O Resto é Silêncio | a percepção do espaço cênico em três montagens de Hamlet

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O RESTO É silêncio A Percepção do Espaço Cênico em Três Montagens de Hamlet

Marília de Paula Gontijo Macedo





O RESTO É SILÊNCIO a percepção do espaço cênico em três montagens de Hamlet

Aluna | Marília Gontijo Orientadora | Marcelina Gorni Coorientador | Benedito Ferreira

Trabalho de Conclusão de Curso Arquitetura e Urbanismo Faculdade de Artes Visuais Universidade Federal de Goiás Goiânia, Goiás 2019



AGRADECIMENTOS |

Agradeço primeiramente à minha orientadora Marcelina e ao meu coorientador Benedito, pela dedicação, pelo apoio desde o início deste trabalho e por todos os ensinamentos maravilhosos que recebi. Obrigada aos meus amigos pela paciência que tiveram e pela ajuda que me deram em todos os momentos, principalmente à Ana Elisa, a melhor dupla que eu poderia querer. Finalmente, agradeço à minha familia, por me ensinar a ter persistência e calma e por sempre me estimular a ir atrás daquilo que me faz feliz.


| RESUMO

O seguinte trabalho se propõe a fazer um estudo de duas adaptações teatrais e uma cinematográfica da peça Hamlet, de William Shakespeare, com o objetivo de analisar como a Direção de Arte influencia na percepção que o espectador tem das temáticas trabalhadas no texto. Para tanto, serão esclarecidos alguns conceitos relativos a essa disciplina, ao espaço cênico, aos dispositivos pelo quais essas encenações são veiculadas e ao contexto de Maneirismo no qual Hamlet foi escrito. Além disso, serão feitos estudos a respeito do histórico da Direção de Arte e da Cenografia, tanto no teatro quanto no cinema, estabelecendo suas semelhanças e diferenças na abordagem do espaço, na concepção projetual e nos resultados finais, de forma a entender como os temas da peça foram materializados nas encenações em forma de luz, cores, cenário, figurinos, entre outros.

Palavras Chave:

Direção de Arte. Hamlet. Espaço Cênico. Percepção. Encenação.


ABSTRACT|

The following paper proposes a study about theatrical and cinematic adaptations of the play Hamlet, by William Shakespeare, with the intention of analyzing how the spectator's perception of the themes the play deals with are shaped by its Production Design. To achieve that, some concepts related to this Subject will be clarified, as well as the ones that involve the space of the scene, the devices that transmit the stagings and the Mannerist context Hamlet was written. Furthermore, a study will be made about the history of Production Design and Scenography in terms of theater and cinema, pointing out the differences and similarities about each approach of the space, the projectual conception and its final results, in order to understand how the themes of the play were able to be translated to the stagings in terms of light, colors, setting, costumes, etc.

Keywords:

Production Design. Hamlet. Setting. Perception. Staging.


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Abrem-se as Cortinas

Ato 01: Por trás da cena

Ato 02: Desenhando o espetáculo

23 Cena 1 - Peça e Encenação

35 Cena 1 - Contexto Inicial: da Grécia ao Renascimeno

23 Cena 2 - Cenografia e Direção de Arte

40 Cena 2 - Maneirismo: o contexto do teatro shakespeariano

27 Cena 3 - Espaço

45 Cena 3 - A passagem do Barroco para a Era Moderna: principais nomes e referências 48 Cena 4 - O século XX e a consolidação do cinema 56 Cena 5 - A Direção de Arte brasileira


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Ato 03: Dia de Estreia

Fecham-se as cortinas

118 Suporte Técnico

63 Cena 1 - Comunicação, Percepção e a Arte da Mentira

119 Personagens de Hamlet

68 Cena 2 - O Teatro e o Cinema

120 Fichas Técnicas

72 Cena 3 - As temáticas de Hamlet em suas encenações

122 Referencial Bibliográfico

125 Referencial Imagético



“Há mais coisas no céu e na terra, do que sonha a tua filosofia"


“O mundo inteiro é um palco E todos os homens e mulheres, meros atores; Eles entram e saem de cena, E cada um no seu tempo representa diversos papéis” Ato II, Cena VII de Como Gostais William Shakespeare


