare, com o teatro espanhol, com as procissões de Sevilha ... tem a ver com tudo.

fontes,


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} As Liturgias Carnavalizadas

Ao rompermos com os procedimentos éticos da burguesia capitalista protestante, partimos para uma outra realização, para a construção de um outro mundo, dentro do qual a vida comunitária e a cidade estão incluídas. Passamos a agir na contra-mão do pensamento neoliberal burguês. Os nossos espetáculos-festas nos revelaram o quanto o aspecto ritual está presente nas grandes manifestações, quando a cidade toda fica envolvida por um mesmo movimento e se permite, como num grande carnaval, virar o mundo de cabeça para baixo. As festas

apontam para questões utópicas, aflorando a possibilidade de interação entre as pessoas, entre o povo e seus governantes e, momentaneamente,

a cidade é feliz. Todo o meu trabalho tem se desenvolvido no sentido de dar ao cidadão a possibilidade de se expressar além dos recursos cotidianos que ele tem. A sociedade capitalista privatiza e especializa — porque esse é um sentido prático que interessa ao dinheiro, ao lado material... Nós desmontamos esse esquema. Eliminamos essa idéia pragmática de que uns fazem uma coisa, outros fazem outra coisa. Tudo é público e nada é especializado. O cidadão e o artista são as mesmas pessoas e as representações teatrais se transformam em acontecimentos públicos. Nossos procedimentos, desde o início de nossas investigações, permitiram o desenvolvimento de um jogo de ator mais des-armado e que não se considerava, nem permitia que as pessoas o considerassem, como especial. Um jogo que faz a platéia ficar à vontade e se sentindo autorizada a interferir, porque sabe fazer aquele jogo também. E o desenvolvimento disso — da noção de que todos sabem/têm capacidade para fazer; de que essa qualidade é latente em todos —, reforça a cidadania.


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Então, a nossa atuação é uma rebeldia; é um abandono do regime vigente e a busca de outras possibilidades, fora dos padrões tradicionais da sociedade burguesa, que é privatizadora e especializadora. Resulta do pensamento que norteia nosso trabalho e que afasta a idéia de que só poucos são artistas e os outros são espectadores; de uma divisão do mundo entre passivos e ativos. Todos são sujeitos ativos; todos têm participação e interferem na História. Tiramos a idéia de privatização, transformamos nossas representações numa festa pública; e tiramos também a idéia de que somente pessoas altamente especializadas podem fazer aquele trabalho. Nossa

idéia é que todas as pessoas, toda a cidade pode participar; não é nenhuma especialidade o que queremos exibir. Nossos cortejos trazem não os artistas oficiais da cidade, mas pessoas comuns que se expressam artisticamente. Não há nenhuma exigência de experiência teatral. São cidadãos, pessoas do povo que estão ali, fazendo isso — expondo suas possibilidades de expressão. Nós só conhecemos o lado do cidadão que dá duro, bate pedra, trabalha, não tem alegria, não tem prazer, anda de cabeça baixa. De vez em quando toma um pileque, mas não entra em contato com nada. A festa proporciona a existência de um espaço em que ele se vê livre de seus papéis cotidianos, em contato com sua possibilidade de manifestação, que é maior que a máscara cotidiana que ele usa e que não leva em consideração o seu lado criativo. Esse é o momento em que ele pratica o exercício dessa ludicidade e assume um único papel — o de ser humano

livre, criativo, fértil, transformador.

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} As Liturgias Carnavalizadas

Da mesma forma, quando colocamos todos os cidadãos na rua, a cidade começa a entrar em contato com outro lado dela, diferente do cotidiano — o lado que faz quadrilha, que faz dança, que faz capoeira, teatro, banda, fanfarra. E ela se percebe enquanto coletivo. À medida que ela é tocada por esse aspecto cultural comum, que seus habitantes começam a se sentir parte dela, plenamente, temos ali um povo se manifestando. E quando entra o povo, entra o artístico, o carnavalizado, a cultura, a produção do ser humano que é dali. Hoje, a nossa festa, o nosso espetáculo, tem essa sustentação ideológica. Temos clareza de quais são as tendências com que estamos trabalhando, que fluxos de conhecimento do ser humano estão nos orientando.

O produto mais avançado de nosso trabalho — os cortejos — não é um produto de mercado, uma beleza a ser vendida. É um produto que procura contribuir para o crescimento das pessoas; é para o consumo da sociedade como um todo, e os temos realizado por meio de órgãos públicos. Nós os reconhecemos como liturgias carnavalizadas — festas que harmoniosamente misturam o sagrado e o profano. Por meio deles, procuramos restaurar alguns mitos, algumas celebrações da sociedade, recuperando essa comunhão que vem se perdendo, cada vez mais. Voltamos na História, para podermos ir adiante. É por esse caminho que estamos aprendendo a fazer um espetáculo híbrido: com movência e, ao mesmo tempo, com paradas onde algumas cenas são apresentadas. Com ele, estamos aprendendo a desenvolver uma nova dramaturgia, diferente da tradicional, que se aproxima das narrações dramáticas presentes em vários momentos da história do teatro, desde os povos antigos, como a procissão de Osíris, no Egito, em que se representava a vida do deus; como o TAZIYÉ – O martírio de Hassan e Hussein, na Pérsia, onde os maometanos contam teatralmente, numa praça, a história da sangrenta guerra que estalou entre os herdeiros de Maomé, após sua morte. Ou ainda, como alguns grupos africanos contemporâneos ligados à tradição, com suas danças teatralizadas. Atualmente, estamos descobrindo um caminho — o de criar a narrativa dramática por meio da escrita do próprio espetáculo, afastada de qualquer literatura. Nós não partimos para o diálogo. Começamos a experimentar, nos espaços mais amplos, essa possibilidade de escrever um espetáculo “sem diálogo”. É um espetáculo escrito no espaço e com o corpo, tanto dos atores quanto das pessoas que passam, com apresentação de carros alegóricos. Mais do que na fala, na palavra, os sinais se encontram nas atitudes do ator, na atmosfera do espetáculo, nos desenhos, nas cores, nos objetos.


O Teatro e a Cidade - O Ator e o Cidadão {

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Temos trabalhado sobre grandes festividades religiosas, como o Natal e festas profanas, como o Carnaval. Nos autos de Natal que fazemos, a história narrada já está arraigada na mente e no coração do povo. Basta jogar um sinal forte, que eles o reconhecem rapidamente.

