ENSAIAS
CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/CEHB M217
Maia, Mariana Ensaias : performance, escrita, costura / Mariana Maia. – 2011. 77 f. : il.
Orientador: Roberto Corrêa dos Santos. Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Artes. 1. Performance (Artes) – Teses. 2. Arte e sociedade – Teses. 3. Teatro grego – Teses. 4. Êxtase – Teses. 5. Dionísio (Divindade grega) –– Teses. 6. Ritos e cerimônias. 7. Escrita – Teses. I.Santos, Roberto Corrêa dos. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Artes. III. Título.
CDU: 792.028
MARIANA MAIA
ENSAIAS
PERFORMANCE, ESCRITA, COSTURA
Orientador: Professor Doutor Roberto Corrêa dos Santos
Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Instituto de Artes Programa de Pós-graduação em Artes
Mariana Maia
ENSAIAS: PERFORMANCE, ESCRITA, COSTURA Dissertação apresentada ao PPGARTES – Programa de Pós-Graduação em Artes da UERJ, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre na área de concentração de Arte e Cultura Contemporânea. Orientador: Professor Doutor Roberto Corrêa dos Santos
Rio de Janeiro 2011
Mariana Maia
ENSAIAS: PERFORMANCE, ESCRITA, COSTURA
Dissertação apresentada ao PPGARTES – Programa de Pós-Graduação em Artes da UERJ, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre na área de concentração de Arte e Cultura Contemporânea. Aprovado em 12 de Abril de 2011. Banca examinadora:
________________________________________ Prof. Dr. Roberto Corrêa dos Santos (Orientador) Instituto de Artes da UERJ ________________________________________ Prof. Dr. Roberto Luís Torres Conduru Instituto de Artes da UERJ ________________________________________ Profa. Dra. Simone Michelin Escola de Belas Artes da UFRJ Rio de Janeiro 2011
Ă€ menina que sonhou ser o vento. Vagante pelas saias do mundo.
AGRADECIMENTOS
A Roberto Corrêa dos Santos, orientador, professor, amigo, pelo amor e estímulo. Aos professores Roberto Conduru e Simone Michelin, integrantes da banca de defesa de dissertação, pela atenção e leitura deste trabalho. Aos professores Marcus Motta e Malu Fatorelli, pelo acompanhamento do meu processo, realizando importantes comentários. Ao Programa de Pós-graduação em Artes e seus professores por terem acreditado em minha capacidade intelectual e criativa. Aos funcionários do Instituto de Artes da Uerj, em especial a Jorge Luiz Santos, Janaína Simoes e Maria Tereza Palmeira, pela amizade e apoio. A Auricéia Lima e Vanessa Soares, por terem me apresentado a arte. A Vitor Ramos Braga, pela árdua ajuda, dedicação e pela amizade inestimável. À minha família, por estar ao meu lado.
RESUMO MAIA, Mariana. ENSAIAS: PERFORMANCE, ESCRITA, COSTURA. 77fls. Dissertação (Mestrado em Artes) – Instituto de Artes, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011. Ensaias é uma proposta artística e teórica acerca da linguagem da Performance. Ensaias propõe que artista, público e obra entrem em comunhão através do ato performático, propiciado pela figura-conceito saia. Friedrich Nietzsche, em O nascimento da tragédia (1872), fala do coro satírico do ditirambo como o elemento potênciador do êxtase dionisíaco. A decadência dos helênicos estaria atrelada ao abandono das orgias báquicas e a diminuição da importância do coro na tragédia ática, por culpa de um socratismo exarcerbado. A presente dissertação propõe realizar uma costura entre a performance e os ritos ao deus Dionísio. Renato Cohen, em Performance como linguagem (2007), diferencia teatro ilusionista e performance. Cohen acredita que o teatro está ligado à representação, já a performance estaria ligada ao sentido de atuação. Ambos, teatro e performance, têm sua existência no aqui e agora. O performer não interpreta como o ator, ele vivencia, corre o risco. Atuar para o performer significaria, segundo Cohen, compor um rito. Vestir a saia consistiria em trazer à tona o rito trágico. Experimentar a proposta artística Ensaias é permitir que o corpo seja tomado pelo êxtase. Através da apreciação de imagens de performances e trabalhos vários, o texto propõe um sentido ampliado para a performance. Como ponto de interseção: Ensaias. Palavras-chave: Performance. Escrita. Costura. Coro trágico. Êxtase dionisíaco.
ABSTRACT Ensaias is an artistic and theoretical proposition about the expression of Artistic Performance. Ensaias suggests that artist, audience and artist work itself commune through the performance act, propitiated by the figure that brings the idea of skirt. Friedrich Nietzsche, in The Birth of Tragedy (1872), writes about the dithyramb as the key element on the Dionysian ecstasy. The decadence of the Greek would be linked to the renunciation of bacchante orgies and reduced participation of the Greek choir in the attic tragedies, encouraged by an over evaluated socratism. The present work proposition is to realize a sewing that unites Performance Art with the rites given to Dionisius. Renato Cohen, in Performance como linguagem (2007), differs theatre from Performance Art. Cohen argues that Theatre is linked to representation, while Performance Art is linked to the actual act. Both, Theatre and Performance Art, have their momentum in the present existence. The performer doesn’t represent like an actor, he lives the act and accept the risks. Following Cohen; for the performer acting would be like performing rites. Dressing the skirt consists in bringing out the tragic rite, Experiencing the artistic proposition Ensaias Is to allow the body to be overtaken by the ecstasy. Through the appraisal of various performance images and performance works the Text works an improved meaning for Performance Arts, with Ensaias in an intersectional position. Key-words: Performance. Writing. Sewing. Greek Choir. Bacchante Ecstasy.
LISTA DE IMAGENS Imagem 01 Mariana Maia, Ensaias Azul, fotografia digital, 2011. Fotografia: Vitor Ramos Braga. Manipulação digital: Mariana Maia.
11
Imagem 02 Marina Abramovic, Ritmo 0, performance, 1974.
22
Imagem 03 Máscara trágica, século V a.C.
23
Imagem 04 Orlan, Quarta operação cirúrgica, performance, 1991.
24
Imagem 05 Lygia Clark, Baba antropofágica, performance, 1973.
25 26
Imagem 06 Mariana Maia, Ensaias N.2, performance realizada no Centro Cultural Cartola – Mangueira/ Rio de Janeiro e no Encontro Nacional de Estudantes em Artes – UFBA/ Bahia, 2009. Fotografia: Vitor Ramos Braga.
27
Imagem 07 Hélio Oiticica, Parangolé, década de 1960
28
Imagem 08 Vênus de Milo, cerca de 130 a.C.
30
Imagem 09 Flávio de Carvalho, Experiência n.3, 1956.
33
Imagem 10 Flávio de Carvalho, Experiência n.3 - traje, 1956.
33
Imagem 11 Gian Lorenzo Bernini, Êxtase de Santa Teresa, 16451652.
34
Imagem 12 Lygia Clark, Estruturação do self. 1976.
35
Imagem 13 Lygia Clark, Nostalgia do corpo. 1968
36
Imagem 14 Lygia Clark, Bichos. c.1960
36
Imagem 15 Lygia Clark, Caminhando, 1963.
38
Imagem 16 Lygia Pape, Divisor. 1968.
38
Imagem 17 Arthur Barrio, Trouxa ensanguentada – MAM, 1969.
39
Imagem 18 Antônio Manuel, Museu de Arte Moderna, 1970.
39
Imagem 19 Joseph Beuys, Eu Amo a América e a América Me Ama, 1974.
41
Imagem 20 Paulo Bruscky, O que é a arte?Para que serve?, 1978.
42
Imagem 21 Atrocidades Maravilhosas, 2000.
42
Imagem 22 Márcia X, Desenhando com terços, 2000-2003.
43
Imagem 23 Bas Jan Ader, I’m too sad to tell you, 1971.
43
Imagem 24 Wilson de Avellar, As coisas tais quais elas são quando não estamos nelas, 2003.
44
Imagem 25 Marcos Paulo Rolla, O banquete, 2003.
44
Imagem 26 Leonilson, Leo não pode mudar o mundo, 1991.
49
Imagem 27 Artur Bispo do Rosário, Manto da apresentação.
49
Imagem 28 Marcel Duchamp, A fonte, 1917.
50
Imagem 29 Mariana Maia, Entreatos N.1, maçãs do amor - registro do resultante da ação, abril de 2009. Fotografia: Mariana Maia.
53
Imagem 30 Artur Barrio, Trouxa ensanguentada, 1969.
55
Imagem 31 Mariana Maia, Entreato N.2, performance, maio de 2009, IFRJ. Frame de vídeo: Hélio Mello Vianna.
58
Imagem 32 Allan Kaprow, Words, 1962.
59
Imagem 33 Márcia X, Alviceleste, 2003.
60
Imagem 34 Márcia X, Pancake, 2001.
60
Imagem 35 Márcia X, Lavou a Alma com Coca-Cola, 2003.
61
Imagem 36 Mariana Maia, Ensaias N.1, performance, 2009. Fotografia: Mariana Maia
63 64
Imagem 37 Mariana Maia, Ensaias N.2, performance realizada no Centro Cultural Cartola – Mangueira/ Rio de Janeiro e no Encontro Nacional de Estudantes em Artes – UFBA/ Bahia, 2009. Fotografia: Vitor Ramos Braga.
67 68
Imagem 38 Mariana Maia, Ensaias N.3 – Saia Vendar, performance, 2009. Fotografia: Mariana Maia.
70 71
Imagem 39 Mariana Maia, Ensaias N.4 – Saia Rasgar, performance, 2010. Fotografia: Vitor Ramos Braga.
74 75
Imagem 40 Artur Barrio, 6 movimentos, 1974.
76
Imagem 41 Mariana Maia, Ensaias N.5 – Já temos assento, fotografia digital, 2010. Fotografia: Mariana Maia.
78
Imagem 42 Mariana Maia, Ensaias N.5 – Já temos assento, performance, 2010. Fotografia: Mariana Maia.
79
Imagem 43 Francisco Goya, Ya tienem asiento, 1799.
80
Imagem 44 Mariana Maia, Ensaias N.7 – Fitas, performance no evento Caos Específico, Espaço Clarabóia – Lapa/ Rio de Janeiro, 2009. Fotografia: Reginaldo Maia.
82 83
Imagem 45 Mariana Maia, Ensaias como danças, performance, 2011. Fotografia: Vitor Ramos Braga.
85 86 87
Imagem 46 Mariana Maia, Ensaias retalhada, performance, 2011. Fotografia: Mariana Maia.
89
SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ................................................................................
12
2. ATO .................................................................................................
15
3. RITO ................................................................................................
19
4. MÁSCARA ......................................................................................
23
5. PERFORMANCE ............................................................................
28
6. ESCRITA .........................................................................................
45
7. COSTURA ....................................................................................... 49 8. SATURNO .......................................................................................
54
9. ENSAIAS ......................................................................................... 9.1 Entreatos .................................................................................. 9.2 Ensaias N.1 ............................................................................... 9.3 Ensaias N.2 ............................................................................... 9.4 Ensaias N.3 – Saia de Vendar .................................................. 9.5 Ensaias N.4 – Saia de Rasgar .................................................. 9.6 Ensaias N.5 ............................................................................... 9.7 Ensaias N.6 – Saia Fitas ........................................................... 9.8 Ensaias N.7 – Ensaias como danças ......................................
55 55 65 69 72 76 80 84 88
10. CONCLUSÃO .................................................................................
90
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................... 92
Imagem 1 Ensaias Azul, fotografia digital, 2011. Fotografia: Vitor Ramos Braga. Manipulação digital: Mariana Maia.
12
1.
INTRODUÇÃO
Pesquiso ou persigo saias. “Agora, ao som do fabuloso artífice, ele parecia ouvir o barulho das ondas escuras e ver uma forma alada voando por sobre as ondas e se elevando lentamente no espaço.”1 O vôo de Dedalus por sobre o mar rumo ao sol. Do insondável da existência se ergue uma forma alada. A primeira imagem, indelével. Saia azul suspensa no terreiro, recordação. Ganhava vida fugaz através de uma brisa. Bailava pelo ar que a sustentava acima do solo. A cada sopro, a saia no varal infla parecendo reviver um corpo que falta. Incorpora sua antiga dona, uma velha negra. O pedaço de tecido ao vento era a presença dela, da avó, morta há pouco tempo. Lembrança diante da qual meus olhos despertaram para um ato de performance. A saia azul que jazia sem um corpo era animada novamente. Ela estava viva ao vento ou em outros corpos. Mulheres familiares costumavam vestir a saia. A semelhança com a avó fazia com que a presença dela persistisse no corpo dessas outras mulheres. A saia de uso comum era uma espécie de entidade. As vestes, os objetos, os lugares, todas as coisas são entes (seienden) dotados de um ser (sein), Heidegger (1979). O ser-aí (dassein) pode conferir significado e vida 1 Joyce, James. Um retrato do artista quando jovem. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006. p. 180.