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Ao longo do estudo da Arquitetura, é possível perceber o quanto essa disciplina envolve o conhecimento de variadas esferas do saber, lidando com condicionantes técnicos, estruturais, teóricos, formais, espaciais, legais, funcionais, estilísticos e artísticos. Tendo isso em vista, a Direção de Arte pode ser considerada como o campo de encontro entre a Arquitetura e as Artes Cênicas, ou, conforme escreve Ratto (1999), é filha da arquitetura, pintura e artes decorativas. Assim, não é difícil notar o quanto as duas áreas têm em comum na maneira como ambas demandam um conhecimento essencial no que diz respeito a saber lidar com a caracterização e a organização do espaço. Desse modo, podemos dizer que tanto o arquiteto quanto o diretor de arte têm campos de atuação similares e devem ser capazes de resolver demandas que estão relacionadas com organizações espaciais, hierarquias de ambientes e fluxos, escolhas de materiais, texturas, iluminação, cores e perspectivas visuais. Além disso, as duas áreas são interdisciplinares e dependem de especialistas com os mais diversos conhecimentos para que os profissionais possam fazer seu melhor trabalho. Assim sendo, os pontos em comum e a qualificação necessária para desenvolver as duas disciplinas - tanto Direção de Arte quanto Arquitetura - demandam um tipo de repertório e de conhecimento comum relacionado ao domínio da concepção, ordenação e elementos de definição da ambientação e qualificação espacial. No entanto, durante o processo de investigação e pesquisa, foi difícil localizar muitos textos e trabalhos acadêmicos que discorressem especificamente sobre as características dos processos e métodos de trabalho dos profissionais envolvidos nesse tipo de concepção e produção espacial. É muito mais recorrente encontrarmos análises e reflexões sobre a caracterização de espaços sobre tipos de arquiteturas ou cidades de um período histórico específico. Exemplificam isso os diversos trabalhos acerca de reflexões sobre as ambientação de filmes como "Blade Runner", "Mon Oncle" ou "Metrópoles", somente para citar alguns.


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Portanto, o presente trabalho objetiva realizar uma reflexão quanto aos processos de produção dos espaços e ambientes cênicos no Teatro e no Cinema, concebidos, ordenados, elaborados e produzidos mediante projetos e planejamentos artísticos. Tais projetos visam qualificar, enfatizar ou ainda questionar a ambientação cênica originalmente indicada no texto em função da intencionalidade artística de cada produção, de cada diretor de arte. Dessa forma, resultam em divergentes resultados de montagens visuais e espaciais, dependendo do tipo de interpretação que cada um faz do texto original. Os processos de projeto tanto na Direção de Arte quanto na Arquitetura caracterizam-se por traduções entre linguagens, na medida em que eles têm de materializar necessidades, por vezes abstratas, para as formas e qualificações dos ambientes e itens físicos. Tal fato pode ser observado no paralelo traçado entre a concepção projetual usual para o arquiteto, ao realizar a elaboração do programa de necessidades e do partido arquitetônico, e a do processo de decupagem¹ ocorrente na Direção de Arte. O arquiteto lista as atividades e necessidades do usuário do edifício, estabelecendo ambientes adequados para abrigar tais funções para um número determinado de ocupantes, já prevendo a metragem quadrada de cada cômodo, as tecnologias construtivas

¹ O termo decupagem começou a ser usado de maneira recorrente no cinema a partir dos anos 1910, quando a sétima arte se tornou uma atividade em escala industrial, que passou a demandar uma padronização de processos. A palavra decupagem vem do francês découpage (do verbo découper, que significa recortar). Na linguagem teatral e audiovisual, a decupagem diz respeito ao processo de dividir as cenas de um texto base ou roteiro em planos, como parte do planejamento da encenação. Assim, a partir da leitura do roteiro o Diretor de Arte deve perceber, interpretar e definir aspectos visuais e espaciais, bem como a relevância de cada objeto ou elemento de cena, nunca perdendo de vista que essas definições devem servir ao ritmo narrativo da obra, para que o espectador não se perca. A noção de decupagem como o processo que vai desde a planificação do roteiro, passando pela filmagem até a montagem final, se estruturou na França dos anos 1950 e 1960, sendo um processo comumente utilizado hoje em dia para o planejamento de qualquer encenação.


