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AVALIAÇÃO DESCRITIVA Bárbara Vandresen Baron Centro Educacional Menino Jesus Data de Nascimento: 04/05/1995 Série: B-1-B Ano: 1995 2º bimestre: [...] dorme tranquila. gosta muito de escutar historinhas de livros que a tia conta. compreende o que se conversa com ela. 3º bimestre: [...] bárbara está muito bem, gosta muito de ficar no colégio. quando chega atira-se para o colo da tia e brinca todo o tempo. brinca com bonecas, mas prefere historinhas.
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bárbara ditou o texto abaixo em 1999 joão e maria que cuidam de ovelhinhas num sítio: era uma vez um menino chamado joão. um dia deu uma trovoada e ele chamou a maria. daí, no dia seguinte deu um sol maravilhoso e eles ficaram com calor e brincaram de pula-pula. só que no dia seguinte deu uma trovoada com sol de arco-íris do espaço sideral. eles ficaram com medo que fosse um lobo, mas eram alienígenas do espaço sideral. os alienígenas eram do mau. o joão se apaixonou pela maria. eles casaram e os alienígenas apareceram, só que eram do bem.
bárbara ditou o texto abaixo em 12/07/00 eu tenho esperança. esperança é uma palavra bem bonita. gosto muito do meu pai e da minha mãe, adoro eduarda e thaízinha, curtir e brincar, pokémon. roupa eu gosto de saia e vestido. adoramos catar folhas e colocar no nosso cabelo. amor e esperança. peço uma irmãzinha logo!
o céu dos gatos é no espaço sideral. o céu dos cachorros é no céu do planeta marte. o céu da gente é nas nuvens. no céu a gente não sente saudades porque tem muito trabalho. pode trabalhar de raio, de chuva de pedra ou “chuva normal”. bárbara maio de 2001
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AVALIAÇÃO DESCRITIVA CENTRO EDUCACIONAL MENINO JESUS 1º SEMESTRE LETIVO – 2003 “é uma menina meiga, educada, carinhosa e tranquila. tem um bom relacionamento com os amigos e professores. participa das aulas com disposição informando fatos interessantes ao grupo. completa suas atividades quase sempre com a professora, pois se dispersa com facilidade conversando com os amigos, ou mexendo com pequenos objetos. seu trabalho é deixado de lado e o resultado nem sempre é o melhor. na redação, precisa realizar exercícios que ajudem a organizar melhor suas ideias e assim estruturar melhor seus textos.”
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excertos de diário 2012-2013 meus devaneios [...] a mim entregues, cuidadosamente colocados numa caixinha de presente. poderia o pequeno lúcifer apostar as próprias asas em troca de um cânvas vazio? anjo caído, pobre criança. caiu de uma nuvem enquanto amarrava os sapatos. [...]
excertos de diário 2012-2013 numa manhã de outono, sem pressa observarei as folhas secas das alinhadas árvores de bordo caírem no chão. gole por gole, com a visão turva e calma, a imagem do meu passado recente criará para si uma moldura, e então poderei dizer que o show por fim acabou. [...]
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excertos de diário 2012-2013 eu desejo muitas coisas. que algumas coisas fossem eternas, por exemplo. eu penso que, cada momento na vida deve ser guardado. porque, em alguns anos, será apenas memória. e memória conforta, em algumas ocasiões… sim. mas quando olha-se para o céu, todas as noites, percebe-se que o cotidiano se trata apenas de um torturante suicídio. são 23 horas e 24 minutos. eu estou encostando a ponta dos meus dedos nas telhas do telhado. um homem atarefado está dirigindo com pressa para um edifício no centro da cidade. uma criança está nascendo em vancouver, no canadá.
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há também, um homem discutindo com o atendente do metrô em londres. ele acaba de perder a hora do trem. uma senhora está tomando seus remédios e indo pra cama, neste exato momento. uma menininha chamada ndali está agoniando a beira da morte, na áfrica, depois de uma semana sem sua mãe conseguir algo para comer. uma estrela cadente passa no céu. ana acaba de receber seu primeiro beijo, e por algum motivo, sai correndo. o último ônibus da linha chega ao ponto final. há alguém nele. ninguém se importa quem é. o silêncio profundo invade nossas almas e nos mata da pior maneira: lenta e dolorosamente. neste exato momento.
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25/07/2017 desde muito cedo consigo recordar momentos prenunciais desta minha conexão com coisas ligadas ao passado. isso não significa necessariamente anseio por melhores momentos a minha vida, embora isso aconteça com muita frequência. começou como um medo intenso da morte da minha mãe – certa vez, lembro de quando pequena ter passado por sua cama à noite. removi suas mãos entrelaçadas junto ao peito, pois relacionei a cena à posição das mãos em que cadáveres frequentemente descansam em seus funerais. em outra ocasião, ela me disse que acordou no meio da noite para pegar um copo de água e me encontrou sentada à porta da garagem, soluçando, certa de que os dois haviam partido. esse medo pode ter passado, mas a saudade de alguma forma permanece. acordei hoje chorando incontrolavelmente, e não consigo me lembrar exatamente de todos os eventos que aconteceram durante meu sonho, mas as casas que vivi e tenho guardadas em minha memória foram todas fundidas em uma só, e um medo incontrolável de que elas estavam prestes a serem demolidas se alastrou. por fim, acabei aos prantos, paralisada em uma poltrona de pelúcia. da janela pude ver meu pai abrindo o portão enquanto olhava e acenava, memória exata de quando tinha 5 anos e durante o verão finalmente me trouxe um jogo de computador que acabou sendo um dos meus favoritos ao longo da minha infância e adolescência.
