Marcuse a ideologia da sociedade industrial o homem unidimensional

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A IDEOLOGIA DA SOCIEDADE INDUSTRIAL


ATUALIDADE

HERBERT MARCUSE

A IDEOLOGIA DA SOCIEDADE INDUSTRIAL Tradução de GIASONE REBUÁ

Quarta edição

ZAHAR EDITORES RIO DE JANEIRO


Título original:

One-DimCfl ~ional Man Sludies iII the [deoloRY of

Ad~'anced

Industrial Society

Traduzido da segunda impressão, publicada em 1966 por Beacon Press. Boston, E. U. A.

Copyright

©

1964 by Herbert Marcuse

Capa de

É R I CO

Dedicado a Inge

197 :3 Direitos para a língua portuguêsa adquiridns por

ZAHAR

EDITORES

Rua México 31 - Rio de Janeiro que se reservam a propriedade desta tradução lmprtuo no Brasil


lNDICE

Agradecimentos

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INTRODUÇÃO A Paralisia da Crítica: Sociedade sem Oposição

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SOCIEDADE UNIDIMENSIONAL 1: As Novas Formas de Contrôle ..........................

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2: O Fechamento do Universo Político .....................

38

3: A Conquista da Consciência Infeliz: Dessublimação Repressiva

69

4: O Fechamento do Unil'erso da Locução ..................

92

PENSAMENTO UNIDIMENSIONAL 5: Pensamento Negativo: A Derrotada Lógica do Protesto

125

6: Do Pensamento Negativo para o Positil"o: Racionalidade Tecnológica e a Lógica da Dominação .....................

142

7: A Vitória do Pensamento Positivo: Filosofia Unidimensional

163

A OPORTUNIDADE DAS ALTERNATIVAS 8: O Compromisso Histórico da Filosofia...................

191

9: A Catástrofe da Libertação .............................

209

10: Conclusão ............................................

227

ÍNDICE ONOMÁSTICO

237

........................................


AGRADECIMENTOS

Minha espôsa é, pelo menos em parte, responsável pelas opiniões expendidas neste livro. Sou-lhe infinitamente grato. O meu amigo Barrington Moore, Jr., muito me ajudou com os seus comentários decisivos: em discussões, durante vários anos, êle me levou a esclarecer as minhas idéias. Robert S. Cohen, Arno J. Mayer, Hans J. Meyerhoff e David .Ober leram o manuscrito em suas várias fases e fizeram sugestões valiosas. O Conselho Norte-Americano de Sociedades Eruditas, a Fundação Louis M. Rabinowitz, a Fundação Rockefeller e o Conselho de Pesquisas de Ciências Sociais me concederam donativos que facilitaram grandemente a conclusão dêstes estudos.


INTRODUÇÃO

A paralisia da crítica: Sociedade sem oposição

A ameaça de uma catástrofe atômica, que poderia exterminar a raça humana, não servirá, também, para proteger as próprias fôrças que perpetuam êsse perigo? Os esforços para impedir tal catástrofe ofuscam a procura de suas causas potenciais na sociedade industrial contemporânea. Essas causas ainda não foram identificadas, reveladas e consideradas pelo público porque refluem diante da ameaça do exterior, demasiado visível - do Oriente contra o Ocidente, do Ocidente contra o Oriente. f: igualmente óbvia a necessidade de se estar preparado, de se viver à beira do abismo, de se aceitar o desafio. Nós nos submetemos à produção pacífica dos meios de destruição, à perfeição do desperdício, a ser educados para uma defesa que deforma os defensores e aquilo que êstes defendem. Se tentamos relacionar as causas do perigo com a forma pela qual a sociedade é organizada e organiza os seus membros, defrontamos, imediatamente, com o fato de a sociedade industrial desenvolvida se tornar mais rica, maior e melhor ao perpetuar o perigo. A estrutura da defesa torna a vida mais fácil para um maior número de criaturas e expande o domínio do homem sôbre a natureza. Em tais circunstâncias, os nossos meios de informação em massa encontram pouca dificuldade em fazer aceitar interêsses particulares como sendo de todos os homens sensatos. As necessidades políticas da sociedade se tornam necessidades e aspirações individuais, sua satisfação promove os negócios e a comunidade, e o conjunto parece constituir a própria personificação da Razão.

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Não obstante, essa sociedade é irracional como um todo. Sua produtividade é destruidora do livre desenvolvimento das necessidades e faculdades humanas; sua paz, mantida pela constante ameaça de guerra; seu crescimento, dependente da repressão das possibilidades reais de amenizar a luta pela existência individual, nacional e internacional. Essa repressão, tão diferente daquela que caracterizou as etapas anteriores, menos desenvolvidas, de nossa sociedade, não opera, hoje, de uma posição de imaturidade natural e técnica, mas de fôrça. As aptidões (intelectuais e materiais) da sociedade contemporânea são incomensuràvelmente maiores do que nunca dantes - o que significa que o alcance da dominação da sociedade sôbre o indivíduo é incomensuràvelmente maior do que nunca dantes. A nossa sociedade se distingue por conquistar as fôrças sociais centrífugas mais pela Tecnologia do que pelo Terror, com dúplice base numa eficiência esmagadora e num padrão de vida crescente. A investigação das raízes de tais fatos e o exan"ie de suas alternativas históricas são parte do objetivo de uma teoria crítica da sociedade contemporânea, uma teoria que analisa a sociedade à luz de suas aptidões utilizadas e não-utilizadas ou malbaratadas para aprimorar a condição humana. Mas quais os padrões para tal crítica? Sem dúvida, os julgamentos com base em valôres têm um papel. A maneira estabelecida de organizar a sociedade é comparada com outras maneiras possíveis, maneiras que se consideram oferecer melhores possibilidades de suavizar a luta do homem pela existência; uma prática histórica específica é comparada com as suas próprias alternativas históricas. Assim, qualquer teoria crítica da sociedade defronta, logo de início, com o problema da objetividade histórica, um problema que surge nos dois pontos em que a análise implica julgamentos de valôres: 1) o julgamento de que a vida humana vale a pena ser vivida, ou, melhor, pode ser ou deve ser tornada digna de se viver. 1:ste julgamento alicerça todo esfôrço intelectual; é apriorístico para a teoria social, e sua rejeição (que é perfeitamente lógica) rejeita a própria teoria;

análise crítica tem de demonstrar a validez objetiva dêsses julgamentos, tendo a demonstração de se processar em bases empíricas. A sociedade estabelecida dispõe de uma quantidade e uma qualidade determináveis de recursos intelectuais e materiais. Como podem ser êsses recursos utilizados para o máximo desenvolvimento e satisfação das necessidades e faculdades individuais com o mínimo de labuta e miséria? Teoria social é teoria histórica, e história é a esfera da possibilidade na esfera da necessidade. Portanto, dentre as várias maneiras possíveis e reais de organizar e utilizar os recursos disponíveis, quais oferecem a maior possibilidade de ótimo desenvolvimento? A tentativa de responder a essas perguntas exige uma série de abstrações iniciais. Para identificar e definir as possibilidades de ótimo desenvolvimento, a teoria crítica deve abstrair-se da organização e utilização práticas dos recursos da sociedade, bem como dos resultados dessa organização e utilização. Tal abstração, que se nega a aceitar o universo de fatos dado como o contexto final da validação, tal análise "transcendente" aos fatos à luz de suas possibilidades, captadas e negadas, pertence à própria estrutura da teoria social. Ela se opõe a tôda metafísica em virtude do caráter rigorosamente histórico da transcendência.! As "possibilidades" têm de estar ao alcance da respectiva sociedade; devem ser metas definíveis da prática. E, por sinal, a abstração das instituições estabelecidas deve expressar uma tendência real - isto é, sua transformação deve ser a necessidade real da população básica. A teoria social se interessa pelas alternativas históricas que assombram a sociedade estabelecida como tendências e fôrças subversivas. Os valôres ligados às alternativas realmente se tornam fatos quando transformados em realidade pela prática histórica. Os conceitos teóricos terminam com a transformação social. Mas aí, a sociedade industrial desenvolvida confronta a crítica com uma situação que parece privá-la de suas próprias bases. O progresso técnico, levado a todo um sistema de dominação e coordenação, cria formas de vida (e de poder) que parece reconciliar as fôrças que se opõem ao sistema e rejeitar ou refutar todo protesto em nome das perspectivas históricas de

2) o julgamento de q ue, em determinada sociedade, existem possibilidades específicas de melhorar a vida humana e modos e meios específicos de realizar essas possibilidades. A

1 Os têrmos IItranscender" e Utranscendência" são usados em todo êste livro no sentido empírico, crítico; designam tendências na teoria e na prática que, numa dada sociedade, "ultrapassam" o universo e.tabelecido do discurso e ação no que concerne às suas alternativas históricas (possibilidades reais).

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liberdade de labuta e de dominação. A sociedade contemporânea parece capaz de conter a transformação social - transformação qualitativa que estabeleceria instituições essencialmente diferentes, uma nova direção dos processos produtivos, novas formas de existência humana. Essa contenção da transformação é, talvez, a mais singular realização da sociedade industrial desenvolvida; a aceitação geral do Propósito Nacional, a política bipartidária, o declínio do pluralismo, o conluio dos Negócios com o Trabalho no seio do Estado forte testemunham a integração dos oponentes, que é tanto o resultado como o requisito dessa realização. Uma ligeira comparação entre a fase de formação da teoria da sociedade industrial e sua situação atual poderá ajudar a mostrar como as bases da crítica foram alteradas. Em suas origens, na primeira metade do século XIX, quando elaborou os primeiros conceitos das alternativas, a crítica da sociedade industrial alcançou concreção numa mediação histór:ica entre teoria e prática, valôres e fatos, necessidades e objetivos. Essa mediação histórica ocorreu na consciência e na ação política das duas grandes classes que se defrontavam na sociedade: a burguesia e o proletariado. No mundo capitalista, ainda são as classes básicas. Contudo, o desenvolvimento capitalista alterou a estrutura e a função dessas duas classes de tal modo que elas não mais parece ser agentes de transformação histórica. Um interêsse predominante na preservação e no melhoramento do status quo institucional une os antigos antagonistas nos setores mais avançados da sociedade contemporânea. E a própria idéia de transformação qualitativa recua diante das noções realistas de uma evolução não-explosiva proporcionalmente ao grau em que o progresso técnico garante o crescimento e a coesão da sociedade comunista. Na falta de agentes e veículos de transformação social, a crítica é, assim, levada a recuar para um alto nível de abstração. Não há campo algum no qual teoria e prática, pensamento e ação se harmonizem. Até mesmo a análise mais empírica das alternativas históricas parece especulação irreal, e a adesão a ela uma questão de preferência pessoal (ou grupal). Não obstante, cabe perguntar: essa falta refuta a teoria? Em face de fatos aparentemente contraditórios, a análise crítica continua insistindo em que a necessidade de transformação qualitativa é tão premente quanto em qualquer época. Necessária a quem? A resposta continua sendo a mesma: à sociedade como um todo. para cada um de seus membros. A união da

produtividade crescent~ ~ da destruição crescente; a iminência de aniquilamento; a rendlçao do pensamento, das espera~ças e d.o temor às decisões dos podêres existentes; a preservaçao da mIséria em face de riqueza sem precedente, constituem a mais imparcial acusação - ainda que não sejam a razão de .ser ~esta sociedade, mas apenas um subproduto, o seu raC'lOnalIsmo arrasador, que impele a eficiência e o crescimento, é, em si, irracional. O fato de a grande maioria da população aceitar e ser levada a aceitar essa sociedade não a torna menos irracional e menos repreensível. A distinção entre consciência verdadeira e falsa entre interêsse real e imediato, ainda tem significado. Mas a prÓpria distinção tem de ser validada. O ho~em tem .de v~-la e passar da consciência falsa para a verdadeIra, do lllteresse imediato para o interêsse real. Só poderá fazê-lo se viver com .a necessidade de modificar o seu estilo de vida, de negar o POSItivo, de recusar. É precisamente essa necessidade que a 'Sociedade estabelecida consegue reprimir com a intensidade com que é capaz de "entregar as mercadorias" em escala cada vez .maior, usando a conquista científica da natureza para conqUIstar o homem cientificamente. Ao defrontar com o caráter total das conquistas da sociedade industrial desenvolvida, a teoria crítica fica desprovida de fundamento lógico para transcender essa sociedade. O vácuo esvazia a própria teoria, porque as categorias da teoria social crítica foram criadas durante o período no qual a necessidade de recusa e subversão estavam personificadas na ação de fôrças sociais eficazes. Essas categorias eram essencialmente negativas, conceitos oposicionistas, definindo as contradições reais da sociedade européia do século XIX. A própria categoria "sociedade" expressava o conflito agudo entre as esferas social e política a sociedade antagônica ao Estado.' Do mesmo modo, "indivíduo", "classe", "família" designavam esferas e fôrças ainda não integradas nas condições estabelecidas - esferas de tensão e contradição. Com a crescente integração da sociedade industrial, essas categorias estão perdendo sua conotação crítica, tendendo a tornar-se têrmos descritivos, ilusórios ou operacionais. A tentativa de recuperar o objetivo crítico dessas categorias e de compreender como o objetivo foi cancelado pel~ r~alidad~ social parece, logo de início, uma regressão da teona lIgada a prática histórica para o pensamento abstrato e especulativo: da crítica da Economia Política para a Filosofia. Ésse caráter

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ideo!ógico da crítica resulta do fato de a análise ser forçada a partir de uma posição "externa" às tendências da sociedade tanto positivas como negativas, tanto produtivas como destruti;as. A sociedade industrial moderna é a identidade penetrante dêsses opo~tos _- é o todo que está cm questão. Ao mesmo tempo, a teon~ nao. p~d.e ser mera~ente especulativa. Deve ser um ponto de ~lsta hlstonco no sentido de dever basear-se nas aptidões da socIedade em questão. . Essa situação ambígua envolve outra ambigüidade ainda ~a~s fund~mental. A Sociedade Unidimensional oscila, do prinCipiO ao fIm, entre duas hipóteses contraditórias: 1) a de que a sociedade industrial desenvolvida seja capaz de sustar a transfo~mação quaiitativa ~ur~nte o futuro previsível; e 2) a de que eXistem forças e tendenclas que podem romper essa contenção e fazer explodir a sociedade. Não creio que possa ser dada uma resposta clara. Ambas as tendências existem lado a lado e até mesmo uma dentro da outra. A primeira tendência é dominante, ~ quaisquer condições prévias para reversão, possivelmente eXistentes, estão sendo usadas para preveni-la. Talvez um acid 7nte possa alterar a situação, mas, a não ser que o reconhecimento do que está sendo feito e do que está sendo impedido subverta a consciência e o comportamento do homem, nem mesmo uma catástrofe ocasionará uma transformação. A

A análise é focalizada na sociedade industrial desenvolvida na qual o aparato técnico de produção e distribuição (com u~ crescente setor de automatização) não funciona como a soma total de meros instrumentos que possam ser isolados de seus efeitos sociais e políticos, mas, antes, como um sistema que d:termina, a priori, tanto o produto do aparato como as operaçoes d~ sua manutenção e ampliação. Nessa sociedade, o aparato produtiVO tende a tornar-se totalitário no quanto determina não apenas as oscilações, habilidades e atitudes socialmente necessárias, mas também as necessidades e aspirações individuais. Oblitera, assim, a oposição entre existência privada e pública, ~nt~e ~ecessidades individuais e sociais. A tecnologia serve para Instituir formas novas, mais eficazes e mais agradáveis de contrôle social e coesão social. A tendência totalitária dêsses contrôles parece afirmar-se ainda em outro sentido - disseminandose pelas áreas menos desenvolvidas e até mesmo pré-industriais e criando similaridades no desenvolvimento do capitalismo e do comunismo.

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Em face das particularidades totalitárias dessa sociedade, a noção tradicional de "neutralidade" da tecnologia não mais pode ser sustentada. A tecnologia não pode, como tal, ser isolada do uso que lhe é dado; a sociedade tecnológica é um sistema de dominação que já opera no":; conceito; e na elaboração das técnicas. A maneira pela qual a sociedade organiza a vida de seus membros compreende uma escolha inicial entre alternativas históricas que são determinadas pelo nível de cultura material e intelectual herdado. A própria escolha resulta do jôgo dos interêsses dominantes. Ela antevê maneiras específicas de utilizar o homem e a natureza e rejeita outras maneiras. t um "projeto" de realização entre outros. 2 Mas, assim que o projeto se torna operante nas instituições e relações básicas, tende a tornar-se exclusivo e a determinar o desenvolvimento da sociedade em seu todo. Como um universo tecnológico, a sociedade industrial desenvolvida é um universo político, a fase mais atual da realização de um projeto histórico específico - a saber, a experiência, a transformação e a organização da natureza como o mero material de dominação. Ao se desdobrar, o projeto molda todo o universo da palavra e da ação, a cultura intelectual e material. No ambiente tecnológico, a cultura, a política e a economia se fundem num sistema onipresente que engolfa ou rejeita tôdas as alternativas. O potencial de produtividade e crescimento dêsse sistema estabiliza a sociedade e contém o progresso técnico dentro da estrutura de dominação. A racionalidade tecnológica ter-se-á tornado racionalidade política. . ~ . Na discussão das tendências comuns da sociedade industrial desenvolvida, raramente faço referências específicas. O material se acha reunido e descrito na ampla literatura sociológica e psicológica sôbre tecnologia e mudança social, gerência científica, empreendimento corporativo, transformações no caráter da mão-de-obra industrial e da classe trabalhadora etc. Há muitas análises não-ideológicas dos fatos - tais como The Modem Corporation and Private Property, de BerIe e Means, os relatórios do Comitê Nacional Temporário de Economia do 76. 0 Congresso dos E. U. A. sôbre Concentração de Poder 2 o têrmo "projeto" acentua o elemento de liberdade e responsabilidade na determinação 11I~tórica: Ji~a autonomia e contingência. Neste sentido. o têrmo é ul"ado na obra de Jean·Paul Sartre. Para uma análise mais minuclO~a. ver lapítulo 8, adIante.

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Econômico, as publicações da AFL-CIO sôbre Automatização e Principais Transformações Tecnológicas e também as análises de News and Letters e de Correspondence, de Detroit. Desejo frisar a importância vital do trabalho de C. Wright Mills e de estudos que são com freqüência menosprezados por causa da simplificação, do exagêro ou da facilidade jornalística - The Hidden Persuaders, The Status Seekers e The Waste Makers, de Vance Packard, The Organization Man, de William H. Whyte, e The Warfare State, de Fred J. Cook, * pertencem a essa categoria. Na verdade, a falta de análise teórica dêsses trabalhos deixa cobertas e protegidas as raízes das condições descritas, mas, deixando-se que estas falem por si, elas o fazem suficientemente alto. Talvez a evidência mais reveladora se possa obter simplesmente vendo a televisão ou ouvindo o rádio durante uma hora inteira por alguns dias, sem desligar nos momentos dos anúncios, ~udando-se vez por outra de estação. A minha análise é focalizada nas tendências das sociedades contemporâneas mais altamente desenvolvidas. Há grandes setores dentro e fora dessas sociedades nos quais as tendências descritas não prevalecem - eu antes diria que ainda não prevalecem. Destaco essas tendências e apresento algumas hipóteses - nada mais.

• De Wright MilIs encontram-se editados em portuguê, o, seguintes, livros: As Causas da Pr6xima Guerra Mundial, A Verdade sóbre Cuba, A ImaginaÇão Sociol6gica e Poder e Política, todos publicados por Zahar Editores. Serão publicados em futuro próximo Os Marxistas e A /1.'01 a C/asse Média também por Zahar Editores. Os livros de Packard foram publicados em portuguê, pela lbrasa. sob os títulos de A No,'a Técnica de Comefleer, A COflquista do Prestígio Pessoal e A Estratégia do Desperdício, O livro de Fred J, Cook foi publicado pela Civilização Brasileira com o título de O Estado Militarist",

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SOCIEDADE UNIDIMENSIONAL


1 AS NOVAS FORMAS DE CONTROLE

Urna falta de liberdade confortável, suave, razoável e democrática prevalece na civilização industrial desenvolvida, um testemunho de progresso técnico. De fato, o que poderia ser mais racional do que a supressão da individualidade ~a mecanização de desempenhos socialmente necessários, mas penosos; a concentração de empreendimentos individuais em organizações mais eficazes e mais produtivas; a regulamentação da livre competição entre sujeitos econômicos desigualmente equipados; a redução de prerrogativas e soberanias nacionais que impedem a organização internacional dos recursos? O fato de também essa ordem tecnológica compreender uma coordenação política e intelectual pode ser acontecimento lamentável, mas promissor. Os direitos e liberdades que foram fatôres assaz vitais nas origens e fases iniciais da sociedade industrial renderam-se a uma etapa mais avançada dessa sociedade: estão perdendo o seu sentido lógico e conteúdo tradicionais. Liberdade de pensamento, liberdade de palavra e liberdade de consciência foram assim como o livre empreendimento, que elas ajudaram a promover e proteger - idéias essencialmente críticas destinadas a substituir uma cultura material e intelectual obsoleta por outra mais produtiva e racional. Uma vez institucionalizados, êsses direitos e liberdades compartilharam do destino da sociedade da qual se haviam tornado parte integral. A realização cancela as premissas. As liberdades que pertencem a um estado de mais baixa produtividade perdem seu conteúdo anterior desde que a libertação da necessidade, substância concreta de tôda liberdade, se torne uma p03sibilidade real. Independência de pensamento, autonomia e direito à oposição política estão perdendo sua função crítica básica numa sociedade que parece cada vez mais capaz

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de atender às necessidades dos indivíduos através da forma pela qual é organizada. Tal sociedade pode, justificadamente, exigir a aceitação dos seus princípios e instituições e reduzir a oposição à discussão e promoção de diretrizes alternativas dentro do status quo. A êsse respeito, parece fazer pouca diferença o ser a crescente satisfação das necessidades conseguida por um sistema totalitário ou não-totalitário. Nas condições de um padrão de vida crescente, o não-conformismo com o próprio sistema parece socialmente inútil, principalmente quando acarreta desvantagens econômicas e políticas tangíveis e ameaça o funcionamento suave do todo. Na verdade, parece não haver razão alguma, pelo menos no quanto estejam compreendidas as necessidades da vida, para que a produção e distribuição de mercadorias e serviços se dêem por intermédio da concorrência competitiva das liberdades individuais. A liberdade de empreendimento não foi de modo algum, desde o início, uma vantagem. Quanto à liberdade de trabalhar ou morrer à míngua, significou labuta, insegurança e temor para a grande maioria da população. Se o indivíduo não mais fôsse compelido a se demonstrar no mercado como um sujeito econômico livre. o desaparecimento dêsse tipo de liberdade seria uma das maiores conquistas da civilização. Os processos tecnológicos de mecanização e padronização podem liberar ene~gia individual para um domínio de liberdade ainda desconhecIdo, para além da necessidade. A própria estrutura da existência humana seria alterada; o indivíduo seria libertado da imposição, pelo mundo do trabalho, de necessidades e possibilidades alheias a êle; ficaria livre para exercer autonomia sôbre uma v!da que seria sua. Se o aparato produtivo pudesse ser orgamzado e orientado para a satisfação das necessidades vitais, seu contrôle bem poderia ser centralizado; tal contrôle não impediria a autonomia individual, antes tornando-a possível. Trata-se de meta ao alcance das aptidões da civilização industrial desenvolvida, o "fim" da racionalidade tecnológica. N a realidade, contudo, opera a tendência oposta: o aparato impõe suas exigências econômicas e políticas pa~a a d~fesa e a expansão ao tempo de trabalho e ao tempo lIvre, a cul~ura material e intelectual. Em virtude do modo pelo qual orgaruzou a sua base tecnológica, a sociedade industrial contemporânea tende a tornar-se totalitária. Pois "totalitária" não é apenas uma coordenação política terrorista da sociedade, mas também uma coordenação técnico-cconômica não-terrorista que opera através

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da manipulação das necessidades por i~t:rêss~s adquiridos. I~­ pede, assim, o surgimento de uma oP,:slçao eflc~z a~ todo .. ~~o apenas uma forma esrecífica de 90verno ~u dlreçao p~r.tldana constitui totalitarismo, mas tambem um sistema especifICO de produção e distribuiç~o qu.e be~ ~~de ,ser compatlvel com "pluralismo" de partIdos, JornaiS, poderes contrabalançados etc.! Atualmente, o poder político se afirma através dos seus podêres sôbre o processo mecânico. e sôbr~ a org.a~ização técnica do aparato. O govêrno de socI~dades IndustnaIs desenvo!vidas e em fase de desenvolvimento so se pode manter e garantIr quando mobiliza, organiza e explora C?~ êxito .a. ~rod_uti~idade técnica, científica e mecânica à disposIçao da cIvIlIzaçao Industrial. E esta produtividade mobiliza a sociedade em seu todo, acima e além de quaisquer interêsses individuais ou grupais. O fato brutal de o poder físico (somente físico?) da máquina superar o do indivíduo e, o .de quais~uer ~~upos particulares de indivíduos torna a maquIna o mais efICIente Instrumento político de qualquer sociedade cuj~ ~rgani~~ção básica ~eja a do processo mecânico. Mas a tendencIa polItIca pode ser Invertida; essencialmente, o poder da máquina é apenas o poder do homem, armazenado e projetado. O mundo do trabalho se torna a base potencial de uma nova liberdade para o homem no quanto seja concebido como uma máquina e, por conseguinte, mecanizado. A civilização industrial contemporânea demonstra haver alcançado a fase na qual a "sociedade livre" não mais pode ser adequadamente definida nos têrmos tradicionais de liberdades econômica, política e intelectual, não porque essas liberdades se tenham tornado insignificantes, mas por serem demasiado significativas para serem contidas nas formas tradicionais. Novas modalidades de concepção se tornam necessárias, correspondendo às possibilidades da sociedade. Essas novas modalidades só podem ser indicadas em têrmos negativos porque importariam a negação das modalidades comuns. Assim, liberdade econômica significaria liberdade d.e economia - de ser controlado pelas fôrças e relações econômicas; liberdade de luta cotidiana pela existência, de ganhar a vida. Liberdade política significaria a libertação do indivíduo da política sôbre a qual êle não tem contrôle eficaz algum. Do mesmo modo, liberdade intelectual significaria a restauração do

?

I

Ver p. 63.

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pensamento individual, ora absorvido pela comunicação e doutrinação em massa, abolição da "opinião pública" juntamente com os seus forjadores. O tom irreal dessas proposições não indica seu caráter utópico, mas o vigor das fôrças que impedem sua realização. A mais eficaz e resistente forma de guerra contra a libertação é a implantação das necessidades materiais e intelectuais que perpetuam formas obsoletas da luta pela existência. A intensidade, a satisfação e até o caráter das necessidades humanas, acima do nível biológico, sempre foram precondicionados. O fato de a possibilidade de se fazer ou deixar de lado, gozar ou destruir, possuir ou rejeitar algo ser ou não tomada por necessidade depende de poder ou não ser ela vista ,como desejável e necessária aos interêsses e instituições sociais comuns. Neste sentido, as necessidades humanas são necessidades históricas e, no quanto a sociedade exija o desenvolvimento repressivo do indivíduo, as próprias necessidades individuais e o direito destas à satisfação ficam sujeitos a padrões críticos predominantes. Podemos distinguir tanto as necessidades verídicas como as falsas necessidades. "Falsas" são aquelas superimpostas ao indivíduo por interêsses sociais particulares ao reprimi-lo: as necessidades que perpetuam a labuta, a agressividade, a miséria e a injustiça. Sua satisfação pode ser assaz agradável ao indivíduo, mas a felicidade dêste não é uma condição que tem de ser mantida e protegida caso sirva para coibir o desenvolvimento da aptidão (dêle e de outros) para reconhecer a moléstia do todo e aproveitar as oportunidades de cura. Então, o resultado é euforia na infelicidade. A maioria das necessidades comuns de descansar, distrair-se, comportar-se e consumir de acôrdo com os anúncios, amar e odiar o que os outros amam e odeiam, pertence a essa categoria de falsas necessidades. Tais necessidades têm um conteúdo e uma função sociais determinados por fôrças externas sôbre as quais o indivíduo não tem contrôle algum; o desenvolvimento e a satisfação dessas necessidades são heterônomos. Independentemente do quanto tais necessidades se possam ter tornado do próprio indivíduo, reproduzidas e fortalecidas pelas condições de sua existência; independentemente do quanto êle se identifique com elas e se encontre em sua satisfação, elas continuam a ser o que eram de início - produtos de uma sociedade cujo interêsse dominante exige repressão. O prevalecimento de necessidades repressivas é um fato consumado, aceito na ignorância e na derrota, mas um fato que

deve ser desfeitu. no intcrêsse do indivíduo bem como no daqueles cuja miséria é o preço de sua satisfação. As únicas necessidades que têm direito indiscutível à satisfação são as necessidades vitais - de alimento, roupa e teto ao nível alcançável de cultura. O atendimento a essas necessidades é o requ~­ si to pa:-a a realização de tôdas as necessidades, tanto das sublimadas como das não-sublimadas. Para qualquer percepção e consciência, 'para qualquer experiência que não aceite o interêsse social predominante como a lei suprema do pensamento e do comportamento, o universo de necessidades e satisfações estabelecido é fato a ser questionado - discutido em têrmos de veracidade e falsidade. f:sses têrmos são totalmente históricos, e sua objetividade é histórica. O julgamento das necessidades e sua satisfação, nas condições dadas, envolve padrões de prioridade - padrões que se referem ao desenvolvimento ótimo do indivíduo, de todos os indivíduos, sob a ótima utilização dos recursos materiais e intelectuais à disposição do homem. Os recursos são calculáveis. "Veracidade" e "falsidade" das necessidades designam condições objetivas no Quanto a satisfação universal das necessidades vitais e, além disso, a suavização progressiva da labuta e da pobreza sejam padrões universalmente válidos. Mas, como padrões históricos, não apenas variam de acôrdo com a área e o estágio do desenvolvimento como também só podem ser definidas em (maior ou menor) contradição com os padrões comuns. Que tribunal se poderá invocar autoridade para decidir?

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Em última análise, a questão sôbre quais necessidades devam ser falsas ou verdadeiras só pode ser respondida pelos próprios indivíduos, mas apenas em última análise; isto é, se e quando êles estiverem livres para dar a sua própria resposta. Enquanto êles forem mantidos incapazes de ser autônomos, enquanto forem doutrinados e manipulados (até os sellS próprios instintos) a resposta que derem a essa questão não poderá ser tomada por sua. E, por sinal, nenhum tribunal pode com justiça se arrogar o direito de decidir quais necessidades devam ser incrementadas e satisfeitas. Qualquer tribunal do gênero é repreensível, embora a nossa revulsão não elimine a questão: como podem as pessoas que tenham sido objeto de dominação eficaz e produtiva criar elas próprias as condições de Iiberdade?2 Ver p, 55,


Quanto mais racional, produtiva, técnica e total se torna a administração repressiva da sociedade, tanto mais inimagináveis se tornam os modos e os meios pelos quais os indivíduos administrados poderão romper sua servidão e conquistar sua própria libertação. Sem dúvida, a idéia de impor a Razão a uma sociedade inteira é paradoxal e escandalosa - embora se possa discutir a correção de uma sociedade que ridiculariza essa idéia enquanto transforma sua população em objetos de administração total. Tôda libertação depende da consciência de servidão e o surgimento dessa consciência é sempre impedido pela predominância de necessidades e satisfações que se tornaram, em grande proporção, do próprio indivíduo. O processo substitui sempre um sistema de precondicionamento por outro; o objetivo ótimo é a substituição de falsas necessidades por outras verdadeiras, o abandono da satisfação repressiva. A particularidade distintiva da sociedade industrial desenvolvida é a sufocação das necessidades que exigem libertação _ libertação também do que é tolerável e compensador e confortável - enquanto mantém e absolve o poder destrutivo e a função repressiva da sociedade afluente. Aqui, os contrôles sociais extorquem a necessidade irresistível para a produção e o consumo do desperdício; a necessidade de trabalho estupefaciente onde não mais existe necessidade real; a necessidade de modos de descanso que mitigam e prolongam essa estupefação; a necessidade de manter liberdades decepcionantes como as de livre competição a preços administrados, uma imprensa livre que se autocensura, a livre escolha entre marcas e engenhocas. _ Sob o jugo de um todo repressivo, a liberdade pode ser transformada em poderoso instrumento de dominação. O alcance da escolha aberta ao indivíduo não é o fator decisivo para a determinação do grau de liberdade humana, mas o que pode ser escolhido e o que é escolhido peIo indivíduo. O critério para a livre escolha jamais pode ser absoluto, mas tampouco é inteiramente relativo. A eleição livre dos senhores não abole os senhores ou os escravos. A livre escolha entre ampla variedade de mercadorias e serviços não significa liberdade se êsses serviços e mercadorias sustêm os contrôles sociais sôbre uma vida de labuta e temor - isto é, se sustêm alienação. E a reprodução espontânea, peIo indivíduo, de necessidades sup.:rimpostas não estabdece autonomia; ap.:nas testemunha a eficácia dos contrôIcs.

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A nossa insistência na profundidade e eficácia dêsses contrôles é passível da objeção de que superestimamos grandemente o poder de doutrinação dos "meios de informação" e de que as pessoas sentiriam e satisfariam por si as necessidades que lhes são agora impostas. A objeção foge ao âmago da questão. O precondicionamento não começa com a produção em massa de rádio e televisão e com a centralização de seu contrôle. As criaturas entram nessa fase já sendo de há muito receptáculos precondicionados; a diferença decisiva está no aplanamento do contraste (ou conflito) entre as necessidades dadas e as possíveis, entre as satisfeitas e as insatisfeitas. Aí, a chamada igualação das distinções de classe revela sua função ideológica. Se o trabalhador e seu patrão assistem ao mesmo programa de televisão e visitam os mesmos pontos pitorescos, se a datilógrafa se apresenta tão atraentemente pintada quanto a filha do patrão, se o negro possui um Cadillac, se todos lêem o mesmo jornal, essa assimilação não indica o desaparecimento de classes, mas a extensão com que as necessidades e satisfações que servem à preservação do Estabelecimento é compartilhada pela população subjacente. De fato, nos setores mais altamente desenvolvidos da sociedade contemporânea o transplante de necessidades sociais para individuais é de tal modo eficaz que a diferença entre elas parece puramente teórica. Os meios de divulgação em massa como instrumentos de informação e distração dos mesmos poderão ser distinguidos como agentes de manipulação e doutrinação? Entre o automóvel como conveniente e como inconveniente? Entre os horrores e as comodidades da arquitetura funcional? Entre o trabalho para a defesa nacional e o trabalho para o lucro corporativo? Entre a satisfação pessoal e a utilidade comercial e política compreendida no aumento do índice de natalidade? Defrontamos novamente com um dos aspectos mais perturbadores da civilização industrial desenvolvida: o caráter racional de sua irracionalidade. Sua produtividade e eficiência, sua capacidade para aumentar e disseminar comodidades, para transformar o resíduo em necessidade e a destruição em construção, o grau com que essa civilização transforma o mundo objetivo numa extensão da mente e do corpo humanos tornam questionável a própria noção de alienação. As criaturas se reconhecem em suas mercadorias; encontram sua alma em seu automóvel, hi-fi, casa em patamares, utensílios de cozinha. O próprio

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mecanismo que ata o indivíduo à sua sociedade mudou, e o contrôle social está ancorado nas novas necessidades que ela produziu. As formas prevalecentes de contrôle social são tecnológicas num nôvo sentido. Na verdade, a estrutura e eficiência técnicas do aparato produtivo e destrutivo foram um meio importante de sujeitar a população à divisão social do trabalho estabelecida, durante todo o período moderno. Mais ainda, tal integração sempre foi acompanhada de formas de compulsão mais óbvias: perda dos meios de sustento, a distribuição da justiça, a polícia, as fôrças armadas. Mas, no período contemporâneo, os contrôles tecnológicos parece serem a própria personificação da Razão para o bem de todos os grupos e interêsses sociais - a tal ponto que tôda contradição parece irracional e tôda ação contrária parece impossível. Não é, portanto, de admirar que, nos setores mais .desenvolvidos dessa civilização, os contrôles sociais tenham sido introjetados a ponto de até o protesto individual ser afetado em suas raízes. A negativa intelectual e emocional de "prosseguir" parece neurótica e impotente. tsse é o aspecto sócio-psicológico do acontecimento político que marca o período contemporâneo: o desaparecimento das fôrças históricas que, na fase anterior da sociedade industrial, pareceu representarem a possibilidade de novas formas de existência. Mas talvez o têrmo "introjeção" não mais descreva o modo pelo qual o próprio indivíduo reproduz e perpetua os contrôles externos exercidos pela sociedade. Introjeção sugere uma variedade de processos relativamente espontâneos pelos quais um Eu (Ego). transfere o "exterior" para o "interior". Assim, introjeção subentende a existência de uma dimensão interior, distinta e até antagônica das exigências externas - uma consciência individual e um inconsciente individual separados da opinião e do comportamento públicos. 3 A idéia de "liberdade interior" tem aqui sua realidade: designa o espaço privado no qual o homem pode tornar-se e permanecer "êle próprio". Atualmente, êsse espaço privado se apresenta invadido e desbastado pela realidade tecnológica. A produção e a distri-

C\.

3 A modificação na função da família desempenha aqui papel decisivo: suas funções "~ocialiladora~" são cada vez mais tomadas por grupos e meios de informação externos. Ver o meu livro EroJ and CiviJizalion (Boston; Beacon Press, 1955). pp. 96 e segs. (N. do E.: Traduzido para o português e publicado sob o título Eras. Cil·j/jzaçàa, Zahar Editores, Rio, 19h8.)

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buição em massa reivindicam o indivíduo inteiro e a psico~ogia industrictl deixou de há muito de limitar-se à fábrica. Os múltIplos processOS de introjeção parecem dssificados em reações .quase mecânicas. O resultado não é o ajustamento, mas a mlmese: uma identificação imediata do indivíduo com a sua sociedade e, através dela, com a sociedade em seu todo. Essa identificação imediata e automática (que pode ter sido característica das formas primitivas de associação) reaparece na civilização industrial elevada; contudo, sua "imediação" é o produto de uma gerência e organização complicadas e científicas. Neste processo, a dimensão "interior" da mente, na qual a oposição ao status quo pede criar raízes, é desbastada .. A perda dessa dimensão, na qual o poder de pensamento negat~vo _ o poder crítico da Razão - está à vontade, é a contrapartlda ideológica do próprio processo material no qual a sociedade industrial desenvolvida silencia e reconcilia a oposição. O impacto do progresso transforma a Razão em s~bmis~ão aos ~atos da vida e à capacidade dinâmica de produzIr maiS e maIOres fatos do mesmo tipo de vida. A eficiência do sistema embota o reconhecimento individual de que ela não contém fato algum que não comunique o poder repressivo do todo. Se os indivíduos se encontram nas coisas que moldam a vida dêles, não o fazem ditando, mas aceitando a lei das coisas - não a lei da Física, mas a lei da sociedade. Acabo de sugerir que o conceito de alienação parece tornarse questionável quando os ind!víduos se ide?ti~icam com .a existência que lhes é imposta e tem nela seu propno desenvolvlmento e satisfação. Essa identificação não é uma ilusão, m~s uma realidade. Contudo, a realidade constitui uma etapa malS progressiva de alienação. Esta se tornou intei~an;-en~e o?jetiva. O sujeito que é alienado é engolfad? por s~a eXIstencIa ahen~da. Há apenas uma dimensão, que esta em toda ~arte e tem todas as formas. As conquistas do progresso desafIam tanto ~ condenação como a justificação ideológicas; perant: o .tnbunal dessas conquistas, a "falsa consciência" de sua racIOnalIdade se torna a verdadeira consriência. Essa absorção da ideologia pela realidade não signif~ca, contudo o "fim da ideologia". Pelo contrário, em ~entIdo específi;o, a cultura industrial avançada é mais .ideológ.Ica d~ que sua predecessora, visto que, atualmente, a IdeologIa esta

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no próprio processo de produção. 4 Esta proposição revela, de forma provocadora, os aspectos políticos da racionalidade tecnológica prevalecente. O aparato produtivo e as mercadorias e serviços que êle produz "vendem" ou impõem o sistema social como um todo. Os meios de transporte e comunicação em massa, as mercadorias casa, alimento e roupa, a produção irresistível da i~d~stria de ~iversões e inf,ormação trazem consigo atitudes e habltos prescntos, certas reações intelectuais e emocionais que prendem os consumidores mais ou menos agradàvelmente aos produt?res e, através dêstes, ao todo. Os produtos doutrinam e mampulam; promovem uma falsa consciência que é imune à. s_ua falsidade. E, ao ficarem êsses produtos benéficos à dispoSlçao de maior número de indivíduos e de classes sociais, a doutrin.ação que êles portam deixa de ser publicidade; torna-se um estilo de vida. É um bom estilo de vida - muito melhor do que antes - e, como um bom estilo de vida, milita contra a transformação qualitativa. Surge assim um padrão de pensamento e comportamento unidimensionais no qual as idéias, as aspirações e os objetivos que por seu conteúdo transcendem o universo estabelecido da palavra e da ação são repelidos ou red.uzidos a t~rmos dêsse universo. São redefinidos pela racionalidade do sistema dado e de sua extensão quantitativa. A tendência pode ser relacionada com uma evolução no método científico: operacionalismo nas Ciências Físicas, behaviorismo nas Ciências Sociais. A característica comum é um empirismo total no tratamento dos conceitos; o significado dêstes é restringido à representação de operações e comportamento especiais. O ponto de vista operacional está bem exemplificado na análise do conceito de comprimento dc P. W. Bridgman: 5 Sabemos evidentemente o que queremos dizer por comprimento se po. demos dizer o que seja o comprimento de todo e qualquer objeto, nada mais sendo necessário ao físico. Para determinar o comprimento de um obJeto, temos de levar a efeito certas operações físicas. O conceito 4 Theodor W. Adorno, Prismen Suhrkamp, 1955), pp. 24 e sego

KlIlturkritik

und Gesdlschalt.

(Frankfurt:

5. P. W. Bridgman, The LOllic 01 Modem Ph.nics (Nova York: Macmillan, 1928) .. p. 5 . . A doutrina operacional foi de,de então refinada e qualificada. O pr6~.no . Bndgma,~ amplJo~ o conceito de "operação" para incluir as operações de lápls-e-papel do teÓrico em Til. Validatiofl of SClenti!lc Theories. de Philipp J. Frank. [Bos!?n: Bea~?n Pr.", 1954\, .cap. II. O impulso principal continua tnalterado. é desejável que as oreraçoes de lápis-e-papel "sejam capales ue um cantata eventual, embora talvel indiretamente, com as operações instrumentais".

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de comprimento fica estabelecido quando as operações pelas quais o comprimento é medido ficam estabelecidas: isto é, o conceito de com· primento com prende apenas e nada mais do que o conjunto de operações pelo qual o comprimento é determinado. Em geral, por qualquer conceito nada mais queremos dizer do que um conjunto de operações; o conceito é sinônimo do conjunto de operaç,)es correspondente.

Bridgman viu as amplas implicações dêsse modo de pensar para a sociedade em geral: 6 A adoção do ponto de vista operacional abrange muito mais do que a mera restrição do sentido no qual compreendemos "conceito", porém significa modificação de grande alcance em todos os nossos hábitos de pensar pelo fato de não mais nos devermos permitir usar como instrumentos de nosso pensamento conceitos para os quais não possamos dar uma justificativa adequada em têrmos de operações.

A predição de Bridgman se tornou realidade. O nôvo modo de pensar é hoje a tendência predominante em Filosofia, em Psicologia, em Sociologia e em outros campos. Muitos dos conceitos mais seriamente perturbadores estão sendo "eliminados" pela demonstração de que não se pode encontrar para êles justificativa adequada alguma em têrmos de operações ou comportamento. A chacina empírica radical (examinarei nos capítulos 7 e 8 o direito desta ao empirismo) garante, assim, a justificativa metodológica para a desmoralização da mente pelos intelectuais - um positivismo que, em sua negação dos elementos transcendentes da Razão, forma a réplica acadêmica do comportamento socialmente exigido. Fora do estabelecimento acadêmico, a "modificação de grande alcance de todos os nossos hábitos de pensar" é mais séria. Serve para coordenar idéias e metas com as que são reclamadas pelo sistema prevalecente, para incluí-las no sistema e para repelir as que sejam irreconciliáveis com o sistema. O reinado de tal realidade unidimensional não significa o domínio do materialismo e que as ocupações espirituais, metafísicas e boêmias estejam desaparecendo. Pelo contrário, há bastante promoções do gênero "Worship together this week"~ "Why ~ot try God", Zen, existencialismo e estilos exóticos de vida. Pore~ tais formas de protesto e transcendência não mais s~o c~ ___ . tórias ao status quo e não mais são negativas. sa/,~\§~ 6. C I o~>, ~\

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P. W. Bridgman, The Logic 01 Modun Physics, loc. cit.,

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O pensamento unidimensional é sistemàticamente promovido pelos elaboradores da política e seus provisiona dores de informação em ma.ss~. O universo da palavra, dêstes e daqueles, é povoado de hlpoteses autovalidadoras que, incessante e monoP?lis~i~amente repetidas, se tornam definições ou prescrições hlpn~t1cas. Por exemplo, ':livres" são as instituições que operam (e sao operadas) nos pai ses do Mundo Livre; outras formas tran~cendentes de liberdade são, por definição, anarquismo, comUnIsmo ou propaganda. "Socialistas" são tôdas as invasões da livre emprêsa não-realizadas pelo próprio livre empreendim~nto (~u por contratos governamentais), como o seguro de saude UnIversal e amplo ou a proteção da natureza contra a comercializ~ção arrasado~a ou a criação de serviços púhlicos que possam fem o lucro prIvado. Essa lógica totalitária de fatos consumados tem sua correspondente no Mundo Comunista. Aí, lib~rdade é o estilo de vida instituído pelo regime comunista, ~ tOda,s as. ~ut~as formas transcendentes de liberdade são capitalIstas, reVISlOnIstas ou sectarismo esquerdista. Em ambos as idéias não-operacionais são não-behavioristas e subversivas: O mo~ill1:ento do p~ns.amento encontra barreiras que parece serem os limites da propna Razão. Tal limitação do pensamento certamente não constitui novidade. O racionalismo moderno ascendente, tanto em sua forma especulativa como empírica, mostra um contraste gritante entre o radicalismo crítico extremado no método científico e filosófico de um lado', e, de outro, um quietismo não-crítico na atitud~ para com as instituições sociais estabelecidas e em funcionamento. Assim, o ego cogitans de Descartes se destinou a deixar os "grandes órgãos públicos" intatos, e Hobbes era de opinião qu~ "o presente deve ser sempre preferido, mantido e levado maIS cm conta". Kant concordava com Locke em justificar a revolução se e quando ela tenha alcançado êxito em organizar o todo e em impedir a subversão. Contudo, os conceitos acomodadiços da Razão foram sempre contestados pela evidência de miséria e injustiça dos "grandes órgãos públicos" e pela rebelião eficaz e mais ou menos ,consciente contra êles. Existiram condições sociais que provo·caram e permitiram a dissociação real do estado de coisas

existente; estava presente uma dimensão tanto privada como política na qual a dissociação podia tornar-se oposição eficaz, pondo à prova seu vigor e a validez dos seus objetivos. Com o fechamento gradativo dessa dimensão pela sociedade, a autolimitação do pensamento adquire maior significação. A inter-relação entre os processos científico-filosóficos e sociais, entre a Razão teórica e prática, se afirma "por trás" dos cientistas e filósofos. A sociedade barra todo um tipo de operações e comportamento oposicionistas; conseqüentemente, os conceitos a êles relativos são tornados ilusórios ou sem sentido. A transcendência histórica se apresenta como transcendência metafísica, inaceitável pela ciência e pelo pensamento científico. O ponto de vista operacional e behaviorista, praticado como um "hábito de pensamento" em geral, se torna a visão do universo estabelecido da palavra e da ação, das necessidades e aspirações. A "finura da Razão" funciona, como freqüentemente fêz, no interêsse dos podêres existentes. A insistência nos conceitos operacional e behaviorista se volta contra os esforços para libertar o pensamento e o comportamento da realidade dada e para as alternativas suprimidas. A Razão teórica e prática e o behaviorismo acadêmico e social se encontram em campo comum: o de uma sociedade avançada que transforma o progresso científico e técnico em instrumento de dominação. "Progresso" não é um têrmo neutro; encaminha-se para fins específicos, e êsses fins são definidos pelas possibilidades de melhorar a condição humana. A sociedade industrial desenvolvida se aproxima da fase em que o progresso contínuo exigiria a subversão radical da direção e organização do progresso predominantes. Essa fase seria atingida quando a produção material (incluindo os serviços necessários) se tornasse automatizada a ponto de tôdas as necessidades vitais poderem ser atendidas enquanto o tempo de trabalho necessário fôsse reduzido a um tempo marginal. Daí por diante, o progresso técnico transcenderia ao reino da necessidade no qual servira de instrumento de dominação e exploração, que dêsse modo limitava sua racionalidade; a tecnologia ficaria sujeita à livre atuação das faculdades na luta pela pacificação da natureza e da sociedade. Tal estado é visualizado na noção de "abolição do trabalho" de Marx. A expressão "pacificação da existência" parece mais apropriada para designar a alternativa histórica de um mundo que - por meio de um conflito internacional que transforma e suspende as contradições no seio das sociedades estabelecidas

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p.arte ~e~imonial do behaviorismo prático, sua negação inofenSiva, rapidamente digerida pelo status quo como parte de sua dieta salutar.


- avança à beira de uma guerra mundial. "Pacificação da existência" significa a luta do homem com o homem e com a natureza sob condições nas quais as necessidades, os desejos e as aspirações, competidores, não mais são organizados, por interêsses adquiridos, na dominação e escassez - uma organização que perpetua as formas destrutivas dessa luta. A luta atual contra essa alternativa histórica encontra firmes bases de massas na população subjacente e acha sua ideologia na orientação rígida do pensamento e do comportamento no universo de fatos dado. Validado pelas conquistas da ciência e da tecnologia, justificado por sua crescente produtividade, o status quo desafia tôda transcendência. Defrontando com a possibilidade de pacificação com base em suas conquistas técnicas e intelectuais, a sociedade industrial madura se fecha contra essa alternativa. O operacionalismo se torna, na teoria e na prática, a teoria e a prática da contenção. Por trás de sua dinâmica óbvia, essa sociedade é um sistema de vida inteiramente estático: automotriz em sua produtividade opressiva e em sua coordenação benéfica. A contenção do progresso técnico caminha de mãos dadas com o seu crescimento na direção estabelecida. A despeito dos entraves políticos impostos pelo status quo, quanto mais a tecnologia parece capaz de criar as condições para pacificação, tanto mais são a mente e o corpo do homem organizados contra essa alternativa. Os setores mais avançados da sociedade industrial ostentam completamente êsses dois fatôres: a tendência para a consumação da racionalidade tecnológica e esforços intensos para conter essa tendência no seio das instituições estabelecidas. Eis a contradição interna dessa civilização: o elemento irracional de sua racionalidade. É o totem de suas realizações. A sociedade industrial que faz suas a tecnologia e a ciência é organizada para a dominação cada vez mais eficaz do homem e da natureza, para a utilização cada vez mais eficaz de seus recursos. Torna-se irracional quando o êxito dêsses esforços cria novas dimensões de realização humana. Organização para a paz é diferente de organização para a guerra; as instituições que serviram à luta pela existência não podem servir à pacificação da existência. A vida como um fim é qualitativamente diferente da vida como um meio. Tal forma qualitativamente nova de existência jamais poderá ser visualizada como o mero subproduto de transformações econômicas e políticas, como o efeito mais ou menos espontâneo

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das novas instituições que constituem o requisito necessário. A transformação qualitativa também compreende uma transformação na base técnica em que repousa essa, ~ociedade - a. que sustenta as instituições econômicas e polIticas pelas quais .a "segunda natureza" do homem como objeto. agress.iv? de_ ad~l­ nistração é estabilizada. As .técnicas de I?~~stnalizaçao s~o técnicas políticas, como tal, preJulgam as possibilIdades da Razao e da Liberdade. Na verdade o trabalho tem de preceder a redução do trabalho, e a indu;trialização tem de preceder o desenv?lvim.ento das necessidades e satisfações humanas. Mas como toda liberdade depende da conquista de necessidade aliení~ena, a real~zação da liberdade depende das técnicas dessa conqUista. A mais al!a produtividade do trabalho pode ~er usa.da. pa~a a perpetu~ça? do trabalho, e a mais eficiente mdustnahzaçao pode servlf a restrição e manipulação das necessidades. Quando êsse ponto é atingido, a do~inação - disfarç~da em afluência e liberdade - se estende a todas as esferas da Vida pública e privada, integra tôda oposição autêntica, absorve tô?as as alternativas. A racionalidade tecnológica revela o seu carater político ao se tornar o grande veículo de. I?~lhor dominaç~o, criando um universo verdadeiramente totalitano no qual sociedade e natureza, corpo e mente são mantidos num estado de permanente mobilização para a defesa dêsse universo.

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2

o

FECHAMENTO DO UNIVERSO POLlTICO

abrange as camadas sôbre cujos ombros o sistema progride isto é, as próprias classes cuja existência antes personificava a oposição ao sistema como um todo. Nos Estados Unidos, notam-se o conluio e a aliança entre os negócios e o trabalho organizado; em Labor Looks at Labor: A Conversation, publicado pelo Centro de Estudo das Instituições Democráticas em 1963, lemos que:

o

A sociedade de mobilização total, que toma forma nos setores mais avançados da civilização industrial, combina em união produtiva as características do Estado do Bem-Estar e do Estado Beligerante. Comparada com suas predecessoras, ela é, na verdade, uma "nova sociedade". Os pontos problemáticos tradicionais estão sendo dissipados ou isolados, sendo controlados os elementos dissociativos. As principais tendências são familiares: concentração da economia nacional nas necessidades das grandes corporações, sendo o Govêrno uma fôrça estimulante, sustentadora e por vêze:; até controladora; deslocamento dessa economia para um sistema mundial de alianças militares, convênios monetários, assistência técnica e planos desenvolvimentistas, assimilação gradativa das populações de operários e "colarinhos brancos",' de tipos de liderança nos negócios e no trabalho, de atividades das horas de lazer e aspirações em diferentes classes sociais; fomento de uma harmonia preestabelecida entre a erudição e o propósito nacional; invasão da vida no lar pelo companheirismo da opinião pública; abertura da alcova aos meios de informação em massa. Na esfera política, essa tendência se manifesta em marcante unificação ou convergência de opostos. O bipartidarismo na política externa se sobrepõe a interêsses competitivos de grupos sob a ameaça de comunismo internacional e se estende à política interna, onde os programas dos grandes partidos se tornam cada vez mais indiferençáveis, até mesmo no grau de hipocrisia e no odor dos chavões. Essa unificação dos opostos se abate sôbre as próprias possibilidades de transformação social onde •

Whit,-collar no original.

(N. do T.)

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que aconteceu é que o sindicato se tornou indistinguível da corporação aos seus próprios olhos. Vemos hoje em dia o fenômeno de os sindicatos e corporações procurando, conjuntamente, influenciar deputados. O sindicato não conseguirá convencer os operários das fábricas de foguetes de que a companhia para a qual êles trabalham é um conjunto delator quando ambos, sindicato e corporação, estão procurando influenciar deputados para obter maiores contratos de construção de foguetes e tentando trazer outras indústrias da defesa para o seu se to r, ou quando comparecem juntos ao Congresso para, juntos, pedir que sejam construídos foguetes em vez de bombardeiros, ou bombardeiros em vez de foguetes, dependendo de que contrato êles tenham conseguido.

O Partido Trabalhista Britânico, cujos líderes competem com seus similares conservadores na promoção dos interêsses nacionais, encontra dificuldades para defender até mesmo um modesto programa de nacionalização parcial. Na Alemanha Ocidental, que tornou ilegal o Partido Comunista, o Partido Social-Democrata, tendo rejeitado oficialmente os seus programas marxistas, está provando de modo convincente a sua respeitabilidade. Esta é a situação nos principais países industriais do Ocidente. No Oriente, a redução gradativa dos contrôles políticos diretos testemunha a crescente confiança na eficácia dos contrôles tecnológicos como instrumentos de dominação. Quanto aos fortes partidos comunistas da França e Itália, constituem testemunho da tendência geral das circunstâncias ao aderirem a um programa mínimo que arquiva a tomada revolucionária do poder e concorda com as regras do jôgo parlamentar. Contudo, embora seja incorreto considerar os partidos francês e italiano como "estrangeiros" com o sentido de serem mantidos por uma potência estrangeira, há um núcleo não-intencional de verdade nesta propaganda: são estrangeiros, porquanto são testemunhas de uma história passada (ou futura?) na realidade atuaI. Se concordaram em trabalhar dentro da estrutura do sistema estabelecido, não o fizeram meramente com motivação tática e como estratégia de curto alcance, mas porque suas bases sociais foram enfraquecidas e seus objetivos al39


rerados pela transformação do sistema capitalista (como aconteceu aos objetivos da União Soviética, que endossou essa alteração na política). Os partidos comunistas nacionais desempenham o papel histórico de partidos da oposição legais "condenados" a não ser radicais. São um testemunho da profundidade e da amplitude da integração capitalista, bem como das condições que levam a diferença qualitativa de interêsses em conflito a parecer diferenças quantitativas no seio da sociedade estabelecida. Não parece necessana análise alguma em profundidade para determinar as razões para êsses acontecimentos. Quanto ao Ocidente, os antigos conflitos no seio da sociedade são modificados e arbitrados sob o duplo (e inter-relacionado) impacto do progresso técnico e do wmunismo internacional. As lutas de classes são atenuadas e as "contradições imperialistas" suspensas diante da ameaça externa. Mobilizada contra essa ameaça, a sociedade capitalista ostenta união e coesão internas desconhecidas em etapas anteriores de civilizações industriais. Trata-se de coesão por motivos assaz materiais; a mobilização contra o inimigo age como poderoso estímulo da produção e do emprêgo, mantendo, assim, o elevado padrão de vida. Com tais motivações, surge um universo de administração no qual as depressões são controladas e os conflitos estabilizados pelos efeitos benéficos da produtividade crescente e da ameaça de guerra nuclear. Será essa estabilização "temporária" no sentido de não afetar as raízes dos conflitos que Marx encontrou no sistema capitalista de produção (contradição entre a propriedade privada dos meios de produção e produtividade social), ou será uma transformação da própria estrutura antagônica, que resolve as contradições ao torná-las toleráveis? E, se a segunda hipótese é verídica, como modifica ela a relação entre capitalismo e socialismo que fêz êste parecer a negação daquele?

Contenção da transformação social A teoria marxista clássica visualiza a transição do capitalismo para o socialismo como uma revolução política: o proletariado destrói o aparato poiítico do capitalismo, mas conser\a o aparato tecnológico, submetendo-o à socialização. Há 40

continuidade na revolução: a racionalidade tecnológica, liberta de restrições e destruições irracionais, se mantém e se consuma na nova sociedade. :f: interessante ler um pronunciamento marxista soviético sôbre essa continuidade, que é tão importante para a noção de socialismo quanto a negação resoluta do capitalismo: 1 1) Conquanto o desenvolvimento da tecnologia esteja sUjeito às leis económicas de cada formação social, êle não termina, como outros fatóres econômicos, com a cessação das leis da formação. Quando, no processo da revolução, são rompidas as velhas relaçóes de produção, a tecnologia permanece e, subordinada às leis econômicas da nova formação econômica, continua desenvolvendo-se ainda mais, com maior rapidez. 2) Contrária ao desenvolvimento das bases econômicas em sociedades antagônicas, a tecnologia não se desenvolve aos saltos, mas pelo acúmulo gradativo de elementos de uma nova qualidade, enquanto os· elementos da qualidade antiga desaparecem. 3) [irrelevante neste contexto].

No capitalismo avançado, a racionalidade técnica está personificada, a despeito de seu uso irracional, no aparato produtivo. Isso não se aplica apenas às fábricas mecanizadas, ferramen,tas e exploração de recursos, mas também à maneira de trabalhar como adaptação ao processo mecânico e manuseio do mesmo, conforme programado pela "gerência científica". Nem a nacionalização nem a socialização alteram por si essa personalização física da racionalidade tecnológica; pelo contrário, esta permanece uma condição prévia para o desenvolvimento socialista de tôdas as fôrças produtivas. Na verdade, Marx era de opinião que a organização e a direção do aparato produtivo pelos "produtores imediatos" introduziriam uma modificação qualitativa na continuidade técnica: a saber, produção visando à satisfação de necessidades individuais livremente desenvolvidas. Contudo, a modificação qualitativa compreende uma modificação na própria estrutura tecnológica no mesmo grau com que o aparato técnico estabelecido engolfa a existência pública e privada em tôdas as esferas da sociedade - isto é, se torna o meio de contrôle e coesão num universo político que incorpora as classes trabalhadoras. E tal modificação pressuporia que as classes trabalhadoras es1 A. Zworikine, "The History of Technology as a Seience and as a Branch of Learning; a Soviet View". Technology and Culture (Detroit: Wayne State University Press, inverno de 1961), p. 2.

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tivessem, em sua própria existência, alienadas dêsse universo, que sua consciência fôsse a da impossibilidade de continuar a existir nesse universo, de modo que a f1ecessidade de modificação qualitativa seria uma questão de vida ou morte. Assim, a negação existe anteriormente à própria modificação, a noção de que as fôrças históricas libertadoras se desenvolvem no seio da sociedade estabelecida é uma pedra angular da teoria marxista. 2 Ora, é precisamente éssa nova consciência, êsse "espaço interior", o espaço para a prática histórica transcendente, que está sendo barrado por uma sociedade na qual tanto os sujeitos como os objetos constituem instrumentos num todo que tem a sua razão de ser nas realizações de sua produtividade cada vez mais poderosa. Aquêles cuja vida é o inferno da Sociedade Afluente são mantidos na ordem por uma brutalidade que revive as práticas medievais e dos primórdios da era moderna. Quanto às outras criaturas não-privilegiadas, a sociedade cuida de sua necessidade de libertação satisfazendo às necessidades que tornam a servidão aceitável e talvez até mesmo imperceptível, e concretiza êsse fato no próprio processo de produção. Sob o seu impacto, as classes trabalhadoras dos setores avançados da civilização industrial estão passando por decisiva transformação que se tornou o assunto de enorme pesquisa sociológica ..Enumero os principais fatôres dessa transformação: 1) A mecanização está reduzindo cada vez mais a quantidade e a intensidade da eQergia física consumida no trabalho. Esta evolução tem grande impacto sôbre o conceito marxista de trabalhador (proletária). Para Marx, proletário é, primordialmente, o trabalhador braçal que gasta e esgota sua energia física no processo de trabalhar, até mesmo se trabalha com máquinas. A compra e o uso dessa energia física, em condições sub-humanas, para a apropriação privada da mais-valia, traziam consigo os revoltantes aspectos desumanos da exploração; a noção marxista denuncia a dor física e a miséria do trabalho. ~ste é o elemento material, tangível da escravidão e alienação salarial - a dimensão psicológica e bioló~a do capitalismo clássico. Pendam les siecles passés, une cauu imporlanle d'aliénalion résidail dans le fail que l'êlre humain prélail son individualilé biologique à /'organizarion lechnique: ii érail porleur d'oulils; les ensembles lechniques 2

Ver p. 56.

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ne pouvaient se constituer qu'en incorporant rhomme comme porteur d'outils. Le caractere déformant de la profession élail à la fois psychique el somalique.3

Ora, a mecanização cada vez mais completa do trabalho no capitalismo desenvolvido, conquanto mantendo a exploração, modifica a atitude e a condição do explorado. No seio do conjunto tecnológico, o trabalho mecanizado no qual reações automáticas e semi-automáticas preenchem a maior parte (se não o todo) do tempo de trabalho continua sendo, como uma ocupação para tôda a vida, uma escravidão exaustiva, entorpecedora, desumana - ainda mais exaustiva por causa do aumento na velocidade do trabalho, contrôle dos operadores de máquinas (em vez do produto) e isolamento dos trabalhadores uns dos outros. 4 Na verdade, essa forma de servidão é expressiva da automatização coibida, parcial, da coexistência de setores automatizados, semi-automatizados e não-automatizados dentro de uma mesma fábrica, mas, até mesmo sob tais condições, "a tecnologia substituiu a fadiga muscular pela tensão e ( ou) esfôrço mental". 5 A transformação da energia física em aptidões técnicas e mentais é salientada para fábricas automatizadas mais desenvolvidas: ... aptidões da cabeça mais do que das mãos; do lógico mais do que do artífice; dos nervos mais do que dos músculos; do pilôto mais do que do trabalhador braçal; do técnico de manutenção mais do que do operador. 6 ~se tipo de escravização magistral não é essencialmente diferente da escravização da datilógrafa, do contador bancário, do vendedor eficiente e do locutor de televisão. A padronização e a rotina assimilam as ocupações produtivas e nãoprodutivas. O proletário das etapas anteriores do capitalismo era na verdade um animal de carga, pelo trabalho de seu corpo

3 "Durante os ~culos passados. uma razão Importante para a alienação foi o fato de o ser humano ter cedido a sua individualidade biológica ao aparato t~cnico: era portador de ferramentas; as unidades t~cnicas não podiam ser criadas sem incorporar em si o homem como portador de ferramentas. O caráter deformante da profissão era ao mesmo tempo psíquico e somático." Gilbert Slmondon. Du MolÚ d'e:dslence IÚ' objel. luhniqw. (Paris: Aubier, 1958), p. 103, nota. 4 Ver Charles Denby, "Workers Battle Automation" (New. and Lette,., Detroit, 1960) . 5 Charles R. Walter, Toward lhe Automatlc Factory (New Havon: Yale University Prel!, 1957), p. XIX. 6 lbid., p. 19S.

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na busca das necessidades e dos supérfluos da vida enquanto vivia na imundície e na pobreza. 1::le era, assim, a negação viva de sua sociedade. 7 Em contraste, o trabalhador organizado dos setores avançados da sociedade tecnológica vive essa negação menos conspicuamente e, como os demais objetos humanos da divisão social do trabalho, está sendo incorporado à comunidade tecnológica da população administrada. Mais ainda, nos setores da automatização mais coroados de êxito, uma espécie de comunidade tecnológica parece integrar os átomos humanos no trabalho. A máquina parece instilar certo ritmo de servidão nos operadores: Está geralmente aceito que movimentos interdependentes realizados por um grupo de pessoas que seguem um padrão rítmico proporcionam satisfação - assaz independente do que esteja sendo feito por meio dos movimentos;8

e o observador-sociólogo acredita ser isso uma razão para a criação gradativa de um "clima geral" mais "favorável tanto à produção como a certos tipos importantes de satisfação humana". 1::le fala do "crescimento de forte sentimento grupal em cada equipe" e cita estas palavras de um trabalhador: "Tudo considerado, vamos com o balanço das coisas ... "9 A frase expressa admiràvelmente a transformação na escravização mecanizada: as coisas balançam em vez de oprimir e sacodem o instrumento humano - não apenas seu corpo, mas também sua mente e até sua alma. Uma observação de Sartre elucida a profundidade do processo: Aux premiers lemps des machines semi-automatiques, des enquêles onl monlré que les ouvrieres spécialisées se laissaient aller, en travai/lant, à une rêverie d' ordre sexuel, elles se rapellaient la chambre, le IiI, la nuit, TOul ce qui ne concerne que la personne dans la solitude du couple fermé sur soi. Mais c'est la machine en elle qui rêvait de caresses . .. 10

o processo mecamco rompe, no universo tecnológico, a mais íntima indevassabilidade da liberdade, unindo sexualidade e trabalho num automatismo inconsciente e rítmico - um processo que se emparelha com a assimilação dos empregos. 2) A tendência assimiladora se manifesta na estratificação ocupacional. Nos estabelecimentos industriais-chaves, a mãode-obra operária declina em relação ao elemento "colarinhobranco'" o número de trabalhadores não-empenhados na produção au~enta.ll Essa modificação quantitativa se relaciona com uma mudança havida nos instrumentos básicos de produ~ão.12 Na etapa avançada da mecanização, como parte da reahdade tecnológica, a máquina não é une unité absolue, mais seulement une réalité technique individualisée, ouverte selon deux voies: celle de la relalion aux élémenls, et celle des relations interindividuelles dans l'ensemble technique. 13

A máquina afirma sua maior dominação ao reduzir a "autonomia profissional" do trabalhador, integrando-o com outras profissões que sofrem e dirigem o conjunto técnico, no qua~to se torna, ela própria, um sistema de ferramentas e relaçoes mecânicas, indo, assim, mais além do processo de trabalho individual. Na verdade, a autonomia "profissional" anterior do trabalhador era, antes, sua escravização profissional. Mas êsse modo específico de escravização era, ao mesmo tempo, a fonte de seu poder específico, profissional de negação - o poder de parar um processo que o ameaçav~ de aniquilamento co~o ser humano. Agora o trabalhador esta perdendo a autonomIa profissional que o fêz membro de uma classe destacada de ~utros grupos ocupacionais por personificar a refutação da SOCiedade estabelecida.

10 "Pouco após a adoção das máquinas semi-automáticas, as investigações mostraram que as operárias especializadas se deixavam, enquanto trabalhavam,

levar por um sonho de ordem sexual-; elas recordavam o quarto, a ca~a, a. noite e tudo o que dizia respeito apenas a um casal a s6s. Mas era a máquma eXistente nela que sonhava com carinhos ... " Jean-Paul Sartre, CritIque de /a rU/son dia/e clique, volume i (Paris: Gallimard, 1960), p. 290. II Aulomalion and Major Technological Change: Impact on Union Size, Structure. and Function. (Divisão do Sindicato Industrial, AFL-CIO, Washington, 1958), pp. 5 e segs. Solomon Barkin, The Decline of the Labor MOlemenl (Santa Barbara, Centro de Estudo das Instituições DemocrátIcas, 1961), pp. 10 e segs. 12 Ver p. 41. 13 "Uma unidade absoluta, mas apenas uma realidade técnica indivi~ualizada aberta em duas direções: a da relação com os elementos e a da relaçao entre os indJviduo> no todo técnico." Gilbert Simondon, loc. CJI., p. 146.

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7 Deve-se insistir na Intima conexão entre os conceitos marxistas de exploração e empobrecimento, a despeito das novas definições posteriores, nas quais empobrecimento se torna um aspecto cultural ou relativo a ponto de também se aplicar à casa suburbana com automóvel, televisão etc. "Empobrecimento" implica a falta e a indispensabilidade de subverter condições de existência intoleráveis, e tal necessidade absoluta aparece nos primórdios de tôda revolução contra as instituições sociais básicas. ' 8 Charles R. Walker, loc. cil., p. 104. 9 Ibid., pp. 104 e sego


A transformação tecnológica que tende a acabar com a máquina como um instrumento individual de produção, como uma "unidade absoluta", parece cancelar a noção marxista de "composição orgânica do capital" e a teoria da criação da maisvalia. Segundo Marx, a máquina jamais cria valor meramente tra~sferi?do o. seu próprio valor para o produto,' enquanto a ~als-vaha c,ont!nua, sendo o resultado da exploração do trabalho VIVO. A maqulOa e a personificação do poder de trabalho humano e, por meio disso, o trabalho pregresso (trabalho morto) se preserva e determina o trabalho vivo. Agora, a automatização parece alterar qualitativamente a relação entre trabalho T?~rto e trabalho vivo; tende para um ponto em que a produtIVIdade é determinada "pelas máquinas e não pelo rendimento individual". 14 Mais ainda, a própria medição do rendimento pessoal se torna impossível: ~ automati~,:ção em seu sentido mais amplo significa, com efeito, o flln da. medlçao do trabalho. .. Com a automatização não se pode medir

o re~dlm:nto de uO? homem em separado; tem-se de medir simplesmente a utll!zaçao do ~qUlpaI?ento: .Se isso fôr generalizado como um tipo de conceito '" nao mais eXistirá, por exemplo, razão alguma para se pagar _a um. ho~em por tarefa ou por hora, o que equivale a dizer que nao mais eXiste razão alguma para se manter o "sistema dúplice de pagamento" de salários e ordenados,15

Daniel Bell, autor dêsse relatório, vai mais além; êle liga essa modificação tecnológica ao próprio sistema histórico de industrialização: o significado da üídustrialização não surgiu com a criação de fábricas, "surgiu da medição do trabalho. É quando o trabalho pode ser medido, quando se pode prender o homem ao trabalho, quando se lhe pode atrelar e medir o seu rendimento em têrmo de uma s6 peça pagando-o por peça ou por hora que se tem a industrialização moderna",16

. O q~e está em jôgo nessas transformações tecnológicas é mUlto mais do que um sistema de pagamento, do que a relação do trabalhador com outras classes e com a organização do t~ab~lho. O que está. em jôgo é a compatibilidade do progresso tecOlCO com as próprIas instituições criadas pela industrialização. SergeMallet.emArgumenls.!I.o 12-13. Paris, 1958, p. 18. 15 Aulomarion and Maior Technological Change, loc. cil., p. 16 Ibid.

17 Charle. R. WaJker, loc. clt., pp. 97 e segs. Ver também Ely Chino)', AUlOmobile Workers and lhe Americun Dream (Garden City: Doub1eday, 1955),

14

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3 ) Essas alterações no caráter do trabalho e nos instrumentos de produção mudam a atitude e a consciência do trabalhador, o que se torna manifesto na "integração social e cultural" do trabalhador na sociedade capitalista, amplamente discutida. Será uma modificação somente na consciência? A resposta afirmativa, com freqüência dada pelos marxistas, parece estranhamente inconsistente. Será tal alteração fundamental na consciência compreensível sem que se admita uma modificação correspondente na "existência social'''? Ainda que se admita alto grau de independência ideológica, os laços que unem essa mudança à transformação dos processos produtivos militam contra tal interpretação. A assimilação nas necessidades e aspirações, no padrão de vida, nas atividades das horas de lazer, na política se deriva de uma integração na própria fábrica, no processo material de produção. f: certamente discutível poderse falar de "integração voluntária" (Serge Mallet) em outro sentido que não o irônico. Na situação atual, as características negativas da automatização predominam: aceleração do trabalho, desemprêgo tecnológico, revigoramento da posição da gerência, impotência e resignação crescentes por parte dos trabalhadores. As possibilidades de promoção diminuem, porquanto a gerência prefere engenheiros e diplomados por universidades. 17 Contudo, há outras tendências. A mesma organização tecnológica que possibilita uma comunidade mecânica no trabalho gera também uma interdependência maior que 18 integra o trabalhador com a. fábrica. Nota-se uma "sofreguidão" do trabalhador para "compartilhar da solução dos problemas de produção", um "desejo de participar ativamente pela aplicação de seus cérebros na solução de problemas técnicos e de produção que claramente se enquadram na tecnologia".19 Em alguns dos estabelecimentos tecnicamente mais desenvolvidos, os trabalhadores mostram até um interêsse adquirido no estabelecimento - um efeito freqüentemente observado da "participação do trabalhador" da emprêsa capitalista. Uma descrição irritante, relativa às refinarias Caltex, altamente americanizadas, de

paSJJm.

8.

18 Fluyd C. Mann e L. Richard Hoffman, A"lOmlllion and lhe Worker. A Sludy 01 Social ChallKe UI Po»er Planls (NoYa York, Henry Holl: 1900), p. 189. 19 Charle, R. Walkcr, loe. cil., ;>p. 213 e "'l!.

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Ambes, França, pode servir para caracterizar essa tendência. Os trabalhadores estão cônscios dos elos que os ligam à emprêsa: Liens professionnels, liens sociaux, liens matériels: le métier appris dans la raftinerie, /'habitude des rapports de production qui s'y sons établis, les multiples avantages sociaux qui, en cas de mort subite, de maladie grave, d'incapacité de tramil, de vieil/esse enfin, lui sont assurés par sa seule appartenance à la firme, prolongean! au-delà de la période productive de leur vie la sureté des lendemains. Ainsi, la notion de ce contrat vil'ant et indestructible avec la 'Caltex' les amene à se préoccuper, avec une atlention et une lucidité inatlendue, de la gestion financiere de /'entreprise. Les délégués aux Comités d'entreprise épluchent la compatibilité de la société avec le soin jaloux qu'y accorderaient des actionnaires consciencieux. La direction de la Caltex peut certes se frolter les mains lorsque les syndicats acceptent de surseoir à leurs revendications de sala ires en présence des besoins d'investissements nouveaux. Mais e/le commence à manifester les plus 'Iéf?itimes' inquiétudes lorsque, prenan! au mo! les bilans truqués de la filiale française, ils s'inquiétent des marchés 'désavan!ageux' passés par cel/es-ci et poussent I'audace jusqu'à contester les prix de revient et suggérer des propositions économiquesl20

4) O nôvo mundo-do-trabalho tecnológico impõe um enfraquecimento da posição negativa da classe trabalhadora: esta não parece ser a contradição viva da sociedade estabelecida. Essa tendência é reforçada pelo efeito da organização tecnoló20 "Elos profissionais, socIaIs e materiais: o que aprenderam na refinaria, o fato de se haverem acostumado a certas relações de produção nela estabelecidos; os múltiplos benefícios sociais com os quais podem contar em caso de morte súbita, doença grave, incapacidade para o trabalho, finalmente, velhice, meramente pelo fato de pertencerem à firma, levando sua segurança mais além do período produtivo da vida dêles. Assim, a noção de um contrato vivo e indestrutivo com a Caltex os leva a se preocuparem, com uma atenção e uma lucidez inesperadas, com a gerência financeira da firma. Os delegados aos 'Comités d'enterprise' examinam e discutem as contas da companhia com o mesmo zêlo que os acionistas devotariam ao assunto. A direção da Caltex pode sem dúvida regozijarse quando os sindicatos concordam em abandonar suas reivindicações salariais em vista da necessidade de novos investimentos. Mas começa a dar sinais de ansiedade "legítima" quando os delegados levam a sério os balancetes simulados das sucursais francesas e se preocupam com transações desvantajosas levadas a cabo nessas sucursais, ousando contestar os custos de produção e sugerir medidas de economia." Serge Mallet, "Le Salaire de la technique", em La Nef, n.o 25, Paris, 1959, p. 40. Quanto à tendência para a integração nos Estados Unidos, eis surpreendente declaração de um líder sindical da United Automobile Workers: "Muitas vêzes nos reuníamos no salão do sindicato discutindo as queixas dos trabalhadores e o que podíamos fazer a respeito. Mas, quando eu combinava uma reunião com a gerência no dia seguinte, o problema já havia sido solucionado, e o sindicato não ganhava crédito por haver atendido a queixa. Tornou-se uma batalha de provas de lealdade. Tudo aquilo por que lutávamos, " corporação dá agora aos trabalhadores. O que temos de descobrir são outras coisas desejada. pelo. trabalhadores que o empregador não lhes quer dar... Estamos procurando. Estamos procurando." Labor Looks uI Labor. A COn\,.,salion (Santa Barbara: Centro de Estudos das Instituições Democráticas, 1963), pp. 16 e segs.

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gica da produção sôbre o outro lado envolvido: sôbre a gerência e a direção. A dominação se transfigura em administração. 21 Os patrões e proprietários capitalistas estão perdendo sua identidade como agentes responsáveis; estão assumindo a função de burocratas numa máquina corporativa. Dentro da enorme hierarquia das juntas executivas e de gerência que se estende muito além de cada estabelecimento até o laboratório científico e instituto de pesquisas, ao Govêrno e ao propósito nacionais, a fonte tangível de exploração desaparece por trás da fachada da racionalidade objetiva. A decepção e o ódio são privados de seu alvo específico, e o véu tecnológico esconde a reprodução da desigualdade e da escravização. 22 Tendo o progresso técnico por instrumento, a falta de liberdade - significando sujeição do homem ao seu aparato produtivo - é perpetuada e intensificada sob a forma de muitas liberdades e comodidades. A característica novel é a racionalidade irresistível nessa emprêsa irracional, e a profundidade do precondicionamento que molda os impulsos e aspirações instintivos dos indivíduos e obscurece a diferença entre consciência falsa e verdadeira. Pois, na realidade, nem a utilizaçãço dos contrôles políticos em vez dos contrôles físicos (fome, dependência pessoal, fôrça), nem a mudança no caráter do trabalho pesado, nem a assimilação das classes ocupacionais, nem a igualação na esfera do consumo compensam o fato de as decisões sôbre a vida e a morte, sôbre a segurança pessoal e nacional, serem tomadas em lugares sôbre os quais os indivíduos não têm contrôle algum. Os escravos da civilização industrial desenvolvida são escravos sublimados, mas são escravos, porquanto a escravidão é determinada pas par l'obéissa/lce, /li par la rudesse des labeurs, mais par le statu d'instrument et la réduction de l'homme à /'état de chose. 23

Esta é a forma pura de servidão: existir como um instrumento, como uma coisa. E esta forma de existência não é ab21 Será ainda necessário denunciar a ideologia da "revolução de gerência"? A produção capitalista prossegue por meio do investimento de capital privado para a extração e apropriação privadas da mais-valia e o capItal. é. um mstru!,,~nto. s0cial de dominação do homem pelo homem. As. cara.cter~st1cas essenCI3JS desse processo não são de modo algum alteradas pela dlSsemmaçao das ações, pela &cparação entre propriedade e gerência etc. 22 Ver p. 30. . _ 23 "não é pela obediência nem pela dureza do trabalho, ma~ pela cOndlç~? de ser um mero instrumento e pela redução do homem à condlçao de cOIsa , François Perroux, La Co~xisltnc. pacifique (Paris, Pre.ses Universitaires, 1958), vol. 1lI, p. 600.

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rogada se a coisa é animada e escolhe seu alimento material e intelectual, se não se apercebe de que é uma coisa, se é uma coisa bonita, limpa e móvel. Inversamente, ao tender a espoliação para tornar-se totalitária em virtude de sua forma tecnológica, os próprios organizadores e administradores se tornam cada vez mais dependentes da maquinaria que êles organizam e administram. E essa dependência mútua não mais é a relação dialética entre Senhor e Servo, já rompida na luta pelo reconhecimento mútuo, mas, antes, um círculo vicioso que inclui tanto Senhor como Servo. Os técnicos de fato dominam, ou será o seu domínio daqueles que confiam nos técnicos como seus planejadores e executores?

Com essa Suposlçao, o Inimigo ficaria "permanente" - isto é, o comunismo continuaria coexistindo com o capitalismo. Ao mesmo tempo, êste continuaria capaz de manter e até melhorar o padrão de vida de uma ala crescente da população - a despeito e por meio da produção intensificada dos meios de destruição e do desperdício metódico de recursos e faculdades. Essa capacidade se afirmou a despeito e através de duas Guerras Mundiais e da incomensurável regressão física e intelectual ocasionada pelos sistemas fascistas. A base material para essa capacidade continuaria disponível a) na crescente produtividade do

. .. as pressões da corrida armamentista altamente tecnológica de hoje Iiraram a iniciativa e o poder de tomar as decisões cruciais das mãos de funcionários publicos responsáveis, colocando-os nas mãos de técnicos, planeJadores e cientistas empregados por enormes impérios industriais e lllvt:stiuos da responsabilidade pelos interêsses dos empregadores. É sua função id.:alizar novos sistemas de armas e persuadir os militares de que o futuro de sua profissão militar, bem como do país, depende da compra do que êles idealizaram. 24

Assim como os estabelecimentos produtores dependem dos militares para sua autopreservação e seu crescimento, os militares dependem das corporações "não apenas para obter as armas, mas também para saber de que tipo de armas precisam, quanto custarão e quanto tempo será necessário para obtê-las" .25 O círculo vicioso parece representar de fato a imagem apropriada de uma sociedade auto-expansiva e autoperpetuante em sua própria direção preestabelecida - impulsionada pelas necessidades crescentes que ela gera e, ao mesmo tempo, contém.

Perspectivas de contenção Haverá qualquer perspectiva de rompimento dessa cadeia de produtividade e repressão crescentes? Uma resposta exigiria uma tentativa de projetar os acontecimentos contemporâneos no futuro, admitindo-se uma evolução relativamente normal, isto é, desprezando-se a possibilidade muito real de uma guerra nuclear. 24

!>tewart Meacham. Labor and lhe Cold War

C-"mmltlce. FIladélfIa, 1959), p. 9. 25 Ibid.

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(American Fricnds Scrvicc

trabalho

(progresso

técnico) ; b)

no aumento do índice de natalidade da população subjacente;

c) na permanente economia da defesa; e d) na integração político-econômica dos países capitalistas

e no aumento de suas relações com as áreas subdesenvolvidas.

M~s o conflito contínuo entre as aptidões produtivas da sociedade e sua utilização destrutiva e opressiva pediria esforços intensificados para impor as exigências do aparato à população - livrar-se do excesso de capacidade, criar a necessidade de comprar as mercadorias que devem ser lucrativamente vendidas e o desejo de trabalhar para a sua produção e promoção. O sistema tende, assim, tanto para a administração total como para a dependência total da administração pelo domínio da gerência pública e privada, reforçando a harmonia preestabelecida entre os interêsses do grande público e das corporações privadas e os dos seus fregueses e servidores. Nem a nacionalização parcial nem a participação aumentada dos trabalhadores da gerência e dos lucros alterarão por si êsse sistema de dominação enquanto o próprio trabalho permanecer uma fôrça sustentadora e afirmati-,a. Há tendências centrífugas de dentro e de fora. Uma delas é inerente ao próprio processo técnico, a saber, a automatização. Sugeri que a automatização em expansão é mais do que o crescimento quantitativo da mecanização - que é uma alteração 51


no caráter das fôrças produtivas básicas. 26 Parece que a automatização até os limites da possibilidade técnica é incompatível com uma sociedade baseada na exploração privada da fôrça de trabalho humana no processo de produção. Quase um século antes de a automatização se tornar uma realidade, Marx visualizou suas perspectivas explosivas:

26 Ver p. 45 27 Karl Marx Grundrisse der Kritik der polirüchen Oekonomie (Berlim, Dietl Verlag, 1953), p. Ver também p. 596. Tradução minha.

A automatização, ao se tornar o próprio processo de produção material, revolucionaria a sociedade inteira. O esbulho da fôrça de trabalho humano, levado à perfeição, destruiria a forma espoliada pelo rompimento dos laços que atam o indivíduo à máquina - o mecanismo pelo qual o seu próprio trabalho o escraviza. A automatização completa na esfera da necessidade abriria a dimensão do tempo livre como aquela em que a existência privada e social do homem constituiria ela própria. Isso seria a transcendência histórica rumo a uma nova civilização. Na fase atual do capitalismo desenvolvido, o trabalho organizado se opõe de direito à automatização sem emprêgo compensador. Insiste na utilização extensa da fôrça de trabalho na produção material e, assim, se opõe ao progresso técnico. Contudo, ao fazê-lo se opõe à mais eficiente utilização do capital; estorva esforços intensificados para elevar a produtividade do trabalho. Em outras palavras, o impedimento contínuo da automatização poderá enfraquecer a posição competitiva nacional e internacional do capital, ocasionar uma depressão de longo alcance e, conseqüentemente, reativar o conflito de interêsses de classes. Essa possibilidade se torna mais real ao passar a disputa entre capitalismo e comunismo do campo militar para o campo social e econômico. A automatização pode avançar mais ràpidamente nó sistema soviético, pelo poder da administração total, uma vez atingido certo nível técnico. Essa ameaça à posição competitiva internacional do mundo ocidental o compeliria a acelerar a racionalização do processo de produção. Tal racionalização esbarra em dura resistência por parte do trabalho organizado, mas uma resistência que não se faz acompanhar de radicalização política. Pelo menos nos Estados Unidos, a liderança sindical não vai, em seus objetivos e meios, além da estrutura comum aos interêsses nacionais e grupais, submetendose êste, ou estando sujeito, àquele. Essas fôrças centrífugas ainda são manejáveis no seio dessa estrutura. Aqui, também, a proporção decrescente da fôrça de trabalho humana no processo de produção significa um declínio no poder político da oposição. Em vista do crescente pêso do elemento colarinho-branco no processo, a radicalização política teria de ser acompanhada do surgimento de consciência e ação políticas independentes no seio dos grupos colarinhos-brancos um acontecimento assaz improvável na sociedade industrial de-

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Com o progresso de grande escala, a cnaçao da riqueza real depende menos do tempo de trabalho e da quantidade de trabalho gasta do que do poder do instrumental (ARcntien) pôsto em movimento durante o tempo de trabalho. tôsses instrumentais e sua poderosa eficácia não estão em proporção alguma ao tempo de trabalho imediato exigido pela sua produção; sua eficácia depende, antes, do nível de progresso da ciência e tecnológico alcançado; em outras palavras, da aplicação dessa ciência à produção. .. O trabalho humano não mais parece, então, incluído no processo de produção - em vez disso, o homem se relaciona com o processo de produção como supervisor e regulador (W achter und Regulator). .. Fica fora do processo de produção em vez de ser o seu principal agente... Nessa transformação, o grande pilar da produção e riqueza não mais é o trabalho imediato desempenhado pelo próprio homem, nem o seu tempo de trabalho, mas a apropriação de sua produtividade universal (Productivkraft!, isto é, seu conhecimento e seu domínio da natureza por meio de sua existência social (des gesellschaftUchen lndividuums). O roubo do tempo de trabalho alheio, no qual ainda assenta atualmente a riqueza [social], parece então uma base mesquinha em comparação com as novas bases criadas pela própria indústria de grande escala. Assim que o trabalho humano, em sua forma imediata, deixe de ser a grande fonte de riqueza, o tempo de trabalho deixará de ser, tendo necessàriamente de deixar de ser, a medida da riqueza, e o valor de troca 'terá necessàriamente de deixar de ser a medida do valor de uso. O excedente de trabalho da massa [da população] terá, assim, deixado de ser a condição para o desenvolvimento da riqueza social (des allgemeinen Reichtums) e o óciel de uns poucos terá deixado de ser a condição para o desenvolvimento das faculdades intelectuais universais do homem. A forma de produção que assenta no valor de troca, assim, sucumbirá ... 27

A automatização parece, de fato, ser o grande catalisador da sociedade industrial desenvolvida. É um catalisador explosivo ou não-explosivo na base material da transformação qualitativa, o instrumento técnico da mudança de quantidade para qualidade. Pois o processo social de automatização expressa a transformação ou, antes, a transubstanciação da fôrça de trabalho, na qual esta, separada do indivíduo, se torna um objeto produtor independente e, assim, ela própria uma dependente.

592.


senvolvida. o impulso acelerado para organizar o crescente elemento de colarinho branco nos sindicatos industriais 28 poderá, caso chegue a ter êxito, resultar no crescimento de uma consciência sindical dêsses grupos, mas dificilmente em sua radicalização política. Politicamente, a presença de mais trabalhadores de colarinho branco nos sindicatos dará aos porta-vozes liberais e sindicais uma oportunidade para identificar com maior veracidade "os interêsses das classes trabalhadoras" com os da comunidade em seu todo. A base de massa do sindicalismo será ainda mais ampliada, e os porta-vozes da classe serão inevitàvelmente envolvidos em ajustes de maior alcance sôbre economia política nacional. 29

Sob tais circunstâncias, as perspectivas de uma perfeita contenção das tendências centrífugas dependem primordialmente da habilidade dos interêsses adquiridos para se ajustarem e ajustarem sua economia às exigências do Estado do Bem-Estar Social. Gastos e direção governamentais enormemente aumentados, um programa de ajuda externa ampliado, seguro social total, obras públicas em grande escala e talvez até a nacionalização parcial fazem parte dessas exigências. 30 Creio que os interesses dominantes aceitarão essas exigências gradativamente e com hesitação, confiando suas prerrogativas a um poder mais eficaz. Quanto às perspectivas de contenção da transformação social no outro sistema de civilização industrial, a sociedade soviética,31 a discussão esbarra logo de início com dúplice incompatibilidade' a) cronologicamente, a sociedade soviética está em fase inicial de industrialização, com grandes setores ainda em etapa pré-tecnológica, e b) estruturalmente suas instituições econômicas e políticas são essencialmente diferentes (nacionalização total e ditadura). A interligação entre os dois aspectos agrava a dificuldade da análise. O atraso histórico não apenas possibilita como também compele a industrialização soviética a prosseguir sem desAutomation and Maior Technological Change, loco cit., pp. 11 e sego C. Wright Mills, White Col/ar (Nova York: Oxford University Press, 1956), e se,;. Nos países capitalistas menos desenvolvidos, onde fortes setores do movimento sindical militante ainda estão ativos (França e Itália), sua fôrça é enterrada diante da fôrça da racionalização tecnológica e política de forma autoritária. pp.

28 29

31 30

As exigências da dhputa internacional provàvelmente fortalecerão esta segunda fôr-

perdício e obsoletismo planejados, sem as restrições à produtividade imposta pelos interêsses de lucro privado e com a satisfação planejada de necessidades vitais ainda não satisfeitas após e talvez até simultâneamente com o atendimento às prioridades das necessidades militares e políticas. Será essa maior racionalidade da industrialização apenas o indício e a vantagem do atraso histórico, fadada a desaparecer uma vez atingido o nível avançado? Será o mesmo atraso histórico que, por outro lado, força - sob as condições de coexistência competitiva com o capitalismo - o desenvolvimento e o contrôle totais de todos os recursos por um regime ditatorial? E a sociedade soviética estaria capacitada a liberalizar os contrôles totalitários a ponto de poder operar-se uma transformação qualitativa, após atingir a meta de "alcançar e ultrapassar"? O argumento baseado no atraso histórico - segundo o qual a liberalização deve, sob as condições prevalecentes de imaturidade material e intelectual, ser necessàriamente a obra da fôrça e da administração é não apenas o cerne do marxismo soviético, mas também dos teóricos da "ditadura educacional", de Platão a Rousseau. :f: fàcilmente ridicularizável, mas de difícil refutação, porque tem o mérito de reconhecer, . sem muita hipocrisia, as condições (materiais e intelectuais) que servem para impedir a autodeterminação genuína e inteligente. Mais ainda, o argumento desbanca a ideologia repressiva da liberdade, segundo a qual a liberdade humana pode florescer numa vida de labuta, pobreza e estupidez. De fato, a sociedade tem de criar primeiro os requisitos de liberdade para todos os seus membros antes de poder ser uma sociedade livre; tem de criar primeiro a riqueza, antes de poder distribuí-la de ~côr­ do com as necessidades individuais livremente desenvolVidas; deve primeiro possibilitar aos seus escravos aprender, ver e pensar, antes que êles possam saber o que se está passando e o que podem fazer para modificar as coisas. A libertação dos escravos parece vir de fora e de cima, no mesmo grau em que êles foram precondicionados para viver como escravos e sentir-se contentes nessa condição. fJes têm de ser "forçados a ser livres" a "ver os objetos como êstes são e algumas vêzes como devia~ parecer", devendo ser-lhes mostrado o "bom caminho" que buscam. 32

ça e levarão à adoção de uma aliança com as tendências predominantes nos setores industriais mais desenvolvidos.

31 Sôbre o que se segue, ver meu Sov/et Marxism University Press, 1958).

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(Nova York: Columbia

32 p. 27.

Rousseau, O Contrato Social, Livro I, Cap. VII; Livro II, Cap. VI.

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Ver


Mas, a despeito de tôda a sua veracidade, o argumento não pode responder à pergunta consagrada pelo tempo: quem educa os educadores e onde está a prova de que êles estejam na posse do "bem"? A pergunta não é invalidada pelo argumento de que igualmente aplicável a certas formas democráticas de Govêrno nas quais as decisões finais sobre o que é bom para a nação são dadas por representantes eleitos (ou melhor, endossadas por representantes eleitos) - eleitos sob condições de doutrinação eficaz e livremente aceita. Mas ainda, a única justificativa possível (bastante fraca!) para a "ditadura educacional" é que o terrível risco em que ela importa pode não ser mais terrível do que o risco que as grandes sociedades tanto liberais como autoritárias correm atualmente, nem podem os custos ser mais elevados. Contudo, a lógica dialética insiste, contra a linguagem dos fatos crus e da ideologia, em que os escravos devem estar livres para a sua libertação antes de poderem tornar-se livres, e em que o fim deve ser operante nos meios para atingi-lo. A proposição de Marx de que a libertação da classe trabalhadora deve ser ação dessa própria classe enuncia isso a priori. O socialismo deve tornar-se realidade com o primeiro ato da revolução porque já deverá estar na consciência e na ação dos que realizam a revolução. Na verdade, existe uma "primeira fase" de construção socialista durante a qual a nova sociedade está "ainda gravada com as marcas do nascimento da velha sociedade de cujo ventre ela emerge",33 mas a mudança qualitativa da velha para a nova sociedade terá ocorrido no início dessa fase. Segundo Marx, a "segunda fase" é literalmente constituída na primeira fase. O estilo de vida qualitativamente nôvo gerado pela nova forma de produção aparece na revolução socialista, que é o fim, e ao término do sistema capitalista. A construção socialista começa com a primeira fase da revolução. E, por sinal, a transição do princípio de "a cada um segundo o seu trabalho" para o de "a cada um segundo as suas necessidades" é determinada pela primeira fase - não apenas pela criação das bases tecnológicas e materiais, mas tamb~1ll (c isso é decisivo!) pelo modo de serem criadas essas bases. O contrôle do processo de produção pelos "produtores imediatos"

deve iniciar o desenvolvimento que distingue a história de homens livres da pré-história do homem. Trata-se de uma sociedade na qual os objetos de produtividade se tornam pela primeira vez criaturas humanas que planejam e usam os instrumentos de seu trabalho para a realização de suas próprias necessidades e faculdades humanas. Pela primeira vez na história, o homem agiria livre e coletivamente sob e contra a necessidade que limita sua liberdade e sua natureza humana. Dessa forma, tôda repressão imposta pela necessidade seria verdadeiramente uma necessidade auto-imposta. Em contraste com êsse conceito, o que de fato se processa na sociedade comunista atual adia (ou é compelido a adiar pela situação internacional) a mudança qualitativa para a segunda fase, e a transição do capitalismo para o socialismo ainda parece, a despeito da revolução, uma mudança quantitativa. A escravização do homem pelos instrumentos de seu trabalho continua numa forma altamente racionalizada e enormemente eficaz e promissora.

A situação de coexistência hostil pode explicar as características terroristas da industrialização stalinista, mas também põe em marcha as fôrças que tendem a perpetuar o progresso técnico como instrumento de dominação; os meios prejudicam os fins. Voltando a admitir que nenhuma guerra nuclear ou qualquer outra catástrofe interrompa o seu desenvolvimento, o progresso técnico favoreceria o aumento contínuo do padrão de vida e a liberalização contínua dos contrôles. A economia nacionalizada poderia explorar a produtividade do trabalho e do capital sem resistência estrutural,34 ao mesmo tempo reduzindo consideràvelmente as horas de trabalho e aumentando as comodidades da vida. E poderia realizar tudo isso sem abrir mão da administração total do povo. Não há razão alguma para se pressupor que progresso técnico mais nacionalização favorecerão a liberação e a libertação "automáticas" das fôrças de negação. Pelo contrário, a contradição às crescentes fôrças produtoras e sua organização escravizadora - abertamente admitida como uma característica do desenvolvimento socialista soviético até por Stalin 3S - tem mais probabilidade de se aplanar do que de

33 Marx, '"Critique of lhe Gotha Programme". em Marx e Engels S.lecl.d Worb (Moscou: Editôra de Línguas Estrangeiras, 1958), vol. II, p. 23. '

34 Sôbre a diferença entre resistência intrlnseca e múnobrãve1. ver meu 50viet Marxüm, loco cil., pp. 109 e segs. 35 '"Economic Problems of Socialism in the U. S. S. R." (1952), em Leo GruJiow ed., Currem 50,·;.1 Policies (Nova York: F. A. Praeger, 1953), pp. S, 11, 14.

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se agravar. Quanto mais os dirigentes forem capazes de entregar. os bens de consumo, tanto mais firmemente a população subjacente estará atada às diversas burocracias dirigentes. . M~s, embora essas perspectivas de contenção da mudança quahtattva no sistema soviético pareçam paralelas às da sociedade capitalis~a desenvolvida, a base socialista da produção intro~uz uma dIferença decisiva. No sistema soviético, a organi~aça~ do p'rocesso de produção certamente separa os "produtores ImedIatos (os trabalhadores) do contrôle sôbre os meios de prod.ução e, assim, facilita distinções de classe na própria base ~~ sIstema. Essa separação foi criada pelo poder e decisão polítIcos após um ligeiro "período heróico" da Revolução Bolchevista e tem sido, desde então, perpetuada. No entanto, não é o motor do próprio processo de produção; não é integrada nesse processo como acontece à divisão entre capital e trabalho, decorrente da propriedade privada dos meios de produção. Conse~üentem~nt~, as camadas dirigentes são elas própJ;ias separáveIS do propno processo de produção - isto é, são substituíveis sem fazer explodirem as instituições básicas da sociedade. Essa é a meia-verdade contida na tese marxista soviética de que as contradições existentes entre as "relações de produção retarçlada e o caráter das fôrças produtoras" podem ser resolvidas sem explosão e de que a "conformidade" entre os dois fatos pode ocorrer por meio de "mudança gradativa".36 A outra metade da verdade é que a mudança quantitativa ainda teria de se transformar em mudança qualitativa, no desapareci~ento do Estado, do partido, do Plano etc., como podêres mdependentes superimpostos ao indivíduo. Considerando que essa mudança ddxaria intata a base material da sociedade (o processo de produção nacionalizado), ela se limitaria a uma revolução política. Se pudesse conduzir à autodeterminação na própria base da existência humana, a saber, na dimensão do trabalho necessário, seria a mais radical e mais completa revolução da história. A distribuição das necessidades da vida independentemente do desempenho no trabalho, a. redução do tempo de trabalho ao mínimo, a educação universal e total para a jntercambia,lidade de funções - essas são as precondições, mas nao o conteudo da autodeterminação. Embora a criação dessa~ precondições ainda possa ser o resultado da administração supenmposta, sua criação significaria o fim da administração. 3ó

Ibitl. pp. 14 <

,<~,.

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Na verdade, uma sociedade livre e industrial madura continuaria a depender de uma divisão do trabalho que compreende desigualdade de funções. Tal desigualdade é indispensável às necessidades sociais genuínas, às exigências técnicas e às diferenças físicas e mentais entre os indivíduos. Contudo, as funções de direção e supervisão não mais teriam o privilégio de dirigir a vida dos demais para algum interêsse especial. A transição para tal estado é mais um processo revolucionário do que evolutivo, até mesmo quando alicerçado numa economia plenamente nacionalizada e planejada. Poder-se-á supor que o sistema comunista, em suas formas estabelecidas, criaria (ou antes seria forçado a criar, em virtude da disputa internacional) as condições que favoreceriam tal transição? Há fortes argumentos contra essa hipótese. Um dêles acentua a poderosa resistência que a burocracia entrincheirada ofereceria - uma resistência que encontra sua razão de ser precisamente nas mesmas bases que impelem o movimento para a criação das precondiçõcs para libertação, a saber, a competição de vida ou morte com o mundo capitalista. Pode-se desprezar a idéia de uma "fôrça motriz" inata na natureza humana. Trata-se de conceito psicológico altamente ambíguo e grosseiramente inadequado para a análise do encadeamento dos acontecimentos sociais. A questão não é sôbre se as burocracias comunistas "abririam mão" de sua posição privilegiada, uma vez alcançado o nível de uma possível mudança qualitativa, mas sôbre se estarão capacitadas para impedir seja êsse nível alcançado. Para fazê-lo, teriam de impedir o crescimento material e intelectual num ponto em que a dominação ainda fôsse racional e lucrativa, no qual a população subjacente ainda pudesse ser atada ao trabalho e aos interêsses do Estado ou de outras instituições estabelecidas. Novamente, o fator decisivo neste caso parece ser a situação mundial de coexistência, que de há muito se tornou um fator na situação interna das duas sociedades opostas. A necessidade de utilização total do progresso técnico e de sobrevivência em virtude de um padrão de vida superior pode revelar-se mais forte do que a resistência das burocracias instaladas. Desejo acrescentar algumas observações sôbre a opImao freqüentemente ouvida de que o nôvo desenvolvimento dos países atrasados pode não apenas alterar as perspectivas dos

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p'aíses. ind~stri,~is desenvolvidos, mas também constituir uma terceira ~orça que pode transformar-se numa potência rela tiva~ente Ind~pe~~ente. Com base na discussão precedente: eXiste. ~lgum indicIO de que as antigas áreas coloniais ou semicolon~als. possam segui~ u~a via de industrialização essencialmentt: diferente do capitalismo e do comunismo atual? Haverá ~lg? na cultura e .tradição autóctones dessas áreas que possam mdlcar tal. ~lternatlva? Limitarei minhas observações a modelos de atras.o Ja. no pr?c:sso de industrialização - isto é, a países n?s quais ~. Indust:IaII.zação coexiste com uma cultura pré-industnal e antlindustnal mtata (lndia e Egito). tsses p~íses entra~ no processo de industrialização com uma pop.ulaça? ~e~ trema~ento. nos valôres da produtividade automotnz, eflclencIa e raCIOnalidade tecnoló!.!Íca. Em outras palavras, co;n enorme maioria da população ai~da não transformada em ~o~ça de trabalho separada dos meios de produção. ~ssas_ condl~oes favorecem uma nova confluência de industria!lZaça~ ~ h~eração - uma forma essencialmente nova de mdust!lahzaçao que construiria um aparato produtor não apenas de acordo, com as necessidades vitais da população subjacente, mas tambem com o propósito de pacificar a luta pela existência? A industrialização não Ocorre no vácuo nessas áreas atrasadas. , ?corre nUI?a situação histórica na qual o capital social nec.essano ao ~cumulo primordial tem de ser grandemente obtido no extenor, no bloco capitalista ou no bloco comunista - ou em ambos. Mai~ ainda, existe a suposição generalizada de _que o permanecer mdependente exigiria rápida industrializaçao e alcance de ~m níve.l de produtividade que garantiria p~lo menos autonomia relativa em competição com os dois gigantes. Nessas . circunstâncias, a transformação das sociedades subdesenvolvl~as em ,in.dustriais deve descartar o mais possível as, formas pre~tecn~loglcas. Isso é especialmente verídico em pal:es n~s quais, ate mes~o .as necessidades vitais da população estao m~lto aqu~m de .satlsfeltas, nos quais as terríveis condições do padrao de _vida e.xlg~m. a_ntes de mais nada quantidades em ~assa, produçao e dlstnbulçao em massa mecanizadas e padromzada~. _E, ne,sses mesmos países, o pêso morto dos costumes e ~on.dlç?es pre-tecnolôgicos e até pré-burgueses oferecem forte re~lst~ncla a tal desenvolvi~en!o sobreposto. O processo da maquIn~ (com? processo social) exige obediência a um sistema de poderes anonlmos - secularização e destruição de valôres

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e instituições cuja dessantificação nem bem começou. Pode-se admitir razoàvelmente que, sob o impacto dos dois grandes sistemas de administração tecnológica total, a dissolução dessa resistência prosseguirá em formas liberais e democráticas? Que os países subdesenvolvidos possam dar o salto histórico da sociedade pré-tecnológica para a pós-tecnológica, na qual o aparato tecnológico dominado pode garantir as bases para uma democracia genuína? Pelo contrário, antes parece que o desenvolvimento sobreposto dêsses países trará um período de administração total mais violento e mais rígido do que o atravessado pelas sociedades avançadas, que podem construir sôbre as conquistas da fase liberalista. Resumindo: as áreas atrasadas têm a probabilidade de sucumbir para uma das várias formas de neocolonialismo ou para um sistema mais ou menos terrorista de acúmulo primordial. Não obstante, outra alternativa parece possíveJ.37 Se a industrialização e a introdução da tecnologia nos países atrasados encontrarem forte resistência por parte dos estilos de vida e trabalho autóctones e tradicionais - uma resistência que não é abandonada nem mesmo diante da perspectiva assaz tangível de uma vida melhor e mais fácil - , poderia essa própria tradição pré-tecnológica tornar-se a fonte de progresso e industrialização? Tal progresso autóctone exigiria uma política planejada que, em vez de sobrepor a tecnologia aos estilos tradicionais de vida e trabalho, os ampliasse e melhorasse sôbre suas próprias bases, eliminando as fôrças opressivas e exploradoras (materiais e religiosas) que os incapacitam para garantir o desenvolvimento de uma existência humana. A revolução social, a reforma agrária e a redução do superpovoamento seriam requisitos, mas não a industrialização nos padrões das sociedades desenvolvidas. O progresso autóctone parece de fato possível em áreas nas quais os recursos naturais, se libertados da usurpação supressiva, ainda são suficientes não apenas para a subsistência, mas também para uma vida humana. E não poderiam ser tornados suficientes, onde não o são, pela ajuda gradativa e parcelada da tecnologia - dentro da estrutura das formas tradicionais? Se êsse fôr o caso, então pievaleceriam condições que não existem (e jamais existiram) nas sociedades industriais antigas 37 Sôbre o que se _egue, ver os excelentes livros de RenE Dumont, especialmente Terre. ,h'unt.. (Pari;: Plon, 1961).

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e desenvolvidas - a saber, os "produtores imediatos" teriam uma oportunidade de criar, por seu trabalho e lazer o seu próprio progresso, determinando o seu ritmo e dire~ão. A a.utodetermina~ão prosseguiria da base, e o trabalho pelas necessIdades podena transcender a si mesmo para o trabalho por prazer. Mas 'até mesmo sob tais hipóteses abstratas, os limites crus A revolução InICIal que deve estabelecer os requisitos para o nôvo desenvolvimento pela abolição da exploração mental e material dificilmente poderá ser' coneebida como ação espontânea. Mais ainda, o ~rogresso autóctone pressuporia uma mudança na política nos dOIS grandes blocos de poder industrial que ora moldam o mundo - abandono do neocolonialismo em tôdas as suas formas. No presente, não há indicação alguma de tal mudança.

?~ .autodeterminação devem ser reconhecidos.

o Estado do

Bem-Estar Social e o Estado Beligerante

Resumindo: as perspectivas de contenção da transformação, oferecidas pela política da racionalidade tecnológica, dependem das perspectivas do Estado do Bem-Estar Social. Tal fase parece capaz de elevar o padrão de vida administrado, uma capacidade inerente a tôdas as sociedades industriais desenvolvidas nas quais o aparato técnico perfeito - montado como um poder separado e acima do indivíduo - depende, para funcionar, do desenvolvimento e da expansão da produtividade intensificados. Sob tais condições, o declínio da liberdade e da oposição não é uma questão de deterioração ou corrupção moral ou intelectual. t, antes, um processo social objetivo na medida em que a produção e a distribuição de uma quantidade crescente de mercadorias e serviços condescendem com uma atitude tecnológica racional. Contudo, o Estado do Bem-Estar Social é, com tôda a sua racionalidade, um Estado de ausência de liberdade porque a sua administração total ~ restrição sistemática a) do tempo livre "tecnicamente" disponível;38 b) da quantidade e da qualidade das 38 Tempo "livre" e não horas de "lazer". Estas vicejam na sociedade industrial deseilvolvida, mas não ~ão livres de\de que são admini~tradas pelos De~6cios • pela política.

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mercadorias e dos serviços "tecnicamente" disponíveis para as necessidades individuais vitais; e c) da inteligência (consciente e inconsciente) capaz de compreender e aperceber-se das possibilidades de autodeterminação. A sociedade industrial recente aumentou, em vez de reduzir, a necessidade de funções parasitárias e alienadas (para a sociedade em seu todo, se não mesmo para o indivíduo). Os anúncios, as relações públicas, a doutrinação e o obsoletismo planejado não mais são custos improdutivos gerais, mas elementos dos custos básicos de produção. Para ser eficaz, tal produção de desperdício socialmente necessário exige a racionalização contínua - a utilização incessante de técnicas avançadas e ciência. Conseqüentemente, um padrão de vida crescente é o subproduto inevitável da sociedade industrial politicamente manipulada, uma vez dtrapassado certo nível de atraso. A produtividade crescente do trabalho cria um crescente produto excedente que, quer particular, quer centralmente destinado e distribuíd?, permite um consumo aumentado não obstante o desvlO aumentado da produtividade. Enquanto prevalecer essa constelação, ela reduzirá o valor de uso da liberdade, não havendo razão alguma para insistir na autodeterminação se a vida administrada fôr confortável e até "boa". f:ste é o terreno racional e material para a unificação dos opostos, para o comportamento unidimensional. Sôbre essa base, as fôrças políticas transcendentes dentro da sociedade são impedidas, e a transformação qualitativa parece possível somente do exterior. A rejeição do Estado do Bem-Estar Social em favor de idéias abstratas de liberdade não é bem convincente. A perda das liberdades económicas e políticas que foram as conquistas reais dos dois séculos passados pode parecer pequeno dano num Estado capaz de tornar a vida administrada segura e confortável. 39 Se os indivíduos estão satisfeitos a ponto de se sentirem felizes com as mercadorias e os serviços que lhes são entregues pela administração, por que deveriam êles insistir em instituições diferentes para a produção diferente de mercadorias e serviços diferentes? E se os indivíduos estão precondicionados de modo que as mercadorias que os satisfazem incluem também pensamentos, sentimentos, aspirações, por que 39

Ver p. 24.

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deveriam desejar pensar, sentir e imaginar por si mesmos? t bem verdade que as mercadorias materiais e mentais oferecidas podem ser ruins, extravagantes, imprestáveis - mas Geist e conhecimento não são argumentos eficazes contra a satisfação das necessidades. A crítica do Estado do Bem-Estar Social em têrmos de liberalismo e conservantismo (com ou sem o prefixo "neo") assenta, para ter vali dez, na existência das próprias condições 9u~ o Est~do ~o Bem-Estar Social ultrapassou a saber, um I~d~ce mais baixo de riqueza social e tecnologia. Os aspectos 'SIO.IStro! dess.a crítica se manifestam na luta contra ampla I~glslaçao socIal e gastos governamentais adequados com serVIÇOS outros que não os da defesa militar. A denúm:ia das aptidões opressivas do Estado do Bem-Estar Social serve, assim, para proteger as aptidões opressivas da sociedade anterior ao Estado do Bem-Estar Social. Na fase mais ~vançada .do capitalismo, essa sociedade é um sistema de pluralIsmo subjugado no qual as instituições competidoras cooperam para a solidificação do poder do todo sôbre o indivíduo. Ainda assim, a administração pluralista é, para o indivíduo administrado, muito melhor do que à administração total. Uma institu~ção pode protegê-lo de outra; uma organização pode mitigar o Impacto da outra; as possibilidades de fuga e desagravo podem ser calculadas. O domínio da Lei, não importa quão restrito, é, ainda assim, infinitamente menos perigoso do aue o domínio • acima da lei ou sem ela. Contudo, em vista das tendências predominantes, deve ser levantada a questão sôbre se esta forma de pluralismo não acelera a destruição dêste. A sociedade industrial desenvolvida é, na verdade, um sistema de podêres que se contrabalançam. Mas essas fôrças se cancelam numa unificação mais elevada no interêsse comum em defender e ampliar a posição firmada, em combater alternativas históricas, em conter a transformação qualitativa. Dentre as fôrças que se contrabalançam não estão as que atuam contra o todo. 4o Aquelas tendem a tornar o todo 40 Para uma apreciação CTltlca e realista dos conceitos ldeolo~ncos de Gal· oraith, ver Earl Latham, "The Body PohtlC of the CorporatIon", em E S lIIa<on Harvard Universlty Prc",." 19~9)

The Corporl1rion in lvfodern Society (Cambridge: pp. 2:3, 235 c 'irg'.

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imune à negação tanto interior como exterior; a política externa de contenção parece um prolongamento da política interna de contenção. A realidade do pluralismo se torna ideológica e ilusória. Parece ampliar, em vez de reduzir a manipulação e a coordenação; promover, cm vez de contrariar a integração decisiva. As instituições livres competem com as autoritárias em transformar o Inimigo cm fôrça mortífera dentro do sistema. E essa fôrça mortífera estimula o crescimento e a iniciativa não em virtude do vulto e do impacto econômico do "setor" da defesa, mas em virtude do fato de a sociedade como um todo se tornar uma sociedade de defesa. Porque o Inimigo é permanente. Não se encontra na situação de emergência, mas no estado de coisas ,normal. Ameaça tanto na paz como na guerra (talvez mais na paz do que na guerra); é assim integrado no sistema como uma fôrça coesiva. A produtividade crescente c o alto padrão de. vida não dependem da ameaça externa, mas seu uso para a contenção da transformação social e para a perpetuação da servidão depende. O Inimigo é o denominador comum do que é feito e desfeito. E o Inimigo não é o mesmo que comunismo ou capitalismo atual -;- é, em ambos os casos, o espectro real da libertação. Novamente: a insânia do todo absolve as loucuras pessoais e transforma os crimes contra a humanidade em emprêsa racional. Quando as criaturas adequadamente estimuladas pelas autoridades públicas e privadas se preparam para uma vida de mobilização total, são suscetíveis não apenas por causa do Inimigo presente, mas também por causa das possibilidades de investimento e emprêgo na indústria e diversões. Até os cálculos mais insensatos são racionais: o aniquilamento de cinco milhões de criaturas é preferível ao de dez milhões, vinte milhões e assim por diante. Não tem apelação o argumento de que uma civilização que justifica a sua defesa com tais cálculos proclama o seu próprio fim. Em tais circunstâncias, até as liberdades e fugas existentes se enquadram no todo organizado. Nessa fase do mercado arregimentado, estará a competição atenuando ou intensificando a corrida para maior e mais rápido ciclo de compra, venda e substituição de estoques de mercadorias e obsoletismo? Estarão os partidos políticos competindo pela pacificação ou por uma indústria armamentista mais forte e mais dispendiosa? Estará 65


a produção de "afluência" promovendo ou retardando a satisfação de necessidades vitais ainda não atendidas? Se as primeiras hipóteses fôssem verdadeiras, a forma contemporânea de pluralismo revigoraria o potencial para a contenção da transformação qualitativa, impedindo, assim, em vez de impelir, a "catástrofe" da autodeterminação. A democracia pareceria ser o mais eficiente sistema de dominação. A imagem do Estado do Bem-Estar Social esboçada nos parágrafos anteriores é a de uma extravagância histórica entre capitalismo organizado e socialismo, servidão c liberdade, totalitarismo e felicidade. Sua possibilidade é suficientemente indicada pelas tendên.:ias correntes do progresso técnico e suficientemente 1meaçada por fôrças explosivas. O perigo mais poderoso é, naturalmente, o de a preparação para a guerra nuclear se transformar em sua realização: o dissuasivo também serve para dissuadir os esforços para eliminar a necessidade de dissuasivos. Atuam também outros fatôres que podem impossibilitar a agradável junção entre totalitarismo e felicidade, manipulação e democracia, heteronomia e autonomia - em suma, a perpetuação da harmonia preestabelecida entre comportamento organizado e espontâneo, pensamento precondicionado e pensamento livre, subordinação e convicção. Até o capitalismo mais altamente organizado conserva a necessidade de apropriação e distribuição privada do lucro como regulador da economia. Isto é, continua ligando a realização do interêsse geral à dos interêsses adquiridos particulares. Ao fazê-lo, continua a defrontar com o conflito entre o crescente potencial de pacificação da luta pela existência e a necessidade de intensificar essa luta; entre a "abolição do trabalho" progressiva e a necessidade de preservar o trabalho como fonte de lucro. O conflito perpetua a existência inumana dos que formam a base humana da pirâmide social - os estranhos e os pobres, os desempregados e os não-empregáveis, as raças de côr perseguidas, os reclusos das prisões e manicômios. Nas sociedades comunistas contemporâneas, o inimigo externo, o atraso e o legado de terror perpetuam as características opressivas do propósito de "alcançar e ultrapassar" as realizações do capitalismo. A prioridade dos meios sôbre os fins se agrava dêsse modo - uma prioridade que só poderia ser derrubada com o alcance da pacificação - e capitalismo e cOmunismo continuam competindo sem fôrça militar, em escala

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mundial e por meio de instituições mundiais. Essa pacificação significaria o surgimento de uma economia mundial genuína a extinção do Estado-Nação, dos interêsses nacionais, dos negócios nacionais juntamente com suas alianças internacionais. E esta é precisamente a possibilidade contra a qual o mundo atual está mobilizado: L'ignorance el l'incollsciellce sonl lelles que les Ilationalismes demeurenl florissants. Ni /'armamellt ni l'industrie du XXe sii'cle Ile permellent aux patries d'assurer leur sécurité el leur l'ie silloll en ensembles orgaIlisés de poids mondial, dans l'ordre militaire el économique. Mais à l'Ouesl non plus qu'à l'Esl, les croyances collectives n'assimilenl les changements réels. Les Grands forment leurs ell/pires, ou en réparent les arehileelures sans accepler les changements de régime économique el poli/ique qui donneraienl efficaeité el sem à l'une el à /'autre coalitions.

e: Dupes de la nation el dupes de la classe, les masses souffrantes sont parloul engagüs dans les durelés de eonflits ou leurs seuls ennemis san I des mailres qui emploient seiemmenl les mystificatiolls de l'induslrie et du pouvoir. La eol/usion de l'induslrie moderne el du pouvoir territorialisé esl un viee dont la réalilé esl plus profonde que les instilulions et les slruetures capilalisles et communisles el qu'aucune dialeelique nécessaire ne doit néeessairemenl extirper. 41

A decisiva interdependência entre os dois únicos sistemas sociais "soberanos" do mundo contemporâneo expressa o fato de o conflito entre progresso e política, entre o homem e seus senhores se haver tornado total. Quando o capitalismo enfrenta

41 "A ignorância e a inconsciência são tais que o nacionalismo continua a florescer. Nem 0\ armamentos nem a indústria do ~écul0 XX permitem às 'pátrias' garantir sua segurança e sua existência, exceto por meio de organizações que têm pêso de âmbito mundial em que~tões militares e econômicas. Mas tanto no Oriente como no Ocidente, as convicções coletivas não se adaptam a transformações reab. As grandes potências moldam ~eus impérios ou reparam a arquitetura dos mesmos sem aceitar modificações no regime econômico e político que emprestariam eficácia e significado a uma ou outra das coalizões." (e: )

"Ludibriadas pela nação e ludibriadas pela classe, as massas sofredoras estão envolvidas no rigor do conflito no qual seus únicos inimigos são senhores que usam intencionalrnt:nte as mbtificaçõe"i da indústria e do poder. O conluio da indú . . tria moderna com o poder territorial é um vício mais profun~ damente real do que a . . inqillli~·õc ... e e . . trutura.;; capitali"itas e comunistas e que ne~ nhuma dialética ncces~ária ne(c ...... ~u iamente erradica." François Perroux, loco cU., vaI. III, pp. 631, 632, 633.

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o desafio do comunismo enfrenta suas próprias aptidões: o desenvolvimento espetacular de tôdas as fôrças produtivas após a subordinação dos interêsses particulares na possibilidade de lucro que detém tal desenvolvimento. Quando o comunismo enfrenta o desafio do capitalismo, também enfrenta suas próprias aptidões: comodidades espetaculares, liberdades e suavização do pêso da vida. Ambos os sistemas têm essas aptidões deformadas até o irreconhecimento e, em ambos os casos, a razão é, em última análise, idêntica - a luta contra uma forma de vida que dissolveria as bases da dominação.

3 A CONQUISTA DA CONSClhNCIA INFELIZ: DESSUBLIMAÇÃO REPRESSIVA

Após discutir a integração política da sociedade industrial desenvolvida, possibilitada pela crescente produtividade tecnológica e pela conquista cada vez maior do homem e da natureza, cuidaremos agora de uma integração correspondente no âmbito da cultura. Neste capítu!ôl, certas noções e imagens-chaves da literatura e seu destino exemplificarão como o progresso da racionalidade tecnológica está liquidando os elementos de oposição e transcendentes da "cultura superior". hles sucumbem, de fato, ao processo de dessublimação que predomina nas regiões avançadas da sociedade contemporânea. As conquistas e os fracassos dessa sociedade invalidam sua cultura superior. A celebração da personalidade autônoma, do humanismo, do amor trágico e romântico parece ser o ideal de uma etapa atrasada do desenvolvimento. O que está ocorrendo agora não é a deterioração da cultura superior numa cultura de massa, mas a refutação dessa cultura pela realidade. A realidade ultrapassa sua cultura. O homem pode hoje em dia fazer mais do que os heróis e semideuses da cultura; resolveu muitos problemas insolúveis. Mas também traiu as esperanças e destruiu a verdade que eram preservadas nas sublimações da cultura superior. Na verdade, a cultura superior estêve sempre em contradição com a realidade social, e somente uma minoria privilegiada gozava de suas bênçãos e representava os seus ideais. As duas esferas antagônicas da sociedade sempre coexistiram; a cultura superior sempre foi acomodativa, enquanto a realidade raramente foi perturbada por seus ideais e sua verdade. A característica nove! atual é o aplanamcnto do antagonismo entre cultura e realidade social por meio da obliteração

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Jus elementos de oposlçao. alicnígenas e transcendentes da .:ultura superior, em virtude do que ela constituiu outra dimensão da realidade. Essa liquidação da cultura bidimensional não ocorre por meio da negação e rejeição dos "valôres culturais", mas por sua incorporação total na ordem estabelecida, pela sua reprodução e exibição em escala maciça. De fato, êles servem de instrumentos de coesão soja!. A grandeza de uma literatura e uma arte livres, os ideais de humanismo, os desgostos e as alegrias individuais, a realização da personalidade são itens importantes da luta entre Oriente e Ocidente. Falam vigorosamente contra as formas atuais do comunismo e são diàriamente administrados e vendidos. O fato de contradizerem a sociedade que os vende não entra em consideração. Assim como as pessoas sabem ou sentem que os anúncios e as plataformas políticas não têm de ser necessàriamente vcrdadeiros ou certos e, não obstante, os ouvem e lêem e até se deixam orientar por êles, assim também aceitam os valôres tradicionais tornando-os parte de seu equipamento menta!. Se as comunicações em massa misturam harmoniosamente e, com freqüência, imperceptivelmente, arte, política. religião e filosofia com anúncios, levam essas esferas da cultura ao seu denominador comum - a forma de mercadoria. A música da alma é também a música da arte de vender. O que importa é o valor de troca, e não o da verdade. Em tôrno dêle gira a racionalidade do status quo, e tôda racionalidade alienígena se submete a êle. As grandes palavras de liberdade e realização, ao serem pronunciadas por líderes e políticos em campanhas nas telas, no rádio e nos palcos, tornam-se sons sem significado algum que só adquirem significado no contexto da propaganda, dos negócios, da disciplina, do repouso. Essa assimilação do ideal com a realidade é um testemunho do quanto o ideal foi ultrapassado. f:le é trazido do reino sublimado da alma ou do espírito ou do ser interior e trazido para têrmos e problemas operacionais. Aí estão os elementos progressivos da cultura em massa. A perversão é indício do fato de a sociedade industrial desenvolvida defrontar com a possibilidade de uma materialização de ideais. As aptidões dessa sociedade estão reduzindo progressivamente o reino sublimado no qual a condição do homem era representada, idealizada e denunciada. A cultura superior se torna parte da cultura material. Nessa transformação, perde a maior parte de sua veracidade.

A cultura superior do Ocidente - cujos valôres morais, estéticos e intelectuais a sociedade industrial ainda professa foi uma cultura pré-tecnológica tanto em sentido funcional como cronológico. Sua validez resultou da experiência de um mundo que não mais existe c que não pode ser reconquistado por estar, num sentido estrito, invalidado pela sociedade tecnológica. Mais ainda, ela permaneceu, em alto grau, uma cultura feudal, até mesmo quando o período burguês lhe deu algumas de suas formulações mais duradouras. Foi feudal não apenas em razão de sua limitação a minorias privilegiadas, de seu elemento romântico inerente (que será discutido logo a seguir), mas também porque suas obras autênticas expressaram uma alienação consciente, metódica, de tôda a esfera dos negócios e da indústria, bem como de sua ordem calculável e lucrativa. Conquanto essa ordem burguesa tenha encontrado sua representação rica - e até afirmativa - na arte e na literatura (como seja, nos pintores holandeses do século XVII, no Wilhclm Meister de Goethe, no conto inglês do s~culo XIX, em Thomas Mann), continuou sendo uma ordem que foi empanada, desbancada, refutada por outra dimensão irreconciliàvelmente antagônica à ordem dos negócios, condenando-a e negando-a. E, na literatura, essa outra dimensão não está representada pelos heróis religiosos, espirituais e morais (que com freqüência sustentam a ordem estabelecida), mas por caracteres demolidores como o artista, a prostituta, a adúltera, o grande criminoso e pana, o guerreiro, o poeta insubmisso, o demônio, o tolo: os que não ganham a vida - pelo menos de modo ordeiro e normal. Na verdade, êsses caracteres não desapareceram da literatura na sociedade industrial desenvolvida, mas sobreviveram essencialmente transformados. A mulher vampiresca, o herói nacional, o beatnik, a dona de casa neurótica, o gangster, o astro, o magnata carismático desempenham uma função muito diferente e até contrária à de seus predecessores culturais. Não mais imagens de outro estilo de vida, mas aberrações ou tipos da mesma vida, servindo mais como afirmação do que como negação da ordem estabelecida. Indubitàvelmente, o mundo de seus predecessores era um mundo atrasado, pré-tecnológico, um mundo com boa noção da desigualdade e da labuta, no qual o trabalho ainda era um infortúnio predeterminado; mas um mundo no qual o homem e a natureza ainda não estavam organizados como coisas e

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Em contraste com o conceito marxista, que assinala a relação do homem consigo mesmo e com o seu trabalho, na sociedade capitalista, a alienação artística é a transcendência consciente da existência alienada - uma alienação de "nível superior" ou interposta. O conflito com o mundo do progresso, a negação da ordem dos n~gócios, os elementos antiburgueses na literatura e arte burguesas não decorrem da inferioridade estética dessa ordem nem da reação romântica - nostálgica consagração de uma fase da civilização que desaparece. "Român:tieo" é um t0rmo de difamação condesc.endente fàcilmente aplicado a posições depreciativas de avant-garde, da mesma forma como o têrmo "decadente" com muito maior freqüência denuncia os traços genuinamente progressistas de uma cultura que se extingue do que os fatôres reais de decadência. As imagens tradicionais de alienação artística são de fato românticas tanto quanto estão em incompatibilidade estética com a sociedade em desenvolvimento. Essa incompatibilidade é o indício de sua veracidade. O que elas lembram e preservam na memória pertence ao futuro: imagens de uma satisfação que dissolveria a sociedade que a suprime. A grande arte e literatura surreal is tas das décadas de 1920 e 1930 ainda a recuperaram em sua função subversiva e libertadora. Exemplos tomados a êsmo do vocabulário literário básico podem indicar o âmbito e o parentesco

dessas imagens, bem como a dimensão que elas revelam: Soul and Spirit and Heart; la recherche de l'absolu, Les Fleurs du mal, la femme-enlant; Kingdom by the Sea; Le Bateau ivre e Long-Iegged Bait; Ferne e Heimat; mas também rum do diabo máquina do diabo e dinheiro do diabo; Don Juan e Romeo:: Masta Builder e When We Dead Awake. Sua simples enumeração mostra que pertencem a uma dimensão perdida. Não são invalidados por causa de seu obsoletismo literário, pois algumas dessas imagens pertencem à literatura contemporânea e sobrevivem em suas mais avançadas criações. O invalidado foi sua fôrça subversiva, seu conteúdo destrutivo - sua verdade. Nessa transformação, encontram seu lugar na vida cotidiana. As obras alienígenas e alienadoras da cultura intelectual se tornam m~rcadorias e serviços familiares. Serão sua reprodução e seu consumo maciços apenas uma modificação na qualidade, a saber, apreciação e compreensão crescentes, democratização da cultura? A verdade da literatura e da arte sempre foi considerada (se é que foi de algum modo considerada) de uma ordem "superior", que não deveria perturbar e de fato não perturbou a ordem dos negócios. O que mudou no período contemporâneo foi a diferença entre as duas ordens e suas verdades. O poder absorvente da sociedade esgota a dimensão artística pela assimilação de seu conteúdo antagônico. No domínio da cultura, o nôvo totalitarismo se manifesta precisamente num pluralismo harmonizador, no qual as obras e as verdades mais contraditórias coexistem pacificamente com indiferença. Antes do advento dessa reconciliação cultural, a literatura e a arte eram essenci;:J!mente alienação, conservando e protegendo a contradição - a consciência infeliz do mundo dividido as possibilidades derrotadas, as esperanças não-concretizadas ~ as promessas traídas. Eram uma fôrça racional, cognitiva, revelando uma dimensão do homem e da natureza que era reprimida e repelida na realidade. Sua verdade estava na ilusão evocada, na insistência em criar um mundo no qual o terror da vida era recordado e interrompido - dominado pelo reconhecimento. 1:.ste é o milagre do chel-d' oeuvre; é a tragédia constante até o fim, e o fim da tragédia - sua solução impossível. Viver o seu amor e o seu ódio, viver aquilo que a criatura é significa derrota, resignação e morte. Os crimes da sociedade, o inferno que o homem criou para o homem se tornam fôrças cósmicas inconquistáveis.

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instrumentos. Com o seu código de formas e maneiras, com o estilo e o vocabulário de sua literatura e filosofia, essa cultura passada expressava o ritmo e o conteúdo de um universo no qual vales e florestas, vilas e hospedarias, nobres e vilões, salões e côrtes eram parte da realidade vivida. Na prosa e no verso dessa cultura pré-tecnológica está o ritmo dos que perambulam ou passeiam em carruagens, q ue têm o tempo e o prazer de pensar, contemplar, sentir e narrar. É uma cultura antiquada e ultrapassada, e somente sonhos e regressões infantis podem recuperá-la. Mas essa cultura é também, em alguns de seus pontos decisivos, pôs-tecnológica. Suas imagens e posições mais avançadas parece sobreviverem à sua absorção em comodidades e estímulos administrados' continuam assombrando a consciência com a possibilidade de seu renascimento na consumação do progresso técnico. São a expressão da alienação livre e consciente das formas estabelecidas de vida com a qual a literatura e as artes se opuseram a essas formas até mesmo onde as adornaram.


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Na verdade, a alienação não é a única característica da arte. Uma análise e até mesmo um enunciado do problema estão fora do alcance desta obra, mas podem ser apresentadas algumas sugestões para esclarecimento. Durante períodos inteiros de civilização, a arte parece completamente integrada em sua sociedade. As artes egípcia, grega e gótica são exemplos corriqueiros; Bach e Mozart são também comumente citados como testemunhos do lado "positivo" da arte. O lugar da obra de

arte numa cultura pré-tecnológica e bidimensional é muito diferente do que numa civilização unidimensional, mas a alienação caracteriza tanto a arte afirmativa como a negativa. A distinção decisiva não é a psicológica entre arte criada na alegria e arte criada na tristeza, entre sanidade e neurose, mas entre realidade artística e realidade social. O rompimento com a segunda, a transgressão mágica ou racional, é uma qualidade essencial até mesmo da arte mais afirmativa; ela é alienada também do próprio público a que se destina. Independentemente do quão fechado e familiar fôsse o templo ou catedral ao povo que vivia ao seu derredor, templo e catedral permaneceram em contraste aterrador ou engrandecedor com a vida cotidiana do escravo, do camponês e do artífice - e talvez até com a de seus senhores. Como um rito ou não, a arte contém a racionalidade de negação. Em suas condições avançadas, ela é a Grande Recusa - o protesto contra o que é. As maneiras pelas quais o homem e as coisas são levados a se apresentar, cantar, soar e falar são maneiras de refutar, interromper e recriar sua existência real. Mas essas formas de negação rendem tributo à sociedade antagônica, a que estão ligadas. Separado da esfera de trabalho na qual a sociedade reproduz a si mesma e sua miséria, o mundo da arte que elas criam permanece, com tôda a sua verdade, um privilégio e uma ilusão. Dessa forma ela. prossegue, a despeito de tôda democratização e popularização, através do século XIX e no século XX. A "cultura superior" em que essa alienação é notória tem seus próprios ritos e seu próprio estilo. O salão de exposição, o concêrto, a ópera, o teatro, são ideados para criar e invocar outra dimensão da realidade. Sua freqüência exige preparação de estilo festivo; êles suprimem e transcendem a experiência cotidiana. Ora, essa lacuna essencial entre as ordens e a ordem do dia, conservada aberta na alienação artística, é progressivamente fechada pela sociedade tecnológica em desenvolvimento. E, com o seu fechamento, a Grande Recusa é, por sua vez, recusada; a "outra dimensão" é absorvida pelo estado de coisas predominante. As obras de alienação são, elas próprias, incorporadas nessa sociedade e circulam como parte e parcela do equipamento que adorna e psicanalisa o estado de coisas predominante. Tornam-se, assim, anúncios - vendem, reconfortam, excitam.

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A tensão entre o real e o possível se transfigura num conflito insolúvel, no qual a reconciliação se dá por graça da obra como forma: beleza como a "promesse de bonheur". Na forma da obra, as circunstâncias reais são postas em outra dimensão na qual a realidade em questão se manifesta como aquilo que ela é. Assim, ela diz a verdade sôbre si mesma; sua linguagem deixa de ser a da decepção, ignorância e submissão. A ficção dá aos fatos seus verdadeiros nomes e o reino daqueles sucumbe; a ficção subverte a experiência cotidiana, mostrando que ela é mutilada e falsa. Mas a arte tem êsse poder mágico sàmente como poder de negação. Só pode usar sua própria linguagem enquanto são vivas as imagens que rejeitam e refutam a ordem estabelecida. Madame Bovary, de Flaubert, se distingue de estórias de amor igualmente tristes, da literatura contemporânea, pelo fato de o vocabulário modesto de sua similar da vida real ainda conter as imagens da heroína, ou de ela ler estórias ainda contendo tais imagens. Sua ansiedade era fatal porque não havia psicanalista, e não havia psicanalista porque, no mundo da heroína, êle não teria sido capaz de curá-la. Ela o teria rejeitado como parte da ordem de Yonville, que a destruiu. Sua história foi "trágica" porque a sociedade em que ocorreu era atrasada, com uma moralidade sexual ainda não liberalizada e uma psicologia ainda não institucionalizada. A sociedade que ainda estava para vir "solucionou" seu problema pela supressão. Sem dúvida seria insensato dizer que sua tragédia ou a de Romeu e Julieta está solucionada na democracia moderna, mas também seria insensato negar a essência histórica da tragédia. A realidade tecnológica em desenvolvimento mina não apenas as formas tradicionais, mas as próprias bases da alienação artística isto é, tende a invalidar não apenas certos "estilos", mas também a própria essência da arte.

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As críticas neoconservadoras à crítica esquerdista da cultura de massa ridicularizam o protesto contra o uso de Bach como música de fundo na cozinha, contra Platão e Hegel, Shelley e Baudelaire, Marx e Freud na banca de jornais. Insistem os neoconservadores em que deve ser reconhecido o fato de os clássicos terem saído do mausoléu, voltando à vida, em que o povo está sendo mais educado. f: verdade, mas voltando à vida como clássicos, êles voltam à vida diferentes de si mesmos; são privados de sua fôrça antagônica, do alheamento que foi a própria dimensão de sua verdade. O intento e a função dessas obras foram, assim, fundamentalmente modificados. Se antes estavam em contradição com o status quo, essa contradição se mostra hoje aplanada. Mas essa assimilação é historicamente prematura; estabelece igualdade cultural, preservando, ao mesmo tempo, a dominação. A sociedade está eliminando as prerrogativas e 'Js privilégios da cultura feudo-aristocrática juntamente com o seu conteúdo. O fato de as verdades transcendentes das belas-artes, de a estética da vida e do pensamento terem sido acessíveis apenas a uns poucos ricos e instruídos importou em falha de uma sociedade repressiva. Mas essa falha não é corrigida por brochuras, educação geral, discos "long playing" e abolição do traje a rigor no teatro e nos concertos. I Os privilégios culturais expressaram a injustiça da liberdade, a contradição entre ideologia e realidade, a separação entre produtividade intelectual e material; mas também garantiram um campo protegido no qual verdades feitas tabus podiarp sobreviver com integridade abstrata - afastadas da sociedade que as suprimia. Agora, êsse afastamento foi removido - e, com êle, a transgressão e a denúncia. O texto e o tom ainda estão presentes, mas foi conquistada a presença que as tornou Lu!t von anderen Planeten. 2 A alienação artística se tornou tão funcional quanto a arquitetura dos novos teatros e salões de concêrto em que ela é desempenhada. Aqui também, o racional e o mal são inseparáveis. Indiscutivelmente, a nova arquitetura é melhor, isto é, mais bonita e mais prática do que as monstruosidades da era vitoriana. Mas é também mais "integrada" - o centro culI

Não deve haver mal-entendido: as brochuras, a educação geral e os discos ~ão, no quanto fazem de bom, uma verdadeira dádiva. 2 Stefan George. cm Quarlel in F Sharp Minor, de Arnold Schonberg. Ver Th. W. Adorno, Philosophie der neuen Musik (1. C. B. Mohr, Tübingen, 1949), pp. 19 e scgs. long-plaring

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tural se está tornando uma parte apropriada do "shopping center", do centro municipal ou do centro governamental. A, ~o­ minação tem sua própria estética, e a dominação democratlca tem sua estética democrática. f: bom o fato de quase todos poderem ter atualmente as belas-artes ao seu alcance, simplesmente ligando o seu receptor ou entrando numa loja. Contud~, e.las se tornam, nessa difusão, dentes de engrenagem de uma maquma de cultura que refaz seu conteúdo. A alienação artística sucumbe, juntamente com outras formas de negação, ao processo de racionalidade tecnol<~gica. ~ modificação revela sua profundidade e o grau de sua m~ve.rsl­ bilidade quando vista como um resultado do progresso 1l:cmco. A fase atual redefine as possibilidades do homem e da natureza de conformidade com os novos meios disponíveis para sua realização e, à luz dêstes, as imagens pré-tecnológicas estão perdendo sua fôrça. Seu valor verdade dependia em alto grau de uma dimensão do homem e da natureza não-abrangida e não-conquistada, dos limites estreitos impostos à organização e à manipulaç~o, do "núcleo insolúvel" que resistia à integração. Na sociedade industrial plenamente desenvolvida, êsse núcleo in,s~lúvel é p~o­ gressivamente desbastado pela realidade tecnologlca. Obvtamente a transformação física do mundo acarreta a transformaçã~ psicológica de seus símbolos, imagens e i~éias: Obvi~­ mente, quando cidades e rodovias e Parques ~aClOnaIS substituem vilas, vales e florestas; quando embarcaçoes a motor, correm nos lagos e aviões cortam os céus. - então .ess.as areas perdem o seu caráter como u~~ realIdade qualItativamente diferente, como áreas de contradIçao. E como a contradição é a obra do Logos - confronto racional daquilo "que não é" com aquilo "9ue é" ~ ela deve ter um meio de comunicação. A luta por esse melO, ou ant~s a luta contra sua absorção pela unidimensionalidade pr.edomlnante manifesta-se nos esforços de avant-garde para cnar um alhea~ento que tornaria a verdade artística novamente comunicável. • Bertolt Brecht esboçou os fundamentos teóricos para esses esforços. O caráter total da .sociedad~ esta?eleci~a c~~fronta o dramaturgo com a questão sobre se amda e possIvel repres,entar o mu~do contemporâneo no teatro" - isto é, representa-lo de tal modo que o espectador reconheça a verdade que a peça se destina a transmitir. Brecht responde que () mundo contem-

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porâneo só pode ser assim representado se é representado como sujeito a modificaçã0 3 - como o estado de negatividade que deve ser negado. Trata-se de doutrina que tem de ser aprendida, compreendida e trabalhada; mas o teatro é e deve ser divertimento e prazer. Contudo, divertimento e aprendizado não são opostos; o di /ertimento pode ser uma das maneiras mais eficazes de se aprender. Para ensinar o que o mundo contemporâneo realmente é por trás do véu ideológico e material e como pode ser transformado, o teatro deve romper a identificação do espectador com os acontecimentos no palco. Não são necessários empatia e sentimento, mas distância e reflexão. O "efeito de alheamento" (V erfremdungseffekt) deve produzir essa dissociação em que o mundo possa ser reconhecido como o que êle é. "As coisas da vida cotidiana são elevadas para fora do reino do que é evidente por si ... "4 "O que é 'natural' deve assumir as particularidades do que é extraordinário. Somente por êsse meio podem as leis de causa e efeito se revelar."5 O "efeito de alheamento" não é sobreposto à literatura. f.le é, antes, a resposta da própria literatura à ameaça de behaviorismo total - uma tentativa de salvar a racionalidade da negativa. Nessa tentativa, o grande "conservador" da literatura une seus esforços ao do ati vista radical. Paul Valéry insiste no compromisso inevitável da linguagem poética com a negação. Os versos dessa linguagem "ne parlent jamais que de choses absentes".6 Falam daquilo que, embora ausente, assedia o universo estabelecido da palavra e do comportamento como sua ;Wssibilidade mais transformada em tabu - nem o céu nem o infen'0, nem o bem nem o mal, mas simplesmente "le bonheur". ~s~i~, a linb~:lgem P?ética fala do que é dêste mundo, do que e vlslvel, tanglvel, éú.:dlvel no homem e na natureza - e do que não é visto, tocado, ouvido. Criando e movendo-se num meio que apresenta o ausente a linguagem poética é uma linguagem de cognição - mas um~ cognição que subverte o positivo. Em sua função cognitiva a ' poesia realiza a grande tarefa do pensamento: le Iravail qui Jail l'il're ell naus ce qui lI'exisle pas,7 3 Bertolt Brecht. Schriffen zum Theater (Berlim e Frankfurt Suhrkamp 1957), pp. 7, 9. ' , 4 Ibid., p. 76 5 Ibid" p. 63, 6 Paul Valéry, "Poésie et Pensée Abstraite", em Oelous (édition de la Pléiade, Pam, GallImard, 1957), vul. I, p, 1324. 7 "o esfôrço que torna vivo em nós aquilo que não exi,te". lbid., p. 1333.

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Nomear as "coisas que são ausentes" é quebrar o encanto das coisas que não o são; mais ainda, é a invasão da ordem das coisas estabelecidas por outra diferente - "le commencement d'un monde".8 Para a expressão dessa outra ordem, que é transcendencIa dentro do mundo, a linguagem poética depende dos ele.~ent~s transcendentes da linguagem usual. 9 Contudo, a moblhzaça? total de todos os meios de comunicação para a defesa da realIdade estabelecida coordenou os meios de expressão até o ponto em que a comunicação de conteúdos transcendentes se torna tecnicamente impossível. O espectro ~ue as~o~brou a consciência artística desde Mallarmé - a ImpossibilIdade de fal~r uma linguagem não-esbulhada, de comunicar o negativo - deIxou de ser um espectro. f.ste se materializou. As obras literárias verdadeiramente de avant-garde comunicam o rompimento com a comunicação. Com Rimb.a~d e depois com o dadaísmo e o surrealismo" a liter~t~r~ rejeIta a própria estrutura da locução que, atraves da ~Istona da cu~­ tura, ligou as linguagens artística e comum. O sl~tef!1~ proposl: cionapo (com a sentença como sua unidad~ de slgmflca.do) fOI o meio no qual as duas dimensões da realIdade. se P?dlam .encontrar, comunicar e ser comunicadas. A poes.la mais subh~e e a prosa mais baixa compartilhavam dês se melO de expressao. Então, a poesia moderna "détruisait les rapports du langage et . de mo ts" .II ramenait le discours a, des statlOns A palavra rejeita a regra unifica~ora, se~sa~a? da sentença. Faz explodir a estrutura preestabeleCida do slgruflcado, t~rnan­ do-se ela própria um "obJeto absoluto", designa um umver~o intolerável, auto-anulador - um descontínuo..: Essa sub~~rs~o da estrutura lingüística implica uma subversao da expenencla da natureza: A

La Nalure y devienl un disconlinu d'objels solilaires el. !erribles, parce qu'i/s n'onl que des liaisons l'irluelles; p:rsonne ne chOlS11 p0u,r e.uxà ut sens privi/égié ou un emploi ou un servI ce, p~rsonn.e ne Jes re,dUlI di ~ . ./. I'on d'ul! comporlemenl menlal ou d une mlenllOn, c esl-à- r slgm Ica I ' I' . ' de /inalemenl d'une lendresse... Ces mOls-ob/els sans,. talSOn, pares loule la vialence de leur éclalemenl, ,. ces maIS paellques excluenl les

8 Ibld,. p. 1327 (com referência à linguagem da música), 9 Ver capítulo 7, adiante, 10 Ver capítulo 5, adiante. e trouxe a oração de v~lta à fase ~e II "destruiu as relações da linguagem de /'écriture (Paris, Edl!1ons du SeUl!, palavras". Roland Barthes, Le Degré zéra 1953), p. 72.

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hommes; ii n'v a pas d'humanisme poélique de la modemité: cé discours deboUl est UI; discours plein de terreur, ("est-II-dire qu'il met /'homme {'n Iiaison I!O/l fias avec les alllres hommes, mais avec les images les plus inhumaincs de la Nature; le eie!, /'enfer, Ir sacré, /'enfanee, la folie, la matiere pu rI', etc. 12

Como os clássicos modernos, a avant-garde e os beatniks compartilham da função de divertir sem pôr em perigo a boa consciência dos homens de boa vontade, Essa absorção é justificada pelo progresso técnico; a recusa é refutada pela suavização da miséria na sociedade industrial desenvolvida. A liquidação da cultura superior é um subproduto da conquista da natureza e da conquista progressiva da escassez, Invalidando as imagens acalentadas da transcendência pela incorporação em sua realidade cotidiana onipresente, essa sociedade dá o testemunho do quanto conflitos insolúveis se estão tornando controláveis - do quanto a tragédia e o romance, os sonhos e ansiedades arqui-representativos estão sendo tornados suscetíveis de solução e dissolução técnicas, O psiquiatra cuida dos Don Juans, Romeus, Hamlets, Faustos da mesma forma como cuida de f:dipo - êle os cura, Os dirigentes do mundo estão perdendo suas características metafísicas, Seu comparecimento à televisão, a entrevistas coletivas, ao Parlamento e a audiências públicas é dificilmente adequado ao drama além daquele da propaganda,14 enquanto as conseqüências ultrapassam o alcance do drama, As prescrições para desumanidade e injustiça estão sendo administradas por uma burocracia racionalmente organizada, que é, contudG invisível em seu centro vital. A alma contém poucos segredos e poucos anseios que não possam ser judiciosamente discutidos, analisados e registrados, A solidão, a própria condição que manteve o indivíduo contra e além de sua sociedade, tornou-se tecnicamente impossível. A análise lógica e lingüística demonstra que os velhos problemas metafísicos são ilusórios; a busca do "significado" das coisas pode ser reformulada como a busca do significado das palavras, e o universo estabelecido da palavra e do comportamento pode fornecer critérios perfeitamente adequados para a resposta,

o material tradicional da arte (imagens, harmonias, côres) reaparece somcnte como "citações", resíduos de significado pregresso num contexto de recusa, Assim, as pinturas surrealistas sind der lnbegriff dessen, was die Saehlichkeit mit einem Tabu zudeckt, weil es sie an ihr eigenes dinghaftes Wesen gemahnt und daran, dass sie nicht damit fertig wird, dass ihre Rationalitát irrational bleibt, Der Surrealismus sammelt ein, IVas die Sachlichkeit den Menschen versagt; die Entstellungen be;:eugen, was das Verbot del/l Begehrten antat. Durch sie errettete er das Veraltete, ein A Ibum von ldios\'nkrasieen, in denell der Glücksanspruch l'erraucht, den die Menschell iÍ! ihrer eigenell technifizierten Welt verweigert finden, 13

Ou, a obra de Bertolt Brecht preserva a "promesse de bonheur" contida no romance e Kitsch (luar e o mar azul; melodia e doce lar; lealdade e amor) transformando-a em fermento político, Seus personagens cantam paraísos perdidos e esperanças inolvidáveis ("Siehst du den Mond über Soho, Geliebter?" "Jedoch eines Tages, und der Tag war blau" , "Zuerst war es immer Sonntag", "Und ein Schiff mit acht Segeln", "Alter Bilbao Mond, Da wo noch Liebe lohnt") - e o canto é de crueldade e cobiça, exploração, ludíbrio e mentiras, Os frustrados cantam sua decepção, mas aprendem (ou aprenderam) quais as causas e somente conhecendo as causas (e sabendo como lidar com elas) recobram a verdade de seu sonho, Os esforços para reaver a Grande Recusa na linguagem da literatura têm o destino de ser absorvidos por aquilo que refutam, 12 "A natureza se torna um descontínuo de objetos solitários e terrívei!l porque êles têm somente elos virtuai'). Ninguém escolhe para êles um significado ou uso ou serviço privilegiados. Ninguém O~ reduz para significar uma atitude mental ou uma intenção. equivale a dizer, em última análi ... e uma ternura... Essas palavras-objetos sem ligação, armadas de tôda a violência de seu poder explosivo ... essas palavras poéticas excluem o homem. Não há humanismo poético algum na modernidade: eljlia oração impetuosa é uma oração cheia de terror. equivale a dizer, que não relaciona o homem com os outros homens, mas com as mais desumanas imagens da natureza ~ o céu, o inferno, o sagrado, a infância, a loucura, a matéria pura etc." Ibid, pp. 73 e sego 13 "[As pinturas surre alistas]... reuniram o que o funcionalismo cobre de tabus porque éle trai a realidade como e.,poliação e o irracional em sua racional ilidade. O surrealbmo re(upera o que o fun(lonali.,mo nega ao homem; as de formaçõcli mOlitram o que o tabu fêz ao que é de~ejado. A!o..;;im. o surrealismo salva o ob"ioleto - um álbum de idio~~incra"ias no qual a reivindicação de felicidade faz evaporar aquilo que o mundo 'tecnificado' nega ao homem." Theodor W. Adorno, l\'oten ZII' Literutu,. (Berlim-Frankfurt, Suhrkamp, 1958), p. 160.

f: um universo racional que, pelo simples pêso e aptidões de seu aparato, bloqueia tôda fuga, Em sua relação com a realidade da vida cotidiana, a cultura superior do passado foi muitas coisas - oposição e adôrno, clamor e resignação, Mas foi também o aparecimento do reino da liberdade: a recusa para se comportar. Tal recusa não pode ser bloqueada sem 14 Ainda existe o herói revolucionário legendário CJpaz de desafiar até televbão e a imprensa - ~eu mundo é o dos pabes "~ubJc~cnvülYidos".

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uma compensação que pareça mais agradável do que a recusa. A conquista e a unificação dos opostos, que encontram sua glória ideológica na transformação da cultura superior em popular, ocorrem num campo material de crescente satisfação. f:sse é também o campo que permite uma dessublimação arrasadora. Alienação artística é sublimação. Cria as imagens de condições que são irreconciliáveis com o Princípio da Realidade, mas que, como imagens culturais, tornam-se toleráveis, até mesmo edificantes e úteis. Agora essas imagens mentais estão invalidadas. Sua incorporação à cozinha, ao escritório, à loja; sua liberação para os negócios e a distração é, sob certo aspecto, dessublimação - substituindo satisfação mediata por satisfação imediata. Mas é dessublimação praticada de uma "posição de vigor" por parte da sociedade, que está capacitada a conceder mais do que antes pelo fato de os seus interêsses se terem tornado os impulsos mais íntimos de seus cidadãos e porque os prazeres que ela concede promovem a coesão e o contentamento sociais. O Princípio do Prazer absorve o Princípio da Realidade; a sexualidade é liberada (ou antes, liberalizada) sob formas socialmente construtivas. Esta noção implica a existência de formas repressivas de dessublimação,15 em comparação com as quais os impulsos e objetivos sublimados contêm mais desvio, mais liberdade e mais recusa em observar os tabus sociais. Parece que tal dessublimação repressiva é de fato operante na esfera sexual e que aqui, como na dessublimação da cultura superior, opera como o subproduto dos contrôles sociais da realidade tecnológica, que amplia a liberdade enquanto intensifica a dominação. O elo entre dessublimação e sociedade tecnológica talvez possa ser mais bem esclarecido pela discussão da modificação do uso social da energia instintiva. Nessa sociedade, nem todo tempo gasto em e com mecanismos é tempo de trabalho (isto é, labuta desagradável, mas necessária) e nem tôda energia poupada pela máquina é fôrça de trabalho. A mecanização também "poupou" a libido, a energia dos Instintos da Vida - isto é, afastou-a de formas anteriores de realização. f:sse o cerne da verdade no contraste romântico entre o viajante moderno e o poeta ou artífice anda15 Ver meu Eras and Ci,i/izalion (Boston: Beacon Pres!, 1934), especialmente o capítulo X. (:-.I. do E.: Traduzido para o português e publicado, sob o título Eras e Cllliícuçãa, por Zahar Editores, 1968.)

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rilho, entre linha de montagem e artesanato, entre cidade pequena e cidade grande, entre pão de fabricação comercial e pão feito em casa, entre o barco a vela e o barco a motor de pôpa etc. Sem dúvida alguma, êsse mundo romântico, pré-técnico era permeado de miséria, labuta e imundície, e estas, por sua vez, eram a base de todo prazer e gôzo. Não obstante, havia uma "paisagem", um meio de experiência da libido que não mais existe. Com o seu desaparecimento (em si um requisito histórico do progresso), tôda uma dimensão de atividade e passividade humanas foi deserotizada. O ambiente no qual o indivíduo podia obter prazer - que êle podia concentrar como agradável quase como uma zona estendida de seu corpo - foi reduzido. Conseqüentemente, o "universo" de concentração de desejos libidinosos e do mesmo modo reduzido. O efeito é uma localização e contração da libido, a redução da experiência erótica para experiência e satisfação sexuais. 16 Por exemplo, faça-se uma comparação entre o amor numa campina e o amor num automóvel, numa alamêda nos arredores da cidade e numa rua de Manhattan. Nos casos anteriores, o ambiente compartilha e convida à concentração dos desejos libidinosos e tende a ser erotizado. A libido transcende as zonas erógenàs imediatas - um processo de sublimação não-repressiva. Em contraste, um ambiente mecanizado parece bloquear tal autotranscendência da libido. Impelida no esfôrço para ampliar o campo de satisfação erótica, a libido se torna menos "polimorfa", menos capaz de eroticismo até da sexualidade localizada, e esta é intensificada. Assim, diminuindo a energia erótica e intensificando a energia sexual, a realidade tecnológica limita o alcance da su/J/imação. Reduz também a necessidade de sublimação. No mecanismo mental, a tensão entre o que é desejado e o que é permitido parece consideràvelmente reduzida e o Princípio da Realidade não mais parece exigir uma transformação arrasadora e dolorosa das necessidades instintivas. O indivíduo deve adaptar-se a um mundo que não parece exigir a negação de suas necessidades mais íntimas - um mundo que não é essencialmente hostil. 16 De acôrdo com a terminologia usada nas obras mais recentes de Freud: sexualidade como impulso parcial "especializado"; Eras como o de todo o organismo.

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o organismo está sendo assim precondicionado para a aceitação espontânea do que é oferecido. Considerando que a maior liberdade compreende mais uma contração do que a extensão e o desenvolvimento de necessidades instintivas, ela age mais a favor do que contra o status quo de repressão geral pode-se falar de "dessublimação institucionalizada". Esta parece ser um fator vital na formação da personalidade autoritária de nossa época. Tem sido com freqüência observado que a civilização industrial desenvolvida opera com um maior grau de liberdade sexual - "opera" no sentido de essa liberdade se tornar um valor marcante e um fator de costumes. Sem deixar de ser um instrumento de trabalho, o corpo tem permissão para exibir suas características sexuais no mundo de trabalho cotidiano e nas relações de trabalho. Esta é uma das realizações originais da sociedade industrial - tornada possível pela redução da sujeira e do trabalho físico pesado; pela disponibilidade de roupas baratas e atraentes, cultivo da beleza e higiene física; pelas exigências da indústria de propaganda etc. As escriturárias e balconistas sensuais, o chefe de seção e o superintendente atraentes e viris são mercadorias altamente comercializáveis, e a posse de amantes apropriadas - antes uma prerrogativa de reis, príncipes e lordes - facilita a carreira até mesmo de empregados de cargos menos importantes na comunidade comercial. O funcionalismo, tornando-se artístico, promove essa tendência. Lojas e escritórios ficam abertos por meio de enormes janelas de vidro, expondo O seu pessoal; do lado de dentro, os balcões altos e as divisões internas estão caindo. A corrosão da indevassabilidade em maciços edifícios de apartamentos e residências suburbanas rompe a barreira que antes separava a existência individual da existência pública e expõe mais fàcilmente as qualidades atraentes de outras espôsas e outros maridos. Essa socialização não é contraditória, mas complementar à deserotização do ambiente. O sexo é integrado no trabalho e nas relações públicas, sendo assim tornado mais suscetível à satisfação (controlada). O progresso técnico e a vida mais confortável permitem a inclusão sistemática de componentes da libido no campo da produção e troca de mercadorias. Mas, independentemente do quão controlada possa ser a mobilização da energia instintiva (importa às vêzes em administração científica da libido), do quanto possa servir de sustentáculo do status

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quo - ela é também agradável aos indivíduos administrados, como o é pilotar uma lancha, empurrar a segadora motorizada no jardim, dirigir o automóvel a grande velocidade. Essa mobilização e administração da libido pode ser " responsável por muito da submissão voluntária, da ausência de terror, da harmonia preestabelecida entre necessidades individuais e desejos, propósitos e aspirações socialmente necessários. A conquista tecnológica e política dos fatôres transcendentes da existência humana, tão característica da civilização industrial desenvolvida, afirma-se aqui na esfera instintiva: satisfação de um modo que gera submissão e enfraquece a racionalidade do protesto. O âmbito da satisfação socialmente permissível e desejável é grandemente ampliado, mas o Princípio do Prazer é reduzido por meio dessa satisfação - privado das exigências que são irreconciliáveis com a sociedade estabelecida. O prazer, assim ajustado, gera submissão. Em contraste com os prazeres da dessublimação ajustada, a sublimação preserva a consciência das renúncias que a sociedade repressiva inflige ao indivíduo, e assim preserva a necessidade de liberação. Na verdade, tôda sublimação é imposta pelo poder da sociedade, mas a consciência infeliz dêsse poder já abre caminho através da alienação. De fato, tôda sublimação aceita a barreira social à satisfação instintiva, mas também transpõe essa barreira. O Superego, ao censurar o inconsciente e ao implantar a consciência, também censura o censor porque a consciência desenvolvida registra o mau ato proibido não apenas no indivíduo, mas também em sua sociedade. Inversamente, a perda da consciência em razão das liberdades satisfatórias concedidas por uma sociedade sem liberdade favorece uma consciência feliz que facilita a aceitação dos malefícios dessa sociedade. f: o indício de autonomia e compreensão em declínio. A sublimação exige um alto grau de autonomia e compreensão; é a mediação entre o consciente e o inconsciente, entre os processos primários e secundários, entre o intelecto e o instinto, a renúncia e a rebelião. Em suas mais realizadas formas, tais como na obra artística, a sublimação se torna a fôrça cognitiva que derrota a supressão enquanto se inclina diante dela. À luz da função cognitiva dessa forma de sublimação, a dessublimação desenfreada na sociedade industrial desenvolvida

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revela sua verdadeira função conformista. Essa liberação da sexualidade (e da agressividade) liberta os impulsos instintivos de muito da infelicidade e do descontentamento que elucidam o poder repressivo do universo de satisfação estabelecido. Na verdade, há infelicidade penetrante, e a consciência feliz é bastante abalável - uma delgada superfície sôbre o temor, a decepção, o desgôsto. Essa infelicidade se presta fàcilmente à mobilização política; sem lugar para o desenvolvimento consciente, ela se torna o reservatório instintivo para um nôvo estilo fascista de vida e morte. Mas há meios pelos quais a infelicidade que está sob a consciência feliz pode ser transformada em fonte de vigor e coesão para a ordem social. Os conflitos do indivíduo infeliz parecem agora muito mais passíveis de cura do que aquêles que possibilitaram o "descontentamento na civilização" de Freud e parecem muito mais adequadamente definidos em têrmos da "personalidade neurótica de nossa época" do que em têrmos da eterna luta entre Eros e Tânato.

negação. O que ocorre é, sem dúvida, selvagem e obsceno, viril e saboroso, assaz imoral - e, precisamente por isso, perfeitamente inofensivo. Liberta da forma sublimada que foi o próprio indício de seus sonhos irreconciliáveis - uma forma que é o estilo, a linguagem em que a estória é contada - a sexualidade se torna um veículo para os bestsellers da opressão. Não poderia ser dito de mulher sensual alguma na literatura contemporânea o que Balzac diz da prostituta Esther: que tinha uma ternura que só floresce no infinito. Esta sociedade transforma tudo o que tooa em fonte potencial de progresso e de exploração, de servidão e satisfação, de liberdade e de opressão. A sexualidade não constitui exceção.

A forma pela qual a dessublimação controlada pode enfraquecer a revolta dos instintos contra o Princípio da Realidade estabelecido pode ser esclarecida pelo contraste entre a repressão da sexualidade na literatura clássica e romântica e em nossa literatura contemporânea. Caso se selecione, dentre as obras que são, em sua própria substância e forma íntima, determinadas pelo compromisso erótico, exemplos essencialmente diferentes como Phedre, de Racine, Wahlverwandtschaften, de Goethe, Les Fleurs du Mal, de Baudelaire, e Anna Karenina, de Tolstói, a sexualidade aparece consistentemente em forma altamente reflexiva, sublimada, "mediada" - mas sob essa forma ela é absoluta, liberta, incondicional. O domínio de Eros é, desde o início, também de Tânato. Realização é destruição, não em sentido moral ou sociológico, mas ontológico. Está além do bem e do mal, além da moralidade social, e permanece além do alcance do Princípio da Realidade estabelecido, que êsse Eros rejeita e faz explodir. Em contraste, a sexualidade dessublimada é desenfreada nos alcoólatras de O'Neill e' nos selvagens de Faulkner, em Uma Rua Chamada Pecado e sob o Teta ile Zinco Quente, em LaUta, em todos os enredos das orgias de Hollywood e Nova Y ork, bem como nas aventuras das donas de casa suburbanas. Isso é infinitamente mais realista, ousado e desinibido. f: parte e parcela da sociedade em que ocorre, mas em ponto algum sua

O conceito de dessublimação controlada implicaria a possibilidade de uma libertação simultânea da sexualidade e da agressividade reprimidas, uma possibilidade que parece incompatível com a noção de Freud do quantum fixado de energia instintiva disponível para distribuição entre os dois impulsos primitivos. Segundo Freud, o fortalecimento da sexualidade (libido) importaria necessàriamente o enfraquecimento da regressividade e vice-versa. Contudo, se a libertação da libido socialmente permitida e encorajada fôsse a da sexualidade parcial e localizada, seria equivalente a uma compressão real da energia erótica, e essa dessublimação seria compatível com o crescimento tanto de formas não-sublimadas como sublimadas de agressividade. Esta é desenfreada em tôda a sociedade industrial contemporânea. Terá essa agressividade atingido tal grau de normalização que os indivíduos se estejam acostumando ao risco de sua própria dissolução e desintegração durante a preparação nacional normal? Ou será essa aquiescência resultante da impotência dos indivíduos para tomar uma atitude? De qualquer forma, o risco de destruição evitável, criado pelo homem, tornou-se equipamento normal do cotidiano tanto mental como material das pessoas, de forma que não mais pode servir para denunciar ou recusar o sistema social estabelecido. Mais ainda, como parte de seus afazeres diários, pode até prendê-las ao sistema. A conexão econômica e política entre o inimigo absoluto e o padrão de \'ida elevado (e o nível de emprêgo desejado!) é suficientemente clara, mas também suficientemente racional para ser aceita.

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Supondo-se que o Instinto de Destruição (em última análise. o Instinto de Morte) seja um grande componente da energia que alimenta a conquista técnica do homem e da natureza, parece que a crescente capacidade da sociedade para manipular o progresso técnico também aumenta a sua capacidade para manipular e controlar êsse instinto, isto é, para satisfazê-lo "produtivamente". Então, a coesão social seria fortalecida nas mais profundas raízes instintivas. O supremo risco e até o fato de uma guerra teriam não apenas aceitação inapelável como também aprovação instintiva por parte das vítimas. Teríamos aqui também dessublimação controlada. A dessublimação institucionalizada parece, assim, ser um aspecto da "conquista da transcendência" conseguida pela sociedade uni dimensional. Assim como essa sociedade tende a reduzir e até a absorver a oposição (a diferença qualitativa!) no âmbito da política e da cultura superior, também tende a fazê-lo na esfera instintiva. O resultado é a atrofia dos órgãos mentais, impedindo-os de perceber as contradições e alternativas e, na única dimensão restante da racionalidade tecnológica, prevalece a Consciência Feliz. Ela reflete a crença em que o real seja racional e em que o sistema estabelecido a despeito de tudo entrega as mercadorias. As pessoas são levadas a ver no aparato produtivo o agente eficaz de pensamento e ação ao qual se devem render seu pensamento e ação pessoais. E, nessa transferência, o aparato também assume o papel de agente moral. A consciência é absolvida por espoliação, pela necessidade geral de coisas. Não há culpa alguma nessa necessidade geral. Um homem pode dar o sinal que liquida centenas e milhares de criaturas, depois se declarar livre de qualquer dor na consciência e viver feliz daí por diante. As potências antifascistas que derrotaram o fascismo nos campos de batalha colheram os benefícios dos cientistas, generais e engenheiros nazistas; tiveram a vantagem histórica do retardatário. O que prillcipia como o horror dos campos de concentração se torna a prática do treinamento de pessoas para condições anormais - uma existência humana subterrânea e a ingestão diária de nutrição radiativa. Um ministro cristão declara não constituir violação dos princípios cristãos uma pessoa impedir por todos os meios disponíveis a entrada de um vizinho em seu abrigo antiaéreo. Outro ministro

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cristão contradiz o seu colega. Quem está certo? Novamente, a neutralidade da racionalidade tecnológica se manifesta sôbre a política e acima dela. e novamente se revela espúria, pois em ambos os casos serve à política da dominação.

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mundo dos campos de concentração... não era uma sociedade excepcionalmente monstrLiosa. O que vimos nêle era a imagem e, sob certo aspecto, a quintessência da sociedade infernal em que somos mergulhados diàriamente. 17

Parece que até mesmo as transgressões mais hediondas podem ser reprimidas de tal maneira que, para todos os fins práticos, deixam de ser um perigo para a sociedade. Ou, se sua erupção leva a perturbações funcionais no indivíduo (como no caso de um pilôto do bombardeio de Hiroxima), não perturba o funcionamento da sociedade. Um hospital de alienados controla a perturbação. A Consciência Feliz não tem limites - prepara Jogos com a morte e a desfiguração nos quais prazer, trabalho em equipe e importância estratégica se misturam em harmonia social compensadora. A Rand Corporation, que reúne erudição, pesquisas, militares, o clima necessário e boa vida, divulga tais jogos em estilo 'gracioso que importa absolvição, em seu "RANDom News", volume 9, número 1, sob o título BETTER SAFE THAN SORRY. * Os foguetes estão pipocando, a bomba H está esperando, os vôos espaciais prosseguc-m, e o problema consiste em saber "como proteger a nação e o mundo livre". Em tudo isso, os planejadores militares estão preocupados, pois "o custo de arriscar, de experimentar e cometer um êrro p0de ser terrivelmente elevado". Mas aí RAND chega; RAND tranqüiliza e "dispositivos como RAND'S SAFE** entram no cenário". O cenário em que entram não é sigiloso. f: um cenário no qual "o mundo se torna um mapa, os teleguiados são meros 17 E. Ionesco, na Nou,'elle Rel'ue no Londun Times Literary Supplement, sugere num estudo da RAND de 1959 estudo da sobrevivência de populações

Française, julho de 1956, conforme citado de 4 de março de 1960. Herman Kahn (RM-2206-RC) que "deveria ser feito um em amb«ntes semelhantes aos dos abrigos antiaéreos superlotados (os campos de concentração, o uso por alemães e ru,",soc;; de caminhões lotados, navios de tropas, prisões lotadas... etc.). Algun, principios orientadores poderão ser encontrados e adaptados ao programa de abrigos antiaéreos" . • Um t;tulo equivalente apropriado seria, no vernáculo: MAIS VALE PREVENIR DO QUE LAMENTAR. N. do T. •• RAND'S SAFE seria, no caso, "Di,pmitivo de Segurança de RAND", derivando-se, daí, o nome do jôgo: "SAFE - Segurança". N. do T.

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símbolos [viva o poder calmante do simbolismo!] e as guerras apenas [apenas] planos e cálculos no papel ... " Nesse cenário, RAND transfigurou o mundo em interessante jôgo tecnológico, os "planejadores militares podendo-se estar descansado podem ganhar valiosa experiência 'sintética' sem risco". COMO JOGAR

Para se entender o jôgo deve-se tomar parte, pois a compreensão "está na experiência". Como os jogadores do SAFE são oriundos de tôdas as divisões da RAND e também da Fôrça Aérea, devemos encontrar um físico, um engenheiro e um economista na equipe Azul. A equipe Vermelha conterá mostra representativa semelhante. O primeiro dia é dedicado a uma conferência conjunta de elucidação sôbre a finalidade do jôgo e a um estudo das regras. Quando as equipes se encontram finalmente sentadas em tôrno dos mapas em suas respectivas salas, o jôgo tem início. Cada equipe recebe uma declaração sôbre a sua política do Diretor do Jôgo. Tais declarações, normalmente preparadas por um membro do Grupo Controlador, dão uma estimativa da situação mundial na ocasião do jôgo, alguma informação sôbre a política da equipe contrária, os objetivos a serem alcançados pela equipe e sôbre o seu orçamento. (As diretrizes são modificadas para cada jôgo, a fim de explorar grande variedade de possibilidades estratégicas.) Em nosso jôgo hipotético, o objetivo dos Azuis é manter uma capacidade de dissuasão durante todo o jôgo - isto é, manter uma fôrça capaz de contra-atacar os Vermelhos de modo que êstes não desejem arriscar-se a um ataque. (Os Azuis também recebem alguma informação sôbre a política dos Vermelhos.) A política dos Vermelhos é conseguir superioridade de fôrça sôbre os Azuis. Os orçamentos dos Azuis e dos Vermelhos se equivalem aos orçamentos reais da defesa ...

das fôrças atuantes". Mas a legenda anuncia "Café, Bôlo e Idéias". Descansar! O "jôgo continua durante os períodos restantes - até 1972, quando termina. Então, os Azuis e os Vermelhos enterram os teleguiados e sentam-se lado a lado para o café com bôlo na sessão post mortem". Mas não descansem demais: há "uma situação do mundo real que não pode ser transferida com eficácia para o SAFE", e essa é - "negociação". Somos agradecidos por isso: a única esperança que resta na situação mundial está fora do alcance da RAND. Obviamente, não há lugar para o sentimento de culpa no reino da Consciência Feliz, e o cálculo se incumbe da consciência. Quando o todo está em jôgo, não há crime algum, a não ser o de rejeitar o todo ou não defendê-lo. Crime, culpa de sentimento de culpa tornam-se questões privadas. Freud revelou na psique do indivíduo os crimes da humanidade, na história pessoal a história do todo. ~sse elo fatal é suprimido com êxito. Os que se identificam com o todo, que estão instalados como líderes e defensores do todo podem cometer enganos, mas não podem fazer o mal - não são culpados. Podem novamente tornar-se culpados quando essa identificação não mais se aplicar, quando êles desaparecerem.

f: confortador saber-se que o jôgo vem sendo jogado desde 1961 na RAND, "em nosso subsolo tipo labirinto - em algum ponto sob o bar", e que os "cardápios afixados nas paredes das salas dos Azuis e dos Vermelhos incluem armas e ferragens disponíveis que as equipes compram. .. Uns setenta itens ao todo". Há um "Diretor do Jôgo" que interpreta as regras, pois, a despeito de se saber que "o livro de regras completo com diagramas e ilustrações tem 66 páginas", inevitàvelmente surgem problemas durante a partida. O Diretor do Jôgo tem também outra função importante: "sem notificar com antecedência os jogadores", êle "inicia a guerra para ter uma medida da eficácia 90

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perdício demonstram sua opulência e o "alto nível de bem-estar"; "a Comunidade vai demasiado bem para que nos preocupemos com ela!"l

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FECHAMENTO DO UNIVERSO DA LOCUÇÃO

Dan~ l'élat présel/t de I'Histoire, toule écriture politique ne peut que confmner lIfl unil'as policier, de même toule écriture intellectuelle ne peut qu'instituer une para-liI.érature, qui n'ose pllls dire son nom. No estado atual da história, todo escrito político pode apenas confirmar um un.iversc policial, assim como todo escrito intelectual pode apenas produzir parahteratura que não mais ousa dizer o seu nome. ROLAND BARTHES

A Consci~ncia Feliz - a crença em que o real seja racional e em que o sistema entrega as mercadorias - reflete o nôvo conformismo, que é uma facêta da racionalidade tecnológica traduzida em comportamento social. O conformismo é nôvo porque é racional em grau sem precedente. Sustenta uma sociedade que reduziu - e em seus se tores mais avançados eliminou - a irracionalidade mais primitiva das fases precedentes, que prolonga e aprimora a vida mais regularmente do que nunca. A guerra de aniquilamento ainda não ocorreu; os campos de extermínio nazistas foram abolidos. A Consciência Feliz repele a conexão. A tortura foi reintroduzida como uma coisa normal, mas numa guerra colonial que ocorre na margem do mundo civilizado. E aí ela é praticada com paz de consciência, porque guerra é guerra. E também essa guerra está na margem _ assola apenas os países "subdesenvolvidos". A não ser isso, reina a paz. O poder sôbre o homem, adquirido por essa sociedade, é diàriamente absolvido por sua eficácia e produtividade. Se ela assimila tudo o que toca, se absorve a oposição, se brinca com a contradição, demonstra sua superioridade cultural. E, do mesmo modo, a destruição de recursos e a proliferação do des92

A linguagem da administração total ~sse tipo de bem-estar, a superestrutura produtiva sôbre a base infeliz da sociedade, penetra o "meio" que medeia entre os senhores e seus dependentes. Seus agentes de publicidade moldam o universo da comunicação no qual o comportamento unidimensional se expressa. Sua linguagem testemunha a identificação e a unificação, a produção sistemática de pensamento e ação positivos, o ataque concertado às noções transcendentes e críticas. Nas formas predominantes da palavra, o contraste aparece entre os modos de pensar di ai éticos bidimensionais e o comportamento tecnológico ou "hábitos de pensar" sociais. Na expressão dêsses hábitos de pensar, a tensão entre aparência e realidade, fato e fator, substância e atributo, tende a desaparecer. Os elementos de autonomia, descoberta, demonstração e crítica recuam diante da designação, asserção e imitação. Elementos mágicos, autoritários e rituais invadem a palavra e a linguagem. A locução é privada das mediações que são as etapas do processo de cognição e avaliação cognitiva. Os conceitos que compreendem os fatos, e dêsse modo transcendem êstes, estão perdendo sua representação lingüística autêntica. Sem tais mediações, a linguagem tende a expressar e a promover a identificação imediata da razão e do fato, da verdade e da verdade estabelecida, da essência e da existência, da coisa e de sua função. Essas identificações, que apareceram como uma particularidade do operacionalismo,2 reaparecem como características da locução no comportamento social. Aqui, a funcionalização da linguagem ajuda a repelir os elementos não-conformistas da estrutura e do movimento da palavra. O vocabulário e a sintaxe são igualmente afetados. A sociedade expressa as suas exigências diretamente no material lingüístico, mas não sem oposição; a linguagem popular ataca com humor rancoroso e desafiador a

1 John K. Galbraith. American Capilalism (Boston, Houghton Mifflin, 1956). p. 96. (Traduzido para o português e publicado, sob o título C apilalismo, por Zahar Editores, Rio, 1964.) 2 Ver p. 32.


locução oficial e semi-oficial. A gma e a linguagem familiar raramente se mostraram tão criadoras. f: como se o homem comum (ou seu porta-voz anônimo) reafirmasse sua natureza em sua palavra, contra os podêres existentes, como se a rejeição e a revolta, subjugadas na esfera política, explodissem no vocabulário que dá às coisas os seus verdadeiros nomes: "crânio" (pessoa de grande competência), "furão" (indivíduo expedito que não vê obstáculo&), "dá no pé" (saia depressa), "quebragalho" (coisa ou atividade que ajuda um pouco, em situações difíceis), "morou no assunto?" (percebeu?) etc. * Contudo, os laboratórios da defesa, os gabinetes dos diretores, os Governos e as máquinas, os controladores de ponto e os gerentes, os técnicos em eficiência funcional, os salões de 'beleza dos políticos (que garantem aos líderes a maquilagem apropriada) falam uma linguagem diferente e, por enquanto, parece ser dêles a última palavra. É a palavra que ordena e organiza, que induz as pessoas a fazerem as coisas, éomprar e aceitar. É transmitida num estilo que é criação lingüística autêntica; uma sintaxe na qual a estrutura da sentença é abreviada e condensada de tal modo que não é deixada tensão alguma, "espaço" algum entre as partes da sentença. Essa forma lingüística milita contra o desenvolvimento do significado. Tentarei, a seguir, exemplificar êsse estilo. A característica do operacionalismo - tornar o conceito sinônimo do conjunto de operações correspondente3 - reaparece na tendência lingüística para "considerar os nomes das coisas como indicativos, ao mesmo tempo, do seu modo de funcionar, e os nomes das propriedades e processos como simbólicos do aparato usado para captá-los e produzi-los".4 Isso é raciocínio tecnológico, que tende a "identificar as coisas e suas funções". 5 Como um hábito de pensar fora da linguagem científica e tecnológica, tal raciocínio molda a expressão de um behaviorismo social e político. Nesse universo behaviorista, as palavras e os conceitos tendem a coincidir, ou antes, o conceito tende a ser absorvido pela palavra. Aquêle não tem qualquer outro conteúdo que não o designado pela palavra no uso anunciado e • nada a impossibilidade de se traduzir as expressões da giria norte·amerlcana, são usadas expres;ões da giria brasileira que atendem ao propósito do autor. N. do T. 3 Ver p. 33. 4 Stanley Gerr, "Language and Seienee", em Philosophy 01 Sc/enct, abril de 1942, p. 156 S Ibid.

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padronizado, esperando-se que a palavra n.ão tenha qu~lquer outra reação que não o comportamento anuncIado e padromzado. A palavra se torna um clichê e, como tal, gover~a a palavra ,ou a escrita; assim, a comunicação evita o desenvolVImento genumo do significado. Sem dúvida, qualquer linguagem contém inumeros têrmos que não necessitam do desenvolvimento de seu significado, tais como os que designam objetos e apetrechos da vida diária, a natureza visível, necessidades e carências vitais. Ésses têrmos são geralmente compreendidos, de modo que o seu mero aparecimento produz uma reação (lingüística ou operacional) adequada ao contexto pragmático em que são falados. A situação é muito diferente com respeito a têrmos que indicam coisas ou ocorrências além dêsse contexto indiscutível. Aqui, a funcionalização da linguagem expressa uma condensação do significado que tem uma conotação política. Os nomes das coisas não são apenas "indicativos de sua maneira de funcionar" mas sua maneira (real) de funcionar também define e "fecha" o significado da coisa, excluindo outras maneiras de fu~c,i~nar. O substantivo governa a sentença de um modo autontano e totalitário. e a sentença se torna uma declaração a ser aceita repele a demonstração, a qualificação, a negação de seu significado codificado e declarado. Nos pontos nodais da locuçã~ pública apare~em propo~i~ões analíticas autovalidantes que funCIOnam como formulas magIcorituais. Marteladas e remarteladas na mente do receptor, produzem o efeito de incluí-la no círculo das condições prescritas pela fórmula. Já me referi à hipótese auto-revalidadora como forma proposicional no universo da locução política. 6 Substantivos como "liberdade", "igualmente", "democracia" e "paz" implicam, analiticamente um conjunto específico de atributos que ocorrem invariàvelmente quando o substantivo é pronunciado ou esc~ito. No Ocidente, a predicação analítica está em têrmos como livre empreendimento, iniciativa, eleições, indivíd~o; no Ori~nte, em têrmos de operários ou camponeses, constrUir o comumsm~ ou socialismo, abolição de classes hostis. Em qualquer dos dOIS, a transgressão da locução mais além da estrutura a~alítica .fechada é incorre ta ou, então, propaganda, embora os meIOS de Impor a 6

Ver p. 34.

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verdade'" o grau da punição sejam muito diferentes. Nesse universo dI.! locução pública, a palavra se move em sinônimos e tautologias; na realidade, nunca se move em direção à diferença qualitativa. A estrutura analítica isola o substantiv;:l governante de seus conteúdos que invalidariam ou pelo menos perturbariam o uso aceito do mesmo em declarações políticas e na opinião pública. O conceito ritualizado é tornado imune à contradição. Assim, o fato de a forma existente de liberdade ser servidão e de a forma existente de igualdade ser desigualdade sobreposta é impedido de ser expressado pela definição fechada desses conceitos em termos dos poderes que moldam o respectivo universo da locução. O resultado é a linguagem orwelliana familiar ("paz é guerra", "guerra é paz" etc.), que não é, de modo algum. somente do totalitarismo terrorista. Tampouco é menos orwelliana se a contradição não está explícita na sentença, mas contida no substantivo. O ser um partido político que trabalha para a defesa e o crescimento do capitalismo chamado "socialista", um Govêrno despótico chamado "democrático" e uma eleição manobrada fraudulentamente chamada "livre" são características lingüísticas - e políticas - familiares que em muito se antecederam a Orwell. É relativamente nova a aceitação geral dessas mentiras pela opinião pública e privada, a supressão de seu conteúdo monstruoso. A disseminação e a eficácia dessa linguagem são testemunho da vitória da sociedade sôbre as contradições que ela contém; estas são reproduzidas sem fazer explodir o sistema social. E é a contradição expressa e clamorosa que é tornada um dispositivo da palavra e da publicidade. A sintaxe da condensação proclama a reconciliação dos opostos, unindo-os firmemente em estrutura sólida e familiar. Tentarei demonstrar que a "bomba limpa" e a "garoa radiativa inofensiva" são apenas as criações extremas de um estilo normal. Outrora considerada a principal ofensa à lógica, a contradição aparece agora como um principio da lógica da manipulação uma carioatura realista da dialética. É a lógica de uma sociedade que se pode dar ao luxo de dispensar a lógica e brincar com a destruição, uma sociedade com o domínio tecnológico da mente e da matéria. O universo da locução no qual os opostos são reconciliados tem bases firmes para tal unificação - sua benéfica ação destruidora. A comercialização total une esferas da vida antes antagônicas, e essa união se expressa na suave conjunção lingUística

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de partes da locução em conflito. Muitos dos discursos e dos impressos parecem absolutamente surrealistas à mente ainda não suficientemente condicionada. Legendas com "Trabalho Procura Harmonia de Foguetes"7 e anúncios como "Abrigo de Luxo Antigaroa Radiativa"8 ainda podem evocar a ingênua reação de que "Trabalho", "Foguete" e "Harmonia" são co~tradições irreconciliáveis e de que nenhuma lógica e nenhuma lmguagem deviam ser capazes de juntar corretam ente luxo e garoa radiativa. Contudo, a lógica e a linguagem se tornam perfeitamente racionais quando ficamos sabendo que um "submarino de propulsão nuclear equipado com foguetes balísticos" traz a "etiquêta de preço de US$ 120 milhões" e que o abrigo de US$ 1 milhão tem "tapêtes, scrabble'* e TV". A validação não está primordialmente no fato de essa linguagem vender (parece que o negócio da garoa radiativa não ia muito bem), mas, antes, no fato de promover a identificação imediata do interêsse particular com o interêsse geral, dos Negócios com o Poderio Nacional, da prosperidade com o aniquilamento potencial. É apenas um lapso de verdade quando um teatro anuncia "Representação Especial na Noite das Eleições: Dança da Morte, de Strindberg".9 O anúncio revela a conexão de um modo menos ideológico do que normalmente se admite. A unificação dos opostos que caracteriza o estilo comercial e político é uma das muitas formas pelas quais a locução e a comunicação se tornam imunes à expressão de protesto e recusa. Como poderão essa recusa e esse protesto encontrar a palavra acertada quando os órgãos da ordem estabelecida admitem e anunciam que paz é na realidade a iminência da guerra, que as mais recentes armas têm etiquêta de preço lucrativa e que o abrigo antiaéreo pode significar aconchego? Ao exibir suas contradições como sinal de sua veracidade, êsse universo da locução se fecha contra qualquer outra locução que se apresente em seus próprios têrmos. E, graças à sua capacidade de assimilar todos os demais têrmos nos seus, oferece a perspectiva de combinar a maior tolerância possível com a maior unidade possível. Não obstante, sua linguagem é testemunho do caráter repressivo dessa unidade. Essa linguagem fala por meio de construções que 7 8 • 9

New York Times, 1.0 de dezembro de 19W Ibid., 2 de novembro de 1960. Espécie de quebra-cabeça com bloquinhos de madeira. N. do T. I bid., 7 de novembro de 1960.

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impõem ao receptor o significado oblíquo e abreviado, o desenvolvimento do conteúdo impedido, a aceitação do que é oferecido na forma em que é oferecido. A predicação analítica é construção repressiva dês se tipo. O fato de um substantivo específico ser quase sempre ligado aos mesmos adjetivos e atributos "explicativos" transforma a sentença numa fórmula hipnótica que, infinitamente repetida, fixa o significado na mente do receptor. tste não pensa em explicações essencialmente diferentes (e possivelmente verdadeiras) para o substantivo. Examinaremos mais adiante outras construções nas quais o caráter autoritário dessa linguagem se revela. Têm em comum o encolhimento e a redução da sintaxe que impede o desenvolvimento do significado pela criação de imagens fixadas que se impõem com uma concre~ão esmagadora e petrificada. É a conhecida técnica da indústria da propaganda, na qual é metodicamente usada para "estabelecer uma imagem" que adere à mente e ao produto e ajuda a vender os homens e as mercadorias. A palavra e a escrita são agrupadas em tôrno de "linhas de impacto" e de "incitadores de audiências" que transmitem a imagem. Essa imagem pode ser "liberdade" ou "paz" ou "bom sujeito" (lU "comunista" ou "Miss Rheingold". O leitor ou ouvinte deverá associar (e de fato associa) essas imagens a uma estrutura de instituições, atitudes e aspirações fixada, esperando-se que êle reaja de um modo específico, fixado. Para além da esfera relativamente inofensiva da comercialização, as conseqüências são muito sérias, pois tal linguagem é a um só tempo "intimidação e glorificação".lo As proposições assumem a forma de comandos sugestivos - são mais evocativas do que demonstrativas. A predicação se torna prescrição; a comunicação inteira tem um caráter hipnótico. Ao mesmo tempo, tem matizes de falsa familiaridade - o resultado da repetição constante e da objetividade popular da comunicação,. hàbilmente manejada. Esta se relaciona imediatamente com o receptor sem distinção de condição, educação e pôsto - atingindo-o a atmosfera sem formalismos da sala de estar, da cozinha e do quarto. A mesma familiaridade é estabelecida por meio da linguagem personalizaua, que desempenha papel considerável na comuni-

cação avançada: II o "seu" parlamentar, a "sua" rodovia, a "sua" farmácia predileta, o "seu" jornal; é levado a "você", "você" está convidado etc. Dessa maneira, as coisas e as funções sobrepostas, padronizadas e gerais são apresentadas como "especialmente para você". Pouca diferença faz se as pessoas assim objetivadas acreditam ou não. O êxito indica que essa linguagem promove a auto-identificação dos indivíduos com as funções desempenhadas por êles e pelos demais. Nos setores mais avançados da comunicação funcional e manipulada, a linguagem impõe, em construções verdadeiramente surpreendentes, a identificação entre pessoa e função. A revista Time pode servir de exemplo extremo dessa tendência. O uso que ela faz do genitivo flexional leva os indivíduos a parecer meros apêndices ou propriedades de seu lugar, seu emprêgo, seu empregador ou emprêsa. São apresentados como Byrd, da Virgínia; Blough, da U. S. Steel; Nasser, do Egito. A construção atributiva hifenizada cria um síndrome fixado:

o

Governador manda-e-desmanda, semi-alfabetizado, da Geórgia ... tinha o cenário todo pronto, na semana passada, para um de seus turbulentos comícios-monstro.

O Governador,12 sua função, suas características físicas e suas práticas políticas são fundidos numa estrutura indivisível e imutável que, em sua inocência e imediação, engolfa a mente do leitor. A estrutura não deixa lugar algum para distinção, desenvolvimento e diferenciação de significado: ela só se move e vive como um todo. Dominado por tais imagens personalizadas e hipnóticas, o artigo pode passar então a dar até informação essencial. A narrativa continua em segurança dentro da estrutura bem redigida de uma história de algum interêsse humano, conforme definida pelas diretrizes da 'Cditôra. O uso da redução hifenizada é generalizado. Por exemplo, Teller "sobrancelha-de-arame", o "pai da bomba-H", "von Braun, o homem dos foguetes, ombro-de-touro", "jantar científico-militar"\3 e o submarino "lança-foguetes atômico". Tais construções são, talvez não por acidente, especialmente freqüentes II Ver Leo Lowenthal, Llterature, Popular Cu/ture, and Society (Prentice-Hall, pp. 109 e segs., e Richard Hoggart, The USe! 01 Literacy (Boston, Beacon Press, 1961), pp. 161 e segs. 12 A declaração não se refere ao atual Governador, mas ao Sr. Talmadge. 13 Os três últimos citados em The Natlon, 22 de fevereiro de 1958.

1961), r

10

Roland Barthes, Le

[)e~ré

:éro de l'écrituro (Paris, Editions du Seuil, 1953),

)3.

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em frases que juntam tecnologia, política e militares. Têrmos designativos de esferas ou qualidades assaz diferentes são forjados num todo sólido esmagador. O efeito é igualmente mágico e hipnótico - a projeção das imagens que transmitem unidade irresistível, harmonia de contradições. Assim, o Pai amado e temido, dissipador de vida, gera a bomba-H para o aniquilamento da vida; a construção "científico-militar" junta os esforços para reduzir a ansiedade e o sofrimento com a ocupação de criar ansiedade e sofrimento. Ou, sem o hífen: "Academia Liberdade de especialistas em guerra fria",14 e a "bomba limpa" - atribuindo moral e integridade física à destruição. As pessoas que falam e aceitam essa linguagem parecem imunes a tudo - e ser suscetíveis a tudo. A hifenização (explícita ou não) nem sempre reconcilia o irreconciliável; com freqüência a combinação é assaz gentil, como no caso do "homem dos foguetes, ombro-de-touro", ou transmite uma ameaça, ou uma dinâmica inspiradora. Mas o efeito é similar. A estrutura imponente une os atôres e as ações de violência, poder, proteção e propaganda num lampejo. Vemos o homem ou a coisa em funcionamento e somente em funcionamento - não pode ser de outra forma.

maneira que a conotação transcendente é retirada. O significado é fixado, falsificado e cumulado. Uma vez transformado em vocábulo oficial, constantemente repetido no uso geral, "sancionado" pelos intelectuais, terá perdido todo valor cognitivo e serve meramente ao reconhecimento de um fato indiscutível.

14 Uma su~estão da revi,ta LlI. citada em The Na/ion de 20 de agôsto de 1960. Segundo David Sarnoff. o Congresso "tã apreciando uma leI. que cnana tal Academia. Ver John K. les,up. Adiai Stevenson e outro,. The "a/lOna/. Purpose (produ~ido sob a surervi~ão e com a ajuda da equipe redaclOnal da revIsta Llft. Nova York: Holt, RInehar! and Winston, 1960), p. 58.

f:sse estilo é de uma concreção esmagadora. A "coisa identificada com a sua função" é mais real do que a coisa distinta de sua função, e a expressão lingüística dessa identificação (no substantivo funcional e nas muitas formas de abreviação sintática) cria um vocabulário e sintaxe básicos que se interpõem à identificação, separação e distinção. Essa linguagem, que constantemente impinge imagens, milita contra o desenvolvimento e a expressão de conceitos. Em sua imediação e objetividade, impede o pensamento conceptual; impede, assim, de pensar. Pois o conceito não identifica a coisa e sua função. Tal identificação bem pode ser o significado legítimo - e talvez o único - do conceito operacional e tecnológico, mas as definições operacionais e tecnológicas são usos específicos de conceitos para fins específicos. Mais ainda, elas dissolvem conceitos em operações e excluem o intento conceptual que é oposto a tal dissolução. Anteriormente ao seu uso operacional, o conceito nega a identificação da coisa com a sua função; distingue aquilo que a coisa é das funções contingentes dessa coisa na realidade estabelecida. As tendências correntes da palavra, que repelem essas distinções, exprimem as mudanças havidas nos modos de pensar, discutidas nos capítulos anteriores - a linguagem fundonalizada, abreviada e unificada é a linguagem do pensamento unidimensional. A fim de exemplificar sua originalidade, farei ligeiro contraste entre ela e uma filosofia clássica da gramática que transcende o universo behaviorista e relaciona as categorias lingüísticas com as ontológicas. Segundo essa filosofia, o sujeito gramatical de uma sentença é primeiro uma "substância" e permanece como tal nos vários estados, funções e qualidades que a sentença predica do sujeito. 1:: ativa ou passivamente relacionado com os seus predicados, mas permanece diferente dêles. Se não é um substantivo próprio, o sujeito é mais do que um substantivo: designa o conceito de uma coisa, um universal que a sentença define como num estado ou função particular. O sujeito gramatical traz, assim, um significado em excesso do expressado na sentença.

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Nota sôbre abreviação. OTAN, OTASE, ONU, AFL-CIO, AEC e também URSS, DDR etc. A maioria dessas abreviaturas é perfeitamente razoável e está justificada pela extensão da designação. Contudo, se alguém pode aven~urar ver em ~lgumas delas uma "astúcia da Razão" - a abreviatura pode ajudar a reprimir perguntas indesejaveis. OTAN não sugere o que Organização do Tratado do Atlântico Norte diz, a saber, um trata~o entre nações do Atlântico Norte - caso em que se pode~la levantar questão sôbre a participação da Grécia. e da Tur~~la. URSS abrevia Socialismo e Soviete; DDR abrevIa democratIco. ONU evita a ênfase indevida a "unidas"; OTASE evita focalizar os países do Sudeste da Ásia que não são membros. AFL-CIO sepulta as diferenças políticas radicais que antes separavam as duas organizações, e AEC fica sendo apenas mais um departamento administrativo dentre muitos. As abreviaturas denotam aquilo e somente aquilo que está institucionalizado de tal


linguagem funcional unificada é uma linguagem irreconciliàvelmente anticrítica e antidialética. Nela, a racionalidade operacional e behaviorista absorve' os elementos transcendentes, negativos e de oposição da Razão. Discutirei 17 êsses elementos em têrmos da tensão entre o "é" e o "deve", entre essência e aparência, potencialidade e atualidade - a invasão das determinações negativas nas positivas da lógica. Essa tensão constante penetra o universo bidimensional da locução, que é o universo do pensamento crítico e abstrato. As duas dimensões são antagônicas; a realidade participa de ambas, e os conceitos dialéticos desenvolvem as contradições reais. Em seu próprio desenvolvimento, o pensamento dialético chegou a compreender o caráter histórico das contradições e o processo de sua mediação como um processo histórico. Assim, a "outra" dimensão do pensamento pareceu ser dimensão histórica - a potencialidade como possibilidade histórica, sua realização como acontecimento histórico. A supressão dessa dimensão no universo social da racionalidade operacional é uma supressão da história, e isso não constitui assunto acadêmico, mas político. É a supressão do próprio passado da sociedade - e do seu futuro, visto que êsse futuro invoca a transformação qualitativa, a negação do presente. Um universo da locução em que as categorias de liberdade se tornaram intercambiáveis e até idênticas aos seus opostos está não apenas praticando a linguagem orwelliana e de Esopo, mas repelindo e esquecendo a realidade histórica - o horror do fascismo; a idéia de socialismo; as precondições da democracia; o conteúdo de liberdade. Se uma ditadura burocrática domina e define a sociedade comunista, se 03 regimes fascistas estão funcionando como parceiros do Mundo Livre, se o programa de bem-estar do capitalismo esclarecido é derrotado com êxito ao ser tachado de "socialista", se os fundamentos da dt:mocracia são harmoniosamente ab-rogados na democracia, então os velhos conceitos históricos são invalidados por redefinições operacionais atualizadas. As redefinições são falsificações que, impostas pelas potências existentes e pelos podêres de fato, servem para transformar a falsidade em verdade. A linguagem funcional é radioalmente anti-histórioa: a racionalidade operacional tem pouco lugar e pouco uso para a

Segundo Wilhelm von Humboldt, o substantivo, como sujeito gramatical, denota algo que "pode participar de algumas relações",15 mas não é idêntico a essas relações. Mais ainda, permanece o que é, nessas relações e "contra" elas; êle é o seu cerne "universal" e substantivo. A síntese proposicional liga a ação (ou estado) ao sujeito de tal maneira que êste é designado como o ator (ou portador) e é assim distinguido do estado ou função em que aconteça estar. Ao dizer: "o relâmpago estronda", a criatura "não pensa meramente no estrondo do relâmpago, mas no próprio relâmpago, que estronda", num sujeito que "passou à ação". E se uma sentença dá uma definição de seu sujeito, não dissolve o sujeito em seus estados ou funções, mas o define como estando neste estado ou exercendo esta função. Sem desaparecer em seus predicados e sem existir como uma entidade antes e fora de seus predicados, o sujeito se constitui em seus predicados - o resultado de um processo de mediação que está expressado na sentença. 16 Aludi à filosofia da gramática a fim de mostrar até que ponto as abreviaturas lingüísticas indicam uma abreviação do pensamento que elas, por sua vez, fortificam e promovem. A insistência nos elementos filosóficos da gramática, no elo entre os "sujeitos" gramatical, lógico e ontológico chama a atenção para os conteúdos que são suprimidos na linguagem funcional, barrados da expressão e da comunicação. A abreviação do conceito em imagens fixadas; o desenvolvimento impedido em fórmulas autovalidadoras e hipnóticas; imunidade contra a contradição; identificação da coisa (e da pessoa) com sua função - constituem tendências que revelam a mente unidimensional na linguagem que ela fala. Se o comportamento lingüístico bloqueia o desenvolvimento conceptual, se êle milita contra a abstração e a mediação, se se rende aos fatos imediatos, repele o reconhecimento dos fatôres que estão por trás dos fatos e, assim, repele o reconhecimento dos fatos, bem como do conteúdo histórico dêstes. Tal organização da locução funcional é de importância vital na sociedade e para ela; serve de veículo de coordenação e subordinação. A IS W. v. Humboldt, Vb~r dle Verschleunh~il UI _nlchl/cMn Sp,achbawl, reimpressão, Berlim, 1936, p. 254. 16 Ver, para essa filosofia da gramática na lÓgica dialética, o conceito de Hegel de "substância como sujeito" e de "sentença especulativa" no prefácio à Phunomenology 0/ lhe Spirit.

17

Ver capítulo S, adiante.

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-


1 razão histórica. IS Será essa luta contra a história parte da luta contra uma dimensão da mente na qual se podem desenvolver faculdades e fôrças centrífugas -- faculdades e fôeças que podem impedir a coordenação total do indivíduo com a sociedade? A lembrança do passado pode dar surgimento a perigosas introspecções, e a sociedade estabelecida pareae apreensiva com os conteúdos subversivos da memória. A lembrança é um modo de dissociação dos fatos dados, um modo de "mediação" que quebra, por alguns instantes, o poder onipresente dos fatos dados. A memória recorda o terror e a esperança passados. Ambos voltam à vida, mas enquanto, na realidade, aquêle ressurge em formas sempre novas, esta permanece uma esperança. E, nos acontecimentos pessoais que reaparecem na· memória individual, os temores e as aspirações da humanidade se reafirmam - o universal no particular. :b a história que a memória preserva. Ela sucumbe ao poder totalitário do universo behaviorista: Das "Schreckbild einer M er;schheit ohne Erinnerung. .. ist kein blosses Verfallsprodukt. " sondem es ist mit der Fortschrittlichkeit des bürgerlichen Prinzips notwendig verknüpft". "Oekonomen und Soziologen wie Wemer Sombart und Max Wl'ber haben das Prinz;p des Traditionalismus den feudalen Gesellschaftsformen zuge?rdnet und das der Rationalitat den bürgerlichen. Das sagt aber nicht welllger, ais dass Erirmerung, Zeit, Gediichtnis von der fortschreitenden bürgerlichen Gesellschaft selber ais eine Art irrationaler Rest liquidiert wird . .. " 19

Se a racionalidade que progride na sociedade industrial desenvolvida tende a liquidar, como uma "pausa irracional", os elementos perturbadores do Tempo e da Memória, tende também a liquidar a racionalidade perturbadora contida nessa pausa IS Não q!'er isso dizer que a hist6ria, privada ou geral. desapar.ça do univers,? da locuçao. O p,assado é evocado com suficiente freqüência: seja êle o dos PatrIarcas da Independ:nCla, ou de ,Marx,Engels-Lênin, 011 as origens humildes de um <:andldato à ~resldencIa da Republica. Contudo, essas invocações são também n.~,:!ali~adas .que na? pe!m~tem o desenvolvimento do conteúdo recordado; com frequenCI~ a Simples mvocaçao serve para bloquear tal desenvolvimento, que mostraria a sua ImproprIedade hlstorIca. ,1~ "O esp<;ctro do homem sem memória... ~ mais do que um aspecto de dechulo ,;- ,~sta nec~~sàClament~ ligado ao princípio do progresso da sociedade burg'!esa. Economistas e sociólogos tais como Werner Sombart e Max Weber relaCIOnaram o princípio da tradição com a forma feudal de sociedade e o da raCIOnalidade com a forma bu~guesa. Isso significa nada menos que a sociedade burguesa ~m ?ese~VOlVlmento hqUl~a Memória. Tempo e Recordação como remanescentes IrraclO~a~~, do passado .. :. Th. W. Adorno, "Wes bedeutet Aufarbeitung der Vergangenl1ell. , em Bench uber die Enieherkonferenz, 6 e 7 de novembro, em Wlesbad~n; Frankfurt, 1960, p. 14. A luta contra a história será ainda anali, sada no capitulo 7, adIante.

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irracional. O reconhecimento e a relação com o passado como sendo presente age contra a funcionalização do pensamento pela realidade estabelecida e nela. O pensamento milita contra o fechamento do universo da locução e do comportamento; possibilita o desenvolvimento dos conceitos que desestabilizam e transcendem o universo fechado ao compreendê-lo como universo histórico. Confror:tado com a sociedade em questão como objeto de sua reflexão, o pensamento crítico se torna comciência histórica; como tal, êlc é essencialmente julgamento. 2o Longe de necessitar de um relativismo indiferente, pesquisa a história real do homem para encontrar o critério de verdade e falsidade, progresso e regressão. 21 A mediação do passado com o presente descobre os fatôres que fizeram os fatos, que determinaram o estilo de vida, que estabeleceram os senhores e os servos; projeta os limites e as alternativas. Quando essa consciência crítica fala, ela fala "le langage de la connaissance" (Roland Barthes), que desvenda um universo fechado de locução e sua estrutura petrificada. As palavras-chaves dessa linguagem não são substantivos hipnóticos que evocam interminàvelmente os mesmos predicados congelados. Antes permitem um desenvolvimento aberto; at~ desdobram seu conteúdo em predicados contraditórios. O Manifesto Comunista constitui um exemplo clássico. Nêle, as duas palavras-chaves Burguesia e Proletariado "governam" predicados contrários. A burguesia é o sujeito do progresso técnico, libertação, conquista da natureza, criação de riqueza social e da perversão e destruição dessas realizações. Similarmente, o proletariado tem os atributos da opressão total e da derrota total da opressão. Tal relação dialética de opostos na proposição, e por ela, é possibilitada pelo reconhecimento do sujeito como agente histórico cuja identidade se constitui na prática histórica e contra esta, em sua realidade social e contra ela. A locução se desenvolve e enuncia o conflito entre a coisa e sua função, e êsse conflito encontra expressão lingüística em sentenças que unem predicados contraditórios numa unidade lógica - similar conceptual da realidade objetiva, Em contraste com tôda a linguagem orwelliana, a contradição é demonstrada, explicitada, explicada e denunciada. 20

Ver p. 14 e capítulo 5 dêste livro.

21

Para maior discussão dêsses critérios, ver capítulo 8, adiante.

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Exemplifiquei o contraste entre as duas linguagens reportando-me ao estilo da teoria marxista, mas as qualidades críticas e cognitivas não são características exclusivas do estilo marxista. Podem ser também encontradas (embora em formas diferentes) no estilo da crítica conservadora e liberal da sociedade burguesa em expansão. Por exemplo, a linguagem de Burke e Tocqueville, de John Stuart Mill, do de um dos lados e outro, é uma linguagem altamente demonstrativa, conceptual e "aberta" que ainda não sucumbiu às fórmulas hipnótico-rituais do neoconservadorismo e neoliberalismo atuais. Contudo, a ritualização autoritária da locução é mais surpreendente quando afeta a própria linguagem dialética. As exigências da industrialização competitiva e a sujeição total do homem ao aparato produtor aparecem na transformação autoritária da linguagem marxista em stalinista e pós-stalinista. Essas exigências, conforme interpretadas pela liderança que controla o aparato, definem o que é certo e errado, verdadeiro e falso. Não deixam tempo nem espaço algum para uma discussão que projetaria alternativas dissociativas. Essa linguagem não mais se presta de modo algum à "locução". Ela pronuncia e, em virtude do poder do aparato, estabelece fatos - é enunciado autovalidador. Deve bastar, aqui,22 citar e parafrasear o trecho em que Roland Barthes descreve suas características mágicoautoritárias: "il n'y a plus aucun sursis entre la dénomination et le jugement, et la clôture du langage est parfaite . .. "23 A linguagem fechada não demonstra nem explica - comunica decisão, sentença, comando. Onde define, a definição se torna "separação entre bem e mal"; estabelece coisas certas e erradas indiscutíveis e um valor como justificativa de outro valor. Desloca-se em tautologias, mas estas são "sentenças" terrivelmente eficazes. Julgam de uma "forma prejulgada"; pronunciam condenação. Por exemplo, o "conteúdo objetivo", isto é, a definição de têrmos como "deviacionistas" e "revi sionistas" é igual à do código penal, e êsse tipo de validação suscita uma consciência para a qual a linguagem dos podêres existentes é a linguagem da verdade. 24 Infelizmente, isso não é tudo. O crescimento produtivo da sociedade comunista estabelecida também condena a oposição comunista adepta da liberdade; a linguagem que tenta lembrar 22 Ver o meu So,,/et Marxism. loc. cit., pp. 87 e segs. 23 "não mais há qualquer delonga entre a denominação e o julgamento, e o fechamento da linguagem é perfeito ..... 24 Roland Banhes, loc. cit., pp. 37-40.

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e preservar a verdade original suc~mbe à sua ritual~zação. A orientação da locução (e da açao) com expressoes como "proletariado", "conselhos de trabalhadores"! "ditadur~ d? aparato stalinista" se torna orientação com formulas ntuaIS nas quais o "proletariado" não mais e~isti~ ?u aind.a. não existe, nas quais o contrôle "de baixo para cI~a Interfenna no progres~o da produção em massa, e nas quaIs a luta contra a burocracI.a enfraqueceria a eficácia da única fôrça r~al que pode ser m?bIlizada contra o capitalismo em escala InternacIOnal. AqUI, o passado é rigidamente conservado, mas nã? mediado com o presente. A criatura pode opor-se aos conc~Itos que co~pree~­ deram uma situação histórica sem desenvolve-los para a sItuaçao atual - bloqueia sua dialética. A linguagem rito-autoritária se dissemina pelo mundo contemporâneo, pelos países democratas e não-d~mocra~as, capitalistas e não-c~pitalistas. 2: . Segu~do ~o~~~d Ba~thes, e a linguagem "propre a tous les regimes d autonte , estara presente, hoje em dia, na órbita da civilização indu~t~i~l ava~çada, uma sociedade que não está sob regime autontano? VISto que a substância dos vários regimes não mais aparece em form~s alternativas de vida, repousa em técnicas alternativas de "!ampulação e contrôle. A ling~ag~m nã? apenas reflete es~es contrôles mas torna-se, ela propna, um Instrumento de controle até mes~o onde não transmite ordens, mas informação; onde não exige obediência, mas escolha, onde não exige submissão, mas liberdade. Essa linguagem controla reduzindo as formas lingüísticas e dos símbolos de reflexão, abstração, desenvolvimento, contradição; substituindo conceitos por imagens. Nega ou a~sor~e o vocabulário transcendente; não investiga, estabelece e Imp~e a verdade e a falsidade. Mas êsse tipo de locução n.ão é terron.sta. Parece arriscado supor que os receptores acredItam ou sejam levados a acreditar no que lhes é dito. O nôvo toque da linguagem mágico-ritual é, antes, o de as pessoas não acredit~rem nela ou não se importarem com ela, mas, não obstante, agIrem em ~oncordância com ela. Não se "acredita" no enunciado de 25 Quanto à Alemanha Ocidental, ver os intensos estudos empreendidO; pelo Institut für Sozialforschung, Frankfurt am Main, em 1950-1951: Gruppen. xper:; ment. ed. F. Pollock (Frankfurt, Europaeische Verlagsanstalt, 1955), espe;tal~;n t pp. 545 e seg.. Também Karl Korn. Sprache ln der "erwalteten Welt ( ran ur. Heinrich Scheff1er, 1958), sôbre ambas as partes da Alemanha.

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um conceito operacional, mas êste se justifica em ação - em real!zar o trabalho, em vender ou comprar, na negativa de ouvir os outros etc.

A comunicação funcional é apenas a camada externa do universo uni dimensional . no qual o homem é treinado para esquecer - para tradUZir o negativo em positivo de modo a pode,r continuar funciónando, reduzido, mas adequado, e raz.oavelmente bem. As instituições da liberdade de expressão e liberdade de pensamento não obstruem a coordenação mental com a realidade estabelecida. O que ocorre é uma devastadora redefinição do próprio pensamento, de sua função e seu conteúdo. A coordenação do indivíduo com a sua sociedade atinge as camadas da mente em que são elaborados os próprios conceitos destInados a compreender a realidade estabelecida. tsses conceitos são retirados da tradição intelectual e traduzidos em

têrmos operacionais - uma tradução que tem por efeito reduzir a tensão entre pensamento e realidade pelo enfraquecimento do poder negativo daquele. Trata-se de acontecimento filosófico e, a fim de lucidar até que ponto rompe com a tradição, a análise terá de tornar-se cada vez mais abstrata e ideológica. É a esfera mais afastada da concreção da sociedade que pode mostrar com maior clareza a extensão da conquista do pensamento pela sociedade. Mais ainda, a análise terá de recuar na história da tradição filosófica e tentar identificar as tendências que levaram ao rompimento. Contudo; antes de entrar na análise filosófica, e em transição para o campo mais abstrato e teórico, discutirei ligeiramente dois exemplos (a meu ver representativos) do campo intermediário da pesquisa empírica, diretamente relacionados com certas condições características da sociedade industrial desenvolvida. Questões de linguagem ou de pensamento, de palavras ou de conceitos; análise lingüística ou epistemológica a matéria a ser discutida milita contra claras distinções acadêmicas dêsse gênero. A separação entre uma análise puramente lingüística de uma análise conceptual é em si uma expressão do pensamento cuja explicação será tentada nos capítulos seguintes. Visto como a crítica da pesquisa empírica que se segue é empreendida como preparação para a análise filosófica subseqüente - e à luz da mesma - uma declaração preliminar sôbre o uso do têrmo "conceito" que orienta a crítica poderá servir de introdução. O têrmo "conceito" é usado como designação da representação mental de algo que é entendido, compreendido, conhecido como o resultado de um processo de reflexão. tsse algo pode ser um objeto da prática diária, ou uma situação, uma sociedade, um conto. Em qualquer dos casos, se tais coisas são compreendidas (begriffen; auf ihren Begriff gebracht), tornam-se objetos de pensamento e, como tal, seu conteúdo e significado são idênticos aos objetos reais da experiência imediata e, não obstante, diferentes dêles. "Idênticos" no quanto o conceito denota a mesma coisa; "diferentes" no quanto o conceito seja o resultado de uma reflexão que tenha entendido a coisa no contexto Ce à luz) de outras coisas que não apareceram na experiência imediata e que "explicam" a coisa (mediação). Se o conceito jamais denota uma determinada coisa concreta, se é sempre abstrato e geral, assim ocorre porque o conceito compreende mais do que uma determinada coisa ou

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Se. a linguagem polít!ca tende a tornar-se a da propaganda co~erclal, fechand~, ass.lm, a lacuna entre dois campos da sociedade a~tes mUlto diferentes, então essa tendência parece expressar ate que ponto a dominação e a administração deixaram d,e ,ser uma fu_nção separada e independente na sociedade tecnoI~gl~a .. Isso n~o q~er dizer que o poder dos políticos profissionais d!mInUIU. . Da-se JustaJ?ente o contrário. Quanto mais global for? .desaflo por eles cnado para enfrentá-la, quanto mais normal a vlZlnhança da destruição total, tanto mais estarão êlcs livres d~ .soberania popular eficaz. Mas a dominação dos políticos fOI Incorporada aos desempenhos e repousos diários dos cidadãos e o~ ':símbolos': da política são também dos negócios, d~ comercIO e da diversão. A

As vicis,s~tudes da linguagem têm paralelo nas do comportamento politiCO. Na venda de equipamento para diversão repousante nos abrigos antiaéreos, no programa de candidatos que comp~tem pe~a . liderança nacional, na televisão, a junção entre polItIca, negoclOs e diversão é completa. Mas a junção é f~audul:nta e f~~almente prematura - os negócios e a diversão aln,da sao a p~litlc~ da, d~~inação. Não se trata da peça satírica apos a tragedla; nao e tiniS tragoediae - a tragédia pode simpl~smente começar. Aqui, também, as vítimas rituais serão as cnaturas e não o herói.

A pesquisa da administração total


outra que não ela - alguma condição ou relação universal essencial a determinada coisa, que determina a forma sob a qual ela aparece como um objeto concreto da experiência. Se o conceito de algo concreto é o produto de classificação, organização e abstração mentais, êsses processos mentais levam à compreensão somente na medida em que reconstituem a determinada coisa em sua condição e relação universais, transcendendo assim a sua aparência imediata na direção de sua realidade. E, por sinal, todos os conceitos cognitivos têm um significado transitivo: vão além da referência descritiva a determinados fatos. E, se os fatos são os da sociedade, os conceitos cognitivos também vão além de qualquer contexto especial de fatos - até os processos e condições em que assenta a respectiva sociedade, e que entram em todos os fatos especiais, fazendo, mantendo e destruindo a sociedade. Em virtude de sua referência a essa totalidade histórica, os conceitos cognitivos transcendem todo contexto operacional, mas sua transcendência é empírica porque torna os fatos reconhecíveis como aquilo que êles verdadeiramente são. O "excesso" de significado acima do conceito operacional esclarece a forma limitada e até decepcionante sob a qual os fatos podem ser experimentados. Daí a tensão, a discrepância, o conflito entre o conceito e o fato imediato - a coisa concreta' entre a palavra que se refere ao conceito e aquela que se refer~ às coisas. Daí a noção da "realidade do universal". Daí também o caráter tolerante e acomodativo das formas de pensamento que tratam os conceitos como artifícios mentais e traduzem conceitos universais para têrmos com objetos indiretos especiais e objetivos. Quando êsses conceitos reduzidos governam a análise da realidade humana, individual ou social, mental ou material, chegam a uma falsa concreção - uma concreção isolada das condições que constituem sua realidade. Neste contexto, o tratamento operacional do conceito assume uma função política. O indivíduo e seu comportamento são analisados num sentido terapêutico - ajustamento à sua sociedade. Pensamento e expressão, teoria e prática, serão postos em harmonia com os fatos de sua existência sem deixar lugar para a crítica conceptual dêsses fatos. O caráter terapêutico do conceito operacional se mostra mais claramente quando o pensamento concept\lal é metodica110

mente colocado a serviço da exploração e do aprimora~ent.o das condições sociais existentes, dentro da estrutura das Instituições sociais existentes - na Sociolo~ia Industria~, ?as _pesquisas sôbre motivação, nos estudos sobre comerclahzaçao e opinião pública. Se a forma de sociedade em questão é e permanece a estrutura final de referência para a teoria e a prática, nada há de errado nesse tipo de Sociologia e Psciolo~ia. f: ~ais hum~no e mais produtivo ter-se boas do qu~ T?as relaçoes obrelropatronais, condições de trabalho agradavels em v,:z de desagradáveis, harmonia em vez de conflito entre os desejOS dos consumidores e as necessidades dos negócios e da política. Mas a racionalidade dêsse tipo de Ciência Social aparece sob outro aspecto se a sociedade em questão, conq~anto permanecendo a estrutura de referência, se torna o obJ~to de \lma teoria crítica que visa à própria estrutura dessa socledad~, presente em todos os fatos e condições par~icul~res ~ ~etermIna,~do seu lugar e sua função. Então, seu c~rater Ideologlco e pOhtIC.O transparece, e a elaboração de concelt~s ~dequ.adamente ~~gm­ tivos exige o avanço além d~ c.oncreçao Ilu~ona do empmsmo positivista. O conceito terapeutIco e operacl~~al se torna falso no quanto isola e a.tomiza AOS fato~, establhza-os dentrAo do todo repressivo e aceIta os termos, d~sse todo co~o os ~ermos da análise. A tradução metodologlca do conceIto umversal no operacional se torna então redução repressiva do pensamento. 26 Tomarei para exemplo um "clássico" da Sociologia !ndustrial: o estudo das relações de trabalho nas Instalaçoes. de Hawthorne da Western Electric Company.27 f: um estudo antigo, empreendido há aproximadamente uns vinte e cinco anos, tendo 26 Na teoria do funcionalismo, o caráter terapêutico e .ideol~~ico da" a~~lise não aparece; é obscurecido pela gen{"raHd~?e ~b~~r~~a do~ ~oncel~os ( slst~m~.' pa~: te" "unidade" "item" "múltiplas consequenclas, funçao). Sao em pnnc.lplo apá cáv~is a qualq~er siste;"a que o sociólogo escolha para ob;eto de sua anáh,e ~ menor grupo à sociedade como tal. A análise funCIOnal esta c~:ml1da no sIStema desco lhido o qual não está êle próprio, sujeito a uma anáh,e cfltlca _que t~anr'cen_ e as front~iras do sistema p~ra ~m con~ínuo histórico no q~al suas funçoes e b~~r~n~~~~~ tornam o que são. A teofla funCional apresenta, aSSim, o engano bda a Jas prócolocada. A generalidade de. seus conceitos é alCaqnUÇead~á ~il:ni~c~~~Ç~~ítiCo-trans­ prias qualidades que torna hlStOn,:o o Sistema e cendent~ às suas funções e dlSfunçoes.. d lhe Worktr 27 As citações são de Roethhsberger e Dlckson, Managemenl an -o em Loren (Cambridge: Harvard University Press, 1947). hVeUr a efxc;lent~ t'~~~~!ain American Baritz The ServanlS of Power. A HlSlory of I e se o OClp c 6 Indusíry (Middletown, Wesleyan University Press, 1960), capltulos 5 e .

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os métodos sido desde então muito aprimorados. Mas na minha opinião sua substância e função permaneceram imutáveis. Mais ainda, essa forma de pensar não apenas se estendeu a outros ramos da Ciência social e à Filosofia, desde então mas também ajudou a moldar os assuntos humanos com os q~ais está relacIOnada. Os conceitos operacionais terminam em métodos de contrôle social aperfeiçoado: tornam-se parte da ciência da gerência, no Departamento de Relações Humanas. Em Labor ~oo,ks .at Labor encontram-se estas palavras de um operário da mdustrIa de automóveis: As gerências "não nos conseguiram deter nos piquêtes; não nos conseguiram deter com a tática da barragem, de modo que andaram estudando 'relações humanas' nos campos econômico, social e político para descobrir como deter os sindicatos".

Ao investigarem as queixas dos trabalhadores sôbre condições de trabalho e salários, os pesquisadores toparam com o fato de que essas queixas, em sua maioria, foram formuladas em declarações que continham "têrmos vagos e indefinidos", carecendo de "referência objetiva" a "padrões que são geralmente aceitos" e tinham características "essencialmente diferentes das proprieàades geralmente associadas com os fatos comuns".28 Em outras palavras, as queixas estavam formuladas em declarações ger~is como "os banheiros são anti-higiênicos", "o trabalho é perIgoso", "as taxas de pagamento são muito baixas". <?uiados pelo princípio do pensamento operacional, os pesquIsadores se entregaram a traduzir ou reformular essas declarações de tal maneira que sua generalidade vaga pudesse ser re.duzida a coisas definidas, expressões designando a situação esp.eclal em que as queixas se tivessem originado, configurando aS~Im ."pre~isamente as condições na companhia". A forma geral fOI dissolvida em declarações identificando as operações e con?ições especiais nas quais as queixas se originaram, sendo as q~elxas so~u~ionadas pela mudança dessas operações e condiçoes eSpeCIaIS. Por exemplo, a declaração "os banheiros são anti-higiênicos" foi traduzida para "em tais e tais ocasiões entrei nesse banheiro e o lavatório tinha alguma sujeira". Interrogatórios levaram então, à conclusão de que isso "se devia principalmente à faJt~ 28

Roethli>berger e Dickson.

Loc. cit., pp. 255 e se~s.

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de cuidado de alguns empregados", foi instituída uma campanha contra o jogar papel, cuspir no chão e outras práticas, tendo sido designado um zelador para vigiar constantemente os banheiros. "Foi dessa forma que muitas das queixas foram reinterpretadas e usadas para produzir melhoramentos."29 Outro exemplo: um trabalhador B faz a declaração geral de que seus salários por tarefa são muito baixos. A entrevista revela que "sua espôsa está no hospital e êle está preocupado com a conta do médico. Neste caso, o conteúdo latente da queixa consiste no fato de o pagamento atual de B ser insuficiente para atender aos seus compromissos financeiros em razão da doença da espôsa".30 Tal tradução altera significativamente o sentido da proposição original. A declaração não-traduzida formula uma condição geral em sua generalidade ("os salários são muito baixos"). Vai além da condição particular numa determinada fábrica e além da situação particular do trabalhador em questão. Nessa generalidade, e somente nessa generalidade, a declaração expressa uma denúncia devastadora que toma um caso particular como uma manifestação de um estado de coisas universal e insinua que êste pode não ser modificado pelo melhoramento daquele. Assim, a declaração não-traduzida estabeleceu uma relação concreta entre o caso particular e o todo do qual êle é um caso - e êsse todo inclui as condições de fora do respectivo emprêgo, de fora da respectiva fábrica, de fora da respectiva situação pessoal. ~sse todo é eliminado na tradução, e é essa operação que torna possível a solução. O trabàlhador pode não estar cônscio disso e, para êle, sua queixa pode ter de fato aquêle significado particular e pessoal que a tradução realça como seu "conteúdo latente". Mas a llnguagem por êle usada afirma sua validez objetiva contra sua consciência - expressa condições que são, embora não sejam "para êle". A concreção do caso particular conseguida pela tradução é o resultado de uma série de abstrações da concreção real do mesmo, que está no carátcr universal do caso. A tradução relaciona a declaração geral com a experiência pessoal do trabalhador que faz a declaração, mas pára no ponto em que o trabalhador, individualmente, se sentiria, êle próprio, como "o trabalhador", e no qual o seu emprêgo aparece como 29

3u

Ihid .. p. 256. I/Jld. p. ::(17.

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( "o emprêgo" da classe trabalhadora. Será necessário frisar que, em suas traduções, o pesquisador operacional meramente segue o processo da realidade, e, provàvelmente, até mesmo as tra~uções do próprio trabalhador? A experiência interrompida não e de sua execução, e sua função não é pensar em têrmos de uma teoria crítica, mas adestrar supervisores "em métodos mais humanos e eficazes de lidar com os seus trabalhadores"31 (somente o têrmo "humano" parece não-operacional e carente de análise). . Mas ao. se estender êsse modo gerencial de pensar e pesqUls~r a outras dimensões do esfôrço intelectual, os serviços por ele prestados se tornam cada vez mais inseparáveis de sua validez científica. Neste contexto, a funcionalização tem um efeito verdadeiramente terapêutico. Assim que o descontentamento pessoal é isolado da infelicidade geral, assim que os conceitos universais que militam contra a funcionalização são dissolvidos em objetos indiretos particulares, o caso se torna um incidente discutível e solucionável. Na verdade, o caso permanece um incidente de um universal - nenhum modo de pensar pode passar sem os universais - mas de um gênero muito diferente do contido na declaração não-traduzida. O trabalhador B, uma vez atendidas as suas contas médicas, reconhecerá que, de modo geral, os pagamentos não são muito baixos e que constituíram uma agrura somente em sua sitüação individual (que pode ser semelhante a outras situações individuais). O seu caso foi incluído em outro gênero - o dos casos de agruras pessoais. f:le não mais é um "trabalhador" ou "empregado" (membro de uma classe), mas o trabalhador ou empregado B da fábrica de Hawthorne da Western Electric Company. Os autores de Management and the Worker estavam perfeitamente cônscios dessa implicação. Dizem que uma das funções fundamentais a serem desempenhadas numa organização industrial é "a função específica do trabalho com o pessoal", e que essa função exige que, no trato com relações obreiro-patronais, deve-se "pensar no que vai na mente de um determinado empregado em têrmos de um trabalhador que tenha tido uma determinada história pessoal", ou "em têrmos de um empregado cujo emprêgo seja em determinado lugar da fábrica que o ponha em contato com determinadas pessoas e grupos de pessoas ... " 31

Em contraste, os autores reJeitam, como incompatível com a "função específica do trabalho com o pessoal", uma atitude que se dirija ao empregado "médio" ou "típico" ou ao que "está em geral na mente do trabalhador".32 Podemos resumir êsses exemplos contrastando as declarações originais com a sua tradução para formas funcionais. Tomamos as declarações em ambas as formas com o seu significado imediato, deixando de lado o problema de sua verificação. 1) "Os salários são muito baixos". O sujeito da proposição é "salários", e não uma determinada remuneração de um determinado trabalhador num determinado emprêgo. O homem que faz a declaração pode pensar apenas em sua experiência pessoal, mas, na forma cm que faz a sua declaração, transcende essa experiência pessoal. O predicado "muito baixos" é um adjetivo de relação, exigindo um objeto indireto que não é designado na proposição - muito baixos para quem ou para o quê? f:sse objeto indireto pode ser o indivíduo que faz a declaração ou seus colegas de trabalho, mas o substantivo geral (salários) traz todo o movimento do pensamento expressado pela proposição e faz que todos os outros elementos proposicionais compartilhem do caráter geral. O objeto indireto continua indeterminado - "muito baixos de modo geral", ou "muito baixos para todos os assalariados iguais ao manifestante". A proposição é abstrata. Ela se refere a condiçõt;s universais que não podem ser substituídas por caso particular algum; seu significado é "transitivo" como contrário a qualquer caso individual. A proposição exige de fato a sua "tradução" para um contexto mais concreto, mas no qual os conceitos universais não possam ser definidos por conjunto particular algum de operações (tal como a história pessoal do trabalhador B e sua função especial na fábrica de W). O conceito "salários" se refere ao grupo de "assalariados", integrando tôdas as histórias pessoais e empregos especiais num universal concreto. 2) "Os salários atuais de B são, em razão da doença de sua espôsa, insuficientes para atender aos seus compromissos". Note-se que nesta tradução de 1), o sujeito foi deslocado. O conceito universal "salários" é substituído por "salários atuais de B", cujo significado é plenamente definido pelo conjunto particular de operações que B tem de levar a têrmo para poder 32

Loc. dI., p. VJlI.

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Loc. cil., p. 59 L

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comprar alimentos, roupas, habitação, remédios etc. para a sua família. A "transitividade" de significado foi abolida; o agrupamento "assalariados" desapareceu juntamente com o sujeito "salários", e o que resta é um caso particular que, privado de seu significado transitivo, se torna suscetível aos padrões aceitos de tratamento pela companhia na qual se verificou o caso.

As teorias do "mandato", que têm suas origens nas concepçi"ies clássicas de democracia, postulam que o processo de representação resulta de um conjunto bem definido de diretrizes que o eleitorado implie aas seus representantes. Uma eleição é um procedimento de conveniência e um método para garantir que os repre~entantes se enquadrem nas diretrizes dos constituintes. 3J

Ora, essa "preconcepção" foi "rejeitada com antecedência como irreal por pressupor um nível de opinião e ideologia articuladas nas plataformas eleitorais, de difícil existência nos Estados Unidos". Essa declaração de fato assaz franca é algo suavizada pela dúvida reconfortante sôbre "se tal nível de opinião articulada existiu em algum eleitorado democrático desde a extensão do direito de voto no século XIX". De qualquer forma, os autores aceitam, em vez da preconcepção rejeitada, a teoria "competitiva" da democracia, segundo a qual uma eleição democrática é um processo de "selecionar e rejeitar candidatos" que "competem por cargos eletivos". Es.,sa definição, para que se torne realmente operacional, exige "critérios" pelos quais o caráter da competição política possa ser avaliado. Quando a competição política produz um "processo de consentimento" e quando produz um "processo de manipubção"? f: apresentado um conjunto de três critérios:

Que há de errado nisso? Nada. A tradução dos conceitos e da proposição como um todo é validada pela sociedade à qual o pesquisador atende. A terapia funciona porque a fábrica ou o Govêrno podem arcar com pelo menos uma parte considerável dos custos, por desejarem fazê-lo e porque o paciente deseja submeter-se a um tratamento que promete ser um êxito. Os conceitos vagos, indefinidos e universais que apareceram na queixa não-traduzida eram na verdade remanescentes do passado; sua persistência na palavra e no pensamento eram de fato uma barreira (embora pequena) ao entendimento e à colaboração. Na medida em que a Sociologia e a Psicologia operacionais contribuíram para atenuar condições sub-humanas, elas são parte do progresso intelectual e material. Mas também são testemunho da racionalidade ambivalente do progresso que satisfaz em seu poder repressivo e é repressivo em suas satisfações. A eliminação do significado transitivo continuou sendo uma particularidade da Socioiogia empírica. Caracteriza até mesmo um grande número de estudos que não se destinam a ter uma função terapêutica com algum interêsse particular. Resultado: uma vez abolido o excesso "irreal", a investigação fica trancafiada dentro dos enormes limites nos quais a sociedade estabelecida valida e invalida proposições. Em virtude de sua metodologia, êsse empirismo é ideológico. Para exemplificar o seu caráter ideológico, vejamos um estudo da atividade política nos Estados Unidos. Em seu trabalho intitulado "Competitive Pressure and Democratic Consent", Morris J anowitz e Dwaine Marvick desejam "julgar até que ponto uma eleição é uma expressão de fato do processo democrático". Tal julgamento implica a avaliação do processo eleit.oral "em têrmos do que é necessário para manter uma sociedade democrática" e isso, por sua vez, exige uma definição de "democrática". Os autores oferecem a escolha entre duas definições alternadas; as teorias do "mandato" e "competitiva", da democracia:

1) uma eleição democrática exige competição entre candidatos opostos que se difunda por todo o eleitorado. O eleitorado obtém poder de sua aptidão para escolher dentre pelo menos dois candidatos competitivamente orientados, acreditando-se que qualquer dêles tenha uma -possibilidade razoável de vencer; 2) uma eleição democrática exige que ambos [!] os partidos se empenhem num equilíbrio de esforços para manter os blocos eleitorais estabelecidos, para recrutar eleitores independentes e para conseguir converses dos partidos da oposição; 3) uma eleição democrática exige que ambos [!I os partidos estejam vigorosamente empenhados no esfôrço para ganhar a eleição; mas, indepenuentemente da vitória ou da derrota, ambos os partidos devem também procurar reforçar suas possibilidades de êxito na próxima eleição e nas subseqüentes ... 34

Creio que essas definições descrevem com bastante ex ati dão o estado de coisas real das eleições norte-americanas de 1952, que são o assunto da análise. Em outras palavras, os critérios 33. H. Eulau, S. J. Eldersv"ld, M. Janowitz (eds.). Politicai Hehavior (Glencoe Free Press. 1956). p. 275. 34 lbid., p. 276.

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'*


..

para julgar um determinado estado de coisas são os oferecidos por (~:>U'. como são os de um sistema social que funciona bem e .esta fIrmemente estabelecido, impôsto por) êsse estado de cOI~as: .A análise está "arrolhada"; o âmbito do julgamento esta limitado a um contexto de fatos que exclui o julgamento do contexto no qual os fatos são criados, criados pelo homem e no qual o significado, a função e o desenvolvimento dêsse~ fatos são determinados. . Comprometid~ com essa estrutura, a investigação se torna circular e autovalidadora. Se "democrático" é definido nos. têr~os. limitadores, ~as realistas, do processo real da eleição, então esse processo e democrático anteriormente aos resultados d~ investig,açã~. Na. v~rd~de, a estrutura operacional ainda perpute .( ~ ate eXige) dlstmçao entre consentimento e manipulação; a elelçao ~ode ser mais ou menos democrática segundo o grau ~e consen~lmento e manipulação verificado. Os autores chegam a conclusao de que a eleição de 1952 "se caracterizou por um proc~S!O ?e con~entimento genuíno em maior grau do que as prevlsoes ImpreSSiOnantes poderiam ter sugerido"35 - conquanto constituísse "sério êrro" desprezar as "barreiras" ao consentimento e negar que "estiveram presentes pressões manipulativas".36 A a_nálise operacional não pode ir mais longe do que essa dêclaraçao, que pouco esclarece. Em outras palavras, não pode levantar a questão decisiva sôbre se o próprio consentimento não foi obra de manipulação - uma questão para a qu~l. o e!tado de coisas atual oferece ampla justificativa. A analise nao pode levantar a questão porque transcenderia os seus têrmos para um significado transitivo - para um conceito de democracia que revelaria a eleição democrática como sendo um processo democrático assaz limitado. Precisamente tal conceito não-operacional é rejeitado pelos autores como "irreal" porque define democracia em nível demasia~o inteligível coI?o o contrôle preciso da representação relo elelto~ado - controle popular como soberania popular. E es~e ~oncelto não-operacional não é de modo algum estranho. Nao ~ de ~~do al~m .uma invenção da imaginação ou especulaçao, defmmdo, Isto Sim, o propósito histórico da democracia as :ondições que justificaram a luta pela democracia, e que aind~ estao por ser atendidas. 35

36

Ibid., p. 284. Ibid., p. 285.

Mais ainda, êsse conceito é impecável em sua exatidão semântica porque significa exatamente o que diz - a saber, que é exatamente o eleitorado que impõe suas diretrizes aos representantes, e não os representantes que impõem suas diretrizes ao eleitorado, o qual, então, escolhe e reelege os representantes. Um eleitorado autônomo, livre porque está livre de doutrinação e manipulação, estaria de fato num "nível de opinião e ideologia inteligíveis", o que é difícil de se dar. Assim sendo, o conceito tem de ser rejeitado como "irreal" - assim tem de ser, caso se aceite o nível de opinião e ideologia realmente predominante como capaz de prescrever os critérios válidos para a análise sociológica. E se a doutrinação e a manipulação chegaram a uma etapa em que o nível de opinião corrente se tornou um nível de falsidade, em que o estado de coisas real não mais é reconhecido como o que de fato é, então uma análise que está metodologicamente empenhada em rejeitar conceitos transitivos se compromete com uma falsa consciência. Seu próprio empirismo é ideológico. Os autores estão bem cônscios do problema. A "rigidez ideológica" apresenta "séria implicação" ao avaliar o grau de consentimento democrático. Na verdade, consentimento de quê? Naturalmente, dos candidados e sua orientação política. Mas isso não basta, porque, então, o consentimento a um regime fascista (e se pode falar de consentimento genuíno a tal regime) seria um processo democrático. Assim, o próprio consentimento tem de ser avaliado - avaliado em têrmos de seu conteúdo, de seu objetivo, de seus "valôres" - e essa medida parece compreender transitividade de significado. Contudo, tal medida "não-científica" pode ser evitada se a orientação ideológica a ser avaliada não é outra que não os dois partidos existentes e "eficazmente" competitivos, mais a orientação "ambivalente e neutralizada" dos eleitores. 37 A tabela que dá os resultados do escrutínio da orientação ideológica mostra três graus de adesão às ideologias dos partidos republicano e democrata e as opiniões "ambivalentes e neutralizadas".38 Os próprios partidos estabelecidos, suas orientações e suas maquinações não são questionados, tampouco o sendo a diferença real entre êles no que tange a questões vitais (as da política nuclear e do estado de preparação bélica total), questões 37 38

118

Ibid, p. 280. Ibid., pp. 138 e segs.

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que parecem essenciais para a avaliação do processo democrático, a não ser que a análise opere com um conceito de democracia que meramente reúna as características da forma estabelecida de democracia. Tal conceito operacional não é totalmente inadequado ao assunto da investigação. Indica com suficiente clareza as qualidades que, no período contemporâneo, distinguem os sistemas democráticos e não-democráticos (por exemplo, competição de fato entre candidatos que representam partidos diferentes; liberdade do eleitorado para escolher entre êsses candidatos), mas essa adequação não é suficiente se a tarefa da análise teórica é mais do que descritiva e diferente de descritiva - se a tarefa é compreender, é reconhecer os fatos pelo que êles são, pelo que "significam" para aquêles aos quais foram dados como fatos e que têm de viver com êles. Em teoria sociológica, reconhecimento dos fatos é crítica dos fatos. Mas os conceitos operacionais não são sequer suficientes para descrever os fatos. Apenas alcançam certos aspectos e segmentos dos fatos que, se tomados pelo todo, privam a descrição de seu caráter objetivo e empírico. Como exemplo, vejamos o conceito de "atividade política" no estudo de Julian L. Woodward e Elmo Roper sôbre "Politicai Activity of American Citizens".39 Os autores apresentam uma "definição operacional da expressão 'atividade política'" constituída de "cinco modos de comportamento": 1) votação nas eleições; 2) apoio a possíveis grupos de pressão ... ; 3) comunicação pessoal direta com os legisladores; 4) participação da atividade do partido político ... ; 5) participação da disseminação habitual de opinões políticas pela comunicação verbal ... Sem dúvida, trata-se de "meios de possível influência sôbre legisladores e autoridades governamentais", mas poderá a medição dêsses meios garantir realmente "um método de separar as criaturas relativamente ativas no tocante às questões políticas nacionais das que são relativamente inativas"? Incluirão atividades decisivas "cm relação a questões nacionais" como os contatos técnicos e econômicos entre as corporações e o Govêrno e entre as próprias corporações-chaves? Incluirão a formulação e a disseminação de opinião, informação e diversão "apolíticas" pelos grandes meios de publicidade? Levarão em conta os pesos políticos muito diferentes das várias organizações que tomam posição em questões públicas? 39

Se a resposta é negativa (e creio que sim), então os fatos da atividade política não são adequadamente descritos e determinados. Muitos dos fatos constitutivos e, creio, determinantes, permanecem fora do alcance do conceito operacional. E em virtude dessa limitação - dessa injunção metodológica contra conceitos transitivos que podem mostrar os fatos em seu verdadeiro aspecto e chamá-los por seus verdadeiros nomes - a análise descritiva dos fatos bloqueia a apreensão dos fatos e se torna um elemento da ideologia que sustenta os fatos. Proclamando a realidade social existente sua própria norma, essa Sociologia fortalece nos indivíduos a "fé destituída de fé" na realidade da qual êles são as vítimas: "Nada resta da ideologia a não ser o reconhecim~nto daquilo que é - modêlo de um comportamento que se submete ao poder arrasador do estado de coisas estabelecido". 40 A contradição clara reafirma seu direito contra êsse empirismo ideológico: " ... aquiío que é não pode ser verdadeiro". 41

40 Theodor W. Adorno. "Ideologie", em Kurt Lenk (cd.), ldeu/ogie (Neuwied, Luchterhand. 1961), pp. 262 e 'c ~,. 41 Ernst Bloch, Ph,losophische Grundfragen I (Frankfurt, Suhrkamp, 1961), p. 65.

lb/d., p. 133.

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racionalidade do real. b a racionalidade da contradição, da oposição de fôrças, tendências, elementos, o que constitui o movimento do real e, se compreendido, o conceito do real. Existindo como a contradição viva entre essência e aparência, os objetos do pensamento são daquela "negatividade Íntima"9 que é a qualidade específica de seu conceito. A definição dialética define o movimenlo das coisas daquilo que elas não são para aquilo que elas são. O desenvolvimento de elementos contraditórios, que determina a estrutura de seu objeto, determina também a estrutura do pensamento dialético. O objeto da lógica dialética não é a forma abstrata e geral de objetividade nem a forma abstrata e geral de pensamento - nem os dados da experiência imediata. A lógica dialética desfaz as abstrações da lógica formal e da Filosofia transcendente, mas também nega a concreção da experiência imediata. Desde que essa experiência dependa das coisas conforme se apresentem e sejam, ela é uma experiência limitada e até mesmo falsa. Alcança sua verdade caso se liberte da objetividade decepcionante que esconde os fatôres que motivam os fatos - isto é, se compreende o seu mundo como um universo histórico no qual os fatos estabelecidos são obra da prática histórica do homem. Essa prática (intelectual e material) é a realidade nos dados da experiência, sendo também a realidade que a lógica dialética compreende. Quando o conteúdo histórico entra no conceito dialético e determina metodologicamente seu desenvolvimento e sua funçãQ, o pensamento dialético atinge a concreção que liga a estrutura do pensamento à da realidade. A verdade lógica se torna verdade histórica. A tensão ontológica entre essência e aparência, entre "é" e "deve" se torna tensão histórica e a "negatividade íntima" do mundo-objeto é compreendida como obra do sujeito histórico - o homem em sua luta com a natureza e a sociedade. A Razão se torna Razão histórica. Ela contradiz a ordem estabelecida dos homens e das coisas em nome das fôrças sociais existentes que revelam o caráter. irracional dessa ordem - pois "racional" é um modo de pensar e de agir que está orientado para reduzir a ignorância, a destruição, a brutalidade e a opressão. A transformação da dialética ontológica em histórica conserva a bidimensionalidade do pensamento filosófico como pensamento crítico e negativo. Mas aí essência e aparência, "é" e

"deve" se defrontam no conflito entre fôrças e faculdades na sociedade. Mas não se defrontam da mesma forma que Razão e Anti-Razão, Certo e Errado - porque ambas são parte c parcela do mesmo universo estabelecido, ambas participam d~ Razão e da Anti-Razão, do Certo e do Errado. O escravo e capaz de abolir os senhores e de cooperar com êles; os .senhores são capazes de melhorar a vida do escravo e de a~nmorar a sua exploração. A idéia de Razão pertence ao movimento do pensamento e da ação. b uma exigência teórica e prática. Se a dialética entende a contradição como "necessidade" pertencente à própria "natureza do pensamento" (zur ,,!a!ur der DenkbestimmungenJ,lO assim o faz porque a contradlçao pertence à própria natureza do objeto do pensamento.. à reali.dade, onde a Razão é ainda Anti-Razão, e o irracional amda racIOnal. Inversamente, tôda realidade estabelecida milita contra a lógica das contradições - favorece os modos de pensamento que conservam as formas de vida estabelecidas e os modos de comportamento que os reproduzem e aprimoram. A realidade em questão tem sua própria lógica e sua própria verdade; o esfôr~o para compreendê-las como tal e para as tran~c,e~der pressupoe uma lógica diferente, uma verdade contradltona. Pertencem a modos de pensar que são não-operacionais em sua própria estrutura; são estranhas tanto ao operacionalismo científico como ao do senso comum; sua concreção histórica milita contra a quantificação e a matematização, .de um lado, e, de outro, contra o positivismo e o empirismo. Assim, êsses modos de pensar parecem ser uma relíquia do passado, como tôda Fil~­ sofia não-científica e não-empí<ca. Recuam diante da teona e prática da Razão mais eficãzes.

lO Ibld. 9

161d., p. 38.

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6 DO PENSAMENTO NEGATIVO PARA O POSITIVO: RACIONALIDADE TECNOLÓGICA E A LóGICA DA DOMINAÇÃO

aqui. A organização errônea da sociedade exige maior explicação, em vista da situação da sociedade industrial avançada, na qual a integração de fôrças sociais antes negativas e transcendentes com o sistema estabelecido parece criar uma nova estrutura social. Essa transformação de oposição negativa em positiva indica o problema: a organização "errônea", ao se tornar totalitária em bases internas, refuta as alternativas. Certamente é assaz natural, parecendo não exigir uma explicação em profundidade, o fato de os benefícios tangíveis do sistema serem considerados dignos de defesa - especialmente em vista da fôrça repulsiva do comunismo atual, que parece ser a alternativa histórica. Mas é natural apenas para um modo de pensar e de comportamento que não deseja e talvez mesmo seja incapaz de compreender o que se está passando e porque está acontecendo, um modo de pensar e de comportamento que é imune a qualquer outra racionalidade estabelecida. Desde que correspondam à realidade em questão, o pensamento e o comportamento expressam uma falsa consciência, reagindo à preservação de uma falsa ordem dos fatos e contribuindo para ela. E essa falsa consciência se corporificou no aparato técnico prevalecente, o qual, por sua vez, a reproduz.

Na realidade social, a dominação do homem pelo homem ainda é, a despeito de tôda transformação, o contínuo histórico que une Razão pré-tecnológica e Razão tecnológica. Contudo, a sociedade que projeta e empreende a transformação tecnológica da natureza altera a base da dominação pela substituição gradativa da dependência pessoal (o escravo, do senhor; o servo, do senhor da herdade; o senhor, do doador do feudo etc.) pela dependência da "ordem objetiva das coisas" (das leis econômicas, do mercado etc.). Sem dúvida, a "ordem objetiva das coisas" é, ela própria, o resultado da dominação, mas é, não obstante, verdade que a dominação agora gera mais elevada racionalidade - a de uma sociedade que mantém sua estrutura hierárquica enquanto explora com eficiência cada vez maior os recursos naturais e mentais e distribui os benefícios dessa exploração em escala cada vez maior. Os limites dessa racionalidade e sua fôrça sinistra aparecem na escravização progressiva do homem por um aparato produtor que perpetua a luta pela existência, estendendo-o a uma luta total internacional que arruína a vida dos que constroem e usam êsse aparato. A esta altura se torna claro que algo deve estar errado na racionalidade do próprio sistema. O que está errado é a forma pela qual os homens organizaram seu trabalho social. Isso não mais está em questão no presente, quando, de um lado, os grandes empresários estão êles próprios desejosos de sacrificar as bênçãos da emprêsa privada e "livre" competição às bênçãos das ordens e regulamentações governamentais, enquanto, de outro lado, a construção socialista continua a prosseguir através da dominação progressiva. Contudo, a questão não pode parar

Nascemos e morremos racional e produtivamente. Sabemos que a destruição é o preço do progresso, como a morte é o preço da vida, que a renúncia e a labuta são os requisitos para a satisfação e o prazer, que os negócios devem prosseguir e que as alternativas são utópicas. Essa ideologia pertence ao aparato social estabelecido; é um requisito para o seu funcionamento contínuo e parte de sua racionalidade. Contudo, o aparato derrota o seu próprio objetivo se êste é criar uma existência humana com base numa natureza humanizada. E se êsse não é o seu propósito, sua racionalidade se toma ainda mais suspeita. Mas ela é também mais lógica porque, de início, o negativo está no positivo, o desumano está na humanização, a escravização na libertação. Essa dinâmica é a da realidade e não da mente, mas de uma realidade na qual a mente científica teve papel decisivo em unir a razão teórica e prática. A sociedade se reproduz num crescente conjunto técnico de coisas e relações que incluiu a utilização técnica do homem - em outras palavras, a luta pela existência e a exploração

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do homem e da natureza se tornaram cada vez mais científicas e racionais. O duplo significado de "racionalização" é relevante neste contexto. A gerência científica e a divisão científica do trabalho aumentaram enormemente a produtividade do empreendimento econômico, político e cultural. Resultado: o mais elevado padrão de vida. Ao mesmo tempo e com os mesmos fundamentos, êsse empreendimento racional produziu um padrão d(" mente e comportamento que justificou e absolveu até mesmo as particularidades mais destrutivas e opressivas do empreendimento. A racionalidade e a manipulação técnico-científicas estão fundidas em novas formas de contrôle social. Pode alguém contentar-se com a supoc;ição de que esta conseqüência anticientífica seja o resultado de uma aplicação social específica da ciência? Creio que a direção geral em que foi aplicada era inerente à ciência pura até mesmo onde não eram objetivados propósitos práticos, e que pode ser identificado o ponto em que a Razão teórica se torna prática social. Nesta tentativa, recordarei ligeiramente as origens metodológicas da nova racionalidade, contrastando-a com as particularidades do modêlo pré-tecnológico discutido no capítulo anterior.

analogia. Então o elo ontológico precário entre Logos e E.ros é rompido, e a racionalidade científica emerge como essencIalmente neutra. Aquilo por que a natureza (incluindo o homem) pode estar batalhando é cientifica~:nte ra~i~nal som 7nt; .em têrmos das leis do movimento - fISlCO, qUlmlco ou blOloglco. Fora dessa racionalidade, vive-se num mundo de valôres, e o!> valôres retirados da realidade objetiva se tornam subjetivos. O único modo de salvar alguma vali dez abstrata e inofensiva para êles parece ser uma sanção metafísica (lei divina e natural). Mas tal sanção não é verificável, não sendo, portanto, realmente objetiva. Os valôres podem ter uma dignidade mais elevada (moral e espiritualmente), mas não são reais e, assim, têm menos importância no assunto real da vida - quanto menos assim fôr, tanto mais serão elevados acima da realidade. A mesma desrealização afeta tôdas as idéias que, por sua própria natureza, não podem ser verificadas pelo método ~ien­ tífico. Independentemente do quanto po~sam. s~r reconhecidas, respeitadas e santificadas, em seu propno direito, so~r~~ por serem não-objetivas. Mas precisamente sua falta ?e ,?bJetlVlda~e as transforma em fatôres de coesão social. As Ideias humamtárias, religiosas e morais são apenas ."ideais:; n~o. pert?rbam indevidamente o estilo de vida estabelecido e nao sao lDvahdadas pelo fato de sere. "1 contraditadas por um comportamento ditado pelas necessidades diárias dos negócios e da política. Se o Bem e o Belo, a Paz e aJustiça, não podem ser extraídos de condições ontológicas ou científico-racionais, não podem, logicamente, invocar para si vali dez e realização u~i­ versais. Em têrmos de razão científica, permanecem uma questao de preferência e nenhuma ressurreição de ~lgu~ tipo de Filosofi~ aristotélica ou tomística pode salvar a sltuaçao, porque ela e refutada a priori pela razão científica. O caráter anticientífico dessas idéias enfraquece fatalmente a oposição à realidade estabelecida; as idéias se tornam meros ideais, e seu conteúdo concreto e crítico se evapora na atmosfera ética ou metafísica.

A quantificação da natureza, que levou à sua explicação em têrmos de estruturas matemáticas, separou a realidade de todos os fins inerentes e, conseqüentemente, separou o verdadeiro do bem, a ciência da ética. Independentemente de como a ciência possa agora definir a objetividade da natureza e as inter-relações entre as suas partes, ela não pode concebê-la cientificamente em têrmos de "causas finais". E independentemente do quão constitutivo possa ser o papel do objeto como ponto de observação, medição e cálculo, êsse objeto não pode desempenhar o seu papel científico como agente ético, estético ou político. A tensão entre Razão, de um lado, e, de outro, as necessidades e carências da população subjacente (que tem sido o objeto da Razão, mas raramente seu sujeito), tem existido desde o início do pensamento filosófico f; científico. A "natureza .las coisas", incluindo a da sociedade, foi definida de modo a justificar a repressão e até mesmo a supressão como perfeitamente racionais. O verdadeiro conhecimento e a verdadeira razão exigem o domínio sôbre os sentidos, se não mesmo a iibertação dêles. A união de Logos e Eros já havia levado Platão à supremacia de Logos; em Aristóteles, a relação entre o deus c o mundo movido por êle é "erótica" somente em têrmos de

Paradoxalmente, contudo, o mundo objetivo, deixado equipado apenas com qualidades quantificáveis, .s~ torna cada vez mais em sua objetividade, dependente do sUJeito. O longo processo 'começa com a algebrização da Geometria, que substit.ui figuras geométricas "visíveis" por operações puramente mentais. E:le encontra sua forma extrema em algumas concepções da

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Filosofia científica contemporânea, segundo as quais todo assunto da Ciência Física tende a se diSsolver em relações matemáticas ou lógicas. A própria noção de uma substância objetiva, lançada contra o sujeito, parece desintegrar-se. De tôdas as direções diferentes, cientistas e filósofos da ciência chegam a hipóteses similares sôbre a exclusão de tipos particulares de entidades. Por exemplo, a Física "não mede as qualidades objetivas do mundo externo e material - elas são apenas os resultados obtidos pela realização de tais operações". I Os objetos continuam a persistir somente como "intermediários convenientes", como "postulações culturais" que se tornam antiquadas. 2 A densidade e a opacidade das coisas se evaporam: o mundo objetivo perde seu caráter "objetável", sua oposição ao sujeito. Carente de interpretação em têrmos de metafísica pitagóricoplatônica, a natureza mate matizada, a realidade científica parece ser realidade ideacional. Trata-se de declarações extremas, rejeitadas por interpretações mais conservadoras, as quais insistem em que, na Física contemporânea, as proposições ainda se referem a "coisas físicas". 3 Mas as coisas físicas se revelam "acontecimentos físicos" e, então, as proposições se referem a (e somente a) atributos e relações que caracterizem vários tipos de coisas e processos físicos. 4 Max Born diz: .. a teoria da relatividade... jamais abandonou tôda tentativa de ai;ibuir propriedades à matéria ... ". Mas "com freq~ência uma quantidade mensurável não é uma propnedade de uma COisa, mas uma propriedade de sua relação com outras coisas... . A maioria da~ medições da Física não diz respeito diretamente a cOisas que nos mteressam, mas a algum tipo de projeção, sendo esta palavra tomada em seu sentido mais amplo possível". 5

E. W. Heinsenberg afirma: Was wir mathematisch festlegen, ist nur zum kleinen Teil ein "objetives Faktum", zum grosseren Teil eine Uebersicht über Moglichkeiten.6

Ora, "acontecimentos", "relações", "projeções", "possibilidades", só podem ser significativamente objetivos para um sujeito - não apenas em têrmos de observabilidade e mensurabilidade, mas em têrmos da própria estrutura do acontecimento ou relação. Em outras palavras, o sujeito aqui envolvido é um sujeito constituinte - ;sto é, um possível sujeito para o qual alguns dados devem ou podem ser concebíveis como acontecimento ou relação. Se êsse fôr o caso, a declaração de Reichenbach ainda será verídica: a de que as proposições da Física podem ser formuladas sem referência a um observador real, e que a "alteração por meio da observação" não decorre do observador humano, mas do instrumento como "coisa física".7 De fato, podemos admitir que as equações estabelecidas pela Física Matemática expressam (formulam) a constelação real dos átomos, isto é, a estrutura objetiva da matéria. Independentemente de qualquer observação e medição, o sujeito "externo" A pode "incluir" B, "preceder" B, "resultar em" B; B pode estar "entre" C, ser "maior do que" C etc. - ainda seria verdade que essas relações implicam localização, distinção e identidade na diferença de A, B e C. Implicam, assim, a capacidade de ser na diferença, de ser relacionado com, '. de um modo específiço, de ser resistente a outras relações etc. Só essa capacidade estaria na própria matéria, e, então, a própria matéria seria objetivamente da estrutura da mente - uma interpretação que contém forte elemento idealista: . .. os objelos inanimados, sem hesitação, sem êrro, simplesmente por sua existência, estão integrando as equações das quais nada sabem. Subjetivamente, a natureza não é da mente - ela não pensa em têrmos matemáticos. Mas, objetivamente, a natureza é da mente - pode ser imaginada em têrmos matemáticos.8

1 Herbert Dingler, em N atun, vol. 168 (1951), p. 630. 2 W. V. O. Quine, From a Logical Point 01 Vie~, Ca~~rid~,e, H~rvard University Press (1953), p. 44. Quine fala do "mi,to dos obJetos flslcos e diZ que "no tocanle à base epistemológica, os obJetos flSICOS e os. deuses [~e Hom~rol diferem apenas em grau e não em espécie" libid.). Mas o mito d~s o~Jetos fislcos é epistemologicamente superior "pelo lato de ter provado ser mais eficaz do que outros mitos como um dispositivo para incorporar uma estrutura controlável ao fluxo da experiência". A avaliação do conceito físico e.m tê!mo! de ':eficaz", "dispositivo" e "controlável" revela os seus elementos mampulatlvo-tecnológlcos. 3 H. Reichenbach, em Philipp G. Frank (ed.), TM Validation 01 .~c~ntlfic Theories (Boston, Beacon Press, 1954), pp. 85 e sego (citado por Adol! Grunbaum). 4 Adolf Grünbaum, ibid., pp. 87 e sego 5 lbid., pp. 88 e sego (o grifo é nosso).

6 "O que estabelecemos matemàlicamenle é 'lato objetivo' sbmenle em pequena parte; em maior parte é uma descrição de possibilidades." "Ober den Begrilf 'Abgeschlossene Theorie' n, em Dialectica, vol. II, n. O I, 1948, p. 333. 7 Philipp G. Frank, loc. cit., p. 85. 8 C. F. von Weizsácker, The History 01 Nature (Chicago, University 01 Chicago Press, 1949), p. 20.

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Uma interpretação menos idealista. é apresentada por Karl Popper,9 o qual afirma que, em seu desenvolvimento histórico, a Ciência Física descobre e define camadas diferentes de uma mesma realidade objetiva. Neste processo, os conceitos historicamente ultrapassados estão sendo cancelados e seu intento está sendo integrado nos que os sucedem - uma interpretação que parece implicar progresso rumo ao cerne real da realidade, isto é, a verdade absoluta. Ou então a realidade se poderá revelar uma cebola sem o núcleo, e o próprio conceito de verdade científica estaria em perigo. Não insinuo que a Filosofia da Física contemporânea negue ou mesmo ponha em dúvida a realidade do mundo exterior, mas que, de um ou de outro modo, suspende o julgamento sôbre o que a realidade em si pode ser, ou considera a própria questão sem significado ou sem resposta. Transformada em princípio metodológico, essa suspensão tem dúplice conseqüência: a) reforça a mudança da ênfase teórica do "Que é ... ? (rt iurív) metafísico para o "Como ... ?" funcional, e b) estabelece uma certeza prática (embora de modo algum absoluta) que, em suas operações com a matéria, está, em sã consciência, livre do cometimento com qualquer substância de fora do contexto operacional. Em outras palavras, teoricamente, a transformação do homem e da natureza não tem quaisquer outros limites objetivos que não os oferecidos pela realidade bruta da natureza, sua resistência, ainda não vencida, ao conhecimento e ao contrôle. Até o ponto em que essa concepção se torna aplicável e eficaz na realidade, esta é abordada como um sistema (hipotético) de instrumentos; o "ser-assim" metafísico cede lugar ao "ser-instrumento". Mais ainda, provada em sua eficácia, essa concepção funciona como um a priori - predetermina a experiência, projeta a direção da transformação da natureza, organiza o todo. Acabamos de ver que a Filosofia da Ciência contemporânea pareceu estar lutando com um elemento idealista e, em suas formulações extremas, movendo-se perigosamente perto de um conceito idealista da natureza. Contudo, o nôvo modo de pensar coloca novamente o idealismo "sôbre seus próprios pés". Hegel resumiu a ontolol!ia idealista: se a Razão é o denominador comum do sujeito ~ do objeto, ela o é como a síntese dos opostos.

Com essa idéia, a ontologia compreendeu a tensão entre sujeito e objeto; foi saturada de concreção. A realidade da Razão foi o término dessa tensão na natureza, na História e na Filosofia. Até o sistema mais extremamente 'monista manteve ainda a idéia de uma substância que se desdobra em sujeito oe objeto - a idéia de uma realidade antagônica. O espírito científico enfraqueceu progressivamente êsse antagonismo. A Filosofia científica moderna bem pode começar pela noção das duas substâncias res cogitans e res extensa - mas ao se tornar a matéria estendida compreensível em equações matemáticas que, traduzidas em tecnologia, "refazem" essa matéria, a res extensa perde o seu caráter como substância independente. A velha divisão do mundo em processos objetivos no tempo e no espaço e a mente na qual êsses processos são refletidos - em outras palavras, a diferença cartesiana entre res eogitans e res extensa - não mais é um ponto de partida apropriado à nossa compreensão da ciência moderna.1 0

A divisão cartesiana do mundo também foi questionada em suas próprias bases. Husserl mostrou que o Ego cartesiano não era realmente, em última análise, uma substância independente, mas, antes, o "resíduo" ou limite da quantificação; parece que a idéia de mundo, de Galileu, como uma res extensa "universal e absolutamente pura" dominou a priori a concepção cartesiana. tt Caso em que o dualismo cartesiano seria decepcionante, e o ego-substância pensante de Descartes seria análogo à res extensa, antecipando o sujeito cientifico da observação e medição quantificáveis. O dualismo de Descartes implicaria de imediato a sua negação; limparia em vez de bloquear o caminho para o estabelecimento de' um universo científico unidimensional no qual a natureza seria "objetivamente da mente", isto é, do sujeito. E êste sujeito está relacionado com o seu mundo de modo muito especial: .. . la nature est mise sous le signe de l'homme aeti!, de [,homme inserivant la teehnique dans la nature. t2

9 Em British Philosophy ln lhe Mid-Cen/ury (N. Y., Macmillan, 1957). ed. C. A. Mace, pp. 155 e seg.. Similarmente: Mario Bunge, Me/ascien//f/c Quer;', (Springfield, Illinois, Charles C. Thomas, 1959), pp. 108 e segs.

tO W. Heisenberg, The Physlcis/'s Concep/ion of Na/ure (Londres, Hutchinson, t958), p. 29. Em sua obra Phys/cs and Philosophy (Londres, Allen and Unwin, 1959), p. 83, Heisenberg escreve: "A 'coisa em si' é para o físico nuclear, se é que êle de fato usa êsse conceito, finalmente uma estrutura matemática, mas essa estrutura é - contruiamente a Kant - indiretamente deduzida da experiência." 11 Die Krisis der Europâischen W issenschaf/en und die /ransunden/ale Phânomen%gie, ed. W. Biemel (Haag, Nijhoff, 1954), p. 81. 12 "A natureza é colocada sob o signo do homem ativo, do homem que inscreve a técnica na natureza." Oaston Bachelard L'Ac/h'itl ra//onal/s/e de /0 phys/que con/emporaine (Paris, Presses Universitaire;, 1951), p. 7, com referência aDie DeulSche Ide%gie, de Marx e Engels (trad. Molitor, pp. 163 e seg.).

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A ciência da natureza se desenvolve sob o a priori tecnológico que projeta a natureza como instrumento potencial, material de contrôle e organiL '.ção. F a apreensão da natureza como instrumento (hipotético) precede o desenvolvimento de tôda organização técnica particular: "O homem moderno toma o Ser em sua inteireza como matéria-prima para a produção e submete a inteireza do mundo-objeto à varredura e à ordem da produção (Herstellen)". .. ... o uso da maquinaria e a produção de máquinas não são técnica em si, mas meramente um instrumento adequado para a realização (Eillrichtung) da essência da técnica em sua matéria-prima objetiva".13

o a priori tecnológico é um a priori político considerandose que a transformação da llatureza compreende a do homem, e que as "criações de autoria do homem" partem de um conjunto social e reingressam nêle. Poder-se-á ainda insistir em que a maquinaria do universo tecnológico é, "como tal", indiferente aos fins políticos - pode revolucionar ou retardar uma sociedade. Um computador eletrônico pode servir ao mesmo tempo a uma administração capitalista ou socialista; um ciclótron pode ser uma ferramenta igualmente eficiente para um grupo bélico ou um grupo pacifista. Essa neutralidade é contestada na discutida declaração de Marx de que "o engenho manual dá-lhe sociedade com o senhor feudal; o engenho a vapor, com o capitalista industrial" .14 E essa declaração é mais adiante modificada pela própria teoria marxista: o modo social de produção, e não a técnica, é o fator histórico básico. Contudo, quando a técnica se torna a forma universal de produção material, circunscreve tôda uma cultura; projeta uma totalidade histórica um "mundo". Poderemos dizer que a evolução do método científico meramente "reflete" a transformação da realidade natural em realidade técnica no processo da civilização industrial? Formular dessa maneira a relação entre ciência e sociedade é admitir dois campos e acontecimentos que se encontram, a saber, I) a ciência e o pensamento científico, com seus conceitos internos

e sua verdade interna, e 2) o uso e a aplicação da clencia na realidade social. Em outras palavras, independentemente do quão estreita a conexão entre os dois acontecimentos, êles não se implicam e definem mutuamente. Ciência pura não é ciência aplicada; conserva sua identidade e a sua validez independentemente de sua utilização. Mais ainda, essa noção de neutralidade essencial da ciência é também estendida à técnica. A máquina é indiferente aos usos sociais que lhe são dados, desde que tais usos permaneçam dentro de suas possibilidades técnicas. Em vista do caráter instrumentalista interno do método científico, essa interpretação parece inadequada. Uma relação mais estreita parece existir entre o pensamento científico e sua aplicação, entre o universo da locução científica e o da locução e comportamento comuns - uma relação na qual ambas se movem sob a mesma lógica e racionalidade de dominação. N um acontecimento paradoxal, os esforços científicos para estabelecer a objetividade rígida da natureza levaram a uma crescente desmaterialização da natureza: A idéia de natureza infinita existindo como tal, essa idéia que temos de abandonar, é o mito da ciência moderna. A ciência começou por destruir o mito da Idade Média. E agora a ciência é forçada por sua própria consistência a se aperceber de que meramente criou outro mito em substituição àquele.1 5

o processo que começa pela eliminação de substâncias independentes e causas finais chega à ideação da objetividade. Mas trata-se de uma ideação muito específica, na qual o objeto se constitui em relação assaz prática com o sujeito: E que é matéria? Em Física Atómica, a matéria é definida por suas possíveis relações com as experiências humanas e pelas leis matemáticas - isto é, intelectuais - a que obedece. Estamos definindo a matéria como um possível objeto de manipulação do homem.16

E se êsse for o caso, então a ciência se tornou ela própria tecnológica: A ciência pragmática tem a visão da natureza apropriada a uma era tecnológica. 17

13 Martin Heidegger. Holzw,~. (Frankfurt, Klo;termann. 1950), pp. 266 e seg •. (tradução nossa). Ver também Vortrâge und Aulsâlze (Pfüllingen, Günther Neske, 1954), pp. 22, 29. 14 The POlerl}' of Philosophy. capítulo II, "Second Observation", em A Handbook 01 Marxism, ed. E. Burns, Nova York, 1935, p. 355.

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C. F. von Weizsâ.cker, The HIsIOr}' 01 Nalurt, loc. c/I., p. 71. Ibid., p. 142 (a enfa>e é nossa). . Ibid., p. 71.

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Desde que êsse operacionalismo se torne o centro do empreendimento científico, a racionalidade assume a forma de construção metodológica; organização e manuseio da matéria como mero material de contrôle, como instrumento que se presta a todos os propósitos e fins -- instrumento per se, "em si". A atitude "correta" com relação ao instrumento é a maneira tecnológica de considerar, o logos correto é tecno-logia. que projeta e reage a uma realidade tecnológica. 18 Nessa reali·· dade, tanto a matéria como a ciência são "neutras"; a objetividade não tem um telas em si, tampouco é estruturada no sentido de um telas. Mas é precisamente êsse caráter neutro o que relaciona a objetividade com um Sujeito histórico específico - a saber, à consciência que predomina na sociedade pela qual e para a qual essa neutralidade é estabelecida. Opera nas próprias abstrações que constituem a nova racionalidade - mais como um fator interno do que externo. O operacionalism.o puro e aplicado, a razão teórica e prática, a emprêsa científica e comercial executam a redução das qualidades secundárias a primárias, a quantificação e a abstração dos "tipos particulares de entidades". Sçm dúvida, a racionalidade da ciência pura é livre de valôres e não estipula quaisquer fins práticos, é "neutra" a quaisquer valôres estranhos que lhe possam ser impostos. Mas essa neutralidade é um caráter positivo. A racionalidade científica favorece uma organização social específica precisamente porque projeta mera forma (ou mera matéria - aqui, os têrmos de outro modo opostos convergem) que pode atender pràticamente a todos os fins. A formalização e a fUllcionalização constituem, anteriormente a tôda aplicação, a "forma pura" de uma prática social concreta. Enquanto a ciência libertou a natureza de fins inerentes e despojou a matéria de tôdas as qualidades que não as quantificáveis, a sociedade livrou os homens da hierarquia "natural" da dependência pessoal, relacionando-os entre si de acôrdo com qualidades quantificáveis Il saber, como unidades da fôrça de trabalho abstratas, 18 Confio em que não serei mal interpretaéo como tendo sugerido que os conceitos da Física Matemática sejam concebidos como "instrumentos". que tenham um intento técnico, prático. Tecno-lógica é. antes, a "intuição" ou apreensão aprior:stica do universo no qual a Ciência se move, no qual ela se constitui em ciência pura. Talvez seja mais claro falar de horizonte instrumentalista da Física Matemática. Ver S'Jzanne Bachelard, La Conseience de rationalité (Paris, Presses Uni· versitaires, 1958). p. 31.

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calculáveis em unidades de tempo. "Em virtude da racionalização das formas de trabalho, a eliminação das qualidades é transferida do universo da ciência para o da experiência cotidiana."19 Haverá, entre os dois processos de quantificação científica e social, paralelismo e causação, ou será sua conexão simplesmente obra de percepção sociológica tardia? A discussão anterior propôs a idéia de que a nova racionalidade científica estava contida em si mesma, em sua própria abstração e pureza, operacional na medida em que se desenvolveu sob horizonte instrumentalista. A observação e a experimentação, a organização e a coordenação metódicas dos dados, proposições e conclusões nunca prosseguem em espaço teórico não-estruturado e neutro. O projeto de cognição envolve operações sôbre o objeto, ou abstração dos objetos que ocorrem num determinado universo da locução e ação. A ciência observa, calcula e teoriza de uma posição no universo. As estrêlas que Galileu observou eram as mesmas na antiguidade clássica, mas o universo diferente da locução e da ação - em suma, a realidade social diferente - abriu a nova direção e o nôvo raio de observação, bem como as possibilidades de ordenar os dados observados. Não me preocupo aqui com a relação histórica entre racionalidade científica e social no início do período moderno. O meu propósito é demonstrar o caráter instrumentalista interno dessa racionalidade científica em virtude da qual ela é tecnologia apriorística, e o a priori de uma tecnologia específica - a saber, tecnologia como forma de contrôle e dominação social. Visto como o pensamento científico moderno é puro, êle não projeta metas práticas particulares nem formas particulares de dominação. Contudo, não existe uma dominação per se. Ao prosseguir, a teoria se abstrai de um contexto teleológico real ou o rejeita - o do universo concreto da locução e da ação em questão. f: dentro dêsse próprio universo que o projeto científico ocorre ou não ocorre, que a teoria concebe ou não concebe as possíveis alternativas, que as suas hipóteses subvertem ou ampliam a realidade preestabelecida. Os princípios da ciência moderna foram uma estrutura apriorística de tal modo que puderam servir de instrumentos conceptuais para um universo de contrôle produtor automotor; o operacionalismo teórico passou a corresponder ao operaciona19 M. Horkheimer e T. W. Adorno, Dialektik der Aufklllrunr, loe. c/t., p. 50 (tradução nossa). 153


lismo p!átic.o. o método científico que levou à dominação cada vez maIS efIcaz da natureza forneceu, assim, tanto os conceitos puros como os instrumentos para a dominação cada vez maior do homem pelo homem por meio da dominação da natureza. A r~zão teóri::a, p~~manecendo pura e neutra, entrou para o ser~Iço da ra~ao pratIca. A fusão resultou benéfica para ambas. HOJe, a d0ll!maçao se perpetua e se estende não apenas através da . ~ecno~ogIa, mas como tecnologia, e esta garante a grande legItImaçao do crescente poder político que absorve tôdas as esferas da cultura. . Ne~se _universo, a tecnologia também garante a grande r~~I?nalIz~7~0 ~a ?ão-liber~ade do home~ e demonstra a impossIbilIdade tecmca de a cnatura ser autonoma de determinar a sua própria vida. Isso porque essa não-liberdade não parece irracional nem política, mas antes uma submissão ao aparato t~cnico que amplia as comodidades da vida e aumenta a produtivIdade do trabalho. A racionalidade tecnológica protege, assim, ~m vez de cancelar, a legitimidade da dominação, e o horizonte mstrumentalista da razão se abre sôbre uma sociedade racionalmente totalitária:

em Logos da servidão contínua. A fôrça libertadora da t~cn.?­ logia - a instrumentalização das coisas - se torna o gnlhao da libertação; a instrumentalização do homem. Essa interpretação ligaria o projeto científico (métod~ e teoria) a um projeto social específico, ante~iormente a to~a aplicação e utilização,. e v~ria a l~gaç~? pr~cIsa~ente na "!aIs íntima forma de raCIOnalIdade cIentIfIca, Isto e, no carater funcional de seus conceitos. Em outras palavras, o universo científico (isto é, não as proposições específicas sôbre a ~str~­ tura da matéria, energia, sua inter-relação etc., mas a pr~jeçao da natureza como matéria quantificável, como orientaçao da apreciação hipotética - e a expressão lógi~o~mate~ática - da objetividade) seria o horizonte de uma pratIca s?cIal .con~~eta que seria preservada no desenvolvimento do projet~ CIentIfICO. Mas mesmo admitindo o instrumentalIsmo mterno da racionalidade científica, essa suposição não estabeleceria a valid~z sócio-lógica do projeto científico. Admiti~do-se que a for~açao dos conceitos científicos mais abstratos amda preserva a mterrelação entre sujeito e objeto n..?m ?~termina~o un}~erso da locução e da ação, o elo entre razao teonca e razao pratIca pode ser entendido de maneiras assaz diferentes. Tal interpretação diferente é oferecida por Jean Piaget em sua "epistemologia genética". Piage~ interpreta a f~rmação de conceitos científicos em têrmos de diferentes abstraçoes de uma inter-relação geral entre sujeito e objeto. A abstração não procede do mero objeto, de modo que o sujeito funcione a~~as como o ponto neutro de ob~e.rvação e m~dição,. n.em do SUjeIto como veículo de Razão cogmtiva pura. PIaget dIstmgue entre os processos de cognição em Matemática e em Física. O primeiro é abstração "ã l'intérieur de l'action comme telle":

On PO/~rrait nommer ~hitosophie autocratique des techniques celle qui prend I ensemble techmque comme un /ieu ou l'on utilise les machines pou~ obtenir de I~ pl/issance. La machine est seulement un moyen; la /m est la conquete de la nature, la domestication des forces naturelles au m?yen, d'u~ premier asservissenunt: la machine est un esc/ave qui sert a fUlre d autres esc/aves. Une pareille inspiration dominatrice et esc/avagiste peut se rencontrer al'ec I/ne requête de liberté pour l'homme. ':Iais it est di/ficite de se libérer en transférant l'esc/avage SUl' d'autres etres, ~ommes, animaux ou machines; régner sI/r un peuple de machines asservlssant le monde entier, c'est encore régner, et tout regne suppose l'acceptation des schemes d'asservissement.2o

A dinâmica incessante do progresso técnico se tornou permeada de conteúdo político e o Logos da técnica foi transformado

Contrairement à ce que I'on dit souvent, les être~ math~matiques, ne résultent donc pas d'une abstraction à partir des ob/ets, ,?U1~ blen d une abstraction effectuée au sein des actions comme telles. Reumr, ordonner, déplacer, etc. sont des actions plus générales que penseI', po~sser, et~. parce qu'elles tiennent à la coordination même de toutes les a~tlOns partlculieres et entrent en chacune d' elles à titre de lacteur coordmateur . .. 21

.20 "Poder-se-á chamar autocrática uma filosofia da técnica que toma o todo t~Cn1CO como local. em que as máquinas são usadas para obter fôrça. As máquinas sao a!lenas um !'leIO; o fim é a con~uista. da natureza, ~ domesticação das fôrças naturaIS por meIO de uma escravlZaçao p.nmordlal: a. maquina é um escravo que serve: para fazer outros escravos. Tal Impulso dommador e escravizador pode cammhar ~aralelamente com _a busca da Iil,>erdade humana. Mas é dificil que a pessoa se. hbe.rte ~la tr'!.nsferencla da escra:yldão para outros sêres. homens, animais !lu . máq~mas, remar sobre uma populaçao de máquinas subjugando o mundo mteIrO al!,da é remar, e todo reino supõe a aceitação dos planos de sujeição." GIIbert Slmondon, Du Mode d'uisle"ce des obiels lech"iques (Paris Aubier 1958) p. 127. ' , ,

21 "Contràriamente ao que é com freqüência afirmado, as entidades matemáticas não são portanto, o resultado de uma abstração baseada e.m objetos, mas, antes, ~e uma ab;tração feita em meio de ações como tal. Reumr, orde~ar, mover-se s~o ações mais gerais do que pensar, empurrar etc., porque IDSlstem na própna coordenação de tôdas as açóes particulares e porque entram em cada uma delas como fator coordenador." /"'roduclio" li I'épislémologie gl"II,que, vol. 111 (Presses Universitaires, Paris, 1950), páll. 287.

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Assim, as proposições matemáticas expressam "une aceomodation générale à l'objet" - em contraste com as adaptações particulares que são característica das verdadeiras proposições em Física. A lógica e a lógica matemática são "une aetion sur l'objet quelconque, c'est-à-dire une action accomodée de façon générale";22 e essa ação tem validez geral, uma vez que cette abstraction ou dilférenciation porte jusqu'au sein des coordinations héréditaires, puisque les mécallismes coordillateurs de l'action tiennent toujours, en leur source, à des coordillations réflexes et instinctives.23

Em Física, a abstração procede do objeto, mas resulta de ações específicas por parte do sujeito, de modo que abstração supõe necessàriamente uma forma lógico-matemática, porque des actions particulieres ne donnent Ueu à une cOllllaissance que coordon. nées entre elles et que cette coordination est, par sa nature même, logico-mathématique.24

A abstração, em Física, leva necessàriamente de volta à abstração lógico-matemática e esta é, como coordenação pura, a forma geral da ação - "ação como tal" ("l'action comme tel/e"). E essa coordenação constitui objetividade porque conserva estruturas hereditárias, "reflexivas e instintivas". A interpretação de Piaget reconhece o caráter prático interno da razão teórica, mas o extrai de uma estrutura geral de ação que, em última análise, é uma estrutura hereditária, biológica. O método científico assentaria finalmente numa fundação biológica que é supra- (ou antes, infra-) histórica. Mais ainda, admitindo-se que todo conhecimento científico pressupõe a coordenação de ações particulares, não vejo por que tal coordenação seja "por sua própria natureza" lógico-matemática - a não ser que as "ações particulares" sejam as operações científicas da Física moderna, caso em que a interpretação seria circular. Em contraste com a análise assaz psicológica e biológica de Piaget, Husserl apresentou uma epistemologia genética foca22 lbid., p. 288. 23 "Essa abstração ou diferenciação se estende ao próprio centro das coordenações hereditárias porque os mecanismos coordenadores da ação estão semore ligados, em sua fonte. a coordenações por reflexo e instinto." Ibid., p. 289. 24 "As ações particulares só resultam em conhecimento se estão coordenadas entre si e se essa coordenação 6, em sua própria natureza, lógico-matemática." lbid., p. 291.

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lizada na estrutura sócio-histórica da razão científica. Farei referência à obra de Husserl 25 somente no quanto frisa até que ponto a ciência moderna é a "metodologia" de uma realidade histórica predeterminada dentro de cujo universo ela se move. Husserl parte do fato de a matematização da natureza ter resultado em conhecimento prático válido: na construção de uma realidade "ideacional" que poderia ser eficazmente "correlacionada" com a realidade empírica (pp. 19; 42). Mas essa realização científica se reportou a uma prática pré-científica que constituiu as bases originais (o Sinnesfundament) da ciência de Galileu. Essas bases pré-científicas da ciência no mundo da prática (Lebenswelt), que determinaram a estrutura teórica, .não foram questionadas por Galileu; mais ainda, foram escondIdas (verdeekt) pelo ulterior desenvolvimento da ciência. O resultado foi a ilusão de que a matematização da natureza houvesse criado uma "verdade autônoma (eigenstandige) absoluta" (pp .. 49 e segs.), quando, na realidade, permaneceram um, método e u~a técnica específicos para o Lebenswelt. O veu (ldeenkleld) ideacional da ciência matemática é, assim, um véu de símbolos que representa e, ao mesmo tempo, mascara (vertritt e verkleidet) o mundo da prática (p. 52). Quais são o intento e o conteúdo pré-científicos originais preservados na estrutura conceptual da ciência? A medição, na prática descobre a possibilidade do uso de certos formatos, formas' e relações básicos que são universalmente "disponíveis como idênticamente os mesmos para determinar e calcular exatamente objetos e relações empíricos" (p. 25). O método científico conserva (e mascara), através de tôda abstração e generalização, sua estrutura pré-científico-técnica; ? desenvolvimento daquele representa (e mascara) o desenvolvimento desta. Assim a Geometria clássica "idealiza" a prática do levantamento e da ~edição das terras (Feldmesskunst). A Geometria é a teoria da objetivação prática. Sem dúvida, a Álgebra e a lógica matemática constroem uma realidade ideacional absoluta, livre das incertezas e particularidades incalculáveis do Lebenswelt e dos objetos que nêle vivem. Contudo, essa construção ideacional é a teoria e a técnica de "idealizar" o nôvo Lebenswelt: 25

D~

~lIo1orie.

K,Is/s de, Eu,opâ/.chen Wissenschaften und die t,an.undentak Ph8noIDe.

cit.

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Na P!átic~ matemátic~. _ alcanç.am?s o 9ue nos é negado na prática eptpmca, l~tO é~ exatldao. POIS e posslvel determinar as formas em termos ~e Identidade absoluta... Como tal, elas se tornam universalmente disponíveis e utilizáveis... (p. 24).

A coordenação (Zuordnung) do mundo ideacional com o mundo empírico nos permite "projetar as regularidades antevistas do Lebenswelt": Uma ~~z de posse das fórmulas, fica-se de posse da previsão desejável na pratica.

da expenencia e dentro do universo de realidade. Na formulação de Husserl; "o universo concreto da causalidade se cada" (p. 112) - mas o mundo da riência,

fins formado por essa na ciência de Galileu, torna matemática aplipercepção e da expe-

no qual vivemos tôda a nossa vida prática, permanece como aquilo que é, em sua estrutura essencial, em sua própria causalidade concreta, inalterado ... (p. 51; o grifo é nosso).

Ora, precisamente pelo fato de a cIencia de Galileu ser, na formação de seus conceitos, a técnica de um Lebenswelt específico, ela não transcende e não pode transcender êsse Lebenswelt. Permanece essencialmente dentro da estrutura básica

Uma declaração provocadora que é fàcilmente minimizada, e tomo a liberdade de fazer um possível excesso de interpretação. A declaração não se refere simplesmente ao fato de, a despeito da Geometria Não-Euclidiana, ainda percebermos e agirmos em espaço tridimensional; ou ao de, a despeito do conceito "estatístico" de causalidade, ainda agirmos, com senso comum, de acôrdo com as "velhas" leis da causalidade. Tampouco a declaração contradiz as perpétuas alterações ocorridas no mundo da prática cotidiana como resultado da "Matemática aplicada". Muito mais pode estar em:ôgo: a saber, o limite inerente da ciência e do método científico estabelecidos, em virtude do qual êstes ampliam, racionalizam e garantem o Lebenswelt comum sem alterar a sua estrutura existencial - isto é, sem visualizar um modo de "ver" qualitativamente nôvo e relações qualitativamente novas entre os homens e entre o homem e a natureza. Com relação às formas institucionalizadas de vida, a ciência (tanto pura como aplicada) teria, assim, uma função estabilizadora, estática e conservadora. Até mesmo as suas conquistas mais revolucionárias seriam apenas construção e destruição em harmonia com uma experiência e uma organização específicas da realidade. A autocorreção contínua da ciência - a revolução de suas hipóteses que está contida em seu método propulsiona e amplia, ela própria, o mesmo universo histórico, a mesma experiência básica. Conserva o mesmo a priori formal que favorece um conteúdo muito material e prático. Longe de minimizar a modificação fundamental que ocorreu com o estabelecimento da ciência de Galileu, a interpretação de Husserl focaliza o rompimento radical com a tradição pré-Galileu; o horizonte de pensamento instrumentalista foi de fato um nôvo horizonte. Criou um nôvo mundo de Razão teórica e prática, mas permaneceu comprometida com um mundo histórico específico que tem seus limites evidentes - tanto na teoria como na prática, tanto nos seus métodos puros como aplicados.

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- a previsão daquilo que se deve esperar na experiência da vida concreta (p. 43). Husserl frisa as conotações técnicas pré-científicas da exatidão e fungibilidade matemáticas. Essas noções centrais da c~~nc~a moderna não emergem como meros subprodutos de uma ~le~cla pura, mas c_orno. pe~t~ncentes à sua estrutura conceptual mbma. (\ abstraçao cIentifIca da concreção, a quantüicação das qualIdades que fornece tanto exatidão como vali dez universal, envolvem uma experiência concreta específica do Lebenswelt - um modo específico de "ver" o mundo. E êsse "ver". a despeito de seu caráter "puro" desinteressado, é ver dentro de um contexto prático .que tem um propósito. ~le é antecipador (Voraussehen) e proJetante (Vorhaben). A ciência de Galileu é a ciência da· antecipação e projeção metódicas e sistemáticas. Mas -:-: e isso é decisivo - de uma antecipação e projeção especIfIcas - a saber, as que experimentam, compreendem e moldam .0 mundo em têrmos de relações calculáveis e previsíveis en~e. unIdad~ exataf!1ente definíveis. Neste projeto, a quantificabilidade unIversal e um requisito para a dominação da natureza. As quantidades individuais não-quantificáveis se erguem no caminho da organização dos homens e das coisas de acôrdo com o poder mensurável a ser extraído delas. Mas trata-se de projeto sócio-econômico específico, e a consciência que empreende êsse projeto é o sujeito oculto da ciência de Galileu·' esta , ,. e a tecnIca, a arte da antecipação levada ao infinito (ins Unendliche erweiterte Voraussicht: p. 51).


A discussão precedente parece sugerir não apenas as limitações e os preconceitos íntimos do método científico como também sua subjetividade histórica. Mais ainda, parece implicar a necessidade de algum tipo de "Física qualitativa", ressurreição ~as. ~ilosofias teológicas etc. Admito que tal suspeita seja JustifIcada, mas, a esta altura, posso apenas asseverar que não foram visadas tais idéias obscurantistas. 26 Independentemente de como se definam verdade e objetividade, elas continuam relacionadas com os agentes humanos da teoria e da prática e com a capacidade dêstes para compreender e modificar o seu mundo. Esta capacidade depende, por sua vez, do quanto a matéria (seja ela o que fôr) seja reconhecida e entendida como aquilo que ela é em tôdas as formas particulares. Nesses têrmos, a ciência contemporânea tem validez objetiva imensamente maior do que as suas predecessoras. Poder-se-á até acrescentar que, no presente, o método científico é o único a que se pode atribuir tal validez; a influência recíproc:a de hipóteses e fatos observáveis valida as hipóteses e estabelece os fatos. O ponto que estou tentando mostrar é que a ciência, em virtude de seu próprio método e de seus conceitos, projetou e promoveu um universo no qual a dominação da natureza permaneceu ligada à dominação do homem - uma ligação que tende a ser fatal para êsse universo em seu todo. A natureza, cientificamente compreendida e dominada, reaparece no aparato técnico da produção e destruição que mantém e aprimora a vida dos indivíduos enquanto os subordina aos senhores do aparato. Assim, a hierarquia racional se funde com a social. Se êsse fôr o caso, então a mudança na direção do progresso, que pode romper essa ligação fatal, também afetaria a própria estrutura da ciência - o projeto científico. Suas hipóteses, sem perder seu caráter racional, se desenvolveriam num contexto experimental essencialmente diferente (o de um mundo apaziguado); conseqüentemente, a ciência chegaria a conceitos de natureza essencialmente diferente e estabeleceria fatos essencialmente diferentes. A sociedade racional subverte a idéia de Razão. Mostrei que os elementos dessa subversão, as noções de outra racionalidade, estiveram presentes na história do pensamento desde o seu inIcio. A idéia antiga de um estado no qual o Ser atinge sua realização, no qual a tensão entre o "é" e o "deve" é resolvida no ciclo de um retôrno eterno, participa da 26

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metafísica da dominação. Mas também pertence à metafísica da libertação - à reconciliação de Logos e Eros. Essa idéia visualiza a interrupção da produtividade repressiva da Razão, o fim da dominação na satisfação. As duas racionalidades contrastantes não podem ser simplesmente correlacionadas com o pensamento clássico e moderno, respectivamente, como na formulação de John Dewey "do gôzo contemplativo para a manipulação e o contrôle eficazes", e "do conhecimento como um gôzo das propriedades da natureza. .. para o conhecimento como um meio de contrôle secular".27 O pensamento clássico foi suficientemente comprometido com a lógica do contrêJe secular e há um componente suficiente de acusação e recusa no pensamento moderno para viciar a formulação de John Dewey. A Razão, como pensamento e comportamento conceptuais, é necessàriamente profundo conhecimento, dominação. Logos é lei, regra, ordem, em virtude do conhecimento. Ao subordinar casos particulares sob um universal, ao submetê-lo ao seu universal, o pensamento alcança domínio sôbre os casos particulares. Torna-se capaz não apenas de compreendê-los como também de agir sôbre êles, de os controlar. Contudo, embora todo pensamento fique sob o jugo da lógica, a manifestação dessa lógica é diferente nos vários modos de pensar. A lógica formal clássica e a lógica simbólka moderna, a lógica transcendente e a lógica dialética - domina~, cada uma delas, um universo diferente da locução e da expenência. Tôdas se desenvolveram dentro do contínuo histórico da dominação ao qual rendem tributo. E êsse contínuo confere aos modos de pensar positivos seu caráter conformista e ideológico; aos de pensar negativo, seu caráter especulativo e utópico. Podemos agora, à guisa de resumo, tentar identificar com maior clareza o sujeito oculto da racionalidade científica e os fins ocultos, em sua forma pura. O conceito científico de uma natureza universalmente controlável projetou a natureza como matéria-em-função infindável, mero material da teoria e da prática. Sob essa forma, o mundo-objeto entrou na construção de um universo tecnológico - Uhl universo de instrumentos mentais e físicos, de meios em si. Assim, trata-se de um sistema verdadeiramente "hipotético", dependendo de um sujeito validador e verificador. 27 John Dewcy, The Ques: lor Certaint}· (Nova York, Mint'ln, Balch and Co., 1929), pp. 95, HiO.

Ver capítulos 9 e lO, adiante.

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Os processos de validação e verificação podem ser puramente teóricos, mas jamais ocorrem no vácuo e jamais terminam numa mente privada, individual. O sistema hipotético de formas e funções se torna dependente de outro sistema - um universo preestabelecido de fins, no qual e para o qual se desenvolve. O que pareceu estranho, alheio ao projeto teórico se revela como parte de sua própria estrutura (método e conceito); a objetividade pura se revela como objeto para uma subjetividade que garante o Telos, os fins. Na construção da realidade tecnológica, não há uma ordem científica puramente racional; o processo da racionalidade tecnológica é um processo político. Somente no medium da tecnologia, o homem e a natureza se tornam objetos fungíveis de organização. A eficácia e a produtividade universais do aparato ao qual são subordinados vela os interêsses particulares que organizam o aparato. Em outras palavras, a tecnologia se tornou o grande veículo de espoliação - espoliação cm sua forma mais madura e eficaz. A posição social do indivíduo e sua relação com os demais não apenas parecem d~terminadas por qualidades e leis objetivas, mas também essas leis e qualidades parecem pt:rder seu caráter misterioso e incontrolável; aparecem como manifestações calculáveis da racionalidade (científica). O mundo tende a tornar-se o material da administração total, que absorve até os administradores. A teia da dominação tornou-se a teia da própria Razão, e esta sociedade está fatalmente emaranhada nela. E os modos transcendentes de pensar parece transcenderem a própria Razão. Sob tais condições, o pensamento científico (científico no sentido mais amplo, em contraposição a pensamento toldado, metafísico, emocional, ilógico) assume, fora das Ciências Físicas, a forma de um formalismo puro e auto-suficiente (simbolismo), de um lado, e, de outro, a de um empirismo total. (O contraste não é um conflito. Veja-se a aplicação assaz empírica da Matemática e da lógica simbólica nas indústrias eletrônicas.) Com relação ao universo estabelecido da locução e do comportamento, a não-contradição e a não-transcendência são os denominadores comuns. O empirismo total revela sua função ideológica na Filosofia contemporânea. Com respeito a essa função, alguns aspectos da análise lingüística serão discutidos no capítulo seguinte. Essa discussão se destina a preparar o terreno para a tentativa de mostrar as barreiras que impedem êsse empirismo de entrar em luta com a realidade e de estabelecer (ou antes, restabelecer) os conceitos que podem romper essas barreiras.

A redefinição do pensamento que ajuda a coordenar .as operações mentais com as da re~li~ade social vis~ a uma terapia; O pensamento está em consonanCla com a reah~ade quando e curado da transgressão além de uma estr~t~ra conceptu:l que é puramente axiomática (Lógica~ Matemabc:) ou entao coextensiva com o universo estabeleCido da locuçao e do comportamento. Assim, a análise lingüística alega curar o pensame?to e a palavra das noções metafísicas que confundem - ~e ,f~n­ tas mas" de um passado menos amadurecid~ e me~os clentlfl~o que ainda assombram a mente, embora nao de~lgnem e ,n.ao expliquem. A ênfase é dada à função terapeutlca da anahse filosófica - correção do comportamento anormal no pensamento e na palavra, remoção de obscuridades, ilusões e extravagâncias, ou, pelo menos,seu desmascaramento. N o capítulo 4, discuti o empirismo terapêutico d.a Socio~o­ gia ao expor e corrigir o comporta~ent~ anormal nas _mstalaçoes industriais, um procedimento que Imphcou a exclusao de conceitos críticos capazes de rela~ionar tal compo~t~mento com .a sociedade em seu todo. Em virtude dessa restnçao, o procedimento teórico se torna imediatamente prático. Idealiza métodos de melhor gerência, p~anejamento m~i~ seguro: maior e~iciênc!a e cálculos mais aproximados. A anahse termma em. aflfmaçao via correção e melhoramento; o empirismo se reafirma como pensamento positivo. A análise filosófica não tem essa aplicação imediata. Comparado às realizações da Sociologi~ e da Psic?l~gia, o tratamento terapêutico do pensamento contmua academlco;. De fato,_ o pensamento exato, a libertação de espectros metaflSlcos e noçoes

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7 A VITORIA DO PENSAMENTO POSITIVO: FILOSOFIA UNIDIMENSIONAL

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sem significado bem podem ser considerados um fim em si. Mais ainda, o tratamento do pensamento na análise lingilistica é seu próprio assunto e seu próprio direito. Seu caráter ideológico não deve ser prejulgado pela correlação da luta contra a transcendência conceptual além do universo da locução estabelecido com a luta contra a transcendência política além da sociedade estabelecida. A semelhança de qualquer Filosofia digna do nome, a linguagem lingüística fala por si e define sua própria atitude para com a realidade. Identifica como sua principal preocupação a denúncia de conceitos transcendentes; proclama como sua estrutura de referência o uso comum das palavras, a variedade do comportamento comum. Com tais características, circunscreve sua posição na tradição filosófica - a saber, no pólo oposto ao dos modos de pensar que elaboraram seus conceitos em tensão e até em contradição com o universo prevalecente da locução e do comportamento. . Em têrmos do universo estabelecido, tais modos de pensar contraditórios são pensamento negativo. "O poder do negativo" é o princípio que governa o desenvolvimento de conceitos, e a contradição se torna a qualidade distintiva da Razão (Hegel). Essa qualidade do pensamento não ficou limitada a certo tipo de racionalismo; foi também um elemento decisivo na tradição empirista. O empirismo não é necessàriamente positivo; sua atitude para com a realidade estabelecida depende da dimensão particular da experiência que funciona como fonte de conhecimento e como estrutura básica de referência. Por exemplo, parece que o sensualísmo e o materialismo são negativos per se quanto a uma sociedade na qual as necessiriades instintivas e materiais não são atendidas. Em contraste, o empirismo da análise lingüística se move numa estrutura que não permite tal contradição - a restrição auto-imposta ao universo behaviorista prevalecente favorece uma atitude intrinsecamente positiva. A despeito da atitude rigidamente neutra do filósofo, a análise previamente comprometida sucumbe ao poder do pensamento positivo. Antes de tentar demonstrar o car;jter intrinsecamente ide 0lógi~o da análise lingüística, tentarei justificar o uso aparentemente arbitrário, derrogatório que dou aos têrmos "positivo" e "positivismo" por meio de ligeiro comentário sôbre as origens dêsses têrmos. Desde que foi pela primeira vez usado, provàvelmente na escola de Saint-Simon, o têrmo "positivismo" abrangeu:

1 A atitude conformista do positivismo vis-à-vis de modos radicalmente nlioconformistas de pensar aparece talvez pela primeira vez na denúncia positivista de Fourier. O próprio Fourier (em La Fausse Industrie, 1835. vol. I, p. 409) viu o comercialismo total da sociedade burguesa como o fruto de "nosso progresso em racionalismo e positivismo". Citado em André Lalande, Voeabulalre Teehnique et CritiqUl! de la Philosophie (Paris, Presses Universitatres de France, 1956), p. 792. Para as várias conotações do têrmo "positivo" na nova Ciência Social e e.m oposição a "negativo", ver Doetrine de Saint-Simon, ed. Bouglé et Halévy (Pafls, Riviêre, 1924), pp. 181 e segs.

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1) a validação do pensamento cogmtlvo pela expenencia dos fatos; 2) a orientação do pensamento cognitivo para as Ciências Físicas como um modêlo de certeza e exatidão; 3) a crença de que o progresso do conhecimento depende dessa orientação. Conseqüentemente, o positivismo é uma luta contra tôdas as idéias metafísicas, contra todos os transcendentalismos e contra todos os idealismos como formas de pensamento obscurantistas e regressivas. O positivismo encontra na sociedade o meio para a realização (e validação) de seus conceitos - harmonia entre teoria e prática, verdade e fatos - desde que a realidade em questão seja cientificamente compreendida e transformada, desde que a sociedade se torne industrial e tecnológica. O pensamento filosófico se transforma em pensamento afirmativo; a crítica filosófica critica dentro da estrutura social e estigmatiza noções não-positivas como mera especulação, sonhos ou fantasias. I O universo da locução e do comportamento que começa a ter expressão no positivismo de Saint-Simon é o da realidade tecnológica. Nêle, o mundo-objeto está sendo transformado em instrumento. Muito do que ainda está fora do mundo instrumental - natureza virgem, selvagem - se apresenta agora ao alcance do progresso científico e técnico. A dimensão metafísica, antes um campo genuíno do pensamento racional, se torna irracional e anticientífica. Com base em suas próprias realizações, a Razão repele a transcendência. Na fase posterior do positivismo contemporâneo, não mais é o progresso científico e técnico o que motiva a repulsão; contudo, a contradição do pensamento não é menos séria, por ser auto-imposta - o próprio método da Filosofia. O esfôrço contemporâneo para reduzir o alcance e a verdade da Filosofia é tremendo, e os próprios filósofos proclamam a modéstia e a ineficiência da Filosofia. Ela deixa intocada a realidade estabelecida; abomina a transgressão. O tratamento desdenhoso das alternativas para o uso comum das palavras, de Austin, e sua difamação do que "concebemos à tarde em nosso gabinete"; a afirmação de Wittgen-


stein de que a Filosofia "deixa tudo como é" - tais declarações! revelam, a meu ver, sado-masoquismo, auto-humilhação e autodenúncia do intelectual cujo trabalho não resulta em realizações científicas, técnicas ou equivalentes. Essas afirmações de modéstia e dependência parecem capturar o e:;tado de ânimo de contentamento íntegro de Hume com as limitações da razão, as quais, uma vez reconhecidas e aceitas, protegem o homem de aventuras mentais inúteis mas deixam-no perfeitamente capaz de se orientar no ambiente em questão. Contudo, quando Hume desmascarou as substâncias, êle disputou poderosa ideologia, enquanto seus sucessores oferecem hoje em dia uma justificativa intelectual para aquilo que a sociedade de há muito conquistou - a saber, a difamação de modos alternativos de pensar que contradizem o universo da locução estabelecido. O estilo em que êsse behaviorismo filosófico se apresenta seria digno de análise. f-Ie parece mover-se entre dois pólos: autoridade pontificadora e fácil sociabilidade. Ambas as tendências estão perfeitamente fundidas no uso repetido que Wittgenstein faz do imperativo com o "du" ("tu") íntimo ou condescendente;3 ou no capítulo inicial de The Concept of Mind, de Gilbert Rylc, no qual a apresentação do "Mito de Descartes" como a "doutrina oficial" sôbre a relação entre corpo e mente é seguida da demonstração preliminar de seu "absurdo", que evoca John Doe, Richard Roe e o que êles pensam a respeito do "Contribuinte Médio". Através de tôda obra dos analistas lingüísticos há essa familiaridade com o homem comum, cuja maneira de falar desempenha papel principal na Filosofia Lingüística. A simplicidade da palavra é essencial, visto que exclui, de início, o vocabulário intelectual da "metafísica"; milita contra a não-conformidade inteligente; ridiculariza o intelectóide. A linguagem de John Doe e Richard Roe é aquela que o homem comum verdadeiramente fala; é a linguagem que expressa o seu comportamento; é, portanto, o sinal da concreção. Contudo, é também o sinal de 2 Para declara,ões similares. ver Emest Gellner. Words and Things (Boston. Beacon Press, 1959). pp. 100. 256 e segs. A proposição de que a Filosofia deixa tudo como é pode ser verdadeira no contexto das Teses sôbre Feuerbach, de Marx {onde ela é ao mesmo tempo negada), ou como autocaracterização do neopoSltivismo, mas como uma proposição geral sôbre pensamento filosófico ela ~ mcorreta. 3 Philo.wphicul I",esli~ation.' (Nova York: Macmi!lan, 1960): "Und deine Skrupel slnd Misn'erstândfllue. [)clne Frugcn het.iehen sich aul Wôrler ..... (p. '(9). /'Denk doch einmoJ" garni~hl an das Verslehen als 'seelischen Vorgang'.' D~"n das is! die RedeweHe, dte d'Ch '"er""i,,1 Sondern frage dich (p 61) "Obalege dir lolgenden Fall ... " (p. 62), e passim. ..... U

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uma falsa concreçã "'. A linguagem que fornece a maior parte do material para a análise é uma linguagem purgada não apenas de seu vocabulário "antiortodoxo", mas também dos meios de expressar quaisquer outros conteúdos que não os fornecidos aos indivíduos por sua sociedade. O analista lingüístico considera essa linguagem purgada um fato consumado e usa a linguagem empobrecida conforme a encontra, isolando-a do que não é nela expressado. embora ela entre no universo estabelecido da locução como elemento e fator de significado. Respeitando a variedade de significados e usos existentes, ao poder e ao senso comum da palavra ordinária, enquanto bloqueia (como material estranho) a análise do que essa palavra diz da sociedade que a fala, a Filosofia Lingüística suprime uma vez mais o que é continuamente suprimido nesse universo de locução e comportamento. A autoriDade da Filosofia dá a sua bênção às fôrças que fazem êsse universo. A análise lingüística se abstrai do que a linguagem ordinária revela ao falar como fala - a mutilação do homem e da natureza. Mais ainda, com demasiada freqüência não é sequer a linguagem ordinária o que guia a análise, mas, antes, átomos de linguagem explodidos, fragmentos tolos da palavra que soam como fala de bebê, tais como "Isso me parece agora um homem comendo papoulas", "fJe viu um tordo", "Eu tinha um chapéu". Wittgenstein dedica muita argúcia e muito espaço à análise de "Minha vassoura está no canto". Cito, como exemplo representativo, uma análise de "Other Minds", de J. L. Austin: 4 Podem ser distinguidas duas maneiras assaz diferentes de ser hesitante: a) Vejamos o caso em que estamos provando um certo gôsto. Podemos

dizer: "Simplesmente não sei do que se trata: jamais provei coisa alguma que se assemelhasse de longe sequer... Não, não adianta: quanto mais penso nisso, tanto mais me confundo: é perfeitamente distinto e perfeitamente característico, assaz singular em minha experiência". Isso exemplifica o caso em que não posso encontrar coisa alguma em minhô experiência pregressa com o que comparar o caso atual: estou certo de que não é apreciàvelmente semelhante a algo que eu tenha provado antes, não suficientemente igual a algo que eu 4 Em Logic and Language, Second Series, ed. A. Flew (Oxford, Blackwell, 1959), pp. 137 e sego (As chamada, de Austin são omitidas.) Aqui também a Filosofia demonstra a sua leal conformidade com o uso ordinário utilizando as abreviações coloquiais da linguagem ordinária. (O autor cita, aqui, as abreviaçõt!i "don't" e "Isn't'\ de "do not" e Ui., not", re')pectivamente, inexistentes no vernáculo. N. do T.)

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conheça como merecendo a mesma descrição. 1:ste caso, conquanto suficientemente distinguível, transforma-se gradualmente no tipo mais comum de caso em que não estou bem certo, ou apenas razoàvelmente certo, ou pràticamentt: certo de que se trata, digamos, do gôsto de louro. Em todos êsses casos. estou tentando reconhecer a coisa atual buscando em minha experiência pregressa algo semelhante, alguma semelhança em virtude da quai ela mereça, mais ou menos positivamente, ser descrita pela mesma palavra descritiva, e estou tendo diferentes graus de êxito. b) O outro caso é diferente, embora muito naturalmente se combine

ao primeiro. Aqui, o que estou tentando fazer é saborear a experiência presente, igualar essa experiência, senli-la Vividamente. Não estou certo de que seja o gôsto de abacaxi: não have~á, talvez, algo nela, um travo, uma ardência, uma falta de ardência, uma sensação de enjôo que não são bem próprios do abacaxi? Não haverá talvez apenas um sinal peculiar de verde que eliminaria a rnalva e dificilmente corresponderia ao heliotrópio? Ou talv('! ,eja vagamente estranho: devo olhar mais atentamente, persc:utar repetidamente: talvez haja, pOSSivelmente, uma sugestão de bruxuleio antinatural, de modo que não parece muito igual à água comum. Há uma falta de agudeza no que realmente sentimos que não será curado ou meramente curado pelo pensar, mas por discernimento mais agudo, pela discriminação sensorial (conquanto seja, naturalmente, verdade que o pensar em outros casos mais pronunciados de noo,sa experiência pregressa pode ajudar e realmente ajuda o nosso poder de discriminação).

Que pode ser objetável nessa análise? Em sua exatidão e clareza, ela é prnvàvelmente inexcedível --- é correta. Mas isso é tudo o que ela e, e afirmo que não apenas isso não é o bastante, mas também é destrutivo do pensamento filosófico e CJ pensamento crítico como tal. Do ponto de vista filosófico, surgem duas perguntas: 1) pode a explicação dos conceitos (ou palavras) jamais se orientar para o universo real da locução ordinária ou terminar nêle? 2) Serão a ex ati dão e a clareza um fim em si, ou estarão comprometidas com outros fins? Respondo afirmativamente no tocante à primeira parte da primeira pergunta. Os exemplos mais banais da palavra falada podem, precisamente em razão de seu caráter banal, elucidar o mundo empírico em sua realidaàe e servir para explicar a nossa maneira de pensar e falar a respeito dêle - como o faz a análise de um grupo de pessoas esperando um ônibus, de Sartre, oua análise dos jornais diários, de Karl Kraus. Tais análises elucidam porque transcendem a concreção imediata da situação e sua expressão. Transcendem-na no sentido àos fatôres que fazem a situação e o comportamento das pessoas que falam (ou

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ficam caladas) naquela situação. (Nos exemplos que acabo de citar, esses fatôres transcendentes tem suas origens identificadas na divisão do trabalho.) Assim, a análise não termina no universo da locução ordinária, indo mais além e abrindo um universo qualitativamente diferente, cujos termos podem até contradizer o universo ordinário. Vejamos outro exemplo: sentenças como "minha vassoura está no canto" podem também ocorrer na Lógicá de Hegel, mas aí seriam reveladas como exemplos impróprios ou até falsos. Seriam apenas reÍugos, a serem ultrapassados por uma locução que, em seus conceitos, estilo e sintaxe é de uma ordem diferente - uma locução para a qual não é de modo algum "claro que tôda sentença de nossa linguagem 'está em ordem como se apresenta"'.5 Dá-se, antes, justamente o oposto - a saber, tôda sentença está tão pouco em ordem quanto o está o mundo que essa linguagem comunica. A redução quase masoquista da palavra ao humilde e ao vulgar é transformada num programa: "se as palavras 'linguagem', 'experiência', 'mundo' têm um uso, este deve ser tão simta'" 6 Dev'e pI es quanto o d as pa Iavras ' mesa," I 'ampa d" a, por. mos "ater-nos aos assuntos de nosso pensamento cotidiano e não desviar-nos e não imaginar que temos de descrever sutilezas extremas ... "7 - como se essa fôsse a única alternativa e como se as "sutilezas extremas" não fôssem a expressão apropriada aos jogos de linguagem de Wittgenstein, mais exatamente do que para a Crítica da Razão Pura, de Kant. O pensamento (ou pelo men0S sua expressão) é não apenas enfiado na camisa-de-fôrça do uso comum, mas também incitado a não pedir e a não buscar soluções além das já existentes. "Os problemas não são resolvidos pelo fornecimento de informação nova, mas pela rearrumação do que sempre soubemos".8 A pobreza auto-estilizada da Filosofia, comprometida, em todos os seus conceitos, com o estado de coisas em questão, suspeita das possibilidades de uma nova experiência. A su.íeição ao império dos fatos estabelecidos é total - somente fatos lingüísticos, não há dúvida, mas a sociedade fala em sua linguagem e nos é dito que devemos obedecer. As proibições são S

Wittgenstein, Philosophical Inlf.Higafions, IDe. cil., p. 45. Ibid., p. 44. Ibid., p. 46. 8 Ibid., p. 47. A tradução não é exata; o texio alemão tem Beibringen Erl<Jhruni para "dando nova informação". 6

7

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rtfller


severas e autoritárias: "A Filosofia não pode de modo algum interferir no uso real da linguagem".9 UE não podemos apresentar espécie alguma de teoria. Não deve haver coisa hipotética alguma em nossas considerações. Devemos abolir tôda explicação e somente a descrição deve tomar o seu lugar".lo Poder-se-á perguntar: que resta da Filosofia? Que resta do pensamento, da inteligência, sem algo hipotético, sem qualquer explicação? Contudo, o que está em jôgo não é a definição ou a dignidade da Filosofia; é, antes, a oportunidade de preservar e proteger o direito, a necessidade de pensar e falar em têrmos outros que não os do uso comum - têrmos que são significativos, racionais e válidos precisamente pelo fato de serem outros têrmos. O que está implicado é a disseminação de uma nova ideologia que empreende a descrição do que está acontecendo (e é tencionado) pela eliminação dos conceitos capazes de compreender o que está acontecendo (e é tencionado) . Para começar, existe uma diferença irredutível entre o universo do pensamento cotidiano e a linguagem, de um lado, e, de outro, o do pensamento filosófico e a linguagem. Em circunstâncias normais, a linguagem ordinária é de fato behaviorista - um instrumento prático. Quando alguém de fato diz: "Minha vassoura está no canto", provàvelmente imagina que outro alguém que tenha perguntado pela vassoura vá retirá-la ou deixá-la onde se encontra, estará satisfeita, ou aborrecida, com a resposta. De qualquer forma, a sentença preencheu a sua função ao causar uma reação behaviorista: "o efeito devora a causa; o fim absorve os meios".1I Em contraste, se, num texto ou locução filosóficos, a palavra "substância", "idéia", "homem", ou "alienação" se torna o sujeito de uma proposição, não ocorre tal transformação do significado em ação behaviorista, nem se tenciona que ocorra. A palavra permanece, por assim dizer, não-preenchida - exceto no pensamento, no qual pode dar origem a outros pensamentos. E, através de longa série de mediações dentro de um contínuo histórico, a proposição pode ajudar a formar e guiar uma prática. Mas até mesmo assim a proposição continua não-preenchida - somente a hybris do idealismo absoluto afirma a tese 9 Ibid .• p. 49. 10 lbid., p. 47. 11 Paul Valéry, "Poésie et pensée abstraite", em Oeu,""., loc. clt., p. 1331. Também "Les DrOlts du poete sur la 1angue". em Piic.. su, I'arl (Paris, GaIlimard, 1934), pp. 47 e sego

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de uma identidade final entre o pensamento e o seu objeto. As palavras pelas quais a Filosofia se interessa jamais podem, portanto, ter um uso "tão simples. ,. quanto o das palavras 'mesa', 'lâmpada', 'porta"'. Assim, a ex ati dão e a clareza não podem ser, em Filosofia, atingidas dentro do universo da locução ordinária. Os conceitos filosóficos visam a uma dimensão do fato e do significado que elucida as frases ou palavras atomizadas da locução ordinária "do exterior" ao mostrar que êsse "exterior" é essencial à compreensão da locução ordinária, Ou, se o próprio universo da locução ordinária se torna o objeto da análise filosófica, a linguagem da Filosofia se torna uma "metalinguagem".u Até mesmo quando ela se move nos têrmos simples da locução ordinária, permanece antagônica. Dissolve o contexto experimental do significado estabelecido no de sua realidade; ela se abstrai da concreção imediata a fim de atingir a verdadeira concreção. Vistos sob êsse aspecto, os exemplos de análise lingüística acima citados se tornam questionáveis como objetos válidos de análise filosófica. Poderá a mais exata e esclarecedora descrição da degustação de algo que pode ou não saber a abacaxi contribuir para a cognição filosófica? Poderá jamais servir de crítica na qual estejam em jôgo condições humanas controversas outras que não as de degustação médica ou psicológica, que não eram, sem dúvida, intentadas na análise de Austin? O objeto de análise, retirado do contexto mais amplo e mais denso no qual o orador fala e vive, é removido do meio universal no qual os conceitos são formados e se tornam palavras, Qual será êsse oontexto universal e mais amplo no qual as criaturas falam e agem e que dá à sua palavra o seu significado - êsse contexto que não aparece na análise positivista, que é a priori deixado de fora tanto pelos exemplos como pela própria análise? f:sse contexto da experiência mais amplo, êsse mundo empírico real, é ainda, hoje em dia, o das câmaras de gás e dos campos de concentração, de Hiroxima e Nagasáqui, dos Cadillacs americanos e Mercedes alemães, do Pentágono e do Kremlin, das cidades nucleares e das comunas chinesas, de Cuba, das lavagens da mente e dos massacres, Mas o mundo empírico é também aquêle em que essas coisas são tidas como fatos con12

Ver p. 184.

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sumados ou esquecidas ou reprimidas ou desconhecidas, no qual as ,criaturas são livres. É um mundo no qual a vassoura que esta no canto ou o gôsto de algo como o abacaxi são importantes, no qual a labuta diária e as comodidades diárias são talvez as únicas coisas que constituem tôda experiência. E êsse s~gundo uni~e:so empírico restrito é parte do primeiro; os podere~ que dmgem o primeiro moldam também a experiência restnta. Sem dúvida, a determinação dessa relação não é trabalho para o pensamento ordinário na palavra ordinária. Caso se trate de encontrar vassouras ou provar abacaxi, a abstração está justificada e o significado pode ser determinado e descrito sem qualquer transgressão do universo político. Mas, em Filosofia, a questão não é encontrar a vassoura ou provar o abacaxi - e mUito." m~nos hoje deve uma Filosofia empírica se basear em expenencla abstrata. Tampouco é essa abstração corrigida se a análise lingüística é aplicada a têrmos e frases políticos. Todo um ramo da Filosofia analítica está empenhado nessa emprêsa, mas o método exclui de imediato os conceitos de uma análise política, isto é, crítica. A tradução operacional ou behaviorista assimila têrmos como "liberdade", "govêrno", "Inglaterra" com "vassoura" e "abacaxi", e a realidade daqueles com a dêstes. A l~nguag~m ?rdi?ária pode, com seu "uso simples", ser de fato de ImportancIa vItal para o pensamento filosófico crítico mas no l~edium dêsse pensamento as palavras perdem sua sim~ pIes ~umIldade e revelam aquêle algo "escondido" que não tem mteresse algum para Wittgenstein. Considere-se a análise de "aqui" e "agora" na Fenomenologia de Hegel, ou (sit venia verbo.') a sugestão de Lênin sôbre como analisar adequadamente "êste copo d'água" sôbre a mesa. Tal análise desvenda a história!3 na palavra cotidiana como uma dimensão oculta do significado - o domínio da sociedade sôbre sua linguagem. E essa descoberta destrói a forma natural e espoliada na qual o universo da locução em questão aparece pela primeira vez. As palavras se r~velam ,c~mo têrmos genuínos não apenas em sentido gramatIcal e 10gIco-formal, mas também material; a saber, como os limites que definem o significado e seu desenvolvimento - os têrmos que a sociedade impõe à locução e ao comportamento. Essa dimensão histórica do significado não mais pode ser eluci13

Ver p.

M~.

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dada por exemplos como "minha vassoura está no canto" ou "há queijo sôbre a mesa". Sem dúvida, tais declarações podem revelar muitas ambigüidades, quebra-cabeças, esquisitices, mas estão tôdas no mesmo âmbito dos jogos de linguagem e tédio acadêmico. Orientando-se no universo espoliado da locução cotidiana e expondo e esclarecendo essa locução em têrmos dêsse universo espoliado, a análise se abstrai do negativo, daquilo que é alheio e antagônico e não pode ser entendido em têrmos do uso estabelecido. Classificando e distinguindo significados e mantendo-os afastados, purga o pensamento e a palavra de contradições, ilusões e transgressões. Mas as transgressões não são as da "razão pura". Não são transgressões metafísicas além dos limites do conhecimento possível, antes abrindo um campo de conhecimento além do senso comum e da lógica formal. Ao barrar o acesso a êsse campo, a Filosofia positivista monta um mundo auto-suficiente todo seu, fechado e bem protegido contra a entrada de fatôres externos perturbadores. A êsse respeito, faz pouca diferença se o contexto validador é o da Matemática, de proposições lógicas ou do costume e do uso. De um ou de outro modo, todos os predicados possIvelmente significativos são prejulgados. O julgamento prejulgador pode ser tão' amplo quanto a língua inglêsa falada, ou o dicionário, ou algum outro código ou convenção. Uma vez aceito, constitui um a priori empírico que não pode ser transcendido. Mas essa aceitação radical do empírico viola o empírico, porque nêle fala o indivíduo mutilado, "abstrato", que só experimenta (e expressa) aquilo que lhe é dado (dado em sentido literal), que dispõe apenas dos fatos e não dos fatôres, cujo comportamento é unidimensional e manipulado. Em virtude da repressão real, o mundo experimentado é o resultado de uma experiência restrita, e a limpeza positivista da mente põe esta em consonância com a experiência restrita. Nessa forma expurgada, o mundo empírico se torna o objeto do pensamento positivo. Com tôda a sua exploração, revelação e esclarecimento de ambigüidades e obscuridades, o neopositivismo não está preocupado com a ambigüidade e a obscuridade grandes e gerais, que é o universo da experiência estabelecido. E deve continuar desinteressado porque o método adotado por essa Filosofia desacredita ou "traduz" os conceitos que poderiam guiar a compreensão da realidade estabelecida em sua estrutura repressiva e irracional '- os conceitos do pen-

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sarnento negativo. A transformação do pensamento crítico em positivo ocorre principalmente no tratamento terapêutico de conceitos universais; sua tradução em têrmos operacionais e behavioristas se iguala de perto à tradução sociológica acima discutida.

o caráter terapêutico da análise filosófica é fortemente acentuado - para curar de ilusões, decepções, obscuridades, enigmas insolúveis, perguntas irrespondíveis, de fantasmas e espectros. Quem é o paciente? Aparentemente, certo tipo de intelectual cuja mente e linguagem não se amoldam aos têrmos da locução ordinária. Há, na verdade, boa porção de psicanálise nessa Filosofia - análise sem a introspecção fundamental de Freud segundo a qual o problema do paciente está arraigado numa doença geral que não pode ser curada pela terapia analítica. Ou, em outro sentido, segundo Freud, a doença do paciente é urna reação de protesto contra o mundo doente em que êle vive. Mas o médico deve desprezar o problema "moral". Tem de restaurar a saúde do paciente, torná-lo capaz de funcionar normalmente em seu mundo. O filósofo não é médico; seu trabalho não é curar os indivíduos, mas compreender o mundo em que êles vivem - entendê-lo em têrmos do que êle tenha feito ao homem e do que pode fazer ao homem. Pois a Filosofia é (historicamente, e sua história ainda é válida) o contrário daquilo que Wittgenstein fêz dela quando êle a proclamou corno a renúncia de tôda teoria, corno o empreendimento que "deixa tudo corno é". E a Filosofia desconhece "descoberta" mais inútil do que aquela que "dá paz à Filosofia, de modo que ela não mais é atormentada por perguntas que põem ela própria em questão".14 E não existe mote mais antifilosófico do que o pronunciamento de Bishop Butler que adorna a Principia Ethica de G. E. Moore: "Tudo é o que é, e não outra coisa" - a menos que "é" seja entendido corno se referindo à diferença qualitativa entre aquilo que as coisas realmente são e aquilo que fazem que elas sejam. A crítica neopositivista ainda orienta o seu principal esfôrço contra as noções metafísicas e é motivado por urna noção de exatidão que é da Lógica formal ou da descrição empírica. 14

Pl,ilosophical lnlesligations, loc. cit., p. 51.

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Quer seja a exatidão buscada na pureza analítica da Lógica e da Matemática, ou de conformidade com a linguagem ordinária - em ambos os pólos da Filosofia contemporânea está a mesma rejeição ou desvalorização dos elementos do pensamento e da palavra que transcendem o sistema de validação aceito. Essa hostilidade é a mais avassaladora quando assume a forma de tolerância - isto é, onde um certo valor verdade é concedido aos conceitos transcendentes numa dimensão separada de significado e significação (verdade poética, verdade metafísica). Pois precisamente a separação de um reservatório especial no qual o pensamento e a linguagem têm permissão para ser legitimamente inexatos, vagos e até contraditórios é a maneira mais eficaz de proteger o universo normal da locução de ser seriamente perturbado por idéias impróprias. Qualquer verdade que possa estar contida na literatura é urna verdade "poética", qualquer verdade que possa estar contida no idealismo crítico é urna verdade "metafísica" - sua validez, se de fato existe, não compromete nem a locução e o comportamento ordinários nem a Filosofia a êles ajustada. Esta nova forma da doutrina da "dupla verdade" sanciona urna falsa consciência ao negar a relevância da linguagem transcendente para o universo da locução ordinária, ao proclamar a não-interferência total. Enquanto o valor verdade daquela consiste precisamente em sua relevância para êste e em sua interferência nêle. Sob as condições repressivas nas quais os homens pensam e vivem, o pensamento - qualquer modo de pensar que não está restrito à orientação pragmática dentro do status quo pode reconhecer os fatos e reagir a êles somente "chegando por trás" dêles. A experiência ocorre diante de urna cortina que esconde, e, se o mundo é a aparência de algo que está por trás da cortina da experiência imediata, então, nas palavras de Hegel, somos nós mesmos que estamos por trás da cortina. Nós mesmos, não corno sujeitos do senso comum, corno na análise lingüística, nem corno os sujeitos "purificados" da medição científica, mas corno os sujeitos e objetos da luta histórica do homem com a natureza e a sociedade. Os fatos são o que são corno ocorrências nessa luta. Sua realidade é histórica, até mesmo onde ainda é a da natureza bruta, inconquistada. Essa dissolução e até subversão intelectual dos fatos em questão é a tarefa histórica da Filosofia e a dimensão filosófica. O método científico também vai além dos fatos e até contra os 175


fatos da expenencia imediata. O método científico se desenvolve na tensão entre aparência e realidade. A mediação entre o sujeito e o objeto do pensamento é, contudo, essencialmente diferente. Em ciência, o medi!lm é o sujeito que observa, mede, ca~c~la e experimen.ta, despido de tôdas as outras qualidades; o sUjeIto abstrato projeta e define o objeto abstrato. Em contraste, os objetos do pensamento filosófico estão relacionados com uma consciência para a qual as qualidades concretas participam dos conceitos e de sua jnter-relação. Os c~>nc~i~os filosóficos conservam e explicam as mediações pré~Ientiflcas (obra da prática cotidiana, da orgar.ização econômica, da ação p~lítica) que fizeram do mundo-objeto aquilo que êle realmente e - um mundo no qual todos os fatos são a~onteci­ mentos, ocorrências num contínuo histórico. A separação entre Ciência e Filosofia é em si um aconteci~ento histórico. A Física aristotélica era' uma p~rte da FilosofIa e, como tal, preparatória para a "primeira ciência" _ Ontologia. O conceito aristotélico de matéria é distinto do conc~ito de Galileu e pós-<?alileu não apenas em têrmos de etapas dIferentes do. desenvolVImento do método científico (e da descoberta d~ ~Iferentes "camadas" da realidade), mas também e, t~lvez, pnnclpalmente, em têrmos de diferentes projetos históncos, de um empreendimento histórico diferente que estabeleceu tanto uma natureza como uma sociedade diferentes. A Física ayistotélica se_ torna objetivamente errada com a nova experiênCIa e apreensao da natureza, com o estabelecimento histórico de u?I. nôvo. suje!t.o e de um nôvo mundo-objeto, e a falsificação da F!SICa anstotehca se estende de volta à experiência e à apreensao passadas e ultrapassadas. IS ., ~as, independentemente de serem ou não integrados na ClenCla, os conceitos filosóficos permanecem antagônicos ao campo da locução ordinária, pois continuam a incluir~ conteúdos qu.e são preenchidos na palavra falada, no comportamento eVld~nte, nas co.ndições ou disposições perceptíveis ou nas propensoes predommantes. O universo filosófico continua, assim, co~ten~o "fantasmas", "ficções" e "ilusões" qu.:: podem ser mais raCIOnaiS do que a sua negação no quanto sejam conceitos que reconheçam os limites e as decepções da racionalidade predominante. Expressam a experiência rejeitada por Wittgenstein, a 15

Ver capítulo 6, especialmente p. 159.

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saber, a de que "contràriamente às nossas idéias preconcebidas, é possível pensar 'isto-e-aquilo', independentemente do que se trate" .16 O abandono ou o esclarecimento dessa dimensão filosófica específica levou o positivismo contemporâneo a se mover num mundo de concreção acadêmica sinteticamente empobrecido e a criar mais problemas ilusórios do que os que destruiu. Raramente uma Filosofia ostentou mais tortuoso esprit de sérieux do que o apresentado em análises como a interpretação de Three Blind Mice num estudo da "Linguagem Metafísica e Ideográfica", com sua discussão de uma "seqüência assimétrica Tríplice princípio-Cegueira-Comundongueria artificialmente construída de acôrdo com os princípios puros da ideografia".l7 Talvez êsse exemplo seja injusto. Contudo, é justo dizer que a mais obscura metafísica não ostentou preocupações artificiais e terminológicas como as que surgiram com relação aos problemas da redução, tradução, descrição, denotação, nomes próprios etc. Os exemplos são hàbilmente conservados em equilíbrio entre seriedade e pilhéria: as diferenças entre Scott e o autor de Waverly; a calvÍCie do atual Rei de França; John Doe avistando-se ou não se avistando com o "contribuinte de impostos médio" Richard Roe na rua; o meu ver neste instante uma mancha vermelha e dizer "isto é vermelho"; ou a revelação do fato de as criaturas com freqüência descreverem as sensações como arrepios, ferroadas, angústias, palpitações, torções, comichões, alfinetadas, calafrios, excitações, pressões, vertigens, anseios, congelamentos, desfalecimentos, tensões, torturas e choques. I8 :E:sse tipo de empirismo substitui o mundo odiado dos fantasmas, mitos, lendas e ilusões metafísicos, um mundo de fragmentos conceptuais ou sensuais, de palavras e expressões que são, então, organizados em uma filosofia. E tudo isso é não apenas legítimo, mas até correto, porque revela até que ponto as idéias, aspirações, lembranças e imagens não-operacionais se tornaram desprezáveis, irracionais, perturbadoras ou sem significado. Ao esclarecer essa confusão, a Filosofia analítica conceptualiza o comportamento na organização tecnológica atual da

I

16 Wittgenstein, loc. clt., p. 47. 17 Margaret Masterman, em British Philosoph}' in lhe Mld-Cenlury, ed. C. A. Mace (Londres, Allen and Unwin, 1957), p. 323. 18 Gilbert Ryle, The Concept 01 Mind, 10L". cll., pp. 83 e sei.

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realidade, mas também aceita os veredictos dessa organização; o desmascaramento de uma velha ideologia se torna parte de uma nova ideologia. Não apenas as ilusões, mas também a verdade são desmascaradas. A nova ideologia encontra sua expressão em declarações como "a Filosofia ;p;:nas declara o que todos admitem", ou a de que o nosso estoque comum de palavras personaliza "tôdas as distinções que os homens acharam valer a pena fazer". Que será êsse "estoque comum"? Incluirá a "idéia" de Platão, a "essência" de Aristóteles, O' Geist de Hegel, o Verdinglichtung de Marx, em qualquer tradução adequada? Incluirá as palavras-chaves da linguagem poética? Da prosa surrealista? E, se assim fôr, contê-Ias-á em sua conotação negativa - isto é, como invalidando o universo do uso comum? Em caso contrário, então todo um conjunto de distinções que os homens acharam digno de reunião é rejeitado, removido para o campo da ficção ou mitologia; uma consciência mutilada, falsa, é estabelecida como a verdadeira consciência que decide sôbre o significado e a expressão daquilo que é. O resto é denunciado - e endossado - como ficção ou mitologia. Cor.tudo, não está claro qual dos lados está empenhado em mitologia. Sem dúvida, mitologia é pensamento primitivo e imaturo. O processo de civilização invalida o mito (isso é quase uma definição de progresso), mas pode também levar o pensamento racional de volta à condição mitológica. Neste último caso, as teorias que identificam e projetam as possibilidades históricas podem tornar-se irracionais, ou, antes, parecer irracionais pelo fato de contradizerem a racionalidade do universo estabelecido da locução e do comportamento. Assim, o mito do Período Áureo e do Milênio está no processo da civilização, sujeito à rariúnalização progressiva.' Os elementos (históricos) impossíveis são separados dos possíveis sonho e ficção separados da ciência, da tecnologia e dos negócios. No século XIX, as teorias do socialismo traduziram o mito primário cm têrmos socioló!!icos - ou antes descobriram nas possibilidades históricas em~ questão ; cem: racional do mito. Contudo, ocorreu então o movimento inverso. Hoje, as noções racionais e realistas de ontem novamente parecem mitológicas quando confrontadas com as condições reais. A realidade das classes trabalhadoras na sociedade industrial avançada torna o "proletariado" marxista um conceito mitológico; a

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realidade do socialismo atual torna um sonho a idéia marxista. A reversão é causada pela contradição entre teoria e fatos uma contradição que ainda não falsifica, por si, a teoria. O caráter anticientífico e especulativo da teoria crítica resulta do caráter específico de seus conceitos, que designam e definem o irracional no racional, a mistificação na realidade. Sua qualidade mitológica reflete a qualidade mistificadora dos fatos em questão a harmonização decepcionante das contradições sociais. A realização técnica da sociedade industrial avançada e a manipulação eficaz da produtividade mental e material oCii'iionaram uma mudança no local da mistificação. Se é significativo dizer-se que a ideologia se torna corporificada no próprio processo de produção, pode também ser significativo sugerir-se que, nessa sociedade, o racional e não o irracional se torna o veículo mais eficaz de mistificação. A idéia de que o crescimento da repressão na sociedade contemporânea se manifestou, na esfera ideológica, primeiro na ascensão das pseudofilosofias irracionais (Lebensphilosophie; as noções de Comunidade contra Sociedade; Sangue e Solo etc.) foi refutada pelo fascismo e pelo nacionalsocialismo. hsses regimes negaram essas Filosofias e suas próprias "Filosofias" irracionais pela racionalização total do aparato. Foi a mobilização total da maquinaria material e mental que .realizou a obra e instalou seu poder mistificador sôbre a sociedade. Serviu para tornar os indivíduos incapazes de ver "por trás" da maquinaria os que faziam uso dela, os que lucravam com ela e os que pagavam por ela. Hoje, os elementos mistificadores estão dominados e empregados na publicidade, propaganda e política da produção. A magia, a bruxaria e a rendição estática são praticadas na rotina diária do lar, da oficina e do escritório e as realizações racionais escondem a irracionalidade do todo. Por exemplo, a consideração científica do problema inquietante da aniquilação mútua --:-_a matemática e o cálculo da matança e da supermatança, a medlçao da disseminação e da relativa disseminação de garoa radiativa, as experiências de resistência em situações anormais - é mistificadora no quanto promove (e até exige) um comportamento que aceita a insanidade. Contra-a tua, assim, um comportamento verdadeiramente racional - a saber, a negativa de continuar com as condições que produzem a insanidade e o esfôrço para afastá-las.

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Contra essa nova mistificação, que transforma a racionalidade em seu oposto, deve ser sustentada a distinção. O racional não é irracional, e a diferença entre um reconhecimento e uma análise exatas dos fatos, e uma especulação vaga e emocional, é tão essencial quanto em qualquer época anterior. O problema está no fato de a estatística, as medições e os estudos locais da Sociologia empírica e da Ciência Política não serem suficientemente racionais. Tornam-se mistificadores no quanto são isolados do contexto verdadeiramente concreto que faz os fatos e determina sua função. fssc contexto é maior do que o das fábricas e oficinas investigadas, das cidades e vilas estudadas, dos setores e grupos cuja opinião pública é sondada ou cuja probabilidade de sobrevivência é calculada, e diferente dêIe. E é também mais real no sentido de criar e determinar os fatos investigados, registrados e calculados. fsse contexto real no qual os sujeitos particulares obtêm sua significação real só é definível dentro de uma (eoria da sociedade. Isso porque os fatôres dos fatos não são dados imediatos da observação, da medição e da interrogação. Êsses só se tornam dados numa análise capaz de identificar a estrutura que mantém juntos as partes e os processos da sociedade e que determina sua interrelação. Dizer que êsse metacontexto é a Sociedade (com "S" maiúsculo) é substancializar o todo para além das partes. Mas essa substancialização ocorre na realidade, é a realidade, e a análise só a pode superar reconhecendo-a e compreendendo o seu alcance e as suas causas. A Sociedade é, na realidade, o todo que exerce o seu poder independente sôbre os indivíduos, e essa Sociedade não é nenhum "fantasma" não-identificável. Tem o seu cerne no sistema de instituições, que são as relações estabelecidas e congeladas entre os homens. A abstração dessa sociedade falsifica as medições, as interrogações e os cálculos - mas os falsifica numa dimensão que não aparece nas medições, nas interrogações e nos cálculos e que, portanto, nã,o entra em conflito com êles e não os perturba. Conservam sua exatidão e são mistificadores em sua própria exatidão.

behaviorista do significado ocorre - a explicação que se destina a exorcizar os velhos "fantasmas" lingüísticos do mito cartesiano e de outros igualmente obsoletos. A análise lingüística sustenta que se Joe Doe e Richard Roe falam do que tém em mente, simplesmente se referem às percepções, noções ou disposições específicas que eventualmente alimentam; a mente é um fantasma verbalizado. Do mesmo modo, a vontade não é uma faculdade real da alma, mas simplesmente um modo específico de disposições, propensões e aspirações específicas. O mesmo se dá com a "consciência", o "eu", a "liberdade" - todos explicáveis em têrmos que designam maneiras ou modos particulares de conduta e comportamento. Voltarei depois a êsse tratamento dos conceitos universais. A Filosofia analítica freqüentemente dissemina a atmosfera de denúncia e investigação por comitê. O intelectual é chamado a depor. Que quer você dizer quando diz ... ? Não está ocultando algo? Você fala uma linguagem suspeita. Você não fala como nós, como o homem comum, mas como um estranho que não pertence ao nosso meio. Temos de reduzi-lo às S'la5 devidas proporções, desmascarar os seus truques, expurgá-lo. Vamos ensiná-lo a dizer o que tem em mente, a "ser claro", a "pôr as cartas na mesa". Naturalmente, não nos impomos a você, à sua liberdade de pensamento e de palavra; você poderá pensar como quiser. Mas, se falar, terá de nos comunicar o seu pensamento - na nossa ou na sua linguagem. Certamente, você poderá falar a sua própria linguagem, mas esta deve ser traduZÍvel e será traduzida. Poderá fazer poesia - está certo. Adoramos a poesia. Mas queremos entender a sua poesia e só poderemos fazê-lo se compreendermos os seus símbolos, suas metáforas e imagens em têrmos da linguagem ordinária. O poeta poderá responder que de fato deseja que a sua poesia seja compreensível e compreendida (essa é a razão para que êle a escreva), mas, se o que êle diz pudesse ser dito em têrmos da linguagem ordinária, provàvelmente tê-lo-ia feito logo de início. fie poderá dizer: A compreensão de minha poesia pressupõe o colapso e a invalidação precisamente daquele universo da locução e do comportamento no qual vocês querem traduzi-la. A minha linguagem pode ser aprendida como qualquer outra (na verdade, é também a sua linguagem) e, então, transparecerá que os meus símbolos, as minhas metáforas i!tc. não são símbolos, metáforas etc. significando exatamente o que dizem. Vocês têm uma tolerância decepcionante. Ao reservarem

Ao desmascarar o caráter mistificador de têrmos transcendentes, noções va!:,as, universais metafísicos e coisas semelhantes, a análise lingüístiea mistifica os têrmos da linguagem ordinária por deixá-los no contexto repressivo do universo estabelecido da locução. f: dentro dêsse universo rl'pressivo que a explicação

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para mim um nicho especial de significado e significação, vocês me garantem isenção da sanidade e da razão, mas, a meu ver, o manicômio está em algum outro lugar. O poeta pode também achar que a sólida sobriedade da Filosofia Lingüística fala uma linguagem assaz imbuída de preconceito e emocional - a dos velhos ou jovens exacerbado ... No vocabulário dêstes há abundância de "impróprio", "excêntrico", "absurdo", "embaraçoso", "esquisito", "tagarelice" e "palavreado". As esquisitices impróprias e embaraçosas têm de ser removidas para que possa prevalecer o entendimento perc.eptível. A comunicação não pode estar fora do alcance das criaturas; os conteúdos que estão além do sentido comum e científico não devem perturbar o universo acadêmico e o universo ordinário da locução. Mas a análise crítica deve dissociar-se daquilo que ela se esforça por compreender; os têrmos filosóficos devem ser diferentes dos ordinários para que possam elucidar o pleno significado dêstes. 19 Pois o universo estabelecido da locução se faz sentir em tôda a extensão dos modos específicos de dominação, organização e manipulação aos quais estão sujeitos os membros de uma sociedade. As criaturas dependem, para ganhar a vida, de patrões, de políticos, de empregos e de vizinhos que fazem que elas falem e se portem como o fazem; são compelidas, pela necessidade social, a identificar a "coisa" (incluindo sua própria pessoa, sua mente, seus sentimentos) com as suas funções. Como sabemos disso? Vendo televisão, ouvindo rádio, lendo jornais e revistas, falando com os demais. Sob tais circunstâncias, a frase falada é uma expressão do indivíduo que a fala e também daqueles que o fazem falar como fala, bem como de qualquer tensão ou contradição que os possa inter-rclacionar. Ao falar a sua própria linguagem, as criaturas falam também a linguagem de seus senhores, de seus benfeitores, de seus anunciantes. Assim, elas não apenas expressam a si mesmas, os seus próprios conhecimentos, sentimentos e aspirações, mas também algo diferente delas mesmas. Ao descreverem "por si mesmas" a situação política, seja a de sua cidade natal, seja a do cenário internacional, elas (e o têrmo "elas" também inclui a nós os intelectuais que conhecemos a situação e a criti19 A Filosofia analítica contemporlnea reconheceu de seu próprio modo essa necessidade como o problema da metalinguagem; ver pp. 171 e 184.

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camos) descrevem o que o "seu" meio de comunicação em massa lhes diz - e isso se funde com o que elas realmente pensam, vêem e sentem. Ao descrevermos uns para os outros os nossos amôres e ódios sentimentos e ressentimentos, devemos usar os têrmos de nosso's anúncios, nossos cinemas, nossos políticos e nossos best sel/ers. Devemos usar os mesmos têrmos para descrever os nossos automóveis, alimentos e móveis, colegas e competidores - e nos entendemos uns aos outros perfeitamente. Tem necessàriamente de ser asúm, porque a linguagem nada tem de particular e pessoal, ou, antes, porque o particular e lessoal. é mediado pelo material lingüístico disp~nível, que e. I?~tenal social. Mas essa situação impede a hnguagem ordmana de preencher a função validadora que ela d~sempenha na. Filosofi~ analítica. "O que as criaturas querem dIzer quando dl~em ... se relaciona com o que não dizem. Ou, o que elas mtentam dizer não pode ser considerado em seu sen.tido imediato - não porque estejam mentindo, mas porque o ~lllverso do pensa~e~to e da prática em que vivem é um Ulllverso de contradlçoes manipuladas. Circunstâncias como essas podem ser irrelevantes para a análise de declarações como "tenho comichões" ou "êle come papoulas", ou "isso me parece vermelho", mas podem. tornar-se seriamente relevantes quando as criaturas de fato dizem algo ("ela simplesmente o amava", "êle ~ insensível'~,. "is~o ~,ã~ é justo", "que posso fazer?") e são vitaiS. para a an~~lse l~ng~~st~ca da ética, da política etc. A não ser ISSO, a ana~l~e lmgwstl~a não pode alcançar qualquer outra exatidão eI?pmca. que nao a extorqui da das criaturas pelo estado de cOisas eXlstent~, e nenhuma outra clareza lhes é permitida nesse estado de cOisas - isto é, a análise permanece dentro dos limites da locução mistificada e decepcionante. Onde ela parece ir além da locução, como em sua~ purificações lógicas, resta apenas o arcabouç.o do mesmo ulllverso. um fantasma muito mais fantasmagórIco do que os combatidos pela análise. Se a Filosofia é mais do que uma simples oc~pação, tem de mostrar os motivos que transformaram a locuçao num universo mutilado e decepcionante. Entregar essa tarefa a uma de suas colegas dos setores de Sociologia e Psicologia é. transformar em princípio metodológico a divisão estabe!eclda do trabalho acadêmico. Tampouco pode a tarefa ser Jogada de lado pela modesta insistência em que a análise lingüística tem 183


apenas o humilde propósito de esclarecer o pensamento e a palavra "turvados". Se êsse esclarecimento vai além da mera enumeração e classificação dos possíveis significados em contextos possíveis, deixando a escolha inteiramente acessível a qualquer um de acôrdo com as circunstâncias, então ela nada mais é do que uma humilde tarefa. Tal esclarecimento abrangeria a análise da linguagem ordinária em setores realmente controversos, o reconhecimento do pensamento turvado onde êle pareça menos turvado, a revelação da falsidade no uso normal e claro. Então, a análise lingüística atingiria o nível no qual os processos sociais específicos que molgam e limitam o universo da locução se tornam visíveis e compreensíveis. Aqui surge o problema da "metalinguagem"; os têrmos que analisam o significado de certos têrmos devem ser diferentes dêstes ou distinguíveis dêles. Devem ser mais do que meros sinônimos que ainda pertencem ao mesmo universo (imediato) da locução, e diferentes disso. Mas para que essa metalinguagem possa realmente transpor o propósito totalitário do universo estabelecido da locução, no qual as diversas dimensões da linguagem estão integradas e assimiladas, deve ser capaz de denotar os processos sociais que determinaram e "fecharam" o universo estabelecido da locução. Conseqüentemente, não pode ser uma metalinguagem técnica, construída principalmente com uma visão de clareza semântica ou lógica. O desiderato é, antes, fazer que a própria linguagem estabelecida fale o que ela esconde ou exclui, porquanto o que deve ser revelado ou denunciado é operante dentro do universo da locução e ação ordinárias, e a linguagem prevalecente contém a metalinguagem. fosse desiderato foi realizado na obra de Karl Kraus. fole demonstrou como um exame "interno" da palavra escrita e falada, da pontuação e até mesmo dos erros tipográficos pode revelar todo um sistema moral ou político. :f:sse exame ainda se move dentro do universo ordinário da locução; não necessita de qualquer linguagem artificial ou de "alto nível" para extrapolar e esclarecer a linguagem examinada. A palavra e a forma sintática são lidas no contexto em que aparecem - por exemplo, num jornal que, num determinado país ou cidade, esposa determinadas opiniões através da pena de determinadas pessoas. O contexto lexicográfico e sintático se abre, assim, para outra dimensão - que não é estranha ao significado e à função da palavra, mas construtiva dos mesmos - a da imprensa vienense durante a Primeira Guerra Mundial e depois dela; a

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[ ."

atitude de seus redatores em face do morticínio, da monarquia, da República etc. À luz dessa dimensão, o uso da palavra, a estrutura da sentença assumem um significado e uma função que não aparecem na leitura "não-mediada". Os crimes contra a linguagem, que aparecem no estilo do jornal, pertencem ao seu estilo político. A sintaxe, a gramática e o vocabulário se tornam atos morais e políticos. Ou, o contexto pode ser estético e filosófico: crítica literária, um discurso perante uma sociedade erudita ou coisa semelhante. Aqui, a análise lingüística de um poema ou de um ensaio confronta o material (a linguagem do respectivo poema ou ensaio) em questão (imediato) com aquêlr. encontrado pelo escritor na tradição literária e por êle transformado. Para tal análise, o significado de um têrmo ou de uma forma exige o seu desenvolvimento num universo multidimensional, em que qualquer significado expressado participa de vários "sistemas" inter-relacionados, que se sobrepõ~m e são antagônicos. Por exemplo, ela pertence: a)

a um projeto individual, isto é, a comunicação específica (um artigo de jornal, um discurso) feita numa ocasião específica com uma finalidade específica;

b)

a um sistema supra-individual estabelecido de idéias, valôres e objetivos do qual participa o projeto individual;

c)

a uma determinada sociedade que integra ela própria projetos individuais e supra-individuais diferentes e até contrastantes.

Exemplificando: um certo discurso, artigo de jornal ou até comunicação particular é redigido por um determinado indivíduo que é o porta-voz (autorizado ou não) de um determinado grupo (ocupacional, residencial, político ou intelectual) numa sociedade específica. :f:sse grupo tem seus próprios valôres, objetivos, códigos de pensamento e comportamento que entram - afirmados ou contraditados - , em diversos graus de percepção e clareza, na comunicação individual. Esta "individualiza", portanto, um sistema supra-individual de significado que constitui uma dimensão diferente da comurlÍcação individual, conquanto fundido com ela. E êsse sistema supra-individual é,

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por sua vez, parte de um campo amplo e onipresente de significado desenvolvido e ordinàriamente "fechado" pelo sistema social dentro do qual e partindo do qual a comunicação ocorre. O alcance e a extensão do sistema social do significado variam consideràvelmente em diferentes períodos históricos e de conformidade com o nível de cultura atingido, mas seus limites são definidos com suficiente clareza se a comunicação se refere a mais do que os implementos e relações incontroversas da vida diária. Hoje, os sistemas sociais do significado unem diferentes Estados nacionais e áreas lingüísticas, e êsses grandes sistemas de significado tendem a coincidir com a órbita das sociedades capitalistas mais ou menos desenvolvidas, de um lado, e, de outro, com a das sociedades comunistas em desenvolvimento. Conquanto a função determinante do sistema social do significado se afirme mais rigidamente no universo controverso e político da locução, ela também opera, de maneira muito mais coberta, inconsciente e emocional, no universo ordinário da locução. Uma análise genuinamente filosófica do significado tem de levar em conta tôdas essas dimensões do significado, porque as expressões lingüísticas participam de tôdas elas. Conseqüentemente, a análise lingüística em Filosofia tem um cometimento extralingüístico. Se ela decide sôbre uma distinção entre o uso legítimo e ilegítimo, entre significado autêntico e ilusório, sentido e ausência de sentido, invoca um julgamento político, estético ou moral. Poder-se-á objetar que tal análise "externa" (entre aspas, porque ela não é realmente externa, mas, antes, o desenvolvimento interno do significado) está especialmente fora de lugar quando a intenção é capturar o significado dos têrmos pela análise de sua função e seu uso na locução ordinária. Mas minha alegação é que isso é precisamente o que a análise lingüística não faz na Filosofia contemporânea. E não o faz pelo fato de transferir a locução ordinária para um universo acadêmico especial que é purificado e sintético até mesmo onde (e justamente onde) está cheio de linguagem ordinária. Nesse tratamento analítico da linguagem ordinária, esta é realmente esterilizada e anestesiada, A linguagem multidimensional é transformada em linguagem unidimensionaI. na qual significados diferentes e em conflito não mais se interpenetram, sendo mantidos separados; a dimensão histórica explosiva do significado é silenciada. 186

O jôgo de linguagem infindáve~ com tijolos, de Witt~enstein. ou os interlocutores Joe Doe e DICk Roe podem serVIr novamente de exemplos. A despeito da clareza simples do exemplo, os interlocutores e suas situações permanecem não-identificados, t;:les são x e y, independentemente do quão intimamente conversem. Mas no universo real da locução, x e y são "fantasmas". Não existem; são o produto do filósofo-analista: Sem dúvid~. a conversa entre x e y é perfeitamente compreenslvel, e o analIsta lingüístico recorre acertadamente à compreensão normal das criaturas ordinárias. Mas na realidade só nos compreendemos uns aos outros através de campos inteiros de mal-entendidos e contradições. O universo real da linguag:m ordinár!a é o da luta pela existência. f: na verdade um unI~erso amblg~o, ,vago e obscuro, e sem dúvida carente de esclareCimento. MaiS amda, tal esclarecimento bem pode preencher uma função terapêutic~, e, se a Filosofia se tornasse terapêutica, ela realmente atendena à sua finalidade. A Filosofia se aproxima dessa meta até o ponto em que liberta o pensamento de sua escravização pel? universo ~~tabe­ lecido da locução e do comportamento, elucida a negatlVldadl' do Estabelecimento (seus aspectos positiv?s já são ab~n?ante­ mente divulgados) e projeta suas alternatIvas. Sem dUVIda, ~ Filosofia contradiz e projeta somente em 'pensame~to, .Ela e ideologia, e êsse caráter ideológico é o destmo da F!losofla que nenhum cientificismo e positivismo pode, superar. Nao Aob~tante, seu esfôrço ideológico pode ser verdadelramen!e terapeutIco -:mostrar a realidade como aquilo que realmente e e mostrar aqUilo que essa realidade impede de ser. , ' . Na época totalitária, a tarefa te~apêutica da FII?sofia se~la uma tarefa política, porquanto o Universo est~belecldo da lmguagem ordinária tende a se coagular num, ~1l1verso tota~mente manipulado e doutrinado, Então, a politIca ~parecena, ,em Filosofia, não como uma disciplina espeCial ou obJeto de, anah~e. nem como uma Filosofia política especial, mas com~ a mt:nçao de seus conceitos para compreender a realidade na?-mutIlada. Se a análise lingüística não contribui para tal entend,ment?; se. em vez disso, ela contribui para incluir o pensamento no circulo do universo mutilado da locução ordinária, ela ,é, na me~h~r das hipóteses, inteiramente inconseqüente. E,. na pIOr das hl~oteses. é uma fuga para o incontroverso, para o meal, para aqUilo que é apenas acadêmicamente controverso,

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A OPORTUNIDADE DAS ALTERNATIVAS


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o

COMPROMISSO HISTÓRICO DA FILOSOFIA

o compromisso da Filosofia analítica com a realidade mutilada do pensamento e da palavra se revela surpreendentemente em seu tratamento dos universais. O problema foi anteriormente mencionado como parte do caráter geral histórico inerente e ao mesmo tempo transcendente dos conceitos filosóficos. Agor2 exige uma discussão mais detalhada. Longe de ser apenas uma questão abstrata de epistemologia, ou uma questão pseudoconcreta de linguagem e de seu uso, a questão da condição dos universais está no próprio centro do pensamento filosófico. Isso porque o tratamento dos universais revela a posição da Filosofia na cultura intelectual - sua função histórica. A Filosofia analítica contemporânea está entregue a exorcizar "mitos" ou "fantasmas" metafísicos como Mente, Consciência, Vontade, Alma, Eu, pela dissolução do intento dêsses conceitos em declarações sôbre operações, desempenhos, podêres, disposições, propensões, aptidões etc. especiais identificáveis. O resultado mostra, de modo estranho, a impotência da destruição - os fantasmas continuam a assombrar. Conquanto tôda interpretação ou tradução possa descrever adequadamente um determinado processo mental, um ato de imaginar o que quero dizer quando digo "eu", ou o que o padre quer dizer quando diz que Maria é uma "boa menina" - nenhuma só dessas reformulações ou sua soma total parece capturar ou mesmo circunscrever o pleno significado de têrmos como Mente, Vontade, Eu, Boa. tsses universais continuam persistindo tanto no uso comum como "poético" e nenhum dêsses usos os distingue dos diversos modos de comportamento ou disposição que, segundo o filósofo analítico, preenche o seu significado. 191


r--'-

I?e fato, tais universais não podem ser validados pela assertiva ~e que denotam um todo que é mais do que as suas partes e dIferente delas. t:les aparentemente o fazem mas êsse "todo" exige uma análise do contexto experimental nã;-mutilado. S~ ~ss~ an~lise supralingüística é rejeitada, se a linguagem ordinana e aceita em seu sentido imediato - isto é se um universo decepcionante da compreensão entre as criat~ras substitui o u~iverso prevalecente de incompreensão e comunicação adminIstrada - então o~ universais incriminados são na verdade traduzíveis, e sua substância "mitológica" pode ser dissolvida em modos de comportamento e disposições. _Contudo, essa dissolução deve ser, ela própria, questionada - nao apenas em nome do filósofo, mas no das criaturas comuns em cuja vida e em cuja locução essa dissolução ocorre. Essa dissolução não. é da autoria e da opinião das criaturas; ela lhes ac.onte~e. e as vIOla, e elas são compelidas, pelas "circunstâncias", a IdentIfIcar sua mente com os processos mentais seu eu com os papéis e as funções que têm de desempenhar err: sua sociedade. Se a Filosofia não compreende êsses processos de tradução e identificação como sendo processos sociais - isto é, como uma mutilação da mente (e do corpo) infligida aos indivíduos por sua sociedade - a Filosofia luta apenas com os fantasmas da substância que ela deseja desmistificar. O caráter mistificador não adere aos conceitos de "mente", "eu", "consciência" etc., mas. à sua tradução behaviorista. A tradução é decepcionante precisamente porque traduz fielmente o conceito em modos de comportamento, propensões e disposições reais e, ao fazê-lo, toma por realidade as aparências mutiladas e organizadas (elas próprias suficientemente reais!).

1. Ver Gllbert Ryle. The Coneept of Mil/d, Ioe. cit., pp. 17 e sego e rassim' J. WlSdom. "MetaphyS1cs and Ver,fication", em Philosophy and PsycllO.Ana/ysis: Oxford, 1953; A. G. N. Fie\'!, lntroduetion to Logie and Language (First Series) Oxford"1955; D. F. Pears, "Upive"als", em ibid., Second Serics. Oxford, 1959; J. O. Urmson, PhlIosophlcaI A~a/;"s, Oxford, 1956; B. Russell, My PhilosophieaI I?neIopment, Nova York, 1959. pp. 223 e seg.; Peter Laslett (ed.), PhiIosoph,', loIltles and Soelet}·, Oxford, 1956, pp. 22 e scgs.

faz sentido perfeito e é até inevitável dizer-se que "a Nação" está mobilizada, que a "Inglaterra" declarou guerra, que estudei na "Universidade de Oxford". Qualquer tradução redutiva de tais declarações parece alterar o seu significado, Podemos dizer que a Universidade não é entidade especial alguma acima de suas diversas academias, bibliotecas etc., mas apenas a forma pela qual estas são organizadas e podemos aplicar a mesma explicação, modificada, às outras declarações. Contudo, a maneira pela qual tais coisas e criaturas são organizadas, integradas e administradas opera como uma entidade diferente de suas partes componentes - a tal ponto que pode decidir sôbre a vida e a morte, como no caso da Nação e da Constituição. As pessoas que executam o veredicto, se é que são identificáveis, não agem como indivíduos, mas como "representantes" da Nação, da Corporação, da Universidade. O Congresso dos Estados Unidos reunido em sessão, o Comitê Central, o Partido, a Junta Jc Diretores e Gerentes, o Presidente, o Cofnitê de Tutela e a Faculdade, reunidos e decidindo sôbre diretrizes, são entidades tangíveis e vigentes acima dos indivíduos que as compõem. São tangíveis nos anais, nos resultados de suas leis, nas armas nucleares que encomendam e produzem, nas nomeações, salários e exigências que estabelecem. Reunidos em assembléia, os indivíduos são porta-vozes (com freqüência sem se aperceberem disso) de instituições, influências, interêsses personalizados em organizações. Na decisão que dão (voto, pressão, propaganda) - ela própria o resultado de instituições e interêsses competidores - a Nação, o Partido, a Corporação, a Universidade são postos em movimento, preservados e reproduzidos - como uma realidade (relativamente) final e universal, sobrepondo-se às instituições ou criaturas particulares a êles subordinadas. Essa realidade assumiu uma existência sobreposta e independente; portanto, as declarações relativas a ela significam um universal real e não podem ser adequadamente traduzidas em declarações relativas a determinadas entidades. No entanto, o impulso para tentar tal tradução, o protesto contra sua impossibilidade indica a existência de algo errado. Para fazerem sentido, "a Nação" ou "o Partido" devem ser traduzíveis em seus constituintes e componentes. O fato de não o serem é um fato histórico que surge no caminho da análise lingüística e lógica. A desarmonia entre o indivíduo e as necessidades sociais, e a falta de instituições representativas nas quais os indivíduos trabalhem para si e tenham voz átiva levam à realidade de

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Contudo, até mesmo nessa batalha dos fantasmas são mobilizadas fôrças que poderão pôr fim à falsa' guerra. Um dos problemas perturbadores, em Filosofia analítica, é o das declarações sôbre universais como "Nação", "Estado", "Constituição Britânica", "Universidade de Oxford", "Inglaterra". 1 Não há entidades especiais correspondentes a êsses universais, no entanto


universais como a Nação, o Partido, a Constituição, a Corporação, a Igreja - uma realidade que não é idêntica a qualquer entidade identificável particular (indivíduo, grupo ou instituição). Tais universais expressam vários graus e modos de espoliação. Sua independência, conquanto real, é espúria pelo fato de ser a de podêres particulares que organizaram o todo da sociedade. Uma retradução que dissolvesse a substância espúria do universal ainda constitui um desiderato - mas é um desiderato político.

2 "Acreditam estar morrendo pela Classe, morrem pelos rapazes do Partido. Acreditam e,tar morrendo pela Pátria. morrem pelos Industriais. Acreditam e.tar morrendo pela liberdade da Pessoa, morrem pela Liberdade dos dividendos. Acreditam estar morrendo pelo Proletariado. morrem por sua Burocracia. Acreditam estar morrendo por ordens de um E,t3do, morrem pelo dinheiro que mantém o Estado. Acreditam e'tar morrendo por uma nação. morrem pelos bandidos que a amordaçam. Acreditam - mas por que se deveria a~reditar, em tal escuridão? Acreditar - morrer? - quando se trata de aprender a viver?" François Perrouxt La Coexistence pacifique, loco cit., vaI. 1\1, p. 631.

Contudo, ainda que concedamos tal realidade a êsses universais políticos, não terão todos os demais universais uma condição assaz diferente? f.les a têm, mas sua análise é mantida com demasiada facilidade dentro dos limites da Filosofia acadêmica. A discussão que se segue não aborda o "problema dos universais", constituindo apenas uma tentativa de elucidar o alcance (artificialmente) limitado da análise filosófica e de indicar a necessidade de ir além dêsses limites. A discussão focalizará novamente os universais substantivos, distintamente dos lógico-matemáticos (conjunto, número, classe etc.), e, dentre aquêles, os conceitos mais abstratos e controversos que constituem o verdadeiro desafio ao pensamento filosófico. O universal substantivo não apenas se abstrai da entidade concreta como também denota uma entidade diferente. A mente é mais do que atos e comportamento conscientes e diferentes dêles. Sua realidade pode ser provisoriamente descrita como a maneira ou modo pelo qual êsses determinados atos são sintetizados, integrados por um indivíduo. Pode-se ser tentado a dizer que sintetizados a priori por uma "percepção transcendental", com o sentido de a síntese integradora, que torna possíveis os processos e atos particulares, os preceder, os moldar e os distinguir de "outras mentes". Contudo, essa formulação agrediria o conceito de Kant, pois a prioridade de tal consciência é empírica, incluindo a experiência, as idéias e as aspirações supra-individuais de determinados grupos sociais. Em vista dessas características, a consciência bem poderá ser chamada disposição, propensão ou faculdade. Não é, contudo, a disposição ou faculdade de um indivíduo entre outros, mas, em sentido estrito, uma disposição geral que é comum, em diversos graus, aos membros individuais de um grupo, classe, sociedade. Nessas bases, a distinção entre consciência verdadeira e falsa se torna significativa. Aquela sintetizaria os dados da experiência em conceitos que refletem a sociedade em questão nos fatos em questão tão plena e adequadamente quanto possível. Essa definição "sociológica" não é sugerida em razão de qualquer preconceito a favor da Sociologia, mas por causa da invasão da sociedade nos dados da experiência. Conseqüentemente, a repressão da sociedade na formação de conceitos é equivalente a um confinamento acadêmico da experiência, uma restrição do significado.

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011 eroit mourir pour la Classe, on meurt pour les gens du Parti. 011 eroit mourir. pour la Pu/rie, 011 meur/ pour les Indus/riels. On eroit mau rir pour la Liberté des Persolllles, 011 mel/rt pour la Liberté des dh'idelldes. Oll noit //luurir pour le Prolé/aria/, on meurt pau r sa Bureal/era/ie. Oll croit mourir sI/r l'ordre d'un E/at, 011 meurt pau r I'Argellt qui le fieM. Oll croit mourir pour une na/ion, on meurt pau r les balldi/s qui la baillO/lIlellt. 011 eroit - mais pourquoi eroirait-on dans une ombre si épaisse: Croire, mourir? .. quand ii s'agit d'apprendre à ~'il're?2

Trata-se de "tradução" genuína de universais substancializados em concreção, e, no entanto, reconhece a realidade do universal enquanto o chama pelo seu verdadeiro nome. O todo substancializado resiste à dissolução analítica, não por ser uma entidade mítica por trás das entidades e dos desempenhos particulares, mas por ser o terreno concreto e objetivo de seu funcionamento no contexto histórico e social dado. Como tal, é uma fôrça· real, sentida e exercida pelos indivíduos em suas ações, circunstâncias e relações. Participam dela (de modo assaz desigual); ela decide sôbre sua existência e sôbre suas possibilidades. O verdadeiro fantasma é de uma realidade assaz convincente - a de um poder separado e independente do todo sôbre os indivíduos. E êsse todo não é meramente uma Gestalt percebida (como em Psicologia), nem um absoluto metafísico (como em Hegel), nem um Estado totalitário (como na Ciência Política inferior) - êle é o estado de coisas estabelecido que determina a vida dos indivíduos.


_Mais ainda, a r~strição normal da experiência produz uma tensao penetrante, ate mesmo um conflito entre "a mente" e os processos mentais, entre a "consciência" e os atos conscientes. Se falo da mente de uma pessoa, não me refiro meramente aos seus processos mentais conforme revelados em sua expressão, sua palavra, seu comportamento etc., nem meramente às su~s disposições ou faculdades conforme experimentadas ou infendas d_a experiência. Também quero dizer aquilo que a pessoa nao expressa, para o que ela não mostra disposição alguma, mas que está, não obstante, presente e determina em grau c~nsiderá~el,. seu comportamento, sua compreensã~, a formaçao e o amblto de seus conceitos. Assim, estão "negativamente presentes" as fôrças "ambientes" específicas que precondicionam sua mente para a repulsão espontanea de certos dados, condições e relações. Estão presentes como material repelido. Sua ausência é uma realidade um fator positivo que explica seus processos mentais reais o significado de suas palavras e de seu comportamento. sigdificado p~ra q~e.m? ~ão apenas para o filósofo profissional, cuja ta,r~fa e corngrr ~ erro que permeia o universo da locução ordinanaj mas tambem para aquêles que sofrem êsse êrro embora podendo não estar cônscios disso - para J oe Doe e Richard Roe. A análise lingüística contemporânea se furta a essa tarefa pela interpretação dos conceitos em têrmos de uma mente empobrecida e precondicionada. O que está em jôgo é o intento não-abreviado e não-expurgado de certos conceitos-chaves sua função na compreensão não-reprimida da realidade - no' pensamento críticl) não-conformista. Serão as observações acima feitas sôbre o conteúdo de realidade de tais universais como "mente" e "consciência" aplicáveis a outros conceitos, tais como os universais abstratos mas substantivos, Beleza, Justiça e Felicidade com os seu~ contrários? Parece que a persistência dêsses universais intraduzíveis como pontos nodais do pensamento reflete a consciência infeliz de um mundo dividido no qual "aquilo que é" fica aquém e até. nega "aquilo que pode ser". A diferença irredutível entre o un~~er~al e. o~ .seus p~rticulares parece estar arraigada na ~xpenencla ~nmana da diferença inconquistável entre potencialidade e realidade - entre duas dimensões do mesmo mundo 196

experimentado. O universal compreende numa só idéia as possibilidades que são realizadas e, ao mesmo tempo, impedidas na realidade. Ao falar de uma bela môça, de uma bela paisagem, de um belo quadro, por certo tenho em mente coisas diferentes. O que é comum a tôdas essas coisas - "beleza" - não é nem uma entidade misteriosa nem uma palavra misteriosa. Pelo contrário, nada é, talvez, mais di reta e claramente experimentado do que a aparência de "beleza" em diversos objetos bonitos. O amiguinho e o filósofo, o artista e o agente funerário podem "definila" de modos muito diferentes, mas todos definem o mesmo estado ou condição específicos - alguma qualidade ou qualidades que formam o contraste bonito com outros objetos. Nessa imprecisão e objetividade, a beleza é experimentada no belo - isto é, ela é vista, ouvida, cheirada, tocada, sentida, compreendida. É experimentada quase como um choque, talvez em razão do caráter de contraste da beleza, que rompe o círculo da experiência cotidiana e abre (por alguns instantes) outra realidade (da qual o SUSlO pode ser um elemento integrante).l Essa descrição é precisamente do caráter metafísico que a análise positivista deseja eliminar por tradução, mas a tradução elimina aquilo que estava por ser definido. Há muitas definições "técnicas" mais ou menos satisfatórias de beleza em estética, mas parece haver apenas uma que preserva o conteúdo experimental de beleza e que é, portanto, a definição menos exata - beleza como uma "promesse de bonheur".4 Ela capta a referência a uma condição dos homens e das coisas e a uma relação entre os homens e as coisas que ocorre momentâneamente enquanto se desvanece, que aparece em tantas formas quantos são os indivíduos e que, ao se desranecer, manifesta o que pode ser. O protesto contra o caráter vago, obscuro e metafísico de tais universais, a insistência na concreção familiar e na segurança protetora do senso comum e científico ainda revelam algo daquela ansiedade primordial que guiou as origens conhecidas do pensamento filosófico em sua evolução da religião para a mitologia e da mitologia para a lógica; a defesa e a segurança ainda são grandes itens tanto do orçamento nacional como do 3 Rilke. Duineser Elegum. Erste Elegie. 4 Stendhal.

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intelectual. A expenencia não-purgada parece mais familiarizada com o abstrato e o universal do que a Filosofia analítica; parece estar engastada num mundo metafísico.

C?S

un~versais

são elementos fundamentais da experiência não como conceitos filosóficos, mas como as própnas qualIdades do mundo com o qual as criaturas defrontam diàriamente. O que é experimentado é, por exemplo, a neve ou a chuva ou ? ~alor; uma rua; um escritório ou um patrão; o amor ou o OdiO. As coisas (entidades) e os acontecimentos particula~es só aparecem em (e até como) um aglomerado e ~m co~tmuo de relações, como incidentes e partes numa conflguraçao geral da qual são inseparáveis; não podem aparecer de qualquer outro modo sem perder sua identidade. São coisas e acontecimentos particulares somente contra um pano de fundo geral que é mais do que um fundo - é o terreno concreto no qual surgem, existem e se vão. f:sse terreno é estruturado em universais como côr, forma, densidade, dureza ou ductilidade, lu~ ou ~scuridão, movimento ou repouso. Nesse sentido, os umversalS parecem designar o "material" do mundo:

Mas precisamente a relação da palavra com um universal substantivo (conceito) permite, segundo Humboldt, imaginar a origem de uma linguagem como partindo da significação de objetos por palavn.. , e passando depois à sua combinação (Zusammenfügung):

~ umver~aJs,

"Podemos talvez definir o 'material' do mundo como o que é designado por pal~vras que, 9uando corretamente usadas, ocorrem como sujeitos de pr~dlcados ou termo~ de relaç~es. Nesse sentido, devo dizer que o m~tenal do I}lUndo con~lste em cOisas como brancura, mais do que em obJetos que tem a propnedade de ser brancos." "Tradicionalidade, qualidad~s tais como. bram:o ou duro ou doce, eram tidas como universais, pore~ s.e a teona acima é válida, são sintàticamente mais análogos a substanCias. "5

o caráter substantivo das "qualidades" indica a origem experimental dos universais substantivos, a maneira pela qual os conceitos se originam da experiência imediata. A Filosofia da Linguagem de Humboldt acentua o caráter experimental do conceito e~ ~ua rel!ção com o mundo; leva-o a supor um parente~co ongmal nao apenas entre conceitos e palavras, mas tambem entre conceitos e sons (Laute). Contudo, se a palavra, c~mo veículo de conceitos, é o "elemento" real da linguagem, nao comunica o conceito pré-fabricado, tampouco contendo o conceito já fixado e "fechado". A palavra meramente sugere um conceito, relaciona-se com um universa1. 6 5 Bertrand Russell. My Philosophical Del'elopment (Nova York Simon and Schuster, 1959), pp. 170-171. ' 6 Wilhelm v. Humboldt, Ueber die Verschiedenheit des mensch/lchen Sprachbaue< . .. , loco cit., p. 197.

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Na realidade, a oração não é formada pelas palavras precedentes, dando-se justamente o contrário: as palavras emergem do todo da oração (aus dem Ganzen der Rede).1

o "todo" que aqui se apresenta deve ser pôsto a salvo de mal-entendidos em têrmos de uma entidade independente, de uma "Gestalt" e de coisas do gênero. O conceito expressa de algum modo a diferença e a tensão entre potencialidade e realidade - identidade nessa diferença, f:le aparece na relação entre as qualidades (branco, duro; mas também bonito, livre, justo) e os conceitos correspondentes (brancura, dureza, beleza, liberdade, justiça). O caráter abstrato dêstes parece designar as qualidades mais concretas como parte-realizações, aspectos, manifestações de uma qualidade mais universal e mais "excelente" que é experimentada no concreto. 8 E, em virtude dessa relação, a qualidade concreta parece representar tanto a negação como a realização do universal. A neve é branca, mas não é "brancura"; uma môça pode ser bela e até mesmo uma beleza, mas não "a beleza"; um país pode ser livre (em comparação com outros) porque o seu povo tem certas liberdades, mas não é a própria personificação da liberdade. Mais ainda, os conceitos só têm significado em contraste experimentado com os seus opostos: o branco com o não-branco, o bonito com o não-bonito. As declarações negativas podem ser por vêzes traduzidas para positivas: "não-branco", para "prêto" ou "cinza"; "não-bonito", para "feio". Essas formulações não alteram a relação entre o conceito abstrato e suas realizações concretas: o conceito universal denota aquilo que a entidade particular é e não é. A tradução pode eliminar a negação oculta pela reformulação do significado numa proposição não-contraditória, mas a declaração não-traduzida sugere uma carência real. Há mais no substantivo abstrato (beleza, liberdade) do que nas qualidades ("bonito", "livre") atribuídas a determinada pessoa, coisa ou condição. 7 lb/d., pp. 74-7S. 8 Ver p. 200.

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o universal substantivo intenta

qualidades que ultrapassam tôda experiência particular, mas persistem na mente, não como uma invenção da imaginação nem como possibilidades mais lógicas, mas como o "material" em que o nosso mundo consiste. Nenhuma neve é branco puro, nem qualquer fera ou homem cruel constitui tôda a crueldade que o homem conhece - conhece como uma fôrça quase inexaurível na história e na imaginação. Ora, há uma grande classe de conceitos - ousamos dizer, os conceitos filosOficamente relevantes - na qual a relação quantitativa entre o universal e o particular assume um aspecto qualitativo, na qual o universal abstrato parece designar potencialidades num sentido concreto e histórico. Independentemente de como "homem", "natureza", "justiça", "beleza" ou "liberdade" possam ser definidos, sintetizam conceitos em idéias que transcendem suas realizações particulares como algo a ser ultrapassado, superado. Assim, o conceito de beleza compreende tôda beleza ainda não realizada; o conceito de liberdade, tôda liberdade ainda não alcançada. Ou, considerando outro exemplo, o conceito filosófico de "homem" visa às faculdades humanas plenamente desenvolvidas que são suas faculdades distintivas e que se apresentam como possibilidades das condições em que os homens realmente vivem. O conceito articula as qualidades que são consideradas "tipicamente humanas". A frase vaga pode servir para elucidar a ambigüidade de tais definições filosóficas - a saber, elas reúnem as qualidades que pertencem a todos os homens em contraste com outros sêres vivos, e, ao mesmo tempo, são declaradas a mais adequada ou a mais elevada realização do homem. 9

Tais universais se apresentam, assim, como instrumentos conceptuais para o entendimento de condições particulares das coisas à luz de suas potencialidades. ~les são históricos e suprahistóricos; conceptualizam o material no qual consiste o mundo experimentado e o conceptualizam com uma visão de suas possibilidades, à luz da limitação, supressão e negação reais destas. Quer a experiência, quer o julgamento, não são privados. Os conceitos filosóficos são formados e desenvolvidos na consciência de uma condição geral num contínuo histórico; são elaborados de uma posição individual dentro de uma sociedade específica, O material do pensamento é material histórico independentemente do quão abstrato, geral ou puro êle se possa tornar na teoria filosófica ou científica. O caráter abstrato.universal e, ao mesmo tempo, histórico dêsses "objetos eternos" do pensamento é reconhecido e claramente declarado em Science and the Modern World, de Whitehead: lo

9 Esta interpretação, que acentua o caráter normativo dos universais, pode estar relacionada com a concepção de universal na Filosofia grega - a saber, a noção .do mais geral como o mais elevado, o primeiro em "excelência", e, portanto, a reahd~de real: ...... a generalidade nâo é um sujeito, mas um predicado, um predIcado precIsamente da primeira ordem implícita na excelência superlativa de desempenho. A generalidade, equivale a dizer, é geral precisamente porque e somente no quanto é 'semelhante' à primeira ordem. Não é geral, portanto, à ~anelfa de um universal lógico ou conceito de classe, mas à de uma norma que, somente por umr umversalmente, consegue unificar uma multiplicidade de partes num só todo. t; importantíssimo perceber-se que a relação dêsse todo com suas partes não é mecânica (todo = soma de suas partes), mas imanentemente teológica (todo = distinto da sarna de suas partes). Mais ainda, essa visão imanentemente teológica da inteireza como funcional sem ser intencional, a despeito de tôda a sua relevância para o fenômeno da vida. nâo é exclusivamente ou mesmo primordialmente uma çategoria 'organísmica'. Está, em vez disso, arraigada na funcionalidade imanente e intrínseca da excelência como tal, que unifica um múltiplo precisamente no processa de 'aristocratizá-lo', !\cndo a excelência e a unidade as próprias condiçôes da plena realidade do múltiplo até mesmo como múltiplo". Harold A. T. Reiche, "General Bec",,,e First": A Presocratic Moti"e in Aristot/e's Theology (Massachusetts In;titute of Technology, Cambridge. 1961, Publications in Humanities n.O 52), pp. 105 e ;eg.

Elementos de experiência, projeção e antevisão de possibilidades reais entram nas sínteses conceptuais - de forma respeitável como hipóteses, de forma desabonatória como "metafísica". São em vários graus irreais porque transgridem o universo estabelecido do comportamento e podem até ser indesejáveis no interêsse da pureza e da exatidão. Certamente, em análise filosófica,

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"Os objetos eternos são... em sua natureza, abstratos. Por 'abstrato' quero dizer aquilo que um objeto eterno é em si - equivale a dizer, sua essência - é compreensível sem referência a alguma experiência particular. Ser abstrato é transcender a ocasião particular do acontecimentq real. Mas transcender uma ocasião real não significa ser desconexo dela. Pelo contrário, afirmo que cada objeto eterno tem a sua própria conexão com cada uma de tais ocasiões, a que chamo o seu modo de ingressar nessa ocasião." "Assim, a condição metafísica de um objeto eterno é a de uma possibilidade para uma realidade. Tôda ocasião real é definida, quanto ao seu caráter, pelo modo como essas possibilidades são realizadas para aquela ocasião."

Pouco avanço real... se pode esperar da expansão de nosso universo para incluir as chamadas entidades possíveis,1I lO 11

(Nova York, Macmillan, 1926), pp. 228 e sego W. V. O. Quine, From a Logical Polnt 01 V/ew, loco c/t., p. 4.


mas tudo. depend~ de como a Navalha de Ockham é aplicada, eqUivale a dizer, que possibilidades devem ser afastadas. A possibilidade de uma organização social da vida inteiramente diferente nada tem em comum com a "possibilidade" de um home~ de chapé~ verde aparecer diante de tôdas as portas a?1anha:. mas trata~l~~ com ~ mes~,a lógica pode servir para a dlfamaçao de possibilidades mdeseJaveis. Criticando a introdução de entidades possíveis, Quine escreve que tal universo superpopuloso é sob muitos aspectos desagradável. Ofende o senso estético, para nós que gostamos de paisagens desérticas, mas isso não é o pior da questão. [Tal] favela de possíveis é um berço de elementos desordeiros. 12

A Filosofia contemporânea raramente conseguiu uma formulação mais estética do conflito entre seu intento e sua função. O síndrome lingüístico de "agrado", "senso estético" e "paisag~m desértic~" invoca o jeito libertador do pensamento de Nietzsche, fenndo a Lei e a Ordem, enquanto o "berço de elementos desordeiros" pertence à linguagem usada pelas autoridades de In~estigação e Informação. O que parece desagradável e desordeiro do ponto de vista lógico, bem pode conter os e~ementos agradáveis de uma ordem diferente, podendo ser, asSim, parte do material de que são feitos os conceitos filosóficos. Nem o mais refinado senso estético nem o conceito filosófico mais exato são imunes à história. Elementos desordeiros entram nos objetos mais puros do pensamento. Estão também destacados do terreno social, e os conteúdos dos quais se abstrai guiam a abstração. Surge assim o espectro do "historicismo". Se o pensamento parte de condições históricas que continuam operando na abstração, haverá alguma base objetiva sôbre a qual possa ser feita distinção entre várias possibilidades projetadas pelo pensamento - distinção entre modos diferentes e opostos de transcendência conceptual? Mais ainda, a questão não pode ser discutida apenas com referência a projetos filosóficos diferentes. l3 Um projeto filosófico é parte de um projcto histórico no quanto é ideológico - isto é, pertence a uma fase e a um nível específi12 Ibid. 13 Para o uso aqui feito do têrmo "projeto", ver Introdução, p. 19.

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f'

cos de desenvolvimento social, e os conceitos filosóficos críticos se referem (não importando quão indiretamente!) a possibilidades alternativas dêsse desenvolvimento. A busca de critérios para julgar entre projetos filosóficos leva, assim, à busca de critérios para julgar entre diferentes projetos e alternativas históricos, entre modos diferentes reais e possíveis de entender e modificar o homem e a natureza. Apresentarei apenas poucas proposições que sugerem que o caráter histórico interno dos conceitos filosóficos, longe de evitar a validez objetiva, define o terreno para a sua validez objetiva. Ao falar e pensar por si, o filósofo fala e pensa de uma determinada posição em sua sociedade e o faz usando o material transmitido e utilizado por essa sociedade. Mas, ao fazê-lo, êle fala e pensa dentro de um universo comum de fatos e possibilidades. Através dos vários agentes e camadas individuais da experiência, através de diferentes "projetos" que guiam os modos de pensar dos negócios da vida diária para a Ciência e a Filosofia, a interação entre um sujeito coletivo e um mundo comum persiste e constitui a validez objetiva dos universais. Ela é objetiva: 1) em virtude da matéria (material) oposta ao sujeito que apreende e compreende. A formação dos conceitos continua determinada pela estrutura da matéria indissolúvel na subjetividade (até mesmo se a estrutura é inteiramente lógicomatemática). Não pode ser válido conceito algum que defina seu objeto pelas propriedades e funções que não pertençam ao objeto (por exemplo, o indivíduo não pode ser definido como capaz de se tornar idêntico a outro; o homem, como sendo capaz de permanecer eternamente jovem). Contudo, a matéria defronta com o sujeito num universo histórico, e a objetividade aparece sob um horizonte histórico; êste é mutável;

2) em virtude da estrutura da sociedade específica na qual ocorre o desenvolvimento dos conceitos. Essa estrutura é comum a todos os sujeitos no respectivo universo. ~les existem sob as mesmas condições naturais, sob o mesmo regime de produção, sob o mesmo modo de explorar a riqueza social, a mesma herança do passado, o mesmo âmbito de possibilidades. Todos os conflitos e diferenças entre classes, grupos e indivíduos se desdobram dentro dêsse arcabouço comum. 203


Os objetos do pensamento e da percepção, conforme se apre~;nta.m . a~~ inAdivíduos anteriormente a qualquer interpretaçao subjetIva, tem em comum certas qualidades primordiais, ~e~tencentes a estas duas camadas da realidade: 1) à estrutura flSIca ,c~atur~l), ~a matér~a e 2) à forma adquirida pela matéria na.pratIca hlstonca coletIva que a transformou (a matéria) em objetos para um sujeito. As duas camadas ou aspectos da objetividade (física e histórica) estão inter-relacionadas de tal ~o~o. qu~ nã? podem ser isoladas uma da outra; o aspecto hlstonco Jamais pode ser eliminado tão radicalmente que reste apenas a camada física "absoluta". Por ex~mplo,. tentei mostrar que, na realidade tecnológica, o mundo-objeto (Incluindo os sujeitos) é experimentado como um mundo de instrumental. O contexto tecnológico predefine a. fo~ma na ~u~l os objetos aparecem. bles aparecem para o CIentlsta a prIOri como elementos livres de valôres ou complexos de ~e~ações! suscetíveis de organização num sistema lógico-matematlco eficaz; e aparecem ao senso comum como o material ~e tr~balho ou lazer, produção ou consumo. O mundo-objeto e, assim, o, mundo de um projeto histórico específico, jamais sendo acesslvel fora do projeto histórico que organiza a matéria, sendo a organização da matéria a um só tempo um empreendimento teórico e prático. Usei o têrmo "projeto" com tanta freqüência porque êle me p~r~c~ acentuar mais claramente o caráter específico da prática hlstonca. ble resulta de um~ escolha determinada, da captura de uma dentre o~tras maneiras de compreender, organizar e transformar a realIdade. A escolha inicial define o âmbito das possibilidades assim abertas e evita possibilidades alternativas que lhe são incompatíveis. . Passo a propor alguns critérios para o valor verdade de diferentes projetos históricos. bsses critérios devem referir-se à maneira pela qual um projeto histórico realiza determinadas possibilidades - não possibilidades formais, mas as que compreendem modos de existência humana. Tal realização está realme?te em andame?to em qualquer situação histórica. Tôda soc~edade estabelecida é tal realização; mais ainda, tende a p~ejulgar a realidade de projetos possíveis, a conservá-los dentro desse arcabouço. Ao mesmo tempo, toda sociedade estabelecida d~~ronta c~m .a realidade ou possibilidade de uma prática his~on~a 9uahtatl~amente diferente que pode destruir o arcabouço InstitucIOnal eXistente. A sociedade estabelecida já demonstrou 204

o seu valor verdade como projeto histórico. Teve êxito em organizar a luta do homem com o homem e com a n~tu=ez?; produz e protege (mais ou menos adequa?aTe~te) a eXlstenC!a humana (sempre com a exceção da eXlstencla dos que sao os párias, estrangeiros-inimigos e outras vítimas do sistema, declarados). Mas contra êsse projeto em plena realização &urgem outros projetos e, dentre êles, os que m?di!icariam aq~êle estabelecido em sua totalidade. f. com referenCia a tal projeto transcendente que os critérios para a verdade histórica objetiva podem ser mais bem formulados como critérios de sua racionalidade : 1) O projeto transcendente deve estar em harmo~a c~m as possibilidades reais abertas ao nível de cultura matenal e Intelectual alcançado. 2) O projeto transcendente, para poder, fa!siiica~ a t.otalida de estabelecida, deve demonstrar a sua propna raclOnahdade superior no tríplice sentido de que a) êle oferece a perspectiva de preservar e melhorar as

realizações produtivas da civilização; b) êle define a totalidade estabelecida em sua própria es-

trutura, suas tendências básicas, suas relações; e c) sua realização oferece maior possibilidade de pacificação da existência, dentro do arcabouço de instituiçõ~s que oferecem maior possibilidade ao livre desenvolVImento das necessidades e faculdades humanas. Obviamente, essa noção de racionalidade contém, especialmente na última declaração, um julgamento de valor, e reItero o que eu disse antes: creio que o próprio conceit~ de Razão se origina dêsse julgamento de valor, e que ~ conceIto de verdade não pode ser divorciado do valor da Razao. "Pacificação", "livre desenvolvimento das necessida~e~ e faculdades humanas" - êsses conceitos podem ser empmcamente definidos em têrmos dos recursos e aptidões intelectuais e materiais disponíveis e do seu uso sist:ro.ático para .aten~ar a luta pela existência. Esta é a base obJetlva da raclOnahdade histórica. 205


Se o próprio contínuo histórico fornece a base objetiva para determinar a verc'lde de diferentes projetos históricos, determinará êle também a seqüência e os limites dêstes? A verdade histórica é relativa; a racionalidade do possível depende da do real, a verdade do projeto transcendente depende da do projeto em realização. A ciência aristotélica foi falsificada com base em suas realizações; se o capitalismo fôsse falsificado pelo comunismo, êle o seria cm virtude de suas próprias realizações. A continuidade é preservada por meio do rompimento: o desenvolvimento quantitativo se torna modificação qualitativa se alcança a própria estrutura de um sistema estabelecido; a racionalidade estabelecida se torna irracional quando, no decurso de seu desenvolvimento interno, as potencialidades do sistema cresceram mais do que as suas instituições. Tal refutação interna pertence ao caráter histórico da realidade, e o mesmo caráter confere aos conceitos que compreendem essa realidade o intento crítico dêstes. Êles reconhecem e antevêem o irracional na realidade estabelecida - projetam a negação histórica. Será essa negação "determinada" - isto é, será a sucessão interna de um projeto histórico, uma vez que êle se torne uma totalidade necessàriamente predeterminada pela estrutura dessa totalidade? Se assim fôr, então, o têrmo "projeto" seria decepcionante. Aquilo que é possibilidade histórica mais cedo ou mais tarde seria real; e a definição de liberdade como necessidade compreendida teria uma conotação repressiva que ela não tem. Tudo isso poderá não ter muita importância. O que importa é que tal determinação histórica absolveria (a despeito de tôda :E:tica e Psicologia sutis) os crimes contra a humanidade que a civilização continua comctendo e, assim, facilitaria essa continuação. Sugiro a expressão "escolha determinada" a fim de acentuar a invasão da liberdade na necessidade histórica; a expressão nada mais faz do que condensar a proposição de que os homens fazem a sua própria história, mas fazem-na sob determinadas condições. São determinados: 1) as contradições específic.ls que se desenvolvem dentro de um sistema histórico como manifestações do conflito entre o potencial e o real; 2) os recursos materiais e intelectuais à disposição do respectivo sistema; 3) a extensão da liberdade teórica e prática compatível com o sistema. Essas condições deixam abertas possibilidades

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I'

alternativas de desenvolvimento e utilização dos recursos disponíveis, possibilidades alternativas de "ganhar avida", de organizar a luta do homem com a natureza. Assim, dentro do arcabouço de uma determinada situação, a industrialização pode prosseguir de modos diferentes, sob contrôle coletivo ou privado, e, até mesmo sob contrôle privado, em direções de progresso diferentes e com diferentes propósitos. A escolha é primordialmente (mas apenas primordialmente!) privilégio dos grupos que alcançaram o contrôle dos processos de produção. Seu contrôle projeta o estilo de vida para o todo, e a necessidade garantidora e escravizadora é o resultado de sua liberdade. E a possível abolição dessa necessidade depende de uma nova invasão da liberdade - não qualquer liberdade, mas aquela dos homens que compreendem a necessidade dada como dor insuportável e como desnecessária. Como processos históricos, os processos dialéticos envolvem consciência: reconhecimento e captura das potencialidades libertadoras. Assim, envolve liberdade. A consciência é "não-livre" no quanto é determinada pelas exigências e pelos interêsses da sociedade estabelecida; no quanto a sociedade estabelecida é irracional, a consciência se torna livre para a mais elevada racionalidade histórica somente na luta contra a sociedade estabelecida. A verdade e a liberdade do pensamento negativo têm sua base e razão nessa luta. Assim, segundo Marx, o proletariado é a fôrça histórica libertadora somente como fôrça revolucionária; a negação determinada do capitalismo ocorre se e quando o proletariado se torna cônscio de si e dos processos e condições que formam essa sociedade. Essa consciência é tanto um requisito como um elemento da prática negativa. Êsse "se" é essencial ao progresso histórico - é o elemento de liberdade (e oportunidade!) que abre as possibilidades de conquistar a necessidade dos fatos dados. Sem êle, a história retorna à escuridão da natureza inconquistada. Já encontramos antes o "círculo vicioso" de liberdade e libertação;14 aqui, êle reaparece como a dialética da negação determinada. A transcendência além das condições estabelecidas. (de pensamento e ação) pressupõe transcendência dentro dessas condições. Essa liberdade negativa - isto é, liberdade do poder opressivo e ideológico dos fatos dados - é o a priori da dialética 14

Ver p. 56.

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h!st~~ca; é o elemento de escolha e decisão na determinação hlstonca e contra ela. Nenhuma das alternativas dadas é por si uma negação deterlIl:inada, a não ser e até que seja consciente~en~e capturada a fim de romper o poder de condições intolerave~s . ~ alcançar as condições mais racionais e mais lógicas possibilitadas. pe~as condiçõ,es. p~evalecentes. De qualquer forma, a raCionalidade e a loglca Invocadas no movimento do pensamento e ação são as das condições dadas a serem transc~n~i~as. A negação ,prossegue em bases empíricas; é um projeto hlstonco ,dentro e alem de um projeto já em andamento, e sua verdade e uma oportunidade a ser determinada em tais bases. Contudo, a verdade de um projeto histórico não é validada ex post pelo êxito, equivale a dizer, pelo fato de êle ser aceito e realizado pela sociedade. A ciência de Galileu era verdadeira en9uanto ainda estava condenada; a teoria marxista já era verdadeira ao tempo do Manifesto Comunista· o fascismo continua falso até mesmo se está em ascensão e~ escala internacional ("verd a d· elro" e "faIso " sempre com o sentido de racionalidade histórica co~orme ~ciI?~ definid?). No período contemporâneo, todo~ os proJetos hlstoncos tendem a ser polarizados nas duas totalidades em conflito - capitalismo e comunismo, e o resultad~ pa~ece depender ~e duas séries antagônicas de fatôres: 1) a ma~o! força de destrUição; 2) a maior produtividade sem destrulçao. Em outras palavras, a mais elevada verdade histórica pertenceria ao sistema que oferecesse a maior oportunidade de pacificação.

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9 A CATASTROFE DA LIBERTAÇÃO

O pensamento positivo e sua filosofia neopositivista agem contra o conteúdo histórico de racionalidade. f:sse conteúdo jamais é um fator ou significado estranho que pode ou não ser incluído na análise; êle entra no pensamento conceptual como fator constitutivo e determina a validez de seus conceitos. No quanto a sociedade estabelecida é irracional, a análise em têrmos de racionalidade histórica introduz no conceito o elemento negativo - crítica, contradição e transcendência. f:sse elemento não pode ser assimilado com o positivo. Modifica o conceito em sua inteireza, em seu intento e validez. Assim, na análise de uma economia, capitalista ou não, que opera como uma potência "independente" além dos indivíduos, as particularidades negativas (superprodução, desemprêgo, insegurança, desperdício, repressão) não são compreendidas enquanto aparecem meramente como subprodutos mais ou menos inevitáveis, como "o outro lado" da história do crescimento e do progresso. Inegàvelmente, uma administração totalitária pode promover a exploração eficiente dos recursos; o estabelecimento nuclear-militar pode garantir emprêgo a milhões por meio de enorme poder aquisitivo; a labuta e as úlceras podem ser o subproduto da aquisição de riqueza e responsabilidade; erros e crimes mortais por parte dos líderes podem ser meramente o estilo de vida. Pode-se estar disposto a admitir a loucura econômica e política - e se compra essa loucura. Mas êsse tipo de conhecimento do "outro lado" da história é parte e parcela da solidificação do estado de coisas, da grande unificação de opostos que age contra a modificação qualitativa, porque pertence 209


a uma existência totalmente desesperançada ou totalmente precondicionada que se instalou num mundo no qual até o irracional é Razão. A tolerância do pensamento positivo é tolerância imposta - não por qualquer entidade terrorista, mas pelo poder e eficiência esmagadores e anônimos da sociedade tecnológica. Como tal, ela permeia a consciência geral - e a consciência da crítica. A absorção do negativo pelo positivo é validada na experiência diária, que obscurece a distinção entre aparência racional e realidade irracional. Eis alguns exemplos banais dessa harmonização: 1) Viajo num automóvel nôvo. Sinto a sua beleza, seu brilho, sua potência, sua conveniência - mas então me apercebo do fato de que dentro de um prazo relativamente curto êle se deteriorará e necessitará de reparos; de que a sua beleza e superfície são ordinárias, sua pot~ncia desnecessária seu tamanho uma idiotice; e de que não encontrarei um local para estacionamento. Então, lembro-me de que o meu carro é um produto de uma das Três Grandes fábricas de automóveis. ~ste fato determina a aparência do meu carro e faz tanto sua beleza como sua inferioridade, tanto a sua potência como os seus solavancos, tanto o seu funcionamento como o seu obsoletismo. Eu me sinto de certo modo ludibriado. Creio que o carro não é o que podia ser, que poderiam ser fabricados carros melhores por menos dinheiro. Mas o outro sujeito também tem de viver. Os salários e os impostos são demasiado elevados; o encontro de contas é necessário; a situação está muito melhor do que antes. A tensão entre aparência e realidade se desvanece e ambas se fundem numa sensação assaz agradável. 2) Dou um passeio pelo campo. Tudo está como devia: a natureza, em sua plenitude. Os pássaros, o sol, a relva macia, uma vista através das árvores das montanhas, ninguém por perto, nenhum rádio, nenhum cheiro de gasolina. Então, surge uma curva no caminho, levando à rodovia. Estou de volta, entre quadros com cartazes, postos de gasolina, motéis e hospedarias. Eu estava num Parque Nacional, e agora sei que isso não era realidade. Era um "território de reserva", algo que está sendo preservado à semelhança de uma espécie que está desaparecendo. Se não fôsse o Govêrno, os quadros de cartazes, as barracas de cachorro-quente e os motéis teriam de há muito invadido aquêle pedaço de Naturez;J Sou grato ao Govêrno; a coisa está muito melhor do que antes ... 3) Um trem subterrâneo, durante as horas de trânsito intenso, ao cair da tarde. O que vejo das criaturas são fisionomias e membros cansados, ódio e zanga. Sinto que alguém pode a qualquer momento sacar de uma faca - sem mais nem aquela. Elas lêem, ou, antes, estão mergulhadas em seus jornais e revistas ou brochuras. No entanto, algumas horas depois, as mesmas criaturas, desodorizadas, lavadas, vestidas ou despidas, poderão sentir-se felizes ou brandas, sorrir de fato e esquecer (ou lembrar). Mas a maioria delas provàvelmente terá algum aconchego ou solidão em casa.

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-esses exemplos podem ilustrar o feliz casamento do positivo com o negativo - a ambigüidade objetiva que adere aos dados da eKperiência. :f: ambigüidade objetiva porque a mudança de minhas sensações e reflexões reage à maneira pela qual os fatos experimentados estão realmente inter-relacionados. Mas essa inter-relação, se compreendida, esmaga a consciência harmonizadora e seu falso realismo. O pensamento crítico luta por definir o caráter irracional da racionalidade estabelecida (que se torna cada vez mais óbvio) e por definir as tendências que fazem que essa racionalidade gere sua própria transformação. "Sua própria" porque, como totalidade histórica, ela desenvolveu fôrças e aptidões que se tornam, elas próprias, projetos além da totalidade estabelecida. São possibilidades da racionalidade tecnológica em desenvolvimento e, como tal, abrangem a sociedade inteira. A transformação tecnológica é, ao mesmo tempo, transformação política, mas a mudança política só se tornaria mudança social qualitativa no quanto alterasse a direção do progresso técnico - isto é, desenvolvesse uma nova tecnologia. Pois a tecnologia estabelecida se tornou um instrumento de política destrutiva. Tal mudança qualitativa seria uma transição para uma fase mais elevada da civilização se as técnicas fôssem ideadas e utilizadas para a pacificação da luta pela existência. Para indicar as implicações desconcertantes dessa declaração, digo que uma nova direção do progresso técnico seria uma catástrofe da direção estabelecida, não apenas a evolução quantitativa da racionalidade (científica e tecnológica) existente, mas, antes, sua catastrófica transformação, o surgimento de uma nova idéia de Razão, teórica e prática. A nova idéia de Razão é expressada na seguinte proposição de Whitehead: "A função da Razão é promover a arte da vida".! Em vista dêsse fim, a Razão é a "direção do ataque ao ambiente" que resulta do "impulso tríplice: 1) de viver, 2) de viver bem, 3) de viver melhor".2 As proposições de Whitehead parecem descrever tanto o desenvolvimento real como o fracasso da Razão. Ou antes, parecem sugerir que a Razão ainda está por ser descoberta, reconhecida e realizada, pois até agora a Razão também teve 1 A. N. Whitehead, The Function 01 Reason (Boston: Beacon Press, 1959), p. S. 2 lbid., p. 8.

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por função reprimir e até destruir o impulso para viver, para viver bem e para viver melhor - ou adiar e estipular um preço exorbitantemente elevado para o atendimento a êsse impulso. Na definição da função da Razão, de Whitehead, o têrmo "arte" implica o elemento de negação determinada. A Razão, em sua aplicação à sociedade, se tem até então oposto à arte, enquanto foi concedido à arte o privilégio de ser assaz irracional - não sujeita à Razão científica, tecnológica e operacional. A racionalidade da dominação separou a Razão da ciência e a Razão da arte, ou, ela falsificou a Razão da arte pela integração da arte no universo da dominação. Foi uma separação porque a ciência conteve, desde o início, a Razão estética, a liberdade e até a insensatez da imaginação, a fantasia da transformação; ;1 ciência se entregou à racionalização das possibilidades. Contudo, essa liberdade conservou o compromisso com a não-liberdade prevalecente na qual ela nasceu e da qual se abstraiu; as possibilidades com as quais a ciência jogou eram também da liberação - de uma verdade superior. Eis o elo original (dentro do universo da dominação e da escassez) entre Ciência, Arte e Filosofia; a consciência da discrepância entre o real e o possível, entre a verdade aparente e a autêntica, e o esfôrço para compreender e dominar essa discrepância.' Uma das primeiras formas nas quais essa discrepância encontrou expressão foi a distinção entre deuses e homens, finito e infinito, mudança e permanência. 3 Algo dessa inter-relação mitológica entre o real e o possível sobreviveu no pensamento científico e continuou sendo dirigido para uma realidade mais racional e verídica. A Matemática era considerada real e "boa" no mesmo sentido que as Idéias metafísicas de Platão. Como, então, o desenvolvimento da primeira se tornou ciência, enquanto o destas permaneceu metafísica? A resposta mais óbvia é a de que, em alto grau, as abstrações científicas entraram e provaram sua veracidade na conquista e transformação reais da natureza, enquanto as abstrações filos6ficas não o fizeram - e não pod;!riam fazê-lo, pois a conquista e a transformação da natureza ocorreram dentro de uma lei e de uma ordem da vida que a Filosofia transcendeu, subordinando-a à "boa vida" de uma lei e uma ordem diferentes. E esta outra ordem, que pressupôs um alto grau de liberdade da labuta, ignorância e pobreza, era irreal nas origens do pensa3 Ver capitulo ,.

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mento filosófico e através do seu desen.volvimento, enquanto o pensamento científico continuou sendo aplicável a uma realidade cada vez mais poderosa e universal. Os conceitos filosóficos finais permaneceram de fato metafísicos; não foram e não podiam ser verificados em têrmos do universo estabelecido da locução e da ação. Mas se esta é a situação, então o caso da metafísica, e, especialmente, da significação e verdade das proposições metafísicas, é um caso histórico. Isto é, condições históricas e não puramente epistemológicas determinam a verdade, o valor cognitivo de tais proposições. Como acontece a tôdas as proposições que invocam a verdade, elas devem ser verificáveis; devem permanecer dentro do universo da experiência possível. ~sse universo jamais é co-extensivo com o estabelecido, mas se estende para os limites do mundo que pode ser criado pela transformação do mundo estabelecido, com os meios garantidos ou retidos por êste. O âmbito da verificação nesse sentido cresce com o transcurso da história. Assim, as especulações sôbre a Boa Vida, a Boa Sociedade, a Paz Permanente obtêm um conteúdo realista cada vez maior; em bases tecnológicas, o metafísico tende a tornar-se físico. Mais ainda, se a verdade das proposições metafísicas é determinada por seu conteúdo histórico (isto é, pelo grau com que definem as possibilidades históricas), então a relação entre metafísica e ciência é estritamente histórica. Pelo menos em nossa própria cultura, aquela parte da Lei das Três Fases, de Saint-Simon, que estipula que a fase metafísica precede a fase científica da civilização, ainda é tida por fato consumado. Mas será essa seqüência final? Ou conterá a transformação científica do mundo a sua própria transcendência metafísica? Na fase avançada da civilização industrial, a racionalidade científica, traduzida em poder político, parece ser o fator decisivo no desenvolvimento das alternativas históricas. Surge então a pergunta: tenderá essa fôrça para a sua própria negação isto é, para a promoção da "arte da vida"? Dentro das sociedades estabelecidas, a aplicação continuada da racionalidade científica teria atingido um ponto terminal com a mecanização de todo trabalho socialmente necessário, mas individualmente repressivo ("socialmente necessário", aqui, inclui todos os desempenhos que podem ser exercidos mais eficazmente pelas máquinas, até mesmo se tais desempenhos produzem supérfluos e desperdício, em vez de coisas imprescindíveis). Mas esta fase seria também

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reafirmar-se até mesmo na construção de hipóteses científicas - na teoria científica pura. Da quantificação das qualidades secundárias, a ciência passaria à quantificação dos valôres. Por exemplo, o que é calculável é o mínimo de trabalho com o qual, e até que ponto, as necessidades de todos os membros da sociedade poderiam ser satisfeitas - desde que os recursos disponíveis fôssem usados para tal fim, sem ser restringidos- por outros interêsses e sem impedir o acúmulo do capital necessário ao desenvolvimento da respectiva sociedade. Em outras palavras: quantificável é o âmbito disponível de liberdade da carência. Ou, calculável é até que ponto, sob as mesmas condições, poderia ser garantida assistência aos doentes, aos inválidos e aos idosos - isto é, quantificável é a possível redução da ansiedade, a possível liberdade do mêdo. Os obstáculos que se interpõem à materialização são obstáculos políticos definíveis. A civilização industrial chegou ao ponto em que, com respeito às aspirações de existência humana do homem, a abstração científica das causas finais se torna obsoleta nos próprios têrmos da ciência. A própria ciência permitiu tornar as causas finais o próprio domínio da ciência. A sociedade,

o fim e o limite da racionalidade científica em suas estrutura e direção estabelecidas. Mais progresso significaria o rompimento, a transformação de quantidade em qualidade. Abriria a possibilidade de uma realidade essencialmente nova - a saber, a existência com tempo livre e com base em necessidades vitais satisfeitas. Sob tais condições, o próprio projeto científico ficaria livre para fins transutilitaristas e livre para a "arte de viver" além das necessidades e dos supérfluos da dominação. Em outras palavras, a conclusão da realidade tecnológica seria não apenas um requisito, mas também o fundamento lógico para transcender a realidade tecnológica. Isso significaria a reversão à relação tradicional entre ciência e metafísica. As idéias definindo a realidade em têrmos outros que não os das Ciências Exatas ou Behavioristas perderiam o seu caráter metafísico ou emotivo como resultado da transformação científica do mundo; os conceitos científicos poderiam projetar e definir as realidades possíveis de uma existência livre e pacífica. A elaboração de tais conceitos significaria mais do que a evolução das ciências existentes. Compreenderia a racionalidade científica em seu todo, que tem estado até então comprometida com uma existência não-livre, e significaria uma nova idéia de ciência, de Razão. Se a conclusão do projeto tecnológico compreende um rompimento com a racionalidade tecnológica prevalecente, o rompimento depende, por sua vez, da existência continuada da própria base tecnológica. Pois é essa base que tornou possível a satisfação das necessidades e a redução da labuta - continua sendo a própria base de tôdas as formas de liberdade humana. A transformação qualitativa assenta na reconstrução dessa base - isto é, em seu desenvolvimento visando a fins diferentes. Acentuei o fato de não significar isso a ressurreição de "valôres", espirituais ou outros, que devam suplementar a transformação científica e tecnológica do homem e da natureza. 4 Pelo contrário, a realização histórica da ciência e da tecnologia possibilitou a tradução de valôres em tarefas técnicas - a materialização de valôres. Conseqüentemente, o que está em jôgo é a redefinição dos valôres em têrmos técnicos, como elementos do progresso tecnológico. Os novos fins, como fins técnicos, operariam então no projeto e na construção da maquinaria e não apenas em sua utilização. Mais ainda, os novos fins podem 4

par une élévation et un élargissement du damaine technique, dait remettre à leur place, comme techniques, les prablemes de finalité, considérés à tort comme éthiques et parlais comme religieux. L'inachevement des techniques sacralise les problhnes de fillalité et asservit [,homme au respect de fins qu'il se représelll comme des absolus. 5

Sob êsse aspecto, o método científico e a tecnologia "neutros" se tornam a ciência e a tecnologia de uma fase histórica que está sendo ultrapassada por suas próprias realizações - que atingiu a sua negação determinada. Em vez de serem separadas da ciência e do método científico e deixadas à preferência subjetiva e à sanção irracional e transcendental, as idéias antes metafísicas de libertação podem tornar-se o próprio objeto da ciência. Mas êsse acontecimento confronta a ciência com a tarefa desagradável de se tornar política - de reorganizar a consciência científica como consciência política, e o empreendi5 "por uma elevação e uma ampliação da esfera técnica, deve tratar como problemas Ilcnico$ questões de finalidade errôneamente considerados éticos e, algumas vêzes, religiosos. A deficiência das técnicas torna um fetiche os problema. de finalidade e escraviza o homem aos fins que êle imagina absolutos". Gilbert Simondon, loc. dI., p. 151; o grifo é nosso.

Ver capítulo t, especialmente pp. 36-7.

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mento científico como empreendimento político. Pois a transformação de valôres em necessidades, de causas finais em possibilidades é a nova fase da conquista das fôrças opressivas e indômitas tanto da sociedade como da natureza. f:. um ato de libertação: "L'homme se libere de sa situation d'ê/re asserl'i par la finalité du toUl en apprenant à faire de la fil/ali/é. ti orgal/iser IIn tout finalisé qu'i/ juge et apprécie, pour n'al'oir pas à subir passh'cmellt une intégration de fail", ., "L'homme dépasse /'asservisscment en orgallisant consciemmenl la fillalilé, , ... 6

Contudo, ao se constituírem metàdicamente como empreendimento político, a ciência e a tecnologia iriam além da fase em que se encontravam, por causa de sua neutralidade, sujeitas à política e, contra o seu intento, funcionando como instrumentos políticos. Pois a redefinição e o domínio técnico das causas finais é a construção, o desenvolvimento e a utilização de recursos (materiais e intelectuais) livres de todos os interêsses particulares que impedem a satisfação das necessidades humanas e a evolução das faculdades humanas, Em outras palavras, é o empreendimento racional do homem como homem, da humanidade. A tecnologia pode, assim, garantir a correção histórica da identificação prematura da Razão e da Liberdade, graças à qual o homem pode tornar-se e permanecer livre no progresso da produtividade autoperpetuadora com base na opressão. No quanto a tecnologia se desenvolveu nessas bases, a correção jamais poderá ser o resultado do progresso técnico per se. Ela compreende uma reversão política. A sociedade industrial possui os instrumentos para transformar o metafísico em físico, o interior em exterior, as aventuras da mente em aventuras da tecnologia. As terríveis frases (e realida~ks) I "engenheiros da alma", "redutores de cabeça", "gerência científica" e "ciência do consumo" resumem (de forma miserável) a racionalização progressiva do irracional, do "espiritual" - a negação da cultura idealista. Mas a consumação da racionalIdade tecnológica, conquanto traduzindo ideologia em 6

"O homem 'e liberta

d~

sua situação de sujeito à finalidade de tudo apren-

denuo a criar finaluJadc. a organizar um todo I'finalizado"

que êle julga e avalia.

O homem super.! a c~cra\'ilação organizando con~Clcntemcnte a finalidade." p. 103.

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lbid.,

realidade, também transcenderia a antítese materialista dessa cultura. Pois a tradução de valôres em necessidades é o processo dúplice: 1) da satisfação material (materialização da liberdade) e 2) do livre desenvolvimento das necessidades com base na satisfação (sublimação não-repressiva). Nesse processo, a relação entre as faculdades e necessidades materiais e intelectuais passam por modificação fundamental. A livre ação do pensamento e da imaginação assume uma função racional e diretiva na realização de uma existência pacificada do homem e da natureza. E as idéias de justiça, liberdade e humanidade adquirem então sua verdade e boa consciência sôbre a única base em que poderiam ter verdade e boa consciência - a satisfação das necessidades materiais do homem, a organização racional do reino da necessidade. "Existência pacificada". Essa expressão transmite com bastante pobreza o intento de resumir, numa idéia orientadora, o fim da tecnologia transformado em tabu e ridicularizado, a causa final reprimida que está por trás do empreendimento científico. Se essa causa final fôsse materializar e tornar eficaz, o Logos da técnica abriria um universo de relações qualitativamente, diferentes entre homem e homem, entre homem e natureza. Mas, a esta altura, deve ser declarado um grande embargo - uma advertência contra todo fetichismo tecnológico. Tal fetichismo foi recentemente exibido principalmente entre os críticos marxistas da sociedade industrial contemporânea idéias sôbre a futura onipotência do homem tecnológico, de um "Eros tecnológico" etc. O cerne da verdade dessas idéias t'xige uma vigorosa denúncia da mistificação que elas expressam. A técnica, como um universo de instrumentos, pode aumentar tanto a fraqueza como o poder do homem. Na fase atual, êle se apresenta talvez mais impotente com relação ao seu aparato do que nunca dantes. A mistificação não é removida pela transferência da onipotência tecnológica de grupos particulares para o nôvo Estado e para o plano central. A tecnologia conserva, o tempo todo, sua dependência de fins outros que não os tecnológicos. Quanto mais a racionalidade tecnológica, liberta de suas características exploradoras, determina a produção social, tanto mais se torna dependente da direção política - do esfôrço coletivo para conseguir uma existência pacífica, com as metas que os indivíduos livres possam escolher para si. 217


"Pacificação da existência" não sugere um acúmulo de poder, mas, antes, o oposto. Paz e poder, liberdade e poder. Eros e poder bem podem_ ser contrários! Tentarei, a seguir, ~ostrar que a reconstruçao da base material da sociedade vIsa~do. à pacificação. p~de compreender uma redução tanto quahtatIva como ~uantItatIva do p~d7r, a fim d7 criar o espaço para o. desenvolvImento da produtIVIdade sob mcentivos autodetermI~ado~. ,A: noção de tal reversão do poder é forte motivo em teona dIaletIca. Até o pO,nt~ em Aque o propósito de pacificação determina o l:0gos ~a te~mca, ele altera a relação entre tecnologia e seu obJeto pnmordIaI, a Natureza. Mas há dois tipos de domínio' o . r~l?ressivo . e AO !ibertador. t;:ste compreende a redução d~ mIsen~, ,d~ vIOlencIa e da crueldade. Tanto na Natureza como na .HIstona, a luta pela existência é o indício de escassez ~ofn~ento e carência. Tais são as qualidades da matéri~ IrracIOnal, do ~ei~o .da imediação no qual a vida sofre passivamente sua eXIstenCIa. t;:ste reino é gradativamente mediado no curso da transformação histórica da Natureza; êle se torna part7 do mundo humano e, até o ponto em que isso se dá, as quah~~~es ~a Natureza são qualidades históricas. No processo de cIVIhzaçao, a Natureza deixa de ser mera Natureza até o pont? em ,que a luta das fôrças irracionais é compreendida e dommada a luz da liberdade. 7 A história é a negação da Natureza. Aquilo que é apenas natur~l. é superado e recriado pelo poder da Razão. A noção metafIsIca de que a Natureza se realiza na história indica os limites inconquistados da Razão. Ela os reivindica como limites h~stóricos - como uma .tarefa ainda por ser realizada, ou, antes, am?a por ser, ~mpreen~IAda .. Se a Natureza é em si um objeto racIOnal e legItI~o da CIenCIa, então ela é o objeto legítimo não apenas da Razao como poder, mas também da Razão como liberdade; n~o apenas de dominação, mas também de libertação. Com o surgImento do homem como animal racional - capaz de transformar a Natureza de acôrdo com as faculdades da . 7 o conce.ito hegelian~ de liberdade I?ressupõe consciência total (na termino· lo.gla de Hegel. autoconsclencla). Consequentemente, a "realização" oa Natureza nao é e I.amals pode ser sua própria obra. Mas visto que a Natureza é em si negatIva (ISto é, carente em sua própria exi.tência), a traosformação histórica da ~atureza pelo Homem é, como a superação dessa negatividade, a libertação da _at~~~~~,,,?U, nas palavras de Hegel, a Natureza é, em sua essência, nãcrnatural

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mente e com as possibilidades da matéria - o meramente natural, como o sub-racional, assume uma condição negativa. Torna-se um reino a ser compreendido e organizado pela Razão. E até o ponto em que a Razão tem êxito em sujeitar a matéria a padrões e metas racionais, tôda existência sub-racional parece ser de carência e privação, e a redução destas se torna a tarefa histórica. O sofrimento, a violência e a destruição constituem categorias tanto da realidade natural como humana, de um universo sem salvação e sem coração. A terrível noção de que a vida sub-racional da natureza se destina li ser para sempre tal universo não é filosófica nem científica; foi pronunciada por uma autoridade diferente: Quando a Sociedade Protetora dos Animais pediu ao Papa o seu apoio, êle o negou, alegando que os sêres humanos não têm dever algum para com os animais e que maltratar os animais não é pecado. Isso porque os animais não têm alma. 8

O materialismo, que não está manchado por tal abuso ideológico da alma, tem um conceito mais universal e realista de salvação. Só admite a realidade do Inferno num lugar definido, aqui na Terra, e afirma que êsse Inferno foi criado pelo Homem (e pela Natureza). Parte dêsse Inferno é o mau tratamento dado aos animais - obra de uma sociedade humana cuja racionalidade ainda é o irracional. Tôda alegria e tôda felicidade resultam da aptidão para transcender a natureza - uma transcendência na qual o domínio da Natureza está, êle próprio, subordinado à libertação e à pacificação da existência. Tôda tranqüilidade e todo deleite são o resultado de mediação consciente, de autonomia e contradição. A glorificação do natural é parte da ideologia que protege o antinatural em sua luta contra a libertação. A difamação do contrôle da natalidade é exemplo gritante. Em algumas regiões atrasadas do mundo, é também "natural" as raças negras serem inferiores às brancas, que os cachorros sejam os últimos e que os negócios existam. f. também natural que os peixes grandes comam os pequenos - conquanto isso possa não parecer natural ao peixe pequeno. A civilização produz os meios para libertar a Natureza de sua própria brutalidade, de sua própria insuficiência, de sua própria cegueira em virtude do poder cognitivo 8 Citado em Bertrand Russell. Schuster, 1950), p. 76.

Unpopular Essay. (Nova York: Simon and


e transformador da Razão. E a Razão só pode preencher essa função como racionalidade pós-tecnológica, na qual a técnica é, ela própria, o instrumento de pacificação, o método da "arte da vida". A função da Razão converge, então, com a função da Arte. A noção grega de afinidade entre arte e técnica pode servir de exemplo preliminar. O artista possui as idéias que, como causas finais, orientam a construção de certas coisas assim como o engenheiro possui as idéias que orientam, como causas finais, a construção de uma máquina. Por exemplo, a idéia de uma habitação para os sêres humanos determina a construção de uma casa pelo arquiteto; a idéia de explosão nuclear por atacado determina a construção do aparato que serve a êsse propósito. A ênfase dada à relação entre arte e técnica indica a racionalidade específica da arte. À semelhança da tecnologia, a arte cria outro universo de pensamento e prática contra o existente e dentro dêle .. Mas, em contraste com o universo técnico, o universo artístico é de ilusão, aparência, Schein. Contudo, essa aparência é semelhança com uma realidade que exisk como a ameaça e a promessa da realidade estabelecida. 9 Em várias formas de máscara e silêncio, o universo artístico é organizado pelas imagens de uma vida sem temor - de máscara e em silêncio porque a arte não tem podêres para criar essa vida e até mesmo para representá-la adequadamente. Nâo obstante, a verdade impotente e ilusória da arte (que jamais foi tão impotente e tão ilusória quanto atualmente, quando ela se tornou um ingrediente onipresente da sociedade administrada) é testemunho da vali dez de suas imagens. Quanto mais espetacularmente irracional se torna a sociedade, tanto maior a racionalidade do universo artístico. A civilização tecnológica estabelece uma relação específica entre a arte e a técnica. Mencionei, acima, a noção de uma inversão da Lei das Três Fases e de uma "revalidação" da metafísica com base na transformação científica e tecnológica do mundo. A mesma noção pode ser agora estendida à relação entre ciência-tecnologia e arte. A racionalidade da arte, sua capacidade para "projetar" a existência, para definir possibilidades ainda não realizadas poderia então ser visualizada como 9

Ver capítulo 3.

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validada pela transformação científico-tecnol6gica do mundo e funcionando nela. Em vez de ser a serva do aparato estabelecido, embelezando os seus negócios e a sua miséria, a arte se tornaria uma técnica para destruir êsses negócios e essa miséria. A racionalidade tecnológica da arte parece ser caracterizada por uma "redução" estética: A arte é capaz de reduzir o aparato que a aparência externa exige para se preservar - redução aos limites em que o externo pode tornar-se a manifestação do espírito e da liberdade.1 0

Segundo Hegel, a arte reduz a contingência imediata na qual um objeto (ou uma totalidade de objetos) existe, para um estado no qual o objeto assume a forma e a qualidade de liberdade. Tal transformação é redução porque a situação contingente sofre exigências que são externas e que se interpõem à sua livre realização. Essas exigências constituem um "aparato", visto como não são meramente naturais, mas, antes, sujeitas a modificação c a desenvolvimento livres e racionais. Assim, a transformação artística viola o objeto natural, mas o violado é, êle próprio, opressivo; assim, a transformação estética é libertação. A redução estética aparece na transformação tecnológica da Natureza onde e se tem êxito em ligar domínio e libertação, orientando o domínio para a libertação. Neste caso, a conquista da Natureza reduz a cegueira, a ferocidade e a fertilidade da Natureza o que implica reduzir a ferocidade do homem contra a Natureza. O cultivo do solo é qualitativamente diferente da destruição do solo; a extração dos recursos naturais, da exploração perdulária; a limpeza das florestas, do desflorestamento em massa. Pobreza, doença e crescimento canceroso são tão naturais quanto os males humanos - sua redução e remoção é libertação de vida. A civilização alcançou essa "outra" transformação libertadora em seus jardins, parques e territórios de reserva. Mas fora dessas pequenas áreas protegidas, tratou a Natureza como tem tratado o homem - como um instrumento de produtividade destrutiva. 10 Hegel. VOTltsung~n ~ber dl~ Atslh~tik, em Sámt/lch~ Werk~, ed. H. Glockner (Stuttgart, Frommann, 1929). vol. Xli, pp. 217 e sego Ver também a tradução de Osmaston, em Hegel, The Philosophy of Fine ATI (Londres, Bell and Sons, 1920), vol. I, p. 214.

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! I

As categorias estetlcas entrariam na tecnologia da pacificação até o ponto em que a maquinaria produtiva fôsse construída visando à livre atuação das faculdades. Mas, contra todo "Eros tecnológico" e concepções errôneas do gênero, "o trabalho não pode tornar-se diversão ... " A declaração de Marx impossibilita rigidamente tôda interpretação romântica da "abolição do trabalho". A idéia de tal milênio é tão ideológica na civilização industrial desenvolvida como o foi na Idade Média e talvez até mais do que então. Pois a luta do homem com a Natureza é cada vez mais uma luta com a sua sociedade, cujos podêres sôbre o indivíduo se tornam mais "racionais" e, portanto, mais necessários do que nunca. Contudo, conquanto o reino da necessidade continue, sua organização visando a fins qualitativamente diferentes modificaria não apenas o modo, mas também a extensão da produção socialmente necessária. E essa modificação, por sua vez, afetaria os agentes humanos de produção e suas necessidades: o tempo livre transforma o seu possuidor em um Sujeito diferente, e, como Sujeito diferente, êle entra no processo da produção imediata. II

Acentuei repetidamente o caráter histórico das necessidades humanas. Acima do nível animal, até as necessidades da vida numa sociedade livre e racional serão diferentes das produzidas numa sociedade irracional e não-livre, e para ela. É novamente o conceito de "redução" que poderá exemplificar a diferença. Na época contemporânea, a conquista da escassez ainda está limitada a pequenos setares da sociedade industrial desenvolvida. Sua prosperidade encobre o Inferno dentro e fora de suas fronteiras; ela também dissemina uma produtividade repressiva e "falsas necessidades". É repressiva precisamente até o ponto em que promove a satisfação das necessidades que exigem a continuação da corrida de ratazanas que é a competição entre semelhantes, e com obsoletismo planejado, o prazer de estar isento de ter de usar o cérebro, o trabalho com os meios de destruição e para êles. As comodidades óbvias geradas por êsse tipo de produtividade, e, ainda mais, o apoio que ela dá a um sistema de dominação lucrativa, facilitam sua importação por 11 Marx, Grundrisse der Krilik der politischen Oekonomie, loco cit., p. ~S9 (no .. a tradução).

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áreas menos desenvolvidas do mundo nas quais a introdução de tal sistema ainda significa imenso progresso em têrmos técnicos e humanos. Contudo, a estreita inter-relação entre "know-how" técnico e político-manipulativo, entre produtividade lucrativa e dominação, leva à conquista da escassez de armas para conter a libertação. Em grande parte, é a surpreendente quantidade de mercadorias, serviços, trabalho e recreação nos países superdesenvolvidos o que efetua essa contenção. Conseqüentemente, a mudança qualitativa parece pressupor uma mudança quantitativa no padrão de vida avançado, a saber, redução do superde-

senvolvimento.

o padrão de vida alcançado nas áreas mais desenvolvidas não constitui modêlo apropriado de desenvolvimento se.o propósito é pacificação. Em vista do que êsse padrão fêz ao Homem e à Natureza, deve ser novamente perguntado se êle vale os sacrifícios e as vítimas feitos em sua defesa. A pergunta deixou de ser irrespondível desde que a "sociedade afluente" se tornou uma sociedade de mobilização permanente contra o risco de aniquilamento e desde que a venda de suas mercadorias se fêz acompanhar de imbecilização, da perpetuação da labuta e da promoção da frustração. Sob tais circunstâncias, libertar-se da sociedade afluente não significa voltar à pobreza saudável e robusta, à limpeza moral e à simplicidade. Pelo contrário, a eliminação do desperdício lucrativo aumentaria a riqueza social disponível para distribuição, e o fim da mobilização permanente reduziria a necessidade social de negação das satisfações que são do próprio indivíduo - negações que agora encontram sua compensação no culto da aptidão, do vigor e da regularidade. Hoje, no próspero Estado beligerante e do bem-estar social, as qualidades humanas de uma existência pacificada parecem anti-sociais e impatrióticas - qualidades como a recusa de tôda rudeza, aconchego, brutalidade; desobediência à tirania da maioria; profissão de mêdo e fraqueza (a reação mais racional a essa sociedade!); uma inteligência sensível adoentada pelo que está sendo perpetrado; o compromisso com as ações de protesto e recusa débeis e ridicularizadas. Essas expressões de humanidade serão também magoadas pelo compromisso necessário a necessidade de se cobrir, de ser capaz de trapacear os trapa223


ceiros e je viver e pensar a despeito dêles. Na sociedade totalitária, as atitudes humanas tendem a se tornar escapistas, a seguir o conselho de Samuel Beckett: "Não espere até ser caçado, para, então, se esconder ... " Até mesmo tal retirada pessoal de energia mental e física de atividades e atitudes socialmente exigidas só é possível hoje em dia a uns poucos; é apenas um aspecto inconseqüente da redireção da energia que deve preceder a pacificação. Além do âmbito pessoal, a autodeterminação pressupõe energia livre disponível que não seja gasta em trabalho material e intelectual sobreposto. Deve ser energia livre também no sentido de não ser canalizada para o manuseio de mercadorias e serviços que satisfazem ao indivíduo enquanto o tornam incapaz de alcançar uma existência própria, incapaz de apreender as possibilidades que são repelidas por sua satisfação. O confôrto, os negócios e a segurança no emprêgo numa sociedade que se prepara para e contra a destruição nuclear pode servir de exemplo universal de contentamento escravizador. A libertação de energia de desempenhos exigidos para manter a prosperidade destrutiva significa baixar o alto padrão de servidão a fim de permitir aos indivíduos desenvolverem aquela racionalidade que pode tornar possível uma existência pacificada. Um nôvo padrão de vida, adaptado à pacificação da existência, também pressupõe redução da população futura. É compreensível e até razoável que a civilização industrial considere legítimos a carnificina de milhões de criaturas na guerra e os sacrifícios diários de todos os que não dispõem de cuidado e proteção adequados, mas manifeste escrúpulos morais e religiosos quando se trate de evitar a produção de mais vida numa sociedade que ainda está engrenada com o aniquilamento planejado da vida no Interêsse Nacional e com a privação não-planejada da vida em favor de interêsses particulares. f:sses escrúpulos morais são compreensíveis e razoáveis porque tal sociedade necessita de número cada vez maior de fregueses e defensores; a capacidade excessiva constantemente regenerada deve ser controlada. Contudo, as exigências da produção em massa lucrativa não são necessàriamente idênticas às da humanidade. O problema não consiste apenas (e talvez nem mesmo primordialmente) em alimentar e cuidar adequadamente da população em crescimento - é, primeiro, um problema de número, de mera 224

t

quantidade. Há mais do que liberdade poética na denúncia pronunciada por Stefan George há meio século: "Schon eure Zahl ist Frevel!"* O crime é da sociedade na qual a população em crescimento agrava a luta pela existência, em face de sua possível atenuação. O impulso para mais "espaço vital" opera não apenas na agressividade internacional, mas também dentro da nação. Aí, a expansão, sob tôdas as formas de trabalho em equipe, vida comunal e diversão, invadiu o espaço mais íntimo de indevassabilidade e pràticamente eliminou a possibilidade daquele isolamento somente no qual o indivíduo, lançado para dentro de si mesmo, pode pensar e perguntar e encontrar. Essa espécie de indevassabilidade do íntimo - a única condição que, com base em necessidades vitais satisfeitas, pode emprestar significado à liberdade e independência de pensamento - tornou-se, de há muito, a mais dispendiosa mercadoria, à disposição apenas dos muito ricos (que não fazem uso dela). Também a êsse respeito a "cultura" revela suas origens e limitações' feudais. Ela só se pode tornar democrática pela abolição da democracia em massa, isto é, se a sociedade tiver êxito em restaurar as prerrogativas da indevassabilidade do íntimo pela sua garantia para todos e pela sua proteção para cada um. À negação de liberdade e até da possibilidade de liberdade corresponde a concessão de liberdades onde elas fortalecem a repressão. No mesmo grau em que é permitido à população romper a paz onde quer que ainda existam paz e silêncio, ser feia e enfear as coisas, transpirar familiaridade, é também assustador ofender a boa norma. É assustador, porque expressa o esfôrço legal e até organizado para rejeitar os outros em seu próprio direito, para impedir autonomia até mesmo em esfera da existência pequena e reservada. Nos países superdesenvolvidos, uma parte cada vez maior da população se torna enorme audiência cativa - capturada não por um regime totalitário, mas pelas liberdades dos cidadãos cujos meios de diversão e elevação compelem os outros a participarem de seus sons, suas vistas e seus cheiros. Poderá uma sociedade incapaz de proteger a indevassabilidade individual até mesmo entre quatro paredes alegar, de • "O vosso número já E um crime!" N. do T.

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referindo-se à população humana.


direito, que respeita o indivíduo e que é uma sociedade livre? Sem dúvida, uma sociedade livre é definida por mais do que a autonomia privada, por mais realizações fundamentais. Não obstante, a ausência daquela vicia até as mais conspícuas insti!uições de liberdade econômica e política - ao negar liberdade em suas raízes mais ocultas. A socialização maciça começa em casa e coíbe o desenvolvimento da percepção e da consciência. O alcance da autonomia exige condições nas quais as dimensões reprimidas da experiência podem novamente voltar à vida; sua libertação exige a repressão das necessidades e satisfações heterônomas que organizam a vida nessa sociedade. Quanto mais elas se tenham tornado necessidades e satisfações individuais, tanto mais sua repressão pareceria ser quase uma privação fatal. Mas precisamente em virtude dêsse caráter fatal, ela pode criar o requisito subjetivo primordial para a mudança qualitativa - a saber, a redefinição das necessidades. Vejamos um exemplo (infelizmente fantástico): a mera ausência de tôda propaganda e de todos os meios doutrinários de informação e diversão lançaria o indivíduo num vazio traumático no qual êle teria a oportunidade de cogitar e pensar, de conhecer a si mesmo (ou antes, o negativo de si mesmo) e a sua sociedade. Privado de seus falsos pais, líderes, amigos e representantes, teria de novamente aprender o ABC. Mas as palavras e sentenças que formaria poderiam surgir de modo assaz diferente, o mesmo podendo suceder às suas aspirações e aos seus temores'. Sem dúvida, tal situação seria um pesadelo insuportável. Conquanto as criaturas possam suportar a criação contínua de armas nucleares, garoa radiativa e alimentos duvidosos, não podem (por essa mesma razão!) tolerar serem privadas da diversão e da educação que as torna capazes de reproduzir disposições para a sua defesa e (ou) a sua destruição. O não-funcionamento da televisão e dos meios estranhos de informação pode, assim, começar a conseguir o que as contradições inerentes do capitalismo não conseguiram - a desintegração do sistema. A criação de necessidades repressivas tornou-se, de há muito, parte do trabalho socialmente necessário - necessário no sentido de que, sem êle, o modo de produção estabelecido não poderia ser mantido. Não estão em jôgo problemas de psicologia nem de estética, mas a base material da dominação.

10 CONCLUSÃO

A sociedade unidimensional em desenvolvimento altera a relação entre o racional e o irraciona~. C.ontr~stado com, os aspectos fantásticos e insanos de sua macI?nabdadc, c .re,l.no do irracional se torna o lar do realmente raCIOnal - das Ideias que podem "promover a arte da vida". Se a. sociedade es~abe­ lecida controla tôda comunicação normal, valIdando-a ou Invalidando-a de conformidade com as exigências sociais, então os valôres estranhos a essas exigências podem talvez não ter qualquer outro meio de comunicação a não ser o meio ,anormal da ficção. A dimensão estética ainda conserva uma lIberdade de expressão que permite ao escritor e ao artista chamar o~ homens e as coisas por seus nomes - dar nome ao que sena de outro modo inominável. A verdadeira fisionomia de nossa época se mostra ll1S novelas de Samuel Beckett; sua história real é escrita na pc(,:a Der Stellvertreter de Rolf Hochhut. Não mais é a imaginação que fala aqui, m~s a Razão, com uma realidade que jU,s~ifica tu~o c absolve tudo - exceto o pecado contra (l seu espIrlto. A Imaginação abdica em favor dessa realidad~, que ,está alcançando uma imaginação surpreendente. AuschWitz contInua assombr~n­ do não a memória mas as realizações do homem - os voos espaciais; os foguet~s e teleguiados; o, "s~bsolo tir:o ,labiri~to em algum ponto sob o bar"; as belas fabn~as eletrolllcas, lm:pas; higiênicas, com canteiros de flôres; o gas venenoso que nao ,e realmente nocivo às criaturas; o secretismo de que todos nos participamos. f.sse é o cenário em que ocorrem a,s grandes realizações humanas em ciência, medicina e tecnologia; os esforços para salvar e melhorar a vi~a. ~ão a ú~ica pr,omessa no, d_esastre. O jôgo voluntário com pOSSIbilIdades tantastIcas, a ~ptldao para agir de boa consciência, contra naturam, para expenmentar com

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homens e coisas, para converter a ilusão em realidade e a ficção em verdade, são testemunho do quanto a Imaginação se tornou um instrumento de progresso. E é um dos que, como outros das sociedades estabelecidas, são metodicamente abusados. Estabelecendo o ritmo e o estilo da política, o poder da imaginação excede em muito Alice no País das Maravilhas na manipulação das palavras, transformando sensatez em insensatez e insensatez em sensatez. Os reinos antes antagónicos emergem em bases técnicas e políticas - mágica e ciência, vida e morte, prazer e miséria. A beleza revela o seu terror sob a forma de fábricas e laboratórios nucleares altamente secretos que' se tornam "Parques Industriais" em cenários agradáveis; o Quartel-General da Defesa Civil expõe um "abrigo antigaroa radiativa de luxo" todo atapetado ("macio"), poltronas, televisão e Scrabble, "projetado como um misto de salão familiar em tempos de paz (sic!) e '~brigo antigaroa radiativa para o caso de guerra".1 Se o horror J~ tais realizações não penetra a consciência, se é imediatamente tomado por fato consumado, isso ocorre porque tais realizações são: a) perfeitamente racionais em têrmos da ordem existente; b) sinais do engenho e poder humanos além dos limites tradicionais da imaginação.

apenas com uma lógica fantástica e uma verdade fantástica. Quando o progresso técnico cancela essa separação, aplica as imagens com sua própria lógica e sua própria verdade; reduz a livre faculdade da mente. Mas também reduz a lacuna entre imaginação e Razão. As duas faculdades antagónicas se tornam interdependentes em terreno comum. À luz das aptidões da civilização industrial avançada, não será tudo jógo da imaginação, lidando com possibilidades técnicas, que pode ser pósto à prova quanto às suas possibilidades de realização? A idéia romântica de uma "ciência da Imaginação" parece assumir um aspecto cada vez mais empírico. O caráter científico e racional da Imaginação foi de há muito reconhecido em Matemática, nas hipóteses e experiências das Ciências Físicas. f: do mesmo modo reconhecido em Psicanálise, a qual é, em teoria, baseada na aceitação da racionalidade específica do irracional; a imaginação compreendida, quando redirigida, se torna uma fórça terapêutica. Mas essa fórça terapêutica pode ir muito mais longe do que a cura das neuroses. Não foi um poeta, mas um cientista quem esboçou esta perspectiva: Toute une psychanalyse matérielle peut... nous aider à guérir de nos images, ou du moins nous aider à limiter ['emprise de nos images. On peut alors espérer... pouvoir rendre l'imagination heureuse, autrement dit, pouvoir dcnner bonne conscience à l'imagination, en lui accordant pleinement tous ses moyens d'expression, toutes les images matérielles qui se produisent dans les rêves naturels, dans ['activité onorique normale. Rendre heureuse l'imagination, lui accorder toute son exubérance, c'est précisément donner à ['imagination sa véritable fonction d'entrainement psychique. 2

A fusão obscena entre estética e realidade refuta as Filosofias que opõem a imaginação "poética" à Razão empírica e científica. O progresso tecnológico se faz acompanhar da racionalização progressiva e até da realização do imaginário. Tanto os arquétipos do horror como do prazer, da guerra como da paz, perdem seu caráter catastrófico. Seu aparecimento na vida diária dos indivíduos não mais é o de fórças irracionais - seus avatares modernos são elementos de dominação tecnológica e estão sujeitos a ela. Ao reduzir e até cancelar o espaço romântico da imaginação, a sociedade forçou a imaginação a se experimentar em novos terrenos, nos quais as imagens são traduzidas em aptidões e projetos históricos. A tradução será tão má e deformada quanto a sociedade que a empreende. Separada do reino da produção material e das necessidades materiais, a imaginação era mero jógo, inválida no reino da necessidade e comprometida

A imaginação não permaneceu imune ao processo de espoliação. Somos possuídos por nossas imagens, sofremos as nossas próprias imagens. A Psicanálise sabia bem disso e sabia das conseqüências. Contudo, "dar à imaginação todos os meios de expressão" seria regressão. Os indivíduos mutilados (mutilados também em sua faculdade de imaginação) organizariam 2 "Uma psicanálise inteira da matéria pode ajudar-nos a curar-nos de nossas Imagens ou, pelo menos, a limitar a fixação de nossas imagens em nós. P<:>~e-~e então esperar estar capacitado a tornar. a imaginação _feliz! dar-lhe. boa consclen,cla ao lhe permitir plenamente todos os meIos de expressao, todas as Imagens ma.tena~s que emergem nos sonhos naturais, na atividade normal do sonhn. Tornar a ImagInação feliz, permitir-lhe tôda sua exuberância, significa precisamente conceder à imaginação a sua verdadeira função como impulso e fôrça psicológicos." Gaston Bachelard, Le Matlrialisme rationnel. (Paris, Presses Universitaires, 1953), p. 18. (A ênfase é do próprio Bachelard.)

1 Segundo o New York Times de II de novembro de 1960, ostentado na Sede da Defesa Civil da Cidade de Nova York esquina da Avenida Lexington com ' a Rua Cinqüenta e Cinco.

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dc,truiriam at,; mais do que lhes é permitido fazer agora. Tal libertação séria o horror não-mitigado - não a catástrofe da cultur a, mas a livre extinção de suas tendências mais repressivas. R:tc:;onal ~ a imaginação que pode tornar-se o a priori da reconstruçüu e da redireção do aparato de produção para uma c'(]';!,:IlCi:l pacificada, uma vida sem temor. E essa jamais polkr~i ser a imaginação dos que estão possuídos pelas imagens de d'lminação c morte. Libertar a imaginação de modo que lhe possam ser dados tllUOS os seus meios de expressão pressupõe a repressão de muito lb que é agora livre e que perpetua uma sociedade repressiva. E tal inversão não é um assunto da Psicologia ou da f:tica, mas da política, no sentido em que êste têrmo foi usado o tempo todn neste livro: a prática na qual as instituições sociais básicas são desenvolvidas, definidas, mantidas e modificadas. f: a prática dos indivíduos, independentemente do quão organizados possam estar. Assim, deve ser novamente enfrentada a pergunta: cmno podem os indivíduos administrados - que levaram a sua mutilação às suas próprias liberdades e satisfações e, assim, r.:produzem-na cm escala ampliada - libertar-se tanto de si n1<~smos como de seus senhores? Como se poderá sequer pen'Ir que o círculo vicioso possa ser rompido? Paradoxalmente, parece não ser a noção das novas instituições sociais o que apresenta a maior dificuldade à tentativa de respOllder a essa pergunta. As próprias sociedades estabelecidas estão mudando, ou já modificaram as instituições básicas no sentido de aumentar o planejamento. Uma vez que o desenvolvimento c a utilização de todos os recursos disponíveis para a satisfação universal das necessidades vitais é o requisito da pacificação, esta é incompatível com o prevalecimento de interêsscs particulares que se interpõem ao alcance dessa meta. A modificação qualitativa está condicionada ao planejamento para o todo contra êsses interêsses, e uma sociedade livre e racional só pode surgir nessas bases. As instituiçiies dentro das quais a pacificação pode ser visualizada desafiam, assim, a classificação tradicional em admilllQração autoritária e democrática, centralizada e liberal. Hoje, J uposição au plallejamento central em nome de uma democracia liberal que na realidade é negada serve de sustentáculo ideo-

lógico para interêsses repressivos. A meta da autodeterminação autêntica pelos indivíduos depende do contrôle social eficaz da produção e distribuição das necessidades (em têrmos do nível de cultura material e intelectual atingido). Aqui, a racionalidade tecnológica, despida de suas particularidades exploradoras, é o único padrão e guia do planejamento e do desenvolvimento dos recursos disponíveis para todos. A autodeterminação na produção e distribuição de bens e serviços vitais seria perdulária. A tarefa é técnica e, como uma tarefa verdadeiramente técnica, possibilita a redução da labuta física e mental. Nesse reino, o contrôle centralizado é racional se estabelece as precondições da autodeterminação significativa. Esta pode então tornar-se eficaz em sua própria esfera - nas decisões que envolvem a produção e a distribuição do excedente econômico, e na existência individual. De qualquer modo, a combinação de autoridade centralizada e democracia di reta está sujeita a infinitas variações, segundo o grau de desenvolvimento. A autodeterminação será real desde que as massas tenham sido dissolvidas em indivíduos libertos de tôda propaganda, doutrinação e manipulação, capazes de conhecer e compreender os fatos e de avaliar as alternativas. Em outras palavras, a sociedade seria racional e livre desde que fôsse organizada, mantida e reproduzida por um Sujeito histórico essencialmente nôvo. Na fase atual de desenvolvimento das sociedades industriais avançadas, tanto o sistema material como o cultural negam essa exigência. O poder e a eficiência dêsse sistema, a completa assimilação da mente com o fato, do pensamento com o comportamento exigido, das aspirações com a realidade, militam contra o surgimento de um nôvo Sujeito. Militam também contra a noção de que a substituição do contrôle prevalecente do processo de produção por um "contrôle vindo de baixo" significaria o advento da modificação qualitativa. Essa noção foi e ainda é válida, onde os trabalhadores foram e ainda são a negação e a acusação da sociedade estabelecida. Contudo, onde essas classes se tornaram um sustentáculo do estilo de vida esbelecido, sua ascensão ao contrôle prolongaria êsse estilo em outro cenário. Não obstante, existem todos os fatos que validam a teoria crítica dessa sociedade e do seu fatal desenvolvimento: a crescente irracionalidade do todo; desperdício e restrição da pro-

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dutividade; necessidade de expansão agressiva; ameaça constante de guerra; exploração intensificada; desumanização. E todos Indicam a alternativa histórica: a utilização plancjada dos recursos para a satisfação de necessidades vitais com um mínimo de labuta, a transformação das horas áe lazer cm tempo livre, a pacificação da luta pela existência. Mas os fatos e as alternativas existem como fragmentos que não se casam, ou como um mundo de objetos mudos sem um sujeito, sem a prática que moveria és~l's objetos na nova direção. A teoria diaktica não é refutada, mas não pode oferecer o remédio. Não pode ser positiva. De fato, o conceito dialético, ao compreender os fatos dados, transcende a êstes. :f:ste é o próprio indício de sua veracidade. Ela define as possibilidades históricas, até mesmo as necessidades históricas; mas a realização destas só pode estar na prática ejue responde à teoria, e, na atualidade, a prática não dá tal resposta. Tanto em bases teóricas corno empíricas, o conceito dialético pronuncia sua própria desesperança. A realidade humana é sua história e, nela, as contradições não explodem por si. O conflito entre a dominação perfeita e compensadora, de um lado, e, de outro, as suas realizações que permitem a autodeterminação e a pacificação, pode tornar-se espetacular além de qualquer negação possível, mas bem pode continuar a ser um conflito controlável e até produtivo, pois com o crescimento da conquista tecnol: .;ica da natureza cresce a conquista do homem pelo homem. E essa conquista reduz a liberdade que é u ,1 a priori necessário da libertação. Isso é liberdade d.' pensamento no único sentido em que o pensamento pode ser livre no mundo administrado - como a consciência de sua produtividade repressiva, e como a necessidade absoluta de romper par<J fora dêsse todo. Mas precisamente essa necessidade absoluta não prevalece onde se poderia tornar a fôrça impulsionadora de uma prática histórica, a causa eficaz de modificação qualitativa. Sem essa fôrça material, até mesmo a mais arguta consciência permanece impotente. Indl'pendentemente de quão óbvio se possa manifestar o caráter irracional do todo e, com êlc, a necessidade de modificação, a perscrutação da necessidade jamais bastou para captar as alternativas possíveis. Confrontadas com a eficiência onipresente do sistema de vida em questão, suas alternativas sempre pareceram utópicas. E a perscrutação da necessidade, a cons-

Significará isso que a teoria crítica da sociedade abdica e deixa o campo a uma Sociologia empírica que, livre de tôda orientação teórica exceto a metodológica, sucumbe às falácias da concreção mal colocada, prestando assim um serviço ideológico enquanto proclama a eliminação dos julgamentos de valor? Ou os conceitos dialéticos testemunham uma vez mais sua veracidade - compreendendo sua própria situação como a da sociedade que êles analisam? Uma respo~:"- se pode insinuar caso se considere a teoria crítica precisamente no ponto de sua maior fraqueza sua incapacidade para demonstrar as tendências libertadoras dentro da sociedade estabelecida. A teoria crítiea da sociedade defrontou, ao tempo de suas origens, com a presença de fôrças reais (objetivas e subjetivas) na sociedade que se movia (ou podia ser guiada para se mover) para instituições mais racionais e livres pela abolição das existentes, que se haviam tornado obstáculos ao progresso. Essas foram as bases empíricas sôbre as quais foi erguida a teoria, e, dessas bases empíricas, ela deduziu a idéia de libertação das possibilidades inerentes - o desenvolvimento da produtividade, das faculdades e das necessidades materiais e intelectuais, de outro modo bloqueadas e deformadas. Sem a demonstração de tais fôrças, a crítica da sociedade ainda seria válida e racional, mas seria incapaz de traduzir sua racionalidade em têrmos de prática histórica. Qual a conclusão? "Libertação de possibilidades inerentes" não mais expressa adequadamente a alternativa histórica. São as seguintes as possibilidades acorrentadas da sociedade industrial adiantada: desenvolvimento das fôrç;>s produtivas em escala ampliada, extensão da conquista da natureza, crescente satisfação das necessidades de número cada vez maior de pessoas, criação de necessidades e faculdades novas. Mas essas possibilidades estão sendo gradativamente realizadas por meios e instituições que cancelam seu potencial libertador, e êsse processo afeta não apenas os meios, mas também os fins. Os instrumentos de produtividade e progresso, organizados em sistema totalitário, determinam não apenas as utilizações reais, mas também as possíveis.

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ciência do estado mau, não bastará nem mesmo na fase em que as realizações da ciência e o nível de produtividade eliminaram as características utópicas das alternativas - onde a realidade estabelecida, mais do que o seu oposto, é utópica.


Em sua fase mais avançada, a dominação funciona como administração. E nas áreas superdesenvolvidas de consumo em massa, a vida administrada se torna a boa vida de todos, em defesa do que os opostos estão unidos. Esta é a forma pura de dominação. Inversamente, sua negação parece ser a forma pura de negação. Todo conteúdo parece reduzido à única exigência abstrata para o fim de dominação - a única exigência verdadeiramente revolucionária, e o acontecimento que validaria as conquistas da civilização industrial. Em face de sua eficiente negação pelo sistema estabelecido, essa negação aparece na forma politicamente impotente da "recusa absoluta" - uma recusa tanto mais irrazoável quanto mais o sistema estabelecido desenvolve sua produtividade e suaviza o fardo da vida. Nas palavras de Maurice Blanchot:

Contudo, por baixo da base conservadora popular está o substrato dos párias e estranhos, dos explorados e perseguidos de outras raças e de outras côres, os desempregados e os nãoempregáveis. ~les existem fora do processo democrático; sua existência é a mais imediata e a mais real necessidade de pôr fim às condições e instituições intoleráveis. Assim, sua oposição é revolucionária ainda que sua consciência não o seja. Sua oposição atinge o sistema de fora para dentro, não sendo, portanto, desviada pelo sistema, é uma fôrça elementar que viola as regras do jôgo e, ao fazê-lo, revela-o como um jôgo trapaceado. Quando êles se reúnem e saem às ruas, sem armas, sem proteção, para reivindicar os mais primitivos direitos civis, sabem que enfrentam cães, pedras e bombas, cadeia, campos de concentração e até morte. Sua fôrça está por trás de tôda manifestação política para as vítimas da lei e da ordem. O fato de êles começarem a recusar a jogar o jôgo pode ser o fato que marca o comêço do fim de um período. Nada indica que será um bom fim. As aptidões econômicas e técnicas das sociedades estabelecidas são suficientemente vastas para permitir ajustamentos e concessões aos subcães, e suas fôrças armadas suficientemente adestradas e equipadas para cuidar de situações de emergência. Contudo, lá está novamente o espectro, dentro e fora das fronteiras das sociedades avançadas. O fácil paralelo histórico com os bárbaros ameaçando o império da civilização prejulga a causa; o segundo peóodo de barbarismo bem pode ser o império continuado da própria civilização. Mas a probabilidade é que, nesse peóodo, os extremos históricos possam novamente se encontrar: a mais avançada consciência da humanidade e sua fôrça mais explorada. Nada mais é do que uma probabilidade. A teoria crítica da sociedade não possui conceito algum que possa cobrir a lacuna entre o presente e o seu futuro; não oferecendo promessa alguma e não ostentando êxito algum, permanece negativa. Assim, ela deseja permanecer leal àqueles que, sem esperança, deram e dão sua vida à Grande Recusa. No início da era fascista, Walter Benjamin escreveu:

Ce que nous refusons n'est pas sans valeur ni sans importance. C'est bien à cause de cela que le refus est nécessaire. II y a une raison que nous n'accepterons plus, ii y a une apparence de sagesse qui nous fai! horreur, ii )' a une offre d'accord et de conciliation que nous n'entendrons pas. Une rupture s'est produite. Nous a~'ons été ramellés à cette franclzise qui ne tolere plus la complicité. 3

Mas se o caráter abstrato da recusa é o resultado da espoliação total, então as bases concretas para recusa ainda devem existir, pois a espoliação é uma ilusão. E, por sinal, a unifica~ão dos opostos no medium da racionalidade tecnológica deve ser, em tôda a sua realidade, uma unificação ilusória que não elimina a contradição entre a produtividade crescente e seu uso repressivo nem a necessidade vital de resolver a contradição. Mas a luta pela solução ultrapassou as formas tradicionais. As tendências totalitárias da sociedade uni dimensional tornam ineficaz o processo tradicional de protesto - torna-o talvez até mesmo perigoso porque preservam a ilusão de soberania popular. Essa ilusão contém alguma verdade: "o povo", anteriormente o fermento da transformação social, "mudou" para se tornar o fermento da coesão social. Aí, e não na redistribuição da riqueza e igualação das classes, está a nova estratificação caracteóstica da sociedade industrial desenvolvida.

Nur um der Hoffnungslosen willen ist uns die Hoftnung gegebcn. Sàmente em nome dos desesperançados nos é dada esperança.

3 "O que recusamos não é destituído de valor ou de importância. Precisamo! por causa disso, a recusa é necessária. Há uma razão que não mais aceitamos, há uma aparência de sabedoria que nos horroriza. há um apêlo de acôrdo e conciliação a que não mais atenderemos. Ocorreu um rompimento. Fomos reduzidos àquela franqueza que não mais tolera cumplicidade." "Le Refus", em Le 14 luillet. n.o 2. Paris, outubro de 1958.

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íNDICE ONOMÁSTICO ADoRNO, Theodor W. - 32, 76, 80, 104, 121, 136, 138, 153 ARISTÓTELES - 128, 131, 135, 136 AUSTIN, J. L. - 166

HEGEL, Georg - 139, 149, 221 HEIDEGGER, Martin - 150 HEISENBERGER, Werner 147, 149 HOBBES, Thomas - 34 HORKHEIMER, Max - 153 HUMBOLDT, Wilhelm v. 102, 198 HUME, David - 166 HUSSERL, Edmund - ' 131, 149, 157, 158

BACHELARD, Gaston - 149, 152, 229 BARKIN, Solomon 45 BARTHES, Roland 79, 80, 98, 106 BECKETT, Samuel - 224 BELL, Daniel - 46 BENJAMIN, Walter - 235 BLANCHOT, Maurice - 234 BLOCH, Ernst - 121 BORN, Max - 146 BRECHT, Bertolt - 78 BRIDGMAN, P. W. - 32, 33 COOK, Fred J. -

,"

I

l

89

JANOWITZ, Morris -

117

KAHN, Herman - 89 KANT, Immanuel - 34 KRAUS, Karl - 168, 184

20

LOCKE, John - 34 LOWENTHAL, Leo -

DENBY, Charles - 43 DESCARTES, René - 34, 149 DEWEY, John - 161 DINGLER, Herbert - 146 DUMONT, René - 61

!

IONESCO, E. -

99

FLAUBERT, Gustave - 74 FOURIER, Charles - 165 FRANK, Philipp G. - 32, 147 FREUD, Sigmund - 87, 91, 174

MALLARMÉ, Stéphane -- 79 MALLET, Serge - 46, 48 MARcusE, Herbert - 30, 31, 57, 82, 106 MARVICK, Dwaine - 116 MARX, Karl - 52, 56, 149, 222 MEACHMAN, Stewart - 50 MILLS, C. Wright - 20, 54

GALBRAITH, John K. - 93 GEORGE, Stefan - 76 GERR, Stanley -- 94 GRÜNBAUM, Adolf - 146

PACKARD, Vance - 20 PERROUX, François - 49, 67, 194 PIAGET, Jean - 155, 156 PLÀTÃO - 128, 130, 133, 135

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POLLOCK, Frederick POPPER, Karl - 148 QUINE, W. V. O. -

107

SIMONDON, Gilbert 215 STALIN - 57, 106

146, 201

V ALÉRY, Paul -

REICHENBACH, Hans - 146 RIMBAUD, Arthur - 79 ROETHLISBERGER e DICKSON 111, 112 ROPER, Elmo - 120 ROUSSEAU, Jean-Jacques 55 RUSSELL, Bertrand - 198 RYLE, Gilbert - 166, 177, 192 SAINT-SIMON, Claude-Henri - 165 SARTRE, Jean-Paul - 19, 44

43, 45,

15~,

78, 170

WALKER, Charles R. - 43, 44, 47 WEIZSXCKER, G. F. v. - 147, 151 WHITEHEAD, Alfred N. - 201,211 WHYTE, William H. - 20 WITTGENSTEIN, Ludwig 166, 169, 177 WOODWARD, Julian - 120 ZWORIKINE, A. -

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PENSAMENTO UNIDIMENSIONAL


5 PENSAMENTO NEGATIVO: A DERROTADA LÚGIC.::A DO PROTESTO

" ... aquilo que é não pode ser verdadeiro." Aos nossos olhos e ouvidos bem adestrados, essa declaração é irreverente e ridícula, ou tão ultrajante quanto a outra, que parece dizer o oposto: "o que é real é racional". No entanto, na tradição do pensamento ocidental, ambas revelam, em formulação provocadoramente resumida, a idéia de Razão que guiou a sua lógica. Mais ainda, ambas expressam o mesmo conceito, a saber, a estrutura antagônica da realidade, e do pensamento tentando compreender a realidade. O mundo da experiência imediata - o mundo em que nos encontramos vivendo - deve ser compreendido, transformado e até subvertido para se tornar aquilo que verdadeiramente é. Na equação Razão = Verdade = Realidade, que reúne os mundos subjetivo e objetivo numa unidade antagônica, a Razão é o poder subversivo, o "poder do negativo" que estabelece, como Razão teórica e prática, a verdade para os homens e as coisas - isto é, as condições nas quais os homens e as coisas se tornam o que realmente são. A tentativa de demonstrar que essa verdade da teoria e da prática não é uma condição subjetiva, mas objetiva, foi a preocupação original do pensamento ocidental e a origem de sua lógica - lógica, não no sentido de uma disciplina especial da Filosofia, mas como o modo de pensar apropriado para compreender o real como racional. O universo totalitário da racionalidade tecnológica é a mais recente transmutação da idéia de Razão. Tentarei, neste capítulo e nos que se seguem, identificar algumas das principais d..lpaS tio desenvolvimento tlessa idéia -- o processo pelo qual 125


a lógica se tornou a lógica da dominação. Tal análise ideológica pode contribuir para a compreensão do desenvolvimento real, visto que é focalizada na união (e na separação) da teoria e da prática, do pensamento e da ação no processo histórico um desdobramento da Razão teórica e prática numa só. O universo operacional fechado da civilização industrial desenvolvida, com a sua aterradora harmonia entre liberdade e opressão, produtividade e destruição, crescimento e regressão está pretraçado nesta idéia de Razão como um projeto histórico específico. As fases tecnológica e pré-tecnológica compartilham certos conceitos básicos sôbre o homem e a natureza, que expressam a continuidade da tradição ocidental. Dentro dêsse contínuo, diferentes modos de pensar se entrechocam; pertencem a maneiras diferentes de apreender, organizar e modificar a sociedade e a natureza. As tendências estabilizadoras entram em conflito com os elementos subversivos da Razão, o poder do pensamento positivo com o do negativo, até ~ue. ~s. realizaçõ~s da civilização industrial avançada conduzam a vItona da reahdade unidimensional sôbre tôda a contradição. f:sse conflito data das próprias origens do pensamento filosófico e tem surpreendente expressão no contraste e~tre ~ .lógica dialética de Platão e a lógica formal do Orga~o~ ~nstotehco. O esbôço do modêlo clássico do pensamento dIalehco, que se segue, poderá preparar o terreno para uma análise das particularidades contrastantes da racionalidade tecnológica. Na Filosofia clássica grega, Razão é a .faculdade cognitiva para distinguir o que é verdadeiro e o que é falso, na medida em que a verdade (e a falsidade) é primordialmente uma condição do Ser, da Realidade - e somente nessse terreno uma propriedade das proposições. Verdadeira locução, a lógica revela e expressa aquilo que verdadeiramente é - distintamente daquilo que parece ser (real). E, em virtude dessa equação entre Verdade e Ser (real), a Verdade é um valor, porquanto Ser é melhor do que Não-Ser. f:ste último não é simplesmente o Nada; é uma potencialidade e uma ameaça de Ser - destruição. A luta pela verdade é uma luta contra a destruição, porque a "salvação" (ao','m) do Ser (um esfôrço que parece ser êle próprio destrutivo se ataca uma realidade estabelecida como sendo "inverídica": Sócrates contra Cidade-Estado ateniense). Na medida em que a luta pela verdade "salva" a realidade da destruição, ::. verdade compromete e empenha a existência humana. 1:. o

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projeto essencialmente humano. Se o homem tiver aprendido a ver e a conhecer o que a realidade é, agirá em concordância com a verdade. Epistemologia é, em si, ética, e ética é epistemologia. Essa concepção reflete a experiência de um mundo antagônico a si mesmo - um mundo afligido peia necessidade e pela negatividade, coqstantemente ameaçado de destruição, mas. também um mundo que é um cosmo, estruturado de conformIdade com causas finais. Desde que a experiência de um mundo antagônico guie o desenvolvimento das categorias filosóficas, a Filosofia se move num universo que é rompido em si mesmo (déchirement ontologique) - bidimensional. Aparência e realidade, inverdade e verdade (e, como veremos, não-liberdade e liberdade) são condições ontológicas. A distinção não existe em virtude ou por culpa do pensamento abstrato; está, antes, arraigada na experiência do universo do qual o pensamento participa na teoria e na prática.. Nes_te universo, há modos de ser nos quais os homens e as cOIsas sao "por si" e "como êles próprios", e mo~os nos. q~ais _não são isto é, nos quais existem na deformaçao, na hmItaçao e na n~­ gação de sua natureza (essência). Para superar essas CO~dl­ ções negativas há o processo do ser e do pensamento. A Ftlosofia se origina na dialética; seu universo da locução reage aos fatos de uma realidade antagônica. Quais os critérios para essa distinção? Em que bases é a condição da "verdade" destinada a um modo ou condição e não a outro? A Filosofia clássica grega assenta grandemente no que foi posteriormente chamado (num sentido assaz desairoso) "intuição", isto é, uma forma de cognição na qual o objeto do pensamento aparece claramente como aquilo que êle realmente é (em suas qualidades essenciais) e em relação antagônica com a sua situação contingente imediata. Na verdade, essa evidência da intuição não é demasiado diferente da cartesiana. Não é uma faculdade misteriosa da mente, nem uma experiência estranha imediata, tampouco estando divorciada da análise conceptual. A intuição é, antes, o término (preliminar) de tal análise - o resultado da mediação intelectual metódica. Como tal, é a mediação da experiência concreta. A noção da essência do homem pode servir de exemplo. Analisado na condição em que êle se acha no seu universo, o homem parece estar de posse de certos podêres e faculdades que 127


r I

lhe permitiriam levar uma "boa vida", isto é, uma vida ao máximo possível independente de labuta, dependência e feiúra. Alcançar tal vida é conseguir a "mdhor vida": viver de acôrdo com a essência da natureza ou do homem. Na verdade, esta ainda é a sentença do filósofo; é êle quem analisa a situação humana. Submete a experiência ao seu jula gamento crítico, e isto contém um julgamento de valor saber, o de que a liberdade da labuta é preferível à labuta, e uma vida inteligente é preferível a uma vida estúpida. Aconteceu que a Filosofia nasceu com êsses valôres. O pensamento científico teve de romper essa união do julgamento do valor com a análise, porque se tornou cada vez mais claro que os valôres filosóficos não guiavam a organização da sociedade nem a tr:msformação da natureza. Eram ineficazes e irreais. A concepção grega já continha o elemento histórico - a essência do homem é diferente no escravo e no cidadão livre, no grego e no bárbaro. A civilização superou a estabilização ontológica dessa diferença (pelo menos em teoria). Mas êsse acontecimento ainda não invalida a distinção entre natureza essencial e natureza contingente, entre formas verdadeira e falsa de existência -- bastando, somente, que a distinção se derive de uma análise lógica da situação empírica e compreenda tanto seu potencial como sua contingência.

Aristóteles, a realidade perfeita, o deus, atrai o mundo que está em baixo w, (P(~ft(VOV; êle é a causa final de todo ser. Logos e Eros são em si a unidade do positivo e do negativo, da criação e da destruição. Nas exigências do pensamento e na loucura' do amor está a negação destrutiva dos estilos de vida estabelecidos. A verdade transforma as modalidades de pensamento e de existência. Razão e Liberdade convergem. Contudo, essa dinâmica tem seus limites inerentes na medida em. que o caráter antagônico da realidade, sua explosão em ~o?ahdades . verídicas e inverídicas de existência, pareçam constitUIr uma condição ontológica imutável. Há modalidades de existência que jamais podem ser "verdadeiras" porque jamais podem assentar na realização de suas potencialidades, na satisfação de ser. l'1"a realidade humana, tôda existência que se desgasta procurando os requisitos da existência é assim uma existência "inverídica" e não livre. Obviamente, isso refIete a condição, que nada tem de ontológica, de uma sociedade base ad~ na proposição de que a liberdade é incompatível com a ativldade de procurar as necessidades da vida, de que essa atividade é. a_ função "natural" de uma classe específica, e de que a cogmçao da verdade e da existência verdadeira implica liberdade de tôda a dimensão de tal atividade. Esta é, na verdade. a constelação pré-tecnológica e antitecnológica por excelência. Mas a li.?~a div!sór!a real entre racionalidade pré-tecnoló. gica e tecnologlca nao e aquela entre uma sociedade baseada na não-liberdade e outra baseada na liberdade. A sociedade ainda é organizada de tal modo que a procura das necessidades da vida constitui uma ocupação de tempo integral e da vida inteira para classes sociais específicas, as quais são, portanto, não-livres e impedidas de ter uma existência humana. Neste sentido, a proposição clássica segundo a qual a verdade é incompatível com a escravização pelo trabalho socialmente necessário ainda é válida.

Para o Platão dos últimos diálogos e para Aristóteles, as modalidades de Ser são modalidades de movimento - transição da potencialidade para a realidade, para a realização. O Ser finito é realização incompleta, sujeito a modificação. Sua geração é corrupção; está permeada de negatividade. Assim, não é realidade verdadeira - Verdade. A busca filosófica prossegue do mundo finito para a construção de uma realidade que não está sujeita à dolorosa diferença entre potencialidade e realidade, que dominou sua negatividade e é completa e independente em si - livre. Essa descoberta é obra de Logos e Eros. Os dois têrmoschaves designam duas modalidades de negação; a cognição, tanto erótica como lógica, rompe a influência da realidade estabelecida e contingente e luta por uma verdade incompatível com ela. Logos e Eros são a um só tempo subjetivos e objetivos. A ascensão das formas "inferiores" para as "superiores" da realidade é um movimento tanto da matéria como da mente. Segundo

O conceito clássico implica a proposição de que a liberdade de pensamento e de palavra deve permanecer um privilégio de classe enquanto essa escravização prevalecer. Porque o pensamento e a palavra são de um sujeito pensante e falante e, se a vida dêste depende do desempenho de uma função sobreposta, depende do atendimento às exigências dessa função - dêsse modo, depende daqueles que controlam essas exigências. A linha divisória entre os projetos pré-tecnológico e tecnológico

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está mais na maneira pela qual a subordinação às necessidades da vida - a "ganhar a vida" - é organizada, e nas novas modalidades de liberdade e não-liberdade, verdade e falsidade que correspondem a essa organização. Quem é, na concepção clássica, o sujeito que compreende a condição ontológica de verdade e inverdade? f: o mestre da contemplação pura (teoria) e o mestre de uma prática orientada pela teoria, isto é, o filósofo-estadista. De fato, a verdade que êle conhece e expõe é potencialmente acessível a todos. Guiadc pelo filósofo, o escravo, em Meno, de Platão, é capaz de captar a verdade de um axioma geométrico, isto é, uma verdade que se situa além da mudança e da corrupção. Mas como a verdade é tanto um estado de ser como do pensamento, e como êste é a expressão e a manifestação do outro, o acesso à verdade permanece mera potencialidade enquanto não vive na verdade e com ela. E essa modalidade de existência é fechada ag escravo - e a todo aquêle que tem de passar a vida buscando as necessidades da vida. Conseqüentemente, se o homem não mais tivesse de passar a vida no domínio da necessidade, a verdade e uma existência humana verdadeira seriam universais em sentido estrito e real. A Filosofia visualiza a igualdade entre os homens, mas, ao m'esmo tempo, se submete à negação real da igualdade. Porque, na realidade em questão, a busca das necessidades é o trabalho de uma vida inteira para a maioria, e as necessidades têm de ser buscadas e servidas, de modo que a verdade (que é a liberdade das necessidades materiais) possa existir. Aqui, a barreira histórica detém ç deforma a busca da verdade; a divisão social do trabalho obtém a dignidade de uma condição ontológica. Se verdade pressupõe liberdade da labuta e se essa liberdade é, na realidade social, a prerrogativa de uma minoria, então a realidade só permite uma aproximação dessa verdade e para um grupo privilegiado. Esse estado de coisas contradiz o caráter universal da verdade, que define e "prescreve" não apenas uma meta teórica, mas a melhor vida do homem como homem, com relação à essência do homem. Para a Filosofia, a contradição é insolúvel, ou então não aparece como uma contradição porque é a estrutura da sociedade do escravo ou servo que essa Filosofia não transcende. Assim, ela deixa a história para trás, não-dominada, e eleva a verdade, em

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segurança, acima da realidade histórica. Aí, a verdade é preservada intacta, não como uma realização do céu ou no céu, mas como uma conquista do pensamento - intacta porque a sua própria noção expressa a percepção introspectiva de que aquêles que dedicam a vida a ganhar a vida são incapazes de viver uma existência humana.

o

conceito ontológico de verdade está no centro de uma lógica que pode servir de modêlo de racionalidade pré-tecnológica. f: a racionalidade de um universo bidimensional da locução que contrasta com formas de pensamento e comportamento unidimensionais que se desenvolvem na execução do projeto tecnológico. Aristóteles usa a expressão "logos apofântico" para distinguir um tipo específico de Logos (palavra, comunicação) aquêle que descobre a verdade e a falsidade e é, em seu desenvolvimento, determinado pela diferença entre verdade e falsidade (De lnterpretatione, 16b-17a). f: a lógica do julgamento, mas no sentido enfático de uma sentença (judicial): atribuindo (p) a (S) porque e até onde pertence a (S), como uma propriedade de (S); ou negando (p) a (S) porque e até onde não pertence a (S); etc. Partindo dessa base ontológica, a Filosofia aristotélica passa a estabelecer as "formas puras" de tôdas as predicações verdadeiras (e falsas) possíveis; ela se torna a lógica formal dos julgamentos. Quando Husserl ressuscitou a idéia de uma lógica apofântica, frisou a sua intenção crítica original. E descobriu essa intenção precisamente na idéia de uma lógica de julgamentos isto é, no fato de o pensamento não estar diretamente interessado no Ser (das Seiende selbst), mas em "pretensões", em proposições sôbre o Ser.! Husserl vê nessa orientação sôbre julgamentos uma restrição e um preconceito com respeito à tarefa e ao alcance da lógica. A idéia clássica de lógica apresenta de fato um preconceito ontológico - a estrutura do julgamento (proposição) se refere a uma realidade dividida. A locução se desloca entre a experiência de Ser e Não-Ser, essência e fato, geração e corrupção, 1 Husserl, Formale und Trans~end.nlale Logik (Halle, Niemeyer, 1929), esp. pp. 42 e segs. e 115 e .eHS.

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potenc:alidade e r~a;idade. O Orga.'lon aristotélico abst:-ai dessa unidade de opos:os as forll1a~ gerais de proposições e de suas conexões (corretas ,)ll incorretas); ainda assim, partes decisivas dessa lógica formal continuam comprometidas com a metafísica aristotélica. 2 Anteriormente a essa formalização, a experiência do mundo dividido encontra sua lógica na dialética platônica. Aqui, os têrmos "Ser", "Não-Ser", "rvfovimento", "o Um e os Muitos", "Identidade" e "Contradição" são metodicamente mantidos abertos, ambíguos e não definidos por inteiro. Têm um horizonte aberto, todo um universo de significado que é gradativamente estruturado no próprio processo de comunicação, mas que jamais é fechado. As proposições são submetidas, desenvolvidas e postas à prova num diálogo no qual o interlocutor é levado a questionar o universo da experiência e da palavra, normalmente inconteste e a entrar numa nova dim~nsão da locução - em outras circunstâncias êle é livre, e a locução é focalizada em sua liberdade. Espera-se que êle vá além do que lhe é apresentado - pois o orador, em sua proposição, vai além da disposição inicial dos têrmos. f:sses têrmos têm muitos signifilados porque as condições às quais se referem têm muitas facêtis, implicações e efeitos que não podem ser isolados e estabilizados. Seu desenvolvimento lógico corresponde ao processo da realidade, ou Sache seibst. As leis do pensamento são leis da realidade, ou, antes, se tornam leis da realidade se o pensamento compreende a verdade da experiência imediata como a aparência de outra verdade, que é a das verdadeiras Formas da realidade - das Idéias. Assim, há contradição em vez de correspondência entre pensamento dialético e a rea!idade em questão; o verdadeiro julgamento não julga a realidade em seus próprios têrmos, mas em têrmos que visualizam sua subversão. E nessa subversão a realidade chega à sua própria verdade. Na lógica clássica, o julgamento que constituía o cerne original do pensamento dialético foi formalizado na forma proposiCional "S é p". Mas essa forma esconde, em vez de revelar a proposição dialética básica que enuncia o caráter negativo da realidade empírica. Julgados à luz de sua essência e idéia, os homens e as coisas existem diferentemente do que são; conse-

Pp.

2 Carl P,antl. (;~'s':'ilchte der l.o~,k im Abendl<4nd.:, DarmstaJt. 1957, vol. I, 135, 211. Para o argumento contra essa Jnterpretóção, ver p. 136, adiante.

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qüentemente, O pensamento contradiz o que é (dado), opõe sua verdade à da realidade em questão. A verdade visualizada pelo pensamento é a Idéia. Como tal ela é, em têrmos da realidade em questão, "mera" Idéia, "mera" essência - potencialidade. Mas a potencialidade essencial não é como as muitas possibilidades contidas no universo da locução e ação em questão; a potencialidade essencial é de ordem muito diferente. Sua realização compreende a subversão da ordem estabelecida, pois pensar de acôrdo com a verdade é um compromisso de existir de acôrdo com a verdade. (Em Platão, são os seguintes os conceitos extremos que exempiificam essa subversão: morte como comêço da vida do filósofo, e a violenta libertação da Caverna). Assim, o caráter subversivo da verdade impõe ao pensamento uma qualidade imperativa. A lógica se concentra em julgamentos que são, como proposições demonstrativas, imperativos - o predicativo "é" implica um "deve" f:sse estilo de per "lmento contraditório e bidimensional é a forma íntima não apenas da lógicca dialética, mas também de tôda Filosofia que se preocupe com a realidade. As proposições que definem realidade afirmam um algo verdadeiro que não é (imediatamente) o caso; assim, contradizem aquilo que é o caso e negam a sua verdade. O julgamento afirmativo contém uma negação que desaparece na forma proposicional (S é p). Por exemplo, "virtude é conhecimento"; "justiça é aquêle estado no qual todos desempenham a função para a qual a sua natureza é mais bem apropriada"; "o perfeitamente real é perfeitamente conhecível"; "verum est id, quod est"; "o homem é livre"; "o Estado é a realidade da Razão". Para que essas proposições possam ser verdadeiras, o verbo "é" declara um "deve", um desiderato. Julga condições nas quais virtude não é conhecimento, nas quais os homens não desempenham funções para as quais a sua natureza mais bem os credencia, nas quais não são livres etc. Ou, a forma categórica S-p declara que (S) não é (S); (S) é definido como outro que não êle próprio. A verificação da proposição compreende um processo tanto em fato como em pensamento: (S) deve tornarse aquilo que é. A declaração categórica se torna, assim, um imperativo categórico; não declara um fato, mas a necessidade de ocasionar um fato. Por exemplo, a declaração poderia ser 133


lida do seguinte modo: o homem não é (de fato) livre, dotado de direitos inalienáveis etc., mas deve ser, porque é livre aos olhos de Deus, por natureza etc. 3 O pensamento dialético compreende a tensão crítica entre "é" e "deve" primeiramente como uma condição ontológica pertencente à própria estrutura do Ser. Contudo, o reconhecimento dêsse estado de Ser - sua teoria - intenta, desde o início, uma prática concreta. Vistos à luz de uma verdade que aparece nêles .falsificada ou negada, os próprios fatos em questão parecem falsos e negativos. Conseqüentemente, o pensamento é levado, pela situação de seus objetos, a medir a verdade dêstes em têrmos de outra lógica, de outro universo da locução. E esta lógica projeta outra modalidade de existência: a realização da verdade nas palavras e os atos do homem. E, visto como êste projeto compreende o homem como um "animal social", a polis, o movimento do pensamento tem um conteúdo político. Assim, a locução socrática é uma locução política porquanto contradiz as instituições políticas estabelecidas. A busca da definição correta, do "conceito" de virtude, justiça, piedade e conhecimento se torna uma emprêsa subversiva, pois o conceito intenta uma nova polis. O pensamento não tem poder algum para ocasionar tal modificação, a não ser que transcenda a si mesmo para a prática, e a própria dissociação da prática material, em que se origina a Filosofia, dá ao pensamento filosófico sua qualidade abstrata e ideológica. Em virtude dessa dissociação, o pensamento filosófico crítico é necessàriamente transcendente e abstrato. A Filosofia partilha essa abstração com todo o pensamento genuíno, pois não pensa realmente quem não faz abstração daquilo que é dado, quem não relaciona os fatos com os fatôres que os fizeram, quem não desfaz - em sua mente - os fatos. A abstração é a própria vida do pensamento, o indício de sua autenticidade. 3 Mas por que a proposição não diz "deve" se significa "deve"? Por que a negação desaparece na afirmação? Terão as origens metafísicas da lógica talvez determinado a forma proposicional? Tanto o pensamento pré-socrático como o s0crático antecipam a separação entre lógica e ética. Se sômente o que é verdadeiro (o l:~gOS; a Idéia) realmente I. então a realidade da experiência imediata participa ~n o.v, ou daquilo Q,ue. não é. No entanto, êste J,Lt, é, e para a experiência ImedIata (que é a uDlca realidade para a maioria dos homens) êle é a única realidade que I. O dúplice significado de "é" expressaria assim a estrutura bidimensional de um mundo só. • •

ov

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Mas há abstrações verdadeiras e falsas. Abstração é uma ocorrência histórica num contínuo histórico. Desenrola-se em bases históricas e permanece relacionada com as próprias bases das quais se inicia: o universo social estabelecido. Até mesmo quando a abstração crítica chega à negação do universo da locução estabelecido, as bases sobrevivem na negação (subversão) e limitam as possibilidades do nôvo ponto de vista. Nas origens clássicas do pensamento filosófico, os conceitos transcendentes permaneceram comprometidos com a separação prevalecente entre trabalho intelectual e manual - com a sociedade éscravista estabelecida. O Estado "ideal" de Platão conserva e reforma a escravização, embora organizando-a de acôrdo com uma verdade eterna. E em Aristóteles, o rei-filósofo (no qual a Filosofia e a prática ainda estavam combinadas) cede à supremacia do bios theoreticos, que dificilmente se pode invocar uma função e um conteúdo subversivos. Os que suportaram o impacto da falsa realidade e que, portanto, pareciam os mais necessitados de alcançar a sua subversão, não constituíram preocupação da Filosofia. Ela se abstraiu e continuou a se abstrair dêles. Nesse sentido, o "idealismo" era adequado ao pensamento filosófico, porquanto a noção de supremacia de pensamento (consciência) também pronuncia a impotência do pensamento num mundo empírico que a Filosofia transcende e corrige - em pensamento. A racionalidade, em nome do que a Filosofia fêz os seus julgamentos, alcançou aquela "pureza" abstrata e geral que a tornou imune ao mundo em que se tinha de viver. Com a exceção dos "heréticos" materialistas, o pensamento filosófico raramente foi perturbado pelas aflições da existência humana. Paradoxalmente, é precisamente o intento crítico do pensamento filosófico que leva à purificação idealista - um intento crítico que visa ao mundo empírico como um todo e não meramente a certas modalidades de pensamento e comportamento dentro dêle. Definindo os seus conceitos em têrmos de um tipo de pensamento e existência essencialmente diferente, a crítica filosófica se acha bloqueada pela realidade da qual se dissocia e passa a construir um reino da Razão purgado de contingência empírica. As duas dimensões do pensamento - a da verdade essencial e a da verdade aparente - não mais interferem uma na outra, e sua relação dialética concreta se torna uma relação abstrata epistemológica ou ontológica. Os julgamentos da realidade em questão são substituídos por propo135


slçoes definindo as formas gerais do pensamento, objetos do pensamento e relações entre pensamento e seus objetos. O sujeito do pensamento se torna a forma pura e universal de subjetividade, da qual são removidos todos os particulares. Para tal sujeito formal, a relação entre óv e ;.t~ óv, modificação e permanência, potencialidade e realidade, verdade e falsidade, não mais é preocupação essencial;4 é, antes, uma questão de Filosofia pura. f: impressionante o contraste entre a lógica dialética de Platão e a lógica formal de Aristóteles. No Organon aristotélico, o têrmo silogístico (horos) é "tão destituído de significado substancial que uma letra do alfabeto lhe é um substituto plenamente equivalente". f:, portanto, inteiramente diferente do têrmo "metafísico" (também horos) que designa o resultado da definição essencial, a resposta à pergunta: "T~ fUT[V?"S Kapp afirma, contrariando Prantl, que as "duas significações diferentes são inteiramente independentes entre si e jamais foram confundidas pelo próprio Aristóteles". De qualquer maneira, o pensamento é, na lógica formal, orgànizado de um modo muito diferente daquele do diálogo de Platão. Nessa lógica formal, o pensamento é indiferente aos seus objetos. Quer sejam êles mentais ou físicos, quer pertençam à sociedade ou à natureza, tornam-se sujeitos às mesmas leis gerais da organização, cálculo e conclusão - mas o fazem como sinais ou símbolos fungíveis, em abstração de sua "substância" particular. Essa qualidade geral (qualidade quantitativa) é a precondição da lei e da ordem - tanto na lógica como na sociedade - , o preço de contrôle universal. Die Allgemeinheit der Gedanken, wie die diskursive Logik sie entwieckelt, erhebt sich auf dem Fundament der Herrschaft in der Wirklichkeit. 6

A Metafísica de Aristóteles declara a conexão entre conceito e contrôle: o conhecimento das "causas primeiras" é - como . .4 Para. evitar mal·entendido: não creio que a Fr"g~ nach dem Sein e perguntas slmIlar.es sejam ou devam ser uma preocupação existencial. O que foi significativo nas ongens do pensamento filosófico bem se poderá ter tornado destituído dp. significado no seu fim. e a perda d~ significado pode não ser decorrente da incapacidade de ~nsar. !' história da humanidade deu respostas definidas à "questão de Ser" e o fez em termos bastante concretos que provaram sua eficácia. O universo tecnológico é uma delas. Para maior discussão do assunto, ver capítulo 6, adiante. S Ernst Kapp, Greek FOlmdations 01 Traditlonal Logic (Nova York Columbia ' University Press, 1942), p. 29. 6 "O conceito geral que a lógica discursiva desenvolveu tem seus fundamentos na realidade ela dominação". M. Horkheimer c T. W. Adorno Dialektik der A.uJklarung (Amesterdã, 1947), p. 2S. '

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o conhecimento do universal - o conhecimento mais eficiente e certo, pois dispor sôbre as causas é dispor sôbre seus efeitos. Em virtude do conceito universal, o pensamento atinge domínio sôbre os casos particulares. Contudo, o universo mais formalizado da lógica ainda se refere à estrutura mais geral do mundo em questão, experimentado; a forma pura ainda é a do conteúdo que êle formaliza. A própria idéia de lógica formal é uma ocorrência histórica no desenvolvimento dos instrumentos mentais e físicos para o contrôle e calculabilidade universais. Nessa emprêsa, o homem teve de criar a harmonia teórica da discórdia geral, para expurgar as contradições do pensamento, para substancializar unidades identificáveis e fungíveis no complexo processo da sociedade e da natureza. Sob o domínio da lógica formal, a noção do conflito entre essência e aparência é dispensável, se não mesmo sem sentido; o conteúdo material é neutralizado; o principio da identidade é separado do princípio da contradição (as contradições são culpa do pensamento incorreto); as causas finais são removidas da ordem lógica. Bem definidos em seu alcance e função, os conceitos se tornam instrumentos de predição e contrôle. A lógica formal é, assim, o primeiro passo na longa viagem para o pensamento científico - apenas o primeiro passo, porque ainda é necessário um grau muito mais elevado de abstração e matematização para ajustar o modo de pensar à racionalidade tecnológica. Os métodos do procedimento lógico são muito diferentes na lógica antiga e moderna, mas por trás de tôda diferença está a construção de uma ordem de pensamento universalmente válida, neutra com relação ao conteúdo material. Muito antes de o homem tecnológico e a natureza tecnológica terem surgido como objetos de contrôle e cálculo racionais, a mente foi tornada suscetível de generalização abstrata. Têrmos que podiam ser organizados num ·sistema lógico coerente, livres de contradição ou com contradição controlável, foram separados dos que não podiam ser assim tratados. Foi feita distinção entre a dimensão universal, calculável e "objetiva" do pensamento e a particular, incalculável e subjetiva; esta entrou na ciência somente pO!' meio de uma série de reduções. A lógica formal prenuncia a redução de qualidades secundárias a primárias, nas quais as primeiras se tornam propriedades da Física, mensuráveis e controláveis. Os elementos do pensamento podem ser então cientificamente organizados - como

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os elementos humanos podem ser organizados na realidade social. A racionalidade pré-tecnológica e tecnológica, a ontologia e a tecnologia são ligadas pelos elementos do pensamento que ajustam as regras do pensamento às regras do contrôle e da dominação. As formas de dominação pré-tecnológicas e tecnológicas são fundamentalmente diferentes - tão diferentes quanto escravidão e trabalho assalariado livre, paganismo e cristianismo, Cidade-Estado e nação, matança da população de uma cidade capturada e campos de concentração nazistas. Contudo, história ainda é a história da dominação, e a lógcia do pensamento continua a lógica da dominação. A lógica formal pretendeu dar validez universal às leis do pensamento. Na verdade, sem universalidade o pensamento seria uma questão privada, sem cometimento, incapaz de entender o menor setor da existência. O pensamento é sempre mais e outra coisa que ponderação individual; se começo a pensar em pessoas individualmente numa situação específica, encontro-as num contexto supra-individual do qual elas participam, e penso em conceitos gerais. Todos os objetos do pensamento são universais. Mas é igualmente verdade que o significado supra-individual, a universalidade de um conceito, nunca é meramente formal; é constituído na inter-relação dos sujeitos (pensantes e atuantes) e o seu mundo'? Abstração lógica é também abstração sociológica. Há uma mimese lógica que formula as leis do pensamento em acôrdo protetor com as leis da sociedade, mas é apenas um modo de. pensar entre outros. A esterilidade da lógica formal aristotélica foi com freqüência notada. O pensamento filosófico se desenvolveu paralelamente a essa lógica e até fora dela. Em seus principais esforços, nem a escola idealista nem tampouco a materialista, nem a racionalista nem tampouco a empírica parece deveram algo àquela. A lógica formal era não-transcendente em sua própria estrutura. Canonizou e organizou o pensamento dentro de uma estrutura prescrita além da qual nenhum silogismo podia ir permaneceu uma "analítica". A lógica continuou sendo uma disciplina especial paralelamente ao desenvolvimento substantivo do pensamento filosófico, essencialmente inalterável a despeito dos novos conceitos e novos conteúdos que marcaram êsse desenvolvimento. 7 Ver T. W. Adorno, Zur Melakrilik der Erkennlnislheorie, Stuttgart, 19S6, capítulo I, Krilik der logischen Absolulismus.

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De fato, nem os escolásticos nem o racionalismo e o empirismo dos primórdios do período moderno tinham razão alguma para objetar ao modo de pensar que havia canonizado suas formas gerais na lógica aristotélica. Pelo menos o seu intento estava em concordância com a validez e a exatidão científicas, e o resto não interferiu na elaboração conceptual da nova experiência e nos novos fatos. A lógica matemática e simbólica contemporânea é, sem dúvida, assaz diferente de sua predecessora clássica, mas ambas compartilham da gposição radical à lógica dialética. Em têrmos dessa oposição, a antiga e a nova lógicas formais expressam o mesmo modo de pensar. hste é purgado do "negativo" que tanto se avultou nas origens do pensamento lógico e filosófico - a experiência do poder de negação, decepcionante e falsificador da realidade estabelecida. E, com a eliminação dessa experiência, o esfôrço conceptual para manter a tensão entre o "é" e o "deve" e para subverter o universo da locução estabelecido, em nome de sua própria verdade, é igualmente eliminado de todo pensamento que deva ser objetivo, exato e científico. Pois a subversão científica da experiência imediata que estabelece a verdade da ciência em contraposição à da experiência imediata não desenvolve os conceitos que trazem em si o protesto e a recusa. A nova verdade científica que êles opõem à verdade aceita não contém em si o julgamento que condena a realidade estabelecida. Em contraste, o pensamento dialético é e continua sendo não-científico no quanto é tal julgamento, e o julgamento é impôsto ao pensamento dialético pela natureza de seu objeto - por sua objetividade. :E:.ste objeto é a realidade em sua verdadeira concreção; a lógica dialética evita tôda abstração que deixa todo conteúdo concreto sàzinho e para trás, incompreendido. Hegel capta na Filosofia crítica de sua época o "mêdo do objeto" (Angst vor dem Objekt) e exige que um pensamento genuinamente científico supere essa atitude de mêdo e compreenda o "lógico e o racional-puro" (das Logische, das Rein-Vernünftige) na própria concreção de seus objetos. 8 A lógica dialética não pode ser formal, porque é determinada pelo real, que é concreto. E essa concreção, longe de militar contra um sistema de princípios e conceitos gerais, exige tal sistema de lógica porque se move sob leis gerais que contribuem para a 8

Wissenschafl der Logik, ed. LassoD (Leipzig, Meiner, 1923), vol. I, p. 32.

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