13
às coisas? A saia azul lentamente se eleva. É a lembrança impalpável. Vida renovada na dança das mulheres de saias. Performance dos corpos coletivos entorno do ente. O significado de performance pode estar atrelado à ação do corpo coletivo ou à de um ente. Mulheres usando saias. Herança. Um gesto repetido por gerações. Em saias sentese o ar por entre as coxas. Nada impede o movimento. “Maria sunga a saia, chuva évem pra te molhá.” 2 Maria empreende a dança libertária. Ela sobe as saias até as coxas e sobe o morro em meio à torrente. A água corre por entre as pernas, a vida se realiza. Saias com pesada armações, sufocantes. Arrastadas pelas estradas secas e empoeiradas. Apertadas entre panos. Desconforto sem fim. Saia justa. O que pode uma mulher em saias? Inúmeros homens usaram saias. Não pensaram nelas como símbolos do feminino, mas sim como símbolos de clãs, força viril, guerra. “Eu tenho pena, eu tenho dó, de ver Maria de saia sem paletó. A Maria foi ao jongo de saia de mirinó, seu cordão arrebentou sua saia foi ao pó.” 3 Saias não são símbolos do feminino. Saias são vestes que na cultura ocidental foram associadas à mulher, mas possuem inúmeros correspondentes no vestiário masculino, assim como as peças “tipicamente” masculinas possuem correspondentes nos armários femininos. Em nossa atual forma de vestir há um verdadeiro troca-troca de personagens entre os gêneros. Preferem as mulheres do século XX trocar suas saias e vestidos por calças e ombreiras. 2 Monteiro, Darcy. Maria sunga a saia (ponto de visaria) – CD Player do Jongo da Serrinha. 3 Monteiro, Darcy. Eu tenho pena (ponto de demanda) – CD Player do Jongo da Serrinha.
14
“Agora, estou sentada, olhando a saia rodada, a saia amarfanhosa, almarrotada. E parece que me sento sobre a minha própria vida.”4 Outrora havia um corpo carnal. Alguém familiar. Aquela que tomava o ponteiro. No barracão de vigas podres, que parecia querer desabar. As ruínas de um palco esquecido. Nas paredes, saias, de cores várias. Belas, misteriosas, sensuais. Ela costurava e pensava no tempo como um fio dançante. Infinitamente deslizando pelas mãos calosas que empunhavam a agulha. Hábeis e trêmulas se movimentavam sobre o trama, produzindo rasgos ou juntando retalhos. Compondo vestes. Repito um gesto. Saias pendem das paredes e teto do atelier. Ensaios de uma proposta performativa. A persistência do corpo nos objetos. A presença se faz presente através das saias que outrora foram e que agora são. Ensaias: proposta textual e artística, atos, realizados pela artista, pelo público, ou ambos, em torno de objetos, saias, ou de algo que remeta à figura-conceito saia.
4 Couto, Mia. A saia almarrotada In “O fio das Missangas”. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
15
2.
ATO Ensaias propõe que se realizem atos: escrever, ler, coser, alfinetar, rasgar,
cortar, vestir, molhar, queimar as saias. Artista e público, nesses atos, fazem e refazem as saias propostas; no entanto, as saias nunca são finalizadas. Trata-se, portanto, de objetos inacabados. A performance almeja completar o gesto artístico por meio dos atos compactuados, em torno das saias, entre artista, obra, público. Ensaias propõe performance como a realização de atos, ou seja, performance como atuação. Renato Cohen, em Performance como linguagem (2007), pensa performance segundo o sentido de atuação. Cohen (2007) compara o teatro ilusionista, aquele que se propõe a criar uma ilusão do real, com a performance. No teatro ilusionista haveria ênfase na representação. Os elementos cênicos se reportariam a uma “outra coisa” - eles representam, almejam o ficcional e o ilusório. Na performance, por sua vez, haveria ênfase no sentido de atuação, o que abre a possibilidade do improviso, do espontâneo. Atuação significando andar por um limite tênue entre vida e arte. Cohen (2007) expõe: “à medida que se quebra com a representação, com a ficção, abre-se espaço para o imprevisto, e, portanto, para o vivo, pois a vida é sinônimo de imprevisto, de risco”5. Teatro ilusionista e performance, segundo Cohen (2007), são caracterizados pelo aqui-agora, estar diante de um público no momento da ação. No entanto, a performance será aquela que correrá o risco de estar à mercê do momento presente. Pois o público, na performance, será atuante. Os atos serão compactuados. Atos 5 Cohen, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2007.p. 97.
16
ritualísticos que evocam o sentido de performance. Diz Cohen em Performance como linguagem (2007): Na performance há uma acentuação muito maior do instante presente, do momento da ação (o que acontece no tempo “real”). Isso cria a característica de rito, com o público não sendo mais só espectador, e sim, estando em uma espécie de comunhão [...] A relação entre o espectador e o objeto artístico se desloca então de uma relação precipuamente estética para uma relação mítica, ritualística, onde há um menor distanciamento psicológico entre o objeto e o espectador [...] 6
Cohen (2007) afirma que na performance há uma acentuação do momento da ação e que isto seria uma característica do rito. O público deixa de ser espectador e passa a ser participante, pois estabelece uma relação mítica ritualística com a obra. Pode-se dizer que o ato performático se concretiza na participação atuante do público. No entanto, propõe-se aqui pensar que não há um abandono do ensaio ou do caráter ficcional e ilusório. Portanto, a performance não se afasta de todo do teatro. Ela se aproxima do teatro com a prática da performance. A proximidade com o rito, proposta por Cohen (2007), mostra que a performance tem relação com o ensaiado. Ritos, segundo Aurélio 7(1999), são regras e cerimônias próprias de uma prática sagrada. Pode-se dizer, assim, que ritos são gestos, palavras, atos, realizados de forma repetitiva, compondo uma cerimônia, atualizando um mito. O rito é um ensaio sempre, em sua ligação com o significado de performance. Ensaio de algo que nunca se dará de fato. O rito, uma ilusão de verdade – o véu de algo que nunca se dará a ver. O rito se aproxima do significado de ensaiar, experimentar, pôr em prática, mas nunca concluir-se. 6 Cohen, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2007.p. 98. 7 Aurélio, Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio eletrônico: século XXI. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Lexicon Informática, 1999.
17
Ensaias constitui-se de ritos que problematizam gesto e finitude; Ensaias entende performance como ações: repetição de atos procurando olhar a realidade, os fenômenos, a “origem” da arte. A artista escreve os preceitos de um rito, que será mitificado a partir da participação do público; em sacrifício, vemos a obra de arte que morre em sua materialidade evidente, mas que se perpetua no momento findo do ato, daquele ato. A performance, em certa medida, parece fazer renascer o trágico. Ensaias se dá como um gesto a problematizar a finitude da obra de arte. Diz Joseph Kosuth em A arte depois da filosofia (2006): [...] a validade das proposições artísticas não é dependente de qualquer pressuposição empírica, muito menos de qualquer pressuposição estética acerca da natureza das coisas. Pois o artista, como um analista, não se preocupa diretamente com a propriedade física das coisas. Ele se preocupa apenas com o modo [...] as proposições de arte não são factuais, mas linguísticas, em seu caráter – isto é, elas não descrevem o comportamento de objetos físicos nem mesmo mentais; elas expressam definições de arte, ou então as conseqüências formais das definições de arte [...] 8
Kosuth (2006) pensa o que ficaria conhecido como Arte Conceitual, apresentando diversas considerações acerca do caráter não empírico e objectual da arte. O artista, para Kosuth (2006), é alguém que realiza proposições de caráter linguístico, expressando definições da arte ou as consequências formais das definições de arte. O fazer da arte associa-se a uma tomada metalinguística. Arte se ocupando de falar, sobretudo, de arte. Logo, a fatura dos objetos não seria o mais necessário, mas sim o poder de a arte estar em ato. Fazer arte significaria propor atos que tratem do que pode ser, arte. Ensaias se estabelece nesse 8 Kosuth, Joseph. A arte depois da filosofia in: Ferreira, Gloria e Cotrin, Cecília (orgs.). “Escritos de artistas anos 60/70”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 210-234, 2006. p. 220.
18
contexto. As ações propostas pela performer questionam o significado do que é uma performance. Os objetos que são dispostos para o público são feitos para serem modificadas e/ou destruídas pelas ações. As saias pretendem significar mediante a ação de colocá-las em ato: a artista põe-se como um propositor de ritos em torno da obra de arte. Na contemporaneidade o objeto de arte (se é que se pode falar de objeto e mesmo de arte) parece se desmaterializar. O discurso ganha ênfase. “A obra não é mais um nome/objeto, mas um verbo/processo”.
9
A arte contemporânea se dirige para o verbo, para a linguagem: a arte como um problema de linguagem. A pesquisa propõe realizar uma costura entre as experiências artísticas denominadas Ensaias e o que aqui se concebe como performance, tudo como se houvesse uma fenda, uma cicatriz que necessitasse ser cosida pela ação daquela que disserta - Ensaias se faz presente com objetos, ações, palavras, folhas de papel.
9 Kwon, Miwon. One place after another: site-specific art and locational identity. London and Cambridge, Mass.: Massachusetts Institute of Technology, 2002; viii + 218 pp.
19
3.
RITO O Projeto desenvolvido para o Mestrado em Artes da UERJ, em 2009,
propunha abordar performance através do que Friedrich Nietzsche (2007) descreve como o coro trágico do ditirambo. “Princípio gerador da tragédia e do trágico em geral” 10, o coro levaria seus integrantes, assim como o público, ao êxtase dionisíaco. Atores e público se desfazem de sua individualidade e se tornam todo, Ur-Eine (Um primordial); do caos primeiro anterior ao princípio de individuação. Diz Nietzsche em O nascimento da tragédia (2007): Agora, por meio do evangelho da harmonia universal, cada um se sente, com seu próximo, não somente unido, reconciliado, fundido, mas também idêntico a ele, como se o véu de Maya se tivesse rasgado e como se flutuasse de um lado para outro diante do misterioso Um primordial. Cantando e dançando, o homem se manifesta como membro de uma comunidade superior: ele desaprendeu a caminhar e falar e está a ponto de, dançando, voar pelos ares [...] 11
No coro satírico do ditirambo, o homem grego da Antiguidade encontrou o caos primeiro, o momento anterior à individuação. Em êxtase, o homem grego rasgou o véu de Maya, o véu de ilusão que recobre todas as “verdades”. Na entrega ao coro trágico, os gregos da Antiguidade encontraram “a verdade” e com isso suas almas se consolaram. O êxtase proporcionado pelo coro faz esquecer as agruras da existência. O coro une atores, público, divindade, na busca de uma “verdade”, ou ainda, das muitas “verdades” possíveis através da arte. Não somos mais um 10 Nietzsche, Friedrich W. O Nascimento da tragédia ou Grécia e pessimismo. São Paulo: Editora Escala, 2007. p. 101 - 102. 11 Ibidem. p. 31.
20
à mercê de forças titânicas. O coro faz com que nos tornemos todo, em vozes caóticas e múltiplas. Expõe Roland Barthes (1990), em O teatro grego: Para se ter uma imagem verídica da choréia, será, talvez, necessário pensar no sentido da educação grega (pelo menos, tal como a definiu Hegel): através de uma representação completa de sua corporalidade (canto e dança), o ateniense manifesta sua liberdade: a liberdade de transformar seu corpo em órgão do espírito. 12
O coro do teatro grego era composto de canto e dança. Amadores, dentre os cidadãos, eram recrutados. Durante a encenação, o participante realizava exercício de liberdade do corpo. No entanto, em um dado momento, “Téspis ou Frínico deram o primeiro passo e inventaram o primeiro ator, transformando a narrativa em imitação: nascera a ilusão teatral” 13. Quando um dos elementos do coro se destaca dos demais criando um protagonista, o coro inicia a perder a sua força e pouco a pouco vai se tornando um elemento acessório na trama. Até ser completamente destituído de sua função trágica. O surgimento do ator inicia o fim do coro trágico e o início de uma tendência à interpretação do texto teatral por atores. Proponho que se pense no coro, na sua ligação com a performance, antes do princípio criador do teatro, antes que o primeiro ator surgisse, o coro do ditirambo, quando o ato cênico era também ato ritualístico a Dionísio. Esta é a ligação do coro da Antiguidade com a performance. O coro possibilitava o acesso ao êxtase dionisíaco. O ato artístico (“como um deus que salva e cura” 14), levando ao encontro da “verdade”, tornando a vida possível. Diz Nietzsche, em O nascimento da tragédia (2007): 12 Barthes, Roland. O teatro grego in “O óbvio e o obtuso”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p.77. 13 Idem. 14 Nietzsche, Friedrich W. O Nascimento da tragédia ou Grécia e pessimismo. São Paulo: Editora Escala, 2007. p. 62.