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uma coisa semelhante aconteceu cerca de oito ou nove anos atrás, eu provavelmente tinha uns treze anos. sonhei que estava em uma das minhas festas de aniversário num local específico onde tenho muitas memórias de infância. enquanto convidados pulavam no trampolim eu conversava comigo mesma, com o meu eu de cinco anos de idade ela não conseguia parar de chorar. eu acordei soluçando naquela noite também. heimweh e fernweh são palavras alemãs que têm significados opostos, a primeira significa nostalgia e a segunda significa “wanderlust”, desejo de partir, de viajar. fernweh é o desejo de sair e heimweh é o desejo de ficar. heimweh, quando foi cunhado como termo, foi considerado efetivamente uma doença mental. a nostalgia podia ser referida como mal du pays ou the swiss illness, por causa de sua frequente ocorrência com soldados suíços na frança por volta do ano de 1688. eles eram até proibidos de cantar suas velhas canções suíças como forma de punição.
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embora às vezes eu me sinta presa no passado, eu também anseio por um futuro diferente em algum lugar novo. e me pergunto: se nunca houvesse mudança, se o mundo permanecesse estático, haveria algo tão único como o sentimento de saudade? será que existe um ponto de equilíbrio? se heimweh for passado, e fernweh for futuro, talvez o presente seja uma combinação de ambos? talvez o passado cheirando a pão quentinho e café fresco, e seu pai segurando um jornal tão grande quanto você mesma; e acordar em sua cama estampada com estrelas brilhantes às 10 da manhã de um sábado com sua mãe rindo enquanto assiste sua sitcom favorita (nunca mais encontrei jeito tão agradável de acordar, se não com risadas da minha mãe); ou até mesmo quando anseia por eras passadas onde você sequer era nascido... tudo isso seria, possivelmente, apenas distintos mecanismos de auto-sabotagem geradas pelo cérebro com intuito de evitar que cavemos mais fundo. em conclusão, eu não sei. mas me recuso a deixar de lado as nostalgias; quaisquer que sejam - passadas ou futuras, reais ou imaginárias - porque, neste ponto do tempo onde me encontro agora, três da manhã com as bochechas fervendo com lágrimas salgadas, elas já conseguiram se embutir na construção social que é o que chamo de identidade, na minha identidade. outras discussões permanecem, e eu posso ou não olhar mais profundamente para isso. me deseje sorte.
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02/08/2018 há algumas semanas estava no estacionamento do ceisa-center, em florianópolis, e comecei a encarar uma parede de vidro. me peguei pensando: o enquadramento do que eu estava vendo naquele momento era provavelmente o mesmo desde 1978, ano em que o prédio havia sido inaugurado. isso me trouxe um questionamento: havia importância, naquela fração de segundo, se o tempo era 2018, ou 1983, ou 1978? a imagem que eu via, claro, não era envelhecida como as fotografias ou vídeos, mas o que eu via, naquele momento, era a mesma imagem vista em qualquer período de tempo entre a construção do prédio e aquela fração de segundo. a única coisa que mudava era o entorno da moldura que eu via, mas o que havia dentro dela, era igual. parece que quero dizer algo muito complexo, com um vocabulário inocente de uma criança. na verdade eu já fui muito mais sábia do que sou hoje...
