Cidade dos Outros

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ESPAÇOS E TRIBOS LGBT EM BELO HORIZONTE

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ESPAÇOS E TRIBOS LGBT EM BELO HORIZONTE

Vinícius Luiz Maria Tereza Novo Dias

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Capa: Glauber Rodrigues Diagramação: Maria Tereza Novo Dias

Vinícius Luiz: viniscopio@gmail.com Maria Tereza Novo Dias: mariatereza85@gmail.com

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AGRADECIMENTOS

Aos nossos queridos personagens que expuseram suas vidas sem pudor. Aos amigos da banda imaginária Fogo! na Ursa. Aos amigos do Cedecom/UFMG e da Visual Virtual que tiveram paciência com dois estagiários formandos. Ao Joapa pelos contatos. Ao nosso orientador Bruno Leal pela disposição em nos orientar e pelos bons conselhos. Ao Luiz Morando pela generosidade em compartilhar parte de sua pesquisa. Ao Glauber pela capa bonitinha. Maria Tereza agradece ao pai pelas caronas, à mãe pelos beijos de boa noite, à irmã, pelo sobrinho. Vinícius agradece aos pais por tudo e aos amigos de moradia pelo laboratório vivo.

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ÍNDICE Prefácio ..................................... 09 Introdução .................................. 13 I - Tribos Bomba, espumante e pó ........ 27 Emos, Indies e Modernos ...... 32

II - Júlia Pedro e a cidade Primeiro Beijo-parte 1 .......... 39 Primeiro Beijo-parte 2 .......... 43 Júlia e Leo ........................ 45 Pedro e Walkíria ................. 53 Inferninhos da cidade-parte 1 .. 59 Inferninhos da cidade-parte 2 .. 63 A montanha e o armário ........ 69

III - A festa vazia Confissões na pista de dança .. 78 Festas imaginárias ............... 82 Festas reais ....................... 84 O último a sair apaga a luz .... 87

Fim da festa ................................ 91 Diário de Bordo ........................... 95 7


Prefácio

Este projeto nasceu com outra cara. No princípio, nossa intenção era fazer um trabalho sobre a atividade de garotos de programa em Belo Horizonte. Os riscos que envolveriam a apuração, aliados à dificuldade em estabelecer contatos com os possíveis personagens no tempo que teríamos disponível, nos fez repensar a proposta. Optamos então por observar as tribos LGBTs da capital para investigar se a diversidade do grupo seria bem maior do que as letras podem sugerir. Encontramos então, barbies, poc-pocs, finas, indies, colocadas, modernos e emos num emaranhado de relações que envolvem gostos musicais, estilos de se vestir, boates preferidas, entre outras características. Foi determinante para a nossa investigação perceber que as tribos só existem a partir do olhar do outro. Assim, a cidade dos outros é a cidade que se divide em tribos, porém, a experiência pessoal de cada indivíduo relativiza essa divisão. A cidade dos outros é também a cidade de LGBTs, que têm um espaço reservado, muitas vezes clandestino, para a vivência de sua sexualidade.

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A observação foi uma das principais ferramentas de trabalho: passamos várias noites sentados em mesas de bar, encostados em paredes de boates, dos mais diversos tipos. Foi assim que construímos a descrição dos locais, que você encontra ao longo do livro atreladas às histórias de Hugo, Fábio, Rodrigo e principalmente Pedro e Júlia. Os nomes apresentados são fictícios, uma vez que alguns apresentaram a necessidade de preservar sua identidade. Todos têm em comum relacionamentos com pessoas do mesmo sexo e uma vida noturna intensa. As trajetórias pessoais dos personagens mostram que o conceito de tribos é elástico. Enquanto características físicas nos faziam crer que certo personagem pertencia à determinada tribo, o relato pessoal, seus gostos e comportamentos apontavam para outras. A condição de ser aceito em algum grupo, especificamente para os gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transgêneros ganha uma maior importância, que ultrapassa os gostos musicais, refletindo a necessidade de se relacionarem com semelhantes. Pedro e Júlia, nossos personagens principais, seguiram caminhos bastante parecidos na noite gay de BH. Apesar de apresentarem personalidades muito diferentes, acabam pertencendo a uma mesma, e quem sabe única, tribo, a tribo dos outros, LGBT. As tribos aqui apresentadas estão alinhadas com a definição do sociólogo Michel Maffesoli em O tempo das tribos “(o neo-tribalismo) recusa reconhecer-se em qualquer projeto político, não se inscreve em nenhuma finalidade e tem como única razão de ser a preocupação com um presente vivido coletivamente”. Além dos personagens, também conversamos com empresários do meio LGBT, que contam suas experiências com esse público:o recém-chegado Léo Batista, que abriu a Amici Disco

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Club em 2007; o ex-dono do Confessionário, Edvaldo Zerlin, que enfrentou o fechamento de sua boate no início de 2008; e a bem-sucedida Walkíria La Roche, que há mais de 25 anos é referência nas noites de BH, seja como artista ou diretora de casas noturnas. Cidade dos outros não pretende ser um guia da noite GLS da capital, por isso nem todos os lugares foram descritos ou citados ao longo dessa reportagem. Optamos por diferenciar os estabelecimentos em boates e bares, seguindo o critério da presença ou não de pista de dança. A nossa intenção é documentar fragmentos da vida social dos jovens LGBTs que vivem um momento de transição: os espaços destinados exclusivamente a esse público ainda são predominantes, porém, há a proliferação de lugares mix, em que a expressão da orientação sexual não é reprimida. Em uma perspectiva mais ampla, a epidemia da AIDS já não é o principal fantasma, enquanto a intolerância e a homofobia são uma ameaça constante. A luta por mais direitos, como a união civil entre homossexuais e a criminalização da homofobia, é pautada na sociedade. Paralelos a isso, esses jovens ainda querem um lugar legal pra ir e pessoas interessantes para conhecer, sem serem importunados por moralismos e preconceitos, mesmo quando esses partem do próprio grupo.

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Introdução

As tribos desempenham um importante papel na sociabilidade contemporânea. Em sociedades urbanas, como a nossa, em que as cidades oferecem espaços de convivência limitados, o encontro é conformado por identificações como gosto musical, hábitos, lugares e atividades em comum. Em Belo Horizonte, a praça Diogo de Vasconcelos, mais conhecida como praça da Savassi, serve de concentração para diversos grupos que podem ser identificados como tribos. Quem gosta de música eletrônica, vai lá. Quem gosta de expressar sofrimento pelo corte de cabelo em franja também vai. Os modernos, os adeptos do axé, os eternos punks, todos encontram abrigo na mesma praça. Devido a essa liberdade, a Savassi também concentra os locais favoritos dos LGBTs (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros) mais jovens. Apesar do ambiente de aceitação, a região não é exceção do restante da cidade. Certos comportamentos são permitidos apenas à noite e longe dos mais conservadores. Vez ou outra há quem burle essa regra implícita

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e troque beijos ou ande de mãos dadas com seu namorado/namorada durante o dia. Hoje isso pode não dar cadeia, mas ainda rende olhares tortos de desaprovação. Quando a noite chega, fica mais fácil identificar as tribos homossexuais. Barbies, emos, pocpocs, indies, modernos, dykes, tuchas, sapatilhas, mini-lésbicas e caminhoneiras, cada qual em sua proporção e fluxo variante, tomam seus espaços nos bares e boates. Segundo o pesquisador Luiz Morando, a primeira casa noturna GLS aberta na região foi provavelmente a Chez Eux, que funcionou entre os anos de 1976 e 1982, na rua Alagoas. De lá pra cá, além dos lugares propriamente GLS, multiplicamse as boates simpatizantes como o Up!bar, a Mary in Hell e o Velvet Club, freqüentadas por modernos. Há ainda o bar Damas e Valetes, voltado para lésbicas, com shows de MPB e a boate Josefine, a maior do ramo em Belo Horizonte. Fora da Savassi, mas dentro do mesmo circuito, também estão a Miss Pig, que fica no bairro São Pedro, e o Andaluz Casa Bar, que divide a rua Congonhas no Santo Antônio com outras casas noturnas. Longe de se concentrar em apenas uma região da cidade, a vida noturna da juventude LGBT se espalha por outros pontos historicamente preferidos por esse público.

Crime, história e escuridão Em setembro de 2008, o pesquisador Luiz Morando lançou o livro Paraíso das Maravilhas – Uma história do crime do parque, que conta o caso verídico de um assassinato ocorrido nos idos da década de 1940, no Parque Municipal. O livro foi feito a

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partir do levantamento de documentos judiciais do caso e também de uma pesquisa realizada em jornais que circulavam na época. A proposta da obra não é apenas a reconstituição e releitura dos arquivos históricos e registros na imprensa sobre o crime, mas a reconstrução de aspectos da sociabilidade homossexual daquele período. Na época, o parque não era cercado, o que facilitava o encontro de homens à noite para troca de carícias, afetos e sexo. Alguns garotos de programa também faziam ponto na região. O pesquisador tem olhos vivos por trás dos óculos, fala tranqüila, que as mãos ajudam a ordenar. Morando é Doutor em Literatura Comparada pela UFMG e presidente do GAPA (Grupo de Apoio e Prevenção à AIDS). Senta-se à mesa de uma sala da entidade para contar um pouco da história LGBT em Belo Horizonte. Nas paredes, campanhas de prevenção de vários anos, alguns da década de 80. É possível notar o enfoque dado em cada período: ora voltado para mulheres, ora para homens gays, alguns para casais heterossexuais. Agora, ele prepara a edição de mais um livro, em que narra a constituição dos espaços gays na cidade. Através da pesquisa em jornais como Estado de Minas, Diário da Tarde, Folha de Minas, Tribuna de Minas que circulavam nas décadas de 1950 a 1970, conta uma face da trajetória da homossexualidade na capital mineira.

Até o começo da década de 70, as notícias que são relacionadas à atividade homossexual aparecem predominantemente nas páginas policiais. Crimes contra a vida, também roubos e assaltos que envolvem pessoas ‘irregulares’. O colunismo social aqui em Minas começa muito incipientemente no início da década de 50 e se fortalece

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em meados dessa década. Há algumas notas muito sofisticadas em termos de explicitação daquilo que se quer falar, falando de sexualidade. Uma sexualidade que é muito periférica ainda. Sabendo por exemplo, que o artista Heitor Coutinho podia ser homossexual, a divulgação de algum evento com sua exposição em tal lugar ajuda a contar, não sobre a sexualidade dele, mas sobre a expressão dessa sexualidade na sociedade... Colunistas utilizavam expressões como “fauna estranha” quando queriam designar público gay sem maiores explicitações. Assim, bares freqüentados por intelectuais, artistas e uma fauna estranha ganhavam espaço nas páginas dos jornais, sem ter o caráter depreciativo do termo irregular, utilizado pelas sessões policiais. O artista mineiro Heitor Coutinho, que viveu entre 1926 e 2004, foi apontado como um dos suspeitos de ter assassinado Luiz Delgado, no Parque Municipal, em 1946, história contada em Paraíso das Maravilhas.

Liberdades à noite A escolha de lugares para ocupação dos gays reflete principalmente o caráter periférico do comportamento homossexual daquela época.

As regiões escolhidas eram pouco movimentadas e sombrias. O parque era um ambiente noturno pouco vigiado, pouco fiscalizado. Um ambiente em que você está protegido pela sombra, em que você pode criar um código, um

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padrão de referências típico. A região perto da rua da Bahia até o teatro Francisco Nunes manteve as características originais. É uma região mais escura. Os indivíduos que foram chamados pra depor [no crime do parque] relatam isso nos autos. O pesquisador salienta, entretanto, que não se pode pensar o comportamento dessas pessoas como algo que se manifesta apenas nos ambientes noturnos, mas que não era aceito nos ambientes diurnos.

Se à luz do dia você tinha que seguir um padrão, à noite era o momento para fugir dessas questões. Era o momento de dar uma desviada, uma desbundada desse padrão. Porém, existiam aqueles que a luz do dia, em plena Afonso Pena, andavam como bem queriam, comportando-se de acordo com sua orientação sexual. Eram apontados, alvos de chacota, perseguidos pela polícia porque eram contra a moral e os bons costumes. A Afonso Pena era um canal muito aberto aos assaltos. Assalto de mão leve, ou pregação de contos, de iludir, ludibriar os inocentes sem precisar ameaçar com facas. O Parque Municipal também era durante o dia, e a noite o alvo principal era o público homossexual. Esses meliantes usavam fardas, se passavam por polícia para abordar e assaltar os homossexuais. Nos jornais esses assaltos não são noticiados ‘o homossexual tal foi assaltado’ mas havia uma maneira da imprensa tratar e distinguir esse tipo de assalto dos outros. A noite daquelas décadas era diferente, não se saía ves-

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tido de qualquer maneira. Mesmo se você saía a noite, saía bem vestido, bem adornado. Os homens iam para o parque e ficavam até 11 horas da noite, horário em que a maior parte da população já estava dormindo. Ficar na rua até essa hora da noite era coisa que só os homens adultos e mulheres ‘irregulares’ faziam. A partir de 1950 começam a aparecer os shows de travestismos, artistas vêm de São Paulo, Rio de Janeiro, para se apresentar em BH. Ronaldo Crespo, famoso naquela década, fazia shows travestido de Carmem Miranda e tinha público, não apenas gay, mas o público culto, a elite da cidade. O travestismo da época não era como o que conhecemos hoje, o máximo que se fazia era deixar o cabelo crescer, pintar a sobrancelha e usar uma maquiagem que não fosse exagerada, mas que deixasse claro o uso de algum produto que não era típico do homem.

Em um texto de 1951 na Tribuna de Minas, José Maria Rabelo faz um levantamento de bares que eram freqüentados por diversos segmentos sociais, no começo da avenida Afonso Pena, um local onde a boemia intelectual, artistas jornalistas, freqüentavam. Ele conta que uma fauna estranha também freqüentava a região. As apresentações de travestis se tornam mais comuns na segunda metade da década de 50. No começo da década de 50 há também histórias que divulgam a imagem estereotipada das mulheres masculinizadas. Há notícias de mulheres que seduzem mulheres casadas. Elas foram estigmatizadas na sociedade por conta de sua atitude mais masculinizada.

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De entendido para entendido Em seu mapeamento dos lugares LGBT de Belo Horizonte, Luiz Morando encontrou registros do que parece ter sido a primeira boate freqüentada exclusivamente pela “tribo dos outros”, a fauna estranha da capital.

A primeira boate de que eu tenho conhecimento é de 64. A Entend’s club ou clube de entendidos funcionou por seis ou sete meses no Nova Suissa, um bairro periférico, mas que já era habitado e não tinha muito contato com bairros mais centrais. A palavra entendido na década de 60 já era usada pra se referir a essas pessoas. Havia um bar que não era especificamente gay, mais do começo da década de 60, chamado Assírios, no primeiro quarteirão da Guarani, perto da Rodoviária. As donas, duas mulheres, eram lésbicas e o bar era freqüentado por um público mix. Na boate Cavalo Branco, na rua Curituba, aconteceram diversos concursos de travestis, começados em 66. Ainda nessa época, não eram travestis com alterações no corpo provenientes de hormônios ou cirurgia, mas colocavam peruca e enchimento nos seios.

A Entend’s foi fechada por uma intervenção policial em dezembro do ano de sua inauguração. Os jornais noticiaram que o fechamento da casa noturna foi promovido por reclamações sobre o som alto, feitas por vizinhos. O pesquisador ressalta, no entanto, que a Entend’s ficava em um quarteirão isolado de residências, sem vizinhos. Foi noticiado que a boate era freqüentada por anormais. Este era mais um termo utilizado nessas décadas

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pela imprensa para se referir a pessoas com desvios do comportamento sexual tido como normal: homossexuais, pedófilos, exibicionistas, etc. Inaugurado em novembro de 1962, o Edifício Archangelo Maletta, na avenida Augusto de Lima, no Centro, é um espaço onde essa fauna costumava utilizar como habitat. O empreendimento foi um marco na história da cidade, pelo porte do edifício e pela galeria, composta por bares e boates, que devido à luz baixa eram chamados de inferninhos. Pelo fato do Maletta ter sido construído por Alair Couto, esposo da Zilda Couto, uma senhora que tinha grande importância na sociedade da época, os lugares que funcionavam na galeria e na sobreloja eram freqüentados pela elite social, que foi abandonando o local a medida que as classes mais baixas começaram a freqüentar os bares e boates. Um plantão policial chegou a ser instituído dentro do Maletta, em função do alto nível de reclamação dos moradores, por causa do barulho e por conta do que foi reportado como ‘exageros’ ocorridos na sobreloja. Também houve a tentativa de colocar roleta para realizar uma seleção de quem entrava, mas logo desistiram, afinal era um espaço público e o controle de quem entrava ou não afetava financeiramente os donos das lojas que funcionavam no interior. Apesar da alta concentração de LGBTs no edifício, Morando relaciona esse fluxo de pessoas com a região em que foi construído.