Há, dentro do povo, a força dos mitos gregos. Os primeiros autos foram realizados em espaços abertos, mas sempre ocupando um único espaço, geralmente uma praça que procurávamos transformar em um grande mercado, como as feiras medievais. Nossas experiências atuais, neste sentido, ao longo dos últimos anos, têm nos feito levar adiante o aprendizado que tivemos, trabalhando com os grandes desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro e com outros tipos de cortejos dramáticos que se multiplicam pelo país, guardando sua origem medieval de Autos populares, como o Maracatú, Bumba Meu Boi, Folias de Reis, etc. Junto a este lado profano, colocamos nossas tradições seculares religiosas de origem católica e transformamos nossos espetáculos em verdadeiras “liturgias carnavalizadas”, com cortejos que se movimentam por toda a cidade, levando em seu bojo, de três a cinco mil participantes que poderão se locomover sem interrupções até o local onde se darão encenações públicas de natureza épico-cultural, ou então com paradas intermediárias onde estas apresentações são feitas, como estações de algumas manifestações religiosas nômades da Igreja Católica. Cremos, assim, estar unindo o sagrado ao profano e procurando, desta maneira, tocar o coração do cidadão e despertar nele o sentido de religação das festas e celebrações, devolvendo ao teatro sua função pública social original quente, garantindo para ele um lugar num futuro imprevisível de realidades virtuais frias. Dessa maneira, enxergamos o teatro como a possível arte

do futuro, a única talvez que estará se mantendo dentro do propósito de fornecer, ao ser humano, espaço para o seu sentimento gregário e comunitário, contribuindo assim para a construção de uma nova cidade e uma nova sociedade, onde as diferenças sociais e culturais poderão ser administradas e o sonho utópico da construção da “Cidade Feliz” possa ser retomado.


Jussara Trindade


LITURGIAS CARNAVALIZADAS: quando o humano e o divino brincam juntos Analisando um grande escritor popular do século XVI – François Rabelais – o filólogo russo Mikhail Bakhtin descobre, neste período histórico, uma visão de mundo marcada pela subversão dos valores oficiais vigentes, presente nas festas, espetáculos, vocabulário familiar, obras cômicas; enfim, nas diversas manifestações da cultura popular da Idade Média e do Renascimento.


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} As Liturgias Carnavalizadas

Para Bakhtin, um dos mais brilhantes teóricos da literatura contemporânea, esta concepção original sobre a vida está separada de nós por um abismo ideológico colocado historicamente no início do pensamento moderno, lógico e racionalista, que tem caracterizado a civilização ocidental nos últimos três séculos. A compreensão desta forma de pensamento – que qualificou como uma visão carnavalesca de mundo - é imprescindível para o entendimento, não só da literatura, mas da arte como um todo no mundo contemporâneo, momento em que surgem outros discursos poéticos, não apoiados necessariamente no pensamento lógico linear da linguagem verbal. Novas propostas estéticas surgem, baseadas em outros parâmetros, e os cânones estabelecidos de tempo e espaço já não dão suporte à obra artística. Fronteiras entre a vida e a arte, o sacro e o profano, o popular e o erudito são pulverizadas, ampliando espaços de compreensão e criando novos contornos para a possibilidade da arte. O filólogo observou que as festividades são uma forma primordial da civilização que se relaciona com os “fins superiores da existência humana”, marcando períodos de crise como morte e ressurreição, alternância e renovação. Dentre outras, o carnaval é a mais significativa para o autor. Descendendo diretamente das festas saturnais romanas, essa festa era experimentada, antes da era moderna, como um retorno efetivo e completo (embora provisório) ao país da idade de ouro (...) O carnaval não era uma forma artística de espetáculo teatral, mas uma forma concreta (embora provisória) da própria vida, que não era simplesmente representada no palco, antes, pelo contrário, vivida enquanto durava o carnaval (BAKHTIN, 2002, p. 06). Em síntese, era um intervalo temporal vivido sob as seguintes “leis”: • O carnaval existe para todo o povo; • Enquanto dura a festa, só se pode viver de acordo com as suas leis – as da liberdade; • Nela, não há atores ou espectadores, pois os espectadores não assistem ao carnaval – eles o vivem; • O carnaval é um estado peculiar de renovação do mundo, do qual participa cada indivíduo; • Manifesta-se, aqui, uma linguagem verbal própria caracterizada pela comunicação franca, sem restrições e familiar entre indivíduos normalmente separados na vida cotidiana; • A visão de mundo presente no carnaval é oposta a toda a idéia de acabamento ou perfeição, de eternidade e imutabilidade; • A percepção carnavalesca de realidade é uma lógica às avessas, que torna explícita a alternância dos ciclos, em qualquer âmbito humano: religiosidade, sexualidade, solenidade, poder, afeto, etc, e instaura o princípio de ambivalência em todas as coisas.


Liturgias Carnavalizadas: quando o humano e o divino brincam juntos {

Destas “leis”, a mais óbvia é a de inversão da hierarquia social, que estabelece um novo tipo de relações humanas, caracterizado pela eliminação de distâncias entre os homens, numa atitude de intimidade aceita como autenticamente carnavalesca; a excentricidade torna-se a forma regular de percepção do mundo; suas imagens são ambivalentes, reunindo sempre dois pólos opostos e complementares: nascimento/morte; ignorância/sabedoria; sagrado/profano, dialogando com os significados. O carnaval é uma visão de mundo, vasta e popular, de um passado remoto, onde a transgressão alegre se opõe ao sério oficial. Esta concepção da realidade é contrária a tudo aquilo que é definitivo, e considera cada fim como um novo começo, de forma cíclica e orgânica. A carnavalização permite ampliar os limites de uma vida privada ou de uma época delimitada, num amplo cenário universal, comum a todos os homens. Ocorre, nela, uma passagem do individual para o coletivo, do particular para o geral. A concepção artística do tempo e do espaço próprias do carnaval permite reunir elementos espaciais e temporais que normalmente encontram-se dispersos de forma inconciliável. Assim, o discurso carnavalesco se constitui numa forma de contestação social e política por excelência, ao fornecer imagens instantâneas, em linguagem direta e objetiva. A fase inicial do Tá Na Rua poderia ser descrita como o período de busca de uma linguagem teatral carnavalizada. Ao sair para as ruas do Rio de Janeiro, ao encontro de uma população identificada com as “formas fundamentais de expressão da sensação popular do mundo” (idem, p. 05), o grupo encontra a cultura cômica popular que sobrevive nas festas públicas, nas manifestações populares, à margem da cultura e da ciência oficiais. Em 1981, ano em que se constituíram os processos de definição e afirmação de sua linguagem teatral (CARNEIRO, 1998), o Tá Na Rua apresentava características típicas da carnavalização: • o espaço escolhido é a rua, espaço público onde a estratificação social desaparece; • o público é o povo, em suas camadas mais populares; • o riso que desperta é “festivo”- ri de si mesmo, de todos, da instituição oficial, da superioridade; • busca eliminar a separação ator/espectador, chamando este último para viver a experiência, e não assisti-la “de fora”; • propõe uma forma revolucionária de renovação do mundo, em novas bases, mais coletivizadas e igualitárias; • utiliza a linguagem verbal carnavalesca, numa comunicação franca e sem restrições entre as pessoas; • oferece uma forma especial de contato, mais livre, entre indivíduos que normalmente estariam separados por diferentes condições sociais; • opondo-se a toda idéia de acabamento e perfeição, propõe um segundo mundo e uma segunda vida onde tudo é mutável, sem estabilidade nem eternidade, que aponta para o futuro.