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e os materiais a serem usados, sua forma e aspectos materiais, bem como os equipamentos e instalações necessárias para que o edifício como um todo atenda a todas as demandas nele envolvidas, tanto as funcionais quanto as estruturais, assim como as formais e as sócio-psicológicas. Em contrapartida, o diretor de arte deve pensar nas necessidades de cada cena que um espetáculo prevê. Isso diz respeito à quantidade de atores em cena, qual deve ser a caracterização de cada um em termos de figurino, maquiagem, adereços, qual luz deve incidir em cada momento, se direcionada ou ampla, quais objetos devem aparecer em cada cena, em qual sequência, quais os materiais, texturas e cores farão parte do espetáculo, ou ainda se haverá necessidade de efeitos mecânicos ou especiais. Assim, pensando nessa capacidade que a Direção de Arte deve apresentar de traduzir linguagens, este estudo tem o objetivo de comentar e refletir sobre essa disciplina e em como exatamente se dá essa tradução, ou seja, quais as escolhas feitas pelo diretor de arte são capazes materializar temáticas complexas para a forma de linguagem visual, direcionando a maneira como o público reage a esses temas. Com isso em mente, foram escolhidas para análise três montagens diferentes do texto teatral Hamlet, o Príncipe da Dinamarca, de William Shakespeare. Sendo a peça com mais encenações na história do teatro e mais de 50 adaptações cinematográficas, chama atenção como um único texto pode gerar tantas interpretações diferentes, e como cada uma dessas montagens utiliza linguagens visuais e espaciais específicas para transmitir uma determinada mensagem ao público que assiste à encenação. A peça, escrita no início do século XVII trata da história de um príncipe (Hamlet) que recebe a visita do Fantasma de seu falecido pai (o antigo rei da Dinamarca), o qual lhe diz que sua morte não foi acidental, mas sim um assassinato. O Fantasma acrescenta ainda que foi seu irmão Cláudio (tio de Hamlet) quem o envenenou deliberadamente, assumindo o trono da Dinamarca e se casando com sua esposa (Gertrudes, a mãe de Hamlet). A partir


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dessa revelação, Hamlet promete ao Fantasma de seu pai que irá vingar a sua morte, se fazendo de quaisquer meios necessários para tal, inclusive se fingindo de louco para atingir esse objetivo e evitar as suspeitas dos demais. Por meio dessa trama, Shakespeare nos faz entrar na mente do protagonista, viver as suas dúvidas e refletir sobre nossas próprias escolhas. O autor escreve sobre inúmeras questões universais e existenciais do ser humano, discutindo temáticas tais quais morte, luto, vingança, lealdade, família, loucura, amor, bem e mal, ambição, amizade, mentira e verdade, entre outras. Assim, com a finalidade de desenvolver uma análise comparativa entre as três produções no terceiro capítulo do presente trabalho, chamado de Ato 03: Dia de Estreia, foram selecionadas as seguintes encenações de Hamlet: o filme de Kenneth Branagh, de 1996; a encenação teatral filmada realizada pela Universidade BLC em 2013; e, por fim, a montagem brasileira feita pela Armazém CIA de Teatro em 2017. Busca-se não apenas comparar como os elementos visuais de cada uma dessas montagens refletem uma interpretação específica do texto, mas também entender como os diferentes dispositivos de transmissão (diferentes “meios de comunicação”, se falarmos nos termos de Marshall McLuhan, teórico da comunicação) dessas encenações (cinema, teatro e teatro filmado), influenciam na escolha desses elementos e nas diferentes maneiras de recepção por parte do espectador. Tal estudo sobre essas montagens foi feito baseando-se no método da decupagem, utilizado pelos próprios diretores de arte como ponto de partida de seus projetos cênicos. Com ele, é possível detalhar os principais temas (ou passagens) abordados durante a encenação, e como eles estão representados na qualificação ambiental e características de lugar (contexto espacial) em que acontece a cena, na iluminação de cada uma, nos figurinos e maquiagem de cada personagem, na paleta de cores escolhida, nos adereços cênicos selecionados, nos enquadramentos utilizados, entre outros. Dessa forma, somos capazes de descobrir quais elementos visuais são os mais recorrentes para traduzir uma