O Maletta ganhou essa fama, também, pela mobilidade do público que se dirigia as regiões próximas. A questão

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da prostituição sempre esteve muito presente no centro da cidade, na rua Guaicurus, no começo da Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro... Toda aquela região da Augusto de Lima, o quarteirão da Guajajaras entre Espírito Santo e Álvares Cabral, já era um ponto de pegação e prostituição naquela época. O [edifício] “Balança mas não cai” costumava ser um ponto de referência de mulheres e homossexuais. Não é a partir do Maletta que essas regiões começam a existir. A própria Praça da Estação era um local de trânsito de pegação. Havia esses pontos específicos, o que é natural para uma cidade. Em 1963 foi inaugurado o bar Nosso Encontro, na sobreloja do edifício Maletta. Nesse ano, foi reportado que uma macumba teria sido colocada na porta do bar. Um bonequinho encontrado na entrada do local, com jeito de vodu, foi interpretado como ato preconceituoso de repúdio ao público que o freqüentava. Não se sabe ao certo se por conta do feitiço, o bar foi fechado em 1964. Enquanto o período da década de 60 e 70 foi marcado pela ocupação gay do centro com bares, boates e locais de pegação, aos poucos, outros espaços da cidade se tornaram points para a manifestação de sexualidades alternativas. Locais como o Barro Preto e, como já relatado, a Savassi, dividem os lugares mais famosos da cena gay em BH. Embora tenha perdido a hegemonia dos redutos gays, o centro da cidade ainda concentra um número razoável de casas noturnas voltadas a esse público. Desde 2007, a rua Rio de Janeiro abriga o bar Villa Paraty, freqüentado sobretudo por lésbicas. Na rua Aimorés, funciona o New Eros Mix Club, que substi-

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tuiu o Eros Mix Club, que por sua vez veio no lugar da boate Fashion, que tomou o lugar da New Le Canton. As duas últimas, inclusive, já haviam atendido em outros endereços.

Dispersão A diáspora gay do centro da cidade para regiões como Barro Preto, Savassi e imediações teve implicações determinantes da vida homossexual da cidade. Os LGBTs cresceram, se multiplicaram e se distinguiram de acordo com o local que freqüentavam, seus gostos musicais, moda e estilo de vida. A visibilidade provocada pela epidemia de AIDS nos anos 80 contribuiu para a diversificação das tribos gays. Até os anos 2000 com o gradativo aumento das manifestações públicas da homossexualidade, o grupo revela-se portador de estilos de vida diferentes. Quem olha pra sigla LGBT com mais atenção pode observar bem mais que gays, lésbicas, bissexuais e travestis. Pode ver os músculos da barbie, a melancolia permanente do emo, o botton do Sonic Youth no indie, o moderno cansado de tanta modernidade, o cordão de sementes da poc-poc, o Chandon entornado sem culpa pela bicha fina... Identificações que não partem apenas de uma auto-consciência desses grupos, mas também, e talvez principalmente, do olhar alheio. De volta à praça da Savassi, a estátua em bronze de Roberto Drummond faz companhia aos solitários de início de noite, no quarteirão fechado da rua Antônio de Albuquerque na direção em que está localizada a Josefine. Outra estátua, que representa as proporções modestas de Henriqueta Lisboa vigia o movimento

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de modernos no quarteirão em que está localizado o UP!bar. Hugo, Júlia, Pedro, Rodrigo e Fábio são jovens e dividem espaços diferentes na praça. Eles gostam de música alternativa, de música sertaneja, de pagode, de eletrônico ou de rock e declaram que a principal motivação na hora de escolher o percurso na noite é a música. Freqüentam as casas que tocam o som que eles preferem. Na primeira parte desse livro serão apresentadas definições das tribos que foram identificadas pelos entrevistados e compõem o cenário de boates LGBT. Durante a segunda parte da obra acompanharemos as histórias de Júlia e Pedro e a vivência de suas sexualidades dentro de diferentes tribos. Na terceira parte, nossos personagens transformam-se em referências para as tribos, ajudando a perpetuar suas próprias experiências.

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I Tribos

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Bomba, espumante e pó Estereótipos da noite A boneca Barbie foi criada em 1959, nos Estados Unidos, por Jack Ryan a pedido de Ruth Handler, esposa do dono da fábrica de brinquedos Mattel. Loura, de corpo esguio, mas bem torneado, a boneca é vendida em todo o mundo, seja em sua versão tradicional ou em versões temáticas: Fundo do Mar, Barbie Estrela, Barbie Borboleta... Já protagonizou dezenas de filmes, entre eles “A Magia do Arco-Íris”, lançado em 2007. Quase toda menina menor de 10 anos sonha ou já sonhou em ter um exemplar. Mas a Barbie não é sozinha no mundo: desde 1961 conta com a companhia de Ken, seu namorado, rapaz levemente bronzeado, corpo bem esculpido e cabelo liso ornado por um sutil topete. Por ironia do destino, a descrição de Ken caberia bem a qualquer barbie, personagem encontrado nas baladas gays aos montes. Malhados, bronzeados, cordão de prata no pescoço, cueca Calvin Klein com elástico à mostra, as barbies têm um jeito de dançar que evidencia cada músculo trabalhado na academia e uma

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expressão facial que ignora qualquer crise econômica ou pessoas à volta. Quando optam por desprezar o uso da camisa, ficam bem semelhantes ao Ken da linha Barbie vai à Praia. O sociólogo Carlos Figari, em seu livro, @s Outr@s Cariocas –Interpelações, experiências e identidades homoeróticas no Rio de Janeiro – Séculos XVII ao XX, relata que o grupo não desperta muita simpatia entre outros gays:

Uma das [descrições] mais concisas e pejorativas que ouvi a seu respeito é que ‘barbie tem corpo de Tarzan, cabeça de Chita e voz de Jane’. Entretanto, essa rejeição encobre o fato de que a maioria dos outros as desejam, seja como modelo estético ou erótico.

O sociólogo completa o raciocínio lembrando que homens que ilustram capas de revistas gays, go-go boys e modelos publicitários, ao menos esteticamente, se assemelham às barbies. Nesse momento, cabe um parêntesis: as barbies são chamadas assim, no gênero feminino. Por isso, o mesmo será feito aqui. Preconceitos à parte, a tribo das barbies surge nos Estados Unidos na década de 80 como resposta às imagens de gays debilitados pelo mal da década, a AIDS. Vem daí o excessivo cuidado com o corpo e a aparência, a falta de inibição em se mostrar, somados ao apreço a determinadas marcas e produtos e o gosto por música eletrônica. Embora existam mais de uma definição sobre o que é ser barbie, seja a boneca ou a identidade, como visto acima, é difícil encontrar alguém que declare: “Sou uma barbie”. Segundo Carlos Figari, ainda em seu livro, entre elas não há uma auto-

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consciência coletiva. Na verdade, o grupo se constitui mais por compartilhar gostos e estilos de vida comuns do que usar uma camisa com a palavra “barbie”, a estampa da marca Everlast já é suficiente. Nas noites de Belo Horizonte, pessoas caracterizadas como barbies costumam se concentrar principalmente na Josefine, embora não se sintam desconfortáveis na Miss Pig. Elas também se reúnem em PVT’s, festas privadas em sítios, onde rola muita música eletrônica e podem se exibir à beira da piscina. Para Fábio, assíduo freqüentador da Josefine e observador atento da fauna local, as barbies precisam dividir a noite na casa com outras tribos: poc-pocs, finas e colocadas. Em sua definição, que se assemelha com a de outros entrevistados, o primeiro grupo é caracterizado por pessoas de baixa renda, que vão à Jô na quinta-feira por ser um dia mais acessível e também freqüentam boates do Centro e do Barro Preto. Fábio afirma que, em geral, as pocs têm comportamento mais efeminado e espalhafatoso. O termo “poc-poc” tem duas explicações diferentes no linguajar gay: reprodução do barulho dos tamancos supostamente usados por eles ou uma derivação de ploc-ploc, som resultante do mascar de chicletes sem muita discrição. Dentre as pocs existem as pãocom-ovo, que, reza a lenda, por não terem dinheiro para comer em fast-foods após as noitadas, se contentam com um sanduíche de pão francês e ovo frito no raiar do dia. De volta à classificação de Fábio, em posição oposta às pocs estão as finas, composta de homens ricos e ornados pelas melhores marcas. Embora convivam com as barbies, as finas são menos rigorosas com relação ao corpo, algumas até desenvolvem uma barriguinha. A principal característica desse grupo é o

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consumo de espumantes durantes as noites da Josefine, principalmente aos sábados, quando a entrada costuma ser mais cara. Eles se reúnem em círculos enquanto dançam sem muito entusiasmo e bebericam taças de Chandon. Se as finas demarcam seu território bebendo champanhe sem remorso, as colocadas são identificadas pelo uso de drogas. Embora o assunto seja discutido abertamente entre quem freqüenta boates na noite de BH, não há notícias de batidas policiais nesses lugares, tampouco de ocorrências devido ao uso de drogas. Pelo contrário, colocadas e não-colocadas parecem conviver sem atritos dentro das casas noturnas. As drogas, em geral sintéticas, são usadas para aumentar as sensações da música eletrônica. Para reforçar ainda mais essas sensações, as colocadas ficam posicionadas próximas às caixas de som. O próprio Fábio afirma já ter experimentado entorpecentes em baladas. “Já usei de tudo, tudo mesmo, menos cocaína, acho que não deve ter graça”. Embora tenha desenvolvido uma minuciosa classificação das tribos que povoam a Josefine, Fábio afirma que não há uma divisão tão rígida entre elas. As finas seriam o ponto de convergência. “Às vezes uma fina namora uma colocada e sustenta o seu vício. Pode ser dela namorar uma barbie. Acontece também de namorar uma poc, então acontece uma ascensão social”. Ele próprio não se considera de um ou outro grupo. Sem corpo definido, não poderia se encaixar entre as barbies, embora seja amigo de algumas. Ainda que ande com as finas, não é abastado o suficiente para compartilhar o estilo de vida delas. E mesmo que já tenha usado drogas e até namorado uma colocada, não se sente bem no grupo.

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Os mais de 25 anos de noite de Walkíria La Roche, hostess e diretora da Josefine, a habilitam para opinar sobre essa suposta divisão. “Acho que não dá pra dividir a noite na Josefine, lá cabe de tudo, acho muito evasivo isso”. Sobre as barbies, ela considera que não são apenas elas que têm preconceito contra quem não compartilha do mesmo estilo de vida, o contrário também acontece.

Eu convivo com vários [homens barbies] e acho que são pessoas normais. Gostam de ter um cuidado com o corpo, de malhar, tirar a camisa, mas o que é bonito é pra se mostrar. É a mesma coisa com heteros bombados, eles existem e ninguém recrimina. E o que são as finas? Nós vivemos em um país pobre e poucos gays são milionários, então não dá pra dizer quem é fina ou não. Recentemente eu levei um amigo à Josefine, que é dono de uma fábrica de perfumes, ele estava de calça jeans e camisa branca. Muita gente me perguntou: Walkíria, mas ele é dono de tal marca? Respondi que sim. Se eu não dissesse, muita gente poderia ter preconceito contra ele, chamá-lo de maricona, e é um milionário.

Com relação às colocadas, ela tenta amenizar o consumo de drogas, afirma que isso não acarreta um comportamento agressivo. “Ninguém chega em casa espancando a mãe como acontece por aí”.

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Emos, Indies e Modernos Como saber quem é quem no escuro Hugo tem o cabelo alisado e fixado por uma mistura de escova com produtos capilares. A arquitetura que se equilibra em sua cabeça é de difícil explicação física, porém compartilhada por muitos outros jovens, inclusive seu namorado. Apesar da franja, de seu quase moicano unido ao mullets, apesar das roupas com listras, bottons e do comportamento blasée, ele não se define como emo. Também não se inclui em nenhuma outra tribo e diz conviver com todos os tipos de pessoa. Transferido do interior de Santa Catarina para a capital mineira há poucos meses, Hugo observa que as tribos aqui possuem demarcações mais visíveis do que as que conhecia em sua cidade.

Dá pra identificar quem é quem pelo jeito de se vestir, elas não se misturam. Cada tribo de jovens, por aqui, se veste ao seu modo e, na rua, é possível identificar quem pertence a qual turma.

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Ao chegar à boate, porém, relata que as turmas se misturam e, no escuro, já não é tão fácil saber quem é quem, ou o quê. É compreensível a falta de definição sobre a qual tribo pertence. Apesar da aparência que desavisados definiriam como emo, Hugo gosta de música eletrônica, freqüenta a Josefine e não gosta da Mary in Hell, inferninho em que podemos encontrar muitos que são esteticamente semelhantes a ele. Afinal, quem é quem? Na necessidade de uma definição, pode-se contar apenas com o histórico e os estereótipos ligados a cada tribo. Pela extravagância no visual e na atitude, os emos realçamse no meio de tantos outros. São jovens que escutam hardcore com letras melódicas e têm cortes de cabelos com uma franja bem delineada cobrindo um dos olhos, na busca de um ar misterioso e dramático. As vestimentas lembram a agressividade punk ou a amargura gótica. Porém, as roupas negras com detalhes de espetos metálicos e couro ganham detalhes amáveis, como pequenos bichos de pelúcia, dados, cerejas e bottons ilustrados e coloridos. O termo “emo” foi criado nos Estados Unidos a partir de um estilo musical derivado do punk dos anos 70, o emocore. A sonoridade hardcore aliada a letras emotivas incitam um comportamento sensível e sofredor. Durante os anos 90, o estilo emo foi se refinando, absorvendo novidades tecnológicas do vestuário e tendências da moda jovem. No começo dos anos 2000 esse estilo de juventude chegou ao Brasil com o sucesso de bandas como Fresno e NX Zero. Em Belo Horizonte, os emos se reúnem na praça da Savassi e disputam lugar com punks e góticos. Devido à pouca idade, na faixa dos 12 aos 17 anos, desaparecem a medida que a noite avança.