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O Tá Na Rua inicia, em 1980, uma verdadeira jornada arquetípica, colocando-se como o receptáculo de uma visão de mundo anterior à do homem urbano do século XX. Transformase em canal de comunicação entre o cidadão atual e o artesão da praça do mercado medieval. Atuando como um espelho de seu ancestral, desperta no transeunte incauto o sopro mágico daquelas imagens esquecidas de um mundo de eterno devir, em que vida e morte são intimamente interligadas e interdependentes; um mundo onde o terror pode ser exorcizado pelo riso, e onde a imperfeição é incluída como parte natural da vida. O Tá Na Rua vai para a rua oferecendo ao público, ou melhor, relembrando a ele a possibilidade de ser ridículo, nobre, bom, mau, feio, maravilhoso, covarde e herói, sem fixar-se rigidamente em nenhuma destas categorias, pois o que atrai em seu espetáculo é justamente a mobilidade e a plasticidade que propõe: um mundo incompleto, inacabado, imperfeito, circular, em ininterrupto processo de nascimento, morte e renascimento; um mundo que gira, em permanente ebulição. A produção teatral do Tá Na Rua, no início dos anos 80, vista à luz dos estudos de Bakhtin sobre a cultura cômica popular da Idade Média e do Renascimento, revela a carnavalização como um princípio norteador de todo o trabalho do grupo naquele momento de sua trajetória; foi este o eixo teórico que subterraneamente orientou sua ética e instruiu sua estética para os anos subseqüentes. O humor de suas apresentações tornou-se um traço predominante nas primeiras apresentações, com seu linguajar despojado de feira livre e personagens surgidos do imaginário popular, que não primavam pelo glamour ou refinamento. A mulher-que-grita-rodopia-e-cai, o homem-que-coça-o-saco-e-palita-o-dente ou a mulher-que-sofre são apenas alguns dos personagens criados pelo coletivo - a ralé apresentando a si mesma no espelho do cotidiano – tanto por meio de um texto de cordel, quanto por uma letra de música. Mas, a aparente comicidade dessas apresentações era apenas a estratégia que o Tá Na Rua utilizava para poder tocar em pontos delicados da vida social e política do país, num período em que a Abertura ainda não se consumara. A linguagem carnavalizada que o grupo apresentava, embora profundamente política, permitia-lhe abordar, pelo princípio do humor festivo, questões muito graves e passar praticamente incólume pela repressão que ainda resistia às mudanças exigidas pela sociedade brasileira, nos anos iniciais da década de 1980.


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Em 1989, contudo, uma apresentação teatral singular marca o início de outra etapa nas experimentações do grupo Tá Na Rua: a teatralização do carro abre-alas do GRES Beija-Flor, de Nilópolis, sobre o enredo Ratos e Urubus, Larguem a Minha Fantasia, de Joãozinho Trinta. Percebendo que o tema daquele ano estava muito próximo das idéias e práticas desenvolvidas por Haddad e o Tá Na Rua, Joãzinho convidou-os para realizarem a complexa tarefa de abrir o desfile dessa agremiação. Desta forma, o carnavalesco teatralizou o Carnaval e o teatrólogo carnavalizou o Teatro, sintetizando através do espetáculo popular, a íntima relação que existe entre o Teatro e o Carnaval. Joãozinho Trinta tornou-se o protagonista de um episódio polêmico que envolveu a proibição dessa alegoria por parte da Igreja Católica, pois representava o Cristo Redentor com os mendigos da cidade do Rio de Janeiro a seus pés. A imagem foi para a passarela envolta em um plástico preto e com a faixa “MESMO PROIBIDO, ROGAI POR NÓS”, permanecendo desde então, na memória coletiva, como símbolo das contradições sociais da cidade. A estrutura e a logística deste cortejo dramático, assim como o seu gigantismo quanto ao número de atores/componentes, o seu texto/samba-enredo e a sua encenação/cortejo dramático que apresenta simultaneamente o presente, o passado e o futuro ao público, contribuem para que Amir Haddad e o grupo Tá Na Rua iniciem neste momento um projeto teatral de grandes proporções, que iria se concretizar nos anos seguintes. A partir de então, continuam a participar dos desfiles de escolas-de-samba cariocas, criando encenações dramáticas dentro do carnaval. Foram diversas as agremiações com as quais o grupo desenvolveu essa atividade: Tradição (1996) Império Serrano (1997), Salgueiro (1998), Unidos do Mundo (2001)1, Grande Rio (2002) Porto da Pedra (2003), Unidos do Cabral (2000 e 2005). Assim, os anos 90 irão assistir ao gradativo, porém determinante, aparecimento de um novo eixo de orientação para a linguagem teatral do coletivo, que introduz mais fortemente o

1. Escola de samba internacional, hours concours, criada especialmente para participar do desfile que celebrou a passagem do milênio na Passarela do

elemento sagrado, ao lado do mundano. A partir de experiências profissionais em diferentes regiões do país, Amir Haddad e o Tá Na Rua irão entrar em contato mais íntimo com a religiosidade do povo brasileiro. Esta, marcada pela notável influência da Igreja Católica, e mesclada em menor ou maior grau com ritos africanos e indígenas, espalha por todo o território nacional uma complexa rede de manifestações populares em que o sagrado e o profano interligam-se e interagem há gerações, por meio da festa. Para o Tá Na Rua, este é o encontro com a essência da concepção carnavalesca de mundo descrita por Bakhtin; é quando esta segunda vida do povo efetiva-se plenamente, por estar sendo vivida intensamente por toda uma coletividade naquele momento provisório onde a realidade cotidiana é transcendida e transformada.

Samba, no Rio de Janeiro.


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O Tá Na Rua vê, nessas celebrações coletivas urbanas, uma possibilidade de restaurar, no sentimento do cidadão, um estado de teatro semelhante ao do período momesco, recuperando o sentido de dramaticidade e religiosidade presente nas grandes festas populares. É um momento de longas viagens, em que são realizados grandes eventos em diversas cidades do Brasil; um período durante o qual o grupo vivencia um contato pessoal, profissional e artístico com a cultura, a religiosidade, o modo de viver e pensar das diversas populações deste que é um país plural, complexo, místico. O que é gestado, neste momento, é o entendimento profundo do teatro como a possibilidade de concretização de uma utopia. Dessa maneira enxergamos o teatro como a possível arte do futuro, a única talvez que estará se mantendo dentro do propósito de fornecer ao ser humano espaço para o seu sentimento gregário e comunitário, contribuindo assim para a construção de uma nova cidade e uma nova sociedade na qual as diferenças sociais e culturais poderão ser administradas e o sonho utópico da construção da Cidade Feliz possa ser retomado (HADDAD, 2005, p. 73). Na re-inauguração do Teatro José de Alencar, em Fortaleza – Ceará (1999), foi proposta ao Tá Na Rua a difícil tarefa (até então, um tabu) de levar o povo para dentro do teatro. Havia, nesse momento, uma intenção do Governo do Estado em fazer uma festa de inauguração de forma que toda a cidade pudesse ser contemplada nesse ato simbólico de devolução – daquele importante equipamento cultural – à sua população. Para a realização do evento, Amir Haddad convidou quase uma centena de grupos culturais da cidade e dos arredores, que chegavam ocupando consecutivamente a praça frontal ao teatro, com suas danças, cantos, música e proezas múltiplas. Além de assisti-los, os cidadãos podiam também visitar o prédio restaurado do teatro durante todo o dia, conhecendo e desfrutando de sua beleza arquitetônica, restrita a uma elite até aquele momento. Os ensaios do espetáculo de inauguração, que seria apresentado à noite, foram abertos ao público. Assim, a população toda pôde apreciar de dentro aquele patrimônio histórico cultural e, principalmente, colocar por terra os preconceitos que os havia impedido de usufruir daquele espaço até então. Nesta experiência, Amir Haddad constatou o efeito social que é possível produzir no afeto de uma cidade, ao se dispor de uma estrutura de produção profissional que permita aos artistas populares apresentarem suas performances e expressarem a polifonia de sua linguagem, cujo código é domínio do cidadão comum e simples. Ao ser representado num evento oficial dessa magnitude, capaz de congregar no mesmo espaço dezenas de artistas, a auto-estima deste artista-cidadão é resgatada, e sua identidade cultural, reafirmada.