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mesma temática, e ainda como essas mensagens são transmitidas para o espectador. Antes que essa investigação seja possível, porém, faz-se necessário o entendimento sobre alguns temas que irão auxiliar nesses estudos de caso. Pensando nisso, o primeiro capítulo deste trabalho (Ato 01: Por Trás da Cena), é dedicado a esclarecer conceitos específicos da área de Direção de Arte, definindo quais os principais termos e conceitos serão abordados neste estudo. Em seguida, o segundo capítulo (Ato 02: Desenhando o Espetáculo), faz um panorama geral do histórico da Direção de Arte, mostrando como a Cenografia² (parte essencial da Direção de Arte) se relaciona com o desenvolvimento de cada tipologia de edifício teatral. Além disso, são mostradas as especificidades da Cenografia da época de Shakespeare, do teatro elisabetano e das influências do período maneirista nas temáticas abordadas em Hamlet. Com isso, busca-se discutir como, conforme escreve Estácio (2017) em seu artigo sobre o Maneirismo, “a angústia e o intelectualismo, juntamente com o esforço lúdico e desesperado para superar essa mesma angústia”, criam uma tensão que introduz um verdadeiro dilema na consciência do personagem principal, o Príncipe Hamlet, com o objetivo de entender como tamanha complexidade pode ser mostrada na linguagem visual de um espetáculo. Assim sendo, somente depois de examinados esses tópicos, é possível ter uma melhor compreensão de como as três encenações analisadas incorporam diferentes tipos de representação. E ainda como elas são capazes de nos fazer questionar sobre tópicos que

² O conceito de Cenografia e sua diferença para a Direção de Arte será especificado no Ato 01: Por Trás da Cena, com base na definição de Medeiros (2008, p. 18). Cabe saber que a Cenografia é a disciplina que abrange a arquitetura e a paisagem, o desenho do espaço, as locações, as cores, texturas e objetos. Quando são acrescentados outros elementos visuais que formam um espetáculo (tais quais figurino, maquiagem e efeitos especiais mecânicos e ópticos) à Cenografia, passamos a utilizar o termo Direção de Arte, que refere-se ao todo que compõe a linguagem visual de uma encenação.


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dizem respeito à percepção do público: os limites (físicos e emocionais) entre o espaço da encenação e o espaço do espectador, a metalinguagem presente em Hamlet (na medida em que apresenta uma “peça dentro da peça”), a impermanência dos cenários, a construção de um mundo fictício, e, por fim, a capacidade que o espectador tem de absorver e reagir aos acontecimentos da trama (seja no teatro ou no cinema) com a mesma quantidade de comprometimento que lida com os eventos de seu cotidiano.





ATO 01 | POR TRÁS DA CENA Para compreender melhor uma discussão sobre qualquer temática, é necessário, antes de tudo, esclarecer os principais conceitos que serão importantes para o assunto abordado. Pensando nisso, e considerando que a Direção de Arte, o Teatro e o Cinema são áreas que possuem muitas terminologias específicas de seus campos, é importante esclarecer algumas conceituações que serão utilizadas. Com isso, busca-se que as seguintes distinções evitem possíveis ambiguidades e possam aprimorar o entendimento dos tópicos a serem desenvolvidos nos demais capítulos.


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Cena 1 | Peça e Encenação Primeiramente, deve-se esclarecer que a qualquer momento que o termo “peça” for utilizado no presente estudo, este se refere ao texto original produzido pelo autor. Especificamente no caso de A Tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca, ou simplesmente Hamlet, há três versões publicadas da obra: uma de 1603, outra entre 1604 e 1605 e a última após a morte de William Shakespeare, já em 1623. Conforme nos explica O’Shea (2016), a primeira, chamada de Primeiro In-Quarto, é considerada a pior delas, por se tratar de uma reconstrução escrita de memória por um dos atores da companhia de Shakespeare, contendo apenas cerca de metade dos versos e da duração das demais versões da peça. Já a segunda e terceira versões, chamadas de Segundo In-Quarto e Primeiro Fólio, respectivamente, são mais longas e bem estruturadas, e são a base para os principais textos e traduções que surgiram durante os séculos seguintes, até chegar naqueles lidos na atualidade. Por isso, será considerada como “peça” o texto que surgiu da combinação entre o Segundo In-Quarto e o Primeiro Fólio. Ao passo que qualquer adaptação, dramatização, montagem teatral ou cinematográfica, surgida a partir de um texto, peça ou roteiro, será tratada com a terminologia de “encenação”. Cena 2 | Cenografia e Direção de Arte Feita essa distinção, cabe agora esclarecer um outro conceito que será importante para todo o trabalho, passível de confusões inclusive para os profissionais que lidam diariamente com a arquitetura cênica: a diferença entre Cenografia e Direção de Arte. A primeira definição normalmente encontrada é de que a Cenografia se trata da criação de espaços cênicos voltados para o teatro, enquanto que a Direção de Arte foca na produção que visa o cinema como destinação final. Tal distinção é particularmente