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para quem possa ser de interesse, meu afeto, ou melhor – meu apego; por todas as coisas marcadas pelo passado - “isso”, seja o que for, cavou tanto em meus olhos que agora conseguiu embutir-se em algum canto da minha alma. a identidade, você sabe, está sempre acorrentada ao nosso conceito de tempo, e se você pensar a respeito, todos nós estamos. somos todos escravos do tempo - alguns, como eu, mais que outros - e não há como fugir disso. “o tempo é linear, ele se expande”. aprendi isso quando tinha 13 anos. estava na sétima série e era obcecada com filmes cujo tema principal era viagem no tempo. naquela época, o sonho máximo, um ideal desejoso e infelizmente, irrealista, era voltar no tempo. não para um tempo específico, com intuito de corrigir algum erro, mas sim para qualquer “lugar”, desde que este “espaço” existisse no século xx. a ideia de fechar os olhos e acordar em algum tempo que não o que eu vivia me parecia muito atraente. em alguma tarde de algum verão entre 2006 e 2008, pus à prova um método fictício – claro – aproveitado de um filme chamado “em algum lugar do passado”. no filme, o protagonista, em meio a uma crise existencial se apaixona por uma mulher numa fotografia datada do início dos anos 1900. ele então compra roupas da época e tenta convencer a própria mente de que está lá, no mesmo ano que ela, o que por fim acontece, e os dois acabam realmente se conhecendo. na minha tentativa, claro, não funcionou. mas se a tentativa tivesse obtido êxito, bárbara pré-adolescente estaria preparada: estava na casa de seus avós na praia da daniela,
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em florianópolis, que existia desde a segunda metade da década de 1970. além disso, havia preparado uma mochila com algumas notas de cruzeiros reais, uma muda de roupa e alguns chocolates. o que quero dizer com isso é que, naquela tarde aprendi uma coisa que já havia lido na internet a respeito de viagem no tempo, mas que me recusava aceitar. que o tempo é linear, ele apenas se expande, e muito provavelmente, se algum dia cientistas conseguissem finalmente descobrir uma maneira de viajar no tempo, não seria possível voltar para trás. provavelmente só seria possível ir pra frente, para nunca mais voltar. mas tudo dá-se um jeito. pensando nisso tudo, e tentando aplicar esse anseio à minha realidade, me interessou a possibilidade da captura, apropriação e manipulação de um tempo-passado. à medida que a tal captura fiel de determinada realidade provou-se impossível – já que, claramente, a marcha do tempo é inexorável, e a cópia acaba-se abstendo de aura –, a hipótese de uma espécie de simulação-temporal demonstrou-se a única alternativa para minha incapacidade de efetivamente viajar ao passado. ah, capturar, desacelerar e deter o tempo – a ilusão do mundo.1 agora, finalmente, posso tentar captar e manipular o passado. desde que, claro, exista registro do mesmo. uma tentativa de um quadro máximo, sem duração: um verdadeiro protótipo de átomo do tempo, que não é verdadeiramente nem passado, nem presente, e nem futuro. tal quadro não poderia existir no tempo, já que, por definição, sem haver duração sua existência é impossível. por isso, imagine que possam existir bolhas paralelas à linha natural do tempo, a inflexível flecha temporal se multiplicaria em infinitos espaços-tempo,
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manipuláveis à minha vontade. tais bolsões do tempo, ou bolsões temporais, seriam envergaduras do tempo linear, curvaturas que criam um ou mais bolsões que comprimem e acolhem um tempo específico escolhido e manipulado de acordo com alguma necessidade e preferência artística/sentimental. a profundidade de um tempo e de um espaço específicos seriam manipulados de modo que o espaço, neste caso a mídia (tv, internet, vídeo, fotografias, áudios e todo tipo de registro de acontecimentos) e o tempo, os bolsões, seriam infinitamente intercambiáveis! arquivamentos de extra-realidades disponíveis para visitação por tempo indeterminado. finalmente, uma notícia boa. com um certo tom melodramático, e com a esperança de ter calhado a hipótese duma espécie de máquina de reprodução infinita de um passado-presente representado com memória capaz de estocar o tornar-se arquivo sem limite; gostaria de finalizar esta carta com um excerto do livro “pequeno discurso sobre proust” de walter benjamin: “Seria possível dizer que nossos momentos mais profundos foram dotados – como os maços de cigarro – de uma pequena imagem, uma fotografia de nós mesmos. E a tal “vida inteira” que, segundo dizem, passa pela cabeça das pessoas quando elas estão agonizando ou correndo um perigo mortal, é composta dessas pequenas imagens. Elas piscam numa sequência tão rápida quanto a dos livrinhos da nossa infância, precursores do cinema, nos quais admirávamos um boxeador, um nadador ou um tenista.” (Pequeno discurso sobre Proust, Walter Benjamin, 1932)
esperançosamente, bárbara baron [versão 21/09/18 às 18:52]