21 Com esse coro se consola a alma profunda do grego, tão incomparavelmente capaz de sentir o mais leve e o mais cruel sofrimento; ele tinha contemplado com olhos penetrantes os terríveis cataclismas daquilo que se denomina história universal e tinha reconhecido a crueldade da natureza; e então se encontra exposto ao perigo (...) A arte o salva e, pela arte – a vida é reconquistada.15
O coro mostra o trágico da existência, mas também dá a “verdade” consoladora. A tragédia fala de como a vida é finda. Na finitude do ato trágico se encontra um bálsamo. O coro satírico encena repetidamente em rito, como em um ensaio. Repetidamente seremos tomados pelo êxtase e gritaremos – Evoé! Bacantes, destroçaremos homens. Escorrendo por entre nossos dedos estará a vida de todos os filhos. No entanto, diante de nossos olhos se entre põe um véu de embriaguez. A vida deixa de ser um pesar. Festejamos: estamos extasiados pela existência. Saímos em cortejo, em coro. Realizamos o ritual orgiástico. E a vida é reconquistada pela arte. Ensaiamos a vida através do coro satírico e vestimos a máscara de sátiros e mênades. Nietzsche (2007): Aqui, neste supremo perigo da vontade, aproxima-se, como uma feiticeira salvadora, com seus bálsamos, a arte; só ela é capaz de converter aqueles pensamentos de nojo sobre o susto e o absurdo da existência em representações com as quais se pode viver: o sublime como domesticação artística do susto e o cômico como alívio artístico do nojo diante do absurdo[...] 16
A arte proporciona um feitiço salvador, mostra a finitude da vida, evoca viver a intensidade de cada segundo em êxtase. Somos coro, não mais um indivíduo, mas um todo que berra o sentido da vida. Na performance, de 15 Nietzsche, Friedrich W. O Nascimento da tragédia ou Grécia e pessimismo. São Paulo: Editora Escala, 2007. p.61. 16 Ibidem. p.62.
22
forma semelhante ao coro do ditirambo, perdemos individualidade. O performer não interpreta um papel. Ele realiza um rito e compartilha com o público. O performer não se coloca como um artista diante de um público, ele se transforma em visualidade, ele é a própria obra de arte. Imagem 2 - Marina Abramovic, Ritmo 0, performance, 1974.
Nietzsche (2007):
O homem não é mais artista, tornou-se obra de arte: a potência estética da natureza inteira, para a máxima satisfação do Um primordial, se revela aqui sob o estremecimento da embriaguez. A argila mais nobre, o mármore mais precioso, o homem aqui é moldado e trabalhado... 17
O artista se metamorfoseia em sua própria obra, que também é a potência da vida, o trágico, a finitude. Marina Abramovic, em 1974, apresentou a obra Ritmo 0, que consistia em ficar parada diante de uma mesa, na qual estavam dispostos alguns objetos: arma carregada, machado, mel, tinta, perfume, batom, azeite etc, um cartaz que orientava: “há 72 objetos sobre a mesa que podem ser usados em mim conforme desejado. Eu sou o objeto.” Suas roupas foram rasgadas, uma arma foi apontada para a sua cabeça. A performer é obra. Está em risco, à disposição de um coro satírico, o público que, ao fluir, também devora a obra. Performance: realização de um rito. Ato trágico da precariedade da existência. 17 Nietzsche, Friedrich W. O Nascimento da tragédia ou Grécia e pessimismo. São Paulo: Editora Escala, 2007. p.32.
23
4.
MÁSCARA A máscara no teatro grego pretendia menos estabelecer expressões do que ampliar gestos. As faces representadas nas máscaras gregas da Antiguidade não possuíam
exata
correspondência
com
expressões naturais, nem se pretendiam a isso, pois “a máscara não tem uma expressão determinada, é uma superfície neutra [...] na tragédia, a máscara é exageradamente patética”18. As máscaras eram agigantadas e Imagem 3 - Máscara trágica, século V a. C.
nem um pouco convincentes, porém faziam com que o ator que as vestia se tornasse um corpo inumano e espetacular.
Todo o vestuário de cena, aliás, corroborava para essa “visão irreal”. Pouco havia de naturalismo na indumentária da tragédia. Parece que existia uma maior preocupação em agigantar gestos, pois a cena devia ser vista por todo o público, e ali estava sendo encenada a história do confronto dos deuses com os homens. As máscaras possuíam, inclusive, em sua fatura, uma forma de amplificar a voz dos atores. Tal visualidade onírica retirava as características humanas dos atores. Não era possível identificar, por exemplo, o ator homem desempenhando um papel feminino. 18 Barthes, Roland. O teatro grego in “O óbvio e o obtuso”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p.79.
24
A performance exibe o corpo e faz dele matéria da obra de arte. O corpo se metamorfoseia em um véu ou em uma máscara que irá conduzir os afetos suscitados pelo ato performático. A exibição do corpo leva a situações radicais, tornando o corpo um “outro”, objeto pronto a ser fluído, ou mesmo dilacerado. Escreve Henri-Pierre Jeudy, em O corpo como objeto de arte (2002): Na década de 1960, o desafio político era mais determinante, como atestam os happenings austríacos que levavam seus autores ao risco de sofrer as penas de prisão. Os rituais sangrentos, com corpos animalescos, e as orgias públicas provocavam a ordem moral e escandalizavam a sociedade austríaca.19
As
proposições,
conhecidas
como
que
ficaram
happenings,
das
décadas de 1960 e 1970, passavam pela transgressão
de
valores
morais.
Dos
happenings às proposições de performance contemporâneas, a crueldade em torno do corpo ganha outros sentidos e se Imagem 4 - Orlan, Quarta operação cirúrgica, performance, 1991.
torna processo para alguns artistas, ou seja, o método ou o sistema utilizado na concepção do trabalho artístico. O corpo se
faz objeto para o qual toda a transgressão é possível. Nesse contexto, ele se aproxima das violações infringidas à tela na pintura. A artista Orlan transforma seu rosto em um “outro”. Ela realiza metamorfoses da face através de cirurgias plásticas e se torna material artístico. O seu gesto 19 Jeudy, Henri-Pierre. O corpo como objeto de arte. São Paulo: Estação Liberdade, 2002. p. 139.
25
não parece partir de um sentido moralizante, mas expõe as possibilidades de plasticidade do corpo na arte. Orlan realiza máscaras, utilizando sua própria carne. Ela atribui um caráter ficcional e cênico à sua atitude de expor o fazer de suas novas faces. Orlan ritualiza suas plásticas ao inseri-las em um jogo performático, em que seu corpo é exibido dilacerado ou com modificações radicais e inumanas. O corpo é agora objeto disposto à fruição imagética. Nos primeiros trabalhos realizados pela artista, há incorporação debochada de personagens da história da arte. Contudo, Orlan parece mais querer estabelecer uma prática do que uma persona. A artista expõe os processos que permitem suas metamorfoses serem possíveis. Orlan não chegará a uma face. A performer estabelece ensaios do dilaceramento e da reconstituição de faces. O performer conduz um ritual em torno de uma prática. O artista, “ritualizador do instante-presente”20, através de seu ato, chama o seu coro, ou o seu público, a assentir da performance. Não se trata de interpretar um personagem. “O que Imagem 5 - Lygia Clark, Baba antropofágica, performance, 1973.
distingue o performer do ator-intérprete é que essa sua presença [...] será muito mais como pessoa do que como personagem”21. O performer é o propositor de um ato, mas também é coro com o público. Todos vestem
20 Termo utilizado por Cohen, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2007. p. 109. 21 Cohen, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2007. p. 109.
26
a máscara e sentem que fazem parte do ato. Sentimos como se a lâmina cortasse a nossa própria pele e vemos nossas vísceras expostas. Realizamos juntos as máscaras. Lygia Clark, na performance Baba antropofágica, realiza a construção coletiva de um corpo, de uma máscara, através dos vestígios dos corpos envolvidos no ato. Em exposição, um corpo que pouco a pouco vai sendo recoberto de fios e saliva. O corpo se contorce sendo envolto em um casulo, que tem em sua materialidade fios que saem de bocas anônimas. Os participantes do rito proposto por Clark sopram vida a um novo ente, mas também, furtam o corpo e o devoram. A performance se estabelece por uma palavra inaudita. Das bocas de coro Imagem 5 - Lygia Clark, Baba antropofágica, performance, 1973.
antropofágico é soprado um fio que servirá à tessitura de um véu: performance. Palavra
compartilhada em coro, música, balburdia ensurdecedora. Compactua-se uma escritura. O verbo cria máscaras que servem a todos os rostos ou a nenhum. A escrita desse ato nos cura e nos envenena, pois nos dá acesso a um saber, à força da existência, à finitude do instante. O que pode uma obra de arte? Uma palavra a ser vestida, a ser escrita?
Imagem 6 Ensaias N.2, performance realizada no Centro Cultural Cartola – Mangueira/ Rio de Janeiro e no Encontro Nacional de Estudantes em Artes – UFBA/ Bahia, 2009. Fotografia: Vitor Ramos Braga.
28
5.
PERFORMANCE Performance. O prego na parede dispõe o gancho que sustenta a estrutura
de madeira: o cabide. Sobre ele, tecido, guizos, papéis coloridos alfinetados preenchidos com as minhas palavras e com as de outros. A saia devolve o olhar. Visto. O pano roça na pele; os papéis em movimento, alfinetadas, ou o som de pisar em folhas secas, os guizos. No giro, os papéis se desprendem; pedaços de cor caem ao chão; em cada um, palavras ao vento. Quais foram ditas por mim, quais foram ditas pelo outro, quais foram ditas pela saia? Estou em saias. Recordação de uma herança, aparição de histórias que se apagam em uma caminhada. Fim da Performance. Retiro a saia, coloco-a novamente no cabide, recolho do chão alguns papéis que se desprenderam. A saia pendurada na parede, imóvel, à espera de mais um corpo que a tome como veste e lhe dê outros sentidos. O
que
é
Performance?
Esta
pergunta é necessária quando olhamos para a proposta artística Ensaias. A ação do corpo é exigida daqueles que pretendem fluir Ensaias. Só através de uma atitude performativa do leitor Ensaias se torna um objeto artístico, um ente vivo, desvelador da verdade, coro satírico do ditirambo. O ato (a ação, a performance) é o dispositivo que nos permite perceber as saias como objetos Imagem 7 – Hélio Oiticica, Parangolé, década de 1960.
e frutos de um engenho, de uma ideia, arte.
29
Entender a linguagem da performance se faz necessário para ouvirmos o que Ensaias tem a dizer. A História da Arte não mais se fixa em categorias estanques. A história é escrita partindo dos destroços, dos rastros de verdade. Pontos longínquos no tempo e no espaço podem ter correspondência, porque os acontecimentos se dão em rede e se avultam diante de nossos olhos como uma tempestade, uma ventania terrível, ou como um novelo de fios emaranhados. Desenrolamos fios no novelo e unimos os pedaços de linha para iniciar uma nova costura. Performance acontece no aqui e agora. Não tendo vivido a performance, tentamos reconstruí-la, parindo de rastros: fotografias, vídeos, relatos. Realizando movimento semelhante ao do historiador unimos retalhos para coser alguma verdade sobre performance. Parangolés, de Hélio Oiticica, realizadas na década de 1960. Espécies de mantos feitos de diversos materiais, têm na sua fatura, também, imagens, palavras, cor. Um diálogo com a pintura. Os parangolés não foram feitos para quedarem pendurados em paredes. Os parangolés de Oiticica são para serem vestidos e com eles estabelecer dança ao som da bateria da Mangueira. Talvez por isso o artista de fato levou seus parangolés aos sambistas da Mangueira, tendo as ações desempenhadas sido fotografadas e filmadas. Os parangolés ganham caráter performático quando abraçados por um coro ditirâmbico, que dá a eles a forma e a cor de nosso carnaval. Waly Salomão conta a seguinte história: quando Oiticica foi ao programa do Chacrinha, o apresentador teria anunciado o artista como costureiro, por compreender seus parangolés como uma roupa. Propomos pensar nos parangolés de Oiticica, assim como em Ensaias, como uma costura de
30
investigações artísticas. A performance se concretiza por um “sequestro do comum”22, por um gesto perdido e ordinário. Vestir. Dançar. Peter-Pál Pelbart, em “A potência de não: linguagem e política em Agamben”: Se de fato há hoje um sequestro do comum, uma expropriação do comum, ou uma manipulação do comum, sob formas consensuais, unitárias, espetacularizadas, totalizadas, transcedentalizadas, é preciso reconhecer que, ao mesmo tempo e paradoxalmente, tais figurações do ‘comum’ começam a aparecer finalmente naquilo que são, puro espectro. 23
O comum, o gesto de costurar, volta à tona de forma manipulada, como uma imagem bruxuleante do passado. O costurar dentro das atividades comuns do dia-adia é algo que está em vias de extinção. Gesto perdido, retomado na linguagem da performance. No entanto, o objetivo não é fazer com que a costura volte a ser utilizada no dia-a-dia, mas que esta se torne uma possibilidade de pensamento através de uma proposição artística. O retorno Imagem 8 – Vênus de Milo, cerca de 130 a.C.
