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JOÃO HENRIQUE DA SILVA
A CONCEPÇÃO DE HOMEM NO PENSAMENTO EXISTENCIAL DE SOREN KIERKEGAARD
FACULDADE CATÓLICA DE POUSO ALEGRE POUSO ALEGRE 2008
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JOÃO HENRIQUE DA SILVA
A CONCEPÇÃO DE HOMEM NO PENSAMENTO EXISTENCIAL DE SOREN KIERKEGAARD
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para obtenção grau de Bacharel em Filosofia, Curso de Filosofia, Faculdade Católica de Pouso Alegre. Orientador: Professor Mestre Padre Wilson Mário de Morais.
POUSO ALEGRE 2008
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Dedico este trabalho a minha mãe Conceição Aparecida Silva, mulher de fé, de paradoxo e discípula de Jesus Cristo. Ela é exemplo paradoxal dos ensinamentos de Cristo e o sentido do meu existir.
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ELOGIO DE ABRAÃO “Se o homem não possuísse consciência eterna, se um poder selvagem e efervescente produtor de tudo, grandioso ou fútil, no torvelinho das paixões obscuras, existisse só no fundo de todas as coisas; se sob elas se escondesse infinito vazio que nada pudesse encher, que seria da vida senão o desespero? Se assim fosse, se um vínculo sagrado não cingisse a humanidade; se as gerações se não renovassem como se renovam as folhas das florestas; se umas atrás das outras fossem extinguindo como o canto dos pássaros nos bosques, atravessando o mundo como a nave o oceano, ou o vento o deserto estéril e cego; se o esquecimento eterno, sempre esfomeado, tivesse força suficiente para lhe arrebatar a presa espiada, quão vã e desoladora seria a vida! Mas tal não é o caso. Do mesmo modo que formou o homem e a mulher também Deus formou o herói, o poeta ou orador (...). Nada será perdido dos que foram grandes; cada um a seu modo e segundo a grandeza do objeto que amou. Porque aquele que se amou a si próprio foi grande pela sua pessoa; quem amou a outrem foi grande dando-se; mas o que amou a Deus foi o maior de todos. A história celebrará os grandes homens, mas cada um foi grande pelo objeto de sua esperança: um engrandeceu na esperança de atingir o possível; um outro na esperança das coisas eternas – mas aquele que quis alcançar o impossível foi, de todos, o maior. Os grandes homens hão-de sobreviver na memória dos vindouros, mas cada um deles foi grande pela importância do que combateu. Porque aquele que lutou contra o mundo, foi grande triunfando do mundo, o que combateu consigo próprio foi grande pela vitória que alcançou sobre si – mas aquele que lutou contra Deus foi o maior de todos. Tal é a suma dos combates travados na Terra: homem contra homem, um contra mil; mas aquele que luta contra Deus é o maior de todos. Tais são os combates deste mundo: um chega ao termo usando da força, o outro desarma Deus pela sua fraqueza. Viu-se os que se apoiaram em si próprios de tudo triunfarem e os outros, fortes da sua força, tudo sacrificarem – mas o maior de todos foi o que acreditou em Deus. E houve grandes homens pela sua energia, sabedoria, esperança ou amor – mas Abraão foi o maior de todos: grande pela energia cuja força é a fraqueza, grande pelo saber cujo segredo é a loucura, pela esperança cuja forma é demência, pelo amor que é ódio a si próprio”. Temor e Tremor
Soren A. Kierkegaard
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AGRADECIMENTOS
Agradeço, em especial, à pessoa do Padre Adriano São João que me instigou e me apoiou na confecção deste trabalho monográfico. Por meio dele, conheci o pensamento kierkegaardiano, o que me possibilitou amadurecer na fé cristã e crescer como pessoa. Com o seu apoio e sabedoria, ajudou-me a escrever esse trabalho. Também rendo graças à minha família: minha amada mãe Conceição, meu querido pai João, minhas irmãs e amigas Flávia e Diana, meu irmão Gilberto. E meus cunhados Juliano, Regina e Hodielis. E também as minhas sobrinhas carinhosas: Larissa e Maria Eduarda. Vocês são presente de Deus em minha vida, por isso, recebam o meu carinho e amor. Agradeço igualmente aos meus amigos seminaristas que conviveram um bom tempo comigo no colegial: Adriano, Edpo, Fernando, Gerson, Marcos, Lessandro, Lucas, Samuel, Wellington, entre outros. Expresso meu reconhecimento e estima aos amigos: Ubiracy de Souza Braga, Meire, Luís Henrique, Vívian, Bárbara, Letícia, Poliana, Márcia, Bruna, Patrícia, Marli, Andressa, Patrícia, Gilson e os demais amigos da loja Papel e Cia. Eles fazem parte da história da minha vida, nunca me esquecerei dos momentos que passei com vocês. Não posso deixar de ser grato para com a pessoa maravilhosa que é o Padre Wilson, que me ajudou muito durante o curso de filosofia e agora me ajudou a fazer esse trabalho. Expresso a minha estima também pelos padres, funcionários da faculdade, amigos bom repousenses, professores da faculdade, colegas do colégio e conhecidos no decorrer da minha vida. Também expresso carinho aos meus amigos e colegas da minha turma de faculdade, que durante esses três anos foram pacientes para com a minha pessoa. Cada um de vocês me proporcionou crescer em todas as dimensões humanas. Por fim, rendo graças e louvor ao Espírito do Amor, o Paradoxo Absoluto, Deus, que me fortaleceu e fortalece em todos os momentos da minha vida. Ele é o paradigma e o caminho da minha vida.
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RESUMO Este trabalho analisa a concepção de homem no pensamento de Kierkegaard sob a perspectiva do homem religioso. O primeiro capítulo retrata o contexto da época e a vida de Kierkegaard. O segundo capítulo é o principal, trata do que é o homem e os estádios existenciais: o estádio estético, ético e religioso. Este último acontece por uma relação absoluta do indivíduo com o Absoluto através da fé e do paradoxo. E, por fim, o último capítulo que fala sobre o legado de Kierkegaard para o século XIX e XX, e o que é a pós-modernidade, o que é torna-se cristão e a contribuição do seu pensamento para a atualidade. Portanto, esse trabalho apresenta o pensamento sobre o Homem em Kierkegaard, o que é fundamental para refletir sobre o homem na pós-modernidade. Palavras-chave: Kierkegaard; Homem; Estádios existenciais; Fé; Legado Kierkegaardiano; O que é Pós-modernidade.
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ABSTRACT This work analyses the conception of the man under the thought of Kierkegaard from the perspective of the religious man. The first chapter talks about the context of the time and Kierkegaard’s life. The second chapter is the most important, it deals with the man and the stages of existence: the aesthetic stage, ethical and religious stages. The last one happens through an absolute relationship between the individual and the Absolute through faith and paradox. Finally, the last chapter, talks about Kierkegaard’s legacy for the XIX, and XX centuries, it talks about what postmodernity is, what it is to become a Christian and the contribution of his thoughts for the present. Therefore, this work shows the thought of the Man in Kierkegaard, which is fundamental to reflect about the man in post-modernity. Key words: Kierkegaard; Man; Stages of existance; Faith; Kierkegaard’s Legacy; What is Postmodernity.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
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1 KIERKEGAARD: UM PENSADOR À ESCUTA DO TEMPO
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1.1 SÉCULO XIX, TEMPO DE TRANSFORMAÇÕES
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1.1.1 Aspecto Histórico-Social
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1.1.2 O Desenvolvimento das Ciências
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1.1.1.3 A Filosofia
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1.2 KIERKEGAARD: “UM HOMEM-PROBLEMA PARA SI MESMO
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1.2.1 A Vida de Kierkegaard
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1.2.2 As Influências Filosóficas e Religiosas
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2 KIERKEGAARD: UM PENSADOR À ESCUTA DO SER HUMANO
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2.1 O MÉTODO
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2.1.1 A Comunicação Indireta e Direta
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2.2 A EXISTÊNCIA E O INDIVÍDUO
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2.2.1 A Existência como possibilidade
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2.3 OS ESTÁDIOS NO CAMINHO DA VIDA
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2.3.1 O Estádio Estético
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2.3.2 A Eleição e a Ironia
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2.3.3 O Estádio Ético
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2.3.4 O Humor
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2.3.5 O Estádio Religioso
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2.4 O PARADOXO DA VIDA CRISTÃ
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2.4.1 A Fé e a Subjetividade
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2.4.2 A Fé como Paradoxo
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2.4.3 Abraão: O Cavalheiro da Fé
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3 KIERKEGAARD: UM PENSADOR PARA A ESCUTA DO TEMPO E DO HOMEM
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3.1 O LEGADO KIERKEGAARDIANO
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3.1.1 Kierkegaard: O Sentido dos seus Escritos
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3.1.2 Kierkegaard e seu Legado
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3.1.2.1 A Recepção às Obras de Kierkegaard
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3.1.2.2 A Filosofia da Existência
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3.1.2.2.1 O existencialismo de Kierkegaard
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3.1.2.2.2 O que é a Filosofia da Existência?
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3.2 A PÓS-MODERNIDADE
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3.2.1 O Que é a Pós-modernidade?
72
3.2.2 A Religião na Pós-modernidade
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3.3 TORNAR-SE CRISTÃO
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3.3.1 Migalhas Filosóficas
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3.3.2 Como tornar-se cristão?
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3.3.3 O Amor Cristão
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3.3.4 Crítica à Cristandade
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3.4 MOMENTO CRÍTICO
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CONCLUSÃO
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REFERÊNCIAS
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OBRAS CONSULTADAS
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INTRODUÇÃO
Ao longo da história, a reflexão antropológica sempre se fez presente. O homem sempre foi um problema para si mesmo. Desde os primórdios, em especial com Sócrates, o homem constitui tema central de muitas investigações. Hoje não é diferente. A pósmodernidade instiga a repensá-lo e compreendê-lo. Esse estímulo origina-se por causa da própria situação do século XXI. O homem e o mundo estão em crise. A ciência e a razão não mais o satisfazem. Vive-se atualmente uma crise de valores. Dos tantos “ismos” que atingem o mundo contemporâneo, o consumisno, o niilismo, o individualismo ocupam a primeira fileira. Levando-se em conta os diversos problemas pelos quais o mundo de hoje passa, só mesmo um pensamento radical e determinante sobre a existência humana pode se constituir numa alternativa viável a iluminar a vida do século XXI. Quem é que pode oferecer ao mundo contemporâneo uma reflexão sólida e profunda sobre o ser humano senão ninguém menos do que Soren A. Kierkegaard? Esse pensador dinamarquês experimentou, de forma profunda, a existência. A sua vida é a sua filosofia! O seu pensamento fundamenta-se no existir humano. Kierkegaard foi um crítico veraz. A sociedade, o homem, a razão e a religião foram alvos da sua crítica. Ele percebeu as contradições e as incoerências existenciais. Também foi um profeta, percebeu o esquecimento do significado homem e de transcendência, desembocando numa crise de sentido no século posterior. Dada a força, o vigor e a atualidade do seu pensamento, este Trabalho de Conclusão de Curso procura discorrer sobre a Concepção de Homem no pensamento existencial de Soren A. Kierkegaard. O homem é o ponto chave e central para compreensão do pensamento de Kierkegaard. A reflexão sobre o homem em Kierkegaard permite responder diversos questionamentos que acompanham a história da humanidade: O que é o homem? Qual é o sentido da sua vida? Como tornar-se humano e não objeto homem? Como viver bem a vida? O presente estudo sobre a visão antropológica de Kierkegaard procura conhecer, de um modo mais profundo, a vida e o pensamento de Kierkegaard, bem como descobrir o
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quanto ainda ele pode falar ao homem pós-moderno. Para tanto, o trabalho divide-se em três capítulos. O primeiro capítulo aborda o contexto histórico-social-filosófico em que se desenvolveu a filosofia de Kierkegaard. Também trata da sua biografia e das influências culturais e filosóficas recebidas. Na verdade, apresenta a formação do pensamento de Kierkegaard. O segundo capítulo é o cerne do trabalho. Trabalha a questão do significado de homem para Kierkegaard, refletindo sobre os estádios existenciais pelos quais o homem caminha: o estético, o ético e o religioso. E em especial, discorre sobre o estádio religioso, que é essencial para o pensador dinamarquês. A vida religiosa é primordial para entender a concepção antropológica kierkegaardiana. O homem religioso é a luz para viver uma vida digna. É uma vida de paradoxo, de tensão entre o juízo e graça, mas que possibilita viver a verdade. O estádio religioso é inclusive marcado por uma relação estreita do indivíduo com o Absoluto. Deus é o ponto de convergência e de desenvolvimento da personalidade. E, por último, o terceiro capítulo procura discorrer sobre o legado kierkegaardiano nos séculos XIX, XX e XXI, como seu deu a recepção de suas obras. Esta última parte do presente trabalho também apresenta uma reflexão sobre o que é pós-modernidade e o que significa tornar-se cristão no mundo contemporâneo. Tornar-se cristão é uma tarefa alternativa para que o homem pós-moderno possa viver bem consigo mesmo, com Deus e com os outros. Ser cristão é seguir os ensinamentos de Cristo. Os seus ensinamentos possibilitam uma melhor relação entre Deus, o homem e outros homens. Na verdade, este capítulo quer refletir sobre a atualidade da filosofia e da teologia, em sentido acadêmico, de Kierkegaard. A produção literária de Kierkegaard é muito vasta, compreendendo uma série de discursos, ensaios, cartas, anotações, diários, artigos, periódicos, livros etc. O presente trabalho valeu-se da coletânea de textos de Kierkegaard organizada por Ernani Reichmann, tendo como referência para a compreensão da filosofia kierkegaardiana obras de autores como: Ricardo Q. Gouvêa, France Farago, Marcio G. Paula, Álvaro L. M. Valls, Régis Jolivet. Enfim, esse Trabalho de Conclusão de Curso retrata a compreensão de homem no pensamento de Kierkegaard. Homem não é uma idéia, uma abstração, mas um indivíduo concreto, dotado de razão e fé. A fé é o caminho para o encontro com transcendência e a verdade, capaz de livrá-lo das angústias e do desespero. Se o ser humano se fechar em si
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mesmo, não conseguirá ter um relacionamento autêntico consigo próprio, com Deus e com outros. Para Kierkegaard, Deus é a perspectiva e o fundamento da vida humana.
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1 KIERKEGAARD: UM PENSADOR À ESCUTA DO TEMPO A raça humana deixou de temer a Deus. Depois disso, veio o castigo: passou a temer a si mesma, a ânsia pelo fantasmagórico, e agora treme diante dessa criatura de sua própria imaginação. Soren Kierkegaard
A reflexão que se procura desenvolver neste primeiro capítulo tem o objetivo de destacar o contexto histórico, social e filosófico em que viveu Kierkegaard, caracterizado sobretudo pelo ambiente revolucionário e pela perda de alguns referenciais importantes para a existência humana. Tal objetivo é necessário, tendo em vista a questão central deste trabalho: analisar a concepção que Kierkegaard tem de homem, descrito através dos estádios estético, ético e religioso que, na sua visão, são característicos do desenvolvimento do ser humano. Esses três estádios não se referem tanto a um desenvolvimento pessoal, mas a três posturas distintas face à vida. Diante das profundas transformações por que passa o mundo contemporâneo, regido principalmente pela lógica do indivíduo, da sensação, da autonomia, do consumo, e até mesmo do desencanto em relação à vida, o pensamento de Kierkegaard ganha força e atualidade, sendo capaz de provocar no ser humano o desejo de voltar-se para dentro de si mesmo e desenvolver uma reflexão que lhe ofereça respostas para as perguntas mais cruciais da vida: Quem sou eu? De onde venho e para onde vou? O que significa viver? Através de um poder literário brilhante e criador, Kierkegaard colocou a sua vida a serviço da crítica das idéias que eram expressões que não tocavam a verdadeira seriedade da vida nem a decisão existencial necessária para o homem “encontrar a si mesmo em seu valor eterno”. Na verdade, o principal interesse do pensador dinamarquês foi o de descrever o que é o cristianismo verdadeiro: “Deste modo, toda (a minha) atividade como escritor trata disto: dentro do cristianismo ser um cristão”. Kierkegaard “não escreveu sobre o mundo, mas sobre a vida – sobre como vivemos e como escolhemos viver” (Strathern, 1999, p. 7). Percebendo a distorção do sentido da vida na sua época, procurou combater dois adversários fundamentais: a dissolução do indivíduo singular no gênero humano, na história e na cultura, e a “cristandade estabelecida”, o cristianismo reduzido a sistema de vida, a mero componente da civilização1. Kierkegaard, além de ter sido consciente da impossibilidade do ser humano “ser edificado em massa, assistiu à ascensão da ideologia igualitária, niveladora, que reduz cada um à medida comum do rebanho. Assistiu à irrupção das massas e 1
Estes dois problemas constituem o alvo das críticas do pensamento de Kierkegaard. A redução do ser humano a uma mera abstração, um ente perdido nas massas, levou o pensador dinamarquês a se posicionar criticamente em relação a Hegel; e o cristianismo tímido e acomodado da época o fez enfrentar a Igreja Luterana da Dinamarca.
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percebeu o veneno que seria a imprensa cotidiana” (Farago, 2006, p. 247). Tudo o que experimentou e viveu, levou-o a uma auto-reflexão sobre si mesmo, uma busca apaixonada por aquilo que ele acredita ser o homem: alguém que não se deixa dissolver na massa, mas que no devir concreto, no instante em que vive, decide a sua existência. As obras de Kierkegaard correspondem, portanto, “à tentativa de traduzir nas palavras rebeldes a experiência indizível que ele teve, e dá testemunho do fato de que a ordem do sentido sempre ultrapassa a ordem do discurso” (Farago, 2006, p. 17). Kierkegaard não foi um homem do seu tempo, mas não deixou de escutar o tempo e a história. Foi um cristão com “exageros”, sem tibieza no coração. Não foi a toa que conseguiu chegar apenas aos quarenta e dois anos. Infelizmente, a sua influência não foi grande durante sua vida. Suas idéias eram por demais diferentes das principais de sua época para serem acolhidas e utilizadas pela sociedade. Mas no século XX, os escritos kierkegaardianos tiveram uma aceitação incomum. De acordo com Gouvêa (2006, p. 19-20), Kierkegaard constitui “uma das figuras mais importantes e fascinantes na história das idéias e um pensador-chave no desenvolvimento da teologia e da filosofia do século XX”. O mesmo se pode dizer em relação ao século XXI.
1.1 SÉCULO XIX, TEMPO DE TRANSFORMAÇÕES
Conforme se afirmou acima, a Europa do início do século XIX é caracterizada pelo ambiente revolucionário. Segundo Reale e Antiseri (2005, p. 3-4), o século XIX é marcado por muitas mudanças radicais e claras nos aspectos histórico, social e filosófico. No aspecto histórico, o evento mais significativo é a Revolução Francesa (1789)2, que influenciou o mundo inteiro com o seu ideal de Liberté, Égalité et Fraternité. No social, o governo napoleônico influenciou a mudança do parâmetro institucional, social e filosófico vigente. No que diz respeito ao aspecto filosófico, destaca-se o Romantismo como uma resposta ao Iluminismo, propondo uma descrença na razão. Inclusive o Idealismo de Hegel propiciou uma nova maneira de ver a história do ser humano.
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Enquanto a revolução na França garantiu a liberdade, a da Alemanha se ocupou somente com a idéia de liberdade. Na Alemanha, as classes intelectuais viviam totalmente indiferentes à questão da práxis. “O mundo da ciência, da arte, da filosofia e da religião não só lhes oferecia satisfação, como também tornara-se, para elas, a ‘verdadeira realidade’, transcendentes às miseráveis condições da sociedade. A cultura era, então, essencialmente idealística, ocupada com a idéia [grifo do autor] das coisas, mais do que com as próprias coisas” (Arantes, 1996, p. 6). Isso favoreceu que os filósofos desenvolvessem uma filosofia idealista, sendo Hegel o último a expressar o idealismo cultural, o último a fazer do pensamento “um refúgio da razão e da liberdade” (Arantes, 1996, p. 6).
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1.1.1 O Aspecto Histórico-Social
Antes de se falar do século XIX, é preciso lembrar que os seus ideais de revolução e mudança são um legado do século XVIII, o século da Revolução Francesa3, considerada como uma nova era na etapa histórica, influenciando o mundo e espalhando-se pela Europa, América do Norte e a Latina. A Revolução Francesa contribuiu para que a burguesia ocupasse o poder político e organizasse o Estado à maneira que lhe convinha. Como arma em seu favor, a burguesia utilizou a insatisfação das camadas populares, procurando assim concretizar suas propostas liberais. (Tota; Assis Bastos, 1994, p. 91). Como afirma Tota, a “Revolução Francesa significou o fim do absolutismo na França e a ascensão da burguesia ao poder político, consolidando, no plano econômico, as relações de produção capitalista” (1994, p. 91). Na verdade, a Revolução Francesa provocou a destruição em grande parte das estruturas políticas, sociais e econômicas do ancien régime [grifo do autor] e lançou as bases de uma nova sociedade, que procurou pôr em prática, concretamente, os princípios e os ideais que lentamente foram sendo elaborados no século XVIII. Ao privilégio sucede a igualdade, e ao arbítrio ou à autoridade absoluta do soberano seguem-se a soberania popular e a liberdade. (Martina, 1996, p. 32).
Na fase final da Revolução Francesa, conhecida como o período do Diretório, nos finais do século XVIII, a França viveu uma grande crise, gerando insatisfação na sociedade e medo na burguesia diante da possibilidade da mesma perder os seus privilégios. Até mesmo os países vizinhos, regidos pelo sistema monárquico e absolutista, passaram a pressionar a França defensora dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. (Tota; Assis Bastos, 1994, p. 98-99). Diante dessa crise, a burguesia necessitou de um líder eficiente para estabelecer um governo forte e estável que possibilitasse a sua consolidação como classe dominante. A melhor alternativa foi Napoleão Bonaparte4, jovem general francês que se destacou pela sua atuação desde a época da “Convenção”. Com ele, foi instituído, primeiramente, o Consulado, e depois o início do
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Não é o propósito desse Trabalho de Conclusão de Curso refletir, de forma profunda, a Revolução Francesa, mas apenas apresentar noções gerais sobre a mesma. Desse modo, ficam algumas sugestões para uma leitura complementar: PAZZINATO, Alceu L.; SENISE, Maria H. V. História Moderna e Contemporânea. 14 ed. São Paulo: Ática, 2006. p. 123-129. TOTA, Antônio P.; ASSIS BASTOS, Pedro Ivo de. A grande Revolução Francesa. In: NOVO MANUAL NOVA CULTURA. São Paulo: Nova Cultural, 1994. p. 91-96. Também: MARTINA, Giacomo. A Revolução Francesa. In: _____. História da Igreja de Lutero a nossos dias: A era do Liberalismo. São Paulo: Loyola, 1996. v. 3. p. 11- 49. 4 Também não é objetivo desse Trabalho desenvolver um estudo minucioso sobre Napoleão. Então, é necessário conferir os seguintes livros: PAZZINATO, Alceu L.; SENISE, Maria H. V. História Moderna e Contemporânea. 14 ed. São Paulo: Ática, 2006. p. 133-137. TOTA, Antônio P.; ASSIS BASTOS, Pedro Ivo de. Napoleão, a Europa e a América Latina. In: NOVO MANUAL NOVA CULTURA. São Paulo: Nova Cultural, 1994. p. 97-101.
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período Napoleônico da Revolução (o seu governo), pelo qual consolidou o poder da burguesia. (Tota; Assis Bastos, 1994, p. 98-99). As guerras comandadas por ele procuraram conquistar bens, riquezas, através de pilhagens. A sua atuação possibilitou a formação de um grande império, chegando a derrotar a Rússia, a Prússia, a Áustria, a Itália, com exceção da Inglaterra, a sua maior e mais forte inimiga. Para derrotá-la, elaborou uma estratégia econômica, conhecida como “Bloqueio Continental” (1806). No início, o bloqueio suscitou alguns efeitos, porém, fracassou posteriormente, levando ao declínio (1812) de um império que conheceu grandes momentos de glória (Tota; Assis Bastos, 1994, p. 99-100). A partir daí, Napoleão passou a experimentar derrotas e mais derrotas5, sendo deposto e exilado na Ilha de Elba. O seu ímpeto de conquistador não conseguiu aprisioná-lo nessa ilha: fugiu de Elba para a França, tomando o governo por apenas 100 dias, sendo derrotado pelos ingleses e prussianos na Batalha de Warteloo, em junho de 1815. Com a destituição de Napoleão do governo, Luís XVIII voltou ao trono e, em novembro de 1815, foi selada a “Paz de Paris”, reparando, desse modo, os erros da expansão do território francês e alterando o mapa político da Europa e das colônias. Em 18306, os ideais da Revolução Francesa foram retomados pelas forças de oposição, articulando-os aos princípios do liberalismo7 e do nacionalismo8 numa série de revoluções que se arrastaram pelos continentes. Resultado de todo esse movimento revolucionário foi o surgimento do socialismo no século XIX9.
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As derrotas que Napoleão passou a sofrer foram sucessivas e drásticas: perdeu para a Rússia, no inverno de 1812; perdeu a Batalha de Leipzig, em 1813; foi derrotado, em 1814, por um grande exército formado pela Inglaterra, Rússia, Áustria e Prússia. 6 Cf. TOTA, Antônio P.; ASSIS BASTOS, Pedro Ivo de. As Revoluções Européias: 1830 a 1848. In: NOVO MANUAL NOVA CULTURA. São Paulo: Nova Cultural, 1994. p. 105 – 111. PAZZINATO, Alceu L.; SENISE, Maria H. V. As Revoltas Liberais de 1830 e 1848. In: _____. História Moderna e Contemporânea. 14 ed. São Paulo: Ática, 2006. p. 166 – 172. 7 O liberalismo foi uma ideologia essencialmente burguesa do século XIX. O principal fundamento do liberalismo é a liberdade individual no campo político e econômico. As suas idéias inspiraram as revoluções das décadas de 20, 30 e 40, do século XIX, transformando profundamente a sociedade européia. Todavia, os princípios que regem a sociedade liberal são: o dinheiro, a cultura e os interesses. (MOCELLIN, Renato. Século XIX: Liberalismo, Nacionalismo e Socialismo. In: LONGEN, Adilson et al. Positivo: Ensino Médio. Curitiba: Posigraf, 2004. v. 2. série 2. p. 6.). 8 O nacionalismo contribuiu para que os países expressassem o seu amor pela pátria, um retorno ao passado (tradição) e o culto de seus particularismos. (MOCELLIN, Renato. Século XIX: Liberalismo, Nacionalismo e Socialismo. In: LONGEN, Adilson et al. Positivo: Ensino Médio. Curitiba: Posigraf, 2004. v. 2. série 2. p 7.). 9 O Socialismo oferece uma sustentação teórica para interpretar a situação dos operários e para orientar os embates por eles travados no século XIX. Em contraposição à economia capitalista, surgem duas correntes socialistas: 1) o socialismo utópico, que tem como pensadores Saint-Simon, Charles Fourier e Robert Owen; 2) o socialismo científico, que tem como representante Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895) que publicaram o Manifesto Comunista em 1848. (MOCELLIN, Renato. Século XIX: Liberalismo, Nacionalismo e Socialismo. In: LONGEN, Adilson et al. Positivo: Ensino Médio. Curitiba: Posigraf, 2004. v. 2. série 2. p 7-8.). Para maior esclarecimento leia-se: TOTA, Antônio P.; ASSIS BASTOS, Pedro Ivo de. Socialismo. In: NOVO MANUAL NOVA CULTURA. São Paulo: Nova Cultural, 1994. p. 114 - 117.
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1.1.2 O Desenvolvimento das Ciências
Do ponto de vista científico e cultural, o século XIX é conhecido como o século do progresso das ciências, como a física10 e a química. Por meio de cálculos precisos, exatos, a ciência se lançou na aventura de querer explicar a vida e desvendar os mistérios que a encerram. Era assim inaugurada “uma nova era para a humanidade. A Era da Civilização Científica” (Arruda, 2005, p. 49). Essa era estimulou novos inventos que contribuíram, por sua vez, com as pesquisas e descobertas, sendo que, em muitos casos, os próprios cientistas tornaram-se inventores. Nomes como os de Joseph-Louis de Lagrange, Monge, Pierre Simon Laplace ocupam, de forma eminente, as fileiras dos grandes matemáticos da humanidade. O progresso científico também se estendeu ao campo da biologia. Esta ciência levantou problemas profundos e sérios para a antropologia filosófica e para a religião. Um exemplo dessa situação11, segundo Reale e Antiseri (2005, p. 333), é o Charles Robert Darwin que, com sua teoria evolutiva das espécies biológicas, contribuiu para a crise da idéia de homem que predominava há séculos. Há também desenvolvimentos em outros campos científicos12, tais como: a embriologia, a fisiologia, a bacteriologia, a imunologia, a anatomia patológica, a farmacologia, a geologia, a cristalografia, a astronomia e as ciências históricas. Portanto, de acordo com Reale e Antiseri (2005, p.333), os avanços da ciência provocaram um confronto com a sociedade estabelecida. As pesquisas causaram uma mudança na idéia de ser humano e nas questões filosóficas, éticas, políticas e religiosas. Como observador atento das transformações da sociedade européia, Kierkegaard não poupou esforços para criticar as incoerências de um mundo que passou a ser regido pela ciência, relegando a segundo plano outros caminhos que podem ajudar o ser humano a encontrar respostas para a sua existência.
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Os estudiosos da física são: Augustin-Jean Fresnel, Carnot, Alessandro Giuseppe Antonio Anastásio Volta, André-Marie Ampère e Michael Faraday. 11 Também há outros biólogos, como: Rudolph Virchow (1821-1902), Gregor Johann Mendel (1822-1884), H. De Vries, C. Correns, E. Tschermak, Needham, Spallanzani, Louis Pasteur e Félix Archimède Pouchet. 12 Cf. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. O desenvolvimento das Ciências no século XIX. In: _____. História da Filosofia: do Romantismo ao Empiriocriticismo. São Paulo: Paulus, 2005. v. 5. p. 333-357.
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1.1.3 A Filosofia
Durante o século XIX, surgiu um novo modo de ver a realidade, de compreendê-la e explicá-la: o Romantismo. Essa nova compreensão provocou e instigou Kierkegaard a perceber o fracasso em explicar a realidade de uma maneira abstrata e não concreta. Ele foi um crítico veraz de Hegel, denunciando a sua pretensão de procurar explicar a realidade de maneira dialética, fechada e totalitária. Uma melhor exposição sobre a crítica de Kierkegaard a Hegel será retomada mais adiante. Por enquanto, trata-se de explicar como surgiu o Romantismo, a sua definição, as suas conseqüências e os seus representantes máximos. O Romantismo nasceu de um movimento literário na Alemanha, entre os anos 1770 e 1780, chamado de Sturm und Drang que, segundo Reale e Antiseri, foi comparado por alguns estudiosos a uma espécie de revolução que antecipou verbalmente em terras germânicas aquilo que, pouco depois, seria a Revolução Francesa no campo político. Por outros estudiosos (...) foi considerado com uma espécie de reação antecipada à própria Revolução, enquanto se apresentou como reação contra o Iluminismo [grifo do autor], do qual a Revolução Francesa foi a coroação (...). Trata-se da reação do espírito alemão depois de séculos de torpor, e do ressurgimento de algumas atitudes peculiares à alma germânica. (2005, p. 6).
Essa reação ao Iluminismo13, considerado como “espírito racionalista e frio” (Marías, 1987, p. 322), propiciou o surgimento de uma nova literatura, Sturm und Drang (“Tempestade e ímpeto”) (Reale; Antiseri, 2005, p. 4). Tal denominação originou-se do drama escrito em 1776, por um dos representantes do movimento, Friedrich Maximilian Klinger. As características centrais desse movimento14 são: a) a redescoberta da natureza, que é exaltada como força onipotente e vital; b) um estreito relacionamento com a natureza e o “gênio”, entendido como força originária; c) o panteísmo; d) um sentimento pátrio que se expressa no ódio ao tirano, na exaltação da liberdade e no desejo de violar convenções e leis externas; e) a apreciação de sentimentos fortes e as paixões calorosas e impetuosas. Esse movimento recebeu influências15 de James Macpherson (1736-1796), de Willian Shakespeare, de Jean-Jacques Rousseau, de Gotthold Ephraim Lessing, de Friedrich Gottlieb 13
Cf. MARTINA, Giacomo. O Iluminismo e as Reformas. In: _____. História da Igreja de Lutero a nossos dias: A era do Absolutismo.2 ed. São Paulo: Loyola, 2003. v. 2. p. 261-268. 14 Cf. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. Gênese e características essenciais do Romantismo. In: _____. História da Filosofia: do Romantismo ao Empiriocriticismo. São Paulo: Paulus, 2005. v. 5. p. 3-6. 15 Esses autores são importantes para a compreensão do fenômeno literato, mas não é possível adentrar-se muito no pensamento deles. Então, leia-se: Cf. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. O Movimento Romântico e a
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Klopstock (1724-1803) e de Heinrich Lenz. Contudo, os que deram sentido e importância ao movimento foram: Goethe, Schiller, Jacobi, Herder, entre outros. Em reação ao Sturm und Drang, surgiu na época o Classicismo16 que, de acordo com Reale e Antiseri (2005, p. 7), teve grande crédito na formação do espírito naquela época, impondo-se como antecedente, componente ou ainda como um dos pólos dialéticos do Romantismo. Mas, afinal, o que é o Romantismo? Definir Romantismo não é tarefa fácil, pois a própria palavra tem uma longa e complexa história. De acordo com Baugh, o termo aparece na Inglaterra, em meados do século XVII, significando o fabuloso, o extravagante, o fantástico e o irreal. Ele foi resgatado no século precedente para indicar cenas e situações agradáveis, típicas da narrativa e poesia romântica. Aos poucos, o termo passou a significar o renascimento do instinto e da emoção. (Reale; Antiseri, 2005, p. 10). Mais do que linha de pensamento, doutrina ou idéia filosófica, o Romantismo é, “um movimento, um fenômeno” (Hargreaves, 1986, p. 29-30) que envolve não só a filosofia e a poesia, mas também a música, as artes figurativas, a religião, a política, a economia. Existem tantos “romantismos” quantos “românticos”. Em todos esses desdobramentos é possível encontrar o esforço desesperador da visão concreta – diríamos quase de uma visão sensorial das razões últimas de tudo o que “existe” e mesmo de tudo o que “é” (...). Movimento em cujo âmbito as idéias em seu conjunto, agitam-se soltas e muitas vezes em conflito uma com as outras (...). O objetivo visado pelo Romantismo é prolongar o sensível no supra-sensível, à guisa de novo método de especular “metafisicamente” (...). O Romantismo prestou apreciável serviço a todas as atividades do espírito, pela atitude de reação legítima contra a hipertrofia do esquema, a rigidez lógica e o imperialismo das elaborações especiosas dos sistemas. (1986, p. 31-33).
O denominador comum, o elemento capaz de integrar a complexidade do fenômeno chamado Romantismo diz respeito ao “estado de espírito” do homem romântico que sente um conflito interior, uma insatisfação, uma inquietação, isto é, encontra-se no estado de Sehnsucht (ansiedade, anseio, desejo irrealizável) (Reale; Antiseri, 2005, p. 11). Apesar de o Romantismo não se definir como um conjunto de conceitos ou doutrinas, é possível apresentar as idéias fundamentais que regem o movimento17:
Formação do Idealismo. In: _____. História da Filosofia: do Romantismo ao Empiriocriticismo. São Paulo: Paulus, 2005. v. 5. p. 15 – 45. PUPI, Angelo. De Kant a Fichte. In: ROVIGHI, Sofia V. História da Filosofia Moderna. 2 ed. São Paulo: Loyola, 2000. p. 597-632. 16 O Classicismo “aspirava a transformar a natureza em forma e a vida em arte, não repetindo, mas renovando o que os gregos haviam feito” (Reale; Antiseri, 2005, p. 7). Para melhor compreender a relação entre Classicismo e Romantismo, leia-se: SALDANHA, Nelson. Classicismo e Romantismo. Revista Brasileira de Filosofia. São Paulo, v. 53, n. 217, p. 489 – 504, out./dez. 2004. 17 Essas características baseiam–se em: REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. A complexidade do fenômeno romântico e suas características essenciais. In: _____. História da Filosofia: do Romantismo ao Empiriocriticismo. São Paulo: Paulus, 2005. v. 5. p. 9-14.
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a) a sede do infinito, um anseio insaciável pelo inefável. Aqui a filosofia e a poesia se encontram: a filosofia capta e mostra a relação do infinito com o finito, enquanto a arte realiza a obra, manifestando o infinito no finito; b) o novo sentido de natureza, como vida que se origina eternamente, um grande organismo humano, um jogo móvel de forças que, operando intrinsecamente, gera todos os fenômenos e também o homem: a força da natureza é a própria força do divino; c) o sentido de “pânico” por causa da pertença ao uno-todo, um sentimento de ser um momento orgânico da totalidade. No ser humano, reflete-se de algum modo o todo, assim como o homem se reflete no todo; d) “a função do “gênio” e a criação artística elevadas à suprema expressão do verdadeiro e do absoluto”; e) o anseio pela liberdade como um sentimento muito forte que expressa para muitos dos românticos o próprio fundamento da realidade e apreciam-na em todas as suas manifestações; f) a reavaliação da religião, resgatando o sentimento de relação do ser humano com o infinito e com o eterno. Desse modo, ela é elevada, colocada bem acima do plano ao qual o Iluminismo a reduzira. Ela é o momento mais elevado do próprio espírito, superado somente pela filosofia. Aliás, a religião aqui considerada é a cristã, compreendida, porém, de vários modos; g) a influência do elemento clássico e de outros temas específicos. A grecidade é “revisitada com nova sensibilidade e amplamente idealizada”; h) o destaque à intuição e a fantasia pela qual a filosofia é marcada, indo além da fria razão pura finita. O Romantismo influenciou sobremaneira os séculos XIX e XX, sendo até mesmo denominado de “mal do século”. Denominar o movimento romântico de tal forma não deixa de ser legítimo e adequado: legítimo, porque a filosofia, concepção de vida, é que decide o que vai ser o estilo – o discurso da literatura, da música, da pintura, da dança e até da política e da economia. E, mais profundamente, da própria religiosidade, consequentemente, da moral de uma cultura e de uma civilização. Adequado, porque a herança romântica atesta as características claras de um mal tanto “metafísico” como moral. Do ponto de vista metafísico, porque contaminou o ar, a atmosfera, o clima exigido pela respiração normal, serena, limpa, do pensamento, do ponto de vista moral, porque a conduziu ao paradoxo do suicídio sentimental, precisamente pelo paraxismo da exaltação do sentimento, que deveria passar a ser, conforme pretendia, fonte de conhecimento, em lugar da inteligência e da razão. Mal do século, enfim porque a geração, que leu o romantismo a receita da vida plena, padece – e como padece! – as conseqüências de ter lido um livro mal compreendido e mal escrito, sem ter adquirido até hoje a noção de que é subproduto de uma máquina fértil em promessas e fecunda em fiascos. (Hargreaves, 1986, p. 42).
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Dada a complexidade extrema do Romantismo, não é possível contemplar aqui todas as figuras que participaram desse “movimento espiritual”. Porém, não se pode deixar de mencionar os seus principais representantes, no caso: Fichte18, Schelling19, Schlegel20, Hegel e Schleiermacher21. Esses filósofos são muito importantes para a compreensão filosófica do mundo (Hargreaves, 1986, p. 33). Dentre eles, merece destaque Hegel22, o filósofo que melhor apresenta um modelo de compreensão de mundo. Para ele, a filosofia apresenta como função principal “evidenciar o princípio que restauraria a perdida unidade e totalidade (...). Assim, a forma verdadeira da realidade (...) é a razão, onde todas as contradições sujeito-objeto se integram, constituindo, desse modo, uma unidade e uma universalidade genuínas” (Arantes, 1996, p. 9) 23. Portanto, a idéia é como mero pensamento subjetivo ou como um mero ser por si (um ser que não é idéia), não se constitui como verdade (...). Isso significa que Hegel construiu uma filosofia que pretende se apresentar como a própria expressão da realidade, eliminando a distinção tradicional entre a idéia e o real. Ambos seriam facetas de uma mesma coisa: o que é real é racional e o que é racional é real (...). (Arantes, 1996, p. 14).
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Johann Gottlieb Fichte nasceu em Rammenau, na Sacrônia, em 1762. Ele se matriculou no curso de teologia na Faculdade de Jena, em 1780. Entre 1788 a 1790, foi preceptor em Zurique, considerado como um dos períodos mais fecundos da sua vida. A sua obra mais significativa é a Doutrina da Ciência, cuja preocupação central é a difusão do criticismo kantiano e a descoberta do princípio base que unifica as três Críticas de Kant em vista da sistematização do saber. Ele também deduz a realidade por três princípios que vão influenciar a sua reflexão sobre a lei, o Estado, o Direito e a ética. Aliás, de acordo Rovighi, Fichte constrói uma metafísica que abrirá caminho aos sistemas de Schelling e Hegel. (2000, p. 633-656). 19 Friedrich Wilhelm Joseph Schelling nasceu em Leonberg, em Württemberg, aos 27 de janeiro de 1775. Estudou teologia, matemática e ciências naturais. As suas obras fundamentais são: Sistema do Idealismo Transcendental (1800), Idéias para uma filosofia da natureza (1797), Filosofia e Religião (1804), Pesquisas filosóficas sobre a essência da liberdade (1809), Filosofia da mitologia e Filosofia da Revelação (obras póstumas). Kierkegaard foi um ouvinte das suas palestras, uma vez que a filosofia positiva de Schelling tinha um aspecto “existencialista” limitado, provocando assim uma atenção em Soren para a existência não-dedutível da essência. (Bausola, 2000, p. 657-690). 20 Friedrich Schlegel (1772-1829) tem como idéia filosófica principal a concepção de infinito que se chega por meio da arte e pela filosofia. Outro conceito importante é a ironia. (Reale; Antiseri, 2005, p. 16-17). 21 Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher nasceu em Breslávia, em 1768, falecendo-se em 1834. Estudou Teologia e Filosofia da Religião e lecionou na Universidade em Berlim, a partir de 1810. As suas obras mais importantes são: Discursos sobre a Religião (1799), Monólogos (1800), Doutrina da Fé (1822). Também foram publicadas postumamente as obras relacionadas às aulas dadas sobre a Dialética, a Ética, a Estética e a Hermenêutica (Pupi, 2000, p. 626-632). 22 Georg Wilhelm Friedrich Hegel nasceu em Stuttgart, no dia 27 de Agosto de 1770. Por ser de família protestante teve a oportunidade de estudar filosofia e teologia no seminário protestante de Tübingem, na qual ficou amigo de Schelling e de Hölderlin. Trabalhou como preceptor na cidade de Berna, Frankfurt, Jena, Nuremberg (aonde atuou como Reitor do Liceu). Em 1818 lecionou na Universidade de Berlim, onde foi reitor em 1829. Após dois anos, vem a falecer no dia 14 de Novembro. As suas obras mais importantes são: Diferença entre o sistema filosófico de Fichte e o de Schelling (1801), Fenomenologia do Espírito (1807), Ciência da Lógica (1812-1816), Enciclopédia das Ciências Filosóficas (1818). Também são muito importantes os cursos dados por ele sobre: Filosofia do Direito, Filosofia da História, da estética, Filosofia da Religião e História da Filosofia. 23 Cf. ARANTES, Paulo Eduardo. Vida e Obra. In: HEGEL, Georg W. F. Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996. v. 13. p. 5-19.
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Na verdade, a realidade é a própria razão que, por sua vez, é a própria realidade. Há uma identidade necessária e total entre elas. Tudo o que existe é um instante do absoluto, uma etapa da evolução dialética que possibilita compreender o fenômeno do espírito que se desenvolve por diversas fases ou etapas ao longo da história e da vida do ser humano. Toda essa reflexão hegeliana encontra-se presente na obra Fenomenologia do Espírito24 (Reale; Antiseri, 2005, p. 110-129). Segundo Marías, Hegel foi “o primeiro a fazer uma História da Filosofia” (1987, p. 320). Com ele termina uma etapa da história do pensamento ocidental que procurou explicar a realidade de forma sistemática e complexa. A vitalidade do sistema hegeliano não deixou de influenciar a cultura e a sociedade da época. Com relação à filosofia, surgiram duas correntes que procuraram explorar o pensamento de Hegel, conhecidas como direita e esquerda hegelianas. Os da direita adotaram “o conteúdo doutrinário do hegelianismo, sobretudo a tese política de que o Estado é a mais alta realização do espírito absoluto. Os velhos hegelianos (...) desenvolveram-se em sentidos diversos, mas sempre partindo dos conceitos básicos formulados por Hegel”. (Arantes, 1996, p. 18). Os representantes principais dessa posição são: Karl Friedrich Göschel (1781-1861), Kasimir Conradi (1784-1849) e Georg Andréas Gabler (1786-1853). Já os da esquerda hegeliana assumiram o método dialético e o aplicaram “à analise dos problemas políticos, invertendo o conteúdo das doutrinas de Hegel e opondo-se ao regime dominante da Alemanha, regime esse que era apoiado pelos adeptos da orientação direitista”. (Arantes, 1996, p. 18). Os seus representados: David Friedrich Strauss (18081874), Bruno Bauer (1809-1882), Max Stirner (1806-1856), Arnold Ruge (1802-1880), Ludwig Feuerbach (1804-1872), Karl Marx (1818-1883), Engels (1820-1895), Soren A. Kierkegaard, entre outros. Nesta altura da História da Filosofia, esgota-se uma fase e sobrevém a ela uma profunda, na qual quase desaparece. Isto não é estranho, porque a História da Filosofia é descontínua (...), mas no século XIX a Filosofia aparece, além do mais formalmente negada, o que supõe um peculiar fastio de filosofar, provocado, pelo menos parcialmente, pelo abuso dialéctico em que cai o genial idealismo alemão. Surge então a necessidade premente de se ater às coisas, à própria realidade, de afastar das construções mentais para se ajustar ao real tal como este é. E a mente europeia [sic] de 1830 encontra nas ciências particulares o modelo que há-de transportar para a Filosofia. A Física, a Biologia, a História vão aparecer como os modos exemplares do conhecimento. Desta atitude nasce o positivismo [grifo do autor]. (Marías, 1987, p. 332).
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Segundo Hegel, a “Fenomenologia do espírito [grifo do autor] descreve ‘o caminho do conhecimento natural que se dirige para o verdadeiro saber, ou o caminho da alma que percorre a série de suas figuras (Gestalten), quase etapas (Stationem) que sua natureza lhe prescreve, para purificar-se e tornar-se espírito, enquanto, por meio da experiência completa de si mesma, chega ao conhecimento do que ela é em si’ ”. (1933, apud Rovighi, 2000, p. 716).
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Mesmo com o advento do Positivismo25, o ser humano não deixou de se ater às questões existenciais, não só no que diz respeito à compreensão da realidade, mas também às formas e maneiras de transformá-la em benefício da existência humana. É num contexto como esse que se pode compreender o papel de um Karl Marx, Engels, Nietzsche26 (1844-1900), Schopenhauer27 (1788-1860) e principalmente Soren Kierkegaard (1813-1855). 1.2 KIERKEGAARD: “UM HOMEM-PROBLEMA PARA SI MESMO”
Soren Kierkegaard é um homem que pensa a vida e a própria vida, questiona-a e sente os desejos e os sofrimentos no recôndito da sua alma. Falar dele não foi e nunca será fácil. O seu pensamento tem sido interpretado de diversas formas28, por causa do seu estilo de escrever: escreve refletindo e reflete escrevendo. Porém, é possível perceber o tema que rege todo o seu pensamento: 25
Segundo Reale e Antiseri, “o positivismo é o movimento de pensamento que dominou parte da cultura européia em suas expressões não só filosóficas, mas também políticas, pedagógicas e literárias (é este o período do verismo e do naturalismo [grifo do autor]) desde cerca de 1840 até os inícios da primeira guerra mundial. Os traços de fundo do ambiente sociocultural que o positivismo interpreta, exalta e favorece são: uma substancial estabilidade política, o processo da industrialização e desenvolvimentos por vezes portentosos da ciência e da tecnologia (...); (...) confiança na força da ciência e do espírito cientifico, a seu ver mais que adequados a repor em seu lugar todo o corpo social” (2005, p. 287). O representante mais importante é Augusto Comte (17981857), que nasceu em Montpellier (França), formando-se em matemática e ciência. A sua contribuição mais importante diz respeito à Lei dos Três Estados, na qual Comte afirma que o conhecimento passa por três estágios: teológico, metafísico e positivo. Cf. GIANNOTTI, José Arthur. Vida e Obra. In: COMTE, Augusto. Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996. v. 15. p. 5-14. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. O positivismo sociológico e utilitarista. In: _____. História da Filosofia: do Romantismo ao Empiriocriticismo. São Paulo: Paulus, 2005. v. 5. p. 287 – 310. 26 Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) foi um influente filósofo alemão do século XIX e XX. Sua família era luterana. Estudou na Universidade de Leipzig. Para Marías, “Nietzsche é uma mentalidade muito complexa; tinha grandes dotes artísticos e é um dos melhores escritores alemães modernos (...). O tema central de seu pensamento é o homem, a vida humana, e todo ele está carregado de preocupação histórica e ética (...). O mais importante da filosofia nietzschiana é a sua ideia da vida e a sua consciencia de que existem valores especificamente vitais [grifo do autor] (...)” (1987, p. 352 – 354). As suas obras mais significativas são: Humano, muito humano (1879), A Gaia Ciência (1882), Assim falou Zaratustra (1883), Além do bem e do mal (1886), A Genealogia da Moral (1887) e Ecce homo (1888), Anticristo (1888), entre outras obras. Cf. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. Friedrich Nietzsche. In: _____. História da Filosofia: De Nietzsche à Escola de Frankfurt. São Paulo: Paulus, 2006. v. 6. p. 3 – 19. 27 Arthur Schopenhauer nasceu em Dantzig (Prússia), aos 22 de fevereiro de 1788. Filho do Henrich Floris Schopenhauer e de Johanna Henriette Trosenier. Após o falecimento de seu pai, iniciou seus estudos humanísticos. Em 1807, matriculou-se no Liceu Weimar. Doutrinou-se pela Universidade de Berlim com a tese intitulada Sobre a Quádrupla Raiz do Princípio da Razão Suficiente (1816). Em 1820, passou a ministrar aulas na Universidade de Berlim. A sua obra mais importante é O Mundo como Vontade e Representação (1819). Em 1831, mudou-se para Frankfurt, permanecendo nesta cidade até seu falecimento, que se deu aos 21 de setembro de 1860. Mesmo com os seus “exageros, Schopenhauer tornou a nos ensinar a necessidade do gênio e o valor da arte. Ele viu que o bem supremo é a beleza, e que o prazer supremo está na criação ou no caminho para com o belo” (Durant, 1996, p. 327). Cf. DURANT, Will. Schopenhauer. In: _____. A História da Filosofia. Trad. Luiz Carlos do Nascimento Silva. Rio de Janeiro: Nova Cultura, 1996. p. 285 – 328. 28 Segundo os estudos elaborados por Jolivet, Farago, Gouvêa e Charles Le Blanc sobre Kierkegaard, existe, na verdade, uma única leitura do pensamento de Soren. Ninguém consegue esgotar o seu pensamento. Infelizmente, no Brasil, há poucas traduções de sua obra e poucos estudiosos, com exceção de: Ricardo Quadros Gouvêa, Márcio G. de Paula, Álvaro L. M. Valls, Juvenal S. Filho, Alexandre Carrasco, Franklin Leopoldo e Silva e Jonas Roos.
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a sua existência, “a sua personalidade concreta” (Jolivet, 1957, p. 3). Ele falou de si mesmo como de “um espião que, a serviço de Deus, descobre o crime da cristandade: o crime de chamar-se cristão sem sê-lo”. Por isso, antes de estudar o tema central da sua filosofia, a sua concepção antropológica, é necessário conhecer a sua vida.
1.2.1 A Vida de Kierkegaard
Soren Aabye Kierkegaard nasceu aos 5 de maio de 1813, em Copenhague (Dinamarca). Sua família é de origem humilde. Seus pais, Michael Pedersen Kierkegaard (1756-1838) e Anne Soerensdatter Lund (1768-1834), são naturais da Jutlândia Ocidental (Norte da Dinamarca). O pai de Kierkegaard era pastor de ovelhas. Casou-se duas vezes: primeiro, com a Kirstine Royen, que faleceu em março de 1796, e depois, em abril de 1797, com Anne S. Lund, empregada da família. Juntos tiveram sete filhos29, dentre os quais S. Kierkegaard. Kierkegaard recebeu uma educação rigorosa, marcada pela ortodoxia e pela moral luteranas. Ele mesmo relembra os momentos de tristeza e melancolia que viveu na infância: Não conhecia jamais a alegria de ser criança. Os suplícios horríveis que suportei perturbaram esta paz em que deve consistir a infância, quando se pode pela aplicação, etc. dar alegria a seu pai. Minha inquietação interior fazia com que sempre, sempre me sentisse fora de mim (...). (Kierkegaard, 1971, p. 19).
O rigor da sua formação se expressava inclusive no modo formal de se vestir, causando nele profundo desconforto: Que melancolia! Até a fazenda de minhas calças, das quais tanto se zombou, tem uma triste (quase simbólica) conexão com a melancolia de minha vida (...). A infelicidade fundamental de minha vida, isto é, que embora criança fosse tido por velho, podia-se ver inclusive por minhas roupas. Recordo-me muito bem de quanto me entristecia, quando criança, ao ter de usar também eu aquelas calças curtas (...). Depois, tornei-me estudante, mas não fui jamais um jovem (...). Em minha tristeza melancólica e em minha ironia exuberante, comprimi minha natureza nos sofrimentos de ter me tornado velho quando tinha apenas oito anos de idade e de não ter sido jamais um jovem (...). (Kierkegaard, 1971, p.19 – 20).
À angustia de uma infância mal vivida somou-se também a fragilidade física, compensada, porém, pela inteligência brilhante. Franzino, raquítico e fraco para poder valer como um homem completo, quando comparado com outros, no ponto de vista das condições físicas que me foram negadas, melancólico, submetido ao 29
Os filhos do casal chamavam-se: Maren Kirstine (1797-1822), Nicoline Kristine (1799-1832), Petrea Severine (1801-1834), Peter Christian (1805-1888), Soren Michael (1807-1819), Niels Andreas (1809-1833), e S. Kierkegaard (1813-1955). Com exceção de Peter, todos os irmãos de Kierkegaard morreram muito cedo. Enquanto Peter vai se dedicar à vida eclesiástica, Kierkegaard abraça a literária.
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sofrimento interior, profundamente ferido de muitas maneiras no íntimo da alma, a mim só uma coisa me foi concedida: uma inteligência eminente, com certeza para que eu não ficasse inteiramente desarmado. (Kierkegaard, 1971, p. 20).
Os seus estudos humanísticos se deram na Escola Borgerdyd (1821-1830), que significa “A Escola da Virtude Cívica”. Nessa instituição, Kierkegaard desenvolveu a sua perspicácia e natureza provocativas. (Gouvêa, 2006, p. 35-36). Após a conclusão dos estudos, inscreveu-se, em 1830, no curso de teologia da Universidade de Copenhague, interessando-se mais pela literatura e filosofia, especialmente a de Hegel, do que pela própria teologia. Em 1833, inicia o seu Diário de um Sedutor que, futuramente, vai se tornar um livro muito importante para a compreensão do seu pensamento (Gouvêa, 2006, p. 38). Um ano depois, morreu a sua mãe, provocando nele “um inexorável desmoronamento de sua fé” (Gouvêa, 2006, p. 39) e passando a viver de forma contrária à educação recebida, entregando-se até aos prazeres da literatura, da música, da ópera, do teatro (Gouvêa, 2006, p. 40). Com o passar dos anos, o sofrimento, a angústia e a inquietação em sua alma tornaram-se mais dilacerantes: “Isto de ser um homem são e forte que pudesse participar de tudo, que tivesse força corporal e um espírito despreocupado: oh! quantas [sic] vezes não desejei tal coisa noutro tempo mais recuado! Na época de minha adolescência, meus tormentos eram horríveis” (Kierkegaard, 1971, p. 19). Esse estilo boêmio de vida terminou aos 19 de maio de 1838, quando Kierkegaard teve uma forte experiência espiritual, reconhecida por ele como um “grande terremoto” que contribuiu para se reconciliar com Deus e com seu pai, que nunca aceitou o estilo de vida que Kierkegaard abraçou. Em 1838, depois de três meses da conversão de Kierkegaard, o seu pai faleceu. Meu pai morreu na quarta-feira (8), às duas da madrugada. Eu queria profundamente que ele vivesse ainda dois anos e vejo em sua morte o último sacrifício que seu amor fez por mim, porque não morreu para mim, mas por mim, para que eu possa, se ainda for possível, fazer qualquer coisa. De tudo o que me deixou, sua lembrança, sua imagem transfigurada, não pela minha fantasia (esta não é necessária para isso), mas por tantos traços particulares, das quais tenho conhecimento – é, para mim, a coisa mais preciosa, a que devo esconder do mundo com o maior cuidado: porque sinto claramente que neste momento só existe um (Emil Boesen) a que posso falar sinceramente de meu pai, como de um “amigo fiel” que ele foi (Kierkegaard, 1971, p. 17).
Das lembranças que permaneceram na alma do jovem Kierkegaard, a mais marcante diz respeito à “maldição” que o seu pai recebeu de Deus por causa de um pecado cometido e que Soren relembra da seguinte forma: “O horrível que sucedeu àquele homem que um dia, quando criança, ao guardar os carneiros nas planícies da Jutlândia, sofrendo com fome e frio, subiu a uma elevação e amaldiçoou a Deus a esse homem [sic] não podia esquecer este fato, embora tivesse oitenta e dois anos!” (1971, p. 18). Por meio desse relato, o pensador dinamarquês percebeu que por trás da figura paterna há um homem pecador, frágil e, principalmente, temente a Deus, mas que não depositava
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confiança no perdão divino. Assim, a experiência paterna contribuiu para que Kierkegaard questionasse as verdades do “cristianismo” (Gouvêa, 2006, p. 42): Desde o começo, eu devo tudo a meu pai. Era ele quem, melancólico como era, ao me ver melancólico, suplicava: “Trata de amar verdadeiramente a Jesus Cristo!” (...). E por amor a meu pai, empenhei-me em expor o cristianismo da maneira a mais verdadeira, contrastando assim como todo esse palavrório que (na cristandade) se faz passar por cristianismo (...). (Kierkegaard, 1971, p. 19).
Na verdade, a melancolia e a angústia experimentadas por Kierkegaard se devem à própria figura paterna: É verdadeiramente terrível quando, em certos momentos, penso em todo esse fundo sombrio de minha vida, desde os primeiros anos. A angústia, com a qual meu pai me enchia a alma, sua terrível melancolia, a multidão de coisas que não posso sequer apontar. Essa mesma angústia me dominava diante do cristianismo e, no entanto, eu me sentia atraído por ele tão intensamente. (Kierkegaard, 1971, p. 19).
Tal angústia e melancolia irão possibilitar a Soren uma reflexão profunda sobre si mesmo e sobre a existência humana. Para ele, a melancolia tanto pode ser boa como má: Boa melancolia é aquela que precede um parto do eterno que se vê forçado a realizar-se, que convida a escolher em sua vida pessoal o infinito que pode encerrar. Má é a melancolia que traduz o sentimento de estar perdido por não haver realizado a tarefa que nos fora designada no tempo, cuja irreversibilidade não perdoa as ocasiões malbaratadas. (Farago, 2006, p. 48).
Em outras palavras, a melancolia boa é a que permite ao ser humano se auto-conhecer e entrar em contato com o divino, ao passo que a má melancolia não contribui para que o homem não tenha um eu e não ser um eu. (Farago, 2006, p. 48). A melancolia e a angústia, com a qual o seu pai enchia-lhe a alma, dilaceravam a existência de Kierkegaard, mas também lhe possibilitavam uma nova reorientação da vida. Daí a razão da reverência e do respeito para com o seu progenitor, apesar de todos os pesares: “Amo este homem porque nele sinto o amor, mas o fato de ter-me tornado infeliz por alguma coisa, que não acreditava fazer senão pelo meu bem, desperta minha simpatia – e eu o amo ainda uma vez e mais profundamente” (Kierkegaard, 1971, p. 19). Em consideração ao pai, Kierkegaard concluiu o curso de teologia em 1840 (Kierkegaard, 1971, p. 18), apesar de nunca ter optado pela carreira eclesiástica, como era desejo do seu pai. Em 1837, Kierkegaard conheceu Regina Olsen, filha de um conselheiro de Estado, por quem vai se apaixonar anos mais tarde: “Tu, que és a rainha do meu coração (Regina), escondida no mais profundo recesso de minha alma, dos meus mais ricos pensamentos, eqüidistante do céu e do inferno – divindade desconhecida!” (Kierkegaard, 1971, p. 20). Regina também se apaixonou pelo seu “rico pretendente, cujo brilhantismo e graças sociais eram temperados por um toque de sedutora
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melancolia”. (Strathern, 1999, o 27). Ficaram noivos aos 10 de setembro de 1840. Todavia, o estilo de vida de Kierkegaard o impediu de levar a frente tal noivado: ele tinha consciência da incapacidade de levar uma vida como os outros, sentia-se inseguro e dificuldades para se entregar a um relacionamento sério: “Quanto mais ela se mostrava envolvida e confiante, tanto mais sentia-se ele desamparado, despreparado. Longe de lhe serenar o tormento, o amor só fizera perturbar a sua consciência angustiada. Impôs-se o rompimento” (Farago, 2006, p. 52). Quanto aos motivos da separação, é possível conjecturar que “um Kierkegaard que tivesse conservado a lembrança do ‘terremoto’ e do ‘sacrifício’30 de seu pai se sentisse incomodado diante de seu próprio desejo e da angústia de fazer Regina entrar em seu mundo espiritual cheio de angústia” (Blanc, 2003, p. 36). Por mais doloroso que possa ter representado a separação, esse fato não deixou de ser a oportunidade para Kierkegaard aprofundar suas reflexões sobre a existência e sobre seu destino, que se desdenhava como exceção [grifo do autor]. Na abertura indeterminada [grifo do autor] que a existência é diante de muitos possíveis [grifo do autor], ele exerceu sua liberdade [grifo do autor] fazendo uma opção [grifo do autor] difícil, desconfortável e penosa em termos de sentimentos, de juízo de si e de juízo dos outros. (2003, p 37).
A decisão de Kierkegaard ocorreu também para evitar que a senhorita Olsen entrasse no seu mundo de sofrimento: E quando me sinto tão infeliz, meu único consolo é que ela não sofra comigo. É duro saber, por experiência, que aquela que se ama não foi fiel, mas este sofrimento de todos os dias (...) se permanecesse junto dela seria preciso que me mostrasse contente e se ainda assim ela me visse sofrer (...) quando estou alegre, meu sofrimento constante é que ela não posso participar de minha alegria (...). (Kierkegaard, 1971, p. 22).
Após o cancelamento do noivado, Kierkegaard defendeu sua dissertação de mestrado sobre O Conceito de Ironia constantemente referido a Sócrates, obtendo o grau de “Magister Artium”, aos 29 de outubro de 1841. Tal obra é um ataque irônico ao Hegelianismo e ao Romantismo através de um estudo comparativo da prática da ironia em Sócrates e nos filósofos românticos. (Gouvêa, 2006, p. 47). Como adversário da filosofia romântica e de um cristianismo estatal, Kierkegaard “estava descobrindo sua espetacular vocação, ou seja, ser um missionário para a cristandade, ajudar as pessoas que se achavam cristãs a chegar a alguma compreensão do que significava o genuíno cristianismo”. (Gouvêa, 2006, p. 48).
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Por “terremoto” entende-se uma reviravolta que se impôs na vida de Kierkegaard, quando ele percebeu que a idade avançada do seu pai não era uma bênção divina, mas uma maldição; que os dons intelectuais da sua família só existiam para sua extirpação mútua. Já por “sacrifício” compreende-se uma concupiscência e expiação por antecipação da concupiscência – pois Kierkegaard sofreu antes de ter pecado --, legado do pai, impedindo-o de viver um compromisso com os outros. Da mesma forma que o seu pai se sacrificou por ele, cabia-lhe também “fechar o ciclo” e sacrificar-se pelo cristianismo. (Blanc, 2003, p. 37).
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Depois de um curso em Berlim (1840), com Schelling, o pensador dinamarquês se decepcionou com a filosofia romântica, regressando para Copenhague e fechando-se “numa solidão estudiosa” (Blanc, 2003, 39). Nesse período, escreveu muitas obras com pseudônimos, tais como: Ou (1843), Temor e Tremor (1843), A Repetição (1843), Migalhas Filosóficas (1844), Estádios no Caminho da Vida (1845). Já com a obra Post-Scriptum Não-Científico Concludente (1846), Kierkegaard deu início a uma nova forma de escrever, não mais fazendo recurso de pseudônimos. O seu desejo de ser um escritor religioso tornou-se mais claro e também a idéia de que ser cristão implica em colocar-se numa atitude de oposição à sociedade, a seus valores e à sua concupiscência. (Gouvêa, 2006, p. 49-50). O primeiro confronto público de Kierkegaard se deu em 1846 contra um jornal satírico muito popular e vulgar chamado de O Corsário, jornal este que tinha o costume de criticar a alta burguesia de Copenhague em defesa de políticas mais liberais. (Blanc, 2003, p. 40). Só Kierkegaard foi poupado dessas críticas. Contudo, o autor dinamarquês sentiu que era uma afronta participar “desse empreendimento de irrisão, desse esforço de ‘massificação’ do pensamento” (Blanc, 2003, p. 40). Preferia ser atacado e ridicularizado pelo jornal. Foi o que aconteceu após escrever um artigo sobre o Corsário. Com essa atitude, o jornal deu início a um “ataque incansável e devastador a Kierkegaard” (Gouvêa, 2006, p. 50), não poupando nem mesmo o seu modo de vestir: Trataram-me de um modo infame, abominável, um crime nacional foi cometido contra mim, a traição de toda uma geração. Mas, para mim, foi de um proveito indescritível. Eu era melancólico, de uma melancolia sem fim: foi isso que me ajudou. Pois em minha melancolia eu ainda amava o mundo: eis-me, agora, desmamado. Com a ajuda de Deus, isso acabará por sair bem. (Kierkegaard, 1971, p. 33).
Apesar dessa perseguição dolorosa e prolongada, ela “parece ter confirmado a Kierkegaard em seu papel de mártir e reforçado sua convicção de que ele deveria sofrer a fim de expiar os pecados de seu pai e os seus” (Blanc, 2003, p. 41). Soma-se a este fato o casamento de Regina com Fritz Schlegel em 1847. Durante essas tribulações existenciais não deixou de exercer a sua carreira de escritor, produzindo as seguintes obras: Duas Eras- Uma resenha Literária (1846), Livro sobre Adler (1846), Discursos Construtivos em Variados Estados de Espírito (1847), Obras do Amor (1847), e Discursos Cristãos (1848), A Doença Mortal (1849), A Prática do Cristianismo (1850) e demais discursos de caráter cristão. Segundo Gouvêa, “os últimos anos da vida de Kierkegaard foram repletos de veementes escritos polêmicos contra os excessos da Igreja do Estado e o fracasso da cristandade em admitir suas grandes falhas como autoproclamada representante do cristianismo” (2006, p. 52). Um dos representantes dessa Igreja foi o bispo Mynster, que não vivia seriamente o cristianismo: era mais um funcionário do Estado do que cristão.
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Certamente o bispo Mynster foi grande! – Sim, mas não de uma grandeza cristã. Não, na ordem estética foi sua grandeza foi a de um falsário. Nesse sentido, esteticamente, teve toda a minha admiração (...). Pois Mynster foi este mestre. Foi o banco de toda uma geração. Quanto não gozaram desta vida estes homens que um dia, na eternidade, quando tiverem de ouvir com horror que isso não é cristianismo, mostrarão, se ouso dizer, um bilhete assinado por Mynster. Pois Mynster foi o banco. Igualmente, no mais profundo do silêncio e da solidão em que me entretenho comigo mesmo e minha ciência policial, eu tinha o hábito de chamar Mynster de: banco do estado (...). (Kierkegaard, 1971, p. 37).
Quando esse bispo morreu, Martensen assumiu o seu cargo, tecendo inclusive elogios ao seu antecessor, considerado como testemunha da verdade. Tal afirmação abalou sobremaneira a Kierkegaard, que tinha o costume de aplicar essa expressão aos verdadeiros cristãos. Como protesto, Kierkegaard publicou um artigo sobre a aplicação feito pelo Martensen ao Mynster, no qual afirma que chamar Mynster daquela maneira é “um exagero, absurdo e uma falsificação” (Gouvêa, 2006, p. 54). Os ataques à Igreja Estatal foram escritos em diversos artigos compilados numa revista chamada O Momento. Porém, a batalha contra a Igreja levou Kierkegaard a se afastar ainda mais da sociedade. Devido a sua frágil saúde, teve um colapso aos 2 de outubro de 1855. Em seu leito de morte, negouse a receber seu irmão, porque era membro da Igreja oficial que ele combateu. Nem sequer concordou em receber a comunhão das mãos de um membro daquela igreja. Faleceu aos 11 de novembro do mesmo ano. Ao longo da sua vida lutou “pela verdade e pelo cristianismo paradoxal: que não constitui comunidade, que se afasta dos homens para se aproximar da Transcendência” (Blanc, 2003, p. 46). Como expressão de tudo o que viveu e escreveu, vale lembrar as palavras do Apocalipse que o seu sobrinho leu no momento em que seu ataúde era descido à cova: “Porque és tíbio e não és quente nem frio, estou para vomitar-te da minha boca (3, 14-16)” (Blanc, 2003, p. 46).
1.2.2 As Influências Filosóficas e Religiosas
No contexto do século XIX, o pensador S. Kierkegaard representa um marco singular, tanto nos rumos gerais do pensamento quanto na quebra da confiança na razão ilustrada. Mais do que ruminar sobre idéias e trabalhos de outros pensadores, Kierkegaard trouxe algo realmente novo para a humanidade. A origem das suas reflexões se deve às suas experiências pessoais, espirituais e filosóficas. De acordo com Gouvêa, “Kierkegaard pertence à tradição agostiniana, temperada por sua criação luterana e pietista31, e por sua clara compreensão das questões em jogo no seu próprio 31
Segundo Blanc, o pietismo é uma “corrente religiosa proveniente do luteranismo que a princípio se arraigou na Alemanha do século XVII para irradiar-se em seguida para vários países, entre outros lugares a Dinamarca, colocava em primeiro plano a experiência religiosa pessoal e a reforma interior. Protestava contra uma espécie
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tempo” (2006, p. 11). Isso não significa afirmar, de forma alguma, que Kierkegaard reproduziu sem mais as idéias de Agostinho, do pietismo, da tradição luterana. O que ocorreu, na verdade, foi uma apropriação feita por ele de noções de diferentes escolas de pensamento, até mesmo de pensadores “pagãos”, a fim de fazer emergir algo novo. Segundo Gouvêa32, Agostinho e Kierkegaard foram homens muito diferentes, vivendo em circunstancias muito diversas, mas lidaram com as mesmas angústias e enigmas filosóficos. Ambos procuram trabalhar filosoficamente com os conceitos fundamentais da fé cristã, conceitos como fé, verdade, amor e o conhecimento de Deus. Tanto Kierkegaard quanto Agostinho tiveram que lidar arduamente coma relação entre a fé cristã e a tradição filosófica ocidental. Agostinho, o bispo, tinha preocupações práticas com a vida da igreja que queria manter unificada. Kierkegaard, por outro lado, foi o “indivíduo” por excelência, apologista da individualidade humana, eremita na multidão, voz clamando no deserto meio a uma cristandade desvanecente e uma intelectualidade crista em franca crise desde o Iluminismo. (2007, p. 1).
Outro filósofo importante na formação filosófica de Kierkegaard foi Sócrates33: “figura marcante no decorrer de toda a obra kierkegaardiana, sendo seu acompanhante e interlocutor do primeiro ao último momento” (Paula, 2007, p. 62). De Sócrates, Kierkegaard vai apropriar o método da ironia, tornando-se assim um instrumento usado para combater um dos seus grandes adversários: a dissolução do indivíduo na cultura e na história34. Tanto ele como Sócrates enfatizam o homem, enquanto indivíduo, as questões éticas e criticam um sistema especulativo que oculta o ser humano e o divorcia da vida (...). Sócrates é no pensamento de kierkegaardiano o tema a estratégia crítica diante da cristandade e da especulação e o exemplo principal para uma melhor explicação da diferença entre a concepção grega e a concepção cristã (...). Ambos almejam ser um corretivo [grifo do autor] para seu tempo, repleto de sofistas de toda a sorte (...). (Paula, 2007, p. 64).
Nem mesmo Hegel foi poupado das críticas do pensador dinamarquês. Recai sobre Hegel a acusação da perda do sentido de existência. Kierkegaard acusou sobremaneira o sistema hegeliano ‘burocratização’ da Igreja e uma secularização da prática religiosa. Esse protesto encontra-se também em Kierkegaard. A principal reivindicação pietista é de um cristianismo mais fervoroso (pietas) [grifo do autor], fundamentado em uma prática religiosa e em uma moral pessoal mais austeras. O pietismo esperava, essencialmente, proporcionar uma vida nova e mais profunda ao luteranismo, e permitir ao crente adquirir uma fé vivida e sentida pelo contato direto com Deus (idéia da relação nua com o Absoluto, presente em Kierkegaard)” (2003, p. 20). Sobre o pietismo, leia-se: TILLICH, Paul. Pietismo. In: _____. História do Pensamento Cristão. 2 ed. São Paulo: Aste, 2000. p 279 – 282. 32 Cf. Gouvêa, Ricardo Quadros. Kierkegaard lendo Agostinho: Introdução a um Diálogo Filosófico – Teológico. Disponível em: < http://www.esnips.com/doc/2672a195-f267-4d65-b332-5702658da96b/RicardoGouvêa---Kierkegaard-lendo-Agostinho---introdução-a-um-diálogo-filosófico-teológico-(pdf-artigo)> Acesso em: 08 de Agos. de 2007. 33 Sócrates nasceu no ano de 470 ou 469 a. C., em Atenas. Era filho de um talhador de pedras e de uma parteira. Nunca fundou uma escola, pois realizava os seus ensinamentos em locais públicos. Ele não escreveu nada: a sua mensagem era transmitida pelo dialogo e pela oralidade dialética. O pensador ateniense veio a falecer em 399 a. C., acusado de corromper os jovens e contrariar as leis da cidade. O grande legado de Sócrates é a sua inauguração da Ética: os problemas da filosofia até seu período eram de ordem cosmológica e sofistica, mas Sócrates chamou atenção para a alma do homem e para o seu agir ético. Cf. BENOIT, Hector. Sócrates: o nascimento da Razão Negativa. São Paulo: Moderna, 1996. 34 Vale lembrar que além de combater os sistemas filosóficos que reduziam o ser humano a uma mera abstração, uma figura perdida nas massas, Kierkegaard também combateu a tibieza do “cristianismo” da sua época.
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de querer explicar tudo e demonstrar todos os acontecimentos da história e do mundo por meio da dialética. Para Soren, nenhum sistema é capaz de engaiolar a existência (Reale; Antiseri, 2005, p.241): o ser humano possui um modo contingente e mutável de viver a existência, não podendo ser redutível a nenhuma lógica. Segundo Blanc, há quatro elementos que indicam a oposição de Kierkegaard a Hegel: a transcendência absoluta de Deus (versus imanência da idéia), transcendência da fé (versus imanência da razão), abandono da mediação especulativa (versus sua manutenção), a necessidade da justificação pela graça (versus alcance da verdade unicamente pelas forças da razão). Sendo assim, a filosofia de Soren Kierkegaard não se construiu em oposição à de Hegel: ela foi levada por posições próprias e autônomas a tomar um sentido oposto (...). Sua filosofia não é uma filosofia de oposição, mas de posição: a do caráter radical da mensagem cristã [todos os grifos são do autor] (2003, p. 123).
Além desses pensadores, outros tantos contribuíram com a formação do pensamento kierkegaardiano, tais como: Tertuliano e outros Padres da Igreja, Santo Anselmo35, Gottfried Leibniz, Lessing36, Immanuel Kant37, Emil Boesen, Poul Martin Moeller e Ludwig Feuerbach38. A todos eles, sem dúvida, Kierkegaard é devedor, mas não se pode esquecer de que o pensador dinamarquês foi um homem, um escritor, um cristão que fez a diferença, tanto por sua coragem de enfrentar os poderes instituídos da época, quanto por ter resgatado o verdadeiro sentido da existência. Minha missão: “limpar o terreno” – Não sou um apóstolo que anuncia algo em nome de Deus e com autoridade. Não, estou a serviço de Deus, mas sem autoridade. Minha missão é de limpar o terreno, para que Deus possa avançar (À margem: minha missão não é a de limpar o terreno com os meios comuns, mas por meio do sofrimento). Deduz-se então facilmente porque devo ser literalmente um homem sozinho e mantido em grande fraqueza e debilidade. Porque, se aquele que há de limpar o terreno avançasse à frente de alguns batalhões – claro que, no plano humano, este parece um método magnífico e o mais seguro para consegui-lo. Mas existiria o perigo de que, em lugar de limpar, esse homem tomasse conta do lugar e de tal maneira que Deus acabaria por não poder agir verdadeiramente. Minha missão é a de limpar o terreno. Sou um policial, se quiserem. Mas a polícia deste mundo procede com a força e prende os outros – ao contrário, a polícia do alto procede por meio do sofrimento e exige antes de ser presa. (1971, p. 45 – 46).
O modo como desenvolveu essa missão, o método usado nas suas reflexões e os temas que constituíram objeto de sua reflexão serão temas do próximo capítulo. Por ora basta dizer que o ponto de partida das reflexões de Kierkegaard foi sempre o homem singular, vivo, existencial, com a totalidade de seus afãs e de seus problemas. 35
Cf. VALLS, Alvaro L. M. Santo Anselmo de Copenhague. In: _____. Entre Sócrates e Cristo: Ensaios sobre a ironia e o amor em Kierkegaard. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. p. 197 – 213. 36 Cf. VALLS, Alvaro L. M. O Problema das Migalhas. In: _____. Entre Sócrates e Cristo: Ensaios sobre a ironia e o amor em Kierkegaard. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. p. 158 – 160. 37 Cf. VALLS, Alvaro L. M. Algumas comparações com Kant. In: _____. Entre Sócrates e Cristo: Ensaios sobre a ironia e o amor em Kierkegaard. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. p. 123 – 124. 38 Cf. VALLS, Alvaro L. M. As Migalhas Filosóficas. In: _____. Entre Sócrates e Cristo: Ensaios sobre a ironia e o amor em Kierkegaard. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. p. 155 – 158.
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2 KIERKEGAARD: UM PENSADOR À ESCUTA DO SER HUMANO A superioridade do homem sobre o animal está pois em ser suscetível de desesperar, a do cristão sobre o homem natural, em sê-lo com consciência, assim como a sua beatitude está em poder curar-se. Soren Kierkegaard
O século XIX foi um período da história da humanidade marcado por grandes revoluções tanto na ciência como na sociedade. Todas essas mudanças afetaram significativamente o ser humano, forçando-o a repensar a sua situação no mundo. Todas as seguranças que o Iluminismo oferecia desapareceram. A rainha razão, que se vangloriava de ser a suprema forma de conhecimento e única luz para a compreensão da vida, já não é capaz de oferecer segurança e consistência para a existência humana. Mal-estar, desencanto com a vida, desânimo, incertezas, tibieza... são alguns sentimentos que se apoderaram do homem do século XIX. Depois de se analisar o contexto histórico, social e filosófico em que viveu Kierkegaard, é necessário continuar a investigação sobre o pensador dinamarquês, concentrando agora a atenção sobre a visão que ele tem de homem, especialmente do homem religioso. Como Nietzsche39, Kierkegaard percebeu os males da sua sociedade e procurou ajudar o ser humano a encontrar a si mesmo no devir concreto, no aí, no instante concreto em que vive e decide a sua existência. Tanto a desvalorização da subjetividade como a forma do cristianismo reduzido a mero componente da sociedade incomodaram profundamente a inteligência do pensador dinamarquês. O objetivo principal de Kierkegaard foi o de descrever o que é o cristianismo verdadeiro. Para isso, é necessário deixar-se interpelar por Deus, já que todo ser humano está situado diante de Deus na concreção de seu próprio viver.
2.1 O MÉTODO
As obras que Kierkegaard escreveu entre 1843 a 1846 são classificadas como heteronímicas, ou seja, obras escritas por meio de pseudônimos, cuja comunicação se dá de forma 39
Nietzsche exerceu também o papel de um profeta, pois previu que a raiz de todos os males que atingem o homem contemporâneo encontra-se no niilismo: “Descrevo aquilo que virá: o advento do niilismo. Posso descrevê-lo agora porque agora se produz algo necessário – e os sinais disso estão por toda a parte, para vê-los faltam apenas os olhos (...). O homem moderno crê experimentalmente ora neste, ora naquele valor, para depois abandoná-lo; o círculo de valores superados e abandonados está sempre se ampliando; cada vez mais é possível perceber o vazio e a pobreza de valores; (...). No fim, o homem ousa uma crítica dos valores em geral; reconhece sua origem; conhece o bastante para não acreditar mais em valor nenhum; eis o pathos [todos os grifos são do autor], o novo tremor... A história que estou relatando é a dos dois próximos séculos”. (Nietzsche, 1971, p. 110, apud Reale, 1999, p. 18-19).
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indireta. Quase todas as obras mais famosas de Soren pertencem a esse período. Na verdade, os pseudônimos foram usados pelo autor para instigar o leitor, para extrair do sujeito a verdade, semelhante ao método maiêutico socrático. Além desse método, Kierkegaard fez uso da comunicação direta, presente nas obras escrita de 1843 a 1855. Esta comunicação direta constitui as obras veronímicas, feitas de “discursos edificantes”.
2.1.1 A Comunicação Indireta e Direta Para escrever as obras pseudonímicas – comunicação indireta -, Kierkegaard se inspira nas Cartas confidenciais sobre a Lucinda, de Scheleiermacher, e no romance filosófico Wilhelm Meister, de Goethe (Farago, 2006, p. 58). Essas obras do pensador dinamarquês são apresentadas por meio das máscaras de pseudônimos que permitem que os autores se expressem na primeira pessoa, com as suas próprias opções existenciais. Conseqüentemente, os pseudônimos possibilitam mudanças interiores no leitor através de movimentos existenciais que só ele pode executar. Por isso, Kierkegaard iniciou a sua carreira literária escrevendo obras com pseudônimos. Essas obras são maiêuticas. O método maiêutico é o método usado por Sócrates. Tem o objetivo de descobrir a verdade40, descobrir as respostas para os dilemas existenciais da vida humana. A verdade que o ser humano deve descobrir possui um elemento subjetivo, de apropriação, ou seja, a verdade tem que ser verdadeira “para mim” (a verdade tem que se tornar viva em mim). (Gouvêa, 2006, p. 238-239). Os pseudônimos mais importantes que Kierkegaard usou nas suas obras heteronímicas ou estéticas são os seguintes41: Alguém que Ainda Vive, Victor Eremita, “A”, Johannes o Sedutor, Juiz Vilhelm (“B”), O Pastor de Jylland, Johannes de Silentio, Constantin Constantius, O Jovem, Johannes Climacus, Vigilius Haufniensis, Nicolaus Notabene, A.B.C.D.E.F.Godthaab, Hilarius Bogbinder, Willian Afham, O Modista, Frater Taciturnus, Quidam, Inter et Inter, Procul, Petrus Minor, H.H., Anti-Climacus. De fato, a comunicação indireta presente especialmente nas primeiras obras de Kierkegaard quer, na verdade, transmitir uma mensagem excepcional para os dinamarqueses oficialmente cristãos, a fim de que percebam que eles não são de modo algum cristãos. O objetivo do pensador dinamarquês é instigá-los, confundi-los e libertá-los de um cristianismo falsário,
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Kierkegaard e Sócrates dizem que a verdade é verdade para o sujeito. Somente o sujeito apropria-se a si mesmo a verdade. Todavia, contrapõem-se no momento de explicar a relação do sujeito para com a verdade. Para Soren, o indivíduo é a não-verdade, ao passo que para Sócrates basta o individuo recordar-se da verdade que já estava no seu interior. 41 Para aprofundar mais sobre eles: Cf. GOUVÊA, Ricardo Q. Os Heterônimos de Kierkegaard. In: _____. Paixão pelo Paradoxo: Uma Introdução a Kierkegaard. São Paulo: Fonte Editorial, 2006, p. 309 – 315.
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acomodado, tíbio. As suas obras estéticas funcionam como espelhos, onde a sociedade dinamarquesa é chamada a se olhar e a se ver42. (Gouvêa, 2006, p. 241). Os “autores” das obras estéticas foram criados por Soren como autores-personagens que inclusive compartilhavam com Kierkegaard muitas das suas convicções. Há, porém, exceção, pois é possível encontrar em muitas das obras estéticas idéias que não condizem com algumas das convicções de fé professadas por Kierkegaard. Em outras palavras: os heterônimos43, “outros nomes” de Kierkegaard, formulam e expressam idéias diferentes em conteúdo (filosofia), em estilo, em compreensão e nas práticas de vida do pensador dinamarquês. (Gouvêa, 2006, p. 242): O que foi escrito é, pois meu, mas somente na medida em que me coloco na boca da personalidade poética real, que produz sua concepção de vida tal como se percebe pelas réplicas, pois minha relação com a obra é ainda mais exterior que aquela do poeta que cria personagens e, no entanto, é ele mesmo o autor do prefácio. Sou, com efeito, impessoal ou pessoalmente um assoprador da terceira pessoa, que poeticamente criou autores, os quais são os autores de seus prefácios e mesmo de seus nomes. Não há, pois, nos livros de pseudônimos uma só palavra que seja minha. Não tenho nenhuma opinião a seu respeito a não ser a de um terceiro, nem conhecimento de sua importância senão enquanto leitor, nem a menor relação privada com eles, pois seria impossível ter uma relação com uma mensagem duplamente refletida44. (Kierkegaard, 1971, p. 47).
Neste caso, os heterônimos funcionam como um grupo excêntrico e curioso. São alteregos, personae de Kierkegaard. Apresentam pontos de vista, estilos, tons, vocabulários diferentes de Kierkegaard, existindo até mesmo, entre eles, discordância e contradição. (Gouvêa, 2006, p. 245). Porém, não se pode esquecer de que a heteronomia constitui um método socrático, cujo principal objetivo, como já se acenou, é chamar as pessoas para um verdadeiro compromisso com o cristianismo e com a interioridade45. Não obstante, como já disse, eu não tenho nada a fazer com o conteúdo da obra. Minha tese era que a subjetividade, a interioridade é a verdade. Era ela a meus olhos o decisivo problema do cristianismo e foi nesse sentido que procurei seguir um esforço semelhante, encontrado nos livros pseudonímicos que, até o ultimo, abstiveram-se honestamente de ensinar e em particular devo tomar em consideração o último [Post-Scriptum] porque ele apareceu após minhas “Migalhas”,
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A alusão ao espelho encontra-se no epigrama de G. C. Litchtenberg, usado por Kierkegaard em: In Vino Veritas: “Tais obras são espelhos: se é um macaco a olhar, não pode ver-se um apóstolo”. (2005, p. 10). 43 De acordo com Gouvêa, é melhor usar o termo heterônimo porque essa palavra implica numa síntese de personae de elementos ficcionais e autobiográficos. Ou seja, as palavras dos heterônimos não são as palavras de Kierkegaard, mas são faladas por genuínos alter-egos. Os heterônimos são inclusive usados propositalmente para deixar os livros falarem por si mesmos, interpretados por seu próprio valor e não pelo autor. (Gouvêa, 2006, p. 243-245). 44 No final desse trecho, Gouvêa diz que Kierkegaard não teria problema em assumir as suas idéias de modo indiretamente, mas as obras heteronímicas precisam ser interpretadas juntamente com as obras veronímicas, visto que a autoria de Kierkegaard não era um segredo, mas um modo de os leitores se identificarem com os autores dos livros, possibilitando assim uma reflexão interior. (Gouvêa, 2006, p. 249-250). 45 Além dessa intenção, Blanc diz que “a pseudonímia remete claramente a uma questão dolorosa, a da paternidade: segundo a carne (Michael Pedersen, o culpado), segundo o espírito (o bispo Mynster, o comprometido), segundo a condição particular (Soren, o eterno noivo de Regina), segundo a condição pública (Kierkegaard, o autor), etc.”. (2003, p. 112).
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lembra os precedentes recriando-os livremente e, através do humor, como zona-limite, define o estágio religioso. (Kierkegaard, 1971, p. 56).
Vale lembrar que Kierkegaard tinha o costume de chamar o método da comunicação indireta de um processo de “comunicação duplamente refletida”: a primeira reflexão levaria a idéia a ganhar sua expressão adequada na palavra; a segunda reflexão enfatizaria a relação intrínseca da comunicação com o comunicador. Isso significa que a comunicação é qualificada pela reflexão, sendo, portanto, uma comunicação indireta. A insistência de Kierkegaard na “comunicação duplamente refletida” o levou a abraçar a heteronomia. (Gouvêa, 2006, p. 251). Portanto, comunicação indireta implica, não que há muitos significados possíveis e legítimos para um texto, mas sim que o texto pode ser interpretado de muitas formas apesar de seu significado genuíno que sempre está oculto, e o interprete revelará seu próprio coração e será julgado pelo texto conforme torne evidente seu próprio modo de lê-lo. (Gouvêa, 2006, p. 251-252).
No entanto, como o objetivo do método de Kierkegaard é provocar movimentos existenciais, alcançar a simplicidade, a comunicação deve tornar-se comunicação direta. Foi isso que Kierkegaard procurou provar: “a verdadeira comunicação indireta é acompanhada da comunicação direta” (Gouvêa, 2006, p. 252). Mas quando foi que Kierkegaard colocou isso em prática? O pensador colocou em prática esse pensamento ao escrever a sua chamada “obra veronímica paralela”, composta de comunicação direta46. Kierkegaard insistiu que “a comunicação direta estava presente desde o início, pois o livro Dois Discursos Construtivos, de 1843, foram de fato simultâneos com Ou. E para que se estabelecesse definidamente essa comunicação religiosa como contemporânea, cada novo livro heteronímico era acompanhado quase simultaneamente por uma pequena coleção de Discursos Construtivos – até o surgimento do Post-Scriptum Concludente, que fechou a questão sobre o problema da obra toda, ou seja, como tornar-se um cristão. A partir deste momento os discretos indícios de comunicação religiosa direta cessam e aí começa a produção puramente religiosa: Discursos Construtivos em Variados Estados-de-Espírito, Obras do Amor, Discursos Cristãos”. (Gouvêa, 2006, p. 252).
Toda a genialidade literária de Kierkegaard teve apenas um objetivo: descrever o que é o cristianismo. Por isso, antes de ser um poeta (o seu estilo de escrever e a estrutura das suas obras comprovam a sua veia poética), Soren foi um escritor religioso crítico: Esta pequena obra [Post-Scriptum] se propõe, pois, dizer o que sou verdadeiramente como autor, que fui e sou um autor religioso, que toda minha atividade literária relaciona-se com o cristianismo, com o problema do tornar-se cristão, com objetivos polêmicos diretos e indiretos contra esta
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Tal comunicação não é totalmente direta, pois, se fosse, seria um conhecimento teórico, ordinário, cientifico e especulativo. Mas é direta na medida em que Kierkegaard se responsabiliza por seus discursos, que são como testemunhos que caem sob a rubrica de comunicação indireta, uma vez que esses escritos têm uma função prática cristã. (Gouvêa, 2006, p. 235-236).
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formidável ilusão que é a cristandade ou a pretensão que todos os habitantes de um país são, enquanto tais, cristãos. (Kierkegaard, 1971, p. 57).
Acima de tudo, Kierkegaard foi um crítico veraz do século XIX. Seu poder literário brilhante e criador foi colocado a serviço da afirmação da singularidade do ser humano. Seu pensamento procura demonstrar o verdadeiro sentido da vida. Cada homem é responsável por buscar a si não na massa e nas instituições, mas no seu próprio interior, no contato com o transcendente.
2.2 A EXISTÊNCIA E O INDIVÍDUO
O homem é um ser-no-mundo, encontra-se diante de muitas possibilidades. Para ele tudo é possível. Ele goza do poder de escolher, de determinar a sua vida, sendo, porém, responsável pelas escolhas que faz. O ser humano não é um pensamento especulativo ou uma entidade abstrata: é um individuo concreto, dotado de razão e emoção. Ele é a síntese do corpo, da alma e de espírito. A sua existência o coloca sempre na situação de angústia e desespero, que só podem ser superados pelo auxilio divino.
2.2.1 A Existência como possibilidade
Segundo Blanc, a pedra angular da construção filosófica de Kierkegaard é o conceito de possibilidade (2003, p. 47). O pensador dinamarquês procurou reconduzir a compreensão de toda a existência humana a essa categoria e demonstrar o caráter negativo e paralisante da possibilidade como tal47 (Abbagnano, 1978, p. 10). A palavra possibilidade deriva da palavra possível que, por sua vez, vem do latim posse potis esse que significa “ter em seu poder” , “ser patrão de”. O possível significa que o “eu” pode fazer e realizar algo na experiência concreta e vivida. Para Kierkegaard, é o possível caracterizar o existir do homem, uma existência pela qual o homem entra em contato como o mundo e com os outros. Também é “preocupação com sua sobrevivência, e antecipação e projeto, desenvolvimento de um programa que está se escrevendo, saída fora de si da vida” (Blanc, 2003, p. 48). Neste caso, a existência se torna uma contingência absoluta: o homem tem diante de si uma multiplicidade de possibilidades pelas quais escolhe. O 47
O aspecto do negativo da possibilidade significa que todas as possibilidades são possibilidades-de-sim e possibilidades-de-não, pois no seu projetar-se o homem se vê diante do nada, angustia-se com o mundo. (Abbagnano, 1978, p. 12-14).
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mundo exige uma resposta, uma escolha de cada ser humano. A existência não é um objeto, mas aquilo a partir do qual cada um experimenta, pensa e age. Existir, para o homem, não é o equivalente de ser (Vaeren) ou de ter a existência, empírica, imediata, a existência de fato (Tilvaerelse). O homem é o único existente, distinto dos outros entres que só tem uma existência de fato e não sabem que são. Muito mais, para o homem, sua existência é uma tarefa, uma exigência: a de ter que devir, edificar-se. (Farago, 2006, p. 75).
A existência coloca o ser humano na tarefa de si mesmo, interessado por si mesmo e voltado para os possíveis: ele só pode ser diante de suas opções. Quando o homem age, ele ec-siste, mantém-se fora de si mesmo, projeta-se na realidade através de suas ações. Consequentemente, a existência se torna autêntica, porque faz sentido por ela mesma. (Farago, 2006, p. 75-76). Em outras palavras: quando o ser humano enfrenta os possíveis da realidade, dá forma à sua singularidade, mostra-se como o Individuo, e não uma entidade abstrata. (Blanc, 2003, p. 50). Contudo, o homem, na sua forma biológica de corpo, lançado no mundo com sua reverberação psíquica (alma), necessita de chegar ao espírito, à faculdade da síntese reflexiva, para arrancar da sua animalidade e se realizar como pessoa concreta. (Farago, 2006, p. 76). Tal processo exige uma nova compreensão do ser humano como síntese de corpo e alma, síntese que não pode ser concebível sem se ligar a um terceiro: o espírito48. Tal síntese constitui a essência do homem, o qual não precisa se livrar do corpo49 para entrar em contato com Deus, pois a síntese na visão cristã se realiza por meio de uma complexidade de três termos: a da alma e a do corpo passando pelo espírito [grifos do autor]. Se a essência do homem reside em ser bem-sucedido nesta relação referindo-se a Deus, de jeito algum ele poderia furtar-se a ela, e, muito longe de preconizar a fuga do mundo (...). Trata-se, portanto, para o homem, de ele se deixar elevar do próprio coração to tempo à vida eterna (...). (Farago, 2006, p. 79).
Para Kierkegaard, o fato de o Indivíduo estar dentro e diante da existência, a sua existência é possibilidade, possibilidade que não deixa de causar angústia no homem, um sentimento de malestar. (Blanc, 2003, p. 50-51). De acordo com Farago, a angústia é O lugar onde o si mesmo começa a advir, experiência cuja tonalidade afetiva é absolutamente única, dado que, diferentemente do receio ou do medo, a angústia não tem objeto, não é de forma alguma intencional, privada que é de toda referencia. Ela é o pathos [grifo do autor] em cujo seio o indivíduo começa a chegar à consciência de si mesmo. (2006, p. 80).
Além da angústia, o desespero também faz parte da existência humana, pois o homem, diante das diversas possibilidades, dos limites delas e da situação difícil de escolher, entra em 48
Sobre angústia e desespero, Kierkegaard escreveu de modo profundo nos livros: O Conceito de Angústia, A Doença Mortal. 49 Contrapõe-se ao dualismo, pelo qual o corpo é visto como um túmulo, necessitando se desligar do corpo para entrar em contato com o transcendente. Essa concepção gera uma profunda desvalorização do corpo.
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desespero. Essa situação limite, só pode ser superada pela ajuda de Deus. É Deus quem o salva. Segundo Kierkegaard, a relação que se estabelece entre Deus e o homem, quando este se encontra numa situação de angústia, constitui, na verdade, uma relação possível e não necessária. Isso não significa afirmar que a fé não alivia condição humana. “Ter fé é assumir os riscos [grifo do autor] que derivam das possibilidades da existência” (Blanc, 2003, p. 51). Enfim, a existência humana ou o Indivíduo encontra-se sempre diante das possibilidades, colocando-o em relação consigo mesmo, com o mundo e com Deus. O desespero, a angústia e o paradoxo são situações concretas que caracterizam essa relação do homem a partir das possibilidades lhe apresentadas. (Blanc, 2003, p. 52).
2.3 OS ESTÁDIOS NO CAMINHO DA VIDA
Como foi dito anteriormente, o ser humano vive em relação consigo mesmo, com o mundo e com Deus. Mas o homem é finito. Essa finitude é “complexa e estruturalmente fadada ao conflito interior, à tensão ou ao desequilíbrio entre elementos que se tornaram heterogêneos pela consciência e pela divisão que ela introduz entre a alma e o corpo, entre interioridade e a exterioridade” (Farago, 2006, p. 86). O eu não é uma identidade abstrata, mas essencialmente relação viva consigo mesmo, em primeiro momento. A síntese entre o infinito e o finito, o temporal e o eterno, não se dá, porém, por causa da relação entre alma e corpo. É a reflexividade da relação, que vai se desdobrando em sua dinâmica no tempo, que possibilita tal síntese (Farago, 2006, p. 86). Neste caso, o eu é a relação entre a alma e o corpo que se relaciona reflexivamente consigo mesmo por intermédio do espírito: A reflexividade constitui o eu, a singularidade de cada um, arrancando-o à impessoalidade da espécie e aos falsos selves [grifo do autor] que são forjados pelas convenções sociais. Mas o homem não se reduz a esta relação simples. Sua estrutura é mais complexa. Esta complexidade reflexiva que é a existência humana, “este filho gerado pelo infinito e o finito, pelo eterno e o temporal”, acha-se na situação de se esforçar continuamente para equilibra a relação, a fim de realizar o mais harmoniosamente possível a síntese entre seus elementos heterogêneos (...). “Essa relação que se relaciona consigo mesma, um eu, deve ou se ter posto a si mesma ou então haver sido posta por outra coisa”. Neste caso, o terceiro que é a relação, ou seja, o espírito, se relaciona com aquilo que pôs toda a relação, isto é, Deus. Resgatar de maneira consciente a relação com Deus, da qual procedemos inconscientemente e originalmente, significa nascer para si mesmo de verdade. (Farago, 2006, p. 86-87).
O homem não é um ser predeterminado, mas se auto-determina, fazendo escolhas. O seu existir está marcado por escolhas, o que implica ser responsável por elas. Na medida em que se desenvolve livremente, o ser humano pode se realizar como Indivíduo, como um Eu, com ajuda de Deus, pois interioridade humana apela para o transcendente. Para não se perder na vida, homem
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precisa não só unificar “a alma e o corpo, mas elevar esta união em nível de espírito, graças a relação com Deus (...). A espiritualidade50 é a verdadeira especificidade do homem” (Farago, 2006, p. 88). Ademais, a subjetividade é “a única maneira fundamental de se relacionar com o ser, o que faz que nos tornemos [grifo do autor] alguma coisa, em vez de voar por cima de todas as coisas em um pensamento ‘objetivo’” (Farago, 2006, p. 119). Mas a subjetividade, o autoconhecimento, não é capaz de se deter no mundo empírico: necessita do auxílio para se descobrir e dar um sentido à sua vida. Para Kierkegaard, toda a vida do homem é nada mais do que busca do sentido, mas o modo, o estilo de buscar é distinto. No seu caminhar, o ser humano vive diferentes experiências do sentido, graus distintos de interiorização. Na verdade, o ser humano passa por etapas, ou estádios existenciais. (Farago, 2006, p. 120). Os estádios principais são três: o estádio estético em que o homem se abandona à imediatidade, o estádio ético em que se submete à lei moral (o geral, como se diz), e o estádio religioso [grifos do autor] em que o homem, abraçando a eternidade, se deixa dirigir pelo amor, para além do bem e do mal. A vida, para poder chegar à plenitude, comanda a paixão de existir como amor e auto-afirmação. Esse é o ato originário, é o ato de querer tornar-se si mesmo. A opção original do eu é um amor a si mesmo, é de verdade o primeiro amor. Todavia, o homem pode se amar mal. (Farago, 2006, p. 120).
Essa divisão dos estádios é feita por Kierkegaard no livro Estádios do Caminho da Vida51 (1845), obra esta heterônima. O editor dessa obra chamava-se Hilarius Bogbinder, encadernador de livros. Kierkegaard publicou três manuscritos que, por acaso, caíram nas mãos de Hilarius. O primeiro manuscrito, In Vino Veritas, baseia-se no modelo do Banquete de Platão. O autor desse volume é o heterônimo Vilhelm Afham, que relembra um banquete no qual cada convidado faz um discurso sobre o amor. Os cinco convidados são: Johannes - O Sedutor, o jovem apaixonado de Repetição (que pode ou não ser o “A” de Ou), Constantin Constantius, Victor Eremita, e um estilista, o único novo personagem a ser introduzido no corpus. O segundo é um ensaio moral do mesmo autor “B” de Ou, o eticista Juiz Vilhelm. Ele trata da defesa do casamento e uma resposta aos homens esteticamente orientados que falaram antes no banquete. E o terceiro chama-se Culpado ou Inocente? Ele é constituído de um diário que foi encontrado por Frater Taciturnus e que conta a história de amor de Quidam, uma história muito semelhante à de Kierkegaard e Olsen. Quidam não pode ser considerado cristão, por mais que segue 50
Segundo Kierkegaard, nas palavras de Farago, “o homem pode fazer a experiência da eternidade, aqui e agora, sob a condição de procurar apaixonadamente o que verdadeiramente faz viver, dá sentido [grifo do autor] à vida indicando-lhe a orientação a seguir, a qual é sempre obrigatória”. (2006, p. 88). 51 A exposição dessa obra é feita por Gouvêa. Cf. GOUVÊA, Ricardo Q. O Corpus Kierkegaardiano. Paixão pelo Paradoxo: Uma Introdução a Kierkegaard. São Paulo: Fonte Editorial, 2006. p. 284.
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o viés religioso, pois falta-lhe a convicção do pecado. Nesta última seção, encontram-se inclusive seis famosas histórias curtas ou contos, que são importantes para compreender o pensamento de Soren: Quieto Desespero, Auto-Contemplação de um Leproso, O Sonho de Salomão, Uma Possibilidade, A Lição de Leitura: Periandro, Nabucodonosor. O esquema desse livro é parecido com o de Ou, em que cada estágio é uma opção de vida. Aqui ênfase recai sobre estádio religioso e sobre a natureza do sofrimento, pois segundo Kierkegaard, os Estádios se diferenciam de Ou por uma divisão em três partes: Há neles três estádios, um estético, um ético e um religioso. Mas não abstratamente como o mediato-imediato, a unidade, mas concretamente na determinação da existência, como êxtase no prazer, vitória na ação, sofrimento. E, no entanto, a obra malgrado esta divisão tripartite é uma alternativa. O estádio ético e o estádio religioso tem, com efeito, uma relação essencial um com o outro. O erro em “A Alternativa” [ou Ou] consiste precisamente em que, como mostramos, o livro tinha uma conclusão ética. Em “Estádios”, isso se tornou claro e o religioso afirmou o seu lugar. (Kierkegaard, 1971, p. 55-56).
Vale lembrar que antes dos Estádios, surgiram outros livros que refletem sobre a condição humana, sobre as esferas da existência, tais como: Ou (também conhecida como A Alternativa), Temor e Tremor, Repetição e Migalhas Filosóficas. A obra A Alternativa foi escrita em 1843. O núcleo dessa obra é a insistência na escolha que cada homem, cada indivíduo, deve fazer entre viver uma vida estética ou uma vida ética. Vida estética e vida ética são trabalhadas nos ensaios dos heterônimos: “A, o esteta” e “B, o eticista Juiz Vilhelm”, editados por outro heterônimo, Victor Eremita. Sobre o livro A Alternativa, Kierkegaard afirma: “A Alternativa”, cujo título já é demonstrativo, permite que a relação existencial entre o estético e o ético se desenvolva numa individualidade existente. Aí reside, conforme minha maneira de ver, a polêmica indireta do livro contra a especulação, à qual a existência é indiferente. Não apresentar resultado, nem conclusão definitiva é uma maneira de exprimir indiretamente que a verdade é interioridade e por isso pode ser uma polêmica contra a verdade enquanto saber (...). A primeira parte (de “A Alternativa”) contém uma possibilidade de existência que não pode se realizar, uma melancolia que deve ser trabalhada eticamente (...). É uma existência de fantasia na paixão estética, uma existência paradoxal, chocando-se contra os recifes do tempo. Esta possibilidade existencial é, em seu máximo, o desespero. Não é, pois, existência, mas possibilidade de existência na direção da existência e tão próxima dela que se tem a impressão que todo instante que não nos leve a uma decisão, é perdido. Mas a possibilidade de existência no sujeito existente “A” não quer ser consciente disso e mantém-se à distancia da existência pela mais fina das artimanha: pelo pensamento. Pensou em todos os possíveis, e não obstante, não existiu de todo (...). A segunda parte apresenta uma individualidade ética que existe em virtude da ética (...). O tipo ético desesperou. No desespero, elegeu-se a si mesmo. Ele se torna, por esta eleição e na eleição, transparente. É um homem casado (...) e, tomando posição contra o caráter secreto da estética, concentra-se precisamente sobre o casamento como a forma a mais profunda da transparência da vida, pela qual tempo é levado ao crédito daquele que existe eticamente, isto é, a possibilidade de ter uma história, a vitória ética da continuidade sobre a dissimulação, a melancolia, a paixão ilusória e o desespero (...). Esta é a mudança de cena ou, mais exatamente, a cena agora é esta: em lugar de um mundo de possibilidades abrangidas pela fantasia e dispostas dialeticamente, um indivíduo – e só a verdade que edifica é a verdade para ti, isto é, a verdade é a interioridade,
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observemos bem, a interioridade da existência, determinada aqui de maneira ética. (1971, p. 5051).
Além dessas duas partes, o livro se encerra com um sermão chamado “Ultimato”, escrito por um sacerdote de Jylland (outro heterônimo), que recorda que perante Deus o ser humano sempre age mal. O motivo desse sermão, apresentado ao final do livro, deve-se ao fato de que, até mesmo na vida ética, o homem encontra-se no estado de desespero, precisando da intervenção divina para encontrar a sua identidade. Deve-se, porém, ficar claro que o livro não oferece uma resposta explícita para o dilema da vida. O sermão é uma escolha que Kierkegaard fez para sua própria vida. Cabe a cada ser humano decidir por si mesmo, de modo livre e responsável por aquilo que escolhe. Depois da obra A Alternativa, surgiu Temor e Tremor, que enfatiza o estádio religioso e a fé paradoxal. O conteúdo dessa obra será trabalhado mais a frente. Um pouco antes de Temor e Tremor, foi publicado o livro A Repetição, livro este que discorre sobre o amor de um jovem por uma mulher, cuja intenção é a de romper com ela (todos os livros do pensador dinamarquês são um pouco autopsicográficos). Tal jovem escreve uma carta a um certo Constantin Constantius, outro heterônimo, pedindo conselho. O jovem perde casualmente a moça, mas misteriosamente experimenta uma repetição, quando adquire a si mesmo como poeta. O caso mexe tanto com Constantius a ponto de ele se deter em longas digressões sobre a vida estética, ética, religiosa e a enigmática possibilidade de repetição e suas conseqüências sobre o espírito humano. (Gouvêa, 2006, p. 281). O conceito de repetição, presente nesse livro, é importantíssimo no pensamento de Kierkegaard. “A repetição é reafirmação, a confirmação que se deve retomar a cada instante para continuar existindo de verdade” (Farago, 2006, p. 149). Esse conceito aparece na obra em três sentidos: a repetição estética, que não é possível; a repetição ética do cotidiano; e a repetição religiosa, parecida com de Jó. (Gouvêa, 2006, p. 280). Pouco depois dessas obras, surgiram aquelas que irão inaugurar o assim chamado período fértil da produção literária de Kierkegaard: Migalhas Filosóficas (1844), O Conceito de Angústia (1844) e Prefácios (1844). Retomando agora o caminho de reflexão sobre os estádios (Stadier pa Livets Vej – em dinamarquês), é necessário afirmar que os mesmos “foram traduzidos e interpretados como estágios progressivos, esferas existências, estados psicológicos, ou estilos de vida pessoal” (Gouvêa, 2006, p. 253). Gouvêa prefere usar o termo “estações”, comparando-as com as estações de um trem ou as Estações da Cruz. Vale lembrar que para Kierkegaard os estádios da existência compreendem outras subdivisões, outros momentos: “dupla, tripla ou quádrupla, conforme se divida em estético e éticoreligioso, em estético, ético e religioso ou ainda em estético, ético, religioso da religiosidade comum
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(A) e da religiosidade paradoxal (B)” (Paula, 2001, p. 28). De acordo com Gouvêa, a própria vida estética pode ser dividida em imediata ou refletida. Apesar de existirem essas subdivisões, faz-se aqui uso da divisão clássica dos Stadier pa Livets Vej. Como se pode perceber, por detrás desse esquema, há um pressuposto de que o ser humano, além de ser uma criação temporal, também é um constituinte eterno. O homem é uma síntese do temporal e do eterno. A existência do homem tem como objetivo a eternidade. Por isso, em cada estágio da vida, o ser humano pode escolher livremente como vai fazer o encontro com a eternidade, podendo até mesmo negar tal encontro. Assim, as mudanças envolvidas neste processo não são de forma acumulativa, quantitativa, mas mudanças qualitativamente psicológicas: cada estágio é uma personalidade a que o indivíduo se detém e escolhe. (Gouvêa, 2006, p. 254). Contudo, a passagem de um estádio para outro não é necessária, pois o indivíduo pode “romper ou não com aquilo de onde provém” (Blanc, 2003, p. 53). Cada estádio é uma opção de vida. Não há estádio inferior ou superior, pois todos são significativos e fazem parte da constituição do ser humano. Eles não são objetos de síntese, porque cada ser humano, ao longo da caminhada, pode permanecer em alguns pontos estéticos, mas pode viver uma vida ética e até mesmo religiosa. Ou seja, há uma continuidade nos estádios, não uma ruptura radical, entre outras. Porém, se o ser humano quiser dar sentido à sua vida, necessitará de Deus. (Gouvêa, 2006, p. 257). Enfim, nesse capítulo dedica-se a existência do homem em seus estágios e, principalmente, no paradoxo da religião. Com efeito, as esferas da existência se fundamentam também no PostScriptum Não-Científico Concludente52, no qual Kierkegaard diz que: “Há três esferas da existência: a estética, a ética e a religiosa. A essas três esferas correspondem duas zonas-limite. A ironia é a zona-limite entre o estético e o ético, o humor, a zona-limite entre o ético e o religioso” (1971, p. 72).
2.3.1 O Estádio Estético
A vida do esteta é feita de uma série de momentos contraditórios. Cada um desses momentos tem a intenção de realizar um absoluto gozo. O estádio estético corresponde à fuga do indivíduo de si mesmo, procurando separar-se de sua sombra, sem, porém, conseguir. (Farago, 2006, p. 120-121).
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O Post-Scriptum é uma obra complementar de Migalhas Filosóficas e Estádios do Caminho da Vida. A divisão feita nele acrescenta esses interestádios, zona-limites, para explanar melhor como se dá as etapas na vida do homem.
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“A estação estética está associada ao imediato, e não há aceitação consciente de um ideal. O esteta evita compromisso a todo custo, encarando-o como uma limitação. Ele vive para o momento, na busca sem descanso pelo prazer imediato, mas ele nunca alcança a satisfação” (Gouvêa, 2006, p. 256). O importante é a variedade, a possibilidade de algo, a vivência do agora. A vida do esteta compreende uma série de momentos desconexos: não há continuidade, nem repetição, pois a sua existência é excêntrica e a reflexão é utilizada para fins práticos e intelectuais e não para “avaliar a verdadeira constituição do eu”. (Gouvêa, 2006, p. 256). Com efeito, o máximo a que ele pode chegar é a uma tentativa metafísica de explicar a existência. Mas o esteta não abandona a reflexão filosófica ou teológica, pois a virtude da estética diz respeito aos grandes sistemas filosóficos e teológicos que são constructos teóricos. Inclusive, não há ética propriamente dita, mas costumes e hábitos que constituem as normas para o modo de vida do ser humano. (Gouvêa, 2006, p. 256). De acordo com Kierkegaard, a vida estética possui três sub-estádios eróticos espontâneos: 1) No primeiro sub-estádio, o desejo encontra-se dormente, silencioso, sem movimento, sem inquietação. Nessa fase, o sensual desperta, não até o movimento, mas até a quietude tranqüila (...), até a melancolia profunda. O desejo ainda não despertou. É crepuscularmente pressentido. O objeto do desejo encontra-se ainda no desejo, alça-se sobre ele mesmo e se revela num crepúsculo fraco e perturbador (...). O desejo possui aquilo que virá a ser seu objeto, mas sem tê-lo desejado e, assim, não o possui. Esta contradição dolorosa, mas ao mesmo tempo sedutora e encantadora por sua doçura, ressoa com sua doce melancolia e sua tristeza, através desse estádio. Esta dor (...) reside (...) no excesso. O desejo é um desejo silencioso, a impaciência, uma impaciência silenciosa, o êxtase, uma êxtase silenciosa, onde o objeto começa a despontar, tão próximo que permanece nele (...). O desejo está presente neste estádio apenas como um pressentimento de si mesmo. É sem movimento, sem inquietação, apenas docemente embalado por uma emoção interior (...). O desejo está mergulhado numa silenciosa impaciência momentânea, absorvido pela contemplação e, no entanto, não pode esgotar seu objeto, sobretudo, porque, em sentido profundo, este não existe (...). Embora neste estádio o desejo não seja determinado como tal e embora este desejo pressentido seja completamente indeterminado quanto a seu objeto, ele possui, no entanto, uma determinação: é infinitamente o profundo (...). (1971, p. 75-76).
2) No segundo sub-estádio, o desejo desperta-se e, ao despertar, separa o desejo do objeto e depois reúne o que foi separado. Esta é uma determinação dialética pela qual somente existe objeto quando existe o desejo (Kierkegaard, 1971, p. 76): Desejo e objeto são gêmeos (...). A significação de sua origem não reside no fato de que se unam, mas ao contrário de que se separem e [depois] manifesta-se outra vez querendo reunir o que foi separado. Esta separação leva, como conseqüência, a arrancar o desejo de seu repouso substancial nele mesmo, o que chega não somente a subtrair a determinação de substancialidade, mas ainda a dispersá-lo numa multidão dos objetos (...). O desejo não descobre o seu verdadeiro objeto, mas uma multidão de objetos ao procurar aquele que quer descobrir (...). O desejo (...) presente nos três estádios (...) é caracterizado no primeiro como sonhando, no segundo, como procurando e no terceiro, como desejando. O desejo que procura ainda não é aquele que deseja. Ele não procura senão aquilo que pode desejar, mas não o deseja. O predicado que melhor o determinaria seria este: ele descobre. (Kierkegaard, 1971, p. 77).
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3) No terceiro sub-estádio, Kierkegaard relaciona o esteta com a figura de Don Juan53, considerado pelo autor como “arquétipo do esteta” (Farago, 2006, p. 121). Ele é um “sedutor espanhol de inúmeras conquistas, pensador e estrategista do desejo erótico, celebra a espiritualização enfim infeliz da carne” (Blanc, 2003, p. 56). O desejo em Don Juan está de modo absoluto determinado enquanto tal, constituindo a unidade espontânea dos dois estádios precedentes. “O desejo é absolutamente verdadeiro, vitorioso, triunfante, irresistível e demoníaco” (Kierkegaard, 1971, p. 78). Don Juan é: Um sedutor até o mais profundo dele mesmo. Seu amor não é mental, mas sensual e o amor sensual, por sua concepção não é fiel, mas absolutamente pérfido. Ele não ama uma só, mas todas, isto é, todas são seduzidas. O amor sensual não existe senão no momento, mas por definição o momento é uma soma de momentos. Assim temos o sedutor. O amor cavalheiresco também é mental e, desta maneira, conforme a definição, é essencialmente pérfido (...). O amor mental possui dialética nos dois sentidos. Porque nele há dúvida e inquietude, se quer encontrar a felicidade, ver seus desejos realizados e ser amado. O amor sensual não conhece preocupações (...). Tudo não é para ele [Don Juan] mais que uma questão de momento. Vê-la e amá-la são uma e a mesma coisa (...). É um sedutor. Seu erotismo é sedução (...). Mas qual é a (...) a força pela qual D. Juan seduz? É a força do desejo. A energia do desejo sensual. Em cada mulher, deseja a feminidade de toda, inteira (...). O reflexo desta paixão gigantesca embeleza e engrandece o objeto do desejo que se alça, por seu reflexo, numa beleza superior (...) Tudo o que é feminino é sua presa54 (...). (Kierkegaard, p. 79-81).
Ainda neste sub-estádio, Kierkegaard apresenta outras figuras lendárias e literárias55 Mestre Ladrão, Fausto o Cético56, e Assuero o judeu errante - como representantes da vida estética, ligadas às possibilidades estéticas da sensualidade, da dúvida e de desespero, com exceção do Mestre Ladrão (Gouvêa, 2006, p. 256). O próprio autor dos heterônimos viveu a vida estética: Kierkegaard se deixou entorpecer pela embriaguez lúdica da vida estética, sujeita às sensações, fascinada pelo exagero, pela inversão das categorias paternas. Se falou desses anos como do “caminho de perdição”, julgou mais tarde esse período de sua vida com maior indulgência, dizendo que “o vinho deve fermentar antes de clarear”. Freqüentava então os banquetes, as barulhentas recepções onde, com seu próprio espírito brilhante, se impunha à admiração dos companheiros de prazeres. Mas voltava para casa, muitas vezes bêbado e completamente desesperado. (Farago, 2006, p. 121).
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Don Juan foi contemplado na música de Mozart que “dramatiza o efêmero da sensualidade, o instante fugidio do beijo ou do êxtase amoroso”. (Le Blanc, 2003, p. 56). 54 D. Juan, em sua busca erótica, “confunde o qualitativo, o amor e o quantitativo, a soma das conquistas femininas. A caçada compulsiva do colecionador que se dispersa na multiplicidade, em uma série cuja infinitude é por definição inacessível, é de uma ordem totalmente outra daquela do amor que unifica, cujo poder de síntese está ligado ao absoluto que faz tocar” (Farago, 2006, p. 121). 55 Para aprofundar mais sobre o Diário do Sedutor e a vida estética, cf.: VALLS, Álvaro L. M. A Ironia do Diário do Sedutor. In: _____. Entre Sócrates e Cristo: Ensaios sobre a ironia e o amor em Kierkegaard. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. p. 47 – 65. 56 Fausto busca na vida estética um paliativo, pois apreendeu o amor como meio de repouso de um instante e um desviar-se a atenção da inanidade da dúvida. Ele quer o imediatismo e por isso seduz Margarida. (Blanc, 2003, p. 57).
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Kierkegaard viveu a vida estética, exaltando a juventude e seu breve instante na eternidade. (Blanc, 2003, p. 57). A partir do “terremoto” da sua existência, superou estádio estético, partindo para uma vida ética. Esta experiência lhe possibilitou refletir sobre a existência humana. Segundo Blanc, as características da vida estética são: Vontade de superar a condição humana recusando-se a optar entre as possibilidades apresentadas pela existência; desejo de denunciar pela ironia o descompasso entre essa condição humana e os ideais que a animam; busca da sensualidade; indiferença ao bem e ao mal: o estádio estético torna o prazer a meta última da vida [grifo do autor] (...). Para ele, o outro não é uma finalidade, mas uma oportunidade de distração. O esteta limita-se ao interessante [grifo do autor], a passar sem repouso de uma situação interessante a outra. E quem nada procura na vida além de sua satisfação logo sofre com a brevidade dos dias diante da infinidade dos desejos (...). (2003, p. 57).
Com isso, o ser humano experimenta a angústia, pois ele segue somente os caprichos de sua sensibilidade e a sua existência é o acaso. Nessa busca desenfreada e desmedida por se satisfazer, experimenta a angústia num de seus modos: demoníaco. Angústia do bem, a angústia diante da eternidade e de um compromisso positivo com a vida. O demoníaco não denota simplesmente o estado do pecado, mas a espécie de persistência no mal que encontra sua expressão na melancolia e torna o humor taciturno (...). O demoníaco é o vazio, o tédio, a própria vida do esteta: angústia sem limites, a sede de situações nova jamais saciada, que deixa a alma perpetuamente corrompida pelas satisfações e concentrada em si. (Blanc, 2003, p. 58).
Além do mais, a vida esteta prejudica o eu. O eu perde o seu poder unificador da personalidade. Torna-se condenado a duas atitudes aparentemente contraditórias, mas que se complementam: por um lado a ausência de desejos, e por outro a submissão a todos os desejos, a embriaguez dos possíveis que deixa flutuar sem passar à realização de nenhum deles. Quer tudo ao mesmo tempo, nada quer de verdade. A morte é a suprema felicidade, o remédio para uma vida sem sentido, uma libertação do fardo da vida. (Farago, 2006, p. 124). Todavia, o homem angustiado, sofrendo por causa do seu desejo insatisfeito, pode aproveitar esse momento para construir a si mesmo, pode “inscrever sua interioridade no mundo exterior para nela realizar o ‘geral’” (Blanc, 2003, p. 58). Para isso precisa romper com a vida estética e dar um salto dialético, rumo a uma vida ética, vida de escolhas e se responsabilidades por ela, já que na vida estética não deseja compromissos. Vale lembrar que para o pensador dinamarquês o estádio estético não é completamente iníquo, vergonhoso e deplorável. É um aspecto essencial e louvável da vida humana, pois, quanto mais se desenvolve a sensibilidade, mais a existência é rica. Ele pode se subordinar a uma vida religiosa e ética que implicam limites nela, mas não a abole. (Gouvêa, 2006, p. 257).
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2.3.2 A Eleição e a Ironia
Após a sua experiência de vida estética, Soren Kierkegaard compreendeu que as circunstâncias da vida exigem escolhas. O existir do ser humano é uma escolha. Ele se encontra no dilema do “ou isto – ou aquilo”, necessitando fazer uma eleição na vida, em todos os momentos e de modo especial: quando de um lado há verdade, justiça e santidade e, de outro, desejos e inclinações, paixões sombrias e perdição – também é importante, sem embargo, eleger com justeza quando se trata de coisas nas quais a eleição é mais ou menos inofensiva, por a mão na consciência para não precisar, dolorosamente, bater em retirada até o ponto do qual se partiu e agradecer a Deus se a única coisa que a gente tiver que censurar-se é a de ter perdido seu tempo. (Kierkegaard, 1971, p. 113).
A escolha é de fundamental importância para constituição do eu do ser humano. Por isso, o homem não pode brincar com as suas decisões. A vida é para ser vivida com seriedade, uma vez que ela exige do homem a responsabilidade e a construção da sua personalidade. A personalidade só se constrói quando ela própria quer escolher e decidir. Ela não tem tempo para hipóteses: há a urgência de decidir. Se o homem não faz escolhas, não opta e assim se desespera. Com isso a vida se torna desespero! Mas o ser humano não pode ocultar o desespero de si mesmo. Em outro sentido, a vida não é desespero, quando o ser humano é “demasiadamente frívolo para desesperar e demasiadamente melancólico para não entrar em contato com o desespero”. (Kierkegaard, 1971, p. 125). Para Kierkegaard, o desespero é “um ato que exige toda a força da alma, toda sua seriedade e toda a sua concentração” (1971, p. 126). Sem ele, o homem não conhece a importância da vida, uma vez que ela não se encontra somente nos prazeres. Por causa de um motivo particular, o seu ato de desesperar-se pode inclusive correr o risco de se tornar uma decepção, especialmente para quem acredita que os seus problemas derivam unicamente de causas desconhecidas, levando a pessoa a odiar o mundo. O verdadeiro desespero ama o mundo! A condição do desespero é bela! “O homem que desespera encontrará o homem eterno e, neste, somos todos iguais” (Kierkegaard, 1971, p. 127). Elege, pois, o desespero – o desespero é uma eleição, pois se pode duvidar sem eleger a dúvida, mas não se pode desesperar sem eleger o desespero. E, ao desesperar, elege-se novamente. Que é o que se elege? Elege-se a si mesmo, não dentro da imediação, não como um indivíduo qualquer, mes [mas] elege-se a si mesmo em sua validade eterna (...). A dúvida é o desespero do espírito. O desespero é a duvida da personalidade (...). A dúvida e o desespero correspondem, pois, a esferas completamente diferentes, são diferentes estados de alma que são sacudidos (...). O desespero representa uma expressão muito mais profunda e muito mais completa do que a dúvida e seu movimento é muito mais amplo. O desespero é representativo de toda a personalidade, a dúvida só o é do espírito. A pretendida objetividade, da qual a dúvida é tão ciosa, é justamente uma expressão
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de sua debilidade. A dúvida descansa, pois, na diferença. O desespero, no absoluto. É necessário ter talento para duvidar, mas não para desesperar (...). Em suma, ninguém pode desesperar se não quiser. Para desesperar de verdade, deve-se querê-lo de verdade. Mas, quando a gente quer desesperar de verdade, então, verdadeiramente, ultrapassou-se o desespero. Quando, na verdade, se elegeu o desespero, então, verdadeiramente elegeu-se o que o desespero elege: o próprio eu, em sua validade eterna [sem grifo no original]. Não é senão no desespero que a personalidade pode tranqüilizar-se, não com a ajuda da necessidade, pois nunca se desespera por necessidade, mas com ajuda da liberdade [sem grifo no original] e não é senão na liberdade que se alcança o absoluto (...). (Idem, p. 128-129).
A eleição, por meio da qual o ser humano se escolhe a si mesmo, possibilita que o homem se realize por meio da liberdade. A eleição é a eleição da própria liberdade. O Indivíduo se faz, “se elege como uma concreção determinada de muitas maneiras e se elege, portanto, segundo a sua continuidade. Essa concreção é a realidade do indivíduo” (Kierkegaard, 1971, p. 130). Aliás, a eleição pode ser uma eleição estética: mas uma eleição estética não é eleição. Na verdade, o fato de eleger é uma expressão própria e rigorosa da ética. Por toda parte onde, num sentido mais estrito, trata-se de um “ou isto – ou aquilo”, pode-se sempre estar seguro de que certa maneira, a ética intervém. O único “ou isto – ou aquilo” absoluto de que existe é a eleição entre o bem e o mal e essa eleição também é absolutamente ética. A eleição estética é, de todo, imediata. Por esta razão, não é uma eleição, perde-se na diversidade. (Kierkegaard, 1971, p. 119).
Na visão kierkegaardiana, as escolhas são importantes para a vida do homem. Depois de uma vida estética, ele sente a necessidade de escolher seriamente, comprometer-se com a existência. O estilo a que irá aderir chama-se estádio da ironia, que é um interestádio. (Le Blanc, 2003, p. 59). A ironia carrega em seu âmago a possibilidade de uma mudança existencial. A ironia é a unidade da paixão ética, que acentua, infinitamente na interioridade o próprio eu, em relação à exigência ética – e de cultura, que exteriormente, faz abstração infinita do eu próprio como uma coisa finita a mais entre todas as coisas finitas e singulares. Esta abstração tem por efeito que ninguém observe o primeiro eu, é aí precisamente que reside a arte e é nisto que está condicionada a acentuação infinita deste eu. A maioria das pessoas vive de uma maneira inversa: esforçam-se por ser qualquer coisa quando qualquer um as contempla (...). A ironia é uma determinação da existência [sem grifo no original] (...), tem sua posse durante todo o dia, sem estar ligado a nenhuma forma porque ela é a infinitude presente nele. A ironia é a cultura do espírito e vem, pois, logo após o imediato (...). (Kierkegaard, 1971, p. 155).
Na verdade, a ironia é uma situação que está com um pé no estético e outro no ético (Gouvêa, 2006, p. 258). Ela não é coisa imediata, mas reflexão, uma vez que não decide, mas insiste nas contradições, apesar de descobrir que a “escolha é o fator mais poderoso de individualização de sua personalidade” (Blanc, 2003, p. 60). O representante máximo da ironia é Sócrates, o qual levou os seus discípulos a extrair a verdade do interior e viver uma vida ética. (Gouvêa, 2006, p. 257). Afinal, o homem precisa viver uma existência autêntica, não pode ficar estático: precisa se decidir!
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2.3.3 O Estádio Ético
Como já se afirmou acima, a esfera estética vive das diversas possibilidades da existência, não escolhe decisivamente. A fugacidade e os prazeres do mundo são os seus deuses. Mais cedo ou mais tarde, o ser humano cai no estado de desespero: é quando precisa unificar o seu eu. Para unificar, necessita se desesperar, eleger o desespero para saltar à estação ética57. A ética é o que faz com que o homem devenha o que devém. Não faz, portanto, do homem algo distinto de si mesmo, não aniquila o estético, senão o transfigura. Para que um homem possa viver eticamente é necessário que tome consciência de si mesmo tão profundamente que nenhuma contingência se lhe escape. A ética não borra essa concreção, mas vê nesta sua tarefa, vê a matéria com a qual deve formar e o que deve formar. (Kierkegaard, 1971, p. 131-132).
O estádio ético nada mais é do que aquilo que o ser humano faz por meio do dever e da fidelidade a si mesmo. Ele vive de forma comprometida, séria com a sua existência. A sua tarefa é construir sua personalidade (sua interioridade), levando em conta o fato de que está em sua natureza ser razoável e sociável [grifo do autor]. Assim, seus compromissos devem levar forçosamente o outro em conta. A ética traduz admiravelmente essa dupla natureza: leva em conta tanto a especificidade das consciências como propõe máximas gerais. (Blanc, 2003, p. 62).
O homem ético deve se preocupar tanto com o seu interior como com as normas da sociedade que lhe impõe. Ele deve identificar o geral que lhe é exigido e escolher livremente. Uma vez que a vida está permeada por muitos deveres, o ser humano deve ter o dever para consigo mesmo. O indivíduo verdadeiramente ético experimenta, portanto, tranqüilidade e segurança porque não tem o dever fora de si, mas em si mesmo [sem grifo no original]. Quanto mais profundamente um homem fundou sua vida sobre a ética, menos sentirá a necessidade de falar constantemente no dever, de se inquietar para saber se o cumpre. (Kierkegaard, 1971, p. 132).
Quando o ser humano experimenta o dever dentro de si mesmo, torna-se possível a ele conciliar a vida moral à vida interior. A vida moral nada mais é do que o indivíduo seguindo as regras e as normas da sociedade. Assim a ética realiza o geral. A ética é o geral, portanto, o abstrato. A ética em sua abstração completa aponta sempre interdições, fazendo, por conseguinte, o papel de lei. Enquanto ordena, já encerra nela algo de estético (...). É somente quando o indivíduo mesmo é o geral, que a ética deixa-se realizar. Este é o segredo que se encontra na consciência. Este é o segredo que a vida individual encerra em si mesma, isto é, que ela é ao mesmo tempo individual e, além disso geral (...). Aquele que considera a vida eticamente vê o geral e aquele que vive eticamente expressa o geral em sua vida. Faz dele o homem geral, não se despojando de sua concreção, pois então já não seria nada, mas revestindo-se dela e impregnando-a do geral. O homem geral não é um fantasma. Todo homem é o homem 57
A ética pressupõe o estádio estético e oferece a possibilidade de transformar o ser humano e redimi-lo para dentro do ético. A ética transcende a estética, mas não a abandona. (Gouvêa, 2006, p. 260). É interessante também notar que ética e moral em Kierkegaard têm o mesmo significado.
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geral, o que significa que o caminho pelo qual se torna homem geral está aberto a todo homem. Aquele que vive esteticamente é o homem acidental (...). Aquele que vive eticamente tem a si mesmo como tarefa. Seu eu, enquanto imediato, está determinado fortuitamente e a tarefa consiste em coordenar o fortuito com o geral (...). (Kierkegaard, 1971, p. 133).
Além de o homem realizar o geral, precisa também realizar a si mesmo. Para tanto deve refugiar-se em sua interioridade, pela qual reconhece valores morais e eternos sobre os quais é possível construir sua personalidade. Por sua própria vontade, ele escolhe livremente cada valor e cada ação. Neste caso, cada ato se torna expressão da sua liberdade, pois cada um foi, de modo livre, aceito como expressão da personalidade no que ela tem de eterno. Se o ser humano consegue conciliar a sua vontade com a vida social sob a forma de dever, então ele pode ser considerado como ético. (Blanc, 2003, p. 63). Neste estádio ético, o ser humano realiza obras e compreende o valor eterno da personalidade. Não realiza simples ofícios, mas engaja-se no dever do cotidiano. A expressão da ética na sociedade é o casamento. (Blanc, 2003, p. 64). O casamento é a norma social da vida pessoal e a expressão ética por excelência. Ele é fundamental para existência, uma vez que implica numa escolha que atinge todos os aspectos da vida do homem. O casamento também está na base civil e na interiorização de alguns valores estéticos. (Blanc, 2003, p. 63). Contudo, o princípio vital do casamento é a sinceridade, a franqueza, a manifestação, sem os quais o casamento se transforma em inestético e imoral, já que o amor que une e separa ao mesmo tempo o sensual e o espiritual58. (Kierkegaard, 1971, p. 103). O casamento contém dois momentos: o amor e a relação com Deus. Sem explorar a dimensão espiritual, o casamento não é ético, nem esteticamente belo. Acrescenta-se que o casamento pertence essencialmente ao cristianismo, mas não aos pagãos e aos judeus, porque o amor neles não traz o eterno momento. (Kierkegaard, 1971, p. 369). No que concerne à vida espiritual do homem ético, Kierkegaard afirma que a pessoa ética pode crer em Deus, mas a sua relação com ele é universal e aberta, e não particular e subjetiva. Tal relação é diferente da religiosa. Na ética, Deus é visto de modo abstrato, como o doador da lei moral ou dos fundamentos dos valores morais. É o próprio ser humano, mediante os seus esforços, estabelece uma relação com o divino. (Gouvêa, 2006, p. 261). Neste caso, o homem não necessita aparentemente da intervenção de Deus: ele se sente autoconfiável, autônomo e autosuficiente. Apesar dessa autoconfiança em si mesmo, o homem ético descobre que a existência e os erros estão presentes indissociavelmente na sua vida. E a subjetividade toma conhecimento disso, percebe que o ser humano falha. A subjetividade é responsável por si mesma, pelo outro e pela sociedade. Chega a 58
“O casal consagra a escolha recíproca de um pelo outro, lugar de uma busca de si mesmo na verdade face à alteridade à qual é mister articular-se em um amor não fusional, não confusional”. (Farago, 2006, p. 130).
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um momento em que ela fica carregada pela culpa59 e cansada do esforço de ser moral. Assim, ela se desespera, precisa dar um salto, suspender teleologicamente a ética. Mas, por enquanto, ela atinge o segundo confinium, o Humor, que é o confinium entre o ético e o religioso. (Gouvêa, 2006, p. 261).
2.3.4 O Humor
Johannes Climacus, na resenha dos Estádios do Caminho da Vida, diz que, embora o livro seja divido em três partes ou estádios, continua a ser um ou-ou, uma vez que o estádio ético e religioso tem uma relação essencial entre si. O estádio religioso precisa ter passado pela ética para existir eticamente e ético-religiosamente. Logo, a existência religiosa inclui tanto a existência ética como a estética, mas ela as transcende. (Gouvêa, 2006, p. 262). Mas a passagem do estádio ético para o religioso é complexa, porque o indivíduo, responsável pelos seus atos, se vê como um ser que erra, que tem culpa. O seu sofrimento aumenta ao perceber que não tem ninguém para ajudá-lo a construir a sua individualidade. Mais uma vez entra em cena a figura de Deus, que para Kierkegaard é o Absoluto que interpela a consciência do ser humano. Ser religioso significa, portanto, sofrer. É através do sofrimento que o homem faz a passagem da esfera ética para a religiosa. (Gouvêa, 2006, p. 263). Antes, porém, de fazer o salto para a vida religiosa, o ser humano passa por uma categoria intermediária chamada Humor60. Aí percebe que possui um eu eterno fundamento em Deus. Por não ser capaz de decidir e de abraçar o estádio religioso, o ser humano fica preso no arrependimento e na contemplação do religioso. (Gouvêa, 2006, p. 263). O humor seria uma forma de paralisia em face da própria culpa, um modo de lidar com o horror e a tremedeira. O “humorista” aprende a sorrir para a vida, acredita na possibilidade de sorrir diante do sofrimento, da culpa e da contradição, uma vez que acha impossível viver a vida de forma séria. (Gouvêa, 2006, p. 263). Ele toma consciência do seu nada, questiona tudo, ri de tudo, não há com o que se preocupar. O humor, na verdade, é uma “tomada de consciência do limite da condição humana, do encontro entre nossa finitude e a consciência (religiosa) de nossa eternidade” (Blanc, 2003, p. 68). É 59
O sentimento de culpa é o arrependimento em que o homem se apraz. “O arrependimento é o último momento do estádio ético. Quando o ético, na exploração de sua história pessoal, na descoberta de sua subjetividade, reconhecer a necessidade do arrependimento, o salto para o estádio religioso irá tornar-se possível” (Blanc, 2003, p. 67). 60 De acordo com Charles Le Blanc, o humor corresponde à existência do próprio Kierkegaard, visto que ele expressou a sua vida sob diversas maneiras. Com relação ao humor, é difícil precisar uma visão do conjunto. Ele parece como uma situação na qual o individuo une o determinado e o indeterminado e, também, conquista uma grande percepção da consciência da associação existência e erro. (2003, p. 67).
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também o incógnito do religioso. O ser humano que se vê preso ao interestádio do “humor” é consciente da sua desproporção em relação a Deus, que é infinito, e da fragilidade da razão, da insuficiência do geral para realizar os desejos do indivíduo. Toma inclusive consciência do paradoxo da vida religiosa, mas não a assume existencialmente. Acredita que todos serão salvos, permanecendo assim no infra-religioso, no trans-moral. Dada a sua complexidade, é muito difícil distinguir o religioso do humorista. O próprio Climacus faz parte, junto com Frater Taciturnus, da vida humorista.
2.3.5 O Estádio Religioso
Ao longo da existência, o ser humano vai se descobrindo: ele existe, escolhe, decide, age e interioriza a existência. Mas é só no estádio religioso que o eterno se realiza no tempo: é o momento da plenitude da encarnação (Farago, 2006, p. 126). “A Encarnação testemunha o aspecto pessoal e decisivo da Revelação” (Blanc, 2003, p. 66). Com isso, o indivíduo deixa de lado a vida presa aos prazeres e obrigações para fazer uma aliança entre o tempo e o eterno. O cristianismo é a expressão da presença do eterno se realizando no tempo. Por causa disso, a religião cristã faz pesar sobre o eleito a tomada de consciência do pecado. A proposta do cristianismo vai muito além do prazer e da lenta felicidade do dia-a-dia, superando a religião estética (prisioneira das aparências e dos impulsos sentimentais) e a religião moral (escrava do mandamento, da obrigação). (Farago, 2006, p. 126). Essa tomada de consciência do pecado se dá por meio da reviravolta na vida interior e na relação singular entre o Individuo e o Absoluto. O homem como um ser fraco e imperfeito, aspira em seu coração o perfeito e procura se elevar até ele. O pecado é o erro moral e absoluto cometido contra o Absoluto, é uma ruptura com a imanência e insiste na transcendência absoluta do Absoluto. (Blanc, 2003, p. 69). O pecado também é um princípio de individuação que impossibilita ao ser humano realizar o geral. Através do pecado, o indivíduo conquista a sua interiorização, realizando a sua exceção e passando a viver de acordo com uma relação singular com Deus. Nesse processo existencial, o homem não deixa de lado os preceitos morais, mas estes não representam tudo para ele, uma vez que o essencial para o homem religioso é a relação absoluta com o Absoluto, que é alheio a tudo o que é mundano e também à experiência humana e às regras (morais ou legais) que a limitam. (Blanc, 2003, p. 70). O pecado é também uma manifestação da vida interior: coloca em questão o eu, o eu de cada homem, sozinho, individualmente, na solidão subjetiva. Cada ser humano carrega em si o segredo, o inexprimível, o misterioso, que importa mais para si do que todos os
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discursos e mediações filosóficas abstratas e que encontram solução somente no papel. Desse modo, “se (...), a interioridade é superior à exterioridade, a consciência é superior ao próprio erro, o Indivíduo só entrar em conflito com o mundo, como comprova a história de Abraão, o pai da fé” (Blanc, 2003, p. 71). O conflito do mundo se deu também com Kierkegaard61. Ele assumiu uma tarefa profética de protesto contra um mundo privado dessa verdade. Para ele, a verdade é a interioridade ou a subjetividade. Enquanto o mundo preocupa-se com os negócios, com a produção e com o consumo, se esquece de Deus e abole os Shabbats. (Farago, 2006, p. 127). A religiosidade perde assim o seu sentido existencial. Percebendo a complexidade do estádio religioso, Kierkegaard, na obra Post-Scriptum, divide a religiosidade em duas: A e B (Gouvêa, 2006, p. 265). A religiosidade A é a religiosidade do esteta, do ironista, do eticista, e do humorista, que ainda não chegaram a uma verdadeira compreensão do que significa ser religioso, isto é, do que significa ser cristão. A religiosidade A é, portanto, uma pseudo-religiosidade (...). Pressupõe uma consciência do aspecto eterno do eu [grifo do autor], mas ela encontra a fonte da religião no próprio indivíduo e apóia-se apenas no conhecimento de Deus que está presente ou é imanente à consciência humana (Gouvêa, 2006, p. 265).
Falta para a pseudo-religiosidade a revelação especial. Ela quer chegar a Deus por seus próprios esforços. Há uma percepção de Deus e um reconhecimento da importância da relação com ele. Porém, na religiosidade A o homem não se resigna, não morre para o mundo, não desiste do finito em favor do infinito. Esse tipo de religiosidade está presente em todas as religiões. Ela também está presente em Johannes de Silentio, em Temor e Tremor, pois ele acha impossível manter ao mesmo tempo uma relação absoluta com o Absoluto e uma relação relativa com a realidade cósmica. (Gouvêa, 2006, p. 266). Já a religiosidade B é fundamentalmente transcendente e o seu centro é Jesus Cristo, pela qual o conhecimento de Deus chega ao ser humano. Este é o cristianismo do Novo Testamento: o indivíduo alcança uma relação profunda com o eterno no tempo. Isso fica claro com a encarnação: 61
“Numa época de chacotas e de caretas (...), o autor religioso deve, pela honra de Deus, mais do que qualquer outro,ser objeto de zombarias. Se o mal procede da plebe, o autor religioso contemporâneo deve procurar ser o objeto de sua perseguição e, neste aspecto, encontra-se em primeiro lugar. E minha inteira concepção da multidão que mesmo os espíritos mais avisados talvez em seu tempo, julgaram um tanto exagerada, agora em 1848 graças aos movimentos desordenados da vida (e, em sua potência aumentada, eles são semelhantes ao furor dos elementos quando comparados à voz fraca do indivíduo), eis que seria talvez mais fundamentado objetar-me que não exagerei bastante. E esta categoria do ‘indivíduo’, tida como a bizarra descoberta de um indivíduo bizarro, o que é de resto, pois quem num certo sentido a encontro, Sócrates, foi chamado em seu tempo de atopotatos (...). Se a multidão é o mal e o caos o que nos ameaça, não há salvação senão uma coisa: tornar-se indivíduo e não há pensamento salvador senão do indivíduo (...). Os acontecimentos mundiais, que tudo subverteram no curso desses últimos meses, revelaram confusos anunciadores de pensamentos novos, aventureiros e naturalmente confusos. E, ao contrário, reduziram ao silêncio ou ao embaraço todos aqueles que, até o presente, elevaram a voz num sentido ou noutro e os obrigaram a vestir uma roupa nova em folha. Todo sistema explodiu”. (Kierkegaard, 1971, p. 68).
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Deus, o eterno, se fez presente no tempo na pessoa de Jesus Cristo. Eis o paradoxo! Para tratar dos paradoxos da religiosidade B, Kierkegaard usa a categoria fé, a qual será aprofundada no próximo tópico. (Gouvêa, 2006, p. 268). Para chegar à vida religiosa autêntica, o ser humano precisou dar um “salto”. O salto é sempre contingente: é uma possibilidade que se torna real se o indivíduo fizer o movimento existencialmente e holisticamente. Só que o salto para a religiosidade B se dá pela fé, com ajuda de Deus. Para Kierkegaard, fé e razão não são aliadas, pois a fé é uma nova paixão que abraça a reintegração da personalidade, é como um presente divino que torna tudo novo. A razão, por sua vez, é uma faculdade lógica abstrata, é como o senso comum sistematizado da personalidade em sua autoconfiança e auto-firmação fundamentais. (Gouvêa, 2006, p. 268). A diferença entre a religiosidade A e B é a seguinte: a religiosidade A pressupõe uma continuidade entre divindade e humanidade: cada ser humano é uma fagulha do fogo divino, uma bolha de espuma divina, uma célula no organismo divino. As premissas da religiosidade B são de que há uma infinita diferença qualitativa entre Deus e os seres humanos, e que Deus entrou para a humanidade e incorporou a condição humana num ponto espaço-temporal determinado; e apenas neste ponto determinado ele constituiu a possibilidade de um relacionamento com cada ser humano. No tempo não pode haver relacionamento positivo e imediato com o Deus transcendente, mas apenas uma relação indireta, paradoxal através da fé em Cristo (...). (Gouvêa, 2006, p. 268-269).
2.4 O PARADOXO DA VIDA CRISTÃ
A vida do ser humano não é marcada somente por uma vida tranqüila e serena, mas exige uma vida que pede escolhas. O ser humano precisa tomar decisões, fazer escolhas. Ele necessita se eleger a si mesmo. Se ele deixar a sua decisão para que o outro o tome no seu lugar, estará perdendo o seu maior valor, a sua personalidade, o seu eu. Por isso, ele deve ser responsável pela sua existência. Tal responsabilidade implica em escolhas, escolhas essas que propiciam estilos de vida. Para Kierkegaard, há diversos estádios de vida (estético, ético e religioso), mas só um deles ajuda o homem a encontrar o sentido para a sua vida. Todos os estádios são necessários, mas só o religioso é possível. Só ele dá um significado existencial peculiar ao homem. Cabe a cada pessoa crer e ter fé. A fé pertence à subjetividade do homem. Ela não é irracional, mas põe limites à razão. A fé é um paradoxo! Não se pode compreendê-la, mas apenas vivê-la. Esse foi o grande erro que Kierkegaard constatou no século XIX. O mundo procurou explicar, coisificar, objetificar tudo o que existe, como se o homem, que é complexo, pudesse ser explicado e mensurado. Na verdade, o que ocorre é a massificação do ser humano: o indivíduo se perde na multidão. Portanto, é urgente que o
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homem se conheça, creia e siga os ensinamentos de Cristo. É um modo de vida paradoxal. O cristianismo nada mais é do que paradoxo.
2.4.1 A Fé e a Subjetividade
Em cada estádio da vida, o ser humano se encontra numa situação diferente. Isso não significa uma ruptura, mas uma continuidade. O novo do estádio religioso é a fé. Sem ela não existe o homem religioso. É a fé que fundamenta a vida religiosa. Mas essa fé é uma fé cristã que, por sua vez, constitui o verdadeiro cristianismo. Ela não é uma realidade psicológica ou antropológica préreligiosa ou pré-confessional, mas sempre um posicionamento em relação ao Criador. (Gouvêa, 2006, p. 147). “A fé em sentido preciso relaciona-se ao Deus-Homem que, sinal de contradição, nega a comunicação direta e exige fé” (Kierkegaard, 1971, p. 310). Na visão do filósofo dinamarquês, a melhor definição de fé é aquela que o Novo Testamento apresenta como plerophoria-ypakoe-pistis. A fé é um relacionamento com o Deus triúno, na compreensão (notitia) e firme convicção (plerophoria), confiança (fidúcia; pistis), e consenso ou aquiescência (assensus) que se exprime pela obediência (ypakoe), à luz dos eventos e através dos eventos históricos que ocorreram na vida de Jesus Cristo. (2006, p. 149).
A fé coloca o ser humano em direção ao Cristo e em Cristo. Quem crê vive de Cristo, do saber de Cristo e do querer Cristo. A fé é trinitária, porque se crê em Deus que é Pai, Filho e Espírito Santo. São três pessoas da Santíssima Trindade, mas só um Deus. Além disso, a fé é uma ação habitual ou caráter. Um modo de vida, uma ação contínua no mundo, um modo de ser-no-mundo. (Gouvêa, 2006, p. 149). A fé envolve toda a pessoa. Envolve a confiante afirmação da pessoa toda, não apenas da mente. A confiança absoluta implícita na idéia de fé vai muito além de critérios racionais. Fé requer apegar-se àquilo que não pode ser atingido pela percepção dos sentidos ou pela lógica sozinha, indutivamente ou dedutivamente. Fé é a alegre e consensual afirmação da mente, coração e vontade à verdade do que não é visto empiricamente: a autorevelação de Deus. Fé é visão espiritual (...). A Fé é um querer radical, distintivo, que é existencialmente abrangente e pancrônico (...). A fé é dom de Deus precisamente enquanto é desejada pela vontade humana (...). A fé é antes de tudo, a recepção da graça62 (...). (Gouvêa, 2006, p. 150-151).
Com efeito, a fé relaciona-se com o individuo: ela é uma decisão voluntária do homem. Mas o que leva o ser humano a ter fé? Ou melhor: o que é o homem? 62
“A fé não justifica em si e por si [grifo do autor]. A eficácia salvadora não está na resposta – não no próprio ato da fé isoladamente - mas naquele a quem a fé responde (...). Não é nossa fé que é aceita por Deus, mas a obra de Cristo. É a fé que se torna possível pela graça, e não a graça pela fé. A fé realmente a única condição da salvação no sentido de que nenhum mérito é necessário. No entanto, a fé apenas justifica, a fé nunca está sozinha mas acompanhada pelo fruto do Espírito e a conseqüente vida de virtude cristã (...)”. (Gouvêa, 2006, p. 157).
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O homem é aquilo que se torna: ele se faz, se elege e existe. Ele é responsável pela sua existência, vive interessado infinitamente por existir. (Kierkegaard, 1971, p. 231). O ser humano não pode inferir a sua existência pelo pensamento63, caso contrário suprimiria a sua existência. O existir é o seu supremo interesse, e o interesse da existência é a realidade. “A única realidade, da qual um ser existente não se limita a ter um conhecimento abstrato, é a sua própria realidade: que ele existe. Esta realidade (ou sua realidade ética) constitui o interesse absoluto de um homem”. (Kierkegaard, 1971, p. 383). Além de o homem existir, a sua vida só alcança significado quando ele se conhece a si mesmo, quando reflete sobre a sua interioridade. O existir só é possível quando o homem decide, escolhe. A sua existência consiste na subjetividade64. Consequentemente, “a verdade é a subjetividade” 65 (Kierkegaard, 1971, p. 236). Mas isso não significa alguma ou qualquer manifestação de atividade pessoal, menos ainda qualquer apoteose de capricho e excentricidade, o cultivo de plantas de estufa de pensamento ou sentimento. Seu ideal não é a personalidade artística, o culto da particulariedade a todo custo. Subjetividade em Kierkegaard, portanto, não significa acreditar no que se queira, fazer apenas o que nos agrada, negar as compulsões da verdade universal (...). Note que isto é apenas uma perna da dialética da verdade de 63
“Pensar logicamente a existência significa fazer abstração da dificuldade que há em pensar o eterno no devir, a que se está obrigado, pois aquele que pensa está ao mesmo tempo no devir. Pensar abstratamente é mais fácil que existir, se isto não significa aquilo que se chama existir (...). Mas pensar abstratamente: eis aqui algo! Mas existir em verdade e penetrar sua existência por sua consciência, ao mesmo tempo quase eternamente, muito além dela e, não obstante, presente ela e, não obstante, no devir: é verdadeiramente difícil. Se pensar não tivesse se tornado, em nossos dias, algo bizarro e sabido, os pensadores daria uma impressão inteiramente diferente aos homens, como sucedia na Grécia, onde um pensador era ao mesmo tempo um ser existente entusiasta, apaixonado pelo seu pensamento, como sucedeu outrora na cristandade, onde um pensador era um crente que procurava apaixonadamente compreender-se a si mesmo na existência da fé. Se em nossa época os pensadores procedessem desta maneira, o pensamento puro teria conduzido de um suicídio a outro, pois o suicídio é a única conseqüência existencial do pensamento puro, se este não deve comportar-se parcialmente em relação ao ser humano, inclinado a realizar um acordo com uma forma ética e religiosa de existência pessoal, mas se apropria de tudo, inclusive do bem supremo. Não fazemos o elogio do suicídio, mas da paixão. Em nossos dias, ao contrário, um pensador é um curioso animal que a certas horas do dia exibe um raro espírito de engenhosidade, não tendo aliás nada em comum com um ser humano. Pensar a existência abstratamente e sub specie aeterni significa suprimi-la essencialmente”. (Kierkegaard, 1971, p. 226-227). 64 Kierkegaard contrapõe a existência objetiva à subjetiva. A verdadeira existência é a subjetividade. “Desde que se elimine a subjetividade e da subjetividade a paixão e da paixão o interesse infinito não existe absolutamente decisão, nem neste problema nem em qualquer outro. Toda decisão, toda decisão essencial, reside na subjetividade. Um observador (isto é a subjetividade objetiva) não experimenta acerca de nenhum ponto uma necessidade infinita de decisão e não a vê acerca de nenhum ponto. Esta é a mentira da objetividade e a significação da mediação como estádio no processo que se persegue, no qual permanece e no qual nada de infinito é decidido, porque o movimento não cessa de voltar sobre ele mesmo e que o movimento é ele mesmo uma quimera e que a especulação faz sempre prova de sabedoria fora do tempo. Do ponto de vista objetivo, há entretanto muitos resultados, mas em nenhuma parte um resultado decisivo, o que ademais está certo, porque a decisão reside na subjetividade, essencialmente na paixão, maxim [sic] e na paixão pessoal que sente um interesse infinito por sua beatitude eterna”. (Kierkegaard, 1971, p. 213). 65 “Quando se interroga objetivamente sobre a verdade, reflete-se objetivamente sobre a verdade como sobre um objeto ao qual o sujeito que conhece se relaciona. Não se reflete sobre a relação, mas sobre o fato que é a verdade, o verdadeiro, a que a gente se relaciona. Quando isto a que a gente se relaciona é a verdade, o verdadeiro, então o sujeito encontra-se na verdade. Quando se procura a verdade de maneira subjetiva, reflete-se subjetivamente sobre a relação do indivíduo. Se apenas o como desta relação está na verdade, então o indivíduo acha-se na verdade, mesmo quando se relaciona com o não-verdadeiro”. (Kierkegaard, 1971, p. 236).
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Johannes Climas no Post-Scriptum (...) e com isso ele quis dizer que a verdade deve ser experimentada interiormente, ou apropriada se é que ela é, de fato, verdade para mim (...). (Gouvêa, 2006, p. 153).
Desse modo, a apropriação da verdade é uma apropriação existencial. Ela se dá por uma relação existencial com o objeto da fé. É por isto que a “verdade subjetiva” de Kierkegaard é o mesmo que “verdade existencial”. Se uma verdade ética ou religiosa é realmente verdadeira para mim, ela deve ter um efeito em minha vida, pois, de outra forma, eu viveria na inverdade, ainda que eu a declarasse objetivamente verdadeira (...). Ainda que Kierkegaard visse claramente que “uma estrutura objetiva é indispensável para a afirmação da fé cristã”, ele atacou a falsificação do cristianismo por “uma era burguesa reificante que o transforma numa doutrina ...” gerando um cristianismo que não tem conseqüência na vida da pessoa que alegadamente crê (...). (Gouvêa, 2006, p. 154-155).
Segundo Kierkegaard, a fé é tanto subjetiva como “objetiva”. Além da subjetividade, a fé implica a incerteza objetiva que está inapelavelmente implícita na noção de confiança (base para o conceito de fé): Sem risco não há fé. A fé é a contradição entre a paixão infinita da interioridade e a incerteza objetiva. Se posso captar a Deus objetivamente, eu não creio e se quero conservar a fé, devo ter sempre presente no espírito que mantenho a incerteza objetiva, que estou na incerteza objetiva “sobre uma profundidade de setenta mil pés de água” e que, não obstante, eu creio. (Kierkegaard, 1971, p. 239).
A fé gera, portanto, um cristianismo que é “comunicação de existência” 66 (Gouvêa, 2006, p. 156). Ela é uma decisão apaixonada do ser humano por relacionar-se com Deus e é estimulada pela finitude do homem e pela sua condição de pecador. Assim, o homem “deve estar na verdade, viver na verdade” [sem grifo no original] (Gouvêa, 2006, p. 156).
2.4.2 A Fé como Paradoxo
Além de a fé estar ligada ao sujeito, ela é um paradoxo. Essa idéia de paradoxo é de fundamental importância no pensamento de Kierkegaard. Em Migalhas Filosóficas, Climacus diz que o pensador sem o paradoxo é como um medíocre amante que não tem paixão. (Gouvêa, 2006, p. 168). Para ele o paradoxo é a essência da religiosidade B, identificada com o cristianismo paradoxal: “o Cristianismo declarou-se como sendo a verdade eterna, essencial, surgida no tempo. Declarou-se como sendo o paradoxo, exigindo a interioridade da fé, que é um escândalo para os judeus e uma loucura para os gregos” [sem grifo no original] (Kierkegaard, 1971, p. 244). O paradoxo é importante para transmitir as mais profundas verdades cristãs. Ele é uma ferramenta por meio do qual o eu ético-religioso choca-se com uma tendência natural de ter uma 66
Ou como ele afirma que o cristianismo é “uma mensagem existencial”. (Kierkegaard, 1971, p. 234).
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idéia maior de si do que deveria. Se o eu perpetuar a ilusão de que sua posição no tempo é apenas uma ocasião para especulação, ele continuará ignorante de seu pecado. (Gouvêa, 2006, p. 169-170). O próprio ensinamento de Jesus Cristo é paradoxal, uma vez que seguir Cristo é seguir um modelo de vida radical, um modelo verdadeiro do cristianismo. (Gouvêa, 2006, p. 170). Mas afinal qual a origem do paradoxo? “O paradoxo resulta da relação e da absoluta incomensurabilidade entre a verdade eterna e a existência humana” (Farago, 2006, p. 165-166). O paradoxo é “o limite das relações que um existente mantém com uma verdade eterna essencial” (...). Não existe paradoxo em si, mas só para o nosso entendimento finito. Em face do incompreensível, do que está acima do saber e do entendimento humano, o “paradoxo não é uma concessão, mas uma categoria, uma determinação ontológico que exprime a relação de um espírito exigente, cognoscente, com a verdade eterna” (...). (Farago, 2006, p. 166).
Mas a ciência não pode compreendê-lo e não reconhece essa possibilidade. Assim, a razão tem que perceber os seus limites, não pode dissolver em nosense ou querer mostrar que o paradoxo e o absurdo são um nosense, pois os mesmos são signos, enigmas estruturados sobre os quais a razão deve dizer: “não posso resolvê-lo, não é compreensível, mas daí não se infere que seja nosense”. (Farago, 2006, p. 167). Segundo Kierkegaard, o paradoxo e o absurdo67 pertencem ao que é essencialmente cristão. É difícil tornar-se cristão já que o existir cristão é paradoxal (Gouvêa, 2006, p. 172). Esses conceitos ou expressões68 designam: os contrários qualitativos existenciais que devem formar uma síntese no homem, ou já se acham unidos, como em Cristo. O absurdo consiste no fato de que em Cristo o existencial e o eterno se achem unidos na humilde figura de um homem e que a eternidade, que a razão helênica afirmava totalmente heterogênea ao tempo, venha inscrever-se no tempo. Há em Kierkegaard uma razão paradoxal e patética que tem precedência sobre a outra, pois é capaz de apreender melhor o que a vida tem de irredutível à representação. (Farago, 2006, p. 167).
Irredutível a representação, a fé não pode ser representada, tem que ser vivida, experimentada interiormente pelo sujeito. O indivíduo está submetido às exigências eternas cujo 67
“O absurdo é uma categoria que indica ‘o critério negativo daquilo que é superior ao entendimento e ao saber humano”. (Farago, 2006, p. 168). O pensador de Copenhague a qualifica “tudo o que foi além da possibilidade da compreensão racional humana, tudo o que não pode ser explicado racionalmente, isto é, explicado de uma forma que seria suficiente para convencer os que insistem na supremacia e autonomia da racionalidade humana”. (Gouvêa, 2006, p. 188). Essa categoria e o paradoxo está ligada à competência da fé. A Fé não está contra a razão, mas acima dela. É necessário a razão reconhecer os seus limites. Mas assim a fé não é irracional, ela é um paradoxo, ou seja, não pode ser compreendida pelos ditames da razão. (Gouvêa, 2006, p. 177). Portanto, a teologia de Kierkegaard é uma “Teologia do Absurdo” que se baseia numa avaliação positiva da fé. (Gouvêa, 2006, p. 186-189). 68 Kierkegaard “mede um material semântico hebraico usando parâmetros da racionalidade grega”. Com efeito, a antropologia bíblica não faz sempre referência à razão, mas ao espírito que é totalmente estranho à razão grega. Kierkegaard “conserva o referencial léxico helênico contra o qual vem se quebrar o pensamento de origem semítica” e resolve essa tensão entre os dois que é levada ao extremo. (Farago, 2006, p. 167).
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telos se situa no infinito. Os exemplos de Sócrates69, de Jó70, de Abraão, Maria Mãe de Jesus71 e do cristão são apresentados por Kierkegaard como uma gama sucessiva de contrários existenciais pertencentes ao campo do paradoxo. (Farago, 2006, p. 168). Jesus Cristo, num plano qualitativamente novo, é do ponto de vista lógico e filosófico o paradoxo absoluto, que é a noção contraditória do Deus-Homem, visto que existe uma diferença qualitativa absoluta entre o divino e o humano: Deus e o homem são duas qualidades, entre as quais há uma diferença qualitativa infinita. Toda doutrina que não queira levar isso em conta é para o homem uma loucura e para Deus uma blasfêmia. No paganismo, o homem faz de Deus um homem (Homem-Deus). No cristianismo, Deus se faz homem (Deus-Homem) (...). Pode rebaixar-se até tomar a aparência de um servo, suportar um suplício e a morte, convidar a todos para irem ter com ele, sacrificar sua vida – mas o escândalo, não, não pode suprimir sua possibilidade (...). Esta diferença infinita de qualidade entre Deus e o homem é a possibilidade do escândalo, que ninguém pode afastar. Deus se faz homem 69
Sócrates não viveu no paradoxo propriamente dito. O paradoxo em Sócrates é usado porque ele foi irônico. Ele foi considerado por Kierkegaard como o herói trágico intelectual, oposto do herói trágico vulgar para o qual a palavra é desnecessária, visto que ele só consegue tornar-se imortal. Já para o herói trágico intelectual a palavra é útil. (Paula, 2001, p. 126-127). “Tomemos Sócrates como exemplo. É um herói trágico intelectual. A condenação à morte é-lhe anunciada. Neste instante, morrer; porque se não compreendemos que é necessária toda força do espírito para morrer e que o herói trágico morre sempre antes de morrer, não se irá muito longe da concepção de vida. O repouso em si é solicitado por Sócrates como herói; mas, como herói trágico intelectual, ainda lhe é exigido que, no último momento, tenha a força de alma de se realizar por si próprio. Não pode, portanto, como o herói vulgar, recolherse, permanecendo frente à morte, mas deve efetuar esse movimento com tanta rapidez que, no mesmo instante, se encontre com a consciência para além dessa luta e se afirme ele mesmo. Se, por acaso, Sócrates se tivesse calado nessa crise de morte, haveria atenuado o efeito da sua vida; faria suspeitar que a elasticidade da ironia não era nele uma força do universo mas um jogo a cuja flexibilidade lhe era mister recorrer no instante decisivo, na medida inversa para se manter pateticamente à sua própria altura”. (Kierkegaard, 1988, p. 181). 70 Jó é o exemplo do homem religioso que adere à fé. Escolhe a fé. Ele foi um homem rico, satisfeito, justo, mas foi posto à prova de Deus. Ele perdeu tudo, família, os rebanhos, a sua saúde e etc. Mas continuou fiel a Deus. Crê em Deus. E Deus concede tranqüilidade de novo a sua vida. (Blanc, 2003, p. 75). Cf. KIERKEGAARD, Soren A. Job e a repetição. In: _____. Texto Selecionados. Trad. e org. por Ernani Reichmann. Curitiba: UFPR, 1971. p. 177-182. 71 Maria foi uma mulher que viveu o paradoxo da fé. “Quem neste mundo foi grande como aquela mulher abençoada, a mãe de Deus, a Virgem Maria? E, no entanto, como se fala dela? Sua grandeza não vem do fato de que foi abençoada entre as mulheres e se uma estranha coincidência não quisesse que a assembléia pensasse com a inumanidade do pregador, toda jovem deveria seguramente perguntar-se: ‘Por que também não fui abençoada entre todas?’ Se não tivesse outra resposta, não acreditaria mesmo assim ter de rejeitar esta pergunta, como tolice, pois em presença de um favor, considerado abstratamente, toda pessoa tem os mesmo direitos. Esquece-se a aflição, a angústia, o paradoxo. Meu pensamento é puro como o de qualquer outro. E o pensamento se purifica exercendo-se sobre as coisas e se não se enobrece, pode-se atingir o horror, pois se a gente certa vez evocou essas imagens, já não pode mais esquecê-las (...). Maria, sem dúvida, pôs a criança no mundo por um milagre, mas isto se passou com ela segundo o costume das mulheres e este tempo é aquele da angústia, da aflição e do paradoxo. O anjo, sem dúvida, foi um espírito protetor, mas não compadecente, que fosse dizer a todas as outra virgens de Israel: ‘Não desprezeis Maria, aconteceu-lhe o extraordinário’. Ele aproximou-se apenas de Maria e ninguém pôde compreendê-lo. Que mulher, no entanto, foi entendida como ela e não é verdade também que aquele que Deus abençoa, com o mesmo sopro de seu espírito ele amaldiçoa? É assim que se deve compreender espiritualmente Maria. Ela não é, revolta-me dizê-lo e mais ainda pensar no desatino e na maldade desta concepção, ela não é, de maneira alguma, uma senhora que brinca, sentada em seu luxo, com um menino-deus. Malgrado isto, quando ela diz: ‘Sou a serva do Senhor’, ela é grande e imagino que não deve ser difícil explicar porque tornou-se a mãe de Deus. Não tem necessidade da admiração do mundo, como Abraão não a tem de lágrimas, pois não foi uma heroína e ele um herói e não se tornaram absolutamente maiores que os heróis fugindo à aflição, ao tormento e ao paradoxo: tornaram-se grandes por estas atribulações”. (Kierkegaard, 1971, p. 176).
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por amor e diz: “Vê o que é ser homem” – mas acrescenta – “tem cuidado, pois ao mesmo tempo sou Deus – e bem aventurados aquele que não se escandalizarem de mim”. (Kierkegaard, 1971, p. 294-295).
Se ele é Deus, o Verbo da Vida, cabe ao ser humano depositar a sua confiança nele, depositar fé nele e segui-lo. Soren diz que Cristo é um sinal: “um sinal é a negação da imediação ou o ser segundo, diverso do ser primeiro” (Kierkegaard, 1971, p. 300). Ora, na Escritura o DeusHomem é chamado de sinal de contradição72. “Ele é a figura escatológica, a plenitude da realização que ‘julga’ o mundo (...). Ele é a instância normativa reguladora do devir homens, ‘critério’ da sua ‘crise’” (Farago, 2006, p. 170). O ser humano precisa crer, ter fé nele. “A fé não é o instinto imediato [grifo autor] do coração, mas o paradoxo da vida”. O movimento da fé obedece ao principio da individualização pessoal que consiste em se fazer o hóspede na imanência da própria transcendência. O Homem-Deus, simultaneamente filho do homem e Filho de Deus, é o paradoxo absoluto, o paradoxo de Deus que se faz carne, do eterno que assume o corpo no temporal para o elevar de si. Ecce Homo [Eis o Homem!]. Em A Escola do Cristianismo e Julgai vós mesmos, ele apresenta o Cristo como o modelo que realizou de maneira incondicional a exigência incondicionada. (Farago, 2006, p. 170).
A encarnação do Homem Deus é um paradoxo. Quem tem fé, abraça esse paradoxo. É uma fé em virtude do absurdo: uma fé que não pode ser derrotada pela paradoxalidade. Ela traz em si a força do absurdo, possibilitando ao crente encarar o paradoxo. (Gouvêa, 2006, p. 200).
2.4.3 Abraão: O Cavalheiro da Fé
A história de Abraão é tratada na obra Temor e Tremor, datada de 16 de outubro de 1843. O livro foi escrito por Johannes de Silentio73, que é um homem de idade avançada que reflete sobre a filosofia do seu tempo. Johannes foi iludido pela filosofia. As histórias bíblicas, especialmente a de Abraão, o levaram a compreender a profundidade da fé. Porém, ele se sente incapaz de ser um
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“O Deus-Homem é um sinal de contradição e por quê? Porque, dizem as Escrituras, ele tinha de revelar os pensamentos dos corações. Assim, tudo o que diz o pensamento moderno sobre a unidade inteiramente especulativa entre Deus e o Homem, tudo o que vê no cristianismo unicamente uma doutrina terá, porventura, a mais longínqua semelhança com o cristianismo específico? Não, no pensamento moderno tudo tornou-se tão adequado como o anel no dedo, enquanto que o caráter cristão específico é o sinal de contradição, que revela os pensamentos dos corações. O Deus-Homem é um homem particular – e não uma unidade fantástica que jamais existiu a não ser sub specie aeterni [sem grifo no original] e é tudo menos um doutrinador ensinando diretamente recitadores ou ditando parágrafos. Ele faz exatamente o contrário. Revela os pensamentos dos corações. É tão cômodo ser mero ouvinte ou escrevente quando tudo se passa de uma maneira tão cômoda: os senhores ouvintes e os escreventes tenham muito cuidado – são os pensamentos de seus corações que deverão ser revelados”. (Kierkegaard, 1971, p. 301). 73 Como diz o próprio nome (silêncio), Johannes, diante do paradoxo da fé, não tem outra atitude senão a fé, como Abraão fez diante dos seus parentes após o sacrifício. Nessa obra, Johannes observa a fé, as suas paixões (agonias) e critica a posição da filosofia sistemática. (Paula, 2001, p. 99).
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homem de fé como Abraão. Na verdade, ele se encontra no estágio ético-religioso ou religioso A. (Gouvêa, 2006, p. 311). Johannes vai trabalhar o paradoxo da fé, utilizando o sacrifício de Isaac preparado por Abraão74 (Gênesis, 22). Essa passagem vai ser utilizada para fazer três perguntas filosóficoteológicas importantes (Gouvêa, 2006, p. 280): a)
Pode haver uma suspensão teológica da ética?
b)
Pode haver um dever absoluto para com Deus?
c)
É defensável a atitude de Abraão de esconder suas intenções de Sara, de Eliezer e de Isaac?
Esses problemas são precedidos por vários prelúdios de natureza variada, entre os quais há as “Expectorações Preliminares” que tratam do objetivo do livro: De falar sobre a relação entre a fé a razão, e de apresentar Abraão como o “cavalheiro da fé”, modelo maior da vida de fé em virtude do “absurdo” do (paradoxo), e explicar, em oposição ao hegelianismo, por que a fé não é o inferior à razão, mas sim um dom superior e espetacular, um longo e duro aprendizado, uma paixão feliz, uma divina loucura, e um complexo “movimento duplo” do espírito humano. (Gouvêa, 2006, p. 280).
O cerne da obra é o choque entre viver uma vida ética e uma vida religiosa. Abraão é posto diante de um dilema: se ele obedecer à ordem de Deus, acabará com a sua descendência, já que Isaac era seu único filho e a velhice impedia que Abraão gerasse outro filho. Mas se Abraão desobedecer à ordem, não seria mais digno de ser pai de uma nação, tornar-se-ia um traidor. É uma situação complicada, difícil de imaginar. (Paula, 2001, p. 100). Abraão adere à fé, acredita na bênção de Deus. Crê em Deus. Para ele as coisas do mundo passam irrelevantes. Isso não quer dizer que ele seja um fideísta ou irracionalista, mas um homem que procura seguir os mandamentos de Deus. Entrar em contato com Deus significa alcançar um sentido para vida. Mas a bênção de Deus transforma-se em maldição. Abraão é posto à prova. Ou ele crê em Deus ou não crê. Contudo, ele se dispõe totalmente a Deus. Decide seguir a ordem divina. (Paula, 2001, p. 106-107). Segundo Kierkegaard, tal história de Abraão é a história de esforço e de labor. Pode-se vêla em duas perspectivas: pela ética e pela religião. Segundo a ética, Abraão quer matar (e por isso é assassino); já para a religião ele faz um sacrifício (e por isso é um homem de fé). A angústia reside exatamente aí, isto é, em ver, pela perspectiva religiosa, que o que faz Abraão é um sacrifício. Além disso, a fé torna esse ato ainda mais difícil. Com efeito, o sacrifício de Abraão não é apenas um mero sacrifício. Para nosso autor, falar de 74
Para aprofundar sobre Abraão: Cf. PAULA, Marcio G. Um Intróito à Polêmica de Temor e Tremor. In: _____. Socratismo e cristianismo em Kierkegaard: o escândalo e a loucura. São Paulo: Annablume (Fapesp), 2001. p. 97-135.
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Abraão implica necessariamente uma atitude de coragem, visto que não é possível aos fracos imitá-lo. Ele ironiza a filosofia sistemática (hegeliana) que se achava tão difícil e profunda [grifo do autor], afirmando que difícil mesmo é seguir o caminho de Abraão. (Paula, 2001, 107-108).
Abraão, por ser eleito de Deus e ter fé, não necessita de mediações ou interferências do coletivo. Ele supera o estágio da ética75, suspende teleologicamente a ética76. Ele é o cavalheiro da fé, diferente do herói trágico77 que até pode ter coragem, mas sua legitimação sempre depende do geral e se volta para este (exprimindo-se através dele). (Paula, 2001, p. 107-112). A fé de Abraão é um paradoxo, encontra-se acima do geral. Ela significa recebimento, não renúncia. Reveste o homem de caráter da eternidade. O homem de fé encontra-se assim individualmente com Deus. Como Abraão, o ser humano realiza o duplo movimento: vai para o infinito e retorna ao finito, e fica com ambos. Ele silencia78. É uma relação absoluta do individuo com o Absoluto, tendo um caráter de dever absoluto para com Deus. Ama-o primeiro para depois amar o outro. (Paula, 2001, p. 112122). Ademais, a fé contribui para que o homem se converta em Indivíduo, não renunciando a si para expressar-se no geral. O Indivíduo é solitário, sofre, luta sempre, não há descanso, nem mediações. Ele não é mestre, mas testemunha. O silêncio é o verdadeiro significado do paradoxo em
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A ética compreende o estádio das normas e padrões estabelecidos. Ela reside no geral. (Paula, 2001, p. 112). “De fato, o Evangelho, aquilo que Kierkegaard designa como a suspensão teleológica da ética não é algo excepcional, mas a própria forma da ação moral real. Todavia, a ética não poderia ser ‘suspensa’ a não ser quando alcançou a plenitude da sua medida: a suspensão não é uma dispensa, nem mesmo uma derrogação. É um além que não cancela um só iota à exigência do geral. Mas aquilo que o religioso exige, além do ético ou, em todo caso, conjuntamente como ele na maioria das vezes, é um ato que ultrapassa o estrito mandamento da lei rumo à gratuidade e ao caráter incondicional do amor (cf. as muitas transgressões de Jesus). Kierkegaard também coincide com este outro gigante do pensamento que foi Pascal: ‘A verdadeira moral zomba da moral’” (Farago, 2006, p. 126). 77 “A diferença entre o herói trágico e Abraão salta aos olhos. O herói trágico ainda permanece na esfera ética. Para ele, toda expressão ética tem seu telos numa expressão superior da ética (...). Inteiramente outro é o caso de Abraão. Com seu ato, ultrapassa o estádio ético. Tem mais além um telos diante do qual suspende este estádio (...). O que Abraão faz, não o faz para salvar um povo, nem para defender a idéia de Estado, nem para apaziguar os deuses irritados (...). Enquanto o herói trágico é grande por sua virtude moral, Abraão o é por uma virtude toda pessoal (...). Por que, então, Abraão o faz [sacrifício]? Por amor a Deus, como de uma maneira absolutamente idêntica por amor a ele mesmo. Por amor a Deus por que Deus exige esta prova de sua fé e por amor a ele mesmo, para dar esta prova (...). O herói trágico renuncia ao certo pelo mais certo e o olhar do observador repousa nele com mais confiança. Mas aquele que renuncia ao geral para captar uma coisa ainda mais elevada, que não é o geral, que faz? Será possível que isto que seja outra coisa que uma crise religiosa? E se a coisa for possível, mas o indivíduo estiver enganado, haverá salvação para ele. Ele supera todo o sofrimento do herói trágico, aniquila sua alegria terrestre, renuncia a tudo e arrisca talvez, no mesmo instante, fechar o caminho da alegra sublime, tão perfeita a seus olhos, que gostaria de adquiri-la a qualquer preço (...). Ele crê. Tal é o paradoxo que o impele ao extremo e que não pode tornar inteligível a ninguém, pois o paradoxo consiste em que se coloca como indivíduo numa relação absoluta com o absoluto. Abraão está justificado? Sua justificação é novamente paradoxo, pois se o está não o está em virtude de uma participação qualquer no geral, mas em virtude de sua qualidade de individuo (...)”. (Kierkegaard, 1971, p. 172-174). 78 “O silêncio é armadilha do demônio; quanto mais ele é mantido mais o demônio é terrível; mas o silencio também é um estádio em que o Indivíduo toma consciência da sua união com a divindade” (Kierkegaard, 1988, p. 163). O verdadeiro silêncio é aquele que é motivado pela relação absoluta com o absoluto e não com o geral. Esse silêncio encontra-se na vida religiosa. A vida estética pede silêncio, mas fica preso ao mundo. E a ética pede a manifestação, mas quer salvar o geral, e o seu silencio se torna incrédulo (Kierkegaard, 1988, p. 124). 76
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Abraão. O silêncio se dá por causa do sacrifício. (Paula, 2001, p. 118-125). Abraão se cala com a tribulação e a angústia. Abraão cala-se (...) porque não pode [grifo do autor] falar; nesta impossibilidade residem a tribulação e a angústia. Porque, se não me posso fazer compreender, não falo, mesmo se discurso noite e dia sem interrupção. Tal é o caso de Abraão; pode dizer tudo, exceto uma coisa, e quando não pode dizê-la de maneira a fazer-se entender, não fala. A palavra, que permite traduzir-me no geral, é um apaziguamento para mim. Abraão pode dizer as coisas mais formosas a respeito de Isaac de que uma língua é capaz. Mas no seu coração guarda uma coisa muito diferente; esse algo mais profundo, que é a vontade de sacrificar o filho porque é uma prova. Não podendo ninguém compreender este último ponto, podem, no entanto, equivocar-se todos quanto ao primeiro. O herói trágico ignora tal tribulação. Antes de tudo, tem o consolo de dar satisfação a cada contraargumento – de poder oferecer a Clitemnestra, a Ifigênia, a Aquiles, ao coro, a qualquer voz que surja do coração da humanidade, a qualquer pensamento capcioso ou angustiado, acusador ou compassivo, a ocasião de se erguer contra ele. Está seguro de que tudo o que se pode dizer em seu desfavor foi formulado sem consideração nem piedade – e há uma consolação em lutar contra o mundo inteiro, um terrível assombro em lutar contra si próprio (...); não receia ter omitido algum argumento nem ter de gritar em seguida, como o rei Eduardo IV, ao tomar conhecimento da morte de Clarence: Quem pediu em seu favor? Quando eu estava enfurecido, quem se ajoelhou e me rogou que refletisse? Quem me falou da fraternidade? Quem me falou de amor? [grifo do autor]. (Kierkegaard, 1988, p. 179).
Assim, ocorre até uma mudança de linguagem. Quando Abraão entrega o seu filho para o sacrifício, parte para o segundo movimento: ir em direção ao absurdo da fé. “Sua linguagem [grifo do autor] torna-se estranha, ela não é nem verdadeira e nem falaciosa, apenas não é entendida. Por isso, Abraão é sempre mais do que se pensa” (Paula, 2001, p. 127). A fé de Abraão e sua própria significação são transmitidas de geração para geração. Ela é a maior das paixões, é um recomeço. Dá-se no interior do homem. A fé não é fadiga, nem continuação. Ela é algo sempre novo. (Paula, 2001, p. 128). Contudo, de acordo com Johannes Silentio, o homem pode existir sem fé, mas a significação da sua vida será menor. A fé é a mais alta das paixões de todo homem. Talvez haja muitos homens de cada geração que não a alcancem, mas nenhum vai além dela (...). Mas mesmo para que não chega até à fé, a vida comporta suficientes tarefas, e se as aborda com sincero amor, a sua vida não será perdida, mesmo que não possa ser comparada à existência dos que aprenderam e alcançaram o mais alto. (Kierkegaard, 1988, p. 185).
Contudo, se essa paixão for esquecida, o paradoxo da fé e da vida do cristão perde o seu significado original, sendo então necessário resgatá-la. O resultado, dezoito séculos de cristianismo servem para alguma coisa, servem a este vil embuste com o qual a gente se engana e engana aos outros. Não me sinto com coragem de querer ser contemporâneo destes acontecimentos. Por isso, se não julgo severamente aqueles que se enganaram, não penso que sejam sem importância aqueles que viram corretamente. (Kierkegaard, 1971, p. 177).
Portanto, como foi visto, o homem é responsável pela sua existência. Ele é eleito para cuidar de si, voltar-se para o seu interior. A subjetividade é a verdade: ela não reside totalmente nas
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coisas exteriores, fora do sujeito, na massa, mas no indivíduo. Somente o indivíduo constrói a sua vida. Ele se constrói, faz escolhas, toma decisões. As suas escolhas implicam um estilo de vida. Cada estádio de vida é diferente do outro, mas não suprime o anterior. Cada estágio nada mais é do que o momento de o homem se perceber, voltar se para si. No caminhar, o homem pode cair em desespero. Em cada etapa da vida, pode se confundir com o seu eu. O seu eu pode se perder. Mas, para superar, precisa saltar. O salto qualitativamente significativo é o salto para a fé. A fé possibilita ao homem se encontrar consigo mesmo, unificando o seu eu. A fé possibilita um encontro com Deus. Assim, Deus e o homem passam a se relacionar. Esse relacionamento gera um paradoxo no ser humano: ele não pode conhecer nem compreender, mas apenas viver, sentir, existir. A fé é adesão. O homem, pela fé, se torna indivíduo, torna-se aquilo que é, descobre-se com a ajuda divina. Deus dá condição para que o homem se construa e dê sentido à sua vida. Esse foi o desenrolar do segundo capítulo. O próximo capítulo vai procurar mostrar como o homem se encontra no mundo pós-moderno. De antemão, surgem algumas perguntas: Qual a contribuição que Kierkegaard tem a oferecer ao ser humano contemporâneo? Como o homem pode agir numa vida religiosa? Como se torna cristão? O que é o paradoxo da existência? O que é a PósModernidade?
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3 KIERKEGAARD: UM PENSADOR PARA A ESCUTA DO TEMPO E DO HOMEM Eu sou como uma bóia marinha, da qual nos servimos para orientar-nos, mas que evitamos ao passar. Soren Kierkegaard
No caminhar da vida, o ser humano passa por diferentes estágios ou estilos de vida. Cabe a ele decidir, escolher e responsabilizar-se. Se ele fechar a sua vida em si mesmo, faz a experiência do desespero, caindo numa crise profunda. Deus é a Transcendência que dá possibilidade ao homem se autoconhecer e ser a verdade. A interioridade ajuda o homem compreender a si mesmo e entrar em contato com o divino que se exterioriza como obras de amor. Este capítulo tem o objetivo, como conclusão, de apresentar as direções que o pensamento de Kierkegaard tomou depois da morte do pensador dinamarquês, as diferentes compreensões dos seus escritos ao longo dos séculos, a força e a atualidade das suas reflexões existenciais para o século XXI. Na verdade, o que se procura com a reflexão deste capítulo é mostrar que Kierkegaard foi, é e sempre será um pensador necessário para a escuta e compreensão do tempo do homem e do mundo. Conforme já se acenou, a influência do pensamento de Kierkegaard não foi tão grande durante a sua vida. Mas no século XX, as suas obras tiveram uma aceitação muito significativa e até incomum, influenciando não só a filosofia e a teologia, mas também outros campos do saber humano. Algo diferente não se dá no século XXI.
3.1 O LEGADO KIERKEGAARDIANO
Soren Kierkegaard é um pensador difícil de definir. As suas obras são caracterizadas pelo estilo estético e religioso. Aliás, os seus escritos são profundamente existenciais, marcados por uma reflexão existencial sobre o que é o homem. O ser humano é aquilo que se faz. Kierkegaard não vê o homem como uma peça do sistema, mas como alguém responsável pela sua existência. A concepção antropológica presente nas obras de Kierkegaard já foi trabalhada no capítulo anterior. O presente capítulo procura refletir sobre o legado do pensamento de Kierkegaard. Qual a sua contribuição para o século XX e XXI? A reflexão existencial é ainda pertinente para o século XXI? Segundo Gouvêa, Kierkegaard é um pensador interessante e uma peça chave no desenvolvimento da teologia e da filosofia no século XX. (2006, p. 10-19). Antes, porém, de se adentrar no legado kierkegaardiano, é necessário apresentar a recepção dos seus escritos no século XIX e XX.
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3.1.1 Kierkegaard: O Sentido dos seus Escritos
Para compreender a fundo os escritos de Kierkegaard, nenhum estudioso deve deixar de ler a obra: Ponto de Vista explicativo da Minha Obra de Escritor79. Nesta obra, Kierkegaard procura esclarecer o sentido dos seus escritos e as muitas mudanças de tom, estilo e método nelas encontradas. É um relatório explicativo de suas obras como autor. (Gouvêa, 2006, p. 305). Escrever fazia bem para Kierkegaard: era uma vocação divina. Só me sinto bem quando me ponho a escrever. Esqueço, então, os desgostos da vida e os sofrimentos. Encontro-me com meu pensamento e me sinto feliz. É suficiente que o interrompa durante alguns dias para que, em seguida, me sinta doente, cheio de moléstias e de achaques, com a cebaça [cabeça] pesada e oprimida. Semelhante ímpeto, tão rico, inesgotável, mantido diariamente durante cinco ou seis anos e que flui com tanta abundância, um ímpeto assim não pode deixar de ser uma vocação divina. Se essa abundancia de pensamentos que ainda se agitam em minha alma devesse ser reprimida, representaria para mim um martírio e um tormento e já não seria mais capaz da nada (...). É duro e deprimente ter que gastar o próprio dinheiro para obter a permissão de trabalhar com maior empenho e esforço que qualquer outro deste país (...). Não elegi a carreira de escritor. Pelo contrário, ela é uma conseqüência de minha individualidade inteira e de minha necessidade mais profunda (...). (Kierkegaard, 1971, p. 43).
Kierkegaard foi um “escritor honesto e um pensador que ofereceu e ainda oferece importantes contribuições para a compreensão humana de mundo e da vida”. (Gouvêa, 2006, p. 10). Nas suas obras, procurou ensinar o sentido da fé cristã. A sua carreira literária teve um só objetivo: esclarecer o “devir cristão”, ou seja, como ser dentro do cristianismo um cristão. Kierkegaard é um escritor impressionante, desconcertante, excepcional e único em seu estilo (Gouvêa, 2006, p. 22). Apesar do temperamento melancólico, possuía uma mente brilhante, refinada, com um humor penetrante, que só ele sabia fazer. Ele próprio confessa isso: Meu mérito literário será sempre o de ter exposto as categorias decisivas do âmbito existencial com uma agudeza dialética e uma originalidade que não se encontram em nenhuma obra literária, ao que eu saiba, pelo menos. Também não me inspirei em obras alheias. Acrescente-se a isso minha arte de expor, sua forma, e realização lógica, mas levará muito tempo antes que alguém encontre lazer suficiente para lê-la e estudá-la seriamente. Nesse sentido, minha produtividade será, quem 79
KIERKEGAARD, Soren. Ponto de Vista Explicativo da Minha Obra de Escritor. Lisboa: Edições 70, 2002. Essa obra foi escrita em 1848, mas Soren não quis publicá-la. Ele fez uma versão mais curta chamada de Sobre Minha Obra como Autor (1851) para desfazer a sua decisão de mistificação das suas obras anteriores. A obra Ponto de Vista foi publicada postumamente em 1859. Tinha como objetivo “destrinchar as complexidades de uma literatura vasta e multiforme que foi (e ainda é) muitas vezes mal entendida”. (Gouvêa, 2006, p. 305). Ele quer dissipar a idéia de que num primeiro momento teria sido escritor, pois, ele sempre foi um escritor religioso e tem como objetivo o tornar-se cristão. Fez-se uso da produção estética para evitar um ataque direto as pessoas que não viviam existencialmente o cristianismo. E ele declarava que não publicou o livro porque a Providência Divina o guiou nesta decisão. Cf. BRUN, Jean. Introdução. In: KIERKEGAARD, Soren. Ponto de Vista Explicativo da Minha Obra de Escritor. Lisboa: Edições 70, 2002.v. 10. p. 11-20.
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sabe até quando, desprezada, como o prato delicado que se serve ao camponês. (Kierkegaard, 1971, p. 42).
Usando de sinceridade para consigo, Kierkegaard não deixou de reconhecer que as suas obras poderiam ser desprezadas por causa do seu estilo irônico e reflexivo de escrever. Porém, a sua forma de escrever é compensada pelo próprio estilo de vida que levou: “a minha existência é a mais interessante que escritor algum tenha levado na Dinamarca. Justamente por essa razão, serei lido e estudado no futuro” (Kierkegaard, 1971, p. 43). Kierkegaard foi e continua sendo estudado principalmente na Alemanha e na França, sendo reconhecido como filósofo e teólogo. Mas essa denominação não lhe compete80, porque ele foi um crítico ferrenho do sentido da filosofia defendido pelos seus contemporâneos. Era uma filosofia do sistema que esquecia a existência. Kierkegaard também não quis ser associado à teologia acadêmica, uma vez que foi um crítico da seca e impessoal ortodoxia luterana e das diferentes escolas liberais iluministas. Nos últimos anos de sua vida, “atacou impudentemente a Igreja, ridicularizou seus grandes líderes, questionou suas práticas (...), ele declarou que o cristianismo do Novo Testamento não existia mais! [sem grifo no original] (...)” (Gouvêa, 2006, p. 25). Na verdade, Soren Kierkegaard é um pensador que por meio dos seus escritos instiga o leitor a uma reflexão existencial. Os seus escritos são de fundamental importância para compreender o que é o homem, como ele vive, como deve viver. Kierkegaard é o mestre da interioridade.
3.1.2 Kierkegaard e seu Legado
Soren Kierkegaard é um pensador que influenciou muitas correntes filosóficas e teológica. Logo depois de sua morte, o pensamento de Kierkegaard foi mal compreendido, como aconteceu também com a recepção de suas obras no século XX. Por isso, é preciso tomar cuidado com o estudo das suas obras. Esse tópico se limita, portanto, a falar sobre como se deu a interpretação do pensamento do autor dinamarquês.
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“Kierkegaard tinha uma aversão por todo tratamento sistemático de temas teológicos ou filosóficos e desdenhava todas as tentativas de formar um ‘sistema’ fechado, completo e auto-contido. Ele foi um filósofo cristão habilidoso, que mesmo assim, nunca chamou a si mesmo de filósofo (ainda que se denominasse dialético), pois criticava alguns dos principais aspectos da tradição filosófica ocidental (...). Ele era um apologista pungente que, apesar disto, certamente rejeitaria esta identificação, pois era muito crítico da teologia natural e dos métodos racionalistas e evidencialistas (...)” (Gouvêa, 2006, p. 21).
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3.1.2.1 A Recepção às Obras de Kierkegaard
As obras de Kierkegaard foram recebidas de maneira muito distintas. Não é possível aqui demonstrar minuciosamente como que se deu o processo da leitura delas, uma vez que o processo histórico da sua recepção demanda um estudo amplo e complexo. Segundo Gouvêa, Kierkegaard teve uma influência penetrante e incomensurável no pensamento do século 20. Ele morreu quase cento e cinqüenta anos atrás [153 anos atualmente], mas seu legado ainda fascina e confunde especialistas de muitas áreas diferentes do conhecimento, particularmente filósofos e teólogos, muitos dos quais dedicaram suas vidas à tarefa de interpretar suas obras. (2006, p. 57).
Contudo, nem todas as leituras das obras de Kierkegaard fazem jus ao seu pensamento. Ele foi até mesmo mal entendido pelos seus contemporâneos. Muitos filósofos, poetas, teólogos, o irmão Peter, parentes81 e amigos82 se sentiram ofendidos e ameaçados pela última fase do seu pensamento (fase de intensa crítica). (Gouvêa, 2006, p. 58). Principalmente, os seguidores de Grundtvig83 foram contra o seu pensamento. As suas idéias foram objetos de intensa controvérsia na Dinamarca, mas teve um pequeno público interessado. Os primeiros que estudaram Kierkegaard no século XIX foram os pietistas escandinavos84 e alemães. Na verdade, a recepção do pensamento de Soren começou por uma não recepção e alguns lampejos; depois, por uma má recepção (os primeiros que o estudaram) e, por fim, uma recepção mais séria. (Gouvêa, 2006, p. 62-64). A má recepção aconteceu na Alemanha85, quando começaram a ser publicadas algumas das suas obras na segunda metade do século XIX. Aí houve muitos equívocos para depois haver um início de uma recepção séria, mais adequada. Os melhores intérpretes de Kierkegaard, antes da Segunda Guerra Mundial, foram, para Gouvêa, Haecker e Geismar. Na medida em que os escritos kierkegaardianos foram sendo traduzidos para outras línguas, não deixaram de influenciar a teologia, a filosofia, a psicologia e a literatura. Mas não se deve entender Kierkegaard por meio das 81
Hans Brochner (1820-1875) foi o único primo distante e amigo que compreendeu melhor Kierkegaard, apesar de não concordar com algumas idéias dele. (Gouvêa, 2006, p. 61). 82 Ramus Nielsen foi um amigo de Kierkegaard, mas também não conseguiu compreender bem o pensamento kierkegaardiano. (Gouvêa, 2006, p. 58-61). 83 O sobrenome Grundtvig é registrado por Gouvêa (2006, p. 58), ao passo que Schlesinger e Porto registram Grundvig. Nikolai Frederik Severin Grundvig (1783-1872) foi “um pastor protestante dinamarquês. Nasceu em Udby, perto de Vordinborg. É considerado a maior personalidade religiosa do século XIX, na Dinamarca. Pretendia uma síntese entre o luteranismo e o nacionalismo. Estabeleceu como fonte da fé a comunidade cristã. A principal característica de sua teologia era a substituição da autoridade das ‘palavras livres’de Cristo pelos comentários apostólicos. Desejava ver cada congregação como uma comunidade praticamente independente” (Schlesinger; Porto, 1995, p. 1205). As suas obras mais importantes são: Mitologia Nórdica, A Mitologia Nórdica como Linguagem Simbólica e Poemas para Igreja da Dinamarca (1837-1841). 84 Os pietistas mais conhecidos são: Hans N. Hauge e Gustav Adolph Lammers. (Gouvêa, 2006, p. 64). 85 Os estudiosos mais conhecidos são: Johann Tobias von Beck, Albert Bärthold, Christoph Schrempf, Hermann Gottsched, Albert Dorner e Ernst Troelsch. Além desses, surgiram traduções e um estudo mais sério e autêntico de Kierkegaard, tais como: Georg Brandes, Harald Hoffding, P. A. Heiberg, Fritjof Brandt, Lev Shestov, Erich Przywara, Emanuel Hirsch, Theodor Haecker e Eduard Geismar.
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escolas de pensamentos que se evoluíram após a sua morte, mas pelo contexto em que ele viveu e pelos pensadores com os quais ele entrou em diálogo. (Gouvêa, 2006, p. 65-77).
3.1.2.2 A Filosofia da Existência
Além de ter influenciado outras corretes do pensamento humano, as obras de Kierkegaard tiveram aceitação incomum especialmente pela assim chamada “filosofia existencialista”.
A
filosofia existencial kierkegaardiana irá influenciar muitos filósofos depois da Primeira Guerra Mundial, por causa das catástrofes que a guerra causou na humanidade, deixando o ser humano fragmentado e sem direção. Antes, porém, de estudar a recepção das obras de Kierkegaard pelos existencialistas, é necessário compreender o existencialismo do pensador dinamarquês.
3.1.2.2.1 O existencialismo de Kierkegaard86
Retratar o existencialismo de Kierkegaard não é tarefa fácil, visto que os temas fundamentais do seu pensamento têm sido estudados de formas diferentes por parte das novas correntes existencialistas. Independentemente disso, é possível apresentar os temas fundamentais do seu existencialismo: o fracasso dos sistemas, o paradoxo e o absurdo, o desespero e a angústia, o abandono do homo naturalis e o compromisso do homo christianus, o sentido de risco e o drama do indivíduo, a verdade subjetiva e objetiva. (Jolivet, 1957, p. 31). Mas qual a relação de Kierkegaard com o existencialismo? “Kierkegaard está incontestavelmente na origem do movimento existencialista contemporâneo – mas ele é também, de certa maneira, o efeito ou a conseqüência desse movimento” (Jolivet, 1957, p. 32). Para Jolivet, os pensadores que melhor compreenderam o alcance do pensamento de Kierkegaard foram: Karl Barth, Martin Heidegger, Karl Jaspers e Jean-Paul Sartre (1957, p. 32). Sem os estudos desses pensadores, dificilmente Kierkegaard seria compreendido e aceito pela filosofia e teologia do século XX. Contudo, Kierkegaard não deve ser compreendido somente a partir desses pensadores: deve-se “perscrutar o seu pensamento na pureza e formas originais e através daquele aspecto de novidade que deveria revestir para leitores que se tivessem mantido alheio aos entusiasmos existencialistas da nossa época [anos 50 e 60]” (Jolivet, 1957, p. 32-33). Neste caso, descrever a origem do existencialismo kierkegaardiano é abordar um plural discutível. Porém, o existencialismo dele só 86
Este item fundamenta-se em: JOLIVET, Régis. Kierkegaard. In: _____. As Doutrinas Existencialistas: de Kierkegaard a Sartre. Lisboa: Livraria Tavares Martins, 1957. p. 31-65.
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tem uma origem: “é a realidade existencial de Soren Aabye Kierkegaard [grifo do autor], a sua personalidade concreta” (Jolivet, 1957, p. 33). Por mais que tenha sofrido influências históricas, filosóficas e sociais, a sua reflexão é “precisamente ele próprio (...), mas é ele próprio voluntariamente e sistematicamente [grifo do autor], a tal ponto que o <<existir como Indivíduo>> e a consciência reflectida desse existir chegam a ser para ele condição absoluta da filosofia e até a sua única razão de ser” (Jolivet, 1957, p. 34). Kierkegaard foi homem-problema para si mesmo. A filosofia para ele “resumia-se em tomar consciência, por forma cada vez mais penetrante, através de um profundo conhecimento da sua própria existência, das exigências absolutas de uma existência autêntica” (Jolivet, 1957, p. 3738). O seu existencialismo é caracterizado pela negação do racionalismo hegeliano, pela desilusão causada pelo sistema hegeliano e pelo “devir cristão”87. Diante dessas considerações, pode-se concluir que há uma filosofia existencial em Kierkegaard, uma filosofia que não é uma teoria da existência, já que ele não oferece uma filosofia organizada e concluída, mas elementos fragmentários de uma filosofia existencial e um método de vida. (Jolivet, 1957, p. 61- 64).
3.1.2.2.2 O que é a Filosofia da Existência? Kierkegaard é considerado o “pai” do existencialismo. Defini-lo assim é um tanto perigoso e impróprio, que pode levar inclusive a uma exaltação exacerbada de sua pessoa ou até mesmo a uma rejeição radical do seu pensamento, como muitas vezes é feito. (Gouvêa, 2006, p. 88). É preciso, portanto, ver Kierkegaard como um pensador existencial, um corretivo que forneceu temas especiais para a filosofia da existência, tais como: a irredutibilidade e a primazia do indivíduo, a ênfase na escolha e na responsabilidade. Esquece-se, porém, que Kierkegaard foi também um cristão, que procurou, por meios dos seus escritos, levar as pessoas a uma genuína fé cristã, a uma vivência religiosa. (Gouvêa, 2006, p. 91-94). Mas, afinal, o que é o existencialismo? Onde surgiu? Quais são as suas características? O existencialismo é uma corrente filosófica que tem início a partir da Primeira Guerra Mundial88 (1914-1918) e que atingiu o seu auge nos anos 40 e 50, influenciando a cultura da época.
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A filosofia, de acordo com Kierkegaard, consistia “numa propedêutica da vida cristã ou, melhor, numa vivida consciência de todas as exigências do cristianismo [grifo do autor], isto é, num permanente, progressivo e consciente esforço de acabamento de si mesmo à luz do ideal cristão”. (Jolivet, 1957, p. 44). 88 Com a Primeira Guerra Mundial a idéia do progresso e de bem estar acaba. O homem é humilhado, desonrado, vive na angústia e no medo, mas luta por um apaziguamento e coloca dúvidas sobres os valores que eram
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Ele busca esclarecer os problemas fundamentais da existência humana. Trata do homem concreto, sujeito à morte, que convive com os outros e busca um sentido da vida. Não reduz o homem a uma abstração89. Tal corrente influenciou não só a filosofia e teologia, mas também a vida literária e artística, tornando-se uma filosofia da moda90. (Morujão, 1990, p. 390). O termo existencialismo não é novo, uma vez que se pode falar de existencialismo em outras épocas da história. A sua origem é remota: encontra-se nos jônicos, nos estóicos, em Agostinho, nas tradições agostinianas, nos empiristas, em Blaise Pascal, em Maurice Blondel, Wilhelm Dilthey, Henri Bérgson, Walter Eucken e em muitos outros autores. (Morujão, 1990, p. 390-391). Isso indica o quanto a questão da existência humana foi e continua sendo importante para a reflexão filosófica. O existencialismo do século XX se coloca, portanto, em linha de continuidade com todos os que procuraram pensar o sentido da existência humana e as suas formas de realização. O existencialismo contemporâneo se ocupa dos seguintes temas: a subjetividade, a finitude, a contingência, a autenticidade, a ‘liberdade necessária’, a alienação, a situação, a decisão, a escolha, o compromisso, a antecipação de si mesmo, a solidão (e também a ‘companhia’) existencial, o estar no mundo, o estar próximo da morte, o fazer-se a si mesmo. (Mora, 2001, p. 963).
Esses temas vão ser aprofundados entre os períodos das duas guerras, quando vai ocorrer uma releitura do pensamento de Kierkegaard na Alemanha e na França, por meio de Jaspers, Heidegger (O Ser e o Tempo), Gabriel Marcel, Emmanuel Mounier, entre outros. Durante a Segunda Guerra Mundial, na França, dá-se a influência de Heidegger e de Husserl, os quais introduzem o método fenomenológico91, estabelecendo assim a estrutura metódica das filosofias de
direcionados a sociedade. Todavia, a Segunda Guerra Mundial agrava ainda mais a humilhação humana e o seu desespero. Por isso, entre os anos de 1919 e 1960, o existencialismo irá se desenvolver. (Morujão, 1990, p. 392). 89 “O existencialismo pode considerar-se reacção às construções filosóficas sistemáticas que dissolviam o homem numa série de abstrações (...). Daí o E. [existencialismo] assumir a forma de um humanismo que proporcione uma valorização pessoal e responsável, mediante uma abertura temporal para o mundo em moldes exclusivamente terrenos, negadores de qualquer transcendência (Sartre e seus seguidores) ou admitindo uma abertura ao infinito e absoluto (Marcel e Jaspers) (...)”. (Morujão, 1990, p. 396). 90 Contudo, o existencialismo não foi tão bem recebido assim também em todos os setores da sociedade, especialmente, com relação a filosofia. Houve ao menos três atitudes no pensamento atual com relação a essa corrente: “a completa indiferença, a oposição cerrada e o esforço de ‘superar’ o existencialismo a partir de dentro” (Mora, 2001, p. 965). O existencialismo foi mal visto pelos positivistas, pela filosofia analítica, pelos marxistas e demais filósofos. “Por muitos ‘tradicionalistas’ (...) [é interpretado] como uma das mais perigosas manifestações do ateísmo moderno; pelos racionalistas como uma explosão anti-racionalista, hostil à ciência e a toda sã razão humana; por muitos individualistas como uma reação saudável de pessoa contra as ameaças de escravidão suscitadas pelo gênero de totalitarismo. Em todos esses casos a interpretação se refere mais à função que o existencialismo possui – ou que se pretende que se possua – dentro da sociedade contemporânea, do que aos próprios conteúdos dessa filosofia, aos quais nos referimos no resto deste verbete” (Mora, 2001, p. 965). 91 O método fenomenológico faz parte da corrente filosófica chamada de Fenomenologia que é um componente essencial do existencialismo. (Abbagnano, 1978, p. 185). A fenomenologia age sob a forma de dois conceitosbase: “o do carácter intencional [grifo do autor] da consciência e o do carácter afirmativo da razão”. Mas somente o primeiro conceito liga essencialmente o existencialismo à fenomenologia. (Abbagnano, 1978, p. 185). Ademais, há uma diferença fundamental entre as duas: “A primeira é a de que o existencialismo não tem a
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Merleau-Ponty (A Fenomenologia da Percepção) e J. P. Sartre (O Ser e o Nada). Não se pode esquecer que há também existencialismo russo92, italiano93, espanhol94, alemão, entre outros países. (Morujão, 1990, p. 392-394). A reflexão existencialista desenvolvida por essas corrente é distinta e autônoma. Existem muitas formas de retratar o mundo e o homem. Aqui, interessa o pensamento de Mounier e de Abbagnano. Emmanuel Mounier
95
escreve um livro chamado Introdução aos Existencialismos96, no
qual retrata o que é o existencialismo, como surgiu, quais são os filósofos existencialistas e apresenta temas relacionados a essa corrente filosófica, tais como: A Concepção Dramática da Existência Humana, a Conversão Pessoal, o Compromisso, o Outro, a vida exposta, a Existência e a Verdade, e o Reino do Ser está entre nós. Segundo Mounier, o existencialismo é uma corrente do pensamento moderno, é uma “reacção da filosofia do homem contra o excesso da filosofia das idéias e da filosofia das coisas” [grifo do autor] (1963, p. 11). Preocupa-se com a existência do homem. O filósofo personalista compara o existencialismo com uma árvore97 que é
pretensão, básica na fenomenologia, de colocar-se no ponto de vista de um <<expectador desinteressado>> e de alcançar assim um conhecimento puramente teórico. <<O conhecer, afirma Heidegger, é um modo de ser e do estar no mundo>> (Sein und Zeit, p.13). E é-o em todos os seus graus ou níveis, porque mesmo na análise que o ser-aqui faz de si próprio, é considerado o seu ser, já que esta análise é simultaneamente uma decisão (Ib., p.9). Por outras palavras, o existencialismo descura completamente a diferença entre o <<teórico>> e o <<prático>>, a qual constitui, pelo contrário, o pressuposto básico na fenomenologia. A segunda diferença reside no carácter problemático das possibilidades constitutivas do homem, carácter que o existencialismo herda de Kierkegaard. Husserl servira-se amplamente do conceito de possibilidade e afirmara mesmo a precedência ontológica da possibilidade sobre a realidade (...). Mas a consideração do aspecto negativo da possibilidade (que, como tal, pode ainda não [grifo do autor] existir) mantivera-se totalmente estranho à sua consideração (...). Pelo contrário, o existencialismo referiu-se principalmente aos aspectos negativos e destrutivos da existência humana no mundo, e isto porque teve sempre presente (por vezes até exclusivamente [grifo do autor] presente) o aspecto negativo das possibilidades existenciais (...)”. (Abbagnano, 1978, p. 187-188). O representante excêntrico desse pensamento é Edmund Husserl (1859-1938) que influenciou muitos filósofos, como: A. Reinach, Edwig ConradMartius, Max Scheler, J. Hering, M. Geiger, A. Pfãnder, Edith Stein e entre outros. 92 Os representantes mais significativos são: L. Chestov e N. Berdiaef. 93 Há duas correntes existencialistas correlacionadas: 1) uma tem origem na dissolução do actualismo de Gentile, que deu origem à corrente espiritualista, cujos representantes são: A. Carlini, A. Guzzo, L. Stefanini, L. Pareyson e R. Lazzarini; 2) outra tem origem influenciada na filosofia alemã, cujos representantes são: E. Grassi, E. Paci, C. Luporini e Nicola Abbagnano. (Morujão, 1990, p. 393-394). 94 Os filósofos espanhóis são: Miguel Unamuno e J. Ortega y Gasset. 95 Mounier é um pensador francês que nasceu em Grenoble (1905) e faleceu em Châtenay-Malabray (1950). O seu nome está vinculado ao personalismo, ao qual ele dedicou a sua vida, o seu pensamento e ação. Ele fundou, em 1932, a revista Espirit. Ele é um pensador vivo e marcou uma geração filosófica por tipo de compromisso, empenhamento e de diálogo. A sua ação também está vinculada ao benefício de ter consciência das crises que a Europa atravessou entre 1930 e 1950. Ademais, Mounier foi próximo da fé cristã, mas as suas relações com o cristianismo eram investidas para purificar algumas idéias cristãs. A sua filosofia personalista valoriza a pessoa, que é a herança do mundo cristão. O personalismo não é uma doutrina cristã, mas uma espécie de fecundação recíproca entre o cristianismo e personalismo. Ele não é um puro objeto metafísico, mas implica uma vivencia ética e sociopolítica. (Renaud, 1991, p. 1010-1014). 96 MOUNIER, Emmanuel. Introdução aos Existencialismos. São Paulo: Duas Cidades, 1963. 97 Mora diz que a classificação do existencialismo feita por Mounier peca por excesso, uma vez que qualifica pensadores que não foram, como Bérgson, e aqueles que não se consideram existencialistas, como Heidegger e Ortega y Gasset. (Mora, 2001, p. 964).
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alimentada em suas raízes por Sócrates, pelo estoicismo e pelo agostinismo. Essas raízes produzem filosofias como as de Pascal e de Maine de Biran. O tronco da árvore representa Kierkegaard. A partir do tronco estende-se uma ampla copa na qual estão representados, em uma ramificação muito complexa, a fenomenologia, Jaspers, o personalismo, Marcel, Soloviev, Chestov, Berdiaev, a teologia dialética (sem esquecer o “judaísmo transcendental” de Buber), Scheler, Landsberg, Bérgson, Blondel, Laberthonnière, Nietzsche, Heidegger, J. P. Sartre (limite “esquerdo” do “movimento”). (Mora, 2001, p. 964).
Há também Karl Barth98 e São Bernardo. Segundo Mounier, Kierkegaard é o tronco, pois ele “surge com o título de pai da escola” (1963, p. 12). Além disso, é um profeta excêntrico e desagradável para o homem de bom senso. Através dele, o existencialismo separou-se em dois ramos99: um se encontra no velho tronco cristão e outro se faz numa escola fenomenológica alemã. (1963, p. 12-13). Algumas
características
do
existencialismo,
mencionadas
anteriormente
-
responsabilidade, escolhas, liberdade etc - estão também presentes na obra de Mounier. Ele diz que toda filosofia existencialista é, essencialmente, uma filosofia dialética. (1963, p. 58). É inclusive uma filosofia personalista, pois o sujeito do conhecimento é a pessoa humana (1963, p. 97). Para Mounier, a filosofia da existência surge num período em que o materialismo científico tentava negar a realidade subjetiva (1963, p. 130-136). O existencialismo procura ligar a existência com a verdade e resgatar o sentido da existência, compreendida como complemento da essência. (1963, p. 212). Ele não é um irracionalismo, porque valoriza também a razão sem absolutizá-la, já que existem outros modos de apreender a existência (Mounier, 1963, p. 233). Por fim, Mounier diz que não se pode negar a importância da filosofia da existência. Cristã ou ateia [sic], marca um regresso do religioso a um mundo que tentou constituir-se no puro manifesto. O existencialismo cristão é uma defesa evidente contra a secularização da fé. Uma espécie de despertar profético ao plano da filosofia. Já o existencialismo ateu, mal se espalhou, logo deu lugar a místicas negras, e o seu sucesso mais se assemelha a um revival [grifo do autor] do ateísmo, do que à calma e lenta difusão de um pensamento (...). O existencialismo, [é] herdeiro presuntivo de um racionalismo estafado que se não deve divorciar desta flor da existência que é o 98
Segundo Abbagnano, nas primeiras décadas do século XX, ocorreu o Renascimento Kierkegaardiano que “constituiu o preceito básico da teologia do cristianismo reformado e teve a sua melhor na obra de Karl Barth” (1978, p. 188-189). Barth nasceu em Basiléia, Suíça, no ano de 1886. Ele ensinou teologia primeiramente em universidades alemãs e depois na Universidade Basiléia. A sua principal obra é o comentário à epístola de São Paulo Carta aos Romanos (1919), que se refere à especulação de Kierkegaard e é uma tentativa para traduzir nas formas de tal explicação um cristianismo purificado dos seus aspectos místicos e hipócritas. (Abbagnano, 1978, p. 189). Barth tomou algumas noções de Kierkegaard, como a “infinita distinção qualitativa” entre Deus e o Homem e acusa Kierkegaard de pietista. (Gouvêa, 2006, p. 78). Gouvêa fala sobre a relação entre Kierkegaard e Barth: “A semelhança entre Kierkegaard e Barth é inegável. Tanto Kierkegaard quanto Barth tentaram antepor uma theologia crucis contra a predominância de uma thelogia gloriae. Outros importantes pontos em comum são o desvelamento da auto-revelação de Deus, uma ênfase na humilhação de Cristo e na possibilidade da ofensa (...). Barth algumas vezes também falou da fé como paradoxo. Seria um exagero dizer que Kierkegaard foi um precursor de Barth assim como seria também outro exagero dizer que Barth interpretou mal a Kierkegaard ao ponto da caricatura (...). Barth verdadeiramente sofreu influencia de Kierkegaard, ainda que de forma limitada. Contudo, Barth seguiu adiante construindo sua própria teologia original, uma teologia que tem suas próprias qualidades e defeitos”. (Gouvêa, 2006, p. 79). 99 Emmanuel também fala de existencialismo cristão e ateu. (1963, p. 140).
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exercício lúcido da razão (...). O racionalismo ocidental tem uma mensagem viva que deve fornecer e alimentar no mundo: o existencialismo (...). (1963, p. 237-238).
Reflexão semelhante a de Mounier é desenvolvida por Nicola Abbagnano100. Para ele, a filosofia da existência significa Qualquer filosofia que seja concebida e se exerça como análise da existência [grifo do autor], sendo <<existência>> uma palavra que designa o modo de estar do homem no mundo [grifo do autor]. O existencialismo é assim caracterizado, em primeiro lugar, pelo facto de pôr em questão o modo de ser do homem; e, dado que entende este modo de ser como modo de ser no mundo [grifo do autor], caracteriza-se em segundo lugar pelo facto de pôr em questão o próprio <<mundo>> (...). A relação homem-mundo [grifo do autor] constitui assim o tema único de toda a filosofia existencialista (...). O existencialismo é, de todas as correntes filosóficas contemporâneas, a única que se apresenta como a expressão de um clima cultural ou que contribuiu para o formar, clima esse que poderemos designar por a crise do optimismo romântico [grifo do autor] (...). O existencialismo foi levado a considerar o homem como um ser finito [grifo do autor] (...). O existencialismo desenvolveu-se como uma metafísica ontológica ou ontocosmológica, por um lado, como espiritualismo radical, por outro, e ainda como uma forma de empirismo igualmente radical no qual a experiência, entendida como existência, perdeu o seu carácter de inclusividade total e se transformou em abertura para o mundo (...). Em qualquer dos casos, no entanto, o existencialismo serviu para elaborar instrumentos conceptuais que entraram em uso e que deram provas da sua utilidade (...). (1978, p. 179-185).
Portanto, o existencialismo é uma corrente muito importante para compreender o século XX e para restituir o significado existencial do ser humano. Isso só foi possível graças ao pensamento de Kierkegaard, ao desenvolvimento da reflexão humana e dos acontecimentos históricos, sociais e filosóficos.
3.2 A PÓS-MODERNIDADE
3.2.1 O Que é a Pós-modernidade101? A pós-modernidade é um conceito complexo. Na verdade, a pós-modernidade é “conceito multifacetado”, que a chama a atenção para um conjunto de mudanças sociais e culturais muito profundas ocorridas no final do século XX e no início desse século em algumas das sociedades “avançadas”. (Lyon, 1998, p. 7). Para Lyon, a pós-modernidade faz parte do pensamento social, uma vez que o século XX passa por profundas mudanças sociais e culturais. Tal conceito existe como uma idéia ou forma de crítica na mente dos intelectuais e nos meios de comunicação. Como conceito analítico-social,
100
Cf. ABBAGNANO, Nicola. O Existencialismo. História da Filosofia. 2 ed. Lisboa: Presença, 1978. v. 14. p. 179-287. 101 Este tópico fundamenta se em: LYON, David. Pós-modernidade. São Paulo: Paulus, 1998.
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alcança notoriedade na década de 80 e 90. (Lyon, 1998, p. 9-79). O pós-moderno é o esgotamento da modernidade, que acreditava ser a ciência o único meio para o progresso e uma expressão política na busca de um mundo racionalizado. (Lyon, 1998, p. 16). Entre os estudiosos, é costume fazer uma distinção entre pós-modernismo102 (ênfase no cultural) e pós-modernidade (ênfase no social). Pós-modernismo refere-se aos fenômenos culturais e intelectuais. Questiona todas as premissas básicas do Iluminismo. Realiza queda das hierarquias de conhecimento, de gosto e opinião e o interesse pelo particular em lugar do universal. Também há um deslocamento da leitura para se deleitar com as imagens e representações (iconocentrismo). (Lyon, 1998, p. 17). Pósmodernidade significa o esgotamento da modernidade e as mudanças sociais ocorridas. Percebe-se que uma nova sociedade está surgindo ou um novo modo de compreender e viver o mundo. Mas em ambos os casos, há duas questões cruciais: “a proeminência das novas tecnologias de informação e comunicação, facilitando extensões maiores, como a globalização; e o consumismo, talvez eclipsando a centralidade convencional da produção” (Lyon, 1998, p. 17). Os progenitores de tal situação foram: Friedrich Nietzsche, que anunciou o niilismo na sociedade; Karl Marx, que refletiu sobre o capitalismo; Martin Heidegger com relação ao esquecimento do Ser, e Georg Simmel (1858-1918), que analisou a situação cultural e social. (Lyon, 1998, p. 19-22). Devido à influência desses autores e o próprio contexto sócio-político-histórico-cultural, houve aqueles que refletiram sobre o conceito de pós-modernidade. Quem popularizou o termo “pós-moderno” foi Jean-François Lyotard103, com a publicação do livro The Postmodern Condition (Lyon, 1998, p. 24). Outros pensadores que realizaram também a reflexão sobre o pós-moderno são: Jean Baudrillard104, Jacques Derrida105, Michel Foucault106, Gianni Vattimo e Luce Irigary. Porém,
102
Kaplan diz que há dois tipos de pós-modernismo: o utópico e o comercial ou cooptado. Mas o termo pósmoderno foi usado de modos distintos por estudiosos de literatura e feministas e por outro lado, pelos estudiosos da cultura popular. (Kaplan, 1993, p. 14) O pós-modernismo utópico tem como representantes: Bakhtin, Derrida, Lacan, Cixous, Kristeva e Rolan Barthes. (Kaplan, 1993, p. 14). Já o pós-modernismo comercial ou cooptado foi teorizado por Baudrillard, Arthur Kroker e David Cook. Ambas as utilizações de pós-moderno provocam um pensar que “transcende os próprios binarismos das tradições filosóficas, metafísicas e literárias ocidentais que foram questionadas pelo pós-estruturalismo e pela desconstrução. Nesta medida, o emprego do termo ‘pósmodernismo’ assinala um movimento para além/longe dos vários posicionamentos (não apenas estéticos, mas também os que versam sobre a classe, a raça e o sexo) das teorias totalizantes anteriores”. (Kaplan, 1993, p. 15). 103 Para Lyotard, o pós-moderno é a incredulidade com relação às metanarrativas que se orientam pelo Iluminismo, por meio do qual a ciência legitima a si mesma como a edificadora da emancipação. Ocorre aqui uma “atomização do social”. (Lyon, 1998, p. 24-26). 104 Baudrillard diz que o “o mundo contemporâneo é dominado por imagens dos meios de comunicação de massa eletrônicos”. Desse modo, os signos perderam o contato com as coisas significadas, dando-se assim a destruição do significado. (Lyon, 1998, p. 29- 30). 105 Derrida tem como tarefa a desconstrução, que é “levantar discussões persistentes sobre nossos próprios textos e sobre os textos dos outros, negar que qualquer texto seja definitivo ou estável. A atitude logocêntrica da
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a reflexão sobre o mundo pós-moderno continua. Ainda presenciam-se os resultados da modernidade. A Modernidade é um termo que se aplica à ordem que se manifesta depois do Iluminismo. Embora tenha raízes antes do século das luzes, “o mundo moderno está marcado por seu dinamismo sem precedentes, por sua rejeição da tradição, ou sua marginalização, e por suas conseqüências globais”. O ponto fundamental da modernidade é a crença no progresso e no poder da razão humana de ser livre e o eu se construir. São mudanças sociais profundas derivadas do crescimento industrialcapitalista-tecnológico, implicando no surgimento e no desenvolvimento dos centros urbanos. Conseqüentemente, a disciplina, o estilo militar, provocam um grande impacto sobre os padrões da sociedade. Até mesmo a religião se seculariza. (Lyon, 1998, p. 35-47). A modernidade inaugurou uma nova ordem social, introduzindo uma mudança em grande escala sem precedentes e em geral irreversível. Ela alcançou uma predominância global. Mas com o desenvolvimento da tecnologia e a busca incessante pelo lucro, o homem passou a explorado e alienado cada vez mais na sociedade capitalista. O homem também se tornou individualista. (Lyon, 1998, p. 47-55). A modernidade nos legou um mundo dividido em segmentos sociais, cada um regido por suas próprias leis, implícitas ou explícitas. A autoridade supostamente passa das bases religiosas para as científicas, mas de fato a principal regra prática é instrumental, pragmática: Funciona? E eficiente? O eu autônomo assume o centro da cena, reivindicando novas liberdades que seriam convertidas em direitos civis, políticos e sociais. Mas simultaneamente esse eu individual perde o sentido de significado e de propósito, uma situação que se tornou um problema fundamental. (Lyon, 1998, p. 56).
Com efeito, debater sobre a modernidade é um fator importante para a compreensão do mundo contemporâneo. Para alguns a modernidade acabou, enquanto para outros, quer chegar a um entendimento com a modernidade. Segundo Daniel Bell, o homem encontra-se em um novo tipo de sociedade: a sociedade pós-industrial que faz uso de novas tecnologias de informação e de comunicação107. E assim a realidade se fragmenta. (Lyon, 1998, p. 58-76). Esse pós-industrialismo é criticado por Bell, pois aprofunda as desigualdades sociais e econômicas associadas com o crescimento das tecnologias eletrônicas.
modernidade é radicalmente rompida pela ênfase posta sobre a indeterminância da linguagem” (Lyon, 1998, p. 26). 106 Foucault se concentra sobre as ciências humanas. Ele busca a genealogia para compreender o mundo, o conhecimento, a ciência. “O conhecimento ainda está em questão, mas ligado com – ou fundido com – o poder e também cm os corpos”. Inclusive, ele diz que a episteme moderna estava se desagregando e o seu objeto, o homem, estava morto. (Lyon, 1998, p. 28-29). 107 Segundo Bell, na sociedade de informação, as telecomunicações e os computadores tornar-se-iam “decisivos para o modo como os intercâmbios econômicos e sociais são conduzidos, para o modo como o conhecimento é criado e recuperado, e o caráter de trabalho e de organizações em que os homens [sic] estão engajados” (1980, apud Lyon, 1998, p. 61).
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Para alguns pensadores108, o homem do final do século XX e início do século XXI já se encontra na pós-modernidade, por causa da sociedade tecnológica e informatizada. Para Lyon, as novas tecnologias de informação e de comunicação, na verdade não produzem a sociedade pósindustrial nem a pós-moderna, mas estão envolvidas profundamente nas transformações contemporâneas do mundo, uma vez que sem elas não existiria o consumismo e a cultura de consumo. (Lyon, 1998, p. 80-83). Com efeito, o estilo de vida do consumidor e o consumo em massa monopolizam a vida dos homens no mundo pós-moderno. Tudo é mercantilizado, o consumo é tudo. O eu se traduz num projeto de posses de bens desejados. O eu é consumo e é livre para escolher. As escolhas provocam dúvida, hesitação e ansiedade. Até mesmo a religião pode ser comercializada. Todas as pessoas são afetadas pelo consumismo. (Lyon, 1998, p. 87-104). Bauman critica109 o consumismo por sua “duplicidade”, uma vez que não consegue cumprir o que promete: a felicidade universal. Até mesmo a democracia deixa-se guiar pelo mercado. Por isso, é preciso repensar a noção de cidadania para que ela possa gerenciar, de um novo modo, a sociedade consumista (Lyon, 1998, p. 102-104). O consumo é a característica predominante da modernidade, mas é também fundamental na pós-modernidade. O pósmodernismo é o novo paradigma cultural, mas de um modo paradoxal. Também é uma experiência de crise. (Lyon, 1998, p. 109-113). Portanto, o conceito de pós-modernidade é uma ‘problemática’ preciosa que chama a atenção do homem para questões centrais relativas às mudanças sociais contemporâneas. Para Lyon, é um conceito que solicita a participação em um debate sobre a natureza e o rumo das sociedades, num contexto globalizado. Não se pode deixar de lado uma análise social e cultural que atuam juntas e obrigam os homens a formarem juízos analíticos e filosóficos sobre a modernidade em si. Deve-se inclusive realizar uma interação entre o pré-moderno, o moderno e o pós-moderno. Também é necessário fazer uso de uma análise sociológica para compreender as mudanças significativas que questionam essencialmente todo edifício da modernidade. (Lyon, 1998, p. 129). A pós-modernidade é um fenômeno de fin de millénium, A arrogância moderna negou o divino e se dirigiu para a emancipação do ser humano. (Lyon, 1998, p. 130-131).
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Cf. as notas de 103 a 106. Zygmunt Bauman diz que os homens recebem as “intimidações de pós-modernidade”. Essas intimidações têm como personagem o consumidor. “A conduta do consumidor se torna o foco cognitivo e moral da vida – consumir é um dever prazeroso -, o modo como as pessoas são integradas na sociedade, e também o nexo do gerenciamento sistêmico”. (Lyon, 1998, p. 123). 109
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3.2.2 A Religião na Pós-modernidade110
Ao contrário do que se profetizou, a religião não desapareceu da vida das pessoas. Hoje em dia ela é um assunto de primeira grandeza. O ser humano fala da religião como repulsa ou como sentido de vida, como dominação ou como meio de crescimento pessoal. Há uma pluralidade de idéias sobre a religião. (Libânio, 2002, p. 11). Muitos acreditavam que a religião “morreria” 111. Mas ela renasce fortemente na sociedade de diversas formas112. Cada pessoa pode escolhê-la de modo a la carte. As variadas expressões religiosas acompanham os gostos e necessidades da sociedade113. O crescimento da onda religiosa contemporânea é resultado das mudanças sociais, políticas e culturais experimentadas pelo ser humano. Sem sempre aquilo que a sociedade produz é capaz de preencher o vazio existencial da pessoa. É na crise do mundo que a religião mostra a sua verdade e o seu significado114. A um mundo marcado pela tecnologia, invenções, informações, consumismo... a dimensão religiosa do ser humano reage fortemente. (Libânio, 2002, p. 267). A religiosidade explode em todas as partes (...). São pessoas isoladas, fora de grupos institucionais estáveis. Ou indivíduos que se abeiram das fontes religiosas por uma sede provocada por insatisfações existenciais, por carências materiais e/ou psíquicas ou por uma curiosidade despertada pela mídia. Cansados de recorrer a mediações institucionais, outros buscam um acesso 110
Este item baseia em: LIBÂNIO, João Batista. A Religião no início do Milênio. São Paulo: Loyola, 2002. “A Ilustração, com sua forte crítica à religião, anunciava seu lento, mas constante e implacável desaparecimento [grifo do autor]” (Libânio, 2002, p. 15). A Religião chegou ao seu auge de secularização após a Segunda Guerra Mundial. Todavia, a religião volta a ocupar a vida do ser humano, pois, com a queda do socialismo, com o neoliberalismo e com a falta de horizonte, o homem precisa de algo para fundamentar a sua vida. Por isso, surgem mais intensamente as expressões religiosas fundamentalistas. (Libânio, 2002, p. 15-24). 112 “Em relação à modernidade e pós-modernidade, os novos movimentos religiosos apresentam, portanto, um tríplice movimento ora pendular, ora exclusivo. Rejeitam a modernidade ou acomodam-se a ela e a aceitam ou fecham-se diante dela, isolando-se” (Libânio, 2002, p. 32). 113 O termo secularização tem dois significados: um jurídico e um cultural. O jurídico “significa a passagem de pessoas do estado clerical para o secular, ou a passagem de bens eclesiásticos a [sic] propriedade secular” (Gibellini, 1998, p. 123). O significado cultural ocorre mais tarde, no final do século XIX e início do século XX, “para indicar o processo de emancipação da vida cultural (política, ciência, economia, literatura, filosofia, arte e costumes) da tutela eclesiástica” (Gibellini, 1998, p. 123). Nessa acepção, o termo aparece casualmente em Wilhelm Dilthey, Max Weber e Ernst Troeltsch. Mas é somente depois de 1945 que o conceito secularização é aplicado para interpretar a modernidade, que indica “de um lado, o processo de emancipação do mundo moderno da tutela do cristianismo e da Igreja (momento da descontinuidade [grifo do autor]), mas, de outro lado, remete à contribuição do cristianismo para a formação do mundo moderno e à permanência de impulsos cristãos na sociedade moderna (momento de continuidade [grifo do autor])” (Gibellini, 1998, p. 123). Esse tema evoca também uma questão teológica setorial e uma questão global sobre o lugar que a fé cristã, o cristianismo e a Igreja exercem na sociedade moderna. (Gibellini, 1998, p. 124). Cf. GIBELLINI, Rosino. Teologia da Secularização. In: _____. A Teologia do Século XX. São Paulo: Loyola, 1988. p. 123-152. 114 “A religião assume função totalizante, em que o indivíduo e sociedade estão plenamente inseridos numa ordem em que a matriz natureza predomina [grifo do autor]”. (Libânio, 2002, p. 116). “A religião, enquanto instituição, caracteriza-se pela sua visibilidade de ritos, símbolos, templos, ministros, doutrinas. Tem, como dimensões básicas, a tradição e a comunidade. A religiosidade aponta para o traço pessoal, para as experiências subjetivas, para as expressões livres e espontâneas, não necessariamente regidas pelo cânones da instituição. A fé, por sua vez, relaciona-se principalmente com uma revelação, com uma Palavra transcendente que se acolhe com todas as suas exigências”. (Libânio, 2002, p. 268). 111
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imediato à esfera religiosa, escolhendo formas rituais que lhes respondem afetivamente. Nem falta a repetição mecânica de comportamentos consumistas que buscam mercadorias religiosas que agências especializadas nesse produto. Religiosidade reprimida em muitos explode selvagemente. Novos movimentos religiosos atraem antigos militantes das tendências de esquerda. Sedentos de utopia ou de experiências complementares, remanescentes de práticas tradicionais somam sua presença nesse mundo da religiosidade (...). (Libânio, 2002, p. 270).
A pós-modernidade assiste, portanto, a um retorno da religião. Contudo, não há um retorno à religião nos moldes tradicionais. Há um movimento forte de privatização da religião após o hiato crítico influenciado por aspirações crítico-sociais115. Num mundo marcado pelo neo-liberalismo, a religião responde distintamente às suas provocações: ou ela pertence ao neoliberalismo (neoconservadorismo americano116) ou insufla-se o seu crescimento (teologia da prosperidade117) ou se ajusta à ideologia neoliberal (Nova Era). Ou ainda retira-se do mundo (budismo118) ou fechase com atos fundamentalistas, sectários, proselitistas que surgem como formas de fanatismo, suicídio e terrorismo119. Ou ainda o enfrenta, com seus valores fundamentais120. O seu empenho pelas questões sociais e humanitárias pode garantir à religião um futuro como instituição. Neste campo, ela tem algo a oferecer à humanidade121. Ela não perdeu seu espaço na sociedade. O que se alterou foi a sua forma de atuação. (Libânio, 2002, p. 269-270). O que, na verdade, as religiões estão expressando é que no interior de cada ser humano há um desejo e uma busca por algo além de si mesmo, uma busca pelo Transcendente capaz de oferecer consolo, acolhida e realização. É, porém, uma demanda pluralista. (Libânio, 2002, p. 270). A demanda sendo extremamente diversificada, pede também uma oferta também plural: expressões tradicionais, proféticas, apocalípticas, neomísticas, esotéricas e seculares travestidas, 115
Mesmo com a desprivatização da religião, ocorreu a reprivatização da religião que se acentuou intensamente por meio do neoliberalismo, o qual “provoca uma religiosidade individualista, que vem ao encontro dos anseios pessoais. Suas formas religiosas não carregam nenhum potencial crítico-social, deixando intacto o sistema” (Libânio, 2002, p. 140). Cf. LIBÂNIO, João Batista. Momento de Reprivatização da Religião. In: _____. A Religião no Início do Milênio. São Paulo: Loyola, 2002. p. 139 – 151. 116 O neoconservadorismo americano visa a “salvar o capitalismo americano da previsível ruína por causa da sua crise espiritual. Só a religião é capaz de sanar culturalmente o capitalismo para fazer continuar seu progresso econômico. Ela cumpre descaradamente o papel de ser o sustentáculo espiritual do neoliberalismo” (Libânio, 2002, p. 153). Cf. LIBÂNIO, João Batista. Neoconservadorismo Americano. In: _____. A Religião no Início do Milênio. São Paulo: Loyola, 2002. p. 152 – 154. 117 Essa teologia é feita para alimentar as igrejas que confirmam o sistema neoliberal. Essa religião é materialista, preocupa-se com os bens materiais. (Libânio, 2002, p. 155). Cf. LIBÂNIO, João Batista. Teologia da Prosperidade. In: _____. A Religião no Início do Milênio. São Paulo: Loyola, 2002. p. 155 – 157. 118 O Budismo no Ocidente “cumpre uma posição de distância crítica diante dos valores modernos e pósmodernos [grifo do autor]” (Libânio, 2002, p. 162-163). Cf. LIBÂNIO, João Batista. Budismo no Ocidente. In: _____. A Religião no Início do Milênio. São Paulo: Loyola, 2002. p. 162 – 165. 119 Cf. LIBÂNIO, João Batista. A Religião não só se fecha diante da cultura moderna e pós-moderna, mas também toma uma atitude agressiva contra ela. In: _____. A Religião no Início do Milênio. São Paulo: Loyola, 2002. p. 167 – 171. 120 Para saber mais: Cf. LIBÂNIO, João Batista. A religião enfrenta o sistema neoliberal, a cultura moderna e pós-moderna. In: _____. A Religião no Início do Milênio. São Paulo: Loyola, 2002. p. 171 – 182. 121 Para conhecer a sua atuação: Cf. LIBÂNIO, João Batista. O Futuro da Religião. In: _____. A Religião no Início do Milênio. São Paulo: Loyola, 2002. p. 182 – 198.
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milagres, diferentes gnoses, cenas ecológicas, sonhos e visões, comunidades emocionais. Para oferecer tais produtos religiosos, multiplicam-se as instancias religiosas. Para muitos adeptos do fenômeno religioso qualquer igreja ou religião serve, desde que lhes ponha à disposição o alimento religioso desejado. Chamem-se religiões, igrejas, seitas, Nova Era122, neopaganismo, Renovação Carismática Católica123, pentecostalismo ou neopentecostalismo124 etc. (Libânio, 2002, p. 270).
Diante de pluralidade das religiões, cabe ao ser humano ser prudente na sua escolha, para que não se perca a si e a humanidade. (Libânio, 2002, p. 271).
3.3 TORNAR-SE CRISTÃO
Após discorrer sobre o legado do pensamento de Kierkegaard e o que é pós-modernidade, é possível aproveitar agora a mensagem existencial cristã de Soren. O segundo capítulo desta monografia expôs o que é o homem para Kierkegaard, procurando enfatizar o terceiro estádio do caminho da vida. Porém, não explorou a dimensão cristã do ser humano. Cabe agora refletir sobre o que significa ser cristão para o pensador dinamarquês. Deve-se ressaltar que o objetivo primeiro de Kierkegaard foi descrever o que é o cristianismo verdadeiro.
3.3.1 Migalhas Filosóficas A obra Migalhas Filosóficas125, de Kierkegaard, foi publicada em 1844 sob o heterônimo de Johannes Climacus. Segundo Gouvêa, esse livro é “um tratado de apologética cristã” (2006, p. 282). A obra versa sobre a “questão da história e da liberdade, vistas pelo prisma dos temas cristãos do pecado e da graça” (Paula, 2001, p. 68). Também trata sobre a existência de Deus, a questão da contemporaneidade com Cristo, o conceito de paradoxo absoluto etc. Climacus é um estudioso que acredita que a filosofia sistemática não é capaz de explicar a vida e o cristianismo. Ele não se considera cristão, mas julga ter uma compreensão mais coerente sobre o que é o cristianismo. Na cristandade todos são chamados de cristãos, sem sê-los de fato. Climacus é
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Cf. LIBÂNIO, João Batista. Nova Era. In: _____. A Religião no Início do Milênio. São Paulo: Loyola, 2002. p. 36 – 39. 123 Cf. LIBÂNIO, João Batista. Renovação Carismática Católica. In: _____. A Religião no Início do Milênio. São Paulo: Loyola, 2002. p. 33 – 35. 124 Cf. LIBÂNIO, João Batista. Pentecostalismo e Neopentecostalismo. In: _____. A Religião no Início do Milênio. São Paulo: Loyola, 2002. p. 170 – 171. 125 Segundo Roos, Migalhas Filosóficas pode ser percebido como um “texto de relevância eminentemente filosófica ou eminentemente teológica, ou ainda uma inteligente e criativa articulação de ambas, é fundamental a compreensão de que a possibilidade da consciência da não-verdade deve ser trazida de fora” (2007, p. 131). Esse livro é um projeto alternativo ao socrático.
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Um desmascarador da teologia e da filosofia especulativas. Ele é um humorista, no sentido kierkegaardiano, e deve ser entendido como uma ponte do estágio ético para o religioso. Climacus pode também ser entendido como um cético religioso par excellence, na tradição de Montaigne, Pascal, Bayle e Hamann. (Gouvêa, 2006, p. 312).
Em Migalhas Filosóficas como em Post-Scriptum Não-Científico Concludente, De Hominibus Dubitandum Est (1842-1843), Kierkegaard aprofunda o tema “instante”, compreendendo-o como o instante religioso. Para conceituá-lo, é preciso responder a pergunta: como se apreende a verdade? Tal pergunta se encontrava em Menon, de Platão, e que Sócrates se propôs refletir. Para Sócrates126, a verdade já se encontra no homem, basta que a relembre, fazendoa acorda. Isso é a teoria da reminiscência, pela qual o homem pode descobrir a verdade por si mesmo. O seu ponto de partida temporal é o nada, e assim o instante não tem mínima importância. (Paula, 2001, p. 65). O instante é reabsorvido e incorporado pelo tempo. Ele se perde no tempo. Contudo, para o autor dinamarquês o instante só é decisivo quando não for compreendido socraticamente, mas de modo cristão. Logo, para o instante ser decisivo o discípulo é a nãoverdade, ele não pode chegar à verdade pelos seus próprios esforços, mas com a ajuda do Mestre que o faz lembrar que ele é a não-verdade e que somente o mestre dá a condição para que o discípulo entenda. O mestre pode transformar o discípulo, porém, não pode recriá-lo. Só Deus pode recriar o discípulo, visto que foi Deus quem o criou e lhe deu a condição de compreender. (Paula, 2001, p. 65-66). Na visão de Kierkegaard, o instante é decisivo, porque o discípulo não tem condição de compreender sozinho: encontra-se em estado de pecado, está afastado de Deus e da verdade. (Paula, 2001, p. 66). Somente Deus, que é Mestre, pode dar a condição e a verdade (Kierkegaard, 1971, p. 190). Ele possui quatro características: Salvador, Libertador, Reconciliador e Juiz: Ele é Salvador, pois salva o discípulo da não-liberdade, salvando-o de si mesmo. Ele é Libertador, visto que liberta aquele que era prisioneiro de si mesmo. Ele é reconciliador, pois reconcilia o discípulo que se tornara culpado pelo uso de sua não-liberdade, isto é, o mestre lhe dá a condição e a verdade, retirando a cólera suspensa sobre a culpa. Ele é o Juiz, pois, se novamente adquirimos a condição de compreender, seremos responsáveis pelas nossas ações e estaremos conscientes delas. (Paula, 2001, p. 66-67).
Além de ser decisivo, o instante é breve, singular, decisivo e composto de eternidade plena. O instante é “uma plenitude dos tempos”. Por isso, o instante contribui para que o discípulo
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Sócrates é discutido junto com o Cristo sobre o que é a verdade. O homem em Sócrates é um homem comum (pagão), ao contrario do homem renascido (cristão), isto é, existe uma diferença de como o homem apropria-se da verdade. Cf. PAULA, Marcio Gimenes de. A Diferença entre o Projeto Socrático e o Projeto de Kierkegaard. In: _____. Socratismo e Cristianismo em Kierkegaard: escândalo e loucura. São Paulo: Annablume, 2001. p. 72-82.
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se torne um novo homem, converta-se127. “Ele sai do não-ser para o ser, ele renasce e supera o estado de pecado [grifo do autor]. No instante desse renascimento128 ele se torna consciente, pois seu estado anterior era o do não-ser” (Paula, 2001, p. 67). Essa mudança do não-ser para o ser possui algumas características (Paula, 2001, p. 67): a) essa decisão do deus129 é eterna: ao se realizar no tempo, torna-se o instante; b) o instante nasce do choque entre decisão e ocasião, isto é, é decisão eterna para Deus e ocasião para o homem. Porém, como ação do deus no tempo, isso se torna mais do que ocasião para o homem, transforma-se em instante decisivo; c) ocorre a dialética do instante. Em Sócrates não dá para ver o instante nem para discerni-lo. Por isso, para Sócrates, o discípulo é a verdade, e o instante da ocasião é a aparência; d) o instante socrático é falso e o instante da decisão é loucura. Afinal, se há uma decisão para ser tomada, o discípulo se tornaria a não-verdade. É exatamente isso que torna necessário o começo do instante; e) o instante é, de fato, decisão na eternidade: Deus no tempo, nascido, crescido e sofrendo por amor aos homens; f) o instante é o paradoxo, senão retorna-se ao modelo socrático. O instante é a plenitude dos tempos130: é o composto da decisão eterna de Deus e da decisão humana. O homem quando está em estado de pecado, mantém-se distante da sua condição original e da verdade. Para ser um novo homem, unificar a sua personalidade, precisa algo de fora, exterior a ele, isto é, Deus, o Salvador. (Paula, 2001, p. 68). O Mestre e Salvador “representa o fim da distância entre o homem e Deus, ele é a verdade e fornece a condição para que o homem possa compreendê-la. Ele é a própria possibilidade de compreensão que surge no reconhecimento da diferença entre Deus (Mestre e Salvador) e o homem” (Paula, 2001, p. 68). Isso só é possível porque Deus age por amor, não por necessidade. O amor é o motivo (causa) e fim (propósito) da ação de Deus. Mas é um amor solitário, porque só deus pode entender 127
A conversão acontece quando o homem dá conta de que é a não verdade e toma consciência da sua culpa no instante. Quando recebe a condição, arrepende-se e converte-se. Assim sucede uma mudança do não-ser para o ser. Ele renasce. Aproxima-se da verdade. Ele se converte. (Paula, 2001, p. 77). 128 O momento de renascimento é a “passagem pela qual o discípulo vem ao mundo uma segunda vez, tudo como pelo nascimento, como um homem isolado, que ainda não sabe nada do mundo em que nasce, se é habitado, se existem outros homens, pois pode-se certamente ser batizado en masse [grifo do autor], mas jamais renascer en masse [grifo do autor]”. (Kierkegaard, 1995, p. 39). 129 A palavra deus tem a letra d em minúscula porque se refere ao divino. 130 “Tal instante é de uma natureza particular. Sem dúvida é breve e temporal como o é todo instante, passando como todos os outros, ao instante seguinte. E, não obstante, é decisivo, pleno de eternidade. Esse instante deve verdadeiramente ter um nome. Chamemo-lo: a plenitude dos tempos” (Kierkegaard, 1971, p. 191).
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esse amor e só ele pode amar tão intensamente o desigual, a ponto de se rebaixar em favor desse. O ser humano e deus são diferentes, mas deus o faz igual através do amor, visto que a igualdade é fundamental para que o discípulo e o mestre se compreendam. (Paula, 2001, p. 79). Aliás, foi por amor que deus se faz servo, se fez homem. “O servo se humilha e se aflige para a salvação da humanidade. O sofrimento do servo é real e amoroso” (Paula, 2001, p. 81). Esse sofrimento provoca uma mudança no discípulo que dá importância a esse rebaixamento de deus.
3.3.2 Como tornar-se cristão131? É Deus “que dá a condição e que dá a verdade” (Kierkegaard, 1971, p. 129) para o homem. O ser humano é a não-verdade, está em estado de pecado. Isto significa que na obra salvífica de Deus existe um “caráter de negatividade para com os humanos, uma negatividade que parte de Deus mesmo ao mostrar o pecado ao ser humano, trazer a consciência do pecado, da nãoverdade do ser humano” (Roos, 2007, p. 130). Pelos olhos da fé, o homem vê se numa situação de pecado e dá conta do rebaixar-se de deus. Enquanto que o pecado afasta o ser humano de Deus, a redenção o leva para mais perto dele: “Enquanto que o pecado é uma alienação do ser humano em relação a Deus, a consciência do pecado é um movimento de reaproximação a Deus realizado por Deus mesmo” (Roos, 2007, p. 132). O princípio do tornar-se cristão é, portanto, a consciência do pecado. Assim, é fundamental a relação entre o mestre e o discípulo para que este tome consciência da sua situação e para que a condição de verdade seja recebida no tempo. Isso é o cristianismo, que não é uma compreensão de doutrina, mas uma relação do indivíduo com Deus. (Roos, 2007, p. 132-135). Além disso, o cristianismo é compreendido a partir da tensão constante entre juízo e graça, que não podem ser separados, já que o juízo é algo intrinsecamente dependente da condição graça. É Deus quem abre os olhos do discípulo para enxergar a si mesmo. Juízo e graça são revelados ao indivíduo, de modo paradoxal, no mesmo instante. Sem juízo, a graça tem seu sentido borrado, e o juízo, por sua vez, já é atuação da graça mesma. (Roos, 2007, p. 135). Logo, juízo e graça contribuem para o processo de tornar-se cristão:
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Há uma tese de doutorado que analisa o Paradoxo Absoluto sob a perspectiva do tornar-se cristão que acontece sob juízo e graça no encontro com o Paradoxo Absoluto. Cf. ROOS, Jonas. Tornar-se cristão: o Paradoxo Absoluto e a existência sob juízo e graça em Soren Kierkegaard. 2007. 247f. Tese (Doutorado) – Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Teologia, São Leopoldo, 2007.
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O processo de tornar-se [grifo do autor] cristão é a própria vida cristã, é perpassada pela tensão de entender-se justo [grifo do autor] na constante apropriação da graça e da obra salvífica de Cristo e pecador [grifo do autor] no constante juízo advindo do não cumprimento da exigência da lei e da consciência do pecado tornada possível em sua radicalidade através da obra de Cristo. Nesse sentido, o tornar-se cristão em Kierkegaard mantém uma referencia constante ao paradoxo do Deus-Homem, é uma questão cristocêntrica e, por implicação, mantém a tensão entre juízo e graça. Dois elementos perpassam o torna-se cristão. Duas percepções devem estar sempre presentes. De um lado percebe-se aquele que exige e aniquila e, de outro, aquele que salva. Os dois não podem ser separados e nem confundidos. Ou é mantida a tensão constituinte de juízo e graça ou os dois lados se perdem. Por outro lado, se aquilo que exige vem a ser entendido como o que salva, ou se a salvação depende do cumprimento da lei, toda a cristologia e a doutrina a redenção vêm a ter seus sentidos borrados. (Roos, 2007, p. 138).
O tornar-se cristão é uma relação paradoxal que se repete (reduplicação) no encontro do discípulo com o mestre sob juízo e graça. Um encontro que acontece com angústia, tribulação e paradoxo. Tal encontro e relação só são visíveis para os olhos da fé. (Roos, 2007, p. 146). Mas esse novo homem, que experimenta o paradoxo e o desespero, que é a doença para morte, tem a tarefa de se tornar um self132 (indivíduo) que pressupõe, por sua vez, uma dádiva. (Roos, 2007, p. 157). Ademais, o self tem Deus como telos, uma vez que somente no relacionamento com Deus, pela fé, o ser humano pode tornar-se efetivamente um self. É a fé que cura o desespero, na medida em que recupera o caráter da possibilidade e da infinitude no momento em que tudo parece finitude e necessidade. Sem fé não há contato com Deus nem superação do desespero. (Roos, 2007, p. 157-167). Contudo, “a fé não apazigua a consciência133, não garante ao crente que ele será tocado pela graça – e sim lança-o em incertezas que alimentam tanto mais sua angústia quando o desafio é a beatitude eterna de sua alma, sua Salvação” (Blanc, 2003, p. 76) Nesta condição de pecado e de incerteza, o ser humano pode entrar, como Indivíduo, em relação absoluta com o Absoluto, uma relação que é única e pessoal. (Blanc, 2003, p. 76). É pelo seu estado de precariedade, fruto da consciência de sua finitude e de sua fraqueza, que o homem se torna Indivíduo. Por meio da escolha, da decisão e da possibilidade, ele se torna, se faz! É aqui que entra em cena a figura de Deus, o qual lhe oferece a condição e a verdade. Uma verdade existencial. Com isso o ser humano torna-se cristão. Para Kierkegaard, não se é cristão por tradição, por dogmas, por área geográfica e por outros motivos, mas pela relação de Deus com o homem.
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“Tornar-se um self, o tornar-se cristão [grifo do autor], é analogamente um movimento paradoxal de abandono e recuperação onde elementos aparentemente excludentes são reunidos [grifo do autor]. Este movimento é perpassado pelo processo de reconhecimento do desespero como separação daquilo que deveria estar unido e reunião daquilo que fora separado ao se repousar em Deus pela fé” (Roos, 2007, p. 169). 133 “Se a fé é o remédio para o desespero, leva o indivíduo além da razão e de toda possibilidade de compreensão, porque a fé é absurdo, paradoxo, escândalo. O Indivíduo tem o dever de assumir uma posição na existência, uma posição diante de Deus, tem o dever de perder sua razão para conquistar Deus, o que é justamente o próprio ato de crer (...). A fé é ao mesmo tempo reviravolta da existência e seu porto de matrícula. Como a existência se caracteriza pela precariedade absoluta ligada à possibilidade, a fé instaura entre o eu e o mundo, entre eu e ele mesmo, uma relação de estabilidade que apaga angústia e desespero apenas pelo princípio de que para Deus tudo é possível [grifo do autor]”. (Blanc, 2003, p. 90).
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O homem torna-se cristão quando encontra com Cristo, tornando-se contemporâneo de Cristo. Assim, a fé é a única possibilidade de encontro do indivíduo com Cristo. Não são os anos, os períodos históricos ou a região que irá fazer alguém tornar-se cristão. Este encontro com Cristo possui um caráter absoluto de contemporaneidade (Roos, 2007, p. 190-191). Não existe nenhum discípulo de segunda mão. Visto essencialmente, o primeiro e o último são iguais, só que a geração posterior tem a ocasião no relato do contemporâneo, enquanto que a contemporaneidade imediata, e nesta medida não deve nada a nenhuma geração. Mas esta contemporaneidade imediata é mera ocasião, e isso não pode expressar-se mais enfaticamente do que dizendo-se que o discípulo, se se [sic] compreendeu a si mesmo, justamente teria de desejar que ela cessasse, o deus deixando novamente a terra. (Kierkegaard, 1995, p. 148).
Não há diferença de discípulos, uma vez que todos entram em relação absoluta com o Absoluto, o qual convida o ser humano a “um seguimento, a um discipulado, a uma imitação” (Roos, 2007, p. 194). Eis, portanto, o verdadeiro cristão. Ele tem Jesus Cristo como modelo, padrão, paradigma de vida. Tornar-se aprender a descansar na graça, ser responsável pelos seus atos, pelos seus pecados: esta é a vocação do ser humano, chamado a percebe-se, ao mesmo tempo, justo e pecador. Neste caso, a paradoxalidade de juízo e graça deve ser mantida. A verdade vem até ao homem e o convida a segui-la. Seguir a verdade da vida, que é Jesus Cristo, é pôr-se a caminho e tentar assemelhar-se ao Cristo134. É uma vivência pessoal que não pode ser reduzida a doutrinas, habilidades ou conhecimentos específicos. (Roos, 2007, p. 202-203). Tornar-se cristão significa imitar Cristo no sentido de ser a verdade. A partir do encontro com Cristo em graça, quando os olhos da fé vêem o redentor, o mandamento não mais deve ser cumprido de forma legalista, numa tentativa de justificar-se pelo seu cumprimento. Em espírito de gratidão pela obra de Cristo operada em nós, o mandamento pode, agora, ser visto como orientação ao discipulado para o indivíduo que, em fé, procura tornar-se e ser a verdade à semelhança de Cristo. Usando uma linguagem um pouco diferente, Kierkegaard está 134
Seguir Jesus Cristo é viver uma verdade para ser vivida. Seguir os seus mandamentos. É relacionar-se individualmente com Deus. Ser cristão é não é viver uma vida estética, não se preocupar com as coisas terrenas, mas se preocupar com as coisas do Reino dos céus. Jesus é o exemplo. Sobre o caminho de Jesus, Kierkegaard diz: “Deus não tomou a forma de um servo para zombar dos homens (...). Ele se humilhou tomando a forma de um servo, mas não veio evidentemente para viver como um servo assalariado desse ou daquele, ocupando-se de suas tarefas, sem se dar o conhecer nem a seu mestre nem aos outros servos. Não ousaríamos evidentemente atribuir semelhante atitude a um Deus. O fato de ter tomado a forma de um servo significa somente que era humilde condição, homem de pouco que não se distinguia da massa nem por seus hábitos suntuosos nem por qualquer outra vantagem terrestre, que a gente não podia distingui-lo dos outros homens (...). Mas embora tem sido homem de pouco, suas preocupações não serão como as dos homens em geral. Seguirá o seu caminho, despreocupado dos bens da terra e de sua distribuição, como aquele que nada possui e nada deseja possuir, despreocupado de sua alimentação como as aves do céu, despreocupado da casa e do lar, como aquele que não tem ninho nem pouso e não os procura, despreocupado de seguir os mortos até sua última morada, sem se voltar para nada daquilo que geralmente atrai a atenção dos homens, sem ligações com nenhuma mulher, sem estar sob o seu encanto, nem de querer agradá-la, mas procurando apenas o amor do discípulo (...). O ensinamento de sua doutrina é sua única necessidade vital, seu alimento e bebida. Ensinar aos homens é seu trabalho, do qual repousa ocupando-se de discípulos. não tem amigos, nem parentes, mas o discípulo é seu irmão e sua irmã (...)”. (Kierkegaard, 1971, p. 202).
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trazendo para dentro de sua ética a implicação daquilo que Lutero diz da pessoa cristã, que ela deve ser “Cristo para o próximo”. Nisso consiste o discipulado enquanto imitação de Cristo. Essa identificação com Cristo é a identificação com o amoroso, com aquele que se tornou igual aos humanos por amor, não mudando o amado, mas mudando a si mesmo. Nesse sentido, toda a compreensão de cristianismo em Kierkegaard desembocará no discipulado como amor ao próximo tendo por fundamento o amor divino. (Roos, 2007, p. 206-207).
3.3.3 O Amor Cristão
Em 1847, Kierkegaard publicou, com o seu próprio nome, o livro As Obras do Amor: algumas considerações cristãs em forma de discursos. Este título, de acordo com Valls, tem uma dupla origem: Nasce do Banquete platônico e do Cristianismo. Do Symposion: Sócrates lá se queixa de que a combinação prévia era louvarem o deus Eros, mas em vez disso os debatedores se teriam restringido a expor “as obras do amor efetuadas no coração dos mortais”, isto é, em vez de elogiarem o próprio Amor (Éros), discursavam sobre suas obras, seus efeitos. Pois agora o autor do livro de 1847 leva em conta esta observação, dizendo no Prefácio: “São ‘considerações cristãs’, por isso não sobre – ‘o amor’, mas sim sobre – ‘as obras do amor’”. (2000, p. 119).
Para Gouvêa, a obra “representa a tentativa mais sistemática de Kierkegaard de desenvolver uma espécie de ética cristã (...). As obras do amor (...) são a expressão espontânea de nosso próprio ser depois de ser transformado pela fé” (2006, p. 290). Ademais, o livro “trabalha com distinções e esclarecimentos conceptuais [sic] que visam determinar o entendimento especificamente cristão de amor e, por conseqüência, o discipulado mesmo naquilo que é seu próprio” (Roos, 2007, p. 207). A relação individual e subjetiva com Deus se concretiza em obras, que são frutos do amor. A fé gera a ação que é o amor que provém, por sua vez, de Deus. Assim, Kierkegaard apresenta “uma ética a partir dos conteúdos do cristianismo, ou a chamada ‘segunda Ética’” (Roos, 2007, p. 208). Esse amor, que opera no indivíduo, é uma dádiva de divina. Sem Deus primeiro o ser humano não é capaz de amar o próximo135. As obras de amor que o homem realiza são fruto da gratidão pela graça e pelo amor recebido de Deus. (Roos, 2007, p. 209-210). O amor não é só um dom, mas também uma tarefa, um dever. Kierkegaard fundamenta esse seu pensamento em Mateus 22, 37-39, quando Jesus diz: “Ame ao Senhor seu Deus com todo o seu coração, com toda a sua alma, e com todo o seu entendimento. Esse é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante a esse: Ame ao seu próximo como a si mesmo”. A partir desse segundo mandamento, o amor se torna um dever que não se confunde com uma obrigação fria 135
“Pois é o amor cristão que descobre e sabe que o próximo existe e – o que dá no mesmo – que cada um é o próximo. Se amar não fosse um dever, também não haveria o conceito do próximo; mas só se extirpa o egoístico da predileção e só se preserva a igualdade do eterno quando se ama o próximo” (Kierkegaard, 2005, p. 63).
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e enfadonha136. A riqueza do amor consiste neste tu deves. É um amor desinteressado, não egoístico e grato. (Roos, 2007, p. 211). Diferentemente do amor cristão, há o amor natural que “tem o critério de sua ação fora de si, no objeto e em suas possíveis qualidades” (Roos, 2007, p. 212). Ele tem duração, mas não tem continuidade. É um amor de predileção, que escolhe amar alguém; é interesseiro, egoístico. Esse é amor é caracterizado na vida estética. Enquanto o amor natural ama o que o homem vê, o amor cristão convida o ser humano a se fazer próximo do outro137. O amor cristão busca auxiliar aquele que está aí necessitado ferido, humilhado, ultrajado, assaltado, e não se trata evidentemente, de uma relação estética ou erótica, pois não há beleza no pobre coitado (...). Tratase do dever puro e simples de auxiliar um irmão, que se encontra numa situação de penúria ou necessidade (...). Se amamos por dever, é porque estamos convencidos, no paradoxo da fé, de termos encontrado um irmão, ou simplesmente (...) “o próximo”. Aí começa e termina a “semelhança”, pois “o ensinamento cristão é de amar o próximo, amar todo o gênero humano, todos os homens, até mesmo o inimigo, e não fazer exceção, nem a da predileção e nem a da aversão” [grifo do autor]. (Valls, 2000, p. 128-129).
O amor cristão tem por paradigma Jesus Cristo: ele amou incondicionalmente e veio ao encontro dos homens, oferecendo auxílio a todos que necessitavam, sem distinção e interesse. É o amor de Cristo que edifica138. “Ele é o fundamento de toda a relação amorosa que o eu estabelece. Sobre e fundamento acontece a edificação” (Roos, 2007, p. 222). “Edificar é uma obra de amor onde o indivíduo é convidado a, a partir do amor de Deus, edificar amor na outra pessoa. O indivíduo, neste caso, se torna um canal para a edificação do amor no próximo” (Roos, 2007, p. 223). Enfim, no discipulado o paradoxo continua na intensidade da relação entre juízo e graça. Tornar-se cristão é um processo contínuo. Seguindo a Cristo, o ser humano percebe as suas limitações, a sua fraqueza, o seu pecado. (Roos, 2007, p. 228). Ao se apoiar em Deus, o homem perde 136
O dever é interiorizado e não vem de um objeto exterior. O fundamento da ética é a interioridade do sujeito. O Individuo a ama no Espírito do Amor. o qual contribui para uma melhor relacionamento com Deus, consigo mesmo e com Deus. 137 Quem é o próximo? “A pergunta não deve ser coloca no sentido de tentar descobrir quem é meu próximo, no sentido de querer saber quem está próximo de mim, mas si de quem eu devo me tornar próximo (...). O amor cristão (...) somente pode acontecer nesta correspondência entre amar a Deus e ao próximo, a pessoa que eu vejo, escuto, toco, sinto o cheiro, enfim, aquele ou aquela que encontro e por quem sou encontrado, interpelado, na existência concreta. Trata-se de amar a pessoa que eu vejo, e não a pessoa que eu quero ver, a pessoa que está diante de mim e que não pode ter nenhuma qualidade que me atrai ou a virtude a retribuir. Tudo aqui gira novamente em torno da extirpação do egoístico, do amor que ama sem esperar nada em troca (...)”. (Roos, 2007, p. 216-219). 138 “O amor é edificante (...). Edificar significa construir qualquer coisa a partir dos fundamentos (...). O amor é a origem de tudo e, no sentido espiritual, o amor é o fundamento o mais profundo da vida espiritual (...). O amor é o fundamento, o amor é construção, o amor edifica. Edificar significa construir o amor e é o amor que o constrói (...)”. (Kierkegaard, 1971, p. 320).
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“o que jamais perdeu homem algum que se tenha apoiado no mundo, nem mesmo perdeu o homem que mais perdeu – tu perderás absolutamente tudo”. E isto também é verdade, pois o mundo não é capaz de tirar verdadeira tudo, justamente porque ele não é capaz de dar tudo, isso só Deus pode fazer; Deus, que tira tudo, tudo, tudo – para dar tudo (...). (Kierkegaard, 2005, p. 127).
3.3.4 Crítica à Cristandade Para Farago, Kierkegaard “teve um olhar visionário sobre o futuro, ainda mais penetrante que o de Nietzsche, porque enxergou mais longe que ele. Ele assentou as balizas da ressurreição possível de um cristianismo inteligente” (Farago, 2006, p. 15). Ele procurou escavar os conceitos do cristianismo (Roos, 2007, p. 229). É possível perceber isso numa carta de Kierkegaard endereçada ao Wilhelm Lund (1801-1880) que veio para o Brasil em 1825, a fim de curar-se da tuberculose. Dr. Lund se interessava pela pesquisa de fósseis e centrou o seu trabalho nas úmidas cavernas de Lagoa Santa (MG). Kierkegaard o conhecia pessoalmente por causa dos laços familiares. Os irmãos de Lund, Henrik Ferdinand e Johan Christian, casaram-se com as respectivas irmãs de Kierkegaard, Pétrea Severine e Nicoline Christine. (Roos, 2007, p. 229). Kierkegaard faz uma comparação do seu trabalho com o Dr. Lund: Wilhelm Lund – Ocorreu-me hoje a idéia de quanto sua vida assemelha-se à minha. Assim como ele vive no Brasil, perdido para o mundo, mergulhado nas escavações [sic] dos estratos antediluvianos, assim vivo eu, como se estivesse fora do mundo, perdido a exumar [sem grifo no original] os conceitos cristãos. Ai de mim! – e dizer que vivo na cristandade, onde o cristianismo está em plena floração, ergue-se em sua exuberância com seus mil pastores e onde todos somos cristãos. (Kierkegaard, 1971, p. 45).
Na verdade, Kierkegaard viveu “preocupado com o significado do tornar-se e ser cristão na cristandade luterana da Dinamarca” (Roos, 2007, p. 230). “Exumar” é sua tarefa. A sua missão que Não consistia em pregar o cristianismo nem em inventar nova doutrina, tampouco numa interpretação filosófica do cristianismo, mas só em desenterrar e reencontrar os conceitos em sua originalidade/primitividade e trazer à luz do dia aspectos essenciais dos conceitos fundamentais do cristianismo do Novo Testamento, o que implica numa crítica, em especial a formar que à época passavam por cristãs. (Valls, 2007, p. 390).
Em nome do cristianismo, Kierkegaard criticou a cristandade. (Valls, 2007, p. 390). Para ele, cristianismo e cristandade não são a mesma coisa. Essa sua convicção se expressa inclusive nos termos que utiliza no momento de falar da religião cristã: Christenhed e Christelighed. (Valls, 2007, p. 391). Esse último termo corresponde à palavra det Christelige que, no alemão, traduz-se por das Christliche, que significa que é o cristão, podendo ser chamado de “o crístico”. (Valls, 2000, p. 188). A cristicidade é a qualidade do ser-cristão, que é diferente da cristandade, compreendida como
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o conjunto de povos ou países assim chamados “cristãos”. Ser-cristão é uma postura de vida, um “modus vivendis”. É seguir Cristo, que não é uma figura majestosa e gloriosa, mas um personagem incógnito e paradoxal, um sinal de contradição que se fez servo e se sacrificou para salvar todos. (Valls, 2007, p. 392). Esta a razão das críticas de Kierkegaard ao bispo Mynster que havia “desfibrado o cristianismo, suavizando-o; traíra suas exigências, escondera seu rigor, levando-o a sério só até certo ponto; mudara-o em cultura e entretenimento dominical, conforto espiritual; falseara o cristianismo ao reduzi-lo ao gosto popular” (Valls, 2007, p. 394). Por mais paradoxal que seja, Kierkegaard reconhece-se como não-cristão: “Eu não digo que sou cristão, nem pretendo mesmo sê-lo”. Eis o que preciso repetir sem cessar. Eis o que qualquer um que quiser compreender a minha tarefa deve cuidar de manter presente ao espírito. Certamente, sei muito bem: neste mundo cristão em que cada um e todos são cristãos, em que, pois, é natural que cada um faça profissão de fé de ser cristão, é uma espécie de loucura que um homem diga de si mesmo: não digo que sou cristão e sobretudo quando se trata de um homem que o cristianismo preocupa ao ponto em que me preocupa. (Kierkegaard, 1971, p. 342-343).
Ele argumenta isso devido ao fato de que todos os dinamarqueses se consideram como cristão. Mas viver o cristianismo é sofrer, viver na tensão do juízo e da graça, no paradoxo da fé. Por isso, o pensador dinamarquês diz que não é cristão como pensam os conterrâneos. Mas, afinal, o que significa tornar-se cristão? Tornar-se cristão, como o entende o N. T. [Novo Testamento], é sofrer uma transformação tão radical que, no simples ponto de vista humano, o sofrimento mais acabrunhador para uma família é ver um dos seus tornar-se cristão. Semelhante cristão, com efeito, vê sua relação com Deus tomar uma tal supremacia que não está “como” perdido, mas o é a tudo que se chama família (...). O tornar-se cristão está destinado como faz o dentista pondo a nú a gengiva, a arrancar o indivíduo ao complexo onde o liga a paixão imediata e que lhe está ligado nesta paixão (...). O cristianismo da “cristandade” é também o contrário daquele do N.T.! A cristandade ganhou a partida e este triunfo celebra-se da maneira a mais apropriada numa verdadeira orgia de comes e bebes, numa bacanal selvagem onde os pastores e parteiras conduzem a dança (...). Tornar-se cristão supõe, segundo o N. T., um crescimento humano acabado, a maturidade, a virilidade no sentido natural, para tornarse cristão rompendo com todas as coisas às quais se está ligado imediatamente. Tornar-se cristão supõe, segundo o N. T., a consciência pessoal do pecado e a consciência de ser um pecador (...). A tarefa de tornar-se cristão é enorme (...). O cristianismo do N.T. é de uma sublimidade infinita, mas observa bem, não é uma sublimidade que olha as diferenças de talento dos indivíduos. Não, ele é para todos. A cada um, sem exceção, é acessível esta sublimidade infinita se se quiser odiar-se a si mesmo, sem reservas, aceitar todo o destino e tudo sofrer, sem reservas. E cada um o pode, se quiser (...). (Kierkegaard, 1971, p. 337-346).
Portanto, tornar-se cristão é engajar-se, é colocar-se radical e completamente, sem nenhuma garantia, sob o chamado da Transcendência. Tornar-se cristão é missão, vocação e testemunho da verdade que é Cristo. (Blanc, 2003, p. 136). Soren Kierkegaard foi um missionário para a cristandade, pois perdeu a chance de se tornar pastor e de se casar com Olsen. Ele preferiu louvar a Divina Providência e fundamentar a sua vida nela. Também percebeu “a chance de se tornar alguém interessante [grifo do autor] do ponto
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de vista estético, ou seja, de se tornar mais um dentre outros. Antes, opta por ficar entre um Sócrates – ignorante [grifo do autor] e ironista – e Cristo, a suma (e incompreendida) verdade” (Paula, 2002, p. 198).
3.4 MOMENTO CRÍTICO
Soren Kierkegaard viveu no século XIX. Um século marcado por revoluções sociais, políticas, culturais e científicas. Ele experimentou as angústias que presentes na vida do ser humano. Diante de um mundo caracterizado pela massificação, pela perda da singularidade, Kierkegaard resgatou o significado de indivíduo. O homem é um ser singular chamado a eleger-se a si mesmo, tornando-se responsável pelos seus atos. O pensamento de Soren encontrou significativa ressonância no século XX. Mounier representa uma corrente da filosofia contemporânea que procurou entrar, com respeito, no coração do pensamento de Kierkegaard. Ao ler o livro Introdução aos Existencialismos, é possível perceber o seu esforço em interpretar as idéias de Kierkegaard. Isso não significa afirmar que as considerações que Mounier faz do pensamento de Soren não contenham algumas lacunas. Um exemplo é quando Mounier diz que a obra de Kierkegaard é “uma conversação sinuosa, onde muitas vezes, aparentemente, nos perdemos” (1963, p. 33). Mounier também diz que: Kierkegaard era demasiado esteta e sobre si próprio o virava todo um aspecto da sua personalidade, para que possa ser insuspeito de misturar aqui um humor singular com a sua reflexão sobre o estreito caminho da existência. Sempre o preocupou muito mais o problema da expressão e seus limites do que o da comunicação. (Mounier, 1963, p. 139-140).
Contrariamente a essa visão de Mounier, Marcio G. de Paula, Álvaro Valls, Jonas Roos e Ricardo Q. Gouvêa – considerado como um dos melhores estudiosos de Kierkegaard do Brasil defendem a idéia de que, primeiramente, o método literário de Kierkegaard é um método reflexivo. Nunca foi intenção de Kierkegaard escrever como os filósofos sistemáticos, mas escrever para levar o leitor a extrair, a descobrir a verdade existencial. O seu método se inspira em Sócrates: tirar do coração da pessoa a verdade. No que diz respeito à afirmação de Mounier, segundo a qual Kierkegaard foi esteta, é preciso lembrar que “a produção estética não possui outra função senão a de mostrar a imensa ilusão que é a cristandade” (Paula, 2002, p. 193). Kierkegaard foi, na verdade, um homem religioso que teve como meta mostrar o que é o verdadeiro cristianismo. Outro estudioso importante de Kierkegaard é Pedro Dalle Nogare, que na sua obra Humanismo e Anti-Humanismo desenvolve uma reflexão sobre o pensamento de Kierkegaard.
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Apesar de fazer uma análise profunda das idéias kierkegaardianas, não deixa de pecar em alguns pontos, principalmente quando afirma: Sem dúvida, Kierkegaard exacerbou o aspecto da singularidade, esquecendo a natural sociabilidade do homem e – em campo sobrenatural – a comunhão do Corpo Místico; exacerbou o aspecto subjetivo da verdade e de sua pesquisa; exacerbou também (...) as exigências ascéticas do cristianismo. (p. 128).
Mas será que Kierkegaard se excedeu na singularidade? Tudo indica que não. Como já foi demonstrando nos capítulos anteriores, para Kierkegaard o ser humano é responsável pela sua existência. A verdade não vem da massa. Este aspecto subjetivo da verdade é necessário para o homem, uma vez que a verdade deve ser interiorizada, vivida e assumida. Kierkegaard não se colocou contra a ciência e a razão, como muitas vezes se afirma. Só que para ele a ciência não pode explicar e dissecar a existência humana. O homem deve voltar-se para si mesmo Para se compreender, o ser humano deve fazer um mergulho entro de si mesmo. Esse é o cristianismo de Kierkegaard. Deve também recordar que Kierkegaard também foi criticado como irracionalista. Mas Gouvêa e Valls se opõem a esse visão. Tudo isto não passa de uma série de preconceitos, uma visão completamente deturpada, pois Kierkegaard é um dos autores mais “racionalistas” que se pode imaginar, pelo menos no sentido de esmiuçar racionalmente, de pesquisar. Ele era super-refletido (...). Se entendermos razão como esforço de fornecer argumentos, e procurar justificar as afirmações, mesmo em áreas onde as provas são mais soft, então nosso autor também aí é um grande racionalista, e não um racionalista (...). Kierkegaard é um teólogo muito malicioso, extremamente astucioso, esperto, e que sabe muito bem o que quer (...). (Valls, 2000, p. 178).
Não foi intenção deste trabalho exaltar e, muito menos, idolatrar a pessoa e o pensamento de Kierkegaard, mas apresentar a grandeza e atualidade daquilo que ele viveu e escreveu. Ele tem muito a ensinar ao ser humano do século XXI. O seu pensamento é “muito contextual” (Roos, 2007, p. 236). Na situação de pós-modenidade, Kierkegaard pode ser um companheiro da jornada desse mundo. Especialmente, na questão religiosa, porque o fenômeno religioso é complexo e multifacetado. Há uma pluralidade de experiências religiosas. A cada dia, surgem novas manifestações do sagrado, muitas vezes ligadas ao sentimentalismo, ao fundamentalismo, ao conservadorismo, ao radicalismo. Segundo Valls, a nova religiosidade tem um “aspecto estético [grifo do autor]. Ter uma religião é tão importante quanto usar um tênis de marca ou uma camiseta de griffe” (2000, p. 170). O fenômeno religioso contemporâneo também insiste
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na paz interior e no sucesso exterior. Estar de bem com Jesus e com o mundo atual. Com a própria consciência e ao mesmo tempo com o sistema econômico dominante. E não insiste nos conhecimentos, teológicos, muitos menos na fé (...). A nova religiosidade tem acento estético, é um estilo de vida, e não tem um compromisso moral, ético ou político [grifo do autor]. Se o acento fosse voltado para a práxis, a conversão de vida [grifo do autor] seria o momento central. Mas quando ocorre a ênfase para a conversão, é de maneira mítica e alienada/alienante. Não é, para falarmos na linguagem do início dos anos 60, uma conversão que leve a um engajamento [grifo do autor] na renovação/cristianização das estruturas da sociedade. Pois não dispomos de uma teoria social e política adequada, e quando a pregação eclesiástica se digna a falar sobre o mundo, – sobre o mundo de hoje, - é para apavorar-se com a televisão e seus programas, ou com o avanço das seitas, melhor aparelhadas em termos de marketing [grifo do autor] e de mídia do que as religiões tradicionais (...). As Igrejas confessam a sua incapacidade de entrar nos meios de comunicação e querem criar, como numa nova Cristandade [grifo do autor], a mídia eclesial. Pobre Kierkegaard, que desgastou-se tanto escrevendo contra a idéia de Cristandade [sem grifo no original], e prevendo um “cristianismo de diáspora” (...). A nova cristandade vem aí. Aguardem (...). (Valls, 2000, p. 171).
O desgaste literário de Kierkegaard pode ajudar o homem religioso contemporâneo a não fazer de Deus uma “graça barata”, mas viver o cristianismo de forma consciente, comprometedora e engajada. Kierkegaard apaixonou-se por um cristianismo não diluído. Ele nunca aceitou que o cristianismo fosse acomodado ao mundo de maneira suave. Para Kierkegaard, a religião não é um encontro qualquer com o divino, mas o caminho de realização da pessoa humana. Além da dimensão religiosa, Kierkegaard pode contribuir ainda hoje com o significado de Indivíduo. Atualmente, as pessoas são dominadas pelo mercado, pela massa, pela multidão. Muitas pessoas são aquilo que os outros são. Quem não participa dos ambientes sociais, como baladas, bares, festas, e não se veste como manda o figurino, é considerado careta e excluído. A liberdade do ser humano é atrofiada pelo consumo: ele é aquilo que tem e não aquilo que é. Ser homem é ser uma mercadoria. Ele se vende para se sentir bem com os amigos, com a família e com a sociedade. Tudo gira em torno do lucro. Dinheiro é a base fundamental para que o outro seja importante. Contra essa lógica secularista, Kierkegaard redescobre o indivíduo (Paula, 2002, p. 197). O homem é responsável pela sua existência, pelo seu agir. Ele é aquilo que se torna. A multidão, a massa é a mentira. O homem precisa resgatar o verdadeiro sentido da verdade. A verdade é para ser vivida. Hoje em dia a ciência procura controlar a vida das pessoas. Mas para Kierkegaard, a existência não se reduz a idéias, à lógica e à experimentação. Existência é reflexão, interiorização, eleição, possibilidade. Todas essas idéias de Kierkegaard podem dar a entender que ele propôs um individualismo ou ativismo ético. O que Kierkegaard propõe é uma ética que se fundamenta na insubstituível relação do indivíduo com Deus. “A ética cristã surge como fruto de um processo constante de tornar-se cristão sob juízo e graça no encontro com o Paradoxo Absoluto” (Roos, 2007, p. 236). Essa ética cristã, além de ser uma relação absoluta com o Absoluto, não pode esquecer-se do amor ao próximo, porque senão ela perde a sua especificidade. Também não pode se esquecer do
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modelo de vida, o Paradoxo Absoluto, Cristo. Ele é a Verdade. Os seus ensinamentos podem cooperar para que o mundo pós-moderno seja mais humano e fraterno. Como se pode notar, este último capítulo procurou retratar o legado de Kierkegaard e o que significa tornar-se cristão. Não se pode negar que Kierkegaard é um pensador instigante e, ao mesmo tempo, enigmático. Um profeta, ao lembrar “a necessidade de cada pessoa nascer para si mesma, libertando-se de tudo aquilo que é ‘convencionado’, rigorosamente fixado, extenuado, falsificado” (Farago, 2006, p. 16). Tornar-se cristão é o Paradoxo da Existência, pois é viver na tensão do juízo e da graça, no paradoxo da fé, no seguimento a Cristo. Seguir Cristo é um paradoxo, pois viver e ser a verdade constituem uma tarefa árdua, difícil. Ser cristão não é seguir doutrinas, leis, mas é ec-sistir de modo cristão. Não é fundar a sua vida sobre si mesma, mas alicerçar a sua vida em algo que não seja objetivo e imanente, e sim Transcendente. A relação do indivíduo com Deus propicia um sentido de vida que não se encontra em coisas materiais e objetivas, mas no plano espiritual e subjetivo. Um dos grandes problemas do mundo pós-moderno é depositar demasiada confiança no material e objetivo. Para Kierkegaard, o verdadeiro sentido da vida se encontra em Deus. Eis, portanto, o horizonte para a humanidade!
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CONCLUSÃO
Ao término desse Trabalho de Conclusão de Curso, é possível perceber que o pensamento de Soren Kierkegaard é muito importante para a reflexão antropológica, porque retrata a existência humana com seus problemas, questionamentos, suas angústias e seu desespero. O próprio Kierkegaard foi um “homem-problema para si mesmo”. É aqui que o seu pensamento se revela profundamente original: a partir de si e das situações vividas produziu um pensamento existencial, antropológico e religioso. Este trabalho procurou apresentar, em linhas gerais, a antropologia kierkegaardiana, dando ênfase ao estilo de vida religiosa. A religiosidade é um tema intrínseco e constitutivo do ser humano. Em todos os períodos históricos, a religião, a religiosidade e a fé ocuparam um lugar especial. Apesar disso, não se pode negar que já houve aqueles que profetizaram o fim da religião, idéia esta que até hoje não se concretizou. Pelo contrário. A cada dia a religião ganha força e espaço na sociedade, como fenômeno complexo e plural. É num contexto como esse que é possível perceber a relevância do pensamento de Kierkegaard. Para o pensador dinamarquês, o ser humano não se dá no abstrato, mas no devir concreto em que vive. É aí que ele decide a sua existência. E decide com seriedade e implicação absolutas. Todo ser humano está, com efeito, situado diante de Deus, e o está hoje e agora, na concreção do próprio viver. Para encontrar o sentido da existência não é necessário reproduzir, como pensava Hegel, o ritmo total do acontecer até alcançar uma interpretação da história universal, mas situar-se diante de Deus. Em outras palavras, é preciso deixar-se interpelar por Deus: ter consciência de ser “contemporâneo” de Cristo, reconhecendo estar situado diante do Cristo vivo e nele convocado, interpelado e julgado por Deus. Ser cristão não é, portanto, conhecer doutrinas para serem seguidas, mas seguir os caminhos de Cristo. É procurar viver um encontro com o Absoluto. Quem vive esteticamente, não consegue encontrar significado para vida que não seja o prazer e a satisfação. Porém, para Kierkegaard, a vida estética não realiza o homem espiritualmente, individualmente e socialmente. Ela é apenas uma busca incessante pela satisfação dos seus desejos. Esse é um estilo de vida que Kierkegaard detectou na sociedade do século XIX. A sociedade contemporânea também não fica fora das críticas kierkegaardianas. Apesar de o estético falar alto hoje em dia, a sede de algo além continua a ocupar espaço no coração do ser humano. A vida estética atual não contribui para que o
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homem cresça e desenvolva a sua personalidade. Permanecendo no acaso, na imediaticidade, o homem não decide seriamente pela existência. Se quiser vivenciar uma vida que contribua realmente para o seu desenvolvimento como ser humano, precisa se saltar, superar o estádio estético e abraçar o ético. O estádio ético começa quando o ser humano entra em relação com Deus de um modo universal a todos os homens, quando enfrenta a exigência absoluta de Deus na “escolha entre o bem e o mal”. O ético não consiste de certas regras racionais e universais, como pensava Hegel, mas numa exigência absoluta feita à consciência, como um “ou isto ou aquilo”, procurando conciliar a sua vontade com a vida social. A vida ética é uma vida aberta, sem segredos, sem mistérios, sem privacidades. Contudo, essa vida fica restrita ao âmbito social. Por mais que ela seja significativa, não é capaz de estabelecer uma relação autêntica e subjetiva com o Absoluto. O homem percebe inclusive que a sua existência e os seus erros estão ligados indissociavelmente. Neste caso, nem mesmo a vida na sociedade contribui para que ele vá além de si. Só o homem, no seu interior, pode escolher, decidir e agir. Não pode deixar a sua vida ser totalmente regulada pela sociedade. Ele é a fonte para conquistar a si mesmo. Desse modo, o homem precisa realizar outro salto, decidindo-se existencialmente pelo Absoluto. É neste estádio religioso que o homem dá realmente conta da revelação de Cristo (Deus no tempo), da consciência de pecado (consciência total da pecaminosidade humana em oposição a uma consciência geral de culpa) e da fé no perdão do pecado pelo poder da morte de Cristo. Neste estádio, a angústia e o desespero são “medicados” pela fé. Todavia, a fé não cura o homem do desespero e da angústia, mas oferece um sentido para sua vida. Se antes da vida religiosa, o homem já elegia a si mesmo, agora é fundamental que ele volte-se para o seu interior e busque relacionar-se com o divino. A relação absoluta com o Absoluto contribui para que o homem procure ser a verdade, vivendo na tensão paradoxal do juízo e da graça. Neste estádio, o homem torna-se cristão, segue o paradigma Jesus Cristo e procura ser a verdade como ele. Esse modelo de vida instiga a pensar na vida religiosa atual. Hoje, Deus não é mais a fonte de vida, o modelo a ser seguido, mas é um artífice criado pelo próprio homem que se ilude com um Deus mercenário e egoísta. Deus é usado como milagreiro, curandeiro para os males existenciais. Deus existe para oferecer bens materiais. A relação com Deus se restringe ao âmbito institucional e exterior (no templo, na igreja ou nos cultos). Deus não se encontra mais no interior do homem. Não é Deus que vem de fora transcendentalmente e se encarna no tempo como modelo de vida. Seguindo o pensamento de Kierkegaard, é Deus quem dá a ao ser humano condição de ser a verdade e lhe possibilita construir um mundo mais justo. Na verdade, o pensamento de Kierkegaard pode oferece ao mundo contemporâneo uma visão diferente de cristianismo, não preso a um sistema
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de vida. Se quiser viver a religião, o homem necessita ter consciência do seu pecado, experimentar as angústias e os desesperos existenciais, responsabilizar-se e agir por si próprio, vivendo no paradoxo e no absurdo, na tensão do juízo e da graça, no seguimento de Cristo. Para o pensador dinamarquês, o importante é seguir Cristo. Segui-lo é exteriorizar a fé em obras do amor, o qual possibilita ao homem viver bem consigo mesmo, com os outros e com Deus. O ser humano é uma eterna pergunta, um enigma a ser sempre decifrado. Por mais que se procure rasgar o véu que encobre a sua existência, sempre restam perguntas antropológicas a serem respondidas. O trabalho monográfico se enquadra nessa tentativa de colaborar com a reflexão sobre o ser humano, tendo como referência o pensamento de Soren Kierkegaard, que como ninguém soube falar do homem a partir de si mesmo. Apesar disso, esta monografia procurou apresentar, em linhas gerais, a antropologia de Kierkegaard com ênfase na vida religiosa, ressaltando a atualidade do seu pensamento. Mais do que ser simples homem, aí lançado no mundo, Kierkegaard convida a cada ser humano a se tornar indivíduo, a saltar-se para um ec-sistir cristão. Toda a sua atividade como pensador trata disso: “dentro do cristianismo, ser um cristão”.
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