Projeto de revista para faculdade

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ENTREVISTA PHILIPPE LIORET

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IMIGRAÇÃO EM FOCO Em entrevista exclusiva para a 2001, o diretor Philippe Lioret fala sobre Bem-Vindo e o atual governo francês Por Eduardo Lucena Tradução de Stéphane Davoine

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ENTREVISTA PHILIPPE LIORET

Para um espectador distante de seu país que vê o filme, é difícil acreditar que exista tamanha perseguição do governo francês a cidadãos que se envolvem com imigrantes ilegais; é uma realidade assustadora. Como surgiu a ideia para Bem-Vindo? A ideia de fazer o filme me ocorreu quando descobri essa estranha lei francesa que pune com cinco anos de prisão qualquer um que ajude uma pessoa em situação irregular. O governo atual utiliza essa lei para incentivar os cidadãos a virar as costas para a miséria dos imigrantes – que fogem de seus respectivos países em guerra, como o Afeganistão hoje. O obstinado Bilal é inspirado em algum jovem que o senhor conheceu? Sim. Bilal nasceu de dois encontros durante as pesquisas que realizei em Calais [cidade portuária francesa] antes de escrever o roteiro do filme. Um era curdo e outro afegão, ambos com 17 anos. Eu dediquei o filme a eles. Como foi feita a escalação do elenco, em especial Vincent Lindon?

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Ainda que trate de um problema real, Bem-Vindo é, acima de tudo, um filme de cinema. Portanto, eu precisava de um grande ator de cinema, e Vincent é hoje um dos maiores nomes do cinema francês. Quanto a Firat Ayverdi [que interpreta Bilal no filme], eu o encontrei depois de seis meses de busca na Turquia, Alemanha, Inglaterra e Suécia... para finalmente achá-lo na comunidade curda de Paris. Ele é surpreendente... Em entrevistas, o senhor afirmou que na França “até cachorros são melhor tratados que os imigrantes”. Depois do lançamento de Bem-Vindo, houve algum problema com o governo ou pressão contra o filme? Temos na França um novo ministério “sarkoziano”, que é o “Ministério da Imigração e Identidade Nacional” – uma vergonha para o chamado país dos direitos humanos –, implementado para atrair os eleitores da extrema direita e sob a responsabilidade de um ministro [o ex-socialista e controverso Eric Besson] que recentemente virou a casaca (fazia parte da oposição até as últimas eleições). É óbvio que esse ministro criticou vigorosamente a veraci-

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dade de Bem-Vindo quando este estreou, nos oferecendo afinal propaganda involuntária. Portanto, eu agradeço a ele por ter participado do sucesso do filme... Mas, falando sério, esse homem me deixa triste. Tenho dificuldade para entender como é possível adotar tal postura humana por ambição pessoal, perseguindo esses moleques e os voluntários que tentam ajudá-los. Em uma cena rápida, o presidente Nicolas Sarkozy aparece em um programa de televisão. Qual é a sua opinião sobre o atual governo e sua política em relação aos estrangeiros no país? Sarkozy é um eterno candidato às próximas eleições. Ele governa de olho nas pesquisas de opinião, sabendo muito bem que o populismo continua sendo um valor certeiro e que apontar os estrangeiros como responsáveis por todos os males é uma técnica que funciona. E como ele também mente sistematicamente, eu tenho, como muita gente, uma opinião ruim sobre ele. O filme evita o discuso político e mostra que as grandes transformações só podem ocorrer a partir de uma mudança de atitude das pessoas. Por que é tão difícil vencer a discriminação sofrida pelos imigrantes ilegais? Por motivos eleitorais, o governo estigmatiza os estrangeiros, aqueles que são “diferentes”, deixando subentendido que eles são responsáveis por nossos problemas. É complicado sensibilizar as pessoas, humanizá-las, nessas condições. Mas acredito que essa enganação não vai durar muito tempo, pelo menos é isso que eu espero.