22 Pelbart, Peter-Pál. A potência de não: linguagem e política em Agamben. 23 Idem.
31
espectral da costura é uma volta ao mais comum, almejando reconquistar o saber da linguagem. A costura como um espaço em que se pode dar o comum, espaço para compartilhamentos. Todos vestimos o parangolé e saímos dançando em êxtase. Todos tocamos as saias e fazemos parte do gesto performático. A Vênus de Milo despedaçada, presa em uma base rígida, oferece ainda movimento. A máquina de costura é posta em movimento por nossos pés e a agulha une peças de tecidos vários. Resultado da ação de costurar, as saias são objetos comuns, transfigurados em obras de arte. Também o mármore mais nobre era apenas mármore antes de ser transfigurado em obra de arte. A ação do artista confere significado aos objetos. Buscamos o encontro com a veste da linguagem performática. Vemos imagens díspares. Correlata, ergue-se a Vênus de Milo. O tecido no quadril da Vênus deslizará infinitamente, a cada olhar. Veremos sua púbis por fim? Que performance majestosa o quadril da Vênus de Milo nos proporciona! O seu corpo é dúbio, forma feminina masculinizada. Veio a nosso conhecimento esfacelada, sem os braços, mas suas linhas ainda seduzem o olhar. Diferente da escultura de Vênus, a saia no cabide, pendurada na parede, possui correlatos na vida cotidiana. Não se trata de um objeto coberto por uma aura, e sim um objeto comum. O que faz Ensaias ser um objeto para a contemplação artística? Para tangenciarmos a resposta a essa questão, devemos formular uma segunda pergunta. Porque chamar Ensaias de Performance? Há um consenso entre os autores que tratam da definição de Performance sobre a necessidade da presença do corpo. Desse modo, identificamos uma Performance, quando vemos, em geral, um artista, ou mais artistas, realizando uma cena ou uma ação visando a significar algo. A performance pode ser ao vivo,
32
ou intermediada por uma mídia: fotografia, vídeo, web etc. O significado de uma proposta performática seria desprendido da ação através do corpo. A ação dos corpos no espaço como uma força que nos perpassa. Performances históricas, como a de Joseph Beuys, “Como explicar desenhos a uma lebre morta”, foram repetidas por outros artistas, outros corpos, ganhando novos contornos e significados. Marina Abramovic em sua retrospectiva no MoMa repetiu várias de suas mais famosas performances. Ela estendeu o tempo de duração e diz em entrevista: “A performance durou três meses e, após tanto tempo, criou vida própria” 24. Revela ainda que irá criar um centro para performance de longa duração, pois acredita que só assim os trabalhos terão a eficácia de mudar o artista e quem o observa. A ação performática parece ser um ente vivo, o artista desaparece, devorado. O que provoca sentido e nos causa espanto é a ação, a Performance. Há algum tempo o fazer artístico se afastou da busca pelo belo. A arte encontra a filosofia, não pela via da estética, mas pela via do esforço de entendimento da existência. Arthur Danto discute o significado das brilhobox, de Andy Wahol. Elas não são belas. Não estão expostas para serem contempladas. O que as diferencia das caixas de sabão brilho no mercado? As caixas de sabão brilho foram desenhadas por um artista, mas não é o seu design que as fazem importantes para o meio artístico. Porque trazer caixas de sabão, latas de sopa, mictórios, pás de neve, saias, toda sorte de objetos comuns e ordinários para o espaço da arte? Uma caixa de sabão não me ensina nada e não me causa espanto algum. Escreve Danto em A transfiguração do lugar-comum: “...reflexos no espelho, Hamlet usou a metáfora de modo muito mais profundo: os espelhos e, por extensão, as 24 Marina Abramovic em entrevista para Folha de São Paulo, por Fábio Cypriano, em 17 de novembro de 2010.
33
obras de arte, em vez de nos devolverem o que podemos conhecer sem eles, são instrumentos de autoconhecimento”
.
25
Objetos comuns transfigurados em obras de arte, espelhos das nossas ações no mundo. As saias são retiradas do atelier da costureira. Levadas para o atelier da artista, ganham novo sentido. As saias são pendurada na galeria, expostas para um Imagem 9 – Flávio de Carvalho, Experiência n.3, 1956.
público fluidor de arte. Elas ainda são saias. Ainda estão no mundo para serem vestidas. Ensaias sequestra as ações comuns de costurar e vestir. Apenas uma saia, mas esta não almeja cobrir o corpo de beleza, garantindo ao seu portador estatus social em um meio. Ensaias revela o corpo. Levantamos o véu de Maya, o que vemos? Nada. O ordinário, o comum? Verdades. A performance, surge associada à ideia de live art, uma indistinção entre arte e vida. “Experiência n. 3” é uma ação protagonizada por Flávio de Carvalho, em 1956, no Brasil, no centro da cidade de São
Imagem 10 – Flávio de Carvalho, Experiência n.3 - traje, 1956.
25 Danto, Arthur C. A transfiguração do lugarcomum. São Paulo: Cosac Naify, 2010. pp 43-44.
34
Paulo. O artista espetacularizou uma ação comum, o vestir. O traje New Look – roupa tropical para o homem brasileiro: saia, blusas de mangas fofas, chapéu de organdi de largas abas e meias arrastão – causou espanto aos passantes no meio da Avenida Paulista. Engendrou caminhada tumultuada, repleta de olhos que o perseguiam. Um homem de saias! Em meio a tantos homens engravatados: gesto espetacular, com direito a fotografias e reportagens jornalísticas. Em tempos outros – agora –, as experiências de Flávio de Carvalho talvez não fossem mais tão espetaculares. Caminhar na contramão pressupõe outras ações. E ainda temos o gosto pelo espetacular. A performance, em grande parte, se assenta no gesto comum e corriqueiro que ganha proporção e arrasta, como torrente, à contemplação ou ao gozo. Nietzsche (2007), em O nascimento da tragédia realiza graves críticas ao teatro de Eurípedes, pois com a diminuição do papel do coro, diminui também a veracidade que tínhamos acesso através do êxtase dionisíaco. Como aponta Danto (2010), os ritos a Dionísio traziam, através de seus Imagem 11 – Gian Lorenzo Bernini, Êxtase de Santa Teresa, 1645-1652.
participantes, a própria presença do deus. Já no teatro, é apenas um ator representando
o deus. Trata-se de uma posição assumidamente mimética em relação à existência. No teatro, temos apenas a aparência de um deus. Nos ritos báquicos, o próprio deus.
35
De forma semelhante a performance tende ao verídico. O performer não interpreta. Ele traz à tona a vida. O Êxtase de Santa Teresa, escultura de Bernini, do século XVII, mostra o momento em que a santa é tocada pelo divino. Representando a presença de deus: um anjo empunhando uma flecha. A santa será transpassada pela verdade sagrada. Seu corpo está coberto por volumoso vestimento. O panejamento tenta encobrir o corpo, mas conseguimos ver o pé contorcido, a mão lânguida e a face em gozo. Ela parece Imagem 12 – Lygia Clark, Estruturação do self. 1976.
já tomada pela verdade divina. Toda a cena, por fim, parece eco do êxtase vislumbrado
no rosto de Teresa: o altar, a roupa volumosa, a nuvem, os raios de luz ao fundo, a delicadeza do toque do anjo e seu sorriso um pouco desavergonhado. O êxtase performativo de Teresa mostra uma veracidade orgiástica que ultrapassa a aparição divina. É a vida que pulsa nos corpos, mesmo os mais podados, mesmo o feitos de mármore. A arte que proporciona o encontro com a verdade da existência. Lygia Clark nas décadas de 1960 e 1970 compõe objetos relacionais. Espécie de dispositivos em que a obra só se realizava efetivamente na relação com o leitor da obra. Alguns desses objetos possuem denominações, alguns mudam de denominação em função do uso, outros não têm nenhuma denominação. Eram
36
feitos em geral com materiais precários, como pedras, sacos plásticos, isopor etc. Estruturação do self foi uma investigação experimental em que Lygia Clark utilizava os objetos relacionais. Suely Rolnik (2002), em “Subjetividade em obra: Lygia Clark, artista contemporânea”, descreve Estruturação do self, segundo o vídeo sobre a obra:
Imagem 13 – Lygia Clark, Nostalgia do corpo. 1968
Ficamos sabendo que essa obra consiste numa série de sessões regulares, ao longo das quais a artista aplica os Objetos Relacionais no corpo do “cliente”, nome que ela dá à pessoa com quem desenvolve essa prática. Ela descreve tais objetos pelas sensações que provocam e pouco refere-se a suas qualidades visuais. (...) Uma primeira impressão se delineia. Os objetos apresentados na primeira sequência, são uns mais estranhos do que os outros, quase todos muito precários, feitos de materiais os mais ordinários. Além disso, a artista nos adverte desde o início que seu significado não é apenas um. Se isso é óbvio, em se tratando de um objeto de arte, o que é menos óbvio é que, segundo a artista, o significado do objeto nesse caso depende de seu uso assim como da experiência corporal que dele faz cada espectador, uso e experiência que são múltiplos. 26
Nostalgia do Corpo faz uso de apenas um fio para acionar todo um grupo para o Imagem 14 – Lygia Clark, Bichos. c.1960
26 Rolnik, Suely. Subjetividade em obra. Lygia Clark, artista contemporânea.(2002) Núcleo de Estudos da Subjetividade – PUC – SP. Página consultada em janeiro de 2011, <http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/Subjemobra.pdf>.
37
movimento. Os objetos artísticos e/ou relacionais de Lygia Clark pressupõem o abandono da representação. Suas experiências procuram mover todo o corpo para efetiva recepção da obra. O uso de materiais outros, precários, mundanos, torna necessária a reinvenção de uma forma de percebê-los. Esses objetos isoladamente não constituem a obra, mas sim o conjunto de operações dos quais eles fazem parte. É necessário vesti-los, deixar que eles entrem em contato com o corpo. Só assim desprendem sentidos. É o mundo ali que se oferece à percepção estética. É a arte que encontra a vida através da indistinção entre obra e corpo. Esses objetos produzidos por Lygia têm seus sentidos amplificados no momento em que participam dessa espécie de rito, de comunhão entre a artista e seu público, que, no caso de Estruturação do self, acontece em um quarto, em seu apartamento em Copacabana, o que demonstra um abandono dos locais tradições de exposição de arte. Operação semelhante parece acontecer com Ensaias n.1. A saia se oferece ao leitor, que ao utilizá-la amplifica o gesto iniciado pela artista. Percebo os objetos do mundo dotados de teatralidade. Eles têm vida própria e desencadeiam ações. Os objetos animam os corpos. O objeto é apenas um dispositivo para o corpo, ou é o corpo? Os objetos podem ser destruídos, podem ser refeitos e os corpos são estruturados e reestruturados. Ensaias para além de uma estrutura relacional constitui um corpo, um ente vivo, um bicho. A saia que repousa no cabide traz à tona uma persona. No entanto ela não representa; ela é. Imagem fantasmática de uma lembrança esquecida. Ah! A saia é um objeto comum, ordinário, encontrado no guarda-roupa da maioria das mulheres. Ensaias não é qualquer saia, corriqueira, banal, estabelece presença. É
38
uma saia que parece estar ainda por fazer, mas o fazer já é a sua possibilidade de uso. Não há aqui proposta de moda. O gesto amplificado é o de ensaiar uma proposição. Costurar, rasgar, alfinetar. Tal qual os Bichos de Lygia que geram formas moventes. As saias tornam evidente o ato de criar costuras Imagem 15 – Lygia Clark, Caminhando, 1963.
outras. A costureira escolhe o tecido, cada qual para um corpo. A seda para o vestido da senhora de distinção, a malha para camisa do menino travesso. A costureira submete a trama à tesoura, ao alfinete, a agulha. Pontos justos moldam a peça as dimensões humanas. A veste pronta entra
Imagem 16 – Lygia Pape, Divisor. 1968.
em comunhão com o corpo. Em Caminhando as mãos acionam a
tesoura. Os pés são a lâmina que percorre a fita infinita. O caminho é cada vez mais curto, cada vez mais vacilante, até que é impossível. prosseguir Performance como a estrita ligação entre corpos durante a fruição artística. O corpo que performa, que está em evidência; o corpo que assiste (público participante ou expectante); o corpo que participa (objetos relacionais, cênicos, de interação), o corpo social, do qual todos fazemos parte. Na performance compartilhamos uma veste. Matesco (2009), escreve sobre as trouxas ensanguentadas:
39 Não é a analogia entre trouxas e corpos que dá sentido ao trabalho, mas o atravessamento da vida na morte, ou seja, a relação entre erotismo e morte; o que interessa é a detonação de sentido advinda da situação. Barrio lida com a transgressão do interdito da morte, uma vez que ela é redimensionada pela pulsão de vida. É o transtorno desse atravessamento que perturba a consciência ao se experimentar separada do mundo previsível e ordenado. 27
Olhamos as trouxas ensaguentadas Imagem 17 – Arthur Barrio, Trouxa ensanguentada – MAM, 1969.