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– foi o que hreinn friðfinnsson respondeu a hans ulrich obrist quando lhe foi perguntado qual seria o futuro da arte. o que é o presente, senão um ponto sobre a linha do tempo, onde o infinito futuro é separado do infinito passado?¹ a experiência psicológica do tempo faz com o que o futuro se torne, constantemente, no passado. quase como um cachorro que corre atrás da própria cauda, ou uma cobra que engole o próprio rabo. o futuro realmente esteve aqui. é verdade! eu não sou louca! posso provar! tenho tudo documentado em vídeo! indo além das afirmações sontaguianas em a fotografia, posso afirmar: videografar é apropriar-se da coisa videografada. imagens
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videografadas são pedaços do mundo, miniaturas da realidade que qualquer um pode fazer, adquirir... e manipular. – quem sou eu? – porque estou aqui? – porque eu sou eu, e não outra pessoa em qualquer outro lugar em qualquer outro tempo? todos ansiamos por significado, é inegável, e disso as imagens estão cheias até a borda. quando nada mais faz sentido, e a vida parece uma loteria arbitrária de tragédias sem sentido e uma limitada série de fugas bem sucedidas, as imagens assumem o poder reconfortante de agarrar o que resta da existência de algum propósito. hoje nós temos um meio – o vídeo – que permeia o mundo baseando-se no movimento da informação na velocidade da luz. as imagens cinematográficas são uma reflexão do comportamento humano: podem tanto manipular a verdade quanto cruzar o espaço e o tempo, mantendo, de alguma forma, por exemplo, a existência de algum parente falecido preservado dentro de uma caixa mágica que emite luz. o vídeo tem o poder de transcender a existência humana, assim como a pintura, a fotografia e a música. a característica mais poderosa de um objeto artístico produzido pelas próprias mãos de um ser humano é a captura de sua essência. é uma das primeiras coisas que aprendemos quando pequenos, segundo a teoria do apego, na psicologia. isso acontece devido à rapidez com a qual identificamos quem somos e os objetos que consideramos nossos. mas o vídeo vai mais além desse conceito. como certa vez disse o artista bill viola, câmeras são “guardiãs da alma”. esta máquina que captura e emite luz tem vida própria e, portanto, tem o poder da captura e preservação de vidas. uma parte de mim permanece e adentra
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o vídeo, imutável pelo resto da eternidade. se observarmos as coisas à nossa volta, percebemos que tudo compreende memórias em seu próprio contexto. todas as coisas, todos os objetos são assim. principalmente aqueles feitos pela mão humana, estes tem vida própria; estão vivos. a tentativa da materialização e arquivamento do artista, como uma captura metafísica, se dá pela captura do registro do passado; já que somos todos, irremediavelmente, produtos do passado que culmina na eterna construção do presente. a tela de um monitor de televisão (e todos os seus subsequentes formatos) representa a materialização de um espaço-tempo específico. o vídeo, assim como a pintura, e posteriormente a fotografia, modifica o tempo, o capturando e o manipulando. no texto “o tempo deve ter um fim”, de kenneth anger, ele descreve a edição dos quadros cinematográficos da seguinte maneira: “[...] no visor de minha mesa de edição eu poderia parar o tempo e isolar um quadro representando a essência do evento em movimento.” portanto, o vídeo, assim como o cinema, além de estar atrelado ao tempo, na imagem em movimento, está atrelado à fantasia, graças a seu caráter ilusionista. como uma criança, que acredita que a televisão se trata de uma caixa com marionetes performando eternamente a seu dispor, realizo uma curadoria de um tempo que, mesmo que de certa forma inventado, leva o espectador a se posicionar frente à minha vida até então. meus momentos quintessenciais, enroscados em uma montagem melodramática ou compilados numa colagem audiovisual sentimental máxima, tentam refletir sobre o passado, o manipulando para tentar seguir o caminho do aqui e agora. desenvolvido em formato de instalação, o trabalho é uma tentativa de materialização de um “eu” metafísico, um estudo de identidade, uma experi-
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ência desenvolvida a partir do momento espacial-temporal – o qual tenta examinar o tempo e suas possíveis distorções. a qualidade dramática, quase teatral do trabalho cria a situação, constantemente retorcida entre a realidade e a ficção; esmagada pela pilha eterna das incontáveis linhas do tempo utilizadas no trabalho. a experiência central é desenvolvida a partir do princípio fugidio das constantes experiências de uma vida, que estão atreladas à concepção de quem somos como indivíduos. a instalação, ao todo, demonstra a percepção do tempo experienciada pelo indivíduo submetido ao bolsão temporal: as três projeções (os cara-tevês) formam um fac símile da essência criadora do projeto, exibem um paradoxo. uma tentativa de materialização de um “eu” metafísico, provido de curadoria. a natureza arquivológica do projeto acaba gerando uma pseudo-imortalidade e onipresença da artista – “eu” removida de mim mesma, um pouco de mim depositada no espaço e disponível para visitação.
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cara tevê, 2018 projeção de vídeo em três canais (parte de instalação) ∞’’, 1440 x 1080, 4:3, cor, sem áudio
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a qualidade familiar da imagem vhs é inerente à utilidade documental do próprio equipamento, o video home system (sistema doméstico de vídeo), que se popularizou no final da década de 1970 e em pouco tempo se tornou comum nas famílias de classe média. as câmeras vhs substituíam toda a complexidade da película: pois mesmo em seu formato mais amador, o “super 8”, demandava-se um cuidado e conhecimento só encontrados entre os amadores mais avançados. o vhs era, além de acessível economicamente e tecnicamente, uma tecnologia analógica: a imagem ainda existia sobre um suporte – a fita magnética – guardando assim uma certa analogia com os filmes e fotografias. a imagem digital, por outro lado, é meramente uma representação numérica, geralmente binária, de uma imagem bidimensional e pode até, em algumas situações, salvar imagens fílmicas e eletrônicas da destruição. mas não deixa de ser só isso: um conjunto de números. as imagens vhs – ainda que eletrônicas – são imagens analógicas: quando
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se passa a fita ainda é possível ver o resquício da realidade, a luz refletiu sobre algo e foi registrada na fita magnética. não existe mais imagem no sistema digital. a imagem propriamente dita se perdeu, afinal, só podemos vê-la através de uma tela. em seu texto “anamorfoses cronotópicas ou a quarta dimensão da imagem”, arlindo machado afirma que, na realidade, “as câmeras eletrônicas constituem os primeiros dispositivos enunciadores realmente capazes de anotar o tempo em imagens sequências, uma vez que o cinema apenas simula um efeito de duração através de uma sucessão de fotogramas fixos”. isso se dá pois a imagem eletrônica não é mais, como eram todas as imagens anteriores, ocupações da topografia de um quadro, mas a síntese temporal de um conjunto de formas de mutação²⁰. no dia 31 de janeiro de 2018, realizei uma video-performance chamada “melodrama analógico”. o sinal analógico havia sido desligado das televisões de florianópolis, e era planejado que até o final do ano estivesse desligado em todo o brasil. neste melodrama analógico, me encontrava em pleno estado neurótico. parcialmente desconectada da realidade, tentava desesperadamente me agarrar a tecnologias obsoletas, algumas as quais sequer pertenceram à minha vivência diária. em meio a uma espécie de surto desencadeado pela simbologia do iminente desligamento, perguntava a todos se sabiam da mudança. o fim do sinal analógico declarava em alto e bom tom, não era só o fim do sinal, era também o fim da imagem, que havia se tornado uma equação matemática. – a última perda da imagem. ninguém parecia ter entendido o que estava prestes a acontecer. o sinal analógico é “humano”, tem defeitos e erra. o sinal digital nada mais é do que uma cópia binária: é perfeita, porém desprovida de qualquer essência.
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– o sinal analógico é humano – por favor – – –
melodrama analógico, 2018 vídeo-performance 0’13’’, dimensões variadas
– perdoem o sinal analógico.
em seu livro simulacros e simulações, jean baudrillard explica tal irracionalidade nostálgica, que ocorre quando o real já não é mais o que era. o que acaba desencadeando na sobrevalorização dos mitos de origem, dos signos de realidade e de autenticidade¹⁴. quando sonhamos nossos sonhos nostálgicos, nós não “retornamos” ao passado como ele realmente era. estamos em eterna contaminação do presente-futuro. assim, a lembrança do passado não é necessariamente a lembrança das coisas como elas realmente eram. mas esse reconhecimento não remove o apelo do passado. na verdade, ele acaba aumentando ainda mais o seu fator je ne sais quoi: o fato do sujeito experienciar um intenso sentimento de saudade de algo, algo de que ele
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tenha perdido ou da qual tenha sido separado. mesmo que não se possa compreender exatamente seu pretexto. afinal, a nostalgia – como sugere svetlana boym, professora de literatura eslava comparada em harvard – “é um sentimento de perda e deslocamento, mas também é um romance da pessoa com sua própria fantasia”⁴. parecemos ser parte de uma linhagem que nunca para. e, no entanto, sempre há quebras, interrupções, turnos e becos sem saída. objetos na maioria dos casos não são para sempre, tudo tem um tempo de vida limitado⁴. assim como o tempo, a identidade é sempre algo muito evasivo e escorregadio, quase sempre uma mistura ambígua de fatores predefinidos e propósitos futuros. o tempo pode ser comprimido ou expandido, acelerado ou retardado; permanecer no presente ou ir para o passado ou para o futuro; ou até mesmo ser congelado pelo período que se desejar. o espaço pode ser diminuído ou ampliado; deslocado para perto ou para longe; apresentado numa perspectiva verdadeira ou falsa; ou ser completamente recriado num lugar que só exista no filme². após a fase de acúmulo de fatos, objetos, imagens e outros materiais como parte de um processo de arquivamento, olhando em retrospecto, a cada vez que se depara com registros audiovisuais documentais, acaba se tornando senso comum que cada visualização se torna distinta. afinal, nos conhecemos no presente, constantemente arrastando o passado. cada sequência de imagens, experiências e informações recebidas pelos nossos olhos se tornam parte de quem somos. por esse motivo a ideia de identidade é indivisível do passar do tempo. portanto, se a contaminação do presente é inevitável, porque não exacerbá-la ao ponto de saturação mais extrema? pode-se dizer que os bolsões temporais são como espinhas, cistos sebácios do espaço-
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-tempo que ocorrem devido a saturação e contaminação da essência emocional de determinado momento. manipulados, esticados ou encolhidos, se tratam de construções de um outro tempo, que se contraem paralelamente ao tempo cronológico, assemelhando-se a duplicatas curvilíneas, anexadas sobre a flecha do tempo onde pertenceriam se existissem no mundo real. “haviklaan, número 4” era o endereço da minha mãe no ano de 1993. no ano anterior ela havia deixado o brasil para fazer seu mestrado em den haag, na holanda, onde morou por um ano e meio. meu pai juntaria-se à ela na segunda metade desta estadia. os dois se casaram lá, em cerimônia pequena, em julho do mesmo ano. há alguns meses, tive a oportunidade de visitar a europa pela primeira vez, para visitar um amigo que estava morando na cidadezinha de enschede, também na holanda. por coincidência, exatamente uma semana antes do meu embarque, meus avós encontraram a fita do casamento, gravada, claro, em vhs. a fita estava perdida há mais de uma década, e a última – e única – vez que a havia assistido, deveria ter por volta de 7 anos (tenho quase certeza de que foi no mesmo dia em que tirei a foto abraçando minha mãe, incluída nesta publicação na página 17) por obrigação do acaso, visitei den haag. com nenhum intuito turístico, fui até lá com apenas um objetivo: comparecer ao casamento de meus pais. a contaminação do presente se deu instantaneamente: eles não estavam registrados no papel. o ministro encarregado da igreja, que foi muito simpático, ofereceu-se para registrá-los ali mesmo. dei um riso sem graça. afinal, eles não estão mais casados. ele também me disse que a maioria dos casamentos realizados pelo tal padre, “father david”, não haviam sido registrados corretamente: ele era alcóolatra – problema que aparentemente o tirou a vida – e muito desorganizado. anos antes ele também tinha sido
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“aposentado” pela igreja, em função de um envolvimento em um caso de pedofilia. a paróquia onde a cerimônia aconteceu, o jardim da casa onde os convidados foram recebidos, tudo havia mudado. mas há de pensar-se quadridimensionalmente. na vida quadridimensional, tudo se empilha, todos os tempos, todas as experiências, todos os monumentos, todas as pessoas; cabe ao artista, devidamente equipado, de selecionar cada elemento, para então materializar o bolsão temporal adequadamente. assim surge “haviklaan, 4”: o primeiro vídeo da tríade que compõe a instalação, e talvez uma das experiências mais importantes deste trabalho, afinal é nele em que efetivamente viajo pelo tempo e espaço.
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haviklaan, 4 (2018) vídeo #2 parte da instalação 19’19’’, 1440 x 1080, 4:3, cor, estéreo
haviklaan, 4 (2018) vídeo #1 parte da instalação 19’19’’, 1440 x 1080, 4:3, cor, estéreo
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a “quintessência” (quinta essência) se trata de uma alusão à aristóteles, que considerava que o universo era composto de quatro elementos principais - terra, água, ar e fogo-, e mais um quinto elemento, uma substância etérea que permeava tudo e impedia os corpos celestes de caírem sobre a terra³. típico, prototípico, arquetípico. clássico, modelo, representativo, ideal, consumado, exemplar, definitivo. sequências, compilações, álbuns de música e programas de televisão retrospectivos juntam seus nomes à palavra “quintessencial” em tentativas de materializar uma curadoria do essencial de determinado tópico ou sujeito. desde discos “the best of...” até cenas de filme onde o personagem se depara com uma sequência fílmica de nostálgicas cenas-memória, tais coletâneas separam momentos específicos do habitat onde pertenciam naturalmente: os desfragmentam, os reconstituindo com a percepção do presente.
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assim, aponto minha câmera imaginária em direção à qualidade onírica do cinema e a natureza fragmentada da memória quando se reflete a quintessencialidade de determinado momento. como sequências múltiplas de flashback, as memórias são coleções resumidas de uma extensão de um corpo de trabalho, resumos de uma vida inteira. a qualidade dramática destas “quintessências” nos leva à criação da cena teatral, descrita perfeitamente por roland barthes em fragmentos de um discurso amoroso: “cena nenhuma tem um sentido, nenhuma avança para um esclarecimento ou uma transformação. a cena não é nem prática nem dialética; ela é luxuosa, ociosa: tão inconsequente quanto um orgasmo perverso: ela não marca, não suja. paradoxo: em sade a violência também não marca: o corpo é restaurado instantaneamente – para novos gastos: constantemente maltratada, alterada, dilacerada, justine está sempre fresca, íntegra, repousada: assim é o parceiro da cena: ele renasce da cena passada como se nada houvesse acontecido. pela insignificância do seu tumulto, a cena lembra um vômito à moda romana: ponho o dedo na garganta (me excito até a contestação), vomito (um jorro de argumentos ferinos) e depois, tranquilamente, continuo a comer.”⁹.