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Foi durante uma destas atividades desenvolvidas pelo diretor2 que surgiu o termo liturgia carnavalizada. Amir Haddad relata como se deu o fato: Uma vez eu anunciei o nome em um espetáculo em Natal, no Rio Grande do Norte. O Auto

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2. Belém do Pará (Auto do Círio de Nazaré: 1992 e 1997), NatalRN (Auto de Natal: 1998 a 2000), Anchieta-ES (Auto de Anchieta: 1998), São José do Rio Preto-SP

de Natal que eu estava encenando era uma liturgia carnavalizada; eu estava juntando o teatro, que é libertário, com os procedimentos religiosos da época de Natal: o Auto de Natal, procissões, cortejos, e o espírito do Natal que estava presente na cidade. Então era

(Auto de Natal: 1998), a Abertura do Festival de Artes na cidade histórica de Goiás VelhoGO (1999), o Natal no Meio do Mundo em Macapá-AP (2000 e

uma liturgia carnavalizada, uma festa religiosa, mas com a liberdade do teatro dentro. E

2001), O Desfile dos 500 anos do

saiu no jornal, isso. (...) e aí o bispo da cidade reclamou, porque ficou com medo de que

Brasil em Salvador-BA (2000), e

eu fosse botar mulatas de biquíni no Auto de Natal. (...) O que é Carnaval? É mulher

Mossoró-RN (2000 a 2002).

o Auto da Liberdade em

pelada. Mulatas sambando... Tem ali uma conquista de liberdade, um prazer com o corpo, que a raça negra traz muito fortemente. E que é diferente do cristianismo do homem branco judaico cristão, não é? (...). Agora, só que não é essa liberdade. Ali é a síntese, é emblema, é simbólico. É uma pessoa. É dessa liberdade que a gente está falando. Ele então achava que a gente ia botar sambista, de biquíni, sambando no presépio (...) Eu gostava muito de fazer o Auto de Natal em Natal, que é uma cidade que tem esse nome por causa do Natal. Eu gostava muito de fazer...fazia pelas ruas da cidade, e o povo nordestino fazia com muita fé. Faz parte da cultura nordestina. E ao mesmo tempo eu propunha muita liberdade, para eles chegarem até aquela verdade que eu queria que tivesse o espetáculo. Propunha muita liberdade. Aí ficou liturgia carnavalizada3. A palavra liturgia vem de dois termos gregos: lêiton, laós (povo ou público) e érgon (ação, obra). Daí, origina-se leitourguía (liturgia): uma obra pública, uma ação em favor do povo. Ela penetrou no linguajar da vida comum principalmente a partir do início do século XX, hoje sendo freqüentemente adotada apenas como um conjunto de ritos preestabelecidos. Tornou-se sinônimo de ritual, cerimonial ou protocolo. Segundo o Novo Dicionário Aurélio, é “o culto público e oficial instituído por uma igreja”; ou simplesmente “função pública”, de caráter não religioso.

3. Entrevista concedida a Jussara Trindade em 2005.


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} As Liturgias Carnavalizadas

Na teologia da Igreja Católica, a investigação sobre as relações entre a divindade e o mundo, sobre o conhecimento da verdade religiosa adquirem caráter de estudo racional dos textos sagrados, dos dogmas e das tradições do cristianismo. Assim, no século XX, a Sagrada Liturgia passa a ser compreendida como 4. Definição hoje adotada pela Igreja Católica, forjada pelo monge beneditino Dom Odo Casel, do Mosteiro de Maria

“Mistério do Culto de Cristo da Igreja”4, com um enfoque que engloba o sentido teológico, além do ritual e histórico. Segundo o Sacrosanctum Concilium

Laach, Alemanha.

– Constituição sobre a Sagrada Liturgia – constante no Concílio Vaticano II, documento maior da Igreja Católica desde 1965, a Liturgia caracteriza-se de ser, a um tempo, humana e divina, visível mas ornada de dons invisíveis, operosa na ação e devotada à contemplação, presente no mundo e no entanto peregrina. E isso de modo que nela o humano se ordene ao divino e a ele se subordine, o visível ao invisível, a ação à contemplação e o presente à cidade futura, que buscamos.

Encontramos, portanto, entre o conceito oficial da Igreja Católica e a cidade feliz proposta por Amir Haddad, um paralelo que encontra sua expressão teatral nas Liturgias Carnavalizadas do grupo Tá Na Rua – onde o humano e o divino têm a possibilidade de brincar, juntos. Referências CARNEIRO, Ana Maria Pacheco. Espaço Cênico e Comicidade: A busca de uma definição para a linguagem do ator (grupo Tá Na Rua – 1981)- Dissertação de mestrado em Teatro - Centro de Letras e Artes/UNIRIO, Rio de Janeiro, 1998. BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de François Rabelais. São Paulo: Annablume Editora, 2002. BECKHÄUSER, Frei Alberto. Os Fundamentos da Sagrada Liturgia. Petrópolis: Vozes, 2004. HADDAD, Amir. O teatro e a cidade / o ator e o cidadão. In TELLES & CARNEIRO (orgs.). Teatro de rua: olhares e perspectivas. Rio de Janeiro: E-papers, 2005.


Comentário [atual] de Amir Haddad

Liturgias Carnavalizadas: quando o humano e o divino brincam juntos {

Bakhtin e o Tá Na Rua As idéias de Bakhtin serviram à perfeição para a formulação teórica dos procedimentos práticos que o Tá Na Rua veio desenvolvendo ao longo das últimas três décadas. Mas essa práxis não vinha dele. Saía do trabalho e com ele se encontrava, em algum ponto de inflexão da nossa história. Bakhtin foi perseguido, preso e exilado pela polícia de Stalin. Suas idéias ameaçavam o pensamento autoritário que se instalava na Rússia daqueles tempos. A revolução russa não pôde suportar o “carnaval” de Bakhtin naquele momento de desordem, ainda que o mesmo não representasse uma oposição às suas idéias. Assim como ele, outros pensadores, artistas e teóricos da Rússia, tiveram suas idéias para a construção de uma sociedade das classes abandonadas. Grandes artistas como Maiakóvski, Meyerhold, Eisenstein - para só citar alguns - acusados de desvio ideológico, foram renegados pela doutrina de construção do “realismo socialista”, linguagem “oficial” da revolução. Com o Tá Na Rua se deu o contrário. Nossas idéias nasceram da oposição necessária ao autoritarismo imposto ao país pela ditadura militar. Nós somos filhos da repressão, e ao mesmo tempo, a sua antítese. Sua contradição. Viagens opostas, conclusões semelhantes. De qualquer maneira, parece que fica claro, pela exposição de nossas trajetórias, que o pensamento libertário e anárquico que preside os dois pensamentos não poderia crescer com o patrocínio do arbítrio e do totalitarismo, como na URSS, mas poderia servir de instrumento de sobrevivência e resistência aos seus efeitos, como no Brasil. No caso do Tá Na Rua, o que parecia uma resposta à repressão se transformou, mais tarde, na própria razão de existir do grupo, também um modo de vida e uma pedagogia com traços de Paulo Freire, Darcy Ribeiro, Augusto Boal, Brecht, Shakespeare e outros menos ilustres, que talvez nem conheçamos. Cada um por seus caminhos, com os olhos no mesmo horizonte.