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notável nas conceituações oferecidas por cenógrafos brasileiros, isso porque “Direção de Arte” é uma tradução do termo em inglês Production Design, surgido justamente no cinema. Segundo nos informa Medeiros (2008), a primeira vez de que se tem registro de um profissional nesse campo de trabalho, é William Cameron Menzies, no filme norte-americano E o Vento Levou…, de 1939. Isso mostra que, neste caso específico, uma terminologia surgida no cinema passou a ser incorporada no teatro (em oposição ao que geralmente ocorre). Afinal, na atualidade a Direção de Arte passou a se referir também à produções teatrais, como é possível perceber pelos escritos de Débora Butruce, Iomana Rocha e Verônica Ramalho³, para citar algumas autoras. Apesar das diferentes terminologias utilizadas, ao analisarmos as funções atribuídas à Menzies no set do filme, é possível perceber que estas eram as mesmas que as exercidas por um cenógrafo brasileiro ao trabalhar em uma encenação para o teatro na mesma época. Isso porque ambos deveriam lidar com condicionantes espaciais tais como ambientação e iluminação, além de considerar em suas decisões projetuais, os objetos a serem utilizados na encenação, também chamados de props4, os figurinos, as maquiagens, os materiais, texturas, cores e quaisquer outros elementos que poderiam fazer parte da linguagem visual de uma cena. Devido às diferenças inerentes à natureza da linguagem teatral e da cinematográfica, porém, os profissionais que atuam nas áreas de Cenografia e de Direção de Arte apresentam diversas e distin-

³ Débora Butruce, mestre em Comunicação pela UFF e autora da tese A Direção de Arte e a Imagem Cinematográfica (2005); Iomana Rocha, doutora e mestre em Comunicação pela UFPE, graduada em Arte e Mídia Pela UFCG, autora de diversos trabalhos práticos em cinema, especialmente na área de Direção de Arte, como A Gambiarra e o Alegórico no Cinema Contemporâneo Brasileiro (2017); Verônica Ramalho, diretora de arte e cenógrafa, autora artigos como A Direção de Arte na Estruturação da Narrativa (2009). 4 Do inglês (theatrical) property, refere-se aos objetos de cena utilizados pelos atores durante a performance que têm alguma função para a trama, diferenciando-se dos itens decorativos.


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tas definições e interpretações do que se trata cada uma de suas específicas áreas. Isso pode ser percebido na discussão proposta por Pamela Howard em seu livro O que é Cenografia? (2009). Nessa obra, a autora faz a mesma pergunta que dá título ao livro à mais de 50 cenógrafos e diretores de arte e, por meio das respostas oferecidas, é possível notar como não há uma única que conceitue de forma definitiva a área, seja por não se tratar de uma ciência exata, seja pelo fato de ser um campo de atuação muito amplo. Assim, enquanto para a cenógrafa grega Ioanna Manoledaki, por exemplo, a Cenografia se trata da “transformação do drama em um sistema de signos visuais”, para Bob Schmidt dos Estados Unidos, trata-se da “articulação do espaço e da informação visual em artes temporárias”, e para Richard Hudson do Reino Unido, a Cenografia “está contando histórias em quadros cênicos.” (HOWARD, 2009, p. 21 a 23) Dessa forma, ainda que diferentes, por meio das definições mostradas, é possível apontar três tópicos em comum entre elas, os quais podem ajudar em uma conceituação geral do termo: o ato de contar histórias, o uso da linguagem visual e o trabalho com o espaço. Em primeiro lugar, é importante notar como a ambientação cênica está necessariamente relacionada com uma carga dramática que faz parte da ação de contar histórias ou, como escreve Del Nero (2008, p. 32) “a Cenografia é uma arte que deve integrar-se às palavras, aos conceitos do diretor, e à ação do porta-voz de toda a produção, que é o ator”. Logo, todos os elementos que fazem parte de um cenário devem estar lá para traduzir, reforçar, contextualizar e/ou auxiliar a ação teatral e cinematográfica, enfatizando a narrativa e servindo ao responsável por executá-la: o ator. O fato do cenário estar à serviço dos pontos centrais do espetáculo (que são a história e o ator que a transmite) pode ser ainda comprovado por Ratto (1999, p. 63), quando o autor afirma que:


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A cenografia é matéria elaborada, filha do racional e da criatividade; a interpretação dramática é a somatória de uma matéria bruta (o ator) que, emprestando a um mutante (a personagem) sua estrutura, acaba sendo modelada e organizada numa forma final - não definitiva a serviço da palavra. O ator, como a madeira, a cola, o prego e a pintura, nada mais é senão uma soma de materiais equivalentes aos necessários para se realizar um projeto cenográfico.