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ENTREVISTA PHILIPPE LIORET

Muitos consideram ingênua a afirmação de que a arte pode mudar o mundo. De certa forma, Bem-Vindo conseguiu gerar mudança, não? O filme provocou intenso debate na França e incitou o Partido Socialista fcvrancês a criar um projeto que propõe o fim da criminalização de quem ajuda um imigrante ilegal... O filme existe graças à curiosidade dos espectadores que o tiraram do anonimato. Graças a esse sucesso, houve um efeito “bola de neve”. Acredito que ele tocou as pessoas, fazendo com que elas se questionassem. E em seguida apareceram os políticos da oposição para mudar essa lei injusta. Eu não faço parte de nenhum partido e tenho consciência que o filme foi usado para fins políticos – mas foi por uma boa causa. No atual cinema francês há uma nova onda de produções (O Segredo do Grão, Entre os Muros da Escola, o recente O Profeta) que investigam

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as tensões raciais no país, vv sem retoques a realidade. Quais seus cineastas favoritos e os filmes que o instigam hoje? Gosto do cinema naturalista, que fala das nossas vidas hoje, o cinema que conta o “agora”. Ken Loach, por exemplo, não é somente um diretor engajado, mas alguém que também reflete sobre nossas vidas. No entanto, gosto também que um filme me transporte para longe. Eu me sinto próximo dos filmes de Arthur Penn, de Pedro Almodóvar e também de jovens diretores franceses como Stéphane Brizé, Jérôme Bonnel... No início de sua carreira, o senhor trabalhou como engenheiro de som, tendo colaborado inclusive com o cineasta brasileiro Paulo César Saraceni [em Natal da Portela, de 1988]. Como foi a experiência no Brasil? Durante as filmagens de Natal da Portela, encontrei a mãe dos meus filhos. Minha filha primogênita foi concebida no Rio. O que mais posso dizer...

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Philippe Lioret

Nascido em 10/10/1955, em Paris, trabalhou como técnico de som em diversas produções, dentro e fora da França, como o documentário Bring on the Night (1985), sobre a turnê homônima de Sting com músicos de jazz; Além da Terapia (1987), de Robert Altman; e Natal da Portela (1988), do brasileiro Paulo César Saraceni. Estreou na direção com Tombés du Ciel (1993), com Jean Rochefort como um homem detido em aeroporto internacional por estar sem documentos e sapatos. Embora conhecido por seu engajamento social, Lioret também dirigiu comédias, como Tenue Correcte Exigée (1997), com Elsa Zylberstein (de Há Tanto Tempo que Te Amo), e Mademoiselle (2001), estrelado por Sandrine Bonnaire. Em 2006, lançou Não Se Preocupe, Estou Bem, que conquistou o César de atriz mais promissora para a jovem Mélanie Laurent, a vingadora Shosanna de Bastardos Inglórios. Bem-Vindo (2009), mais recente trabalho do cineasta, provocou profundo desconforto na França ao retratar a condição de imigrantes ilegais no norte do país e acirrou ainda o debate em torno das leis antiimigração – que punem não só os estrangeiros, mas também os cidadãos franceses que os ajudam. O esforço humanista de Lioret foi recompensado: além do sucesso de público e exposição na mídia, o filme acaba de receber 10 indicações ao César (o Oscar francês), incluindo melhor filme, diretor e ator (Vincent Lindon).

“Por motivos eleitorais, o governo estigmatiza os estrangeiros, aqueles que são ‘diferentes’, deixando subentendido que eles são responsáveis por nossos problemas”. Philippe Lioret 2001 Vídeo - Edição Especial - 2011

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ENTREVISTA KEN LOACH

CINEMA ENGAJADO

Por telefone, o cineasta britânico Ken Loach concedeu entrevista exclusiva para a 2001 Vídeo, e falou sobre À Procura de Eric, futebol e, é claro, política Por Eduardo Lucena