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CADERNO DOIS de A GAZETA. Vitória, 20 de setembro de 1997

Festivo espetáculo do sagrado Auto sacro encerra as homenagens ao IV Centenário da morte de Anchieta

O auto sacro Na Vila de Vitória, escrito por José de Anchieta há mais de quatro séculos, foi encenado segunda-feira, na forma de um espetáculo de teatro de rua. A apresentação aconteceu no adro do santuário do beato, em Anchieta-ES, durou duas horas e seis minutos, e mostrou ao público que o tema abordado pelo beato em sua peça, a ingratidão humana, continua atual. Nem mesmo o fato de algumas cenas terem se alongado demais tirou o brilho da montagem, que foi dirigido por Amir Haddad. O diretor é especialista em espetáculos para ambientes abertos e fez excelente aproveitamento do espaço em frente, nas imediações do santuário. A nave central e a torre do sino foram igualmente utilizadas. Satanás e Lúcifer foram posicionados sobre o tablado, em frente ao santuário, enquanto São Domingo – general tebano que virou santo ao ser morto com todos os seus soldados, por

Alvarito Mendes Filho

ordem do imperador romano, por ter se convertido ao Cristianismo – aparece sobre a torre do sino. Os atores e figurantes surgiram de todos os cantos. Foi bem escolhida a trilha musical que marcou o ritmo festivo do espetáculo. Nela misturaram-se o clássico e o dance, passando pela música sacra. Ao embalo de Everybody Dance Now, o cortejo da serpente, que simboliza a ingratidão humana, invade a cena.


A serpente da ingratidão é expulsa e a Vila de Vitória se casa com o Bom Governo, com as bênçãos do amor e do temor divinos, que entram, cada qual sobre um andor. Os dois cortejos se juntam para a grande festa. A grande queima de fogos, no final, foi bonita, mas perigosa. Tanto que as fagulhas da cascata de fogos, armada na fachada do santuário, queimaram parte dos adereços. Uma das peças danificadas foi um dos grandes bonecos (como os de Olinda) utilizados na encenação. Os bonecos e a serpente são adereços que emprestaram grande beleza à encenação, assim como a luz criada por Ary Roaz. PROBLEMAS – As falas da peça foram gravadas em estúdio, o que não evitou que o público tivesse dificuldade para entender algumas delas. Algumas cenas poderiam ser reduzidas à metade, sem prejuízo para o entendimento da história. O público moderno está acostumado com a linguagem do videoclipe, que conta com a rápida mudança de quadros. Porém, ficou claro que a intenção do encenador foi a de preservar o texto quase em sua integralidade, para que as pessoas tivessem uma idéia de como eram os autos de Anchieta. Algumas imagens criadas foram de grande beleza e significação. Como aquela em que a figura da Justiça é avariada por Satanás. Da mesma forma que a do Hércules negro, interpretado pelo ator Markus Konká, que atravessa a cena carregando o globo terrestre sobre os ombros. Dos 120 figurantes previstos inicialmente, apenas cerca de 80 participaram. Entre os profissionais, destaque para a atuação de Beth Caser, no papel da Vila de Vitória. Tiveram boa participação também Júlia Duarte (no papel do Amor de Deus), Verônica Guimarães (o Bom Governo). Paulo Preto e Eliezer Almeida completaram o elenco. O secretário de Cultura, Maciel de Aguiar, gostou do que viu. “Estou feliz por termos conseguido viabilizar o espetáculo em apenas três meses”, comemorou. A moradora de Anchieta, Cezira Cassilhas, de 71 anos, adorou a encenação. “Achei lindo. Lindo”, repetiu. Sua nora, Gina Cláudia, de Vitória, assistiu à peça dividindo com o marido a tarefa de segurar o garoto Vanderson, de 1 ano e quatro meses, e também gostou. “Foi mais bonito do que eu esperava”. O jovem Vinícius Fonseca, de Guarapari, assistiu, no domingo, ao último ensaio geral e ficou temeroso. “Ainda bem que, na apresentação, os erros não voltaram a acontecer”, comentou. O percussionista Flávio Carvalho, da Banda Manimal, acompanhou os dois últimos ensaios e a encenação. “Há tempo não se via um espetáculo aqui no estado”, opinou. O empresário Marco Galfetti se emocionou com a peça. “Pelo envolvimento da comunidade pela mistura, promovida por Haddad, do erudito com o Carnaval, ficou muito bom”, opinou. O padre Licurgo, responsável pelo processo de santificação de Anchieta, confessou que, em princípio, teve medo que o texto de Anchieta não agradasse ao público.”Mas as pessoas participaram da encenação de forma expressiva. Foi emocionante”.


Realizado em 1999, 2000 e 2001, o Auto da Liberdade de Mossoró, Rio Grande do Norte, permitiu a Amir Haddad pôr em prática as pesquisas de linguagem teatral desenvolvidas até então junto ao grupo Tá Na Rua. Para a execução desse evento, foram realizados vários procedimentos que visavam instaurar, no sentimento do cidadão, um estado coletivo semelhante à carnavalização vigente no período momesco, tendo como fundamento a recuperação do sentido de festa para o teatro, baseado na teatralidade e dramaticidade das grandes manifestações populares profanas ou religiosas. A cidade de Mossoró sempre comemorou a data de Trinta de Setembro como feriado municipal. Foi neste dia que a cidade tomou a decisão de abolir a escravidão no município, o primeiro no Brasil (1883). A prefeitura organizava, anualmente, um grande desfile cívico paramilitar e eventos esportivos, como maratonas, e uma nacionalmente conhecida corrida ciclística que atraía esportistas do país e exterior. Um palanque oficial era montado, de onde as autoridades da cidade e convidados, como o governo do Estado, assistiam às atividades. A prefeitura da cidade pretendia transformar a data em uma grande celebração, e com este objetivo convidou Amir Haddad e o Tá Na Rua para estudarem a possibilidade de se criar um conceito e uma estética novos para o evento. Uma vez aceito o convite para redimensionar o desfile cívico, descobrimos, através de conversas com historiadores e cordelistas locais, outros três fatos muito pitorescos e importantes que faziam parte da memória do povo do semi-árido: a) a realização de um famoso motim das mulheres contra o alistamento militar obrigatório de seus maridos e filhos para a Guerra do Paraguai em 1875; b) que teria sido esta a única cidade a derrotar Lampião e seus cangaceiros, expulsos nessa ocasião pelo prefeito, inclusive com a morte de Jararaca (1927); e c) fora em Mossoró o primeiro voto feminino na América Latina (1927). Resolvemos incorporar imediatamente estas narrativas ao 30 de Setembro, resgatando a memória popular e possibilitando uma reflexão sobre a formação da sociedade mossoroense. O elenco era formado por cidadãos comuns e alguns atores amadores, que passaram por uma oficina de formação e desenvolvimento do ator para espaços abertos,

