Emblemata felicitas

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Emblemata Felicitas*

Nos vastos palácios da memória habitam entre arcos e colunas encontram-se certos emblemas da felicidade. São figuras que revelam-se conforme o Perguntador se dispõe - em posição inferior, como num palco de teatro ou similar- a entender-se a si mesmo, com o auxílio de imagens. As perguntas são de todo gênero: “ serei feliz?”, “ amarei por toda a vida?”, “encontrarei a paz e a alegria na existência”?, “ qual a verdade sobre as coisas?” e também a maior de todas as perguntas: “ porque estou vivo?”. Estando o Perguntador em posição de ver e ouvir muito bem, fará sua pergunta com a mente em direção ao local vazio deste palco de curta altura. Suavemente então, a sombra cairá do fundo do salão para frente e as respostas, na forma de figuras surgirão, uma a pós a outra, calma e ordenadamente a fim que o Perguntador possa contemplar a imagem em toda sua potência e dela extrair uma resposta. Algumas figuras podem ser acompanhadas de diálogos ou de conversações sublimes, outras apenas encerram um dístico ou legenda de difícil entendimento se o Perguntador não elaborou suas questões com o auxilio da memória e da reminiscencia. São elas: 1. Porque tentar o impossível?

Uma mulher caminhando por um lago de estrelas arrasta um comprido véu, o qual envolve seu corpo. Sua cabeça baixa e os braços retesados provam que é um tecido plúmbeo, seus passos são lentos e hesitantes. Veste-se de tecido pálido e sua pele reflete a luz lunar. Interpretação: O homem não conseguirá livrar-se de suas preocupações terrenas, pois caminha sem olhar as estrelas, sendo então encarregado de viver a existência como uma provação. O caminhar claudicante indica o terrenos pouco propício ao desenvolvimento espiritual. E a estrada em linha reta significa pouca ou nenhuma maneira de escapar da materialidade do mundo. O tecido da existência parece querer esgarçar-se, mas a trama do destino é fiada fortemente.


2. A inutilidade das mentiras

Uma mulher vestida de longo e emaranhado tecido negro, deixa os braços nus à vista e tem seu rosto e mãos cobertos por uma longa fita rendada. Do rosto nada pode se ver, mas está viva, pois ouve-se a pesada respiração. Interpretação: Porque cobrir a verdade com tecido esgarçado? O homem parece maior do que é quando faz sua vida na mentira e na levianidade. Porém, as mentiras contadas por toda uma vida aderirão ao corpo, deformando a beleza e imprimindo desagradavel cor violácea à alma, marcada pelas inúmeras tentativas de se esconder entre falsas palavras. Melhor tentar seguir a existência no propósito da justa e reta via.


3. As almas separadas pela vaidade

Um homem e uma mulher sentados em proximidade conversam, tendo os rostos cobertos por cones metálicos de brilho fosco. Suas palavras ecoam dentro destes artefatos e as perguntas feitas por um são respondidas pelo outro, tambem na forma de perguntas. Interpretação: Ao que busca completude no outro- a felicidade- dá-se um aviso: não busque saciar sua sede amorosa com outro ser, separado de si. A inútil busca da realização da alma resultará em uma conversa acre e o amante permanecerá cego ao outro, pois a imagem de um e de outro estarão obliteradas pela próteses da interpretação. As armas da sedução são assim: a vaidade de um e do outro amante impedirão as almas de uma comunhão espiritual. O intelecto mantem as espinhas retas dos amantes e os encontros serão apenas demonstrações de galanteria vazia e sem sentido.


4. Para que viver no passado? As respostas inúteis

Uma mulher seminua apresenta um torso deformado e balofo. Seu ventre sombrio cai pesadamente sobre suas coxas frágeis. Os seios jovens e os braços finos revelam uma donzela disfarçada. Segura em uma das mãos uma grande lente retangular como uma janela. Por esta lente vê-se o rosto da jovem, seus olhos e sua boca se movem, ela canta continuamente uma canção desconhecida.Algumas palavras são recitadas de trás para frente. Interpretação: O homem está insatisfeito com sua vida presente. Buscará no passado a explicação para suas escolhas no futuro. Sua visão será obliterada pela velocidade do tempo e a lentidão da memória. O esquecimento vencerá a disputa entre a mente e o corpo e os dois irão se separar, criando um monstro, misto de arrependimento e melancolia. O inatingível – a perfeita felicidade- estará mais e mais além da janela da imaginação e o homem deverá se esforçar, mais e mais para compreender sua existência na terra. No final da vida, os dois corpos-


o imaginado e o desejado- encontrar-se-ão na mente do homem, criando uma imagem insuportável aos olhos da mente. 5. O portador de restos: ars moriendi

Um homem vestido cerimoniosamente carrega um esqueleto, sustentando-o na frente do palco. Percutindo os ossos e as juntas, produz um som cavo e triste. Cordas musicais atravessam o esqueleto dos pés à cabeça, fazendo-se se tendões metálicos. O homem e mestre de cerimônias do bizarro concerto tem seu rosto voltado para o parceiro descarnado, repetindo as notas graves e distorcidas. Interpretação: A vida do homem é curta e dolorida. Sua existência se dá num átimo, do nascimento à morte o tempo se assemelha à velocidade das notas percutidas por um músico universal. A vida se dá no tempo e no espaço e por mais paises e geografias que o homem percorra, no fim de sua vida terá a sensação terrivel de nada ter vivido. Sua respiração se perderá no ar como um canto de pássaro, uma lufada de vento, uma folha outonal que desprende, um tufo de relva que murcha no verão, um pequeno inseto que agoniza: tudo isto sem que ninguem realmente tenha realmente e verdadeiramente percebido.


*a propósito do espetáculo Ensaios sobre a Felicidade, de Marcelo Kraiser Maria do Céu Diel, outono de 2015.


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