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Avistados de longe, os indies se parecem com emos. O mesmo tênis All Star, o mesmo padrão quadriculado em detalhes da camisa e até o mesmo cinto com rebites metálicos. Porém, há divergências cruciais entre os dois grupos: em primeiro lugar, o estilo musical e em um segundo lugar apertado, o corte de cabelo, menos radical e mais funcional. O termo “indie” também tem suas origens nos anos 80 e denota bandas sem contrato com grandes gravadoras, que fazem um tipo de música divergente do estilo comercial propagado pela indústria musical. Sem grande distribuição, tornavam o hábito de escutá-las e conhecer seus lançamentos, um desafio para aqueles que gostavam do estilo. Sonic Youth, The Stone Roses e Jesus and Mary Chain são algumas das bandas de rock que influenciaram a música indie nos anos 90 e 2000. Indies, portanto, gostam de indie music, ou quase isso. O gênero, que já fez referência às produções independentes, hoje abrange todas as bandas que seguem um estilo indie, contratadas ou não. Por paradoxal que pareça, há um visual respeitado e uma sonoridade apreciada – aquela que não é compartilhada por muitos e não toca no rádio, de preferência. Influenciados por essa recusa ao mainstream, a sonoridade indie vai muitas vezes reviver o que já fez sucesso nas paradas pop das décadas de 60 e 70, e, exaustivamente, da década de 80. Bandas como The Pippettes, Alphabeat, Interpol, Belle and Sebastian reciclam a sonoridade vintage. O estilo de vestuário acaba refletindo esse revival, abusando de peças que rememoram outras décadas: All stars, vestidos, camisas abotoadas e óculos de aro grosso. O guarda-roupa de um indie também é composto por camisetas com delicadas estampas de bandas desconhecidas do grande público,

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manifestando a originalidade do gosto musical de quem veste. Os modernos, por sua vez, são facilmente diferenciados das outras duas tribos. Em geral, eles brilham, literalmente, e estão um passo à frente. Modernos gostam de música eletrônica e podem ter sua origem apontada no final dos anos 80 e início dos anos 90, com o desenvolvimento do techno. Desde então, os modernos dos anos 2000 gostaram de electroclash, passaram para o electrotrash, e depois de uma década de atitude blasée e distanciada de pobres mortais na pista, em 2006 juntam-se à neo-manifestação paz e amor. Nessa época, aderem ao new-rave, releitura do estilo clubber dos anos 1990, também reconhecido como movimento das festas para amizades instantâneas com música eletrônica dançante. Bandas como Klaxons, Kids on the Block, Justice e Simian Mobile animam as noites de new-rave. O importante é sorrir bastante, usar muita cor e brilho e fazer um milhão de amigos na noite. Levados pelas pré-tendências, os modernos são muitas vezes vanguarda de movimentos da estética pessoal que acabam no mainstream (aquilo que todo mundo começa a usar). Os modernos podem tanto abusar de cores e penteados quanto entrar em uma onda minimalista e monocromática, dependendo da estação. Enquanto isso, emos se vestem como seus ídolos sofredores e indies mantém uma tranqüilidade estilística monótona, trocando listras por bolinhas de vez em quando.Ao contrário de barbies, pocs, finas e colocadas; os emos, indies e modernos não são tribos exclusivamente compostas por homossexuais. A tribo do emocore é erroneamente generalizada como bissexual, enquanto o grupo “apenas” defende demonstrações de afeto independente do sexo ou orientação sexual. Os emos ado-

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II Pedro, JĂşlia e a cidade

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Primeiro Beijo Parte I Início de noite de domingo no Barro Preto, região centrosul da capital mineira. Poucas pessoas se aventuraram a sair de suas casas para dançar os hits do axé que pipocavam naquela estação. Forrado com telhas de amianto, o verão na casa número 33 da avenida Barbacena era especialmente quente. Músicas de É o Tchan, Terra Samba, Tchaka Bum e Banda Eva coreografavam os movimentos e aumentavam ainda mais a temperatura da pista de dança. Na boate, o piscar insistente das luzes estroboscópicas de tempos em tempos iluminava corpos suados e dispersos que, ao flash, assemelhavam-se a manequins vivos em vitrines. O pequeno público era composto majoritariamente por homens, poucas presenças femininas misturavam-se a grupos maiores de amigos ou perambulavam solitárias a procura de companhia. Na calçada, Júlia se preparava para sua primeira incursão ao Gis Club. Dava para sentir o calor que emanava das paredes escuras já do lado de fora. A discotecagem não lhe agradava: axé, pagode e sertanejo não fazem parte de seu estilo musical

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preferido. Até então, freqüentava raves e outras casas noturnas com som eletrônico. Aquela era sua primeira experiência em uma boate gay. Seus amigos do cursinho incentivavam a curiosidade que ela nutria por outras meninas já havia um bom tempo. Porém, eram todos homens e a levaram no domingo, dia da semana em que a casa não recebia tantas mulheres, como era típico nas sextas-feiras. Júlia aprenderia a lição em apenas alguns minutos. Ao chegar à pista de dança, analisou a meia dúzia de opções que teria para concretizar seu plano. Nenhuma das garotas a atraía tanto, ainda não tinha desenvolvido critérios para o seu gosto. Estava lá para experimentar e, mesmo sem se sentir especialmente atraída por nenhuma, não sairia de lá enquanto não desse pelo menos um beijo. Renata estava encostada em uma parede próxima ao bar e reconheceu um amigo na rodinha de Júlia. Aproximou-se para cumprimentá-lo e também para conhecer a menina que destoava da paisagem de homens. Renata era linda, ou melhor, masculinda. Júlia refletiu que essa seria a melhor palavra para descrever aquela figura toda tatuada com trejeitos de uma motoqueira que se aproximou a passos largos do grupo.

Chão de Gis Havia pouco mais de seis meses que o Gis funcionava naquele endereço. Antes, atendia na avenida do Contorno, no bairro Floresta. Em junho de 2001 migrou para o Barro Preto, com uma estrutura provisória que foi reformada posteriormente. Desde a reforma conta com um amplo espaço, dividido em dois andares. O primeiro andar tem pista de dança, bar e um pequeno lounge

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com sofás, usado por quem quer conhecer outras pessoas mais a fundo. Na pista, música eletrônica, tribal house -um dos estilos que podem ser designados como bate-cabelo- acompanhada pela dança sinuosa de go-go boys. Em algum momento da noite, as Drag Queens aparecem, dançam e fazem piadas com o público. No segundo andar, um DJ mistura pop, pagode, axé e sertanejo de diversas épocas para o agrado dos dançantes, que não se incomodam em mudar o passinho de acordo com o estilo musical. Neste andar também há estrutura para shows ao vivo. Giselle Andrade, dona da casa, é a estrela principal de muitas sextas-feiras, com seu banquinho, violão e banda. O público possui preferência por algumas canções que não fazem mais sucesso nas rádios, mas aos primeiros acordes, acontece algo como uma catarse coletiva. Nada de fuga do estereótipo. O repertório é mesmo das divas da MPB, lésbicas assumidas ou não. Os graves melancólicos de Nana Caymmi, a rouquidão de Cássia Eller, a força de Zélia Duncan e a voz fálica de Ana Carolina predominam nos palcos de bares e boates do tipo. Isso sem contar outras como Maria Bethânia, Gal Costa, Zizi Possi, Joanna, Marisa Monte e Renata Arruda. Algumas canções dessas intérpretes são alçadas ao patamar de hinos e emocionam repetidamente as platéias gays de barzinhos. A canção “Ouro pra mim”, que diz: “Mudou tudo no amor, outra cara, outra forma de ver e sentir, o que antes eu não entendia agora é ouro pra mim”, do compositor Peninha, é exemplo de hino não oficial. Sucesso na voz de Renata Arruda em 1999, na trilha da novela Andando nas Nuvens, é cantada do início ao fim pelos freqüentadores da Gis. “Sinais de fogo”, “Porque você não olha cara a cara, fica nesse passa não passa,

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o que te falta é coragem” composta por Ana Carolina e Antônio Villeroy, lançada em 2004 por Preta Gil, também não foi esquecida. Em comum, essas músicas têm temática de amor e trechos que podem ser interpretados como mensagens implícitas sobre desafios da sexualidade marginalizada, por isso ganham a simpatia de gays e lésbicas. Porém, Júlia não gostava desse tipo de música e se esforçava bastante para movimentar-se ao ritmo do que tocava naquela noite do Gis Club. Divertia-se com as possibilidades do flerte com a conhecida de seu amigo, Renata chegou bem perto para conhecê-la melhor e as duas trocaram algumas palavras e insinuações. Não que houvesse necessidade de algum esforço na paquera, afinal, Júlia tinha prometido para si própria que não sairia de lá sem experimentar os lábios de uma mulher. A menina tatuada passou então a mão na sua cintura e lhe deu um beijo que durou pelo resto da noite.

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Primeiro Beijo Parte II Em um sábado de 2000, no mesmo endereço em que hoje funciona a Josefine, os olhos de Pedro radiografavam a escuridão entrecortada de luzes da boate que à época chamava-se Excess. A antiga casa noturna possuía um enorme hall de entrada que terminava em uma pista de dança, com acesso ao segundo andar, de onde se podia observar toda a movimentação da pista. Uma figura esguia de estatura mediana no andar superior chamou a atenção de Pedro, que ainda não tinha manifestado seu interesse por outro homem nas vezes em que foi à boate. Pedro estava no meio do primeiro andar, cercado de animados dançarinos que expandiam seus movimentos e transformavam toda a pista em uma massa só. Tentou uma troca de olhares, mas não funcionou, o menino no andar de cima observava a multidão e Pedro não se destacava o bastante para ser notado. Então, decidiu que seria objetivo e acenou com insistência para o rapaz até que foi reconhecido. Gesticulou um pedido para que conver-

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sassem e esperou até que o rosto no segundo andar se contraisse em um sorriso, o pedido estava aceito. A Excess foi substituída pela Josefine em 2001. E a Jô, como foi apelidada, se tornou a referência número um em termos de boates gays na cidade. Decoração futurista, música eletrônica no último volume, go-go boys de sunga, apresentações de transformistas. Tudo isso garante ao lugar uma agitação que atrai mais de mil pessoas por noite, divididas entre as duas pistas de dança, os lounges e o dark room. O menino esguio de estatura mediana que observava Pedro do segundo andar se chamava Arnaldo, era estudante de direito e um ano mais velho que ele, na época com 19. Os dois se encontraram, se olharam, trocaram uma meia dúzia de palavras. Trocaram um beijo e mais outro e passaram a noite juntos. Era a primeira vez que Pedro beijava outro homem.

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Júlia e Leo

Em 2002, Júlia percorria o circuito LGBT na busca de um lugar que achasse agradável. Foi em uma sexta-feira que parou numa outra boate da avenida Barbacena, o Estação 2000. Na região do Barro Preto, onde fica a boate, a moda comercializada durante o dia, à noite cede espaço para o trânsito das tribos LGBT. Há também a presença de garotos de programa, que fazem ponto principalmente na rua Guajajaras, onde se concentram várias saunas. Júlia, uma morena-oliva de cabelos lisos repicados e vários piercings, não estava em consonância com a maior parte do público que freqüenta aquela boate, homens e mulheres mais maduros. A decoração do Estação evoca outros tempos que não este século. O salão principal abriga um bar, um ambiente com mesas e cadeiras e a pista de dança que possui palco. A composição dos espaços lembra um cabaré da década de 60, daqueles vistos em minisséries e filmes nacionais, em tons avermelhados. Ao fundo

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do palco, a imagem em grande escala do logotipo da boate, plano frontal de uma locomotiva, dá personalidade ao ambiente. Durante a semana, a boate recebe travestis e drag queens para apresentações de dublagem. Aos sábados, dois cantores se revezam no palco do Estação. A performance dos dois reforça a sensação de não estar no presente. Acompanhados da batida de um karaokê, Ângela Evans e Wellington Faria cantam sambas tradicionais, músicas sertanejas, clássicos da MPB e, surpreendentemente, os últimos sucessos de Beyoncé ou Rihanna em versões alternativas e até remixadas. No início da noite, o clima é de reunião de amigos que se conhecem por mais de uma década. Os flertes são bastante sutis. Homens acima dos 30 anos estão debruçados sobre o balcão e bebericam enquanto conversam. As mesas nos cantos da pista de dança abrigam os mais observadores e alguns casais. Pouco antes da meia noite a boate começa a esquentar e ganhar traços de balada gay. O público se multiplica, a música anima a pista e tem início a jogação – de braços, pernas, cinturas e cabelos, ainda que algumas vezes escassos. O Estação 2000, apesar do início de noite tranqüilo, tem forte apelo para quem procura pegação. A entrada costuma ser barata em relação a outras casas, e o público, mais maduro. A partir das duas da manhã o limite máximo de lotação favorece ainda mais o contato físico. É raro encontrar carões pela pista, e as interações são mais freqüentes. Um grupo de amigos ensaia os primeiros movimentos em uma roda no canto da pista de dança. Todos têm trinta e tantos anos e dois deles trocam olhares comprometedores durante as primeiras músicas mais animadas. Por alguns instantes, próximos

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o bastante para interações mais carinhosas, são constantemente impedidos de se aproximarem mais um pouco por um terceiro amigo da roda. Ele, inconvenientemente bêbado, não percebe o que está para acontecer. São várias coreografias frustradas, até que um quarto amigo, mais atento, leva o bêbado para longe e finalmente não há mais empecilhos. As mulheres são minoria no local e ficam concentradas em alguns pontos estratégicos, em rodinhas. No dia em que Júlia estava no Estação, tocava forró e, novamente, ela tentava se divertir com seus amigos relevando seus gostos musicais. Uma mulher desconhecida a abraçou por trás, levantou a novata despreparada a alguns centímetros de altura e rosnou ao pé de seu ouvido: “Ô gostosa!”. Ao voltar para o nível do solo, Júlia decidiu ir embora, traumatizada. Depois de algum tempo, ela parou de ir a locais buscando apenas pegação, como relata:

No começo ignorava tudo, odiava as músicas e o ambiente, só pra pegar mulher. Mas acabei descobrindo que pra paquerar eu não preciso passar por tanto desgosto. O pessoal que eu conhecia não tinha nada a ver comigo, tudo acabava em pegação... E eu comecei a querer mais. Agora, se eu estiver muito “na seca”, encaro um programa pra flertar e nada mais que isso. Daí pode ser onde o “mercado” estiver melhor...

Júlia aponta os bares como lugares em que pode sair pra flertar livremente. Em estabelecimentos como o Estúdio da Carne, no Santa Efigênia, ela não precisa ouvir as músicas que não gosta para conhecer pessoas. O som ambiente não tem a impo-

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sição das batidas em boates e também é possível se divertir com um grupo de amigos.

Banzay Na esquina da avenida Augusto de Lima com a rua Padre Belchior, no centro, é possível conferir a dinâmica dos bares gays nas dezenas de mesas espalhadas pela calçada. Ao ouvir falar do novo point, Júlia pergunta, “As pessoas são felizes no Banzay?” Sim, elas aparentam ser bastante felizes. Todos os dias, por volta das seis da noite, grupos se concentram no bar Banzay para beber e conversar. O local serve de esquenta para baladas nos finais de semana e também para afters, já que funciona 24 horas. Um festival de tipos povoa as mesas e cadeiras espalhadas nas calçadas: homens masculinos, efeminados, meio-termo, travestis, mocinhas femininas e mulheres masculinas. Todos com interesse em pessoas do mesmo sexo. O ruído do burburinho é intenso e um ouvido mais atento pode pescar discussões entre casais, planos para a noite ou comentários sobre alguém da mesa ao lado. A fauna estranha faz sua festa particular na calçada. Uma travesti vestida com capa de super-heroína passa com sua peruca volumosa e colorida e aproveita para distribuir sorrisos e santinhos de um candidato a vereador. A predominância de gays, lésbicas, bissexuais e Ts de todos os tipos nem sempre foi característica do bar. Ao contrário de estabelecimentos como o Estúdio da Carne, que foram inaugurados para servir ao público GLS, o Banzay não tinha essa identi-

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dade. A freqüência por lá costumava ser mista ou heterossexual. Porém, no fim do ano de 2007, o local foi tomado aos poucos pelo público gay até ele se estabelecer e dar nova cara às madrugadas agitadas do bar. Hoje, é difícil encontrar freqüentadores do meio LGBT que nunca tenham ido ou ao menos escutado falar do novo point. Um dos folhetos que poluem a calçada do Banzay parece revelar a explicação para esse fenômeno de ocupação.