Licko Turle

coordenada por Amir Haddad e integrantes do Tá Na Rua, para que pudessem encenar as histórias gravadas no inconsciente coletivo daquela comunidade, restaurando seus


personagens num cenário aquecido: o coração da cidade. Não podíamos simplesmente suprimir o desfile cívico, quase centenário. Por isso, procuramos por todos os grupos de cultura e artistas populares da região, buscando sua adesão. Promovemos oficinas de capacitação e requalificação dos profissionais de ensino das redes pública e privada, de forma que estes abordassem a história da cidade em sala de aula e integrassem seus alunos ao grande cortejo que estava sendo modificado e ampliado. Criamos um barracão/ateliê nos mesmos moldes daqueles das escolas de samba do Rio de Janeiro e construímos alegorias sobre rodas, uma para cada um daqueles temas históricos. Alegorias estas que, uma vez acopladas e estacionadas na rua localizada no fundo do palco, transformar-se-iam em cenário para a apresentação do espetáculo. Pela estrutura dramática que se foi delineando, resolvemos denominar a celebração como Auto da Liberdade. Convidamos os poetas e cordelistas da cidade para criarem o texto a ser narrado, assim como todas as organizações comunitárias, públicas, folclóricas, escolas de samba, de Terceira Idade, grávidas, militares, para-militares (e até algumas representações de municípios próximos) para desfilarem com suas idéias, cores, roupas, alegria. Enfim, todos aqueles que desenvolviam algum trabalho artístico ou social decidiram participar do evento com suas próprias identidades, semelhanças, diferenças e contradições. Queríamos mostrar à cidade a sua diversidade cultural. Todos eram simultaneamente atores e espectadores, poderiam ver e serem vistos. Aproximadamente 6.000 mil pessoas participaram deste cortejo dramático, que se deslocou por dois quilômetros e culminou na Praça da Estação das Artes, onde foi contada a história da liberdade de Mossoró pela ótica de seus próprios moradores. . A performance urbana coletiva cumpriu a função de propiciar, através do teatro, a reflexão sobre o nível de cidadania que o município possui. O circo etéreo se despediu da cidade, mas o Auto da Liberdade ficou e é encenado anualmente pelo povo de Mossoró que usa como cenografia, a sua arquitetura urbana, e como atores, os seus cidadãos. Com esta experiência, foi possível aquecer o coração da cidade com o teatro. Estabelecer momentos de reencontro e de auto-estima. Foi um verdadeiro exercício de cidadania, concretizado de forma artística e, porque não dizer, didática!


Os anos de trabalho do Grupo Tá Na Rua, levando o teatro para os espaços abertos de ruas e praças, fortaleceram a sua visão sobre a importância das grandes festas, das comemorações coletivas na vida cultural das cidades e sobre a imensa dose de teatralidade contida em tais acontecimentos. Dentre essas comemorações, as manifestações religiosas, prenhes de características festivas, estabelecem a união das pessoas em torno de uma crença comum e, assim, possibilitam o fortalecimento do sentimento de pertencer, de ser um igual — être du même monde — abrindo espaço para a instalação de um estado dramático perfeito. Durante o lapso de tempo dessas festividades, sacraliza-se o espaço profano do cotidiano, tornando possível a coexistência de sentimentos e atividades normalmente antagônicas: o povo reza e bebe junto. A festa é de todos e para todos — caráter coletivo que a preside e que congrega toda a população, fortalecendo sua identidade. Trabalhar espetacularmente essas manifestações vem se tornando uma constante no processo teatral do Tá Na Rua, principalmente pela dramatização de Autos de Natal em diversas cidades brasileiras. Surgidos na Idade Média, integrados às festividades do ciclo natalino, esses Autos representam o nascimento de Jesus. Gradativamente, não só os anjos, mas também pastores,

Grupo Tá Na Rua

pastoras, os Reis Magos, Herodes e sua corte passaram a povoar o universo onde Maria, José e o Menino Deus gravitam. Ao mesmo tempo, as representações gradativamente foram deixando o interior das igrejas e para ganhar os pátios dos monastérios, as praças dos mercados,


estabelecendo assim, em sua realização, a integração natural entre o sagrado e o profano. Hoje, quando o Tá Na Rua leva para a praça um Auto de Natal, está se propondo a mostrar não apenas a história desse nascimento, mas a estabelecer uma forma de falar do amor, da generosidade, da esperança e do renascimento presentes nessa festa, reencontrando, assim, pela forma espetacular, novas roupagens para travestir esses sentimentos, tantas vezes ausentes da nossa realidade cotidiana mas que, entretanto, se encontram profundamente entranhados na tradição natalina brasileira. Para isso, concebemos o nosso Auto natalino como uma grande praça; um espaço em que, por um período de tempo, a cidade revive a alegria, a força de seu povo. Artistas, artesãos, o teatro, o povo na rua, todos fazemos a grande festa, transformando esse espaço numa grande feira medieval. Tentamos unir todos esses elementos teatralizando a narrativa do poema MEU CARO JUMENTO, do cordelista Patativa do Assaré que, com a sua linguagem simples, fala do jumento que carregou Maria e Jesus na fuga para o Egito e de como, da mesma forma que o trabalhador brasileiro, é maltratado e abandonado por aqueles que deveriam amá-lo, mas que o exploram. Assim, Patativa criou um verdadeiro Auto de Natal, sintetizando todos os conteúdos da festa e do nosso pensamento. Esperamos que, através de nosso trabalho, possamos humildemente e dentro do mais puro espírito natalino, colaborar para a consolidação, ainda que temporária, de um espírito de comunhão e harmonia que possa ser vivido, de fato, por toda uma coletividade.


Meu trabalho nas ruas, apesar das aparências, tem mais a ver com o carnaval que com o teatro tradicional. Ou melhor, tem mais a ver com as manifestações tradicionais de cultura popular, dramáticas ou não, aí incluindo o carnaval, do que com o teatro tradicional, desenvolvido pela

Amir Haddad

burguesia nos últimos séculos. Assim, era

natural que eu esperasse um chamado para o samba.


A bem da verdade, devo dizer que já fui jurado do desfile na Marquês de Sapucaí, antes da construção do Sambódromo e antes de ter a minha imagem identificada com o teatro de rua. Fui chamado, então, por ser uma artista, intelectual da classe dominante, portanto com crédito e respeitabilidade para julgar o grande desfile do povo. Foi Joãozinho Trinta quem percebeu - ou intuiu - a ligação do meu trabalho de rua, pequeno, artesanal, com o seu, gigantesco, nacional e (semi) industrial. Ele queria teatralizar o Carnaval e eu queria carnavalizar o Teatro.


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} O Tá Na Rua apresenta:

Há cerca de dez anos o Tá Na Rua vem desenvolvendo seu trabalho pelas praças e ruas do país, mas principalmente, é claro, do Rio de Janeiro. Esteve em São Paulo em 1981, no Festival Internacional de Teatro, quando fez duas apresentações no coração da cidade (Praça da Sé). Durante esse largo tempo o grupo pôde desenvolver prática e teoria extensas a respeito do trabalho teatral em áreas abertas, atendendo a um público composto por todos os extratos de nossa complexa, caótica e injusta estrutura social. Na verdade o grupo reúne, à sua volta,

do cachorro vagabundo ao milionário distraído, passando pelo mendigo, pivete, estudante, até o crítico desorientado, cujos critérios não servem para nada diante de nossas apresentações. O Tá Na Rua tinha, já pronta, uma elaboração teórica que permitia, em tese, a transformação de seu espetáculo atual, mas não tinha à mão os recursos necessários para efetivar essa transformação. Foi quando chegou o convite de Joãozinho para que o grupo viesse a participar de seu carnaval. Não hesitamos nem um segundo em aceitar. Sabíamos

que

seria importante, embora não soubéssemos como. Logo nos nossos primeiros encontros o carnavalesco expôs suas idéias a respeito do cortejo e do roteiro que pretendia desenvolver. Ao mesmo tempo, ressaltava a importância definitiva do que ele vinha chamando de teatralização do carnaval. Sua própria exposição do enredo e os carros que vimos em construção deixaram evidente a extrema qualidade do cortejo. Os mendigos, a Igreja, as

prostitutas e cafetões no carro do sexo, os napoleões, os militares apocalípticos, os políticos, os políticos travestidos em Carmem Miranda e com as bundas de fora e o carro final, onde os mendigos se purificavam, faziam imediatamente pensar em Fellini, Buñuel e Jean Genet. E ao mesmo tempo, em Brasil, Brasil e Brasil. De repente, estava diante de nós a possibilidade de escapar da pequena roda de rua medieval e artesanal, e testar a nossa capacidade - evidente no pequeno - no grande evento oficial da Marquês de Sapucaí. Descrever o impacto que o cortejo armado pela Beija-Flor causou, principalmente a ala dos mendigos, é agora absolutamente desnecessário. Mas quero revelar a imensa alegria (“euforia que consome”, como diz o samba) que se apossou de nós com a resposta do público, da imprensa e de todo o mundo às propostas inovadoras contidas na apresentação. Em relação ao teatro, abriu-se uma possibilidade inesperada numa região também inesperada – a do samba. A sensação que nós, pessoas que fazemos teatro no país, sentimos - solidão, abandono, falta de perspectiva, fragilidade econômica, mediocridade, público reduzido e desinteressado, distância da grande, mas grande mesmo, maioria da população, alienação e esterilidade intelectual e vanguardista - imediatamente desapareceu. A sensação de desânimo, de sufoco, falta de


Dar não dói, o que dói é resistir: Uma síntese de 25 anos {

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esperança e tudo mais o que assola a alma do brasileiro também desapareceu. E tudo porque de repente nós sentíamos que o teatro estava vivo como o futebol e o samba, e que nós

também estávamos vivos e que principalmente todo aquele povo (80.000 pessoas), sem distinção de classe, também estava vivo e se identificava com o desfile da Beija-Flor, principalmente com os mendigos, porque é assim que se sente hoje o homem brasileiro. Joãozinho revelou para a nossa gente que

o mendigo é o arquétipo brasileiro perfeito.

E a passagem da escola pela Avenida do Samba adquiriu força de ritual. E aquele Cristo (proibido pela Igreja, imagine!) coberto de negro, com os braços abertos sobre a Guanabara de mendigos, deixou de ser uma imagem do Rio de Janeiro para se tornar simbolicamente a imagem do país inteiro. “Salve Joãozinho, os que vão morrer te saúdam”.

E lá estava o teatro vivo e forte, revigorado pela força do samba. E já se pode começar a pensar em Teatro Popular Brasileiro, como se fala em Música Popular Brasileira. De onde menos se esperava emergiu a esperança. Se o resultado foi bom para o teatro, não foi pior para o samba porque este também se encontrava num momento difícil. Ou levava o luxo de suas apresentações até um ponto de não retorno, ou renovava seu sangue e sua vitalidade de maneira definitiva. E foi o que se viu – o teatro revelou ao samba que ele também estava vivo e que, se quiser, não se perderá na esterilidade de suas grandes produções. O samba também respirou aliviado. O teatro, em sua forma popular, lhe trouxe o alento que começava a faltar. O Brasil pode iniciar aqui uma magnífica revolução cultural e seu povo poderá ter um também magnífico instrumento de expressão, que deverá colaborar intensamente com as transformações sociais que inevitavelmente acontecerão no país nos próximos anos, até o Terceiro Milênio. Apesar da Arquidiocese...


Jussara Trindade


Neste ano de 2005, o diretor Amir Haddad está sendo homenageado pelo Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos do Cabral, com o enredo “Amir Haddad - da Lapa ao Cabral - Carnavalizando o Teatro, Teatralizando o Carnaval”. Este fato vem ratificar a importância do trabalho desenvolvido pelo grupo Tá Na Rua dentro do cenário carioca, demonstrando a íntima e fecunda relação existente entre o teatro e o carnaval, construído como uma verdadeira liturgia popular dentro da dramaturgia utilizada pelo grupo. O objetivo das Oficinas Preparatórias que antecedem o desfile é, além de preparar corporal e afetivamente os seus participantes, é proporcionar aos mesmos o entendimento (intelectual e emocional, da teoria e da prática) dos diversos significados desta festa popular: histórico, social, artístico, sob a forma de elaboração verbal ao final de cada ensaio-oficina. O grupo Tá Na Rua, responsável pela direção artística do desfile desta Escola de Samba, está realizando, em sua sede (a Casa do Tá Na Rua, na Lapa) uma preparação baseada em repertório musical específico, principalmente marchinhas carnavalescas e sambas-enredo dos carnavais de todos os tempos, além do samba-enredo da Unidos do Cabral para 2005. O coletivo considera fundamental o entendimento da letra e da melodia, que é um hino para a escola, cujo toque rítmico inicial deverá atuar como um “ponto de umbanda” para os participantes, um verdadeiro detonador musical de afetos, para possibilitar uma entrada gloriosa da escola no desfile. Por isso, ensaios com a bateria da escola estão sendo realizados em sua quadra, situada no bairro Caxambi, Zona Norte do Rio de Janeiro. É também do Tá Na Rua a responsabilidade pela construção dramatúrgica do desfile em si – a harmonia do conjunto, a ordem das alas e das alegorias. Além disso, alguns integrantes do grupo estão participando em áreas artísticas específicas, como a elaboração das fantasias, adereços e carros.