(mesmo que seja apenas na fotografia) e compartilhamos as dores de quem sofreu na ditadura. O corpo não está lá! Não importa. A trouxa ensaguentada performa um outro corpo, guarda os rastros de algo que não é possível olvidar. Os objetos comuns derrepente aos nossos olhos aparecem transfigurados. As roupas estão longe de ser apenas um item utilitário para nos proteger do frio. O tecido adere à pele tal qual uma marca, distinguindo povos e simbolizam as suas ações no mundo. As vestes podem performar antes dos seus ocupantes.
Imagem 18 – Antônio Manuel, Museu de Arte Moderna, 1970.
A ausência de roupas é tomada comumente como forma de protesto, dá a 27 Matesco, Viviane. Corpo, imagem e representação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. p 50.
40
medida do que estar vestido significa. Antônio Manuel aparece nu na noite de abertura do 19º Salão Nacional de Arte Moderna, após ter seu trabalho O corpo é a obra recusado pelo júri. Ele estabelece contato com o outro através do choque. Hoje estar nu não é nenhum tabu, nem causa grandes choques, mas estar sem as roupas ainda é uma tomada de atitude, como também estar vestido. Algumas roupas podem expor mais do que esconder. Flávio de Carvalho (1956) lembra que no princípio da história os homens e as mulheres se vestiam de forma semelhante, usavam túnicas. Hoje temos os uniformes que procuram deixar os seres indistinguíveis. Flávio de Carvalho (1956) faz uma interessante observação acerca das roupas e dos gêneros: Uma vez conquistada pela mulher o traje do movimento, a calça, entraremos numa idade púbere, tendo o traje do sexo mais fraco como traje dominante. Efetivamente , caminhamos dia a dia, lentamente, para o domínio da mulher, e a calça será em futuro próximo o traje do futuro sexo fraco, o homem. 28
O que podemos vestir para mostrar posição diante do mundo? Vestir Ensaias, como beber um phármakon, pode trazer curas ou doenças. Joseph Beuys, em Eu Amo a América e a América Me Ama, enrolado em feltro parece trazer a lembrança da veste de antigos povos, aqueles que sabiam como conviver com um coiote. A performance parece um rito xamânico. Cohen (2007) descreve a performance: A performance se inicia no Aeroporto John Kennedy. Joseph Beuys chega da Alemanha e desce do avião enrolado dos pés à cabeça em feltro (ele comenta mais tarde que esse material representava um isolante tanto físico quanto metafórico). Do aeroporto, Beuys é carregado numa ambulância (ele já chega em más condições físicas por causa do feltro) para o espaço onde irá conviver com um coiote selvagem por um período de sete dias. 28 Carvalho, Flávio. Idades púberes da história. In “Textos da exposição: Flávio de Carvalho desveste a moda brasileira da cabeça aos pés”. MAM Rio de Janeiro, 2011. p.28
41 Durante esse tempo, os dois estiveram isolados de outras pessoas, sendo separados do público visitante da galeria por uma pequena cerca de arame. Os rituais diários de Beuys incluíam uma série de interações com o coiote, onde eram “apresentados” objetos para o animal – feltro, uma bengala, luvas, uma lanterna elétrica e o Wall Street Journal (entregue diariamente). O jornal era rasgado e urinado pelo animal, numa espécie de reconhecimento, à sua maneira, pela presença humana. 29
O público observa de longe o artista tentando estabelecer o improvável contato com o coiote. Beuys parece, também, querer que o coiote estabeleça contato com o mundo americano. Ele oferece ao coiote: jornal e objetos de uso. Parece uma paródia Imagem 19 – Joseph Beuys, Eu Amo a América e a América Me Ama, 1974.
da incongruência do relacionamento dos conquistadores com os povos indígenas. A
arte é o traje comum para uma tomada em direção à verdades. O que é arte? Para que serve? Paulo Bruscky pergunta aos visitantes de uma livraria. Ou será que estaria perguntando a si mesmo? Alguns dos livros a volta do artista poderia responder a essa indagação? Ensaias propõe como verdade possível, encontrar, através da arte, alívio para as dores da existência. Assertiva semelhante à de Nietzsche (2007) a respeito do povo helênico. Nietzsche faz duras críticas ao pensamento Positivista, como também ao Cristianismo. Nietzsche acredita no encontro com a verdade através da arte. 29 Cohen, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2007.p. 51-52.
42
Atrocidades Maravilhosas leva para as ruas imagens várias, críticas, ocupando muros extensos, impossíveis de não serem vistas. Ações que nos coloca sobre uma indagação: o que pode uma imagem? Potente e simples é a imagem ecoada com Desenhando com terços, trabalho da performer Márcia X. Passados anos de sua criação foi censurado pelo Centro Cultural Banco do Brasil. Católicos teriam ficado revoltados com a associação de um dos símbolos de Maria, mãe do Cristo, com o órgão sexual masculino. Não houve a Imagem 20 – Paulo Bruscky, O que é a arte?Para que serve?, 1978.
necessidade da nudez para causar choque. Apenas a sugestão daquilo que é coberto pelas vestes já causa espanto e revolta, pois está atrelado a algo que alguns consideram sacro, o terço. Dionísio perdeu o seu lugar no mundo, agora cultuamos um deus que não ri, que não dança, que não se entrega ao êxtase. Ele é metódico e detêm todas as
Imagem 21– Atrocidades Maravilhosas, 2000.
verdades. É o sabe cientifico. O saber provindo da arte tem algo de esforço inútil, pois não ambiciona produzir
43
nenhum bem consumível. Ensaias de fato não serve como moda. Para quê? Bas Jan Ader chora copiosamente diante da câmera. O que ele tem a dizer afinal? Ele está muito triste para dizer. O performer não diz, não escreve uma tese ou uma dissertação. Ele apenas chora. Por de trás da câmera de vídeo entendemos o que ele diz. É inútil chorar. Independente da nulidade desse ato, a atitude de chorar ganha amplidão e entendemos a potência de um gesto Imagem 22 – Márcia X, Desenhando com terços, 2000-2003.
artístico. A linguagem da performance nos permite sublimar as dores da existência. Wilson de Avellar levanta facilmente e pula as paredes que sobem a sua volta, mostrando para o espectador como as coisas são quando não estamos submersos nelas. Através da arte fica fácil entender
Imagem 23 – Bas Jan Ader, I’m too sad to tell you, 1971.
o destino dos homens. Longe de nos conformarmos e deixarmos que as paredes cheguem ao topo, as pulamos facilmente e tomamos posse sobre o destino do mundo.
44
Sentados a mesa do banquete
da arte percebemos que todas as obras servidas são extensões de nós mesmos. No Livro do MIP – Manifestação Internacional de Performance temos a descrição da performance promovida por Marcos Paulo Rolla: Imagem 24 – Wilson de Avellar, As coisas tais quais elas são quando não estamos nelas, 2003.
Imagem 25 – Marcos Paulo Rolla, O banquete, 2003.
Marco Paulo organiza um banquete no qual as várias maneiras de engolir e alimentar o humano sejam sentidas e transfiguradas. O banquete acontece ao redor de uma grande mesa equipada com sofisticado aparato. Serviçais distribuem água, vinho (...) pães em forma de braços e pernas humanos. (...) Os que não conseguiram assento permanecem de pé à volta da mesa, à margem da cena. A maioria dos convivas não tem a menor idéia do que ocorrerá em breve e, numa atmosfera agitada por canhões de luz, ouve-se uma trilha sonora produzida por um DJ. Subitamente, alguns dos comensais sentados e outros de pé começam a tirar suas roupas, subindo em seguida sobre a mesa. Corpos, objetos e lugares já subvertidos pela nudez e pelo deslocamento são ainda sacudidos pela presença de galinhas vivas jogadas na cena. Perseguindo-as, um fauno acaba por capturar uma delas, estripando-a com os dentes e devorando-lhe as vísceras. 30
Realiza-se um espetáculo grandioso. Bacantes, tomadas pelo êxtase, devoram o alimento santificador, corpo, obra. Nos conciliamos novamente com a existência. 30 Rolla, Marcos Paulo e Hill, Marcos (org). Descrição da performance O banquete In MIP – “Manifestação Internacional de Performance”. Belo Horizonte: Centro de Experimentação e Informação de Arte, 2005. p.151.
45
6.
ESCRITA A palavra na performance parece ser um sopro, que não é apenas a palavra
proferida em cena, pois envolve todos os gestos realizados na construção do ato. É proferido um assombro a cada gesto. A brisa do sopro logo contamina tudo e os participantes se tornam vento diante da proposição performática. A performance se concretiza no roubo da palavra. Jacques Derrida, em A palavra soprada (1971): Artaud sabia que toda a palavra caída do corpo, oferecendo se para ser ouvida, ou recebida, oferecendo-se em espetáculo, se torna imediatamente roubada. Significação de que sou despojado porque ela é significação. O roubo é sempre roubo de uma palavra ou de um texto, de um rastro. 31
O Teatro da crueldade de Artaud procura eliminar a distância entre ator e platéia: todos fazem parte do ato. O ator é ao mesmo tempo o elemento de maior importância e um elemento passivo, que nega qualquer iniciativa pessoal e se tem uma regra é a de sua diferenciação quanto a seu público. O ator em Artaud parece ser o condutor de um rito que nos levará a uma realidade extrema, perigosa, arquetípica. Ainda, a palavra proferida na proposta teatral de Artaud não pretende ser representação, mas sim, um gesto uníssono e plural. Palavra que é gesto compartilhado. Palavra que não se limita ao elemento textual, mas inclui som, luz, onomatopéia, música, dança, todos os elementos compositivos da visualidade. É essa palavra plural, que se torna um som uníssono comum a todos os corpos em cena. A palavra se oferece em espetáculo e se torna pertencente a todos como em um coro em ruído desordenado. A palavra cai do corpo e ao mesmo tempo é 31 Derrida, Jacques. A palavra soprada In “A escritura e a diferença”. São Paulo: Editora Perspectiva, 1971. p. 116.
46
corpo, imediatamente roubada e vestida pelos atores (o que inclui o público) em cena. Continua Jacques Derrida (1971): Soprada: entendamos furtada por um comentador possível que a reconheceria para a alinhar em uma ordem, ordem da validade essencial ou de uma estrutura real, psicológica ou de outra natureza [...] Soprada: entendamos ao mesmo tempo inspirada por uma outra voz, sendo ela própria um texto mais velho que o poema do meu corpo, que o teatro do meu gesto. 32
A inspiração é a forma com que o roubo se torna possível. Na performance todos vestem a máscara ofertada pelo performer, ator propositor. Inspirado pelo véu de ilusão rouba o fogo divino e tornam a verdade do ato possível. Esse, aliás, era a atuação do filosofo Sócrates, que não deixou nenhum texto escrito. Sócrates soprava a palavra no “outro” e tornava, assim, a verdade possível. Por fim, o próprio Sócrates se torna texto de um “outro”, Platão. Derrida em A farmácia de Platão (2005) chama atenção para eficácia de um texto que pode ter a dupla acepção de um remédio e de um veneno; para tanto, utiliza o diálogo entre Sócrates e Fedro, escrito por Platão. “A dissimulação da textura pode, em todo o caso, levar séculos para desfazer seu pano” 33. Como no caso do diálogo Fedro, que se revela a Derrida. Há a necessidade de que esta textura seja apreendida por “outro” para que a “verdade” seja fruída. Pensamos a performance como um texto que se oferece à leitura. Ensaias se estabelecem nesse contexto. Saias à espera de serem lidas. Os atos propostos pela performer são compartilhados com o público e têm 32 Derrida, Jacques. A palavra soprada In “A escritura e a diferença”. São Paulo: Editora Perspectiva, 1971. p. 116. 33 Ibidem. p. 11.
47
nas saias o entreposto de uma dissimulação. As saias ganham sentidos ampliados quando são colocadas em ato. Elas cumprem tarefa semelhante a um escrito, que jaz à espera de quem o leia. Mas não basta apenas ler a saia. “Seria preciso, pois, num só gesto, mas desdobrado, ler e escrever”
.
34
A leitura só é efetivada quando também se torna escrita. Derrida (2005) chama a atenção para o é que une leitura e escritura. A afirmação “leitura é escritura” como possibilidade de descoser a costura de um tecido. Pensar, para Ensaias: a possibilidade de ler e escrever como forma de ir ao encontro de um significado. Realizando, assim, alguma compreensão, para a costura que une as peças da veste. Compreensão que nunca deve se dar ao primeiro olhar. No jogo entre público e obra há véus. A verdade da proposição se faz “oculta”, mistério. Em A farmácia de Platão (2005): Um texto só é um texto se ele oculta ao primeiro olhar, ao primeiro encontro, a lei de sua composição e a regra de seu jogo. Um texto permanece, aliás, sempre imperceptível. A lei e a regra não se abrigam no inacessível de um segredo, simplesmente elas nunca se entregam, no presente, a nada que se possa nomear rigorosamente uma percepção. 35
A condição de ser texto está atrelada à permanência no inacessível, estar recoberto por véus. Ensaias condiciona sua apreensão no estado de vir a ser revelada, mas nunca se fazer inteiramente acessível. O jogo desempenhado entre público e obra é o jogo do “desvendar”, que nunca se concretiza; permanece assim, a obra, como segredo. Ensaias é uma escrita dissimulada. Não quer ser dominada. Ensaias quer ser tocada, penetrada, cortada, exposta no jogo perene 34 Derrida, Jacques. A farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras, 2005. p. 7. 35 Idem.