Leo e Bebel Duas fotos ilustram as faces do flyer para a divulgação de uma festa na Amici Disco Club. De um lado, um rapaz na casa dos trinta anos, de óculos escuros, sentado em um lugar que aparenta ser um rio, com a cabeça inclinada, não usa roupas e tem alguns pêlos pubianos à mostra. Do outro, uma moça aparece de perfil com sorriso largo, cabelos lisos acaju, olhar desafiador e lingerie preta. As duas fotos são da mesma pessoa, vestida em personas diferentes. A primeira é Léo Batista, jovem empresário musculoso, de cabelos bem aparados, que convida para sua festa de aniversário dia 11 de outubro de 2008. A segunda revela Bebel Sampaio, moça de grande porte, com alguns traços masculinos, que comemora seu nascimento um dia antes do seu criador e alter ego. O Amici Disco Club foi inaugurado em outubro de 2007, na rua Padre Belchior, em frente ao Banzay, e é um dos maiores responsáveis pelo grande fluxo de homossexuais no bar. A boate é obra do empresário Leonardo Batista que queria levar agitação

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de volta para o centro. É o empresário quem fala pelo Amici, a Bebel trabalha como hostess e atração da casa. Antes de montar a boate, Léo viveu cinco anos na Itália, onde trabalhou em um bar freqüentado pelo público gay. De lá trouxe experiência, dinheiro e o nome do lugar, que significa amigos no idioma italiano. Após rodar a cidade em busca de um endereço que pudesse abrigar a nova casa, ele optou pela rua Padre Belchior, que já foi parte da região boêmia de Belo Horizonte. Ao fechar o contrato de aluguel do prédio, em agosto de 2007, Léo estampou uma faixa na porta com a sigla GLS para sinalizar que ali seria um novo ponto de encontro. Em três meses, a casa ficou pronta. É difícil explicar a decoração do lugar. Na falta de adjetivos, fica a definição “eclética”. Na porta, uma estrela inflável de várias pontas cintila solitária. Na parte interna, balões, faixas de papel crepom, um globo de vidro, lampadinhas coloridas, desenhos de homem e mulher pelados e bolinhas pintadas na parede ornamentam a noite do clube.Com dois andares, o Amici se divide em ambientes diversos. O primeiro andar da boate é composto por dois espaços principais: bar e pista de dança. Entre eles, uma passagem aberta e outra secreta, em que funciona um dark room. O segundo andar é como um centro de diversões, tem lan house, totó, sinuca, cabines com camas e até mesmo um self-service, desativado por ora. Léo conta que no início as coisas não foram fáceis. “O público que eu optei foi o povão mesmo, mas é complicado de lidar, público GLS é muito exigente e a casa não é das melhores de Belo Horizonte”. Por isso, ele diz, há muita rotatividade entre as pessoas que a freqüentam, embora já exista um público fiel que comparece toda semana. A casa funciona de sexta a domingo,

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mas no início abria às quintas também. O Sábado do Babado é a festa que mais atrai pessoas, dia em que há shows de transformistas e strip-tease feminino e masculino. Aos domingos, a boate também recebe muita gente, que vai dançar o pancadão do funk. Porém, a maior estrela da Amici é a imagem estampada no verso do flyer jogado na calçada do Banzay, Bebel Sampaio. A divertida Bebel começou como uma brincadeira de Léo Batista. Todos os anos, ele viajava da Itália ao Brasil para participar da Parada do Orgulho GLBT de Belo Horizonte e sempre se travestia de alguma personagem famosa das novelas brasileiras. Assim ele se tornou a Creusa, da novela América, a Nazaré Tedesco, de Senhora do Destino e por fim, a Bebel Sampaio, prostituta interpretada por Camila Pitanga em Paraíso Tropical. “Eu fiz uma coisa todinha igualzinha, daí pegou, fui pra São Paulo, Rio de Janeiro. Aproveitei para fazer a Bebel e chamar as pessoas pra Amici”. É ela quem faz o papel de hostess da casa, recebe os clientes e faz alguma gracinha. Também costuma dar uma volta pelo Banzay para cumprimentar as pessoas e convidálas para seguir à Amici mais tarde. A personagem sempre prepara um show diferente, que apresenta no meio da noite. Ora está envolta em um imenso casaco, que larga no momento oportuno para dançar com mais desenvoltura. Ou então aparece sobre uma escada para jogar os cabelos de um lado para outro e de onde também aciona um mecanismo que faz cair balões do teto, levando a galera à loucura. E ainda tem a versão menos agressiva, digamos, quando apenas dubla canções românticas, que pode ser “Como uma deusa”, da cantora Rosana. As performances de Bebel só são ameaçadas quando o joelho de seu alter ego masculino inflama. Léo joga futebol com

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freqüência e vez ou outra tem problemas na articulação. Ele planeja mudar de endereço, o local onde a boate funciona atualmente dará lugar a um bar, chamado Retratos, para receber amigos em fim de tarde. Leo Batista quer reabrir o Amici em uma casa no bairro Lourdes, região nobre, ou na rua Guaicurus, no centro, área onde funciona uma das zonas de prostituição mais famosas da cidade. Tudo depende do preço do aluguel e da qualidade do imóvel a ser escolhido.

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Pedro e Walkíria

Pedro soube da existência de uma boate chamada Excess por meio de anúncio em uma revista. Depois de muito planejar, finalmente tomou coragem para ir ao local. Morava em Ibirité, cidade da Grande BH e, aos 19 anos, era a primeira noite que passaria sozinho em Belo Horizonte. O contato inicial com a casa lhe causou estranheza. Chegou às dez da noite, horário em que as boates costumam estar fechadas. Como não podia entrar, caminhou de volta para a praça, onde minutos antes seu ônibus o deixara. As vitrines das lojas expostas à noite refletiam sua imagem: um sujeito alto, um metro e oitenta e oito, timidez proporcional a seu porte, magro e de olhar furtivo, características que mantém até hoje. Sentado nos bancos da praça da Savassi, observou pessoas que passavam pelo cruzamento das avenidas Getúlio Vargas com Cristóvão Colombo. Pensou no que estava fazendo, no que pretendia fazer e tomou mais alguns fôlegos de entusiasmo. Não

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havia riscos de voltar para casa sem conhecer a boate, naquele momento a coragem que faltava era coragem de desistir. Passado um tempo que considerou razoável, voltou para a Excess, ainda assim foi o primeiro a chegar. O movimento escasso reforçava uma tese que girava em seu pensamento: com certeza ele era o único gay do planeta. Se não o único, fazia parte de uma minoria tão diminuta que seria insuficiente para encher uma boate. Pensou tudo isso enquanto viajava por entre os hiatos criados pelas luzes em meio à escuridão do espaço vazio. A idéia quase o convenceu de que deveria mesmo voltar para casa e dar por encerrada sua aventura, mas os minutos a mais em que resistiu o fizeram perceber que estava errado. Durante instantes de solidão na pista, Pedro sofreu o constrangimento de quem experimenta as primeiras incursões à vida noturna. Boates são como um conto de Cinderela às avessas. Esperam por badaladas do relógio, para só então a abóbora ser transformada em um globo de espelhos. A Excess não era diferente, após a meia noite, como se tocada por uma varinha de condão, ficou cheia em minutos. Pedro pôde então observar com atenção o comportamento dos rapazes que chegavam em bando à pista. Cumprimentos carinhosos, alguns beijos trocados. A normalidade daquilo tudo era muito estranha para ele, fazia questão de guardar consigo cada detalhe. Luzes, música eletrônica no último volume, go-go boys seminus dançando em cima de pedestais, homens malhados, travestis e aquele colega do curso de inglês. Avistou o Gustavo, com quem estudava a língua de Shakespeare, Virginia Woolf e Britney Spears. A conversa entre os dois fora inevitável depois da troca de olhares. “Estou aqui por engano, vim por conta da

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música”, um disse pro outro, apesar de ninguém ter perguntado. Mesmo sem ter gostado muito do lugar, resolveu voltar na semana seguinte. Gustavo estava lá novamente, mas eles optaram por não dizer que o engano tinha se repetido. Fizeram a surpreendente revelação de serem gays, um para o outro. A coincidência fez com que se tornassem amigos e passassem a se encontrar nos sábados na boate: ir à Savassi aos fins de semana se tornava tradição na vida de Pedro. Ele acompanhou as mudanças da casa quando foi rebatizada como Josefine em 2001.

Josefine Na Jô, toda quinta-feira é dia de Quinta Mix. A entrada tem preços populares e o público é mais diversificado que nas festas de sábado. A pista 1 fica lotada de gente dançando versões remixadas de música pop. É lá que as pessoas interagem, dançam com mais efusividade e se pegam. Um detalhe do lugar é que os rapazes mais fortinhos tiram a camisa para dançar e exibir o resultado de anos dedicados à academia. Isso não tem a ver com temperatura. Em tempos mais frios, o fenômeno dos descamisados se repete com mesma intensidade que no auge do verão: são as já mencionadas barbies. Por volta de duas da manhã, sobe no palco Walkíria La Roche, que faz as honras da casa na Josefine. Ela conversa com a platéia e apresenta as atrações da noite. Às quintas, go-go boys remexem o corpo na tentativa de parecerem sensuais e em seguida tiram a roupa. Após o strip-tease, eles retornam ao palco com as partes pudicas animadas e à mostra. Travestis também fazem

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dublagens de músicas em inglês, enquanto chacoalham a peruca, ou como se diz, batem cabelo. Aos sábados a coisa é diferente. O preço da entrada, quase R$ 50, restringe o acesso de alguns públicos à Josefine. Nesse dia, as festas costumam ser temáticas e é comum a presença de DJs de casas famosas do Rio e São Paulo, como a The Week e até mesmo do exterior. O consumo de espumantes é bem maior que nas quintas-feiras e os go-go boys dançam em cima de pedestais, não há strip-tease. La Roche aparece apenas para dar algum recado e fazer brincadeiras com o público.

A dama da noite Na primeira vez em que Pedro foi à boate Excess, provavelmente deve ter visto Walkíria, seus cabelos louros, rosto maquiado, salto alto, sorriso largo, bom humor, vestida com alguma roupa que permitisse ver suas formas femininas. Há pelo menos 25 anos, ela é referência na animação das noitadas gays de Belo Horizonte, durante o dia atua como defensora dos direitos de LGBTs. Madame La Roche tem história parecida com a maioria das pessoas do segmento T, que engloba travestis, transgêneros e transexuais, sendo este último o que a representa. Embora sua certidão de nascimento apontasse sexo masculino, além de sentirse como mulher, tinha desejo de se vestir com roupas femininas, o que fazia com alguma freqüência. Filha de magistrados, na adolescência Walkíria se travestia para animar festas na periferia de Belo Horizonte, onde adquiriu alguma fama. Isso não agradava

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aos pais, que a expulsaram de casa quando tinha 16 anos. Saiu levando apenas as peças de roupa que davam vida a Walkíria, deixando pra trás a identidade masculina. A sua história poderia ser ainda mais parecida com a de outros transexuais ou travestis, comumente expulsos da família ainda na adolescência. “Mesmo tendo saído de casa e ido morar num gueto, nunca me prostituí, nunca tive estômago para prostituição”. Ainda menor de idade, seguiu sua veia artística e procurou emprego na New Sagitarius, casa de shows voltados para o público masculino, com apresentações de mulheres em trajes mínimos ou ausentes. “Parece meio fantástico, incomum, eu era menor de idade, mas no Brasil quando você se traveste de mulher se torna invisível”, denuncia Walkíria ao lembrar a situação das travestis-mirins, menores que se travestem, se prostituem e não são assistidos por conselhos tutelares ou pela Justiça. Boa parte desses jovens perde os estudos e possibilidades de trabalho no futuro. No período em que apresentava shows na New Sagitarius, Mme. La Roche também fez algumas apresentações em bares gays, até que partiu definitivamente para as boates. Dirigiu a Fashion, boate que funcionou em três endereços diferentes, no bairro Funcionários, no ano de 1994, no Barro Preto, entre 1994 e 1998, quando migrou para o bairro de Lourdes, onde funcionou até 1999, no mesmo prédio em que funciona a New Eros Mix Club. Além da Fashion, Walkíria também fez shows na Le Canton, que ficava na Savassi com atividades entre 1993 e 1996. Teve passagem pela Jet Set Disco Lounge, boate de vida curta na rua da Bahia, onde hoje está a Mixer, aberta em setembro de 2008. Também trabalhou na Excess, que deu lugar à Josefine,

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onde se estabeleceu e está até hoje. Sobre suas apresentações na Jô, Walkíria La Roche afirma que a passagem do tempo não influencia muito seu estilo.

A estrutura dos shows é praticamente a mesma, não é a mesma coisa porque hoje as coisas são muito diferentes, e eu sou muito antenada com tudo, mas sempre teve os homens, algumas travestis e as conversas com o público.

Assim, a fórmula das suas apresentações é composta de brincadeiras com a platéia da boate, strip-tease masculino e algum número feito por travestis ou transfromistas. Por sinal, Walkíria tem especial carinho por esses números, pois para ela são uma forma de incentivar o segmento T a ter algum tipo de trabalho fora da prostituição, diversificando as oportunidades. Nas palavras dela, “[emprego] que não seja de artista, cabeleireiro ou maquiador”. Paralela a vida noturna, La Roche manteve uma trajetória de militância pela liberdade de orientação sexual. Há 15 anos fundou a Associação de Travestis, Transexuais e Transgêneros (Asstrav), com atuação na capital mineira. Trabalhou como voluntária por quatro anos no Centro de Referência pelos Direitos Humanos e Cidadania GLBT da Prefeitura de Belo Horizonte. Posteriormente, foi conduzida ao cargo de diretora do Centro de Referência GLBTTT do Estado, tornando-se a primeira transexual funcionária pública no Brasil. Além de atender casos de homofobia, o CRGLBTTT (sim, uma sigla de oito letras) é responsável por formular políticas públicas voltadas para esse segmento da população.

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Inferninhos da cidade Parte I Aos 27 anos, Júlia ainda mora com os pais. Ela faz parte da geração que prolongou a juventude e deixou de legado a pósadolescência, assim como uma geração anterior havia inventado a pré-adolescência. Apesar de caminhar para os 30, vez ou outra vai a boates e bares em que pessoas que acabaram de receber a carta de alforria dos 18 anos arriscam suas primeiras doses de liberdade. E onde também são encontrados aqueles que utilizam a mágica da falsificação para atestar a maioridade prematura. Júlia fala abertamente sobre sua sexualidade para quem estiver na mesa (ou imediações) ouvir, embora ainda não tenha conseguido revelar a orientação para os próprios pais. Eles não sabem, ou, segundo ela, não querem saber. “Já tentei contar, mas foi muito estressante, resolvi deixar pra lá. Achei melhor não confrontá-los”. Atualmente, pretende namorar apenas mulheres e nos últimos quatro anos beijou quatro ou cinco homens. Acredita que essa média é baixa para seus padrões. Em 2007 ficou com

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um rapaz. “Ele ficou de pau duro” conta, e ela, sem saber o que fazer com a reação, abandonou o “ficante” e saiu da boate. Em casa, recebe todos os seus amigos, na maioria gays, fato que não passa despercebido aos olhos de seus pais. Júlia algumas vezes se sente pressionada a simular heterossexualidade. Então, reata um relacionamento de fachada com Igor, seu fiel escudeiro. O casal namorou de verdade em 2002 e o relacionamento durou dois anos. Em 2003, Júlia começou a sair com garotas freqüentemente, apesar de manter o namoro heterossexual. No ano seguinte, terminou com o parceiro, para começar a sair com Marina. Júlia marcou seu primeiro encontro com a namorada no UP!Bar. Chegaram juntas e na pista encontraram Igor. O rompimento dos dois não tinha sido totalmente pacífico e o clima ainda era pesado durante o encontro na boate. Para melhorar a situação, também naquele dia, uma ex-namorada de Marina foi ao UP!.

A boate é mais em cima Um pequeno número de pessoas ensaiava a fila em frente à porta na avenida Getúlio Vargas, bem próximo à praça da Savassi. A entrada, guarnecida por dois seguranças, leva a um lance de escadas que culmina no salão principal do UP!Bar. A boate foi inaugurada em 2002 e é uma das menores da Savassi, com lotação máxima de 200 pessoas. Até 2007, o UP!Bar se dividia em uma pista de dança com bar e em uma sala com mesa de sinuca. Um dos principais atrativos da boate era o mastro em que as pessoas podiam se dependurar ou dançar de maneira sensual.

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Em 2007 o UP!bar fez um grande alarde sobre seu fechamento e chegou a encerrar suas atividades no mesmo ano, mas reabriu no inicio de 2008. Durante o tempo em que esteve fechado, foi realizada uma reforma que acabou com a sinuca. A área foi transformanda em um banheiro com o intuito de reunir o público do UP!, antes dividido nos dois ambientes, somente na pista de dança. O novo banheiro é um grande salão, porém suas cabines individuais são pequenas. Essa parte da reforma foi pensada de maneira a inibir práticas sexuais que aconteciam nas antigas cabines. Voltando à noite anterior à reforma, Júlia, sua namorada, seu ex e a ex de sua namorada encararam-se na pista. Após alguns instantes de tensão, Igor e a ex de Marina foram apresentados. Embalados pelo electro e rock alternativo, os dois acabaram se entendendo e ficando. Júlia e Marina revezaram as atenções mútuas com os exs. Para finalizar a noite, foram todos juntos à casa de Igor.