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ENTREVISTA KEN LOACH

O projeto começou com Eric Cantona? Cantona teve a ideia de fazer um filme sobre o relacionamento dele com um fã que acaba se tornando amigo e a produtora francesa Why Not me apresentou o projeto. Então, eu e Paul Laverty [roteirista do filme] nos encontramos com ele... Como somos fãs de futebol e de Cantona, um jogador brilhante, começamos a desenvolver o projeto. Paul esboçou a história e ele gostou. De certa forma, Cantona é o primeiro astro que o senhor dirige. Como foi trabalhar com ele? É verdade, Eric é o primeiro. Muitos dos atores com quem trabalhei ficaram famosos somente depois que trabalharam comigo [Robert Carlyle, por exemplo]. Foi muito bom trabalhar com Eric Catona: ele tem ótimo senso de humor, sabe brincar com sua imagem pública e como trabalhar em cooperação, algo que certamente aprendeu no futebol – jogar pelo time. Fale sobre sua relação com o futebol. Não sou um fã do Manchester United [Ken Loach torce para o Bath City FC], não é o meu time, mas todo mundo era fã de Cantona na época em que ele jogou na Inglaterra. Ele sabia comunicar a alegria do futebol por meio de sua postura e performance dentro de campo. É verdade que o senhor e equipe esconderam do ator Steve Evets [o protagonista Eric Bishop] que Cantona interpretaria ele mesmo e dividiria cenas com ele?

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Sim, nós queríamos surpreendê-lo quando ele visse o Cantona pela primeira vez, pois Steve não o tinha visto pessoalmente ainda e não sabia que ele estava no filme. Então, escondemos Cantona atrás de uma cortina e fomos filmar a cena. Quando ele apareceu pela primeira vez no quarto, Steve estava olhando o pôster em tamanho real na parede e levou um grande susto – a reação que queríamos. Gostamos de trabalhar o elemento surpresa com o elenco. O filme marca mais uma parceria do senhor com Paul Laverty [roteirista de, entre outros, Pão e Rosas, Meu Nome é Joe e Ventos da Liberdade]. Somos grandes amigos há muito tempo, acho que dividimos muitas coisas em comum – como o mesmo entusiasmo e visão política. Estou muito feliz com a parceria, é muito bom ter alguém para compartilhar ideias, além disso, ele é muito mais jovem que eu [Loach tem 73 anos e Laverty, 52] - isso ajuda também. Antes da consagração da crítica nos anos 1990, o senhor enfrentou muitas dificuldades na década de 1980. Fale um pouco sobre o período. Foi uma época muito difícil para o Reino Unido porque foi a década de Margaret Thatcher, uma política de extrema direita que atacou sindicatos, fechou fábricas, ou

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seja, tinha uma política muito agressiva contra a classe trabalhadora. Com reflexos até hoje... Tony Blair e Gordon Brown [atual primeiro-ministro britânico] continuam as mesmas ideias. Mas os anos oitenta foram os piores, você não podia ter ideias contrárias às de Thatcher, senão era censurado... À Procura de Eric mostra um grande senso de solidariedade. O senhor acredita que o cinema ainda é capaz de mudar o mundo – ou ao menos o indivíduo? Bem, eu realmente não sei... Um filme não é um movimento político, não é? É apenas um filme, mas pode tomar parte no debate público, quero dizer, pode forçar pensamentos e ter uma pequena influência nas pessoas que o assistem. Seu trabalho anterior, Mundo Livre [ainda inédito no Brasil], tratou de temas urgentes, como a neoliberalismo, o livre comércio e a imigração ilegal. Qual sua opinião sobre a imigração, um tema delicado cada vez mais presente no cinema europeu? Acho que os europeus são hipócritas em relação à imigração. De um lado, empregam os imigrantes porque eles são baratos e vulneráveis, assim podem explorá-los

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ENTREVISTA KEN LOACH

sem as exigências dos trabalhadores ingleses; e, de outro, há a imprensa, que os ataca porque eles são estrangeiros, com costumes diferentes, comidas diferentes – porque eles parecem diferentes. É uma terrível hipocrisia. A mão-de-obra barata é o coração do livre comércio, e a imigração em massa é consequência de guerras imperialistas, terrorismo e livre comércio. É mais fácil realizar filmes hoje do que há 30, 40 anos? Em geral, acho que tenho tido muita sorte. Nós temos conseguido levantar dinheiro para fazer filmes de tempos em tempos, porque são produções européias, não americanas. Ainda existe interesse para histórias menos comerciais – fora dos EUA. Mas acho que tem sido mais difícil para jovens diretores. Já pensou em dirigir um filme nos EUA? Por quê? Por que eu iria querer dirigir um filme nos EUA? Já filmei um lá [Pão e Rosas, 2000] e foi mais difícil trabalhar em Los Angeles do que na Nicarágua!

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Poderia falar um pouco sobre seu ultimo projeto, Route Irish? Ainda estamos finalizando o filme, não quero revelar muito... É sobre ex-soldados ingleses trabalhando para contratantes privados no Iraque. Algum diretor tem chamado sua atenção no cinema atual? Muitos dos diretores de que eu gosto são do passado, mas tenho acompanhado o trabalho dos irmãos Dardenne [Jean-Pierre e Luc Dardenne], da Bélgica, eles têm feito bons filmes... Há outros cineastas também... Gostei muito do filme francês O Profeta [de Jacques Audiard, com previsão de estreia nos cinemas brasileiros em 30 de abril]. Há muitos bons filmes sendo realizados. O futebol é muito importante para as pessoas no Brasil, esperamos que o filme alcance um público maior com seu lançamento em DVD. Assim espero! Nós ingleses somos grandes fãs de futebol e vocês também. E não é preciso gostar de futebol para gostar do filme, porque À Procura de Eric é sobre a força da amizade de pessoas que compartilham o mesmo entusiasmo, a mesma paixão por algo em comum.

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KEN LOACH Nascido em 17/6/1936, em Nuneaton (Warwickshire, Inglaterra), estudou Direito no St. Peter’s College, em Oxford, antes de trabalhar com uma companhia de teatro e ingressar na televisão, onde dirigiu uma série de documentários de cunho social. Após a estreia no cinema com Poor Cow (1967), dirigiu seu maior sucesso de público e crítica na Inglaterra até hoje – Kes (1970). Após um período de dificuldades e censura na TV inglesa, Ken Loach começou a melhor fase de sua carreira nos anos 1990. Com apoio do Channel Four, dirigiu uma sucessão de filmes premiados, como Agenda Secreta, Ladybird, Ladybird, Terra e Liberdade, Meu Nome é Joe e Ventos da Liberdade, vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes. Avesso à Hollywood e à cultura das celebridades, Loach prefere explorar a sensibilidade ou experiência pessoal de atores não-profissionais ou sem projeção do que um astro ou ator famoso. Rejeitando o rótulo de “autor” e usando mais o sujeito “nós” do que o individualista “eu” em entrevistas, ele se mantém, há mais de quarenta anos, fiel a suas convicções políticas, permanecendo o cronista mais realista da classe trabalhadora no cinema.

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ENTREVISTA BRUNO DUMONT

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ENTRE A FÉ E O FANATISMO

Cineasta autoral com fortes convicções artísticas (e morais), Bruno Dumont concedeu entrevista exclusiva para a 2001 sobre seu último filme, O Pecado de Hadewijch

Por Eduardo Lucena

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ENTREVISTA BRUNO DUMONT

Após um período como professor de Filosofia, você direcionou sua carreira para o cinema nos anos 1990. Como foi essa transição? Naturalmente, para achar na cinematografia um meio de expressão filosófica, fora do campo estreito da razão e de seu discurso. Por meio de sua expressão visual e sonora, o cinema, parece-me, pode alcançar zonas mais amplas, profundas e obscuras. É verdade que você evita entregar previamente o roteiro ao elenco? Evito, por precaução: não quero ter atores que reflitam demais. Ao abordar, entre outros temas, a linha tênue entre crença e fanatismo, O Pecado de Hadewijch alerta sobre os perigos do terrorismo e do uso político da fé. Algum fato ou personagem real o inspirou para o projeto? Foi inspirado pela realidade de ativistas religiosos que misturam, aqui e ali, Deus e terrorismo, e por causa da violência inerente a essas crenças. Personagens como Pharaon em A Humanidade [segundo filme do diretor, de 1999] e Céline/Hadewijch ainda conseguem se indignar em uma sociedade cada vez mais indiferente à dor humana. O que mais o revolta no mundo hoje? Os fanáticos em geral: religiosos, políticos, ecológicos, mediáticos... e suas superstições. Sua obra divide opiniões entre os críticos, e muitos comparam o seu cinema ao de Robert Bresson. O que acha dessa comparação? Me ensinaram que toda comparação é detestável.

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Ao longo de sua carreira, você tem recusado os rótulos impostos à sua obra e buscado um público maior. Seu próximo filme, atualmente em pós-produção, seria um esforço nesse sentido? O próximo filme se chamará Hors Satan (“Além de Satanás”, em tradução livre). O Bach não compunha somente para a glória e o esplendor de Deus? Eu não busco o grande público. Esse público não é nada interessante para mim e não tenho nada a lhe dizer. Faço filmes de acordo comigo e minhas exigências, o que acho ser a postura mais digna para o público. “Não podemos ter sucesso quando trabalhamos para agradar os outros, mas as coisas que fizemos para agradar a nós mesmos sempre têm alguma chance de interessar a alguém” (Marcel Proust). Há uma grande diferença entre religião e espiritualidade: Céline mergulha numa busca quase mística pelo invisível. Quanto dessa busca se reflete no cinema e na vida de Bruno Dumont? O cinema é uma arte sagrada: o único lugar onde acreditar de verdade, mental e espiritualmente, no que vemos e ouvimos. Em nome de todos os amantes do bom cinema europeu no Brasil, agradecemos sua gentileza em responder a esta entrevista, mesmo ocupado com seu último projeto. Tudo de bom para vocês.

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ENTREVISTA BRUNO DUMONT

Formado em Filosofia, Bruno Dumont critica, em toda a sua obra, o vazio espiritual de uma sociedade orientada para o consumo e que, em suas palavras, “fracassou política, social e moralmente”.

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Bruno Dumont

Cinema sem concessões

Nascido em 1958, em Bailleul, no norte da França, Dumont alternou, entre os anos 1980 e início dos 1990, o ensino de Filosofia com vídeos corporativos para empresas, encontrando no cinema uma melhor forma de transmitir sua visão de mundo. Seus dois primeiros trabalhos na direção, A Vida de Jesus (1997) e A Humanidade (1999), foram premiados no Festival de Cannes e dividiram opiniões. Enquanto alguns críticos reconhecem seu estilo autoral e questionamentos existenciais, outros simplificam seu trabalho como pessimista e vago no próprio minimalismo. Independente de qualquer opinião, a recusa de Dumont em se enquadrar num modelo de mercado apenas confirma a integridade de um cinema orgânico em busca do “real” por meio de imagens estáticas, prazeres fugazes e pequenos gestos repletos de significado.

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ENTREVISTA DEBRA GRANIK

UMA ODISSEIA AMER Indicada ao Oscar® por Inverno da Alma, a roteirista e diretora Debra Granik fala sobre o filme e sua incansável busca por realismo em entrevista exclusiva para a 2001 Por Eduardo Lucena

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RICANA

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ENTREVISTA DEBRA GRANIK

O que chamou sua atenção no livro homônimo de Daniel Woodrell que deu origem a Inverno da Alma? Eu e minha parceira Anne Rosellini [produtora e coroteirista do filme] amamos o livro dele, especialmente pela personagem principal. Não conhecíamos nenhuma garota como Ree Dolly. Meu coração estava com ela e queria retratar sua luta. Você não dirigia um longa-metragem desde Down to the Bone [filme de estreia da diretora, ainda inédito em DVD no Brasil], lançado em 2004. Por que demorou tanto? É verdade. Está cada vez mais difícil para o cinema independente conseguir verba, principalmente para produções sem atores famosos, e achar boas histórias leva tempo. O cinema é uma atividade muito instável, você nunca sabe se um filme vai ser bem-sucedido, é como apostar na bolsa. Nenhuma companhia queria financiar Inverno da Alma. Tivemos de produzi-lo de forma totalmente independente, foi muito difícil. Diziam que o filme era muito obscuro e que ninguém iria ver um drama sobre moradores daquela região [Ozarks, no Missouri]. Tivemos de diminuir o orçamento para 2 milhões de dólares e encontramos investidores na costa leste. A produção combinou moradores locais com atores profissionais no elenco? Woodrell apresentou a mim e à minha equipe pessoas importantes na comunidade de Ozarks e fomos coletando informações, histórias e particularidades de seu modo de vida – o que comiam, o que caçavam, os rituais sociais... Houve curiosidade mútua entre nós e as pessoas pesquisadas, e acabamos filmando com moradores locais e em propriedades de famílias dali. A combinação com atores profissionais funcionou bem. Jennifer Lawrence [intérprete da protagonista Ree Dolly], por exemplo, estava motivada para interagir com os moradores da região e aprender com eles. Como ela nasceu no Kentucky, foi uma das poucas atrizes que conseguiu ler o roteiro com as inflexões do dialeto regional americano e ainda entendê-lo. Tivemos muita sorte de tê-la no papel.

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Como o período de pesquisa, preparação e filmagens na pequena cidade de Ozarks a afetou pessoalmente? Eu diria que foi uma maneira intensa de aprender o quanto a nossa vida é limitada. Você conhece apenas o seu estilo de vida e, de repente, você parte para um lugar distante e desconhecido. É só aí que você começa a entender como o seu universo é limitado – e a questionar a própria vida. O montador de Inverno da Alma é o brasileiro Affonso Gonçalves [de Vida de Casado e a minissérie Mildred Pierce, entre outros trabalhos]. Como foi trabalhar com ele? Ele é um membro muito importante da comunidade do cinema independente aqui em Nova York, tivemos uma parceria muito estimulante. Ele é um ser humano muito paciente, aberto e fácil de lidar, que nunca desiste e que ainda conserva suas raízes e amor pelo Brasil. Tivemos de cortar muitas cenas para tornar o filme mais rigoroso e direto, principalmente detalhes da vida na região. Quais são os filmes e cineastas que a inspiram atualmente? Sou fã do cinema neorealista e de seus seguidores. Gosto muito do trabalho dos irmãos Dardenne [A Criança, O Silêncio de Lorna], dos últimos documentários de Werner Herzog, de Tsai Ming-liang [O Sabor da Melancia] e de alguns filmes chineses da última década, com suas locações e personagens realistas. Adoro também o cineasta francês Laurent Cantet, de Entre os Muros da Escola, filme com o qual tenho uma conexão especial. Minhas influências são muitas e variadas.

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ENTREVISTA DEBRA GRANIK

Você não vilaniza ou glorifica nenhum personagem. Essa busca por realismo, mesmo na ficção, se deve a sua experiência prévia como cinegrafista em documentários? Minha experiência ao trabalhar com documentários é que você não pode fingir que alguém pode atuar. Não dá para prever como alguém vai reagir – se perde o emprego ou fica embaraçado, por exemplo, é difícil prever qual vai ser a reação. O que procuro em meu trabalho é essa emoção genuína a partir da imersão no cotidiano que estou disposta a filmar – seja na ficção ou no documentário. Sua abordagem documental aparece também em Inverno da Alma quando a trama aborda questões pontuais nos EUA, como a falta de oportunidades em áreas rurais e o alistamento militar. O que é particularmente trágico sobre os EUA atualmente é que, apesar da imensidão de recursos e riquezas, poderia haver mais oportunidades e a justiça tão sonhada pelos liberais americanos. Podemos não ter ditadores militares, mas temos a ditadura das corporações, empresas gananciosas tão nocivas quanto monstros como Idi-Amin [ditador africano retratado em O Último Rei da Escócia]. Elas não executam as pessoas da mesma forma, mas exploram e roubam seu dinheiro - como mostra Trabalho Interno [vencedor do Oscar, o documentário é um dos lançamentos desta edição]. O mundo inteiro precisa conhecer esse importante documentário.

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Debra Granik Nascida em 6 de fevereiro de 1963, em Cambridge (Massachussetts, EUA), formou-se em Ciências Políticas na Universidade de Brandeis em 1985. Estudou ainda história do documentário, e se mudou para Nova York, onde vive até hoje. Antes de estudar cinema na Universidade de Nova York, trabalhou como cinegrafista em documentários de curta (99 Threadwaxing, Breaker) e longa-metragem (Thunder in Guyana) até estrear na direção de cinema com o drama de baixo orçamento Down to the Bone (2004), baseado em seu curta Snake Feed (1997). Premiado no Festival Sundance, o filme revelou o talento da atriz Vera Farmiga (Os Infiltrados, Amor sem Escalas) no papel de uma mãe novaiorquina viciada em drogas. Depois de longo hiato, a cineasta ressurgiu em 2010 com mais uma personagem marcante em Inverno da Alma, premiado em diversos festivais e indicado ao Oscar 2011.

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