Antonino

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A FOTOGRAFIA COMO UMA IMAGEM DO PENSAMENTO

Numa segunda feira qualquer, um dia assim, desses bem desinteressantes, encontrei Antonino. Na verdade, encontrei Ítalo. E dentro de Ítalo havia Antonino. Dentro de Antonino, por sua vez, havia um nó. Uma dessas coisas emboladas e mal resolvidas, como um cordãozinho no fundo da caixa de bijuterias que, só escarafunchando muito com pinça e lente de aumento, conseguimos encontrar a ponta. Às vezes, o nó se desfaz. Outras, se embola mais ainda. Mas o embolar é bom. Nos faz parar e olhar mais atentamente para as coisas que, em outro momento, passaram despercebidas. Antonino filosofou sobre a fotografia antes mesmo de Susan ou Roland. Observava seus amigos aderindo ao clube das objetivas e, distanciado, cruzava os braços e se recusava a usar o indicador para outra coisa que não fosse apontar os problemas dessa nova mania absurda. Para viver de verdade é preciso fotografar o mais que se possa e para fotografar o mais que se possa é preciso: ou viver de um modo o mais fotografável possivel, ou então considerar fotografáveis todos os momentos da própria vida. O primeiro caminho leva a estupidez, o segundo, à loucura1. Para Antonino, a escolha por fotografar somente momentos felizes e belos salvava seus amigos da loucura – pois eles não teriam que registrar absolutamente tudo ao seu redor – mas, os fazia cair na mediocridade. Afinal, a vida não é feita de castelos de areia perfeitos. E sim – muito mais, aliás – de ondas inesperadas. Ainda assim, por mais resistente que Antonino permanecesse, havia a sensação de que essa atividade um tanto insana deveria fazer algum sentido. Então, após uma bem sucedida experiência com instantâneos, Antonino decide comprar uma velha máquina de sanfona. E quando se dá conta, se transforma em mais um caçador do inalcançável2. A decisão de empunhar uma câmera não se dá arbitrariamente. Há quem deseje simplesmente viver o presente como memória futura – aos moldes dos amigos de Antonino, fotógrafos de domingo3 - , e há os “Antoninos”, que em um movimento oposto, buscam dar corpo à lembranças para que essas substituam o presente diante de seus olhos4. De todo modo, ambos buscam a realização de uma imagem ide21


alizada. Como se a fotografia já existisse previamente na mente de quem fotografa. Às vezes, é algo claro e preciso, inspirado das infinitas imagens que já possui estocadas em sua mente. O cartão postal ideal, vagos ecos de lembrança que afloravam da memória, fotografias do século XIX, sonhos5... outras vezes, o fotógrafo só se dá conta da fotografia que busca quando se depara com a imagem formada através da lente. É como se fosse uma busca sem que ele saiba muito bem o que está procurando. A dança do fotógrafo. A manipulação do aparelho é gesto técnico, gesto que articula conceitos6. O corpo se movimenta, os ombros, os braços... o foco é ajustado e, de repente, lá está a imagem perfeita. Mas, é igualmente verdade que quanto mais se desenvolve o mundo visual, mais extenso fica o mundo invisível7. Ou seja, é preciso alimentar os olhos para os sonhos8. I believe there is such a thing as a search for beauty9, disse o fotógrafo recém falecido – Saul Leiter. Talvez essa fosse também a busca de Antonino que, frustrado por não conseguir a criar a imagem perfeita, vai até sua modelo Bise e a despe. Antonino sentiu a visão dela lhe entrar pelos olhos e ocupar todo o campo visual, tirá-lo fora do fluxo das imagens causais e fragmentárias, concentrar tempo e espaço numa forma finita10. Ele “descobre” Bise dentro da câmera, enquadrada e focada no espaço retangular que parece emoldurar o mundo do homem fotográfico. Era como nos sonhos quando uma presença vinda da profundidade da memória se adianta, dá-se a reconhecer, e logo se transforma em algo inesperado, em alguma coisa que mesmo antes da transformação já assusta porque não se sabe em que poderá se transformar11. E é a beleza (ou o amor) que lança Antonino no espiral sem fim que é o mundo das imagens. Ela o fez se descobrir fotógrafo porque deu a ele o que fotografar. A fotografia autentifica a presença do ser amado. Captura sua essência.12 Bise se tornou seu primeiro e único objeto. É questão de método. Qualquer pessoa que você resolva fotografar, ou qualquer coisa, você tem que continuar a fotografá-la sempre, só ela, a todas as horas do dia e da noite. A fotografia só tem sentido se esgotar todas as imagens possíveis13. E o que fotografar quando Bise não está mais por perto? Sua ausência, as coisas que o faz lembrar dela. Os espaços vazios. Acontece que esses espaços vazios atestam que Bise existiu. Comprovam, dolorosamente que, em 22


algum momento ela esteve ali, mas não está mais. O mundo das imagens é um mundo em si mesmo, transcorre paralelo ao mundo real; numa outra dimensão. A realidade está nas imagens. Não no mundo concreto, pois este é efêmero e aquela, perpetua14. Antonino não podia mais fotografar o que lhe era interessante. Então, passou a registrar tudo aquilo que existia de refratário à fotografia. As insignificâncias cotidianas que passam batidas pelos olhos desatentos, os objetos ignorados pelo mundo (tal qual ele mesmo se sentia). Toda fotografia é um auto-retrato15. Antonino inveja os fotojornalistas. Eles são movidos pelos acontecimentos do mundo e provavelmente não são dominados pelos desejos ocultos da alma. Diante de mais perguntas que respostas e do caos que se tornou sua vida não lhe resta outra solução a não ser se desfazer de todas as imagens ao seu redor. Rasgou as fotografias de Bise como quem deseja apagar memórias. Mas Antonino, eu e você sabemos que as piores lembranças são justamente aquelas que insistem em se revelar, clara e nitidamente quando menos esperamos. Porque não tem jeito. Criamos imagens, vivemos imagens, somos imagens...em papel, pixels ou em sonhos.

1;2;3;4;5;10;11;13 A aventura de um fotógrafo – Ítalo Calvino 6 Vilém Flusser 7 Evgen Bavcar 8 Frase do filme Mauvais Sang, 1984 9 Eu acredito que há algo como uma busca pela beleza - Saul Leiter 12 Roland Barthes 14 Susan Sontag 15 Mario Cravo Neto

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Mariana Medeiros, 29 anos, sonhadora profissional. elephantsandchampagne.blogspot.com

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