Fomos os quatro pra casa do meu ex. Para cama do meu ex, aliás! E eu me lembro de ter ficado muito tensa quando vi a ex dela, achei a menina linda! Me senti ameaçada... Foi ótimo, mas depois deu tudo errado.

A partir desse momento, Júlia e Igor começaram a misturar as relações. Igor passou a se envolver com meninas que Júlia também se relacionava. Após o primeiro namoro, Júlia namorou somente mais uma mulher que também era ex de sua primeira namorada.

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Namorei duas vezes: primeiro minha namorada oficial e depois, a ex dela com quem ela tinha terminado pra começar a me namorar e me traiu no meio do namoro. Eu a traí (a ex da oficial, na época namorada) com minha ex (a oficial). Por isso não namorei mais, tenho medo.

Para entender melhor a rede de relacionamentos de Júlia, os autores sugerem que se faça um desenho ligando as personagens.

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Inferninhos da cidade Parte II Pedro continuou a visitar a Josefine por algum tempo, mas sua presença naquelas pistas de dança foi se tornando cada vez mais rara. Após oito anos, ele não tem certeza se realmente se sentia à vontade na boate naquela época. No seu caso, era uma questão de falta de escolha, ele não conhecia nada melhor do que aquilo até então. Na faculdade, foi apresentado a festas alternativas. A calourada do curso de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) é famosa pela liberdade de comportamentos. Homem-homem, mulher-homem, homem-mulher-homem, mulher-mulher-mulher e todas as combinações possíveis, imagináveis e inimagináveis compõem o cenário da festa. Quem não está habituado fica boquiaberto com a diversidade de somas que as pessoas e seus gêneros são capazes de fazer entre si. Segundo semestre de 2004 e Pedro está no segundo período de Belas Artes. O primeiro beijo com outro homem na pista da Excess faz parte de seu passado recente. Agora na faculdade, Pe-

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dro tem alguns colegas também gays, mas nada que se configure como amizade. No dia da calourada, enquanto caminhava entre a pequena multidão que ocupava o pátio da escola, Pedro viu um rapaz que lhe despertou a curiosidade, parecia interessante. O rapaz estava sentado em uma das mesas na cantina da faculdade, vestia uma camisa estampada com foto da Madonna, diva (quase) absoluta entre gays de todas as tribos. Munido dessa evidência, Pedro considerou que poderia se tratar de alguém gay como ele. Sem segundas intenções, apenas procurando um amigo, se aproximou. Puxou conversa com o estranho que, em um primeiro momento pareceu arredio e sem grande disposição em dialogar. José Carlos era um moreno de porte franzino, vindo do interior, que descobriu muitas coisas em comum com Pedro, como a afeição por Madonna e a homossexualidade. Desde o dia em que se conheceram, Pedro e José Carlos não se desgrudaram, chegaram a morar juntos durante algum tempo e o relacionamento sempre foi de amizade, nunca passou disso. Juntos, os dois percorreram lugares mais alternativos, não necessariamente gays, os também conhecidos como “inferninhos da Savassi”. Com a vida social intensa, aos poucos, o círculo de amigos foi se expandindo, agregando novos integrantes, todos identificados como alternativos. Gostam de cinema alternativo, música alternativa e possuem aquela originalidade indie ao se vestir, em que comumente usam-se roupas de brechó para compor um visual, digamos, alternativo. Além disso, é preciso ter um fotolog, em que são postadas fotos do dia-a-dia acompanhadas de alguma reflexão sobre o que cada um anda fazendo. Os mais inspirados

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também criam blogs, nos quais despejam suas ambições poéticas ou, simplesmente, narram um ou outro acontecimento. Dotado de boa parte desses requisitos, Pedro se tornou uma mini-celebridade no meio gay, inflada em grande parte pelos flyers que passou a produzir para as festas dos modernos. A timidez do garoto com 1,88 de altura, já relatada em outra ocasião, permanecia como característica predominante em sua personalidade, ainda que tivesse muitos amigos. Ele não conseguia, por exemplo, conhecer uma pessoa numa noite e beijá-la ali mesmo. Sua primeira vez foi uma das poucas exceções. Por isso, Pedro vivia de paixões platônicas miúdas, demonstradas por meio de olhares, que eram desviados se correspondidos. Uma dessas paixões foi Vítor, moço pouco mais velho, que já estava na pós-graduação. Pedro achava que jamais teria chance com ele e preferia manter seus sentimentos pelo rapaz no mesmo nível de sempre. No entanto, Vítor o adicionou como amigo em seu Orkut e a paixão platônica ganhou comunicação via internet. O artista pessimista não nutria muitas esperanças, por isso, não deu nenhum passo a frente. Passava os dias se aprimorando nos desenhos. Como artista, Pedro tem uma produção que mistura elementos diversos, algo dos anos 80 se soma à reprodução de circuitos elétricos, luzes de néon e corpos traçados sempre em posição de sensualidade. Isso tudo resulta em imagens descoladas, o que condiz com o espírito das pessoas com as quais compartilha gostos e amizade. Certo dia, já em 2006, ele enviou alguns desses trabalhos para os proprietários da Mary in Hell, se candidatando a produzir as peças de divulgação da casa. Os donos da Mary gostaram de seu trabalho e encomendaram a produção de flyers

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para suas festas. O resultado foi melhor do que esperava.

Memórias do subsolo O primeiro flyer feito pelo artista foi para a divulgação da festa “Safadezas”. O nome dado às noites de quinta-feira da Mary in Hell combinava com o estilo erótico das imagens produzidas por Pedro. A “Safadezas” tem suas raízes em 2004, ano em que a festa “One last chance for a slow dance” (uma última chance para dançar devagarzinho) prometia uma noite de “rock, pop, punk, 80´s, electro e safadezas”. Ainda naquele ano, a “One last...” passou a se chamar simplesmente Safadezas, resumindo o espírito da discotecagem sem muitas restrições. Comandada pelos DJs Tooleo e Fael, ganhou lugar cativo nas quintas-feiras do UP!Bar e, a partir de abril de 2006, passou a acontecer em sua nova casa. Inaugurada naquele ano, a Mary in Hell possui o dobro de espaço de sua nave-mãe Up!Bar e alguns atrativos a mais. As paredes são decoradas com pinturas contemporâneas e o clima de inferninho é agravado pela ausência praticamente total de iluminação em seu andar inferior. O grande casarão transformado em boate possui dois andares. O acesso principal é feito através de uma entrada na rua Tomé de Souza, com escada íngreme ascendente culminando em um ambiente que pouco diz sobre aquilo que vamos encontrar lá dentro. Um corredor para o caixa é a primeira impressão do lugar, três lounges e o bar completam o andar superior. Na Mary, o segundo piso é mais embaixo. Assemelhando-

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se ao porão de uma casa com paredes pintadas de preto. Luzes, lasers e globos de espelho parecem não se importar com a sua função primordial, a iluminação. Dificilmente alguma pista de dança consegue ser mais escura que a pista da Mary in Hell. A cabine do DJ é aberta, localizada à frente da pista de dança. Num palco, ao alcance do público, as pick-ups são protegidas apenas por vidros. DJs de electro, pop e alternativos comandam o ritmo na Mary in Hell. O bar do piso inferior está localizado entre becos ainda mais escuros e cadeiras em que as pessoas sentam e conversam, ou se pegam. Na Mary in Hell pode-se encontrar a mais alta concentração de modernos. A programação musical procura revelar vanguardas estilísticas e entra em consonância com o hype do momento. Outros ritmos como funk e lambada também animam a pista, mas em tom de ironia moderna. Assim, há saturação de pessoas muito jovens. Durante os períodos de feriados em colégios e cursinhos é sensível o aumento do público da boate. Pedro foi à Mary in Hell naquela noite para buscar o primeiro flyer de sua produção. Enquanto passava pela pista, reparou que um dos rapazes mais felizes daquela noite vestia uma máscara de lantejoulas, camiseta branca com detalhes furta cor e calça jeans skinny com tênis Vans. Naquela noite, o rapaz comemorava clandestinamente seu aniversário de 17 anos. Ofuscado pelo brilho das lantejoulas, Pedro quase não reparou que Vitor, sua paixão deixada parágrafos atrás, também estava na pista. A intenção inicial de Pedro era apenas recolher sua obra e voltar pra casa, mas aquela presença inusitada o fez desistir. Vítor o cumprimentou e começou a falar sobre a música do local. O assunto rendeu pouco, mas os dois ficaram naquela noite. E

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em outra e mais outra. Vítor ficou bastante empolgado com a relação, afinal os dois tinham gostos parecidos, estudavam e trabalhavam com arte. Pedro, no entanto, desencantou com o antigo muso. “Não quis ficar mais com ele, não estava afim”. Essa foi uma das relações mais longas do artista, que nunca namorou.

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A montanha e o armário

Um homem apóia a cabeça entre as mãos, cotovelos na mesa do bar. No rosto, rugas profundas marcam os abundantes anos de vida. Ainda é cedo, e ele parece estar a espera do seu pedido ou talvez apenas de horas que passem menos afobadas naquele fim de tarde. Todo o bar entra pouco a pouco em sintonia com o homem. Uma sintonia que só a contemporaneidade das companhias pode proporcionar. Aquele grupo que acabou de sentar mais a frente assistiu ou talvez até tenha participado das mesmas experiências que ele. Entre muitas vivências, guardam na memória lembranças que vão da penumbra dos inferninhos do Maletta às filas que davam voltas em quarteirões da boate Lurex, na rua Ouro Preto, final dos anos 90. Eles têm seu lugar de encontro na cidade. Próximo à Raul Soares, na avenida Bias Fortes, a pequena porção da calçada em frente ao bar está ocupada por mesas. Nela, reúnem-se os homens que agora já não freqüentam mais boates como o Amici ou o Estação 2000. No cardápio, o nome

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não coincide com a fama: “Tradição Bias Fortes Bar, mas também atendemos por Hi-fi” esclarece a garçonete. O Hi-fi é um bar tradicional na cidade, tem decoração simples, alguns vasos de comigo-ninguém-pode, atendimento agradável, um cardápio variado de petiscos e refeições. De lá, é possível escutar as músicas clássicas que são tocadas na praça Raul Soares. Como o nome duplo, o Hi-fi também atende a um público diverso. Os heterossexuais que viveram em Belo Horizonte nos últimos 30 anos podem se recordar de afters no estabelecimento, após visitas à zona de prostituição ou a bailes em casas de show próximas. Atualmente, o movimento até o final da tarde no Hi-fi se assemelha aos dos outros bares na região. A partir das oito horas da noite, com o início de um novo turno de garçons, o público ganha outras cores. Durante a noite, o lugar ferve com homens de 60, 70 anos que conversam no pajubá de seu tempo. As animadas palavras se destacam em meio a cabelos brancos e camisas sociais. Os senhores são clientes assíduos do bar, garçons os chamam pelo nome e recebem cumprimentos carinhosos. Antes de receber um pedido pela promoção de quibes e chope, os funcionários são alvos de tapinhas nas costas ou carinhos na cintura. Sorriem e atendem solícitos aos pedidos das mesas. Uma senhora passeia com seu cachorro na calçada do outro lado da rua, ao caminhar por aquele quarteirão da Bias Fortes, parece lembrar do marido que deve estar a essa hora tomando sua cerveja na região. Na direção contrária, um rapaz musculoso passa também com seu cachorro e desperta a atenção de alguns dos senhores nas mesas, que comentam entre si algo que destoa das discussões econômicas de minutos antes.

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Pensar que só há espaço para as conversas de amigos antigos, não condiz com a realidade do Hi-fi. Lá, também é um espaço para encontros amorosos ou, muitas vezes, apenas sexuais. Alguns clientes freqüentam as saunas da região e outros utilizam os serviços de garotos de programa, que também visitam o bar. Para um olhar familiarizado com a identidade do local, é impossível encarar com inocência os rapazes mais jovens que insinuam seus dotes físicos e dispensam atenção às histórias contadas nas mesas. Talvez sejam garotos de programa e esperem alguma proposta, provavelmente são.

Memória Na década de 60, época em que os freqüentadores do Hi-fi ainda eram adolescentes, as casas noturnas voltadas para o público gay foram fechadas à força pela polícia e pela intolerância. Diante dessa situação, a opção para alguns foi tomar o rumo da estrada para lugares menos conservadores. Em 1979, no Rio de Janeiro, a antropóloga Carmen Dora Guimarães defendeu dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional. O título dá a idéia do que se trata: “O homossexual visto por entendidos”. Entendido, vale lembrar, é uma palavra usada no meio pra designar gays. Dessa forma, o estudo de Carmen Dora procurou montar um quadro das relações e valores elaborados pelos indivíduos entrevistados. A pesquisa foi feita na cidade maravilhosa entre quatorze homens identificados como homossexuais. Desses, nada menos que oito saíram de Belo Horizonte em busca de um ambiente mais liberal. Chamados

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por pseudônimos: Miguel, Márcio, David, Luiz Roberto, entre outros, deixaram o armário que se constituíam as montanhas mineiras em busca de mais liberdade. O relato de Marcos à Carmen Dora ajuda a entender um pouco a sensação que a cidade passava, ele conta que costumava ir a uma galeria povoada por vários tipos, talvez seja a do Edifício Maleta ou a Galeria do Ouvidor, mas ele não especifica. “Morando em Belo Horizonte, não me sentia à vontade... porque o bar que a gente freqüentava na época... tinha pavor de sentar lá. Toda vez passava meu primo”. Outro entrevistado por Carmen, Miguel, também afirmou que buscou o Rio pela “não-identificação”, já que “o pequeno mundo de Belo Horizonte era estável”. Ou seja, havia muita patrulha sobre as preferências sexuais de cada pessoa na cidade, o que impossibilitava a diversificação de tipos e tribos.