Partindo agora para o segundo ponto, é importante entender que a tradução da narrativa para a forma de linguagem visual é inerente ao trabalho do cenógrafo e do diretor de arte. Isto é, saber utilizar os signos visuais criados para enfatizar ou materializar elementos da história, tais quais diálogos, emoções e temáticas trabalhadas, é essencial ao fazer da arquitetura cênica. Isso quer dizer que tanto a Cenografia quanto a Direção de Arte são linguagens responsáveis, cada qual à sua maneira, por traduzir conceitos abstratos para uma forma visual. Tal tradução revela um trabalho meticuloso resultado de um bom projeto e boa execução por parte do diretor de arte e de todos o profissionais envolvidos na caracterização visual de uma montagem. A decisão de cada cor, cada textura, cada objeto e cada incidência de luz é planejada com o objetivo de afetar a percepção do espectador de determinada forma, de despertar certa reação, emoção, memória e reflexão. Em busca de transmitir e enfatizar as mensagens da peça ou do roteiro na forma de imagem e espacialidade, é importante notar ainda que as escolhas feitas na Direção de Arte são diretamente influenciadas pelo dispositivo que irá transmiti-las, ou seja, se a encenação será teatral ou cinematográfica. Com isso em mente, o pensamento de Garcia (2011) ao dizer que o teatro e o cinema possuem suas linguagens específicas, levando à utilização de técnicas e materiais próprios para cada linguagem, resume bem essa questão sobre a tradução de linguagens.


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Cena 3 | Espaço Finalmente, o terceiro tópico trata da abordagem do espaço. Segundo Aumont (1993, p.37), a ideia de espaço está fundamentalmente ligada ao corpo e ao movimento, ou seja, a percepção do espaço “é de origem tátil e cinésica tanto quanto é visual”. Pensando nisso, pode-se diferenciar o espaço representado, seja ele em obras bidimensionais ou tridimensionais, do espaço real, aquele que experienciamos no cotidiano por meio dos nossos sentidos. De acordo com Michotte (1948, p. 249 - 261, apud AUMONT, 1993, p. 136), o espaço do sujeito que olha uma imagem, o Spectator5, é chamado de espaço do espectador, ou seja, é o espaço do mundo natural, aquele percebido como real por ele em seu cotidiano através dos sentidos. Em contraposição a ele, porém, devemos considerar o espaço representado, criado pelo cenógrafo ou pelo diretor de arte, o qual podemos chamar de espaço cênico, ou ainda segundo Michotte (1948), espaço plástico. Isso porque, independentemente de qual dessas denominações sejam adotadas (representado, cênico ou plástico), elas se referem ao mesmo local tridimensional fictício (ainda que esse local se refira ao espaço do espectador por certos índices de analogia) onde se passa toda a ação teatral ou cinematográfica. Em seu livro A Imagem (1993), Jacques Aumont, discute o conceito desse espaço que é representado em imagens, sejam elas pinturas, fotografias ou cenários. Para o autor, “o espaço é um receptáculo potencial de acontecimentos, sendo que o espaço representado atualiza quase sempre essa potencialidade.” (1993,

Termo de Roland Barthes usado em seu livro A Câmara Clara (1980) para se referir ao observador de uma fotografia, aqui atribuído também ao espectador de outras formas de imagem e representação, como é o caso das imagens teatrais e cinematográficas. 5


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p. 228). Ele ainda acrescenta que a representação de ordem narrativa (e a Direção de Arte se enquadra nesse tipo de representação) quer mostrar não apenas um espaço, mas também um tempo diegéticos. Ou seja, considerando a diegese como uma construção imaginária, um mundo fictício com leis próprias (sejam elas mais ou menos parecidas com as leis do mundo natural), o espaço que representa essa diegese deve seguir essas regras do mundo fictício criado. Assim, nota-se como cada um desses dois espaços lida com modos de percepção distintos, visto que a maneira como um espectador percebe um espaço cênico é diferente da maneira que um usuário percebe o espaço real, como é o caso do espaço de uso arquitetônico do cotidiano, por exemplo. É graças à essa diferença de percepção que, apesar de lidarem com o projeto e planejamento de espaços, o diretor de arte e o arquiteto precisam considerar diferentes condicionantes em seu trabalho. Para efeito de comparação, no espaço arquitetônico, por exemplo, o arquiteto deve projetar um edifício, ou ambiente interno/externo, pensando na sua visualidade e funcionalidade, visando que o usuário possa usufruir todos os lugares, áreas e visuais oferecidos. Em contrapartida, o espaço cênico tem liberdade de lidar com outros elementos, como em montagens teatrais que possuem cenários metafóricos, os quais dão a oportunidade para o público interpretar e complementar significados do que lhe é apresentado. Isso só é possível pois o espectador percebe que o espaço daquela encenação possui regras de funcionamento diferentes do espaço de sua vida cotidiana real. Alguns exemplos considerados são de produções da Broadway. Esse é o caso das escadas utilizadas no cenário da encenação Hamilton, de 2015, as quais têm a capacidade, dependendo de seu posicionamento, de representar ambientes diferentes daqueles mostrados no piso do palco, e até mesmo se movem para simbolizar viagens de navio ou deslocamentos entre cidades. Além disso, a encenação de Dear Evan Hansen, de 2016, faz uso de grandes planos de vidro que recebem projeções, as quais


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simbolizam os conteúdos de telas de celular e computadores. (Ver figuras 1 e 2). Ainda, se levarmos em conta as possibilidades que o cinema dispõe, existem outros artifícios em relação ao teatro que podem ser usados para representar o espaço cênico. Nota-se, por exemplo, o uso de cenários construídos de forma “incompleta” (um cômodo com apenas três paredes ou sem teto, uma porta que não dá em lugar algum), quem têm o objetivo de mostrar apenas os itens específicos captados pelo enquadramento selecionado pelo diretor, sem a obrigação de mostrar o restante o espaço que não é mostrado pela câmera. A isso poderíamos chamar em certa medida, e analogamente ao que ocorre no universo da poesia, de “licença poética” que os espaços cênicos se dão o direito em relação aos espaços reais cotidianos. Logo, após a análise dos fatores e conceituações importantes para a composição de uma encenação, resta definir o conceito a ser adotado no presente trabalho. Primeiramente, mesmo que alguns autores, tais quais Cyro Del Nero e Gianni Ratto, utilizem o termo Cenografia para se referir à toda a linguagem artística e visual produzida para uma encenação de peça ou um filme, o conceito escolhido para as discussões do presente trabalho é aquele fornecido por Medeiros (2008), por ser mais abrangente. Ainda que o autor se refira mais ao cinema em sua fala, o trabalho se pautará na sua definição de Direção de Arte para tratar de todos os elementos visuais que envolvem a criação de uma encenação tanto cinematográfica quanto teatral, sendo a Cenografia um desses elementos. Como o próprio Medeiros (2008, p. 18) descreve, “a Direção de Arte atua sobre um dos componentes centrais de construção da linguagem cenográfica: seu aspecto visual”. Assim, o autor considera que a Cenografia abrange a arquitetura e a paisagem, o desenho do espaço, as locações, as cores, texturas e objetos. Porém, para além da Cenografia existem o figurino, a maquiagem e os efeitos especiais mecânicos e ópticos que compõem o todo da Direção de Arte. É por esse motivo que,


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Figura 1 | configuração de palco com as duas escadas abaixadas do espetáculo Hamilton (2015).

Figura 2 | configuração de palco com inúmeros planos de vidro recebendo projeções que se assemelham a telas de aparelhos eletrônicos do espetáculo Dear Evan Hansen (2016).


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a equipe de Design de Produção (Direção de Arte) é interdisciplinar e composta por cenógrafos, cenotécnicos, serralheiros, pedreiros, carpinteiros, costureiros, maquiadores, técnicos em som e iluminação, artesãos, entre outros. O autor finaliza descrevendo que é por meio da Cenografia que o diretor de arte define o desenho do espaço e a organização dos pontos referenciais para a ação através de sua arquitetura e da disposição de objetos. Além disso, constrói relações de perspectivas visuais e condições para enquadramentos e movimentos de câmera no caso do cenário voltado para o cinema. Estabelece ainda elos entre cenários de interior e vistas de exterior, define fontes e entradas de luz e propõe paletas de cor e texturas. Portanto, foram esclarecidas as diferenças entre ‘peça’ e ‘encenação’, definidos os tipos de espaço, e estabelecido que a Cenografia será considerada como uma área que é abrangida pela Direção de Arte. Agora é possível começar um estudo do histórico dessa disciplina, bem como das discussões específicas sobre Hamlet e as diversas possibilidades de representação espacial e visual disponíveis para as suas encenações.




ATO 02- DESENHANDO O ESPETÁCULO Antes que seja possível fazer um estudo sobre a Direção de Arte de uma encenação específica, é pertinente fazer um rápido panorama das características gerais dessa disciplina conforme ela foi se desenvolvendo através dos séculos, até chegar nas representações encontradas em montagens contemporâneas. Além disso, é essencial compreender o contexto do Maneirismo no qual a peça Hamlet foi escrita para entender como as temáticas abordadas por esse texto podem ser traduzidas com tantas variações para a linguagem visual e espacial de um espetáculo.


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Cena 1 | Contexto inicial: da Grécia ao Renascimento Conforme nos explica Del Nero (2008), a Cenografia é algo anterior ao teatro. Ainda na pré-história, os xamãs, porta-vozes de uma espécie de religião que acredita em uma ligação mística entre a natureza e o ser humano, já tentavam aumentar o impacto visual e a carga dramática de seus rituais. Para isso, seus espetáculos faziam o uso de fogo e fumaça para efeitos cênicos, enquanto eles se vestiam com penas e pele de animais e cobriam o próprio rosto de lama. Porém, apesar do uso de adereços cênicos nessas cerimônias, a origem da Cenografia ocidental como elemento que serve ao propósito dramático ocorre na Grécia, o berço do teatro e da civilização do Ocidente. É possível notar que, historicamente, as soluções cenográficas vão surgindo à medida que nascem novos tipos de edifício teatral, os quais trazem consigo novas demandas. Tal desenvolvimento e aperfeiçoamento são responsáveis por, lentamente, definir a Direção de Arte como disciplina. Com base no histórico detalhado feito por Urssi (2006), tudo se inicia na busca de um local para as encenações dos concursos dramáticos de Atenas, as quais dão origem ao edifício teatral grego. Para isso, a Cenografia surge como “espetáculo da representação criativa, textual, interpretativa e cênica, lugar onde o homem constrói seus significados” (URSSI, 2006, p. 21). Dito isso, o edifício teatral grego é composto de três principais partes: o theatron, a orchestra e a skéne. (Ver figura 3) A primeira delas, o thearon, é o local de onde se acompanha a encenação, com a capacidade de abrigar um público de até 14 mil pessoas que podem ver e ouvir os atores de qualquer ponto onde se encontrem. Isso é possível graças à disposição em semicírculo dos seus degraus em algum desnível (natural) significativo, como por exemplo uma colina. Já a orchestra é o círculo central configurado no meio desse arranjo de degraus, uma área destinada ao coro, que consiste em um grupo de 12 a 50 artistas e é responsável por comentar com uma voz coletiva a cena que está ocorrendo. A


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skéne, por sua vez, é a cena, uma tenda na qual os atores trocam de figurinos e onde ficam guardados todos os elementos necessários para a montagem do cenário. Posteriormente, passou a receber pinturas de fachadas que poderiam servir como suporte à ação dramática. Além disso, os gregos já se utilizavam de equipamentos para vôos, guindastes e cordas como elementos cênicos que reforçavam as narrativas representadas.

Legenda |

thearon

orchestra

skéne

Figura 3 | planta baixa esquemática do teatro grego de Epidauro (século IV A.C)

Assim, da combinação das palavras skéne (tenda, cena) e graphein (desenho, pintura) foi criado o termo Cenografia, literalmente significando o desenho feito da cena. No entanto, através dos séculos essa arte foi se tornando cada vez mais complexa, agregando conhecimentos de diversas épocas e locais. Dessa maneira, conforme nasciam novos edifícios teatrais e novos meios de se contar histórias, surgiam também novas necessidades cênicas, as quais foram sendo gradualmente supridas com novas abordagens e novas tecnologias. É importante ressaltar que, inicialmente,


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encontra-se uma linguagem cênica que busca imitar nosso mundo natural por meio de uma representação que se assemelha com o espaço real, o nosso espaço de espectador. Por conta dessa tentativa de imitação, esse tipo de abordagem é chamada de mimética, inspirada no conceito de mímesis6 desenvolvido por Aristóteles. Em seguida, podemos citar o advento do edifício teatral romano, que manteve a distribuição de acentos em semicírculo mas transformou a orchestra para esse mesmo formato, substituindo o círculo anterior e permitindo que os lugares acrescentados pudessem ser ocupados por senadores e demais pessