Livro "Rio de Janeiro: crônicas e contos da nossa cidade"

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Rio de Janeiro Cr么nicas e Contos da nossa cidade



Rio de Janeiro Crônicas e Contos da nossa cidade

Uma seleção afetiva dos alunos da Oficina de Produção Editorial do 2º ano do Ensino Médio: Flávio Thompson Gabriel Abreu Gabriela Mello Igor Lucas Szpilman Julia Limp Maria Ferreira Pacheco Mateus Flogstad


© Copyright Alunos de 2º ano/Ensino Médio da EDEM, 2015 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19.02.1998. A reprodução parcial desta obra é permitida desde que seja feita a devida menção e crédito à editora e aos autores . As imagens selecionadas não pertencem à editora e foram usadas pelos alunos como mera fonte de pesquisa para esse trabalho escolar. Preparo de originais Daniella Riet Revisão Flávio Thompson Projeto gráfico Daniella Riet, Gabriela Mello, Gabriel Abreu e Julia Limp Pesquisa Iconográfica Equipe de alunos da oficina Fotografia da capa Daniella Riet Fotografias do conto “No caminho de Santa Teresa” Gabriel Abreu CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ D532 Rio de Janeiro: crônicas e contos da nossa cidade – uma seleção afetiva dos alunos da Oficina de Produção Editorial do 2º ano do Ensino Médio / Flávio Thompson... [et. al.]. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Mar de Ideias, 2015. 60 p.: 20 x 20cm. ISBN 9788560458XXX 1. Contos brasileiros. 2. Crônicas brasileiras. 3. Rio de Janeiro. I. Thompson, Flávio. II. Título. CDD: B869.3 B869.7

Todos os direitos reservados, no Brasil, por: Mar de Ideias navegação cultural Ltda. tel.: (21) 3681-6550 contato@mardeideias.com.br www.mardeideias.com.br


Sumário CRÔNICAS DA CIDADE: SUA VIDA, SUA CULTURA O Rio de Janeiro no tempo de Pereira Passos – Flávio Thompson – pág. 8 Uma breve história da música no Rio de Janeiro – Igor Lucas Szpilman – pág. 20 Curiosidade históricas sobre o princípio da gastronomia no Rio de Janeiro – Gabriela Mello – pág. 30 Jardim Botânico do Rio de Janeiro: sua fauna e flora – Maria Ferreira Pacheco – pág. 36

CONTOS DA VIDA DA GENTE: NO AMOR E NA DOR Fluminense: ser tricolor carioca – Mateus Flogstad – pág. 42

Ser mulher no Rio de Janeiro: seis contos nada femininos – Julia Limp – pág. 46 No caminho de Santa Teresa: 27 de agosto de 2011 – Gabriel Abreu – pág. 56



CRテ年ICAS da cidade sua vida, sua cultura


O Rio de Janeiro no tempo de Pereira Passos

Flรกvio Thompson


Derrubada do Morro do Castelo

No início do século XX, o morro era uma presença do passado que atrapalhava o ideal de uma cidade à francesa. Ao mesmo tempo, havia um ódio da intelectualidade a tudo o que representava a colonização portuguesa. O morro tinha uma arquitetura antiquada, com igrejas velhas e o colégio dos jesuítas caindo aos pedaços. Quando chovia, a lama descia pelas ladeiras e invadia os prédios grandiosos da planície.

“O Rio de Janeiro é a única capital no mundo que destruiu o próprio berço.”

A frase é do historiador Milton Teixeira e se

refere à derrubada do morro do Castelo, no Centro da cidade. Após vencer os franceses e tamoios na disputa pelo território carioca, os portugueses, liderados por Mem de Sá, re-alocaram a cidade no alto do Morro do Castelo, em 1567. Era uma colina suficientemente íngreme, que dificultava os ataques inimigos. Recebeu o nome de Morro do Castelo porque nele foi erguido o Forte São Sebastião, primeira construção murada da cidade.

A oportunidade de derrubar o morro surgiu com o engenheiro Carlos Sampaio, que tinha trabalhado com Pereira Passos e assumiu a prefeitura do Rio em 1920. Carlos Sampaio achava que nenhum outro Prefeito conseguiria realizar a tarefa do desmonte da colina, mas considerava necessária a demolição, porque achava que o morro era um embaraço para ventilação da cidade e seu saneamento. Na ocasião, a cidade se preparava para a exposição Exposição Internacional do 1º Centenário da Independência do Brasil, em 1922, e precisava de espaço para a construção dos pavilhões. A ideia foi usar exatamente a área do Morro do Castelo. Em dois anos o trabalho foi realizado. Foi a obra mais marcante e também polêmica da administração de Pereira Passos.

Aos poucos, a população cresceu no seu entorno e o morro acabou se despovoando pelos idos do século XVII. Só no final do século XIX começou a ocorrer uma reocupação do local. Mas não eram mais os nobres que habitavam o morro, e sim os pobres, com as construções coloniais transformadas em casas de cômodos. Teixeira conta que, já naquela época, falava-se em remover o morro: “Desde o século XVIII cogitava-se isso, sob a alegação de que ele impediria a ventilação da cidade.”

Tecnicamente, Carlos Sampaio não encontrava dificuldades porque já havia chefiado o 9


desmonte do Morro do Senado. O material retirado foi usado para aterrar a região ao longo da Praia de Santa Luzia e a Enseada da Glória até a Ponte do Russel. Os 66 mil metros cúbicos da colina eram limitados pelas ruas São José, Santa Luzia, a avenida Rio Branco e a ladeira da Misericórdia. A princípio, a escavação foi mecânica, mas depois, com pressa, Sampaio resolveu usar um novo método americano para derrubar o morro: mangueiras de água de alta pressão. Era só pegar a água do mar ali ao lado e jogá-la contra o morro para dissolver o barro. Depois, foram utilizadas potentes bombas de maior eficiência. Quando aconteceu a exposição, ainda restavam de pé o prédio do Colégio dos Jesuítas e parte da antiga Sé.

O convento (à esquerda) foi o que sobrou do Morro de Santo Antônio, Augusto Malta

Construção de centros importantes na gestão de Pereira Passos

O desmonte foi realizado e no ano do Centenário já se pôde utilizar grande parte da área aterrada para a Exposição, e o restante do aterro até o Russel continuou sendo feito até 30 de setembro de 1922. No lugar onde existia o Morro do Castelo surgiu a Esplanada do Castelo, mas a cidade perdeu o seu berço. O trabalho só se completou na época do prefeito Henrique Dosdworth, em 1938.

No começo do século XX, o Rio de Janeiro era a capital do país e vivia um período de transformações. A nova imagem do Rio era planejada por Pereira Passos, que queria dar ao Brasil características mais modernas, fugindo da visão de atraso de país escravocrata. O prefeito se inspirou em Paris para fazer as reformas urbanísticas no Rio, construindo praças, ampliando ruas e criando estruturas de saneamento básico. Além da derrubada do 10


Planta da cidade do Rio de Janeiro indicando melhoramentos em execução, 1905”, in: FERREIRA DA ROSA, Francisco. Rio de Janeiro

morro do castelo, muitas outras obras importantes foram realizadas em sua administração.

tral (hoje Av. Rio Branco), a Avenida Beira-Mar, Avenida Maracanã, Avenida Francisco Bicalho e Avenida Rodrigues Alves – essas últimas que se propunham a facilitar a ligação entre o Centro e os bairros residenciais mais abastados.

Foram, entre 1903 e 1906, duas grandes reformas: uma modernização da zona portuária degradada e em seguida uma intervenção maior no Centro histórico. Em sua gestão, Passos modernizou a Zona Portuária, criou a Avenida Cen-

Destacam-se também, nessa época: os alargamentos de vias como a Marechal Floriano, 11


Theatro Municipal A produção teatral, na segunda metade do século XIX, era muito intensa no Rio de Janeiro. Mas a então capital do Brasil não tinha um teatro que correspondesse plenamente a essa atividade e estivesse à altura da principal cidade do país. Seus dois maiores – o São Pedro e o Lírico – eram criticados por suas instalações, seja pelo público, seja pelas companhias que neles atuavam.

Reforma urbana modifica centro do Rio de Janeiro, Teatro Municipal foi uma das novidades

Em 1894, o autor teatral – Arthur Azevedo – lançou uma campanha para que um teatro fosse construído para ser sede de uma companhia municipal, a ser criada nos moldes da Comédie-Française. Mas a campanha resultou apenas em uma lei municipal, que determinou a construção do Theatro Municipal. A lei, no entanto, não foi cumprida, apesar da existência de uma taxa para financiar a obra. A arrecadação desse novo imposto nunca foi utilizada para a construção do teatro.

a Rua do Catete, a Uruguaiana, a Rua da Carioca, entre tantas outras que revolucionou a malha urbana do Rio; e a construção de obras importantíssimas. Entre as principais heranças da gestão Passos estão: o Theatro Municipal, o Museu Nacional de Belas Artes e a Biblioteca Nacional. Incentivado pelo presidente Rodrigues Alves, Pereira Passos começou as reformas em 1903. A reforma urbana carioca foi inspirada na reforma feita em Paris no século XIX, entre 1853 e 1870.

Somente em 1903, o prefeito Pereira Passos, nomeado pelo presidente Rodrigues Alves, retomou a ideia e, a 15 de outubro de 1903, lançou um edital com um concurso para a apresentação de projetos para a construção do Theatro Municipal.

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Encerrado o prazo do concurso, em março de 1904, foram recebidos sete projetos. Os dois primeiros colocados ficaram empatados: o “Áquila”, pseudônimo do engenheiro Francisco de Oliveira Passos, e o “Isadora”, pseudônimo do arquiteto francês Albert Guilbert, vice-presidente da Associação dos Arquitetos Franceses.

Finalmente, quatro anos e meio mais tarde – um tempo recorde para a obra, que teve o revezamento de 280 operários em dois turnos de trabalho –, no dia 14 de julho de 1909, foi inaugurado, pelo presidente Nilo Peçanha, o Theatro Municipal do Rio de Janeiro que tinha capacidade para 1.739 espectadores. Serzedelo Correa era o prefeito da cidade.

O resultado deste concurso foi motivo de longa polêmica na Câmara Municipal, acompanhada pelos principais jornais da época, em torno da verdadeira autoria do projeto “Áquila” – que se dizia feito pela seção de arquitetura da Prefeitura, e do suposto favoritismo de Oliveira Passos, pelo fato de ser filho do prefeito, entre outros argumentos.

Museu Nacional de Belas Artes Situado no Centro histórico do Rio de Janeiro, em edifício de arquitetura eclética, projetado em 1908 pelo arquiteto Adolfo Morales de los Rios para sediar a Escola Nacional de Belas Artes, (herdeira da Academia Imperial de Belas Artes), o Museu Nacional de Belas Artes/ Ibram/MinC foi construído durante as modernizações urbanísticas realizadas pelo prefeito Pereira Passos na então Capital Federal.

Como decisão final resolveu-se pela fusão dos dois projetos pois, na verdade, os dois projetos ganhadores correspondiam a uma mesma tipologia. Feitas as adaptações no projeto, a 2 de janeiro de 1905, o prédio começou a ser erguido, com a colocação da primeira das 1.180 estacas de madeira de lei sobre as quais se assenta o edifício. Para decorar, foram chamados os mais importantes pintores e escultores da época, como Eliseu Visconti, Rodolfo Amoedo e os irmãos Bernardelli. Também foram recrutados artesãos europeus para fazer vitrais e mosaicos.

Criado, oficialmente, em 1937 pelo decreto do presidente Getúlio Vargas, ocupa uma área de 18.000 m2 e é o mais importante museu de arte do país. Reúne um acervo de setenta mil itens entre pinturas, desenhos, gravuras, esculturas, objetos, documentos e livros, constituindo-se num centro irradiador de conhecimento e divulgação da arte brasileira.

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A bicentenária Coleção do Museu Nacional de Belas Artes se originou de três conjuntos de obras distintos: as pinturas trazidas por Joaquim Lebreton, chefe da Missão Artística Francesa, que chegou ao Rio de Janeiro, em 1816; os trabalhos pertencentes ou aqui produzidos pelos membros da Missão, entre os quais se destacam Nicolas-Antoine Taunay, Jean-Batiste Debret, Grandjean de Montigny, Charles Pradier e os irmãos Ferrez; e as peças da Coleção D. João VI, deixadas por este no Brasil, ao retornar a Portugal, em 1821.

acomodado numa das salas do Hospital da Ordem Terceira do Carmo, na Rua Direita (hoje Rua Primeiro de Março). Em 29 de outubro de 1810, um decreto do Príncipe Regente determina que no lugar que serviu de catacumba aos religiosos do Carmo se erga e acomode a Real Biblioteca e instrumentos de física e matemática, fazendo-se à custa da Fazenda Real toda a despesa conducente ao arranjo e manutenção do referido estabelecimento. Esta data é considerada, oficialmente, como a da fundação da Real Biblioteca que, no entanto, só foi franqueada ao público em 1814.

Biblioteca Nacional

Quando, em 1821, a Família Real regressou a Portugal, D. João VI levou de volta grande parte dos manuscritos do acervo. Depois da proclamação da independência, a aquisição da Biblioteca Real pelo Brasil foi regulada mediante a Convenção Adicional ao Tratado de Paz e Amizade celebrado entre o Brasil e Portugal, em 29 de agosto de 1825.

Imagem publicada no jornal O Malho, em 12 de novembro de 1910, mostra o prédio da Biblioteca Nacional no dia de sua inauguração O início do itinerário da Real Biblioteca no Brasil está ligado a um dos mais decisivos momentos da história do país: a transferência da rainha D. Maria I, de D. João, Príncipe Regente, de toda a família real e da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, quando da invasão de Portugal pelas forças de Napoleão Bonaparte, em 1808. O acervo trazido para o Brasil, de sessenta mil peças, entre livros, manuscritos, mapas, estampas, moedas e medalhas, foi inicialmente 14


Problemas de administração da gestão de Pereira Passos

A arquitetura e a estrutura urbanística de Paris foram a inspiração para as reformas. Entre as inúmeras obras realizadas nessa época estão a construção da Avenida Rio Branco, Beira Mar, Rodrigues Alves, Mem de Sá e de prédios que se impõem sobre nossos olhos, como a Biblioteca Nacional, o Teatro Municipal, além do Mourisco e do Palácio Monroe, que, infelizmente, não tiveram a mesma sorte e foram demolidos.

Polêmica era uma das principais características da administração de Pereira Passos no Rio de Janeiro, entre 1902 e 1906. Não se pode negar que o prefeito deu novos rumos à cidade, nem que promoveu, de fato, um verdadeiro “bota-abaixo”, tirando do caminho tudo aquilo que impedia a concretização de seus inovadores projetos.

A fim de conseguir reordenar e aumentar a extensão da malha de circulação viária, o prefeito abriu uma série de ruas e alargou outras tantas. Para isso, grande quantidade de casas comerciais e residenciais foram derrubadas. Lamenta-se ainda hoje as perdas de valor arquitetônico e histórico, e até sentimental, para o povo do Rio mas, se ruas não tivessem sido alargadas naquela época, teria sido muito mais difícil fazê-lo depois. Pereira Passos inspecionava pessoalmente, e bem de perto, as obras da Avenida Beira Mar que começou a ser aberta logo no início de seu governo e ia do centro da cidade até o Morro da Viúva. Para o prefeito, a abertura de avenidas litorâneas permitiria o acesso eficiente de uma extremidade a outra da cidade, um notável sistema que foi reforçado posteriormente pelos túneis.

Seu maior desafio era organizar a urbanização, sanear e civilizar a capital da recente República. Inspirado na Belle Époque, em quatro anos de trabalho transformou o Rio de Janeiro numa cidade cosmopolita. Há cem anos, os cortiços deram lugar a um centro urbano moderno, com cara de capital. É verdade que o prefeito teve de enfrentar forte oposição, inclusive do Governo do Distrito Federal, para derrubar tantas construções. Mas quase um milhão de habitantes vivia numa cidade sem transporte, sem escoamento de água, sem programas de saúde pública, sem segurança nas ruas. Sabemos que o prefeito não conseguiu eliminar nenhum destes problemas, mas deu o primeiro passo.

Durante a realização do projeto fez-se necessário o desmonte do Morro de Santo Antônio 15


lhorias atraíram muitos comerciantes, mas não conseguiram extinguir a prática do baixo meretrício na região da Praça Tiradentes, que perdura até nossos dias. A antiga Rua da Vala, atual Uruguaiana, precisou ser bastante alargada e aterrada durante a gestão Pereira Passos. Abrigava as melhores lojas do início do século, mas meio lado da rua veio abaixo durante as obras, concluídas em 1906. A área hoje pertence a um corredor cultural e ainda é possível ver, em muitas fachadas, a elegância neoclássica dos prédios comerciais.

Obras da Avenida Central 1904, Augusto Malta, Museu da República

A mudança mais evidente, e mais famosa no panorama do centro, surgiu com a abertura do Boulevard Avenida Central, ou Rio Branco, que começa na Praça Mauá e acaba na ligação com a Avenida Beira-Mar. Foi inaugurada em 1905, mas a maioria dos prédios, na inauguração, possuía somente as fachadas que tinham de estar prontas junto com a avenida. Nela, ergueram-se a Biblioteca Nacional e a escola Nacional de Belas Artes, atual MNBA. Para a construção da escola o prefeito fez um corte no Morro do Castelo, a fim de assegurar uma largura de 33 metros para a avenida. Muitos acharam que seria larga em excesso, mas face aos estressantes engarrafamentos, consideramos hoje a largura da rua insuficiente. No final da avenida existia o largo da Mãe do Bispo, que deu lugar ao Teatro Municipal, que só ficou pronto em 1909.

para a obtenção de terra suficiente para os aterros. Construir a avenida sobre espaço roubado do mar já estava nos planos do prefeito, a fim de permitir os alargamentos posteriores, margem muito útil quando da construção do Aterro do Flamengo. O centro da cidade foi o local que sofreu as maiores modificações. Para a passagem da Avenida Mem de Sá, Pereira Passos mandou pôr abaixo todos os prédios paralelos aos Arcos da Lapa, a fim de permitir a liberação do tráfego que o prefeito visava construindo a avenida. Foi com mesma essa finalidade que ocorreu o desmonte do Morro do Senado. Também precisou ser extinto o Largo de São Domingos para a abertura da Avenida Passos, batismo que homenageia o prefeito. As me16


Nem todas as obras, porém, estão a olhos vistos. Uma das maiores preocupações de Pereira Passos era com a higiene e, para executar planos de saneamento básico contou com a ajuda e orientação de Oswaldo Cruz. Um dos episódios mais marcantes dessa empreitada foi a “Revolta da Vacina”, em 1904. As pessoas temiam ser vacinadas e era preciso que os agentes de saúde fossem até a casa de todos acompanhados da polícia e isso gerou um grande descontentamento. A população removida dos cortiços, que já eram habitações precárias, começava a subir os morros para não se afastar tanto do centro. A ocupação desordenada deu início a favelização, que se tornou um problema insolúvel para os governantes posteriores, devido ao grande crescimento populacional.

Insensível a esta questão, Pereira Passos deu continuidade ao seu projeto: as ruas do centro foram alargadas com a demolição dos antigos casarões e toda esta região ganhou bulevares com edifícios no estilo francês, tudo visando criar uma nova identidade para a capital federal. Foi neste período que o Rio de Janeiro ganhou o apelido de Cidade Maravilhosa, ainda que as O prefeito Pereira Passos e o barão do Rio Branco no Cais Pharoux, 1911, Augusto Malta

Ainda que a preocupação com a saúde pública fosse uma realidade, estas reformas não deixavam de escancarar um contraste cruel. Enquanto os donos dos terrenos viram suas propriedades valorizadas com a modernização de seu ambiente ao redor, a população pobre da cidade se viu diretamente atingida pela precarização de condições de moradia no Rio de Janeiro, já então bastante dramáticas em virtude da limitada oferta de habitações.

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custas de um dramático impacto social pautado pelo início do processo de favelização de área da cidade.

cipalmente com sua estrutura, com a solidez de seus prédios, o calçamento de suas ruas, a qualidade da água, o sistema de transporte, a iluminação pública. Sempre observava tudo com o olhar atento e preciso do engenheiro. E fazia comparações com o Rio de Janeiro.

Notas de Viagens

O livro nos conta curiosidades observadas pelo engenheiro em todo o mundo, como as pirâmides do Egito e a Esfinge, grandes obras de engenharia da antiguidade. Tais relíquias haviam sido descobertas a pouco, em 1900 e para visitá-las era preciso autorização especial do governo. Sobre Viena e Budapeste, elogia o sistema tramway, de trilhos eletrificados, e o calçamento de asfalto nas ruas. Fala, nas cartas, da epidemia de cólera em Wiesbaden, na Alemanha, que só fora eliminada por uma limpeza geral bastante rigorosa e pela purificação da água, que passava por filtros antes da distribuição. Para quem o criticou, mandou recado: para ampliação do Porto de Hamburgo foi necessária a demolição de quarteirões inteiros, que abrigavam mais de 30 mil habitantes.

A fim de documentar os tempos que passou na Europa, após deixar a prefeitura, Pereira Passos enviava cartas ao amigo e diretor de obras em sua administração: Américo Rangel. Quando retornou ao Brasil, as reuniu na publicação Cartas a um amigo, lançada e distribuída aos amigos em 1913, ano da morte do engenheiro, e que hoje é um exemplar raro pertencente ao Museu da República, no Rio de Janeiro. O arquivo histórico do museu, através do trabalho de seus pesquisadores, reeditou essas cartas na obra Pereira Passos – Notas de Viagem, numa caprichada edição, e para tanto contou com o patrocínio da Auxiliadora Predial, a Apsa, empresa de administração de condomínios que, apoiou o projeto e fez a distribuição dos exemplares.

Em Notas de Viagens são revelados diversos aspectos da personalidade de Pereira Passos. Ao observar os lugares por onde passou, procurava sempre ter uma visão técnica, de forma completa e precisa, descrevendo tudo de

Enquanto a totalidade dos viajantes buscava o lazer e o descanso, o Dr. Passos não conseguia se comportar como um turista. Não só se preocupava com a beleza de um lugar, mas prin18


maneira sintética, enxuta e informativa. Todas essas comparações com o Brasil e seus problemas eram uma tentativa de alertar a sociedade brasileira de seu atraso.

Fontes de Pesquisa:

http://blogs.odia.ig.com.br/rio-450-anos/historias-do-rio/ com-os-morros-parte-da-memoria-do-rio-foi-arrasada http://www.marcillio.com/rio/hirevref.html http://educacao.globo.com/artigo/reforma-urbanistica-de -pereira-passos-o-rio-com-cara-de-paris.html http://portalarquitetonico.com.br/a-reforma-urbana-de-pereira-passos-no-rio-de-janeiro/ http://www.theatromunicipal.rj.gov.br/historia.html http://mnba.gov.br/portal/museu/historico http://www.bn.br/biblioteca-nacional/historico http://www.areliquia.com.br/artigos%20anteriores/44mobimp.htm http://www.museudeimagens.com.br/avenida-central/

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Uma breve hist贸ria da m煤sica no Rio de Janeiro Igor Lucas Szpilman


A música na época do índios

Antes da chegada dos europeus, o Brasil era povoado pelos indígenas com aproximadamente 5 milhões de habitantes. Mas o que podemos falar sobre a música que os índios que habitavam nossas terras produziam?

Como se sabe, a música é a mais antiga forma de expressão, mais antiga que a linguagem ou a arte. Logo, a música indígena recebeu alguma atenção ocidental desde o início da colonização do território como provam os relatos de Jean de Léry, sobre alguns cantos Tupinambá em 1558. A música indígena brasileira é polimorfa e de enorme variedade, sendo assim impressionou os colonizadores. Alguns grupos foram logo contactados pelos Jesuítas, desde o século XVI, e contribuíram ativamente como instrumentistas, cantores e construtores de instrumentos, criando uma fascinante e original cultura musical, embora nos moldes europeus e direcionada para a catequese. Apesar da pressão dos jesuítas, alguns grupos indígenas mantiveram suas crenças e rituais, tendo a sua originalidade preservada.

Padre Antônio Vieira catequizando os indígenas

A maioria dos indígenas associa a música ao universo transcendente e mágico, sendo empregada em todos os rituais religiosos. Desde sua origem a música indígena tem a finalidade de socialização, culto, ligação com os ancestrais, exorcismo e magia. Ossos, peles e tripas de animais, galhos de árvores e pedras eram 21


usados para a construção de seus instrumentos. A criação de novas músicas sempre era responsabilidade dada ao Pajé ou aos guerreiros mais distinguidos da tribo. Faziam música para as colheitas, para os casamentos, rituais de passagens dos meninos e meninas e para a fase adulta, chamados rituais de iniciação – possuíam uma riqueza de sons.

alfabetizados musicalmente e, com isso, seus patrões recebiam pelo trabalho destes. Os mais ricos importavam instrumentos e partituras musicais para pequenos saraus em suas residências. Neste período era uma música essencialmente portuguesa. No século XVII, começam a surgir as irmandades musicais que funcionavam como um sindicado dos músicos. Somente seus sócios podiam fazer música; e os improvisadores, que eram aqueles que tocavam e não eram sócios, estavam sujeitos a multas e até prisão. Poucos eram sócios porque, naquela época, os instrumentos eram caros e só quem podia comprar eram os ricos ou a Igreja.

Quando chegaram no Rio de JaneiroMas, os colonizadores portugueses encontraram uma música muito especial e estranha para eles, pelas tonalidades e suas variações. Aos poucos essa música indígena foi se dissipando com o poderio da Igreja. No século XX, esta música foi pesquisada pelo compositor Villa Lobos e pelo musicólogo Mário de Andrade.

O Mestres-de-capela, responsável pela música nas igrejas, era também um empresário de atividades musicais: organizava programas, escolhia intérpretes e exercia um monopólio em sua respectiva jurisdição.

Música na Igreja, na catequese e nas casas da população rica

Havia também irmandades de negros, mulatos e brancos, assim, não faltava música para gente de todos os tipos. Como as partituras eram caras, estas irmandades menos privilegiadas conseguiam as partituras mediante contratos com as igrejas ou com as prefeituras. Além das igrejas, os músicos tocavam nas casas de

Nos dois primeiros séculos de colonização portuguesa, a música produzida no Brasil Colonial ainda estava vinculada a Igreja. Com a chegada dos escravos africanos, muitos foram usados como escravos instrumentistas, sendo 22


Roda de capoeira, 1835, Johann Moritz Rugendas

pessoas ricas. Os diretores musicais montavam escolas na própria casa e lá músicos se formavam. Eram verdadeiros conservatórios nos quais os alunos moravam, se alimentavam e recebiam aulas de música, de latim e de outras disciplinas essenciais. Mais uma vez, só os mais ricos podiam desfrutar desse direito.

Apesar da música napolitana estar em moda em Lisboa, esta não influenciou o Brasil Colônia, pois, basicamente, os compositores da cidade do Rio de Janeiro se limitavam às músicas litúrgicas.

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A influência da música africana

A Música Pré e Pós-Joanina no Rio de Janeiro

A influência africana no processo de formação na música brasileira começou a ser delineada a partir do tráfico negreiro. Os negros trazidos da África vinham dos mais distintos locais e, por isso, traziam consigo uma diversidade cultural e musical. Ao chegarem no Brasil, os africanos mantiveram sua cultura com seus cantos e rituais, apesar da proibição da Igreja. Aos poucos foi havendo uma mistura com a cultura portuguesa e indígena.

Antes da chegada de D. João VI, devemos lembrar de um compositor muito importante que conduzia a música na cidade do Rio de Janeiro – Padre José Maurício. O Padre José Maurício, como mestre de capela, tinha a responsabilidade de compor e cuidar da música na Igreja da Nossa Senhora do Rosário, então catedral da cidade do Rio de Janeiro.

Hoje, percebemos fortemente essa influência na música e folclore brasileiro. Como exemplo temos o nosso samba carioca, o pagode, o Maracatu, o carimbó, maxixe, maculelê etc... Mas os africanos também trouxeram seus instrumentos, como a cuíca, o atabaque e o berimbau. E essa música africana misturada com a européia foi o pilar da nossa música carioca.

Graças à sua excelente biblioteca musical, Padre José Maurício conseguiu, em apenas 2 meses, preparar um excelente concerto sacro para a chegada do Rei D. João VI, pois sabia que este era seu estilo predileto. Após a apresentação na Igreja do Rosário, D. João VI ficou maravilhado pela altíssima qualidade da música, tanto pela seleção como pela interpretação, com tão poucos recursos que tinha o padre. Em seguida, D. João VI determinou a transferência de todos os músicos da Igreja da Nossa Senhora do Rosário para a Igreja dos Carmelitas, designando-a Igreja da Ordem

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do Carmo com o título de Capela Real. O padre e seus colaboradores, músicos e cantores, certamente ficaram bastante satisfeitos pois as instalações na nova igreja eram muito melhores.

Algarves, e com isso foi promovida uma reforma urbana e cultural na cidade, bem com a vinda de músicas e novos instrumentos. Juntamente com a abolição do tráfico de escravos em 1850, que possibilitou a emergência de novos ofícios para as camadas populares, essas foram as condições históricas que fizeram surgir o choro, que pode ser considerado a primeira música urbana tipicamente brasileira.

Mais adiante, juntaram-se a ele diversos músicos portugueses e de outras nacionalidades. Até 1810, Padre José Maurício era o único mestre-de-capela, quando aqui chegou Marcos Portugal, nomeado pelo Principe Regente também mestre de capela, assim como o italiano Fortunato Mazziotti. A necessidade de tantos mestres de capela, era porque havia cerca de 80 cerimônias previstas por ano, além das missas especiais, em caso de morte ou doenças..

O choro tem origem no lundu e gêneros europeus. Sob o impulso criador e improvisado dos chorões, logo a primeira versão dessa estilo musical perdeu as características dos seus países originários e adquiriu feições genuinamente brasileiras. Ao longo dos anos, se transformou em um dos gêneros mais prestigiados da música popular nacional.

Com a vinda da Família Real, viraram moda nos bailes as música de dança de salão européia, como a valsa, a quadrilha, a mazurca, a Modinha, a Schottish e, principalmente, a polca.

Esses grupos de instrumentistas populares eram oriundos de segmentos da classe média -baixa da sociedade carioca. Os primeiros conjuntos de choro surgiram por volta da década de 1870, nascidos nas biroscas do bairro Cidade Nova e nos quintais dos subúrbios cariocas.

A Música no Brasil Imperial entre o Séc XIX e XX Em 1815, o Rio de Janeiro foi promulgado capital do Reino Unido de Portugal, Brasil e

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A última foto de Chiquinha Gonzaga, maestrina e compositora, no dia de seu aniversário de 85 anos

Entre os mais famosos do chorinho foram o flautista e compositor Joaquim Antônio da Silva Calado, os pianistas Ernesto Nazaré, a maestrina e compositora Chiquinha Gonzaga, e o maestro Anacleto de Medeiros. Eles compuseram quadrilhas, polcas, tangos, maxixes, xotes, marchas e estabeleceram os pilares do choro e da música popular carioca da virada do século XIX.

Chiquinha Gonzaga foi a primeira pianista de choro e autora da primeira marcha carnavalesca Ó abre alas. Pixinguinha, também um grande saxofonistas, foi quem consolidou o choro como gênero musical, e com certeza foi o maior compositor desse gênero.

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A música no século XX até os dias de hoje: no Rio de Janeiro e em todo o país

batizada e nomeada com esse gênero musical pelo grande sambista Donga, que era um dos principais compositores da época como Sinhô, João Batista e Pixinguinha – e se reuniam na casa de Tia Ciata, lendária mãe de santo e cozinheira, para rodas de samba.

Nos tempos de hoje, os estilos músicas predominantes são o Samba, a Bossa Nova e o MPB (Música popular Brasileira).

O Samba O Samba que conhecemos hoje teve origem dos alicerces do samba de roda, nascido no recôncavo baiano sob a forma de diversos ritmos e danças populares regionais, que vieram do batuque trazido da África, principalmente, ao lundu. A dança praticada pelos escravos libertos em contato com outros gêneros musicais populares entre os cariocas – como a polca, o maxixe, o lundu e o xote – foi adquirindo um caráter totalmente singular nas primeiras décadas do século XX. As principais características do samba vieram do lundu, dança e batuque dos escravos bantos, dentre as mais praticadas foi a Umbigada – ritmo marcado pelos pelos pés e pelas mãos. A palavra “samba” (originária de semba = tristeza), só começou ser usada a partir da primeira música gravada – Pelo Telefone – que foi

Ismael Silva, parceiro de Noel Rosa dentre outros bambas

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A partir de então, o samba urbano carioca começou a ser propagado pelo país e, no ano de 1930, foi alçado da condição “local” à símbolo da identidade nacional brasileira. Inicialmente, foi um samba associado ao carnaval e posteriormente adquirindo um lugar próprio no mercado musical. À medida que o samba no Rio de Janeiro consolidava-se como uma expressão musical urbana e moderna, ele passou a ser tocado em larga escala nas rádios, espalhando-se pelos morros cariocas e bairros da zona sul do Rio de Janeiro. A princípio criminalizado e visto com preconceito por suas origens negras, o samba conquistou o público de classe média também. A primeira escola de Samba – batizada por Ismael Silva como Deixa Falar – foi criada em 12 de agosto de 1928 pelos sambistas, Nilton Bastos, Julio Santos, Brancura Baiaca, Francelino Ferreira, Mano Ruben, Juvenal Lopes e muitos outros.

Tom Jobim: maestro e compositor, ícone da bossa nova

da zona sul. Eram jovens músicos universitários que se reuniam e, por isso, os primeiros concertos foram em âmbito universitário. A bossa nova, pouco a pouco, começou a ser apresentada em bares do circuitos de Copacabana, entre eles o Beco das Garrafas. No final de 1957, numa dessas apresentações, no Colégio Israelita Brasileiro, surgiu a ideia de chamar o novo gênero de “Samba Sessions” por causa da fusão de samba e jazz.

Bossa Nova

Para muitos críticos a bossa nova começou quando, em agosto de 1958, foi lançado um compacto simples pelo violonista baiano João Gilberto com as canções Chega de Saudade (Tom Jobim e Vinicius de Moraes) e Bim Bom

Depois do chorinho e do samba, a bossa nova foi outro importante estilo musical que surgiu no Rio de Janeiro no final da década de 1950. O movimento começou a partir da reuniões de grupos de músicos em apartamentos 28


(do próprio cantor). Outras das características do movimento eram suas letras que, contrastando com os sucessos de até então, abordavam temáticas leves e descompromissadas – exemplo disto, Meditação, de Tom Jobim e Newton Mendonça.

a bossa nova, os artistas e o público eram estudantes e intelectuais mais tarde, ficou conhecida como “a música da universidade”. O princípio da MPB é, frequentemente, associado a interpretação feita por Elis Regina com a canção Arrastão, de Vinicius de Moraes e Edu Lobo. A principal característica da MPB, emprestada pela bossa nova, foi a crítica à injustiça social e repressão da ditadura. Umas dessas músicas que contra o governo ditatorial foi Cálice – de Chico Buarque e Gilberto Gil – na qual eles se diziam cansados da censura e queriam ter o livre arbítrio para se expressarem.

A forma de cantar também se diferenciava da que se tinha na época. Além de Chega de Saudade, uma das canções mais famosas que Tom Jobim e Vinicius de Moraes compuseram é Garota de Ipanema, outro símbolo da bossa nova, que se tornou a canção brasileira mais conhecida em todo o mundo.

MPB (Música Popular Brasileira) A sigla “MPB” já era utilizada no inicio do Séc. XX sem, entretanto, estar associada um movimento ou um grupo de Artistas. A MPB surgiu exatamente no ano de 1966 a partir do declínio da Bossa Nova. Esse novo gênero musical une a bossa nova mais os gêneros musicais no restante do país; ou seja, metade música Carioca e metade os outros gêneros musicais de todo o Brasil. A MPB foi uma tentativa de de produzir uma música brasileira “nacional”. Assim como 29


Curiosidades hist贸ricas sobre o princ铆pio da gastronomia no Rio de Janeiro

Gabriela Mello


Banquetes franceses no Brasil Em 1808, quando desembarcou a Corte Portuguesa vieram junto os cozinheiros e seus livros de receita. Desde então os hábitos à mesa deram um toque mais europeu, os ideais alimentares e de paladar se tornaram cada vez mais semelhante aos franceses, mas não era uma prática cultivada no cotidiano do imperador – para ele, a comida sofisticada era algo reservado a ocasiões especiais.

Ilha Fiscal, cartão postal , cerca de 1900, coleção Elysio Belchior

O Baile

As receitas elaboradas, vindas com D. João VI, se ampliaram com a independência do Brasil, em 1822, para negar a dominação colonial portuguesa e passou a se basear na cultura francesa. Os estrangeiros que viviam para o Rio de Janeiro forçaram a criação de um mercado que absorvesse produtos da Europa – como conservas, doces, frutos processados, salsichas, presuntos, manteiga, queijo, chá e temperos. Isso permitiu a reprodução da culinária degustada nos palácios, o que pode ser comprovado nos cardápios impressos de época, predominantemente em francês, com alimentos típicos dessas regiões.

Quando D. Pedro desembarcou na Ilha Fiscal, em 1889, houve uma grande festa. No banquete foram servidos dezoito pavões, oitenta perus, trezentas galinhas, trezentas e cinquenta frangos, trinta fiambres, dez mil sanduíches, dezoito mil frutas, mil pecas de caça, cinquenta peixes, cem mil linguiças, cinquenta maioneses, vinte e cinco cabeças de porco recheadas, além de quinhentos pratos variados. O baile da Ilha Fiscal foi uma das raras ocasiões que o império ofereceu um banquete da alta gastronomia. O imperador ficou pouco no baile e na maior tempo sentado. Tampouco era chegado nas grandes refeições, um jantar normal, do cotidiano, podia chegar a durar ate três horas, mas ele gostava de comer sozinho e rapidamente.

A classe alta precisava marcar posição social. Por isso, além das artes e da moda, a sociedade valorizava também a comida. 31


“O fenômeno galinha com arroz’’

Como a alimentação dos mesmos era baseada apenas em cereais, como milho e feijão, resolveram pegar as partes do porco que eram rejeitadas e juntá-las com o feijão, cozinhando tudo em um mesmo recipiente, além de adicionar água, sal e pimentas diversas à mistura. Estava feita a primeira feijoada.

Os viajantes estrangeiros se assustavam quando a mesa estava posta com o tal frango cozido em caldo quente. Além de ser ótimo para espantar doenças, era o prato predileto do imperador Dom Pedro II – isso fez com que muitos relatos o mencionassem, expressamente, com monotonia o tal fenômeno.

Culinária dos pobres de 1822 Texto do Debret em 1835:

Hoje a canja é tratada como comida do povo – barata e sem gosto –, mas não era bem assim no século XIX, ela era tida com uma comida sofisticada. Nos cardápios da família real dá para se notar a preferência pelo prato.

“Passando-se ao humilde jantar do pequeno negociante e sua família, vê-se, com espanto, que se compõe apenas de um miserável pedaço de carne seca, de três a quatro polegadas quadradas e somente meio dedo de espessura; cozinham-no à grande água com um punhado de feijões pretos, cuja farinha cinzenta, muito substancial, tem a vantagem de não fermentar no estômago. Cheio o prato com esse caldo, joga-se nele uma grande pitada de farinha de mandioca, a qual misturada com os feijões esmagados, forma uma pasta consistente que se come com a ponta de uma faca arredondada, de lâmina larga. Essa refeição simples, repetida invariavelmente todos os dias e cuidadosamente escondida dos transeuntes, é feita nos fundos da loja, numa sala que serve igualmente de quarto de dormir. O dono da casa come com

A Feijoada A feijoada, um dos pratos mais famosos da culinária brasileira, se originou a partir dos costumes dos escravos africanos. O prato consiste na mistura de feijão preto, carne de porco, farofa, entre outros ingredientes. Na época da escravidão, os senhores de escravos não comiam as partes menos nobres do porco – como orelhas, rabos ou pés – e davam tais partes aos seus escravos. 32


os cotovelos fincados na mesa; a mulher com o prato sobre os joelhos, sentada à moda asiática na sua marquesa, e as crianças deitadas ou de cócoras nas esteiras, se enlambuzam à vontade com a pasta comida nas mãos. Mais abastado, o negociante acrescenta à refeição um lombo de porco assado ou o peixe cozido na água com um raminho de salsa, um quarto de cebola e três ou quatro tomates. Mas, para torná-lo mais apetitoso, mergulha cada bocado no molho picante acima descrito; completam a refeição bananas e laranjas. Bebe-se água unicamente. As mulheres e crianças não usam colheres nem garfos; comem todos com os dedos.

Era muito comum nas ruas do Rio de Janeiro ver os escravos de ganhos exercendo atividades domésticas como vendedores de frutas, ervas, aves ou ate mesmo de guloseimas como pão-de-ló. Os doces do Brasil impressionavam os estrangeiros pela sua variedade, mas não apenas sobre a diversidade de frutas disponíveis mas também pelos diferentes modos de preparos que se faziam com elas: pudins, cremes, biscoitos, bolos, pasteis, compotas, geleias, sucos. As doçuras eram comidas em todas as camadas da sociedade, misturando elementos portugueses (o gosto pelo açúcar, o largo uso gema de ovo, as especiarias como cravo e canela, hábito esse desenvolvido pelo contato com o Oriente) e indígenas (como o aipim/macaxeira e as frutas nativas).

Os mais indigentes e os escravos nas fazendas alimentam-se com dois punhados de farinha seca, umedecidos na boca pelo suco de algumas bananas ou laranjas. Finalmente, o mendigo quase nu e repugnante de sujeira, sentado do meio-dia às três à porta de um convento, engorda sossegadamente, alimentado pelos restos que a caridade lhe prodigaliza. Tal é a série de jantares da cidade, após os quais toda a população repousa.”

O costume português que ligava a prática da doçaria ao sexo feminino, não foi abandonado aqui no Brasil. Várias viajantes registraram como nos dias de festas as mulheres negras, escravas ou libertas, ganhavam as ruas com seus tabuleiros para vender frutas e doces.

Além da descrição em que o Debret fez sobre a refeição, nas obras de arte, ele conseguiu demonstrar muito bem também o outro lado dos hábitos alimentares: a comida de rua.

No livro Arte de Cozinha (1638), que ainda era um best-seller de culinária em 1822, 33


Negra tatuada vendendo cajus, 1827, Jean-Baptiste Debret, Museus Castro Maya

do açúcar quinze ovos, e se baterá com um batedor, ou colher, até que fique grosso; e tanto que estiver grosso, se mandará saber ao forno se está preparado, e então se lhe deitarão três quartas de farinha em pó pezada, e se tornará a bater muito bem, que não se deixe assentar a farinha no fun-

pode-se encontrar a (provável) receita de pãode-ló que a escrava vendia no momento que foi retratada por Debret: “Tomarão hum arrátel de açúcar limpo, e se deitará em hum tacho, e lhe deitarão em cima 34


do; è tanto que estiver bem batido, se deitará em bacia, ou no que houver de ir ao forno, batendolhe sempre no fundo até que entre no forno para não assentar a farinha.” (p. 138-139)

fitriões tinham o hábito de junto com a galinha servir um molho feito com pimenta malagueta esmagada com vinagre. A refeição ainda tinha uma salada recoberta de enormes fatias de cebola crua e de azeitonas escuras e rançosas. Para finalizar, as sobremesas eram frutas da terra (abacaxi, maracujá, manga pitanga, jabuticaba…), queijo (do tipo Minas) e um doce de arroz frio, excessivamente salpicado de canela. Além da água que era servida à vontade, bebia-se também vinho Madeira e vinho do Porto ao fim de toda a refeição, bebia café.

Como era refeição nobre? De acordo com Debret, a refeição começava com uma sopa chamada “caldo de substância’’. Ele descreve a receita como “um enorme pedaço de vaca, salsichas, tomates, toucinho, couves, imensos rabanetes brancos com suas folhas… tudo bem cozido”. No momento em que se leva o caldo à mesa, ainda se acrescentava folhas de hortelã. Com o caldo também era servido um cozido de carnes e legumes, e um pirão escaldado de farinha de mandioca que substituía o pão, largamente consumido com sopas na Europa desde a Idade Media,

A culinária brasileira é uma mistura de diversos sabores e ingredientes. A alimentação de famílias ricas e pobres continuam sendo diferentes, no que diz a respeito aos ingredientes, gostos, temperos, no entanto pratos a feijoada, que era exclusivamente das famílias pobres, hoje, mesmo que modificada, está na mesa de todos.

Na refeição em que Debret retratou, o prato principal era a ‘’Galinha com Arroz’’ que era acompanhada de verduras cozidas e fortemente temperadas com pimenta, e ao lado desses pratos uma pirâmide de laranjas perfumadas, que eram cortadas em quatro e distribuídas entre os integrantes da mesa para aliviar o ardor da pimenta. O pintor ainda acrescenta que seus an-

Fontes de pesquisa:

http://guiadoestudante.abril.com.br/aventuras-historia/gastronomia-imperial-como-banquetes-pedro-ii-ajudaram-dar-forma-culinaria-brasileira-774281.shtml http://www.historiadetudo.com/feijoada.html http://diariosanacronicos.com/blog/o-que-comiam-os-brasileiros-pobres-em-1822/

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Jardim Bot창nico do Rio de Janeiro: sua fauna e flora

Maria Ferreira Pacheco


Breve história

Pérgulas e caramanchões são encontrados distribuídos ao longo do arboreto, sustentando um conjunto de trepadeiras que representam uma parte importante da coleção científica, pois existe grande riqueza de dados armazenados nos arquivos da instituição sobre as mesmas. Bignoniaceae, Passifloraceae e Convolvulaceae são as famílias de trepadeiras que merecem maior atenção, pois muitos exemplares hoje vivos no arboreto foram alvos de estudos taxonômicos de Barbosa Rodrigues e de outros importantes botânicos. Ao longo do parque podemos encontrar uma diversidade de plantas, essas são algumas delas: abricó-de-macaco, açacu, agave-dragão, aguapé, babosa, eucalipto, entre muitas outras.

O Jardim Botânico do Rio de Janeiro foi fun-

dado em 13 de junho de 1808. Foi criado por decisão do príncipe regente português D. João VI para instalar no local uma fábrica de pólvora e um jardim para aclimatação de espécies vegetais originárias de outras partes do mundo. Hoje, o Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro, nome que recebeu em 1995, é um órgão federal vinculado ao Ministério do Meio Ambiente e constitui-se como um dos mais importantes centros de pesquisa mundiais nas áreas de botânica e conservação da biodiversidade. A área cultivada abriga, fora das estufas, cerca de 9 mil exemplares botânicos pertencentes à cerca de 1500 espécies. Nos canteiros predominam espécies de porte arbóreo, sendo Leguminosae, Arecaceae, Myrtaceae e Bignoniaceae as famílias botânicas mais bem representadas. Já nas estufas e nas coleções temáticas, como um todo, essa realidade se inverte. Como exemplo, podemos citar as coleções de orquídeas e de bromélias que juntas somam mais de 8 mil vasos e mais de 1000 espécies, a maioria absoluta é brasileira e obtida em expedições botânicas realizadas por pesquisadores nos últimos 30 anos.

O Jardim Botânico é contíguo ao Parque Nacional da Tijuca com uma grande área de mata preservada. Essa vizinhança permite o acesso de várias espécies animais que utilizam o Jardim Botânico naturalmente e de várias formas. Há grande número de ninhos, espécies de aves estabelecidas no interior do arboreto ou nas áreas preservadas e que acessam o local para se alimentar. Para suprir as demandas relacionadas a essa fauna, foi criado o Projeto de Conservação da Fauna do Jardim Botânico (PCF) que atua em diversas frentes de proteção, pesquisa e preser37


flor-verde-do-peito-azul (Amazilia lactea), estrela-verde-da-mata (Clutolaema rubricauda), rabo-branco-da-mata (Phaethornis eurynome) e rabo-branco-pequeno-da-mata (Phaethornis squalidus).

vação da fauna no Jardim Botânico. O PCF é responsável pela identificação e levantamentos dos animais, faz pesquisas em ecologia e comportamento animal, e orienta os visitantes e colaboradores sobre como se relacionar melhor com os animais, de forma a não prejudicá-los.

Dentre os répteis há três espécies de cágados e as mais famosas, habitantes do Lago das Tartarugas, são animais exóticos de duas espécies: tigre d’água norte-americano e tigre d’água do Sul do Brasil (Trachemys scripta – americana e Trachemys dorbigni – brasileira). Esses animais, criados como domésticos, foram abandonados no Jardim Botânico por pessoas irresponsáveis e agora estão abrigados e são controlados para evitar sua ameaça e assegurar seu bem-estar. A terceira espécie (brasileira) é o cágado de barbela, ou pescoço-de-cobra, (Phrynops sp) que habita o Largo Frei Leandro e pode ser visto, ocasionalmente, sobre as vitórias-régias ou nadando. Muitos lagartos também compõe a fauna do Jardim Botânico, entre os quais o lagarto comum (Tropidurus torquatus), que gosta de lagartear ao sol na Gruta Karl Glasl e o teiú (Salvator merianae), que se esconde em áreas de vegetação mais densa. Além disso, temos alguns registros de cobras, como jibóias (Boa constrictor) e cobras verdes (Liophis sp) que, em sua rotina natural, não oferecem perigo aos visitantes.

Muitos mamíferos têm sua área de vida dentro do arboreto, como os caxinguelês (Guerlinguetus ingrami), cuícas (Caluromys philander, Monodelphis americana), entre outros que são avistados apenas à noite, como gambás (Didelphis Aurita), ouriços caxeiros (Coendou villosus) e mãos-peladas (Procyon cancrivorus) Além mamíferos há aves, répteis, anfíbios e peixes. Dentre as várias espécies de que habitam o arboreto, podemos destacar: tico-ticos (Zonotrichia capensis), bem-te-vis (Pitangus sulphuratus), teque-teques (Todirostrum poliocephalum), sanhaços (Tangara sayaca, Tangara palmarum), saíras (Tangara seledon, Tangara cyanocehala), jandaias (Aratinga auricapillus, Aratinga jandaya), pyrruras (Pyrrura frontalis), garças (Egretta thula, Ardea alba), gaviões (Rupornis magnirostris, Amadonastur lacernulatus), entre tantas outras. Algumas espécies são visitantes ocasionais, migrando ou se escondendo no inverno, como o beija-flor de rabo rajado (Ramphodon naevius), beija38


Palmeira-imperial: originária das Antilhas, primeiro exemplar foi plantado por D. João VI

O Jardim Botânico do Rio de Janeiro é simplesmente um mundo de diversidade de plantas e animais, além disso funciona também como centro de pesquisa de botânica, ciências sociais aplicadas, ecologia e etnobotânica. 39



CONTOS da vida da gente no amor e na dor


Fluminense: ser tricolor carioca

Mateus Flogstad


O que é ser Fluminense Não é uma questão geográfica ou cultural, você não escolhe o Fluminense, e sim, ele é quem escolhe você. Nós, tricolores, fomos destinados a torcer por este time, os demais torcedores são aqueles que por ele foram rejeitados. Não é por acaso que os homens mais inteligentes, as mulheres mais bonitas e as crianças mais felizes torcem pelo Fluminense. Mas, às vezes, alguém é escolhido e muda de time – é porque não merecia. Ou então, alguém torcia para outro time e virou Fluminense – é porque ele está lhe dando uma segunda chance. Isso é ser Fluminense! É se orgulhar de torcer pelo time, e entender que torcer por ele é um destino, não uma escolha. E você tem que merecer este destino.

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Nós somos a história Em 1902, Oscar Cox teve a melhor ideia que um ser humano já lhe ocorrer: fundar O Fluminense Football Club. Em pouco tempo todo o país estava contagiado de paixão pelo futebol. Mais e mais clubes iam aparecendo e cada vez mais jogadores surgiam, e coube ao Fluminense organizar campeonatos, ligas... Nossa história é muito vasta para ser contada neste pequeno conto, e gloriosa demais para ser dita em meras palavras. Outros clubes têm torcida maior que a nossa, tem mais dinheiro, mais ídolos que nós. Porém, ninguém tem a nossa história, nós somos a história.

“Grandes são os outros, o Fluminense é enorme” Nelson Rodrigues

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A Seleção Tricolor O Fluminense é o berço da seleção brasileira. Foi aqui, em Laranjeiras, onde ela nasceu, a seleção mais vitoriosa de todos os tempos. O primeiro jogo da seleção foi realizado no nosso campo, que mais tarde virou um estádio para que o Brasil pudesse sediar e vencer pela primeira vez o campeonato sul-americano de seleções. O primeiro gol foi realizado por um jogador do fluminense, Oswaldo Gomes. O primeiro gol no novo e no antigo Maracanã foi realizado por um jogador do fluminense. O primeiro gol em do Brasil copas do mundo foi realizado por um jogador do Fluminense. Em 100 anos de história, a seleção brasileira contou com a presença de quase 100 diferentes atletas tricolores em partidas oficiais da equipe principal.

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Ser mulher no Rio de Janeiro: seis contos nada femininos Julia Limp


MARIA Preferia ter a rua esburacada, preferia os tropeços e os perigos de uma rua inacabada, preferia o incômodo de uma rua mal asfaltada do que ter de atravessar por aquelas malditas obras. Desviava o máximo que podia, mas no Rio, onde sempre tem alguma coisa em falta com a prefeitura e ela nunca faz de fato alguma coisa, o que mais existem são obras. Obras sem fim. E Maria odiava cruzar com aquelas obras todas. Com aquele barulho todo que vinha das obras quando ela passava. Aquele barulho que dói nos ouvidos. Que machuca. Barulhos que gritam. Gritam elogios nada gentis. Elogios que parecem procurar uma fenda na sua roupa, no seu corpo. Que parecem tentar arrancar seus botões a força. Que parecem elogiar assim, a força. Acompanhados de olhares severos que rasgam sua roupa e permeiam seu corpo assim, sem permissão. E seguem ferindo até cruzar a outra esquina. E parece mesmo quando está em outra rua, já longe da obra, que continuam presos na sua pele. E se falar alguma coisa, estava errada, era sempre ela, com suas roupas, com suas escolhas, com seu caminhar que provocava aquilo. Era sempre ela, ingrata, que não sabia reconhecer a beleza em ser elogiada assim. Em ser machucada assim. Afinal, Maria era só mais uma mulher tentando atravessar a rua.

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BEATRIZ Não esperava por aquilo. O homem era velho, velho mesmo. E o ônibus tava cheio e Bia com a mochila da escola pesada, só queria um lugar pra sentar. Os ônibus, naquele horário em Botafogo, são sempre muito cheios e aquele velho não deveria se enquadrar nas histórias que ouvia de sua mãe. Pensou que ele não tinha cara de senhor safado e pensou que mesmo se fosse, alguém iria ajudar. Bia pensou que alguém iria ver e um velho é coisa fácil de vencer. Mas era muito velho e a mochila estava muito pesada, então sentou ali mesmo. Bia sentou e primeiro achou que ele deveria ser só muito espaçoso, coisa de gente velha, pois parecia ter aberto um pouco as pernas. E quando viu, o velho botou assim a mão em cima da sua perna. E Bia não sabia o que dizer, ou o que fazer. Ficou olhando aquela mão pousada sobre a sua coxa. E sentia o corpo suar de nervoso. Tentou dizer algo, mas a voz não saia. E ele nem olhava pro lado. Fingia ser normal, acariciando assim a sua coxa. Bia procurou algum olhar e nada. Ninguém parecia ver aquela mão enrugada que subia até perto do seu short. E Bia queria chorar. E levantou assim no susto empurrando o braço do velho pra longe. E todo mundo olhou assim sem entender o que aquela menina fazia com aquele senhor. E todo mundo pareceu medir o tamanho das suas roupas, o comprimento do seu short. E Bia sentiu vergonha e desceu fora do ponto.

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CAROL Tinha medo daquele caminho. Se a festa acabava tarde, se não tinha carona, se tava sozinha, às vezes era melhor nem voltar. Não correr o risco. Ficar por algum outro canto. Carol tinha medo das ruas escuras e os passos sozinhos. Tinha pavor daquela sensação de alguém andando atrás de você. Mas por algum motivo naquele dia aconteceu. E as ruas com suas pedras preto e brancas dificultavam a caminhada. E ela apertava o passo. E ouviu alguém. Sua espinha gelou. Não queria virar estatística. E como ia se explicar? Talvez fosse melhor nem ter saído. Talvez a sua roupa fosse alguma justificativa, sempre é pra alguém. Se dissessem que ela tinha bebido então, não adiantava nem ir pra polícia. Ninguém se importa com devassa. E tentou andar mais rápido. E os passos aumentando. E Carol sentia os olhos cheios de lágrimas de ódio, por ter que passar por aquela situação. Ela nunca pediu aquilo, mas às vezes não é sim, e não importa muito a sua opinião. E os passos iam chegando mais perto, e Carol pensou em formas de se defender, formas de agredir de volta, formas de fugir ou de gritar ou qualquer coisa. E então os passos chegaram até ela. E Carol fechou os punhos, e o coração já batia a mil, e os olhos já cheio d’água, e o ódio já subindo a face e era mulher. A respiração estava ofegante. E era mulher. O coração voltava ao normal. Era mulher. Carol olhou no fundo dos olhos dela. Era mulher. E ela suspirou aliviada. Carol queria abraçá-la.

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LUANA Odiava carnaval. Odiava os gringos e seus cartões postais com aquele Rio de Janeiro feito de bundas e praia. Odiava todos aqueles caras entorpecidos por latas e latas de cerveja, e que acham que tinham algum direito sobre ela. Odiava as prensadas contra a parede e a insistência. As bocas podres coladas no seu ouvido, com palavras mais podres ainda. As mãos trêmulas sobre sua bunda quando atravessava a rua. Talvez não devesse viver no Rio onde os carnavais se tornam cada vez mais longos e as ruas cada vez mais lotadas. Naquele dia ela só queria comprar um cigarro, e desceu do prédio até a banca que tinha na esquina do outra rua. Acontece que era dia de bloco e em Copacabana os blocos parecem ainda mais cheios. E Luana atravessava pelas pessoas em suas marchinhas e desviava de um ou outro olhar. Foi quando uma mão boba assim atravessou o seu caminho e puxou ela pelo braço. E aquele mesmo papo embriagado de quem acha que está lhe fazendo um favor. E a raiva foi subindo. E Luana já tava cansada demais. Já via mulheres passando por isso demais. E levantou a voz, empurrou ele contra a parede e disse essas coisas que vinham se acumulando na garganta. Coisas que sentia que deveriam ser ditas. E quando viu todos faziam uma rodinha em torno deles, o rapaz assustado e os outros gritando. Gritando contra ela. Ela estava errada, ela que era uma piranha, uma puta, uma desgraçada, uma infeliz, afinal era só mais uma mal comida em pleno carnaval. Mas Luana não ligou, assim são chamadas as mulheres que tem coragem de dizer não.

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INÊS Nunca imaginou que chegariam a esse ponto. Eles eram um casal normal. Ele não costumava agir daquele jeito. Ela o amava. Tinham um ou outro problema, mas quem não tem? O marido havia bebido e todos sabemos como as coisas costumam mudar quando se bebe. O álcool sobe a cabeça ou sei já, ele nunca queria realmente dizer tudo que dizia quando bebida. Seu marido nunca diria aquilo tudo pra ela sóbrio, ele costumava se desculpar quando ficava sóbrio. Mas naquele dia foi diferente de todos os outros dias. Inês não entendeu muito bem da onde veio, não lembrava ter dito nada ou feito nada que desse margem a tudo aquilo. Ela costuma tentar não dar margem a maus entendidos daquele tipo. Ela sabia que seu marido era um homem muito ciumento. E o homem apontava o dedo na sua cara e o rosto dele começava a ficar vermelho e lhe dizia que Inês tinha de deixar de fazê-lo de idiota. Todos ali estavam o fazendo de idiota. E Inês nunca quis fazê-lo de idiota. E ficava repassando a noite inteira na cabeça, atrás de um furo, alguma falha que justificasse aquele comportamento. E todos do bar olhavam para eles. E comentavam. E apontavam. E Inês não queria que todos comentassem sobre ela. Ela não havia feito nada. E pediu que tivessem aquela conversa 52


em casa. Implorou que fossem pra casa. E ele aceitou. Feito um bom marido, ele respondeu e aceitou. E os dois iam caminhando, ou melhor, Inês tentava o segurar enquanto ele cambaleava. Ela tentou pedir pra terem essa conversa amanhã. Amanhã, quando estiver sóbrio. Mas ele não quis. Ela tentou explicar que ele estava muito bêbado e ele se ofendeu. E a ofendeu, como costuma proceder quando ele se sentia ofendido. E Inês se sentia idiota, como costuma se sentir quando o marido a ofende. E pediu para que ele falasse mais baixo, não queria incomodar os vizinhos. Mas o marido tinha raiva. E queria que o bairro inteiro ouvisse sobre Inês. Afinal, todo mundo já sabia, ele dizia. Todo mundo já sabia, menos o marido. Todos olhavam pra ela. Mesmo que ela não percebesse, todos olhavam pra ela e ele sabia disso. E sabia que era culpa dela. A culpa é sempre dela. E foi assim, sem pensar que o marido levantou a mão pra ela. E Inês teve medo. E quis gritar, mas não gritou pra ninguém ouvir. E chorou. Mas o marido a estapeou mesmo assim. E ficou nervoso, mas ela continuava chorando, então a estapeou de novo. E ela ficou calada. Talvez o marido pedisse desculpas amanhã.

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ÂNGELA Sabia que não era uma questão de ingratidão, diferente do que diziam a família e as amigas. Ela entendia que deveria ser grata, mas não é que não fosse, é que muita coisa não parecia fazer sentido. Ela não sentia todas as coisas que lhe disseram que deveria sentir. Ela havia falhado. Ela sabia disso. Falhara feio, fizera pior do que qualquer uma poderia fazer. Não apenas não os amava, pois a falta de amor ainda pode ser perdoada. Afinal quantos lares existem e persistem sem amor? Mas Ângela havia feito o pior, sentia por eles uma profunda repulsa. Pelos dois. E todo o afeto não cabia. Não era que Ângela fosse uma mulher amarga ou egoísta, ela tentou amá-los mas não conseguia. Algo dentro dela, do seu mecanismo, não funcionava. Ela tentava sorrir e repetir para si mesma coisas bonitas sobre os dois. Tentava ver graça nos seus gestos, nas suas piadas, tentava se apegar aos seus defeitos, tentava gostar dos beijos e retribuía sempre. Mentia sempre. E não sentia nada. Deveria haver algo errado dentro dela, mas agora já era tarde demais. Família não é algo que se devolve, afinal família é pra sempre. Mas Ângela não podia viver assim pra sempre. Ela poderia fazer pior, se continuasse ali poderia ser pior. Angela pensava nisso várias vezes. Talvez fosse enlouquecer, talvez fosse virar um desses casos de mulheres histéricas que queimam a casa ou assassinam o marido pouco a pouco, lhe pingando veneno no prato de comida. Mas Ângela não queria feri-los, ela não queria lhes fazer mal algum. Ela só queria ir embora. Pegar tudo que tinha e sair dali. Não ter mais filhos ou marido. Sim, Ângela não queria mais filhos ou marido. Porém dizer esse tipo de coisa em voz alta é um tanto assustador. Talvez as pessoas fossem julgar errado. E ela sentia que deveria ter nascido com a carência de algum mecanismo importante, ou talvez fosse mesmo apenas uma mulher horrível e fria. Mas quando pensava que não queria mais os filhos ou o marido, não dizia especificamente apenas daqueles filhos e daquele marido. Ângela simplesmente não queria ter mais nada que se enquadrasse naquela categoria. Ela percebera que era incapaz de se encaixar na sua categoria. A categoria de mulher, de mãe, de esposa. Ela não sabia desempenhar corretamente aquela função. Ela não sentia o amor incondicional materno. Ela não conseguia suportar ele a chamando de 54


mamãe. Odiava o som daquela palavra. E foi assim desde o começo. Ela não gostava de dar-lhe o peito ou de niná-lo antes de dormir. Ela não sentia a conexão. Se não fosse a memória, poderia dizer que olhando assim, agora, parecia que não tinham nada em comum, poderia dizer que nunca saiu de dentro dela. Ela não o sentia como algo que algum dia fez parte dela. Era um ser completamente alienado dela e que, ao mesmo tempo, dizia depender dela pra tudo. Mas Ângela só queria ir embora. Ela queria ir embora todas as noites e todos os dias. Ela pensava em ir embora a cada segundo e procurava em todos os cantos uma brecha. Uma situação que justificasse. Mas não tinha. Seu marido era fiel e não lhe batia nunca, assim como seu filho era bonito e educado e tirava notas boas sempre. Mas nada daquilo importava pra ela. Ela nunca quis ou queria saber aonde o marido estava ou com quem, não queria saber o que fazia ou como foi seu trabalho, ou o que ele estava pensando e se estava pensando em alguma coisa. Ela tinha completo desinteresse. Não é que tenha sido assim sempre, ao menos no início ela acreditava no que lhe haviam prometido. Jurava que tinha achado um bom partido e que as coisas seriam boas dali pra frente. Sabia que o sexo não precisava ser lá essas coisas, afinal, ele a amava e isso que importava. E casou porque era isso que importava, ou parecia importar. E quis ter filhos, porque é o que costuma vir depois do casamento. Mas agora, Ângela tinha com clareza a certeza de que aquilo não havia significado absolutamente nada. Então, Ângela começou a pertencer a uma outra categoria. A categoria das mulheres que vivem com os olhos na porta esperando uma tragédia para poder fugir dali. Afinal, tem coisas que as pessoas não são capazes de entender.

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No caminho de Santa Teresa: 27 de agosto de 2011

Gabriel Abreu


Naquele dia O caminho era longo. Não que tivesse um destino, pois não tinha, mas queria andar sem compromisso pelas ruas que costumava correr. E corria muito, portanto… o caminho era longo. Se o bonde passasse pularia no estribo com o bicho em movimento, como costumava fazer no tempo de ser pequeno. Andou, andou, não parou de andar, bem de vagar. Se perdeu no olhar, no pensar. Com a cabeça baixa, observava paralelepípedos. Passou pelo Largo do Curvelo, depois pelo menor cinema do Rio. Quando deu por si, estava a subir ladeiras que já não se lembrava mais aonde levavam. Mas estava tudo certo, desde que fosse levado. Então a paz foi destoada, e de trás dos sobrados, fazendo a curva da esquina, o som de bonde penetrou os sentimentos. Era hora de ser criança. Parou e esperou o bonde vir. Quando este apareceu, já não era mais o mesmo, e a infância foi embora sobre trilhos – passou diante de seus olhos amarela e trepidante, como quem se vai para não mais voltar. E esse vazio o preencheu pelo resto do entardecer a lhe empalidecer a vida.

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Andou mais um pouco, olhou sem ver, pensou um bocado, tudo andando. Andou tanto, que quase esqueceu que andava. Só se lembrou quando viu a sua frente o velho Bar do Gomes. A lembrança o fez parar. Sentou, se acomodou, não parou de beber, de afogar o vazio. Olhou, olhou mais, não parou de olhar o nada. Se perdeu na visão, no pensar. Lá fora passou a Kombi algumas vezes, na quinta vez era o seu Zé. Sem saber se por tristeza, saudade ou medo, teve vontade de chorar. Mas só vontade mesmo. O tempo correu, nem pareceu. Acordou dos pensamentos com as portas pesadas do bar se fechando de cima para baixo. Era madrugada em Santa Teresa. A conta, garçom. No caminho de volta, a felicidade veio ao seu encontro em forma de luz solar matinal. A beleza do amanhecer o fez sentir em contato com a vida. Subitamente lembrou o que era existir e se sentiu parte de algo. Experimentou o preenchimento do vazio por sede de ser. O vazio se preencheu de vez quando se deparou com o bonde vindo em sua direção. Era Nelson a conduzir, então soube que tudo estava bem. Subiu como criança no último bonde de Santa Teresa.

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Este livro foi composto em Bodoni para os textos de crônicas, e em Futura para os textos de contos, e impresso no papel couchê mate 120g/m 2, na primavera de 2015, junto com os alunos de Oficina de Produção Editorial da escola EDEM, no Rio de Janeiro.


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