Somos cafonas Como os entrevistados no estudo de 1979, porém, nascido na década de 80, Rodrigo tece muitas críticas à noite LGBT de BH. Ele freqüenta há cinco anos algumas das baladas identificadas por ele como cor-de-rosa e laranja, ou seja, locais gays e mix. Apesar do pouco tempo de noite, Rodrigo é experiente, já chegou a freqüentar boates de quarta a domingo. Observa com freqüência um comportamento de armário dentro das próprias boates gays: “Aquela pegação de ombro, que eu já fiz quando comecei a sair para esses lugares. Um fica roçando o ombro no outro para demonstrar interesse e vão se pegar num canto escuro”,

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esclarece. Acredita que uma vibração de cidade pequena também contribua para esse comportamento. Ele brinca que parou de freqüentar a boate Andaluz por não agüentar mais encontrar com ex-professores de colégio jogando cabelo. As opções de diversão para ele são escassas na capital. Se precisasse ser rotulado, considera que os outros diriam que ele é da tribo dos modernos, “O povo do minimal, electro, modernete... Daqueles que vão ao cineminha com amigos de tarde, saem pra tomar um chope e vão à boate da moda à noite”. Para tanto, Rodrigo usa meia dúzia de camadas de roupas cujo estilo varia de estação para estação e se diverte com o que chama de montação, um ritual de escolha de vestimentas e acessórios antes de incursões noturnas. Ele consegue diferenciar aqueles que somente saem de noite, daqueles que saem para a noite. Pertence ao segundo grupo: “Aqueles que saem para a noite valorizam toda uma produção, procuram os lugares em que os melhores DJs ou as noites mais divertidas acontecem”. Os outros, que apenas saem de noite, não valorizam esses aspectos com tanta paixão. Ele também afirma ser uma das características de sua tribo “tirar sarro dos tranceiros”; no seu caso, com a autoridade de quem um dia já foi da turma que vai à festas como Flowers, Infected Mushroom e Creamfields, raves sazonais em que o estilo de música eletrônica trance reina. O primeiro beijo de Rodrigo aconteceu em uma festa de música eletrônica e entrou para sua primeira turma a partir de uma pegação de Orkut. Rodrigo foi assediado em seu scrapbook por Roberto, ficaram uma vez e se tornaram amigos. Assim, ele entrou para o círculo de amizades de Roberto, formado por homens gays, alguns que poderiam entrar nos grupos das barbies

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ou finas e também meninas lésbicas, correspondentes femininas dessas tribos: longos cabelos loiros, corpos malhados, shorts, botas e cartucheiras (uma espécie de pochete bem aceita pela sociedade). O grupo se encontrava para ir a festas de trance. Semanas antes de cada evento, acontecia a preparação: compravam os ingressos dos primeiros lotes das raves e conseguiam fornecedores dos doces e balas (ácido e ecstasy, drogas que seriam consumidas no evento). Rodrigo conta que já naquele tempo não gostava do ambiente que freqüentava, mas considerava as pessoas interessantes e, pela opção de ser acolhido em um grupo, era cômodo sair com aquela companhia. Estar em uma tribo o ajudava a conhecer novos contatos e ter os primeiros relacionamentos mais sérios com outros homens. Com essa turma de amigos gays, começou a freqüentar também a Josefine, que classifica como a Meca belorizontina do tribal-house bate-cabelo, e o Andaluz. Nunca foi ao Gis ou Estação 2000. Rodrigo analisa uma tendência nas boates gays de se distanciarem de um estereótipo pré-estabelecido da identidade homossexual e caminharem para a pluralidade de manifestações, “Vejo a Josefine fazer um segundo andar de rock, electro, porque tem uma turma que não agüenta mais escutar tribal”. Ele aponta também um recorte alternativo de tribos na noite gay. Reconhece que a princípio pode-se traçar um mapa em que o que varia é a estética ou o gosto musical, dividindo o pessoal que gosta de rock, do que curte electro ou do que vai a barzinhos e escuta sertanejo. Porém, atenta para outro aspecto da vida noturna: o posicionamento frente à própria sexualidade. A partir desse aspecto, identifica três tipos de tribos: uma dos

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gays fora de todos os armários, outra dos gays que estão fora do armário só que não querem ser rotulados como gays e ainda uma terceira de gays enrustidos que possuem vida dupla. Considera-se membro da primeira tribo, é assumido e não possui restrições para expressar sua sexualidade. Condena o preconceito contra os gays afeminados. Rodrigo conta que ele próprio já foi preconceituoso: quando começava a se assumir, condenava “a bicha que saía rebolando”. Hoje acredita que seja mais uma forma de expressar a sexualidade, e, sendo essa expressão verdadeira, não deve ser recriminada. Identifica o preconceito como premissas excludentes do mundo do carão da Josefine, Andaluz e outras casas: “Ou você é gay ou você é travesti, parece que não se pode circular no meio disso” ou então “Bicha só pode ser bicha se for bicha rica”. Acredita que são preconceitos que reproduzem de certo modo a criação machista e excludente no Brasil. Apesar de ter viajado por vários países do mundo, Rodrigo não encontrou a boate ou bar gay que ache ideal. A experiência que mais se aproximou da noite dos sonhos do rapaz, foi em Buenos Aires, em que conta:

A própria boate em Buenos Aires já é apoteótica, você é obrigado a sair de casa no espírito para curtir a noite, as músicas, a pista, as pessoas. E lá há uma maior liberdade para diálogo, para conhecer as pessoas, e não se resumir à pegação. Apesar de ser uma noite ‘laranja’ lá sinto a liberdade de chegar e perguntar para um menino se ele está afim sem medo da reação, se ele não for gay ele vai me falar, se ele for gay e não estiver afim também.

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Em 2006, o moderno gostava de ir ao UP!bar “quando não estava cheio de sujeira” - identifica como sujeira as drogas e o sexo nos banheiros, que, segundo ele, poluem a noite. Rodrigo lembra das noites “Smash” em que o trio de DJs Killer Shoes apresentavam um set “divertidíssimo” animando a pista. Hoje considera que o tempo do UP!bar já passou e a noite por lá é “batida”. Com relação aos inferninhos da Savassi ressalta tentativas na Mary in Hell de inovar, como as festas dos DJs mascarados e outras iniciativas da casa de diferenciar suas noites. “A Mary in Hell tem uma intenção forte de dar fôlego à noite, mas investe muito em DJs iniciantes, então falta competência.Além de ser inovador, tem que saber tocar”. Quanto a uma identidade das noites LGBT em BH, ele acredita que exista em Belo Horizonte não uma identidade própria, mas uma vontade de ser outra coisa.

Existe em BH uma grande vontade de ser São Paulo, a noite em BH não quer ser Rio, quer ser São Paulo. Agora tem o novo job por lá que é ser fotógrafo de noites. Em São Paulo os fotógrafos de noite são celebridades. Por aqui, visito o flickr [página em que são publicadas fotos] da Bárbara Dutra, a DJ Barbarela, e vejo fotos de noites ‘tradicional família mineira’, com as meninas enfileiradas, vestidas com batinha e cabelo de luzes. A noite de BH é desse jeito, cafona. Parece que temos todo o esquema para festas legais armado, mas o problema é a gente, nós somos cafonas.

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III A festa vazia

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Confissões na pista de dança

Filas gigantescas na entrada, garçons de cara amarrada, atendimento demorado, banheiros sujos, lugares desconfortáveis e... Mais fila na saída. Esses pontos negativos em casas noturnas de Belo Horizonte faziam o publicitário Edvaldo Zerlin ter preguiça de enfrentar a diversão noturna. Na linha do faça você mesmo, resolveu se juntar ao amigo Sérgio Coutinho, que pensava da mesma forma, para criar uma boate que fugisse aos padrões existentes na capital. Sérgio trabalhava com comércio exterior, enquanto Edvaldo, Ed para os íntimos, vendia anúncios para internet. O primeiro passo da dupla foi fazer uma pesquisa de mercado e descobrir as lacunas no atendimento de outras boates para fazer melhor na nova casa. As reclamações não foram nenhuma novidade para os dois: fila, atendimento, sujeira nos banheiros, fatos que a experiência pessoal já deixava bem claros. A pesquisa também mostrou qual público demandava por novos espaços e

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que, conseqüentemente, daria mais retorno. Homens entre 25 e 35 anos, das classes A e B, e no máximo, classe C. O local escolhido foi um casarão na avenida Bernardo Monteiro, número 1.453, no bairro Funcionários. Segundo Ed, a escolha se deu por vários motivos. A casa é uma construção típica da cidade na década de 60, com elementos de art déco, dois andares, sacada, varanda e jardim na entrada. Queriam que o lugar passasse um clima retrô. A região não é tradicional de bares e boates GLS. Mesmo assim, optaram por um recanto afastado, que não tivesse problemas de estacionamento e que as pessoas pudessem ir sem medo de serem descobertas. Caso houvesse algo a descobrir, naturalmente. Estava pronta a receita para um negócio de sucesso. No dia 22 de abril de 2006, em um sábado pós-feriado de Inconfidência, o Confessionário se tornou realidade. O nome fazia alusão à liberdade dada aos clientes de reclamarem de tudo que não gostassem, o objetivo era oferecer tudo nos trinques. A casa fora bem aproveitada, na entrada um sofá dividia espaço com mesinhas, enquanto na parede um televisor de LCD exibia clipes da Madonna ou qualquer diva do gênero. Um corredor separava esse ambiente do bar e da pista de dança, pequena e escura. No segundo andar, havia outro bar com lounge e fumoir, nome pomposo para fumódromo. Havia pelo menos três banheiros na casa, que ficavam permanentemente limpos, ao gosto dos donos. Apesar de todo o planejamento, a receita deu água no início. Ed conta que foram quase dois meses para que a boate se estabelecesse como alternativa na noite gay de Belo Horizonte. Primeiro, porque descobriram que o público de 25 a 35 anos não tem tanto hábito de sair para balada, depois porque até que as

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pessoas se habituem a ir a um lugar, demora tempo. Nesse caso, duraram dois meses. “Foi um período muito difícil, que a gente penou pra se consolidar no mercado, acho que foi falta de experiência, faltou conhecer pessoas”, relata Ed. A expectativa era de que os freqüentadores do Andaluz aos sábados fossem ao Confessionário às sextas, o que não aconteceu. Os sábados da casa da Bernardo Monteiro lotaram de migrantes do Andaluz, enquanto as sextas-feiras permitiam que os poucos visitantes dançassem com bastante liberdade na pista, de vazia que ficava. A solução para a falta de pessoas na sexta-feira veio por acaso. Certa vez ao olhar a programação de outras casas da cidade, Ed se deparou com um flyer da Mary in Hell. As imagens psicodélicas e as figuras humanas provocantes agradaram. Queria algo parecido para estampar a nova fase da casa e procurou saber quem produzia as peças. O nome do artista em questão era Pedro. Ed entrou em contato com ele e encomendou alguns flyers para festas, também contratou novos DJs e passou a divulgar os eventos para os moderninhos da cidade. A partir de então, o Confessionário passou a concorrer, ao menos nas sextas-feiras, com os inferninhos da Savassi.

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Festas Imaginárias

“Vem aí, Don’t touch me – a festa, aguardem”. Quem entrou na página pessoal de Pedro no Orkut, na primeira semana de março de 2007, se deparou com essa frase sublinhando um de seus trabalhos. Imediatamente, ele recebeu vários recados de amigos, que perguntavam sobre a tal festa. Preferiu manter silêncio. O evento era mais uma de suas criações artísticas. A idéia era conceber uma série de festas, baseadas em filmes e outros elementos da cultura pop, com material de divulgação online, mas que jamais aconteceriam. O empresário Edvaldo Zerlin, dono do Confessionário, estava entre as pessoas que questionaram sobre a “Don’t touch me”. Entretanto, ficou decepcionado ao saber que as luzes e as batidas das músicas compunham cenário apenas na imaginação de Pedro. Inconformado, sugeriu ao artista que trouxesse para a realidade o seu projeto de festas imaginárias. Pedro entrou em contato com José Carlos e outros três amigos. Eles ficaram incumbidos de planejar e produzir a ornamentação da boate. Mes-

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mo sem ter muita intimidade com pick-ups, eles também deveriam atuar como DJs. No dia 24 de março de 2007, sexta-feira, o Confessionário abriu as portas para receber a “Don’t touch me”. A casa teve lotação relativa, composta principalmente por amigos do grupo e amigos de amigos. Essa foi a primeira de várias festas que aconteceram quase mensalmente ao longo do ano, realizadas pela recém-criada Don’t touch me staff. “A parte mais legal era pensar a festa, fazer o flyer, chamar os amigos”, conta Pedro. Em seguida veio a “Spank Toys”, um mês adiante a “Stripes”, em que todos que fossem de roupa listrada ganhavam uma bebida. Todas elas seguiam um roteiro parecido: um tema central era escolhido e orientava a decoração da casa, filmes de arte eram exibidos em uma tela de LCD no lounge do Confessionário. No meio da noite, uma performance fazia a pista esquentar ainda mais. A Diva Avassaladora dançava músicas consagradas da cultura gay e fazia contorcionismos. Na vida real, a contorcionista chamava-se Raquel e estudava Educação Física na UFMG. Aos poucos, o grupo se desagregou e criou festas próprias, mas com uma lógica parecida. Uma segunda edição da “Stripes” chegou a acontecer na Miss Pig, boate no bairro São Pedro, mas o grupo não foi adiante. Cada componente passou a organizar festas por conta própria em outros espaços da cidade. Pedro acredita que foi uma fase divertida, mas apenas isso. “Acho que hoje não seria a mesma coisa, já passou a época, terminei a faculdade, estou trabalhando”.

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Festas Reais

Na faculdade, Júlia também achou sua turma. Em 2004, longe das peregrinações pelo Centro, Barro Preto e Lagoinha – em que conta que se aventurou em um semi-puteiro- encontrou a boate Mykonos, na Savassi. Destinada ao público LGBT, a boate tocava músicas para indies e modernos, com muito rock e eletrônicos. A paixão pela música levou Júlia a entrar também no circuito da discotecagem.

Eu me tornei DJ de tanto pedir musica. Um dia, em 2004, um certo DJ - o que eu mais curtia na época - me convidou pra tocar... Pra fazer um set de ‘pitaco’ só meu, com tudo o que eu ficava pedindo. Aceitei o desafio. Fui lá, levei a minha turma e todo mundo gostou. Daí foram surgindo os convites pra tocar em festas... Sempre que algum conhecido meu fazia show eu era convocada pra assumir as pick-ups. Curiosamente, eu conheci esse certo DJ numa boate gay que tocava indies e eletrônicos

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sofisticados. Foi lá também que toquei pela primeira vez. Freqüentei a Mykonos por anos a fio. Adorava o DJ, as músicas... Fazia questão de chegar cedo e só ir embora quando tudo acabava. Ela conta que seu primeiro set foi no Andaluz, novo nome dado à Mykonos. Desde então passou a rodar as casas noturnas da Savassi com um set de rock ou de pop. Suas festas atraem um público indie, muito distinto daquele que estava no Gis em suas primeiras aventuras. Diferente também das pessoas que freqüentavam as boates heterossexuais de seu passado, como o Bwana ou o Seis Pistas. Com alguma hesitação, ela se considera parte dessa tribo indie. Avalia que o gosto musical é a característica mais importante quando faz novas amizades, porém não descarta a relevância da orientação sexual para definir afinidade entre as tribos. Atualmente seu lugar preferido é A Obra, que não se configura como uma casa LGBT, tampouco mix, mas Júlia não vê problema algum em paquerar por lá.

Essa coisa de gosto musical, pra mim, faz muita diferença. Não que seja consciente ou seja pré-requisito. Meus amigos são todos muito interessados em música, não necessariamente indie. Todos nós compartilhamos dessa paixão, buscamos mais ou menos as mesmas coisas... Não sei se minha tribo seria indie ou GLS... Tribo de interessados por música, cinema. Talvez... Agora eu freqüento os inferninhos da Savassi quando toco ou meus amigos tocam, também vou a botecos e festinhas de conhecidos. Nada com uma definição formal de LGBT. Hoje o que me

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leva a sair de casa, primordialmente, são meus amigos. Até no samba já fui parar. Depois, vem a música. Se estiver indisposta, só saio a trabalho. Tenho amigos gays que raramente vejo hoje porque eles não toleram esse meio ‘rocker’... Eles se sentem intimidados em paquerar na Obra, por exemplo... E nem cogitam a possibilidade de vivenciar alguma coisa fora dos ambientes que eles consideram mais permissivos. Tem também a questão do preconceito. Parece necessário que as pessoas se unam pra poder vencer um monte de barreiras... Dentre elas de conseguir esse tal ‘espaço permissivo’. Consigo identificar a união, por exemplo, com essa coisa do gosto musical. Existe uma apropriação de referências... Queria entender porque tem tanto gay louco por axé e música eletrônica... E pop... E Madonna. Não sei se é uma maneira de se definir ou se identificar.

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O último a sair apaga a luz

Edvaldo Zerlin percorreu todos ambientes da boate Confessionário na noite de sexta-feira, dia 22 de fevereiro de 2008, já quase sábado. Na entrada, corredores, bar e pista de dança, o número de pessoas não passava dos cinqüenta. Aquela era a última noite de sexta em que a casa ficaria aberta. Uma comemoração, com ares de despedida, foi encomendada a Thiago, integrante do grupo de Pedro na época em que organizavam festas na casa. Thiago, seu namorado e mais duas amigas fizeram a discotecagem da noite. O nome escolhido para o evento foi “Neverland”, ou terra do nunca, referência à ilha de Peter Pan, o jovem que nunca cresce. Algo que soa como ironia em um lugar com hora marcada para fechar. O final feliz para toda casa noturna é nunca ter final, ao contrário, é permanecer como novidade constante e atrair mais e mais público, jovem de preferência. Entre as boates gays, em que o público costuma ser bastante exigente, manter a inovação é tarefa complicada, e o final não é feliz para sempre, é o fim

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mesmo. Ao longo dos anos, as boates fecham, trocam de nome, de lugar, sempre na tentativa de sobreviver. Para quem começou tentando se diferenciar das demais casas, o Confessionário até que teve um fim diferente. Na verdade, teve dois. Um dia depois da “Neverland”, a casa fez a despedida para seu público de sábado, também com poucas pessoas e algumas lágrimas. Edvaldo Zerlin alegou que ele e seu sócio, Sérgio Coutinho, haviam se cansado de trabalhar na noite. Além de dar expediente no Confessionário durante o final de semana, os dois mantinham seus outros empregos. Paralelamente ao cansaço, os eles começaram a fazer concessões para que a casa lotasse, uma delas foi a adoção da estratégia de segurar a entrada das pessoas a fim de crescer a fila e dar a impressão de que o lugar estava badalado. Outro motivo, relatado por Thiago, foi a falta de público. Segundo ele, que produziu várias festas às sextas-feiras, a quantidade de pessoas variava muito. Por vezes lotava, em outras a pista era ocupada somente pelo jogo de luzes. A soma de fatores levou os dois sócios a decidir pelo fechamento da casa. Muitos pensaram que era apenas estratégia, que o Confessionário voltaria triunfante em coisa de meses. Quase um ano após o fechamento da boate, Edvaldo rechaça qualquer possibilidade de retorno, acha muito complicado lidar com o público gay e, principalmente, com a concorrência. Os sócios mantiveram os empregos que tinham antes de empreender a aventura de montar uma casa noturna, e assim ganham a vida. De volta ao dia 22 de fevereiro, enquanto Edvaldo percorria a casa, as pessoas na pista tentavam se divertir naquela última noite alternativa. Indie, electrorock, discopunk, pop, hits, todos esses estilos foram incluídos na playlist dos DJs, que pensaram

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em fazer uma festa de verdade. Mas de acordo Thiago, isso não foi possível. “Foi meio triste, tinha um clima de decadência no ar, a casa estava vazia e nem todo mundo esperou terminar mesmo”. Os poucos que resistiram até o fim da festa, deixaram o Confessionário ao som da cantora Rihanna, “Don’t stop the music”, mesma música que embalava, na voz de Ângela Evans, os freqüentadores do Estação 2000. Muito antes do amanhecer de sábado, a música parou, uma pequena fila se formou no caixa e todos se foram. Era o primeiro ato do fim. Em menos de 24 horas, a pista, embalada pelo tribal estaria vazia de outras tribos, aquelas que preferem uma música mais pop e não estavam lá para conferir os últimos instantes da boate. Poucos entraram na casa para a derradeira festa, alguns choraram a perda e as luzes do Confessionário foram apagadas de vez.

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Fim da festa

Ao fim da festa, as luzes se acendem, a música é desligada, filas se formam nos caixas. Uma melancolia pós-noite se manifesta nos suspiros contidos de quem passou as últimas horas dançando, paquerando, se divertindo. Do lado de fora da boate, o sol já dá sinais de que vai ganhar o céu. Pedros, Júlias, Fábios, Rodrigos, Thiagos, todos vão pra casa dormir o mesmo sono no despontar do dia. Para eles, a vida noturna em Belo Horizonte é, ou já foi, mais importante do que para muitas outras pessoas. Assim eles continuam a escrever essa história, com seus corpos, suas amizades, ações, ao estabelecer novos contatos, ao trocar de lugar preferido. Todos que apareceram nessas páginas levam vidas normais, trabalham, estudam, saem com os amigos, têm problemas e podem ser afetados por crises econômicas. Em nome da sexualidade, são impelidos a viver em um mundo à parte, espacialmente integrado ao restante da cidade, mas moralmente distante das regras vigentes, e talvez por isso, tornados invisíveis. A ligação

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dos personagens com as tribos é tão inconstante como são inconstantes seus trajetos de vida, ninguém quer pertencer a um rótulo. Ainda que nem sempre essas tribos tenham uma auto-identificação, todos reconhecem que sua rede de amizades é condição para manifestar suas sexualidades sem constrangimentos. O fim de um livro parece deixar a mesma melancolia do final de festa. Antes do último ponto, antes da última música, uma sugestão. Vá até a praça da Savassi em um fim de semana, por volta das dez e meia da noite e sente-se em algum dos quarteirões. Observe todas as tribos que circulam por ali. Pode ser que encontre estilos que lhe causem estranhamento, é um bom momento para rever conceitos. Pode ser também que não perceba diferença nenhuma entre você e os passantes. Talvez isso indique que a cidade dos outros, pela qual você também circula diariamente, não seja outra, ou os outros não sejam diferentes de você.

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Diรกrio de Bordo

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Início A produção de Cidade dos outros... foi extenuante, e surpreendeu-nos bastante. Agora confessamos, não tínhamos muitas expectativas com relação a essa reportagem. Por mais que definíssemos uma pauta para orientar os trabalhos, não conseguiamos visualizar os elementos que pudessem render uma narrativa ao menos coerente. No fim das contas, a nossa proposta não permitia algo linear, a complexidade das tribos e dos personagens, talvez característica de nosso tempo, pedia algo mais fragmentado. Para nos orientar, procedemos da seguinte forma: sem combinar quase nada, mas movidos pelo sentimento do que cada um desejava fazer, dividimos o trabalho. Vinícius seria responsável por entrar em contato com os entrevistados, enquanto a Maria Tereza organizaria as saídas para os lugares LGBT. Nada impedia, entretanto, que um entrasse na obrigação do outro e, assim, o livro foi construído a partir da combinação das experiências de ambos.

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Maria Tereza: O Vinícius entrou apressado e atrasado na sala 3100. Era a primeira vez em que estávamos todos do primeiro período da Comunicação Social reunidos. Acontecia a palestra introdutória do coordenador do curso, Bruno Leal. Vinícius vestia calça jeans e uma blusa de frio verde musgo. Ao final da palestra, com um pouco de medo do trote que estava por vir, Vinícius se atrapalhava para segurar o maço de papéis informativos que recebemos e o seu guarda-chuva. Como ele não estava com uma mochila, perguntei se queria que guardasse suas coisas dentro da minha, ele aceitou e por oito períodos nos transformamos em uma dupla inseparável. Depois de mil e uma parcerias em trabalhos, depois de todos os intervalos compartilhados na cantina da Faculdade de Letras, não havia dúvidas de que faríamos o projeto experimental em dupla. Assim, não houve convite ou negociação. Nossa dupla só não se provou tão profícua nas saídas. Uma espécie de maldição condenava qualquer programa que combinássemos de fazer a dois em uma noite de angústias que acabava antes das 2h30 da manhã. E assim, era uma madrugada de domingo em novembro de 2007. Eu e Vinícius saímos da Mary in Hell, em mais uma de nossas inúmeras noites malfadadas. Sentados à mesa do Mcdonalds na praça da Savassi, lamentávamos o fiasco da noite. Na falta de assunto, Vinícius perguntou se eu já pensava em algum tema

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para o projeto. Na época, só tinha uma certeza: queria fazer algo ligado a jornalismo. Vinícius sugeriu então um livro-reportagem, com uma temática controversa. Havia pouco tempo que o Estado de Minas publicara uma série de reportagens sobre a prostituição no Vale do Jequitinhonha. Ele, que é da região, ficou tocado ao ler histórias que faziam parte do seu imaginário, que fizeram parte da sua infância. Como era uma coisa já feita, tínhamos que pensar em algo que rendesse um material tão interessante quanto as prostitutas do Vale: vamos fazer sobre os michês de Belo Horizonte, concluímos. Cinco meses depois estávamos reunidos novamente, eu, Vinícius e Bruno Leal. Como na vez que nos conhecemos, mas agora pedindo a orientação para o projeto de conclusão de curso. Nosso futuro orientador nos recebeu empolgado, porém cauteloso. Ao final de uma breve conversa, sentenciou: - Michês são complicados, vamos estipular um prazo... Se em um mês vocês não conseguirem uma boa história para contar, mudamos o tema. Era início de abril e começamos as buscas. Entramos em contato com vários garotos por meio de anúncios de jornais. Alguns se mostraram muito receptivos, mas conseguimos marcar apenas uma entrevista. Numa quarta-feira, ao meio dia, estávamos na praça da Assembléia rumo ao encontro com o michê. Ele estaria vestido com uma camiseta amarela e bermuda vermelha, o avistamos e caminhamos em sua direção. Ao nos reconhecer, o rapaz levantou-se e foi embora. Simples assim, perdemos nossa última esperança de uma boa história, o prazo já estava no fim. Em uma segunda reunião com nosso orientador, definimos o novo tema: tribos jovens e espaços LGBT em Belo Horizonte.

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Consideramos a maior proximidade com o nosso cotidiano um fator importante para a realização do livro no tempo proposto.

Vinícius: Não me recordo de ter dado especial atenção à Maria Tereza quando a vi pela primeira vez. Para mim, ela era mais uma na massa de novos colegas que estavam na sala de aula no início de 2005. Lembro-me que depois do trote do primeiro dia de aula chovia algum tanto e que ofereci uma carona no meu guardachuva. Antes do festival de tinta ela se oferecera para guardar meus papéis em sua bolsa. Foi assim, na falta um do outro que nos conhecemos e descobrimos algumas coincidências. Ambos gostávamos de novela, queríamos ser jornalistas e, na época, preferíamos sorvete de passas ao rum. Acho que depois ela passou a gostar de macadâmia e me deixou sozinho na preferência. Mesmo assim, nossa amizade não foi afetada e passamos a fazer todos os trabalhos da faculdade juntos, por mais que tentássemos variar vez ou outra, mas não dava certo. Sete períodos depois e muitas doses de café na cantina da Letras, por convicção ou por inércia, não me lembro bem, resolvemos fazer o projeto experimental juntos. Entre longos diálogos e longos silêncios, fizemos o livro-reportagem. Nossa primeira incursão à noite foi pra Josefine, lugar que mais fomos, inclusive. A Maria Tereza havia ganhado um par de convites para um coquetel, em que seria lançado um site. Foi a nossa oportunidade de entrar lá de graça numa quinta-feira. Passamos a noite procurando algum lugar confortável, mas não conseguimos encontrar, sempre havia muito barulho. A exceção

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foi o início da noite, quando uma cantora fez show na pista principal, o público foi escasso e os graves da moça não chegavam a incomodar. Quando a música eletrônica começou, perdemos a paciência por completo e resolvemos voltar pra casa. Além da quinta-feira, era preciso conhecer o sábado da Jô, que tem entrada menos acessível. Para isso, foi preciso contar com a ajuda de um amigo. Ele trabalha na casa e conseguiu me por pra dentro sem problemas, além de me arranjar uma pulseira que dava acesso à área VIP. Encontrei duas amigas, que me apresentaram Hugo, dali em diante um de nossos personagens. Ele comemorava o aniversário naquele dia e dançava na pista 2, onde tocava música eletrônica de gente moderna. O amigo que me ajudou a entrar também me apresentou a algumas pessoas, me lembro com mais clareza de um modelo aposentado que já aglutinava gordurinhas e de um grupo de amigos que se vestia de forma igual. Interessei-me pelo grupo e mandei avisar que os observaria durante a noite, não houve resistência por parte deles, um integrante chegou a passar o e-mail. Passada a noite, enviei um e-mail propondo uma entrevista, o destinatário concordou, mas até hoje não respondeu o segundo e-mail, em que eu marcava o encontro de fato. Voltei outras duas vezes a Josefine para fazer uma colaboração para a Rádio UFMG Educativa. Fiz a cobertura das eliminatórias mineiras do “Mr. Gay Brasil”, evento interessante, mas ainda pouco maduro. Optamos por não relatar esse fato no livro, já que se tratava de uma competição sem muita repercussão no meio gay. De toda forma, foi mais uma oportunidade de entrar em contato com as tribos da boate, o que me permitiu até fazer uma média do horário em que aumenta o número de descamisados na casa, por volta de 1h da manhã. Isso sem contar que

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fiquei boa parte do tempo no camarim, entre Walkíria La Roche, os competidores (muito nervosos), a travesti convidada e uma dúzia de go-go boys se preparando para fazer performances. No mínimo, uma experiência para ser contada.

Banzay, Amici, Gis e Estação 2000 Maria Tereza: No final de julho, por indicação do Bruno Leal marcamos uma entrevista com o pesquisador Luiz Morando, Mestre em Literatura Brasileira e Doutor em Literatura Comparada pela UFMG, que tinha finalizado recentemente o livro Paraíso das Maravilhas, publicado posteriormente. Em uma longa entrevista, Morando nos forneceu um panorama histórico da sociabilidade LGBT em Belo Horizonte. A partir dessa entrevista fizemos um mapa de locais que deveríamos visitar. No início de agosto, Vinícius e eu combinamos de nos encontrar na Praça 7 à noite. De lá saímos por uma peregrinação por lugares extintos, passamos pelo antigo Nova Estação, pelo Gis Pub e outros endereços da região. Aproveitamos para conferir a movimentação na porta do Estação 2000 e também do Hi-Fi. Sentamos então na praça Raul Soares e observamos os passantes. Antigo point de pegação, a praça está hoje bem iluminada e sem atividades suspeitas. Caminhar longas distâncias calçando All Star não é uma boa idéia e, naquele momento, meu pé doía. Vinícius, então, me levou ao ponto de ônibus, na esquina da rua São Paulo com avenida Bias Fortes, de onde apontou para o bar

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da esquina oposta. -Ali é o Banzay, é ponto gay também, sabia? Nesse momento pensei: “porque não avisou antes, a gente teria passado por lá”. Combinamos uma excursão no dia seguinte para o Banzay. Na sexta-feira, como acertado, fomos ao bar. Tinha os pés doloridos da caminhada do dia anterior e o lugar estava lotado, acabamos arranjando duas cadeiras, o garçom esclareceu que não poderia nos servir se estivéssemos sem mesa. Agradecemos, compramos nosso refrigerante no balcão e voltamos à observação. O que mais nos chamou a atenção nesse primeiro contato foi a grande presença de transformistas e travestis, três delas passeavam conversando com o pessoal sentado. Uma travesti distribuiu panfletos do candidato a vereador Iran Barbosa, que foi eleito em outubro. Um pouco mais de observação e descobrimos que as transformistas iam em direção à boate Amici, do outro lado da rua. Naquela noite tínhamos programado ir ao Gis, só que soubemos que lá estaria fechado. Sugeri que entrássemos na Amici, que tinha o preço bastante em conta naquela noite. Conhecemos então Bebel Sampaio e, ainda com o pé doendo, fiquei sentada a maior parte do tempo nas mesas próximas ao bar, enquanto o Vinícius fazia a observação da pista de dança. Levantei apenas para ir ao banheiro, o que já valeu como uma experiência antropológica completa.

Vinícius: O Banzay pra mim sempre foi um bar como outro qualquer no centro, cheio, com música alta e pessoas conversando

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animadamente. Sabia que lá ficava aberto 24 horas o que atraía um público bem diverso. Até que há pouco mais de um ano, uma amiga comentou: “O Banzay só fica cheio de gay agora”. O motivo seria a abertura de uma boate logo em frente, chamada Amici. Parece que foi o retorno da boêmia pra região da rua Padre Belchior. Tendo em vista o movimento, o bar sempre está lotado, e o público, a maioria LGBT, resolvemos nos aventurar até o local para colher dados para o livro-reportagem. Em uma noite de sexta, chegamos ao bar da esquina da avenida Augusto de Lima com rua Padre Belchior. Como de costume estava cheio, tocava Cazuza e não tinha lugar pra sentar. Conseguimos duas cadeiras com muito custo. Acomodados, passamos a observar o comportamento das pessoas, havia uma variedade enorme de tipos, mocinhas bem femininas de mãos dadas, rapazes mais fechativos, outros masculinos, mulheres masculinizadas e algumas travestis. Anotamos as movimentações para captar a energia do local, inclusive quando, já do outro lado da rua, na porta da Amici, tivemos notícia de que alguém havia quebrado uma garrafa na cabeça de outro. Nada se confirmou, entretanto. Repetimos a operação, mas da segunda vez nos aventuramos a pedir um espetinho de carne, que veio gorduroso, por sinal. Na Amici Disco Club, passamos boa parte do tempo sentados. Nos esforçamos para guardar cada palmo da decoração do local, já que no breu da boate, ficava difícil fazer anotações. Não interagimos muito com o público, embora tenhamos trocado algumas palavrinhas com a hostess Bebel Sampaio, que entrevistamos outro dia em seu papel masculino. Percorremos todo o espaço da casa para tentar descobrir os detalhes e prestamos bastante atenção à pista de dança. Em diálogos com colegas, muito definiam a

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casa como “lama”, indicativo de comportamento promíscuo das pessoas do local. No entanto, não confirmamos essa informação. Todos dançavam normalmente como em qualquer outra boate, à exceção dos passinhos coordenados entre amigos, no estilo “dois pra lá, dois pra cá, um passo a frente, outro atrás”.