48
com o leitor, costureiro de proposições. A saia dissimula um corpo. Nietzsche, segundo Derrida (1981), compõe uma escrita dissimulada, um véu, uma escrita que se coloca também como uma questão de estilo. Em Os estilos de Nietzsche (1981), Derrida comenta: La cuestión del estilo es siempre el examen, la presión de un objeto puntiagudo. A veces únicamente de una pluma. Pero también de un estilete, incluso de un puñal. Con su ayuda se puede, por supuesto, atacar cruelmente lo que la filosofía encubre bajo el nombre de materia o matriz, para dejarla marcada con un sello o uma forma, pero también para repeler una forma amenazadora, mantenerla a distancia, reprimirla, protegerse de ella –plegándose entonces, o replegándose, en retirada, detrás de los velos. Dejemos flotar el élitro entre masculino y femenino. Nuestra lengua nos asegura el goce, con tal de que no se articule. Y en cuanto a los velos, ya se sabe, Nietzsche practicaría todos los géneros. El estilo avanzará entonces como el espolón, el de un velero por ejemplo: el rostrum, ese saliente que en la parte exterior hende La superficie adversa. 36
A leitura de Nietzsche, segundo Derrida (1981), necessita de uma atenção redobrada aos seus estilos. Nietzsche escreve com sangue e o estilo funciona como um estilete, que deixa no papel uma marca, é o esporão do veleiro que vende a epiderme do “outro”. Através de uma atitude pungente organizamos o caos que se avulta em nossa fronte e encontramos um plural sentido interior. A escritura de Nietzsche não é sujeitada à verdade, mostra-se como um velo da verdade, afirma-se como um mistério ao exercício do leitor, fruidor, da proposição nietzscheniana. O indivíduo se desvela no encontro com a escrita, no encontro com o outro, ou ainda, no encontro com a obra de arte. Ensaias procura o necessário outro, objetivando sua laceração e sua entrega ao desvario dionisíaco, que dará acesso a possibilidades de verdades. 36 Derrida, Jacques. Espolones: los estilos de Nietzsche. Valencia: Pré-textos, 1981. p. 27.
49
7.
COSTURA — Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária! 37
As
linguagens
contemporaneidade
vão
utilizadas
pela
muito
além
da pintura, desenho, escultura etc. Tão múltiplas que algumas vezes nem sabemos precisar sobre qual linguagem um dado trabalho está assentado. Todas as técnicas Imagem 26 – José Leonilson, Leo não pode mudar o mundo, 1991.
de criação parecem ser permitidas para a fatura das propostas artísticas atuais. Nesse contexto múltiplo, temos em Ensaias, além da proposta performática, a confecção de objetos através, principalmente, de uma idéia de costura. O gesto de costurar é aqui tomado como processo. Propomos que o costurar seja pensado como fazer performático, ou seja, costurar significando performar. José Leonilson bordava os tecidos, criava imagens no limite entre
Imagem 27 – Artur Bispo do Rosário, Manto da apresentação.
desenho, pintura, bordado. O tecido como 37 Assis, Machado de. Um apólogo In “Para Gostar de Ler - Volume 9 - Contos”. Editora Ática: São Paulo, 1984, p. 59.
50
uma pele onde eram escritas páginas de uma autobiografia. Arthur Bispo do Rosário criou uma série de estandartes e o seu famoso Manto das apresentações através de costura e de colagem. Duchamp que destitui a obra de arte de seu caráter de manufatura consagrada e exemplar. Fazendo com que o ordinário, o inútil, pudesse ser campo do pensamento, quebrando paradigmas e, assim, nos mostrando a face do objeto de Imagem 28 – Marcel Duchamp, A fonte, 1917.
arte. Ensaias, objetos vindos da costura, saias ordinárias, inúteis, objeto de arte,
objeto de consumo. Ensaias é venda, a costura de uma ilusão. Saias que se propõem à utilização extrema, até a destruição. Ensaias são gestos, atos de costurar saias. O gesto tem seu significado na esfera da ação, mas difere do agir e do fazer. “O que caracteriza o gesto é que, nele, não se produz, nem se age, mas se assume e suporta” 38. Na acepção aristotélica, citada em Agambem [2008], agir é diferente de fazer. A finalidade do agir é agir em prol do bem, já a finalidade do fazer é o próprio fazer. O gesto, para Agambem (2008), surge como uma terceira opção da ação, além da proposta aristotélica. Temos o fazer como um meio direcionado a um fim e o agir como um fim sem meio, “o gesto rompe a falsa alternativa entre fins e meios que paralisa a moral e apresenta meios que, como tais, se subtraem ao âmbito da medialidade, sem por isso tornarem-se fins”39. O autor exemplifica essa 38 Agamben, Giogio. Notas sobre o gesto In ArteFilosofia, Ouro Preto, n.4, jan. 2008, p. 12. 39 Ibidem. p. 13.
51
assertiva falando da caminhada como falsa compreensão do gesto, onde temos um corpo que se desloca de um dado ponto almejando atingir outro ponto. Temos, porém, na dança um gesto, não há finalidade, apenas a exibição de um meio, onde o artista assume e suporta os movimentos corporais. Realizar um gesto faz aparecer o “ser-num-meio” do homem, essa é a condição da performance, tornando visível um meio enquanto campo de ação do pensamento. Escreve Agambem, em Notas sobre o gesto (2008): Somente desta maneira a obscura expressão kantiana de “finalidade sem fim” adquire um significado concreto. Ela é, num meio, aquela potência do gesto que o interrompe no seu próprio ser-meio e apenas assim o exibe [...] 40
Performance se estabelece como gesto; proposição de finalidade, sem contudo atingir um fim. Performance é a “potência de um gesto”, uma forma de escritura, onde são exibidos os próprios meios que a tornam possível. Performance não pretende dizer, ela é ação: suportar, ser gesto, ser meio. Ainda Agambem (2008): O gesto é, nesse sentido, comunicação de uma comunicabilidade. Este não tem propriamente nada a dizer, porque aquilo que mostra é o serna-linguagem do homem como pura medialidade. Mas, assim como o ser-na-linguagem não é algo que possa ser dito em proposições, o gesto é, na sua essência, sempre gesto de não se entender na linguagem, é sempre gag no significado próprio do termo, que indica, antes de tudo, algo que se coloca na boca para impedir a palavra, e também a improvisação do ator para superar uma falha de memória ou uma impossibilidade de falar. 41
40 Agamben, Giogio. Notas sobre o gesto In ArteFilosofia, Ouro Preto, n.4, jan. 2008, p. 13. 41 Idem.
52
Gesto é a escritura que se oculta, uma gag, uma falha, um lapso. A performance tem sua ação nos véus que são parte da evidência da gestualidade. A costura está proposta em Ensaias como gesto de performance. A artista propõe a ação de costurar saias inúteis, saias para serem destruídas na própria ação do fazer. A costura se torna um gesto incompreensível diante de um fazer dirigido aos rasgos. Ao mesmo tempo a ação dessa costura parece uma tentativa de apreender um gesto que há muito perdemos. O gesto de costurar – que por muito tempo no ocidente, era quase uma ação automática do feminino – se perdeu mediante as novas tecnologias de confecção. Ensaias retorna essa ação, agora como gesto que se faz e que se auto-aniquila, e se refaz. A atitude de Ensaias é evidenciar, através da linguagem da performance, um gesto perdido, que retorna em situação de auto-aniquilação, expondo as vísceras do fazer artístico, proposta de uma escrita feminina. A contemporaneidade tentando se constituir partindo de fragmentos, rastros da história que não foi dita.
Imagem 29 Entreato N.1, maçãs do amor - registro do resultante da ação, abril de 2009. Fotografia: Mariana Maia.
54
8.
SATURNO
Era uma vez, ou apenas foi, ou é, o princípio de uma narrativa, que, no entanto, é também o fim. Em nome do pai, da mãe e uma filha. Branco como a neve, vermelho como o sangue e preto como as assas de um corvo. O desejo e o arrependimento. A mãe desejou a filha, o prosseguir da vida. Mas a filha lhe tomou a juventude, o amor. A mãe é o espelho embaçado do que hoje é a filha. Cacemos os cervos na floresta. Devoremos o seu coração. Foge linda donzela da fúria do ventre. Se perder na floresta pode ser a melhor saída. Os dias passam e o espelho ainda reflete o meu rosto. Morde então a maçã perde a inocência. Cai no sono eterno dos dias que consomem a juventude. E a vida prossegue em um beijo de amor ou em uma dança até a morte com sapatos de ferro em brasa. Sobre quem é esta história? Saturno é o deus dos camponeses, também é Cronos, aquele que empunhou a foice contra o pai. O destino é implacável mesmo para os deuses, pois o Céu Estrelado, pai de Cronos, perece, não mais pode fecundar, e em uma noite solar o filho tomou a grande tarefa do pai, temer seus próprios filhos, seus atos, o destino inelutável. O oráculo desvenda o tecer das Moiras, irrevogável. A verdade orácular nos mostra um destino inevitável, mas também mostra que o destino pode se dar a ver. Sobre as verdades pronunciadas pelo oráculo são todas as obras de arte. O Saturno devora um filho. A criatura é decrépita se precipitando à morte, é também disforme e agigantada. Ele segura com todas as forças algo que se assemelha a um corpo humano. Dilacera com os dentes. Não é o ódio ou a fúria que move o seu ato. Saturno tem medo no olhar, de fato, ele parece apavorado. O que deixaria um deus titânico apavorado? Saturno não é divino, mas sim um velho, já cruzando o rio Estirpe; um velho com olhos esbugalhados de medo. Cronos, o tempo, nos persegue desde o nascimento até a morte. Saturno devora seus filhos por medo da morte e seus filhos jazem, fadados ao tempo, cronos, aquele que empulha a foice. Condenados à morte, a mercê de forças titânicas, buscamos conhecimento. O homem procura entender a vida, a existência, por medo, talvez, da morte.
55
9.
ENSAIAS
9.1 Entreatos N.1 Entreato N.1 foi realizado em abril de 2009, junto ao Mestrado em Artes Visuais, no ateliê do Instituto de Artes. Desponta e ganha importância nesta e nas próximas proposta, o uso de objetos cênicos. O figurino todo branco e a maçã envolta em líquido vermelho são os desencadeadores de uma ação. Os objetos do mundo, o comum como potencializador de gestos. Ato cênico, Entreato N.1, preponderava a fala de um texto enquanto um alimento era preparado. Foram dispostos para o preparo os ingredientes de uma maçã do amor, exceto o açúcar. O resultado eram maçãs meladas com um líquido vermelho, que durante o ato performático eram entregues ao público. Faziam, ainda, parte da Performance um figurino todo branco e uma cesta de palha. A fala da performer era fragmentada, tresloucada. Esperando a identificação com o público, ou apenas ser ouvida. A artista tenta tocar o “outro” pela fala e pelo objeto maçã. O ato de doação se torna ao mesmo tempo carinhoso e perverso. Doar uma maçã do amor gera alguma desconfiança por parte do público. Quem poderia saber se esta maçã estaria ou não envenenada? Devorar e ser devorado: palavras, ações, Imagem 30 – Artur Barrio, Trouxa ensanguentada, 1969.
maçãs, imaginários. Os objetos como os véus, ocultam o olhar.
56
A Trouxa ensanguentada de Artur Barrio guarda semelhança com a maçã de Entreato N.1. Maçãs são, geralmente, objetos de desejo, mas não estas. Elas geram desconfiança, não são apetitosas, mas lambuzadas em líquido estranho. Como a trouxa, as maçãs de Entreato N.1 são objetos que segredam, que velam seu conteúdo. Objetos de encruzilhada, estão no meio do caminho para ser obra de arte. Eles assinalam a eternidade de uma proposição exemplar. A maçã e a trouxa são o pensamento lançado no instante de um ato. Objetos que não almejam ser contemplados. Arte trágica que se finda na própria proposição.
57
Entreato
Rotina. Noite dos dias. Tudo agora silêncio. A narrativa principia. os olhos se fecham. Existência presente. Instante. Os músculos despertam prontos para a batalha. O tempo não passa. Os corpos prontos para o movimento não se movem. Despertar. Dormir. Caminhar pela cidade. Nas ruas barulho, turbulência, caos; mas há silêncio, calmaria. As ruas silenciosas. Não. Novamente o movimento. Organismo insano, desenfreado. Todos os dias iguais. Infinitos. O que é feito do viver? Decidir por pensar. O fruto era proibido. Isso não importou. Expulso do paraíso, caminho pela paisagem desértica. Vagando está, buscando não a verdade, e sim poder querer alguma verdade. A maçã foi mastigada com pressa. Não houve nenhum prazer. O dia começou e já teve fim.
Imagem 31 Entreato N.2, performance, maio de 2009, IFRJ. Frame de vídeo: Hélio Mello Vianna.
59
N.2 Entreato N.2 foi realizado em maio de 2009 como apresentação de Monografia Final do Curso de Especialização em Produção Cultural/ IFRJ. A escrita é o personagem que permeia esse ato performático. De que forma escrever, ler e ouvir podem significar performar, isto é, dar forma às coisas do mundo, criando imaginários e estabelecendo uma narrativa. Escrever, ler e ouvir – atos, estabelecimento de um ritual imagético. Nesta proposta a Literatura se constitui no limite com a Visualidade. A performer entrava vestida de preto enquanto um vídeo era projetado na parede e, depositada no chão, uma roupa toda branca de onde saiam fios brancos. O vídeo projetado mostrava uma imagem desfocada de uma mão que escrevia alguma coisa. Nas roupas brancas pendiam fios e papeis com escritos. A performer vestia a roupa branca, distribua os fios para o público, ficando emaranhada na rede que se formava; depois dava prosseguimento à ação de retirar os papeis e lê-los um a um; findando os papeis, ela desfazia a rede de linhas e saía do espaço de exposição. A performer veste as palavras e as torna sonantes. Imagem 32 – Allan Kaprow, Words, 1962.
Trabalho
significativo
para
o
60
entendimento da proposta é a instalação de Allan Kaprow, “Words”, de 1962, onde o espaço da Smilin Gallery em Nova York foi preenchido por papeis, “notas”. A visão dos papeis pendurados no trabalho de Kaprow e no meu trabalho dão as palavras um caráter de objeto. No entanto, os meus papeizinhos não são um objeto para ser admirado, mas sim objetos desencadeadores de ação. Retalhar a monografia e vestir. Tomar como pele palavras escritas. Emaranhada
na
rede
do
conhecimento procuro entender qual é o saber da arte. Seria a fabricação de objetos? Imagem 33 – Márcia X, Alviceleste, 2003.
Ou atos? Márcia
X
realiza
propostas
semelhantes, com trabalhos que tem no banho o ato da performance. Em Alviceleste ela se banha de azul nas cavalarias do Parque Lage; por fim temos o resíduo da ação, o espaço tingido de azul. Em Pancake, a artista se banha com grandes latas de Imagem 34– Márcia X, Pancake, 2001.
“leite moça” e depois com confetes. Ainda em Lavou a Alma com Cola-Cola, banha-se
61
com coca-cola e parece jazer em meio ao líquido, como em um filme a ser revelado na bacia de revelação. Márcia X realiza ritos em torno de líquidos, ideias, atos, com os quais seu corpo deve ser embriagado. Nesse estado de embriaguez também se estabelece o Entreato N.2. A performer se apresenta ao público embebida com as palavras, frases retiradas da Monografia Final. Em gesto ritual a performer lê sem parar os papéis que revestem a sua roupa, as mãos em um vídeo escrevem em loop. A ritualização do comum buscando nestes Imagem 35 – Márcia X, Lavou a Alma com Coca-Cola, 2003.
gestos outras significações.
62
Saia Vã Dança Inaudita Desejos. Encarnadas saias Vento Ressoa o silêncio Desafio de amantes A beleza da tormenta. Vida no palco. Morte na entrega. Fuga Corremos À fatalidade. Nessa arena Tememos. Pulsa Treme Geme Vitória Olhar incomensurável Crispado de dor Sangue Roda sem fim.
Imagem 36 Ensaias N.1, performance, 2009. Fotografia: Mariana Maia
Ensaias N.1, performance, 2009. Fotografia: Mariana Maia
65
9.2 Ensaias N.1 Busco um ato significativo em cenas, falas, ações. Compor uma performance, como compor uma pintura? O que é próprio da linguagem da performance? Quais materiais e quais procedimentos devem nos guiar? Essa não é uma receita simples. Linguagem plural, a performance, impõe a seus praticantes uma liberdade de abandono. Eis que surge diante de meus olhos, os objetos usados na performance Entreato: cesta de palha, faca, blusa branca, linhas, saia. Os objetos solitários, deixados após a cena, guardam em si rastros da ação findada. Dentre os objetos desamparados havia um que me causava mais espanto e trazia a tona lembranças: uma saia costurada com as próprias mãos. Ah! As roupas que minha avó costurava, que minha mãe também costurou, penduradas em cabides no barracão. Tremulavam. Cambiantes. Pareciam vivas. Aparições. Como eram belas e como me regozijava de sair vestida com algumas. A saia feita pra mim, para cobrir o meu corpo, para ser o meu corpo e me levar pelo mundo. A velha máquina de costura em um tilintar incessante parecia conferir vida aos tecidos. O ato de rebeldia Duchampiano: um objeto industrializado no espaço artístico, o que é próprio de uma obra de arte? O ato controverso de Ensaias: um objeto manual que tem em seu fim uma utilidade prática é transfigurado em arte. Como estabelecer noção de performance a partir de uma saia? A saia utilizada na performance se torna a personagem principal da ação. Ou talvez seria a relação dela com as personagens-público a persona almejada?
66
Agora percebo os objetos do mundo dotados de teatralidade. Eles têm vida própria e desencadeiam ações. Os objetos animam os corpos. A inelutável cisão do visível proposta por Didi-Huberman vem à tona na saia branca. As saias brancas que minha avó usava enquanto trabalhava em sua antiga máquina de costura. Alfinetes perfuravam o tecido, máquina girava, agulha furava e histórias eram contadas. Saias por fazer, para serem submetidas às agulhas, maculadas, rasgadas, remendadas, torcidas, perfuradas, vinham de labuta e sofrimentos. No entanto, crianças ainda tocavam, puxavam, levantavam as saias, também os amantes fazem esses atos de criança. E eis que o êxtase maior surge no transe religioso, saindo sem rumo em um giro de fé por tempos melhores. Ensaiamos a performance. Um coro mascarado em êxtase. Ensaias: público, performer, obra. O ato artístico é compactuado por todos. A performer veste sua própria saia. Todos vestem suas próprias saias. Tornam-se “Um” através do vestir. Sátiros, talvez, de outra ordem. A tragédia é realizada no anfiteatro. A obra é lida e escrita no espaço de exposição. Ensaias dança e canta desvelando verdades. Costuramos palavras uma sobre a outra. Realizamos uma grande balbúrdia. Repetimos o gesto sem cessar até que acabe o espaço nas saias da história. Ensaias, ensaias, ensaias e não chegamos ao divino ato. O gesto da performer dá início à ação, mas são os gestos seguintes, realizados pelo público, que abrem sentidos à ação. Performar parece ser o gesto de erguer uma proposição e deixar que ela ganhe amplitude, como uma gota de chuva que cai na superfície do mar. Cada obra de arte traz em si a tempestade.
Imagem 37 Ensaias N.2, performance realizada no Centro Cultural Cartola â&#x20AC;&#x201C; Mangueira/ Rio de Janeiro e no Encontro Nacional de Estudantes em Artes â&#x20AC;&#x201C; UFBA/ Bahia, 2009. Fotografia: Vitor Ramos Braga.
Ensaias N.2, performance realizada no Centro Cultural Cartola â&#x20AC;&#x201C; Mangueira/ Rio de Janeiro, 2009. Frames de vĂdeo: Vitor Ramos Braga.
69
9.3 Ensaias N.2 Ensaias N.2 participou das exposições ENEARTE – Artes Visuais na UFBA em setembro de 2009 e de Terra Viva no Centro Cultural Cartola no morro da Mangueira. A veste é exposta repleta de histórias. Pequenos papéis ou fragmentos de textos são dobrados escondendo o seu conteúdo e costurados na saia. Diversos papéis coloridos e guizos tesouras e canetas também são costurados na saia. A saia é disposta em um cabide e pendurada na parede da galeria. O público vê a saia-máscara, mas não entende a ação da qual o objeto participa. Em dado momento a performer entra e coloca a saia em ato. A performer veste a saia e conta a história fragmentada nos papéis ali costurados. Em gritos imperativos ela chama à participação do público; eles também devem constituir uma história. Em giros, papéis coloridos se desprendem da saia. A performer retira a vestimento-máscara e a dispõe novamente no cabide. Passada uma semana a artista volta ao seu objeto. Na saia faltam diversos papéis, mas palavras lhe foram acrescentadas “era uma vez... ser uma vez... viver uma vez... sempre”, “Luz e sombra sempre presente no ir e vir desta vida que anda chama vivê-la”, “quando se é feliz a vida tem alegria viva”, “são tantas as histórias”, “quando se vive a vida, intensa, doída, doida, ou sentida, nasce uma história”. Estas são algumas das palavras encontradas na saia de contar. A saia-máscara em ato se torna viva e tem seus sentidos multiplicados. A performer conta uma história, a saia conta uma história e o público participante deixa fragmentos de mais histórias. O objeto volta ao ateliê e jaz pendurado em um canto à espera de ser colocado em ato.
Imagem 38 Ensaias N.3 â&#x20AC;&#x201C; Saia Vendar, performance, 2009. Fotografia: Mariana Maia.
Ensaias N.3 â&#x20AC;&#x201C; Saia Vendar, performance, 2009. Fotografia: Mariana Maia.
72
9.4 Ensaias N.3 – Saia de Vendar Pode uma veste que é colocada sobre o topo da cabeça ser ainda uma saia? Geralmente as saias são projetadas para pender do quadril ou da cintura. As saias escondem as partes pudicas do corpo. Ensaias N.3 encobre os olhos. Não apenas daquela que sustenta a saia sobre a cabeça, mas dos expectantes ao seu redor. A saia preta é vestida sobre a cabeça. Várias tiras de tecido preto pendem encobrindo rosto, cabelos e o corpo da performer. O tecido é semitransparente e a performer consegue ver o público. Ela irá desfazer a saia, tira a tira. Puxa uma das tiras e venda um dos espectadores que consegue ver por entre a venda. Outra tira é retirada, mas dessa vez são dadas diversas voltas em torno dos olhos do espectador; ele nada vê. Pouco a pouco, venda a venda, a saia de cabeça vai se desfazendo, retalhada em tiras nos olhos dos espectadores. O rosto da performer é revelado e o ato tem seu fim. O público observa a ação, mas nada lhes é revelado por completo, pois há um véu entre seus olhos e a performer. Aparição fantasmagórica, Ensaias N.3, parece reproduzir o véu de uma viúva. A noiva que perdeu o par para um destino inelutável, resignada, sustenta no topo da cabeça a marca de seu estigma. Dança sedutora, Ensaias N.3, nos dá um lampejo do que sentiu João Batista em seu encontro derradeiro com Salomé. “Por que não me olhas, Iocanaan? Teus olhos, que eram terríveis, tão cheios de ódio e escárnio, estão fechados agora. Por que estão fechados? Abre-os!”
42
A performer com seus véus negros almeja
estabelecer relação com o espectador. Envolver os olhos do outro com um véu e 42 Wilde, Oscar. Salomé. Domínio Público, 1894.
73
assim seduzi-lo, enlaçá-lo, ter posse sobre o olhar. Jogo recíproco, onde a performer revela seu próprio corpo. Personagem principal, o corpo, tem na saia um outro corpo, dispositivo que desencadeará o jogo de atração. A “inelutável cisão do ver” proposta por Didi-Huberman, “devemos fechar os olhos para ver quando o ato de ver nos remete a um vazio que nos olha, nos concerne e, em certo sentido, nos constitui.”43 Olhamos as Ensaias e elas nos olham de volta e percebemos do que somos feitos. Faz-se necessário estar vendado para tecer alguma compreensão do que é desvelado a nossa volta. Com a cabeça que nada vê sobre as mãos, Salomé redescobre um enorme amor.
43 Didi-Huberman, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998. p.31.
Imagem39 Ensaias N.4 â&#x20AC;&#x201C; Saia Rasgar, performance, 2010. Fotografia: Vitor Ramos Braga.
Ensaias N.4 â&#x20AC;&#x201C; Saia Rasgar, performance, 2010. Fotografia: Vitor Ramos Braga.
76
9.5 Ensaias N.4 – Saia de Rasgar 6 Movimentos, de 1974, trabalho de Artur Barrio apresenta um tecido, uma tesoura e a mão do artista que se oferece ao olho fotográfico. O ato consiste em seis fotos da tesoura que recorta o tecido. O gesto de cortar não expõe a tela como em Lucio Fontana. Barrio expõe a tesoura que corta. O gesto comum de Imagem 40 – Artur Barrio, 6 movimentos, 1974.
corta. A tesoura parece estabelecer uma narrativa e nos 6 quadros conseguimos
ler um texto. Escuto a cada quadro o barulho dos golpes da lâmina sobre o tecido. Em loop meu olhar repete o gesto de produzir a fissura. O som das lâminas que se chocam uma na outra não cessa. Ensaias N.4 é uma saia feita de rasgos. O resultado final é uma saia inutilizável, pois o resultante são apenas farrapos. A saia só tem uma existência possível no fazer. Quando a tesoura cessa finda a ação. Ensaias N.4 evidência a o movimento dos corpos: saia, performer, tesoura. A ação de produzir rasgos confere vida a saia. Ao fim da narrativa temos apenas trapos. Ensaias, em trânsito descemos a montanha em busca do ocaso. Queremos encontrar a sorte lida pelo oráculo e não cessamos a caminhada até quedarmos cegos a beira do Stígia. Decifraremos todos os enigmas sem temer os deuses, já que a vida pertence aos homens. Retalhamos. Ensaias se torna presente no entreato. A obra não quer ser
77
discurso, mas sim aquilo que escapa. Muda, absorta a obra de arte se coloca diante do leitor. Um pano vermelho, uma tesoura. A costura é realizada através do rasgo. Ameaçadora a lâmina parece se dirigir ao corpo da artista. Retalhos de tecido são extirpados. A obra se vocifera como um cão raivoso que brada com o próprio rabo. A obra almeja o fim, pois ela só é possível no aqui e agora. O pano vermelho em farrapos recobre o corpo. O palco está fechado. A velha cortina de um palco esquecido. A imagem parece remontar certas imagens do barroco; cheia de fúria, violência, santidade. A tesoura e o tecido são oferecidos ao “outro”, para que a ação do fazer artístico seja recomeçada. O gesto de violência que não cessa. O sexo ameaçado pela lâmina.
Imagem 41 Ensaias N.5 â&#x20AC;&#x201C; JĂĄ temos assento, fotografia digital, 2010. Fotografia: Mariana Maia.
Imagem 42 Ensaias N.5 â&#x20AC;&#x201C; JĂĄ temos assento, performance, 2010. Fotografia: Mariana Maia.
80
9.6 Ensaias N.5 O
assento
está
sobre
a
cabeça, tal qual um chapéu bizarro. As pernas do banco parecem chifres que se prolongam da estranha cabeça ensaiada. A figura que encara o espectador com seriedade poderia ter vindo uma outra época, talvez da Antiguidade. É apenas alguém que sustenta um banco sobre a cabeça por sobre uma saia florida. Em 1799, Francisco Goya publica junto a sua série Los Caprichos a gravura número 26 Ya tienem Imagem 43 - Francisco Goya, Ya tienem asiento, 1799.
asiento. A série Los Caprichos traz um
Goya atormentado pela sociedade que o cercava. As gravuras tem uma série de explicações ligadas a um caráter moralizante. A gravura em questão apresenta a seguinte nota em manuscrito que se encontra no Museu do Prado e na Biblioteca Nacional da Espanha: “Para que las niñas casquivanas tengan asiento no hay mejor cosa que ponérselo en la cabeza”44 e “Muchas mujeres solo tendrán juicio, ó asiento en sus cabezas, cuando se pongan las sillas sobre ellas. Tal es el furor de descubrir su medio cuerpo, sin notar los pillastrones que se burlan de ellas”45. 44 Helman, Edith. Transmundo de Goya, Madrid: Alianza Editorial, 1983. 45 Idem.
81
Ensaias N.5 propõe que todos coloquem sobre suas cabeças assentos e dancem buscando equilibrá-los. Quando cabeças podem estar assentadas? Assentar a cabeça, ensaiar um corpo, em Ensaias a situação burlesca proposta por Goya busca outros significados. O banco que se prolonga da cabeça se mostra como o assento ou a cátedra que essa outra saia almeja. Ensaias quer se assentar como um lugar para o saber. A expressão da performer expõe a perversidade da ação. Vestir a saia sobre a cabeça e nela depositar um banco é a ação proposta, também, para o público. O saber está na cátedra, está sobre a cabeça em uma saia.
Imagem 44 Ensaias N.7 – Fitas, performance no evento Caos Específico, Espaço Clarabóia – Lapa/ Rio de Janeiro, 2009. Fotografia: Reginaldo Maia.
Ensaias N.7 – Fitas, performance no evento Caos Específico, Espaço Clarabóia – Lapa/ Rio de Janeiro, 2009. Fotografia: Reginaldo Maia.
84
9.7 Ensaias N.6 – Saia Fitas Fitas entrelaçadas formam a costura dessa saia. Os fios descem pela cintura e arrastam no chão. Vagante colorida pelas ruas da Lapa. As fitas dançam ao vento. A saia de fitas almeja ser cor solta no ar. Arco-Íris. Impalpável. A performer desfaz tira a tira, até não haver mais saia. O público recebe as fitas de cetim e levam consigo um pedaço da saia. Na dança das fitas os participantes realizam paços coreografados. As fitas são trançadas e depois destrançadas. Cores pendem em linhas de um grande mastro central. É como se os corpos fossem as fitas coloridas, no ar, ao vento, brincantes. Ensaias N.6 foi apresentada no Espaço Clarabóia, na Lapa, Rio de Janeiro. A performer usava uma saia feita de fitas de cetim, que era desfeita na ação. Algumas fitas eram dadas aos participantes, outras jogadas ao chão. A performer parecia puxar com grande esforço cada fita da saia, quase como se as fitas fizessem parte de seu corpo. As tiras de tecido eram lançadas ao ar. Os braços e pernas da performer acompanham a trajetória que as fitas faziam até o chão. Em um lance final, a performer sobe até o segundo andar e lança, pela janela, o restante das fitas. Ao chegarem ao chão são disputadas pelo público. Pequenos pedaços de tecido colorido são presentes para o público. A saia deixa de ser uma peça única, passa a ser veste de todos. Entrelaçados em cabelos, pendendo dos pescoços. A saia já não pertence a performer, agora é adereço de todo o público. Uma dança das fitas onde o público entrelaça uma nova veste.
Imagem 45 Ensaias como danรงas, performance, 2011. Fotografia: Vitor Ramos Braga.
Ensaias como danรงas, performance, 2011. Fotografia: Vitor Ramos Braga.
Ensaias como danรงas, performance, 2011. Fotografia: Vitor Ramos Braga.
88
9.8 Ensaias N.7 – Ensaias como danças Uma saia feita de véu, ou de vento. O pano é manchado de vermelho em linhas longitudinais que parecem traçar a rota. Uma brincadeira com o movimento do ar. Um brinquedo, ou uma biruta. A borda é arredondada e possui um suporte de metal. A barra da saia como um poço, onde nos atiramos sem medo, ansiosos por descobrir o seu interior. Enchemos a saia de ar e mergulhamos. Realizamos dança, um embate. Quem comanda os movimentos? A saia ou a performer. No interior de Ensaias n.7 nosso corpo está sobre posse de um outro e entramos em comunhão com essa existência dubla. Escutamos o barulho do ar em movimento e do pano que tangencia a pele.
Imagem 46 Ensaias retalhada, performance, 2011. Fotografia: Mariana Maia.
90
10.
CONCLUSÃO Saia azul em sobrevôo. A primeira imagem que consigo recordar. A
dissertação tem início com uma lembrança. Ensaias parece ser o eco daquela primeira imagem. Visão que já se apaga ao crepúsculo. Como o som que ecoa na caverna até se tornar presença. Ensaias querem ser sonantes. A saia azul de minha avó é recordação que se apaga, mas ganha vida nova, agora é entidade, ser-aí, corpo do mundo. O mundo onírico é ensaiado e nos leva ao encontro de uma verdade para a existência. Há cor, dança, alegria, tal qual nas verdades do deus, dádivas dionisíacas. Acreditou-se exacerbadamente na razão. A arte confere ao mundo uma nova ótica. Através do êxtase e da embriaguês reencontramos o outro, e retornamos ao Uno primordial, anterior ao principio de individuação. O dionisíaco de fato nunca abandonou o mundo. O coro satírico nunca foi totalmente destituído. Encontrou-se latente, por de trás de pinturas, mármores, arquiteturas. Na performance toda a potência de Dionísio eclode, em um turbilhão. A arte é o corpo, é a participação, é a entrega ao grande espírito do mundo. As obras de arte ganham todas vida e dançam ao som da flauta de Pan, encantadas, não podem parar o movimento. Performance, arte de tempos de crise, verdadeiro consolo, pois com ela, o deus volta a dançar pelas veredas da ática e do mundo. O performer é o sacerdote de um rito. Confere fúria aos corpos. Todas as mães irão devorar seus próprios filhos e encontrar a verdade bruxuleante que não está no exterior, ao sol, mas sim, nos recantos mais escuros das cavernas de nos mesmos.
91
Embebida pela cena da saia que parecia ter ganhado vida, costurei essas considerações acerca do pode ser performance. Linguagem plural, aberta a múltiplas manifestações, abraçou, também, a imagem da saia incorporada pelo vento. As obras de arte são essas entidades dotadas de vida. Ensaias transfigura objetos, saias, corpos, vento, sentimentos, lembranças. O projeto de mestrado propunha pensar no mundo tal qual Schopenhauer, um pêndulo, entre o tédio e a expectativa. Descubro nas saias a incerteza que os gregos desconheciam. O destino não é inelutável. Édipo mata seu pai e casa-se com a mãe, por um golpe do acaso. Sim. Estamos a mercê de forças titânicas, sofremos as dores da existência. Somos tocados a cada encruzilhada de nossas certezas, pela força inexorável do acaso. Essa é a beleza que percebo na arte.
92
11.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Livros: AGAMBEN, Giogio. Notas sobre o gesto In ArteFilosofia, Ouro Preto, n.4, jan. 2008. ASSIS, Machado de. Um apólogo In “Para gostar de ler - Volume 9 - Contos”. Editora Ática: São Paulo, 1984. AURÉLIO, Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio eletrônico: século XXI. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Lexicon Informática, 1999. BARTHES, Roland. O teatro grego in “O óbvio e o obtuso”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. BENJAMIN, Walter. “Teses sobre a Filosofia da História”. In Kothe, Flávio(org). Walter Benjamin. São Paulo: Ática, 1985. BIERI, Andréia. O que nos faz Pensar - Cadernos do departamento de filosofia da PUC-Rio - n14 agosto de 2000. BRITO, Ronaldo. “O moderno e o contemporâneo: o novo e o outro novo”. In De Lima, Sueli(org). Experiência Crítica. Rio de Janeiro: Cosac Naify, 2005. CARVALHO, Flávio. Idades púberes da história. In “Textos da exposição: Flávio de Carvalho desveste a moda brasileira da cabeça aos pés”. MAM Rio de Janeiro, 2011. COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2007. COUTO, Mia. “A saia almarrotada” In O fio das Missangas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. DANTO, Arthur C. A transfiguração do lugar-comum. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
93
DERRIDA, Jacques. A palavra soprada In “A escritura e a diferença”. São Paulo: Editora Perspectiva, 1971. ____________ Espolones: los estilos de Nietzsche. Valencia: Pré-textos, 1981. ____________ A farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras, 2005. DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio eletrônico: século XXI. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Lexicon Informática, 1999. GERHEIM, Fernando. Linguagens Inventadas – palavra imagem objeto: formas de contágio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. Portugal: Edições 70, 2010. JEUDY, Henri-Pierre. O corpo como objeto de arte. São Paulo: Estação Liberdade, 2002. JOYCE, James. Um retrato do artista quando jovem. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006. KOSUTH, Joseph. “A arte depois da filosofia” in: Ferreira, Gloria e Cotrin, Cecília (orgs.). Escritos de artistas anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 210-234, 2006. KWON, Miwon. One Place After Another: Site-Specific Art and Locational Identity. London and Cambridge, Mass.: Massachusetts Institute of Technology, 2002; viii + 218 pp. MATESCO, Viviane. Corpo, imagem e representação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. MELIM, Regina. Performance nas Artes Visuais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
94
NIETZSCHE, Friedrich W. O Nascimento da tragédia ou Grécia e pessimismo. São Paulo: Editora Escala, 2007. PELBART, Peter-Pál. A potência de não: linguagem e política em Agamben. ROLLA, Marcos Paulo e HILL, Marcos (org). Descrição da performance “O banquete” In MIP – “Manifestação Internacional de Performance”. Belo Horizonte: Centro de Experimentação e Informação de Arte, 2005. Sites: Marina Abramovic em entrevista para Folha de São Paulo, por Fábio Cypriano, em 17 de novembro de 2010. <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/831250-leia-a-entrevista-de-marinaabramovic-na-integra.shtml> Rolnik, Suely. Subjetividade em obra. Lygia Clark, artista contemporânea.(2002) Núcleo de Estudos da Subjetividade – PUC – SP. Página consultada em janeiro de 2011, <http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/Subjemobra.pdf>.