Foi produzido, pela agremiação, um CD com o samba-enredo que relata a relação de Amir Haddad com o Carnaval carioca, passando por suas origens familiares, o contato inicial do diretor com a riquíssima cultura popular do Norte e Nordeste do país, e as suas experiências como homem de teatro já dentro do Carnaval. Várias fontes históricas estão sendo consultadas para esta pesquisa. Trata-se de uma oportunidade singular para a realização de uma experiência ainda não vivida pelo grupo – a de participar ativamente na criação de todas as etapas de um desfile, de dentro de uma escola - e não apenas participando do evento final, como até então, quando o Tá Na Rua desfilara numa das alas de outras escolas, em carnavais passados. Para Amir Haddad,

carnavalizar o teatro é reconduzir o teatro atual, em sua avaliação completamente

contaminado pela ideologia de um grupo social hegemônico, às

suas raízes mais profundas e verdadeiras,

anteriores ao momento histórico em que o pensamento da burguesia ascendente torna-se verdade e altera profundamente a visão de mundo no ocidente; é

principalmente devolver a liberdade de criação ao ator, perdida neste processo; teatralizar o Carnaval, por outro lado, é proporcionar ao carnaval de hoje, banalizado pelas necessidades efêmeras da indústria cultural e da mídia, uma significação profunda e um conteúdo que vem se esvaziando ano após ano e absorvendo elementos estranhos, de natureza marcadamente propagandística, para entregar novamente a ele a narrativa, a história que a escola quer contar; enfim, restituir a função social desta festa que, nos últimos anos, vem transformando o folião em um simples “carregador” de adereços e alegorias, não sendo mais o depositário e agente transmissor de um saber popular coletivo, das heranças culturais passadas de geração a geração. Para o grupo, a perspectiva desta experiência é constatar a possibilidade de se construir uma dramaturgia baseada na dinâmica carnavalesca onde, por exemplo, os carros alegóricos são cenários móveis; o enredo, o texto dramático; os foliões, o grande coro grego a replicar, cantando, como um grande cortejo para homenagear Dioniso, o deus do teatro. Além disso, todo o trabalho coletivo que antecede o desfile irá propiciar o cumprimento da função primordial do teatro do Tá Na Rua, que é a promoção da cidadania. Por isso, um dos aspectos mais importantes, que está sempre presente nos ensaios dessas oficinas, é a preocupação dos coordenadores com o entendimento – mental, e corporal e afetivo – dos participantes acerca do Carnaval como uma celebração profundamente humana, numa concepção coletiva e não dicotomizada do homem. Um

trabalho festivo, mas também profundamente sério – uma marca da linguagem teatral desenvolvida por Amir Haddad e o grupo Tá Na Rua em seus vinte e cinco anos de estrada.


Vem da Arábia, Das mil e uma noites, O valor e toda a herança Do Mestre Amir Haddad, o inovador. Menino mascate, príncipe ferreiro, Mineiro da arte que encontrou Na faculdade seu destino: Um palco iluminado de amor. “T.B.C.” seu prazer, o seu berço teatral. Foi premiado como grande diretor No seu primeiro festival.

Autores: Marcelo Lopes, Ribamar, Rangel, Jorge Machado, Flávio Santos e Braga da Abolição

AMIR HADDAD, DA LAPA AO CABRAL... CARNAVALIZANDO O TEATRO, TEATRALIZANDO O CARNAVAL E viajou para Belém do Pará, Se admirou com a cultura de lá: A natureza, o índio e a fé Da procissão do Círio de Nazaré.

Abrindo as cortinas pro sucesso O professor resistiu à censura Com tanta bravura, Pelo Rio se apaixonou. Pra Lapa, levou o folclore nacional, Consolidando sua carreira teatral E através das escolas de samba, Essa união de bambas, Carnavalizou o teatro nacional E uniu várias culturas do meu Brasil, Teatralizando o nosso carnaval.

“Tá Na Rua”, meu amor Sou alegria, sou teatro e carnaval. Vem curtir esta folia Na Unidos do Cabral.


Até 2008 participaram deste processo os seguintes artistas:

Amir Haddad, Alessandro Perssan, Alexandre Santini, Aldo Perrotta, Ana Carneiro, Ana Candida, André Muñoz, Antonio Firmino, Artur Faria, Aylton Farias, Barbara Castro, Bernardo Guerreiro, Betina Weissmam, Bida Nascimento, Clara Soria, Cíntia Santana, Daniel Rolim, Disnael dos Anjos, Fernanda Machado, Fernanda Paixão, Francisco Couto, Heleno Pedroso, Heloisa Montenegro, Henrique Cukierman, Inêz Viegas, Ingrid Medeiros, Ivo Fernandes, João Grilo, João Herculano, José Tarciso, Juliana Alvez, Karina Assunção, Katia Brito, Letícia Almeida, Licko Turle, Lucy Mafra, Luciana da Costa, Malcon Soares, Marcele Pedroso (in memorian), Marcelo Bragança, Marcelo Carneiro, Marcia Kaskuz, Mariah da Penha, Marilena Bibas, Mery Alentejo, Miguel Campelo, Mônica Saturnino, Monique Rocco, Netinho, Nino Rodrigues, Paula Damasceno, Paulo Pereira, Paulo Rafael, Paulinho de Andrade, Pimpolho das Candongas, Rejane Ramos, Ricardo Pavão, Roberto Black, Roberto White, Rosa Douat, Sandro Valério, Sergio Luz (in memorian), Silamir Santos (in memorian), Teresa Moulin, Thatiane Mattos, Thiago Motta, Toninho Vasconcelos, Valéria Moreira,Yasmini Floriano e Zeca Ligiero.


Créditos Fotografias: Chico Ybarra Elias Fazendo Eugênio Reis Fernando Lemos Guga Melgar Gustavo Monteiro Maria Camargo Paulo Azevedo Paulo Magnavita Pedro Lage Renato Velasco Studio 1

Desenhos: Amir Haddad (em “A função da função ou o Circo Etéreo”) Marcelo Costa (em “Amir Haddad, da Lapa ao Cabral....”) Marcos Corrêa (intervenções sobre fotografias)

Escritos: retirados de anotações de Amir Haddad (na capa e na página de ante-rosto)

Textos: Amir Haddad - Diretor teatral, fundador do grupo Tá Na Rua, professor de teatro. Ana Maria Carneiro - Atriz fundadora do grupo Tá Na Rua, participou até 2002. Atualmente, é professora efetiva na Universidade Federal de Uberlândia/MG. Sérgio Luz (in memorian) - Ator fundador do grupo Tá Na Rua. Marcelo Bragança - Ator, Animador Cultural, participou do grupo Tá Na Rua entre 1983 e 1992. Licko Turle - Doutorando e Mestre em Teatro, Cultura e Educação, professor de Literatura, ator e produtor, integrante do grupo Tá Na Rua desde 1995. Jussara Trindade - Doutoranda e Mestre em Teatro, Cultura e Educação, professora de música, pesquisadora do grupo Tá Na Rua desde 1999. Alexandre Santini - Bacharel em Teatro, Ator, integrante do grupo Tá Na Rua desde 2002. Gambarini Camargo - Jornalista, assessor de imprensa. Alvarito Mendes Filho - Jornalista.




Se oceis pensa Qui nóis fumos embora Nóis enganemos oceis Nóis fingimos qui fumos E vortemos Oi nóis aqui travêis. Nóis tava indo Tava quase lá Arresorvemo E vortemo pra cá Agora nóis vai ficá freguêis Oi nóis aqui travêis.

Música de Geraldo Blota e Joseval Peixoto (1952)

ÓI NÓIS AQUI TRAVÊIS


Evoé!


A presente edição deste livro, produzido pelo Instituto Tá Na Rua para as Artes, Educação e Cidadania e integralmente desenhado pelo Ato Gráfico (design de capa e projeto gráfico de miolo), foi impressa no outono do ano de 2008 nas oficinas da Grafitto Gráfica e Editora sobre papel Reciclato LD 90 g/m2 para o miolo e Cartão Supremo 250 g/m2 para a capa. Os textos foram compostos em Meta Plus e os títulos em Light&Black.




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