a memória do momento quintessencial é, por essência, um melodrama. manipula, cinematograficamente, os filmes que carregamos no cérebro. dissociando-os do acontecimento real, os contaminando com sentimentalismo, a imagem-memória acaba, geralmente, sendo completamente diferente para dois sujeitos envolvidos numa mesma situação a ser recordada. assim como a memória, que exclui a sequencialidade de fatos sem importância que servem como moldura ao momento quintessencial, as compilações se dão a partir de uma espécie de curadoria fílmica, realizada também involuntariamente pelo cérebro humano. a cena, no sentido cinematográfico, é uma unidade temporal e espacial. por exemplo: duas cenas
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diferentes podem se dar no mesmo espaço, mas separadas pelo tempo, não deixam de ser cenas distintas. numa cena, existe ritmo – ou cadência, como é chamado – que move a 24 quadros por segundo. o ritmo é o movimento regular e periódico no curso de qualquer processo, isso vale para a cadência de projeção de um filme mas também para as ondas eletromagnéticas digitais ou analógicas emitidas de um transmissor a um receptor, como o rádio, a televisão ou o telefone celular. em meu trabalho de vídeo-performance “melodrama analógico”, a noção de ritmo da cena fílmica se confunde com a cena dramática. nesta performance melodramática, com evidente contaminação de mágoa do luto, penso nas ondas do sinal analógico como humanas, pois captam erros e barulhos: são imperfeitas. já o sinal digital capta perfeitamente o que está sendo emitido, é uma cópia exata, e sua onda é “quadrada”, não é orgânica e imperfeita como a onda analógica. me interessa todas as tecnologias analógicas, pelo seu aspecto “hoarder”, acumulador. de guardar memórias e coisas do tipo, já que as tecnologias digitais hoje possuem vida útil muito curta. as tecnologias obsoletas me parecem muito mais físicas, e isso também me interessa. acho que elas possuem um aspecto muito mais sincero. outro aspecto desta vídeo-performance foi o uso da tela azul, apropriado do trabalho “television delivers people”, do artista richard serra. tive a impressão de se assemelhar à uma sala de espera, onde o espectador pode permanecer por toda a eternidade. após a realização deste trabalho, para todos os lados a única coisa que eu via eram telas azuis, estavam por todos os lugares, no meu dia-a-dia, como se estivessem me perseguindo. a tela “de espera” azul nas televisões, ou “the blue screen of death” em computadores, é um limbo audiovisual. através de pesquisas, descobri que o azul é a cor que a tela reverte também sem entrada
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(na televisão), e isso pode ser devido a como a fiação envia entradas elétricas, sendo que sem ela, a cor volta a 100% B na escala RGB. além disso, o azul é a cor mais fácil de se geral em uma tela, depois de uma imagem em preto e branco. durante o zapping da televisão, onde o espectador fica trocando os canais, na fração de segundo que divide um canal do outro, como uma espécie de quadro máximo¹, está a tela azul. geralmente ela é imperceptível ao olho humano, mas, dependendo da velocidade do empilhamento dramático de acontecimentos, geralmente devido à alguma interferência ou desvio de sinal, a sala de espera azul pode ser exposta. no vídeo “quintessencial”, o bombardeamento imagético é proferido por meio do ritmo, um movimento regular e periódico que demonstra a sequencialidade e sobreposição das cenas. então, o vídeo diverge para a quebra do ritmo – a tela azul –, emulando a interferência do sinal – um ápice constante e estendido, que provoca a própria quintessência – perfeição – que compõe o conjunto do trabalho.
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quintessencial, (2018) vídeo #2 parte da instalação 5’00’’, 1440 x 1080, 4:3, cor, estéreo
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estamos no futuro: olhando adiante, para variar, zygmund bauman afirma: “sua hora de ser crucificado parece estar próxima, depois de ele ter sido aviltado como algo não confiável e não administrável – que está inscrito na coluna dos débitos. e agora é a vez de o passado ser posto na coluna dos créditos – um crédito merecido (genuína ou putativamente), por ele ainda ser um local de livre escolha e um investimento em esperanças até agora não desacreditadas.”⁴. o mundo “aqui e agora” nada mais é que um entre infinitos mundos possíveis – passados, presentes, futuros. – aqui e agora. – hic et nunc. há algum tempo atrás, quase sem querer, acabei misturando o gênero literário dos romances “coming of age” com o termo latino “hic et nunc”. “amadurecimento”, em português simplificado, o
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coming of age geralmente trata de uma história de amadurecimento, onde a narrativa enfatiza o crescimento de um personagem, geralmente o momento em que passa da juventude para a vida adulta. já hic et nunc, do latim “aqui e agora”, é uma expressão muito utilizada na filosofia existencialista, mas a conheci quando li “a obra de arte na era da reprodutibilidade técnica”, de walter benjamin. para ele, o original de uma obra é sempre dotado de um hic et nunc, que garantiria sua autenticidade. ele ainda enfatiza que, tendo sido produzido apenas um exemplar, num momento específico, em um lugar e ocasião única e criado por um indivíduo específico, o público atribuiria à obra uma aura, “...a única aparição de uma realidade longínqua, por mais próxima que esteja”. tudo isso se misturou na minha cabeça com a percepção de captura de um tempo, da nostalgia, e de zeitgeist, termo alemão que significa “espírito do tempo”. mas, pensando bem, os dois termos (hic et nunc e coming of age) têm sim, uma similaridade. numa tarde de verão de 2015, nas vésperas da minha volta ao brasil, ainda em chicago, estava com um amigo na fila de um festival de música. o sol estava a pino, e a fila estava quilométrica. naquele dia o que eu mais queria era assistir uma banda chamada perfume genius, e ouvir uma música específica: “fool”. enquanto esperávamos na fila, eu ficava ansiosa, pois o show estava prestes a começar, e como a música não era a mais famosa da banda, imaginei que seria uma das primeiras a tocar. então meu amigo disse “acho que isto não é uma fila”, e, de mãos dadas, corremos em direção ao início da fila. de fato, estávamos na fila errada. prosseguimos pela minúscula fila frente aos portões de ferro que dividiam a rua e o espaço do festival e, ainda de mãos dadas, corríamos em direção ao palco: nesse momento, ao volume máximo, a banda tocava a música “fool”. este momento específico, registrado na minha memória com estrutura similar às montagens
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retrospectivas cinematográficas seria, ao mesmo tempo um momento coming of age (a coming of age moment), e um momento quintessencial. um momento que define. um momento que é a maior experiência. um momento que explica, esclarece tudo. um momento em que a luz é vista. a verdade é que o aspecto fugidio do presente o torna, constantemente, no passado. a impossibilidade da captura dos presentes quintessenciais acabam os tornando ainda mais valiosos, afinal, o atrativo de qualquer coisa é justamente a sua efemeridade. segundo a física, isso é explicado a partir do conceito de entropia: que com o passar do tempo as coisas discorrem da ordem ao caos com o passar do tempo. é por isso que livros envelhecem, prédios tornam-se ruínas, e seres humanos envelhecem. “hic et nunc” é a tentativa de conclusão de algo incapturável, uma tentativa de prova da minha própria existência. se não posso capturá-lo, posso pelo menos tentar simulá-lo, o que potencialmente poderia agir como método facilitador da minha evidente neurose, se não atingido seu potencial de desfecho. mas se alcançando seu fim, caminha-se para o aqui e agora, elevando-se para a conclusão, me permitindo olhar para frente. nesse momento, eu, como artista, sou obrigada a me colocar frente à lente da câmera, em frente a um espelho, confrontando a mim mesma. o novo enfrentamento é aqui e agora. a rapidez do tiroteio imagético se multiplica de haviklaan à quintessencial, e não por isso para em hic et nunc: ele apenas se agrava, passa a deslocar-se na velocidade da luz, e só então, como consequência de sua saturação extrema, atinge seu estado de ebulição. a explosão do momento.
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dá-se um tchau, liberta-se. a corrida continua, todavia, ininterrupta. ela pode mudar de direção e até de pista – mas não vai parar.
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hic et nunc hic et nunc, (2018) vídeo #3 parte da instalação 5’00’’, 1440 x 1080, 4:3, cor, estéreo
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parte da instalação 5’00’’, 1440 x 1080, 4:3, cor, estéreo
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posfรกcio ivi brasil
eu vejo o futuro repetir o passado eu vejo um museu de grandes novidades o tempo não para não para, não, não para... ... ... ... bárbara, nessa segunda-feira da ressaca eleitoral, lembrei do cazuza, da canção “o tempo não para”. música antiga pra vc, né? mas daí vc me chama no messenger e me fala sobre eternidade - é muito tempo tudo isso! a gente esquece, deixa de lado, faz de conta que não aconteceu. depois, algumas coisas mudam e fatos são reencenados, reperformados, atualizados (?). às vezes é déjà vu, às vezes é a realidade se repetindo, ciclicamente. é a máquina do tempo em nós mesmos.
tô aqui pensando... ... saudade é uma máquina do tempo potente, sabe? é aquela mistura de sentimentos... a falta, a perda, a distância, o tempo que passou. a palavra saudade vem do latim solitatem, que significa solidão; e é nesse estar sozinho que nos vemos por dentro, que tomamos força para continuar na linha do tempo. marche! 1, 2... quero dizer, a lembrança do passado e
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a invencionice do futuro são as chaves para o presente. a ação aqui-agora é mais forte que a estática escultura, mais colorida que a estática pintura, intensa e envolvente por nos transportar a tempos distantes, ou bem próximos, é como numa aula de história. os nossos corpos são máquinas de tempo, de duração, de acúmulo de informação. ao mesmo tempo que desdobramos as informações e as juntamos a milhões de experiências incorremos no desgaste de nossas peças. meu coração ainda não falhou, meu cérebro continua a fazer sinapses, e ao te encontrar já aos vinte e poucos anos fui transportado para uma tarde que fui visitar tua mãe e te vi no berço a dormir tranquilamente. o embate com o outro e com o dia a dia é a verdadeira máquina que nos transporta a muitos lugares, e nem precisa ser via satélite. avante! ivi brasil
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agradecimentos evandro baron por ser meu pai cláudio brandão pelas conversas filosóficas acompanhadas de pizza gustavo paim pela criação do som utilizado neste trabalho ivi brasil por aceitar escrever o posfácio desta publicação e vir de são paulo para participar da banca maria laura cabral por aceitar fazer o projeto gráfico desta neurose compilada monique vandresen por ser minha mãe raquel stolf por aceitar fazer parte da banca, me orientar como monitora de vídeo e aceitar escrever o texto curatorial desta exposição regina melim por me orientar durante todas as etapas da concepção deste trabalho de conclusão de curso
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