Maria Tereza: No princípio de noite do dia 14 de agosto, sentamos no Hi-fi e notamos um movimento bem diferente do observado no dia em que fizemos a longa caminhada noturna. Desta vez, o bar recebia uma clientela heterogênea. Um homem idoso e alcoolizado levantou de sua mesa e desferiu cantadas para cada mulher do bar, também fui vítima e achei graça da situação. Às oito horas um novo turno de garçons pareceu atrair o público de homossexuais acima dos 50 anos, que havíamos conferido na outra visita. Pouco depois da mudança de turno fomos embora, começávamos a nos sentir deslocados. Na sexta seguinte, fomos ao Estação 2000. A princípio, foi o local em que mais me senti deslocada. Todos os clientes até a hora em que chegamos eram homens e um pouco mais velhos. Senti que era observada com curiosidade por alguns dos presentes, mas provavelmente era mania de perseguição. O público se diversificou no decorrer da noite, assim como as músicas tocadas e a observação se tornou mais divertida. Ainda com o pé dolorido, mais uma vez fiquei grande parte do tempo sentada. Observação: depois da primeira grande caminhada para o projeto, fui obrigada a comprar um tênis mais anatômico. Foram

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duas semanas sem poder andar direito devido aos danos causados pelo All Star.

Vinícius: A visita ao Estação 2000 não guardou grandes surpresas. Eu estava mal-humorado no dia e boa parte da observação ficou por conta da Maria Tereza. Lembro-me que havia muitos senhores na casa e um pequeno reduto de lésbicas. No palco, um casal se revezava em repertório eclético, de clássicos do samba aos hits de Beyoncé. Não havia banda ou violão, os cantores eram acompanhados pelas batidas de um karaokê. A única revelação ficou por conta de um padre ortodoxo que transitava sorrateiramente pela boate. Ano passado eu o entrevistei para uma série de reportagens da Rádio UFMG Educativa e guardo na memória algumas declarações suas condenando a homossexualidade.

Maria Tereza: Na outra semana, estávamos uma vez mais no Banzay. Desta vez tratamos de chegar mais cedo para conseguir uma mesa, mais ou menos no mesmo ponto do outro dia. Assim, poderíamos observar também o movimento da Amici e de um tal “Bar do Buraco”, que, conforme ficamos sabendo, também recebia muito bem a clientela LGBT. Dessa vez, depois de comer uma porção de espetinho de frango e de carne, fomos ao Gis. Na fila de entrada para a boate, fui abordada por um rapaz grande, que já devia ter uns 30 anos, me abraçou e disse:

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-Ah! que bom que você já está aqui! Compreendi que era uma estratégia para furar a fila e não fiz ressalvas, o rapaz começou a puxar papo. Ainda na entrada, ele ensaia uma investida no Vinícius, que já estava um pouco apreensivo. Minha dupla lhe dá um “fora” seco. Já dentro do Gis, esperamos o fura-fila entrar e explicamos o projeto. Como o rapaz se mostrava bastante disponível para entrevistas, pedimos seu telefone e, enquanto anotávamos o número no celular, ele foi categórico com o Vinícius: - Hoje eu estou solteiro, mas amanhã, querido... Já posso estar namorando e daí, você perdeu! Naquela noite, já fazia mais de um ano desde a única vez em que tínhamos ido à boate do Barro Preto até então, mas a experiência se repetiu de forma idêntica. Era dia de show de Gisele Andrade. No primeiro andar o house animava os corpinhos. Preferi ficar ao som do axé/pagode/músicas infantis/pop/revival do andar de cima. A observação da multidão fazendo a coreografia de “Dança da mãozinha” da banda Tchakabum é imperdível.

Vinícius: O Gis Club talvez tenha sido a experiência mais intensa. Já na fila, fui abordado por um rapaz na casa dos 30 anos, gordinho, que pediu para passar na frente. Depois de autorizado, ele começou a puxar papo e em seguida me passou uma cantada. Recebeu um ríspido “não” em troca. Só depois percebi que ele era um potencial entrevistado e que eu fora mal educado. Ele aceitou um pedido de desculpas e até nos deu o telefone de casa para

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marcar uma entrevista. Só que nunca conseguimos localizá-lo em casa. E não posso esquecer que ele rogou pelo menos umas três pragas contra a minha pessoa e disse que quando ligássemos pra casa dele, ele já estaria namorando. Onde esse divertido personagem estiver, desejo as melhores coisas, sinceramente. Do lado de dentro da Gis, havia uma massa de pessoas, acredito que a casa seja uma das mais diversificadas em termos de público em BH. Comporta pessoas de todas as classes, além de ser espaço muito querido por lésbicas, o que a diferencia da Josefine. A dona da casa, Gisele Andrade, é lésbica assumida e quase todas as sextasfeiras canta sucessos da MPB.

Up!, Mary in Hell, Velvet e A Obra Maria Tereza: Fui à Mary in Hell pela última vez no meu aniversário, dia 10 de julho. Depois de uma comemoração com amigos, consegui, a muito custo, arrastar dois para me acompanharem à boate. Já imbuída do espírito de observação jornalística, tentei analisar todo o ambiente de maneira crítica. Porém, não foi uma observação muito longa, há muito tempo não gostava daquele ambiente, apesar de já ter sido um dos meus prediletos no passado, e preferi ir embora mais cedo. Um mês depois, fui pela última vez ao UP!bar, em uma noite aleatória, apenas para observação. Dessa vez, consegui somente um acompanhante e a noite foi chata, mas serviu para observar melhor a dinâmica do novo banheiro.

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Vinícius: Com muita sinceridade, não sei precisar quantas vezes nós fomos a esses locais, os chamados “inferninhos da Savassi”. Embora tenhamos severas críticas às casas e ao estilo de vida das tribos que ali freqüentam (coisa pessoal), acho que são nossos lugares favoritos para diversão. Dessa forma, acreditamos não ter necessidade de passar várias noites observando o comportamento das pessoas nessas casas, já que fazemos isso naturalmente há pelo menos dois anos. Em nosso entender, esse procedimento não resultou em prejuízo à construção do livro.

Entrevistas Maria Tereza: Júlia é amiga de um amigo meu. Pensei em chamá-la porque imaginei que ela seria muito aberta para falar sobre qualquer assunto. Também, por ela trabalhar com festas já há algum tempo, teria uma visão diferenciada das tribos. Fiz a primeira longa entrevista no começo de julho, em que me contou tudo o que perguntei e mais alguns detalhes. Já deixei combinado outras para esclarecer dúvidas. Assim, um mês depois, fiz a segunda entrevista, um pouco menor, mas mais específica sobre suas visitas às boates gays. O meu outro entrevistado foi Rodrigo, mais para o final do trabalho de apuração. Sou sua amiga e acompanhei a mudança de tribos. Por ele ter um olhar muito crítico sobre a noite em Belo Horizonte e recentemente ter começado a se envolver com

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questões de afirmação da identidade homossexual, achei que seria uma voz interessante a se colocar no livro. A entrevista com ele foi bastante tranqüila, me disse que tinha apenas meia hora, mas conversamos por muito mais tempo sobre suas opiniões e experiências na noite. Além desses dois personagens, também entrei em contato com uma segunda mulher para o livro, cantora em bares, que não retornou os pedidos. Um amigo de Júlia quis muito participar e chegamos a marcar entrevista, mas estávamos com a estrutura do livro praticamente fechada, então achamos melhor não colocar mais um personagem.

Vinícius: A primeira entrevista que fiz foi com Pedro, à noite, em seu quarto, assim que definimos o tema, em maio. Lá, o artista me relatou boa parte das suas primeiras experiências e de sua visão com relação às tribos. Levei as perguntas apenas na memória para não inibi-lo, ainda assim ele ficou um tanto tímido em elencar detalhes sobre sua primeira noite na extinta Excess. Teve também que fazer muito esforço para se lembrar das minúcias daquele dia e da ordem dos fatos. Essa técnica permitiu a descrição dos cenários, movimentos e do estado emocional de Pedro em sua primeira jornada ao mundo gay. Tomamos de empréstimo do novo jornalismo. Outras perguntas foram enviadas por e-mail e uma segunda entrevista presencial acrescentou mais fatos à história do artista. Em seguida veio a conversa com Léo Batista, proprietário

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da Amici. No site da casa, há a revelação de que Léo e a hostess Bebel são a mesma pessoa. Ainda assim não pude deixar de me surpreender com a entrevista. Primeiro por não ter certeza de qual dos dois iria me receber. Depois porque fui recebido por Léo, e ao contrário do que eu esperava, encontrei um rapaz bastante masculino, com barba por fazer e voz grave, pouca lembrança de seu alter ego. A entrevista aconteceu no apartamento do empresário, próximo a Amici. Fiz um roteiro de perguntas básicas, de como teve a idéia de montar a casa, de onde surgiu a Bebel, etc. Mas não houve necessidade de segui-las à risca, já que muitas questões foram aparecendo ao longo do diálogo. Ao fim da conversa, Léo me apresentou as principais performances de Bebel no palco da Amici em um vídeo que deve ser lançado em DVD. O Hugo, personagem que aparece no capítulo “Emos, modernos e indies”, é amigo de duas gêmeas conhecidas. Em uma ida à Josefine, encontrei as duas por lá, que me apresentaramno. A conversa aconteceu no pátio da faculdade onde ele estuda moda. Com muita simpatia, mas sem perder a insegurança e a timidez, ele me contou sobre sua mudança de Balneário Camboriú para Belo Horizonte e suas impressões sobre as tribos LGBT na capital mineira. O empresário Edvaldo Zerlin marcou nossa entrevista em um shopping de rua no Gutierrez. Visivelmente emocionado, me relatou as histórias do Confessionário, sua antiga boate. Boa parte dos relatos encontrava pontos de convergência com o caminho percorrido por Pedro, que teve papel fundamental na mudança de público da casa. O relato dos dois apontou para a necessidade de compreender os últimos dias do Confessionário, que foram escla-

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recidos por Thiago, entrevistado de última hora, mas que trouxe muitas contribuições. Por sua vez, a entrevista com Fábio, observador da fauna da Josefine, teve duas etapas. Na primeira, uma sinusite atrapalhou parte dos planos, mesmo assim conversamos por muito tempo sobre a vida dele, sua trajetória pelo mundo gay, entre outras coisas. Preferi não gravar, tentei repetir Gay Talese e guardar tudo na memória. Ficou acertado que ele entraria em contato com seus amigos barbies para falar do projeto e pedir a colaboração deles. Ninguém se dispôs a participar. No dia seguinte voltei, Fábio já estava um pouco melhor. Liguei o gravador e durante quase uma hora, ele me forneceu detalhes da convivência das pessoas que freqüentam a Josefine. O assunto Josefine também dominou a conversa com Walkíria La Roche. Depois de muitas tentativas de contato, consegui falar com ela diretamente. Apesar da agenda cheia, ela aceitou dar a entrevista. A presença dela no livro-reportagem é triplamente importante, por ser diretora da casa mais famosa da cidade, por ser representante do segmento T, além de ser coordenadora do Centro de Referência GLBTTT do Governo de Minas. Ela me recebeu na sede do CRGLBTTT, conversamos durante muito tempo sobre sua carreira, e principalmente sobre o público com o qual ela lida. Walkíria apresentou posições bastante avançadas no que tange o assunto tribos, ela não acredita em divisões estanques e em alguns momentos chegou a declarar que tais categorizações são “muito evasivas”. Por último, também conversei com mais um amigo de amigo, que não entrou na redação final do livro. Consideramos que a história desse último era muito parecida com a de outros

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personagens e apesar da riqueza de suas experiências, não traria novos elementos. Em contrapartida, também recebemos vários “nãos” de possíveis entrevistados, incomodados com a idéia de ter suas histórias relatadas em um livro-reportagem. Muitas informações também foram obtidas em mesas de bar, no ônibus, no hall da faculdade. Amigos e conhecidos se interessaram bastante pelo trabalho e passaram a nos dar dicas importantes de lugares, palavras e hábitos do universo LGBT. O interesse pelo tema fez com que vários anúncios e novidades aparecessem em nossa frente e, mesmo não aproveitados, alimentaram nosso imaginário sobre a sociabilidade homossexual em Belo Horizonte.

Considerações finais No início dos trabalhos de redação, foi necessária a escolha de um leitor pretendido. Para a escolha do nosso leitor levantamos algumas questões: “Quem se interessa por esse tema? Para quem a informação irá se destinar? Qual o estilo da nossa escrita?”. Assim, escolhemos um leitor jovem e “não-iniciado” na noite LGBT, seja ele gay ou heterossexual. Alguém que só tenha uma imagem geral da comunidade gay e que possa se beneficiar com as novas informações. O livro tem a intenção de oferecer elementos que possibilitem a desconstrução de preconceitos gerados pela falta de informação. Cidade dos outros... pretende assim, ter uma importância maior do que a da documentação de uma fração mínima da cultura LGBT, mas também uma motiva-

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ção social de ampliar o modo de olhar sobre esse grupo. Essa escolha resultou na forma de abordagem do tema, ao mesmo tempo didática e curiosa. Assim, a exploração de alguns aspectos, como as primeiras experiências em boates LGBTs nos pareceu bem importante para informar o leitor a respeito desse universo. A entrada dos indivíduos no mundo gay se constitui em um processo de escolhas que requer, na maioria das vezes, muito esforço pessoal e apoio de pessoas próximas. A redação foi feita sempre a quatro mãos e o livro tomou novos rumos durante todo o trabalho. Num primeiro momento acreditávamos ser importante narrar a trajetória de quatro pessoas, pertencentes a diferentes tribos. Porém, com as primeiras entrevistas, percebemos que seria difícil rotular os entrevistados, uma vez que eles próprios não se admitiam como membros de uma tribo. Decidimos, com o auxilio do nosso orientador, manter a história de dois entrevistados como carro-chefe da narrativa. A ordenação dos capítulos do livro também foi repensada diversas vezes. A redação, que teve início em setembro e foi finalizada em novembro, passou por diversas montagens e remontagens, o que resultou muitas vezes em alguns problemas de redundância, resolvidos em revisões posteriores. A parte feita por um membro da dupla era completada pelo outro e nos fins de semana nos reuníamos para editar o livro em conjunto. O relato de cada personagem é nosso ponto de partida para mapear as vivências LGBT em cada espaço pretendido. No entanto, se tornou necessário que estabelecêssemos limites iniciais para a questão das tribos. No discurso das fontes, a questão ganhava uma relatividade incômoda, excetuando-se as entrevistas com os

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administradores das casas noturnas, que relatavam o comportamento específico de seus públicos. Porém, esses relatos eram feitos sob uma ótica comercial, o que não era de todo interessante para a nossa abordagem. Nós buscávamos a relação entre tribos, a visão de uma sobre a outra e suas especificidades. Não encontramos, em um primeiro momento, nada além do óbvio, os gostos musicais, o modo de se vestir. Porém, as tribos apresentavam comportamentos similares de convivência, de intenções e de formação. O que nos levou a questão de que não há diferença real entre as tribos e elas, na verdade, convergem para um grande grupo, apesar de sua diversidade. A observação do personagem Hugo, ao afirmar que na rua as tribos são muito bem diferenciadas, mas na boate as coisas se misturam, pareceu-nos a mais acertada, e a que, em suma, resume bem todo o livro.

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