V Boletim Informativo
smcc 2018
Edição Janeiro/Fevereiro 2018 Órgão Oficial da Sociedade de Medicina e Cirurgia de Campinas
Ideologia de gênero:
Isso não é assunto para criança!
Uma visão científica sobre o assunto focada exclusivamente nas crianças, sem discriminação ou política
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ealizamos na Sociedade de Medicina e Cirurgia de Campinas (SMCC) o “Fórum Ideologia de Gênero” - uma reflexão diante do pensamento científico e filosófico a respeito do conceito de gênero aplicado às crianças em tenra idade e também da abordagem terapêutica para os casos de transtornos de gênero. Este boletim é um resumo dos pensamentos e estudos. É importante deixar claro que este evento realizado em 02 de dezembro de 2017 não teve qualquer conotação ideológica ou política, apenas CIENTÍFICA, e limitou-se a discutir o tema apenas na INFÂNCIA. Psiquiatras e pediatras esclarecem e aprofundam o tema, possibilitando construirmos juntos, um posicionamento formal da Instituição à luz da CIÊNCIA. Dra. Fátima Bastos Presidente da SMCC
O Evento Ideologia de Gênero Dra. Carmen Sylvia Ribeiro Mestre em Saúde Mental pela Faculdade de Medicina da UNICAMP | Especialista em Neurociências USP
Associados esperavam um posicionamento oficial da instituição a respeito da exposição de crianças em idade precoce e em fase escolar às premissas da “Ideologia de Gênero” proposta originalmente como fundamento filosófico por Judith Butler. Por isso, o Fórum de Ideologia de Gênero. A equipe de condução para a organização do evento contou com Dra. Fátima Bastos, Presidente da instituição, Dra. Carmen Sylvia Ribeiro, Diretora de Eventos, Dr. Marcelo Amade Camargo, Diretor de Comunicação e Marketing, Dr. Júlio Cesar Narciso Gomes, Diretor Científico, Dr. Jorge Carlos Machado Curi, Diretor Científico Adjunto e Conselheiro do CFM, Dra. Silvia Helena Rondina Mateus, Delegada da APM e Conselheira do CREMESP, Dra. Giulietta Cucchiaro, Psiquiatra infantil e Dr. José Martins Filho. Professor Emérito de Pediatria da UNICAMP. A mesa redonda “SMCC frente a frente com a Ideologia de Gênero” foi aberta aos profissionais da saúde. Dra. Giullieta
Cuchiaro, Psiquiatra infantil, abriu a mesa redonda apresentando o tema “O pensamento de Judith Butler”, considerando as distorções e subversões propostas pela autora em livro sobre sua “ideologia”. Dr. Alexandre Saadeh, Coordenador do Ambulatório de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Instituto de Psiquiatria da USP, apresentou a recente experiência do Ambulatório de transtornos de Identidade de Gênero da USP ao atendimento e acompanhamento de pacientes por equipe multiprofissional. Já o Dr. José Martins Filho nos trouxe a palestra: “Cuidado, Afeto e Limites. O Problema do Stress Tóxico Precoce Infantil”, falando de sua importante experiência com crianças e o impacto da exposição excessiva a informações, oferecendo elementos que confundem e trazem efeito “tóxico”. A mesa redonda foi moderada pelo Dr. Alexandre e contou também com a moderação do professor convidado Dr. Paulo Dalgalarrondo, Coordenador do ambulatório que assiste aos transtornos de Identidade de Gênero na UNICAMP que fez questão de ressaltar a importância de debates como este para esclarecer e diferenciar uma postura de entendimento e cuidado à luz da ciência, evitando abordagens preconceituosas que poderiam aumentar o grau de sofrimento destes pacientes.
“Apresentando o pensamento de Judith Butler” Dra. Giulietta A. Cucchiaro Psiquiatra Infantil Unicamp Doutorado em Medicina Universidade de Heidelberg – Alemanha | Pós-doutorado (Epidemiologia e Saúde Mental Infantil) Unicamp
Judith Butler, filósofa americana, é considerada a principal referência teórica na questão da Ideologia de Gênero, cuja proposta central é DESCONSTRUIR ou SUBVERTER A IDENTIDADE DE GÊNERO (Butler, 1990). Para ela, o mundo se baseia numa “hegemonia opressora masculina”, cuja base fundadora seria a instituição da heterossexualidade. Ela propõe que se derrube essa hegemonia atacando-se a instituição da heterossexualidade através da tomada da linguagem (que contém o masculino e feminino) e da desconstrução da identidade de gênero. Para essa desconstrução a proposta é destruir a noção da constância de gênero e oferecer no lugar a oportunidade de vivenciar uma multiplicação das possibilidades de gênero. Esta teoria está baseada numa “leitura seletiva” de autores, como a própria Butler reconhece, ou seja, suas ideias não representam “o estado da arte” sobre os complexos temas abordados. A dimensão biológica é pouco ou nada considerada e não é discutida a possibilidade da transformação da relação homem/mulher no sentido de se fomentar a sua complementaridade, tão sabiamente representada pelo símbolo milenar do yin-yang. Pelo contrário, neste ponto Butler convoca o feminismo para se concentrar na tarefa de destruir a ideia, em si, do binarismo feminino/masculino. Mais preocupante é a questão fundamental do livro: a desconstrução/subversão da Identidade de Gênero através da destruição da noção de Constância de Gênero. O conceito de Constância de Gênero (Kohlberg, 1966), embora central para a 02 V Boletim Informativo SMCC 2018
proposta de Butler, é apenas citado, mas não, explicado. Desta forma não é colocado explicitamente que o que está sendo proposto é uma interferência no desenvolvimento infantil. Segundo Kohlberg, por volta dos 3 anos as crianças já se identificam com um dos gêneros, mas somente por volta dos 5 anos elas assimilam o conceito de que seu gênero permanecerá constante, independente das circunstâncias. Considerando-se que 80% do desenvolvimento do cérebro após o nascimento se dá até os 4 anos de idade (Steinhausen, 1988), acreditamos que instituir práticas artificiais que interfiram no desenvolvimento infantil nessa fase teria o efeito de causar problemas nas crianças. A identidade de gênero é um dos principais pilares da identidade da criança e seu desenvolvimento ocorre de forma natural e descomplicada na imensa maioria dos casos. Negar à criança a auto evidência óbvia que ela constata observando seu próprio corpo provavelmente seria perturbador e traumático. Como profissionais que trabalham com crianças consideramos que os princípios propostos por Butler, se aplicados durante o desenvolvimento infantil, constituem uma forma de abuso. Devemos proteger as crianças desse tipo de interferência para que elas possam crescer livres e saudáveis. Referências: • Butler, J (1990) “Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade”, Editora Civilização Brasileira • Kohlberg, L (1966) “A cognitive-developmental analysis of children’s sex role concepts and attitudes”. In E.E. Maccoby (Org.), The development of sex differences. Standford, CA: Standford University Press • Steinhausen, HC (1988) In: “Psychische Stoerungen bei Kindern und Jugendlichen” Urban & Schwarzenberg
Deixem nossas crianças em Paz! Prof. Josė Martins Filho Titular emérito de Pediatria da Unicamp Membro titular da ACADEMIA BRASILEIRA de PEDIATRIA
Crianças devem ser livres para brincar e crescer. As famílias têm o direito de pensar o que é melhor para seus filhos sem tentar sugerir, influenciar ou decidir por eles o que é melhor. Há que se respeitar o desenvolvimento infantil deixando à livre demanda suas percepções sobre seu corpo e sobre a sociedade que a cerca sem desconstruir ou induzir à problematização das questões de Gênero, pois estas ofertas de informações contraditórias causam confusão e podem trazer sérios danos ao bom desenvolvimento das crianças. Qualquer decisão sobre gênero deve ser particular e não deve haver repressão e muito menos indução sobre estas questões às crianças de tenra idade. A sociedade deve ser orientada a entender que cada ser no momento adequado e com maturidade, deve escolher e tomar decisões sobre gênero amparado por conhecimento seguro e pro-
fissional sobre todas as implicações físicas, genéticas, fenotípicas, hormonais e emocionais. Induzir à confusão de Gênero para crianças pequenas sob o pretexto ilusório de desconstruir preconceitos não parece uma boa estratégia. Ao contrário pode repercutir negativamente sobre a auto percepção destas crianças e prejudicar seu desenvolvimento. O afeto, o carinho, e a presença dos pais são fundamentais para o bom desenvolvimento neuropsicológico e físico. Desconstruir preconceitos deve ser embasado por boas referências da família sobre conceitos como altruísmo, empatia e generosidade. Isto sim repercutirá positivamente sobre uma sociedade que aceita as diferenças. A família educa e forma. A escola escolariza e intelectualiza. Por esta razão é fundamental que cada instituição faça seu papel com clareza, é imprescindível que respeitem, estejam atentos e cuidem bem das crianças. Isso SIM é fundamental para qualquer escolha que vão enfrentar adiante.
O médico é autor de vários livros. Entre eles “Quem cuidará das crianças? A difícil tarefa de educar os filhos hoje”; “O nascimento e a família. Alegrias, surpresas e preocupações”; “A criança terceirizada. Os descaminhos das relações familiares no mundo contemporâneo” e “Cuidado, afeto e limites. Uma combinação possível” em parceria com Ivan Capellato.
Disforia de gênero Dr. Alexandre Saadeh Coordenador do Ambulatório de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Instituto de Psiquiatria da USP
Disforia de gênero diz respeito a uma incongruência entre a percepção do corpo e a vivência da identidade de gênero de um indivíduo. Ou seja, o indivíduo tem um corpo de macho, mas se reconhece como fêmea, ou o contrário. Menos de 1% da população apresenta essa manifestação. Ainda hoje é considerado diagnóstico psiquiátrico, mas isso poderá mudar em breve, não sendo considerada como doença, mas sim como variação. A abordagem diagnóstica e acompanhamento devem iniciar na infância, por volta dos dois, três anos de idade, e deve ser mantida ao longo de todo o desenvolvimento com abordagem multiprofissional e interdisciplinar. É preciso reconhecer que nem toda manifestação de variação na auto-percepção gênero na infância é sinônimo de transexualidade. Cerca de 75%-90% das crianças se identificam com o sexo ao nascer, entre aquelas cuja orientação sexual futura é homossexual ou bissexual. Vale ressaltar que identidade de gênero é um conceito diferente de orientação sexual: a primeira diz respeito a auto-percepção ou seja, como o sujeito se reconhece, homem ou mulher; já a orientação sexual se refere à escolha do parceiro seja outro homem, mulher ou os dois para satisfação de desejo sexual –
orientação nada mais é que a escolha de parceria. O acompanhamento e tratamento envolve precisão diagnóstica. Na infância nada deve ser feito além da observação até o início da puberdade (estágio Tanner 2), quando poderia-se optar, dependendo das circunstâncias, pelo bloqueio do eixo hipotálamo-hipófise até os 16 anos de idade, quando seria indicada a hormonioterapia específica para as mudanças corporais desejadas. No Brasil ainda não temos nenhuma Resolução Normativa definitiva para acompanhamento de crianças e adolescentes. Existem resoluções somente para adultos, que estabelecem a importância do acompanhamento psicológico e psiquiátrico por no mínimo dois anos. Além desses, um criterioso acompanhamento endocrinológico para, somente ao final de todo este seguimento, ser realizada a cirurgia de redesignação sexual. O acompanhamento por equipe especializada diminui o sofrimento da família e da criança, na infância e ao longo de seu desenvolvimento. Pode prevenir comportamentos nocivos como fenômenos de automutilação, e poderia reduzir riscos de tentativas de suicídio na adolescência e na vida adulta, diminui o isolamento social, o ostracismo e melhora a inclusão social. Estudos sugerem que a disforia de gênero possui uma base etiológica biológica que sugere a que origem está na formação da área cerebral responsável pela identidade de gênero, ainda durante a gestação. Mas não podemos nos esquecer de que valores culturais e morais acabam influenciando e impactando no potencial de inserção social, profissional e familiar dessas pessoas. V Boletim Informativo SMCC 2018 03
MANIFESTO IDEOLOGIA DE GÊNERO A Sociedade de Medicina e Cirurgia de Campinas (SMCC), entidade representativa de seus médicos associados em Campinas e Região vem a público manifestar sua posição institucional a respeito do tema “Ideologia de Gênero” exclusivamente no que tange os aspectos desta discussão envolvendo as CRIANÇAS. A SMCC promoveu um Fórum com diversos e renomados especialistas médicos em 02/12/2017 para abordar, do ponto de vista científico, o processo de desenvolvimento da identidade de gênero das crianças na primeira infância. O debate foi rico em referências científicas e citações bibliográficas além de importantes reflexões de profissionais experientes. Este posicionamento está embasado nas conclusões deste evento e nas subsequentes consultas a sociedades de especialidades e literatura médico-cientifica. Ou seja, trata-se de conhecimento baseado em EVIDÊNCIAS CIENTÍFICAs e não abrange opiniões pessoais de qualquer natureza. A ciência aponta que falar precocemente sobre gênero com crianças pode ser prejudicial ao desenvolvimento delas, uma vez que não estão preparadas nem física, nem emocionalmente para refletirem sobre o tema. O cérebro tem um tempo natural de desenvolvimento para o aprendizado e a tomada de decisões. Até dois ou três anos de idade os neurônios se reproduzem numa velocidade muito grande, nessa fase a criança aprende, toma decisões e começa a entender o mundo externo. Neurologicamente, afirma-se que cerca de 85% do cérebro se forma até os 5 anos de idade. Nesse período, os especialistas e trabalhos científicos sobre desenvolvimento infantil reforçam que é preciso deixar as crianças livres e respeitar a sua evolução, física e emocional. Além disso, durante toda a infância, os pequenos ainda estão aperfeiçoando suas habilidades de comunicação verbal e corporal e entendendo como expressar seus sentimento. Qualquer decisão sobre gênero deve ser própria e depois que o amadurecimento chegar. Durante a infância, as crianças devem ser estimuladas a brincar, serem felizes e se ex-
pressarem como elas quiserem, sem que isso represente ser menino ou menina. Não havendo repressão e nem indução quanto à identidade de gênero. Este posicionamento, de forma alguma, tira das famílias o direito de pensar o que é melhor para seus filhos. Porém, esta interferência não deve tentar sugerir, influenciar ou decidir por eles, apenas servir de referência. Portanto, a Sociedade se posiciona contrariamente à ideia que as discussões sobre gênero devam fazer parte de projetos pedagógicos durante a educação infantil. Pelo contrário, a discussão de identidade de gênero não deve ser apresentada à criança de forma alguma durante a infância. Após a infância, o jovem já terá desenvolvimento e maturidade em grau compatível com a complexidade do tema e aí sim estará apto a refletir e argumentar sobre o que deseja para si. Este posicionamento é direcionado à médicos e também para pais, responsáveis, educadores e profissionais ligados a promoção e supervisão da educação dos menores. A SMCC acredita que, durante a infância, o afeto, o acolhimento, o carinho e a presença dos pais são fundamentais para um desenvolvimento natural e saudável. Cuidar bem das crianças, isso sim é fundamental! Adicionalmente, este documento ainda afirma que não se deve criminalizar qualquer decisão nem deixar de respeitar e ajudar os indivíduos. Os pediatras e psiquiatras devem estar preparados para orientar as famílias quanto às questões de gênero. Ao observar comportamentos diferenciados, cabe ao profissional, acolher e ajudar a família a transpor as dificuldades, angústia, a perceber e entender o que está acontecendo com seus filhos e como eles estão lidando com isso. Ouvir as crianças e não criar debates precoces é fundamental para se trabalhar bem com a questão, acompanhando-as e guiando-as para um desenvolvimento saudável e respeitoso, sem bullying e sem repressão. Este sim é o papel dos pais e profissionais.
Editor-Chefe: Dr. Marcelo A. Camargo | Jornalista Responsável: Carolina Rodrigues (MTB 44791/SP) Assistente de Comunicação: Branca M. Braga | Fotos: Branca Braga e Fernanda Borges Projeto Gráfico: Skanner Projetos Gráficos | Tiragem: 3.000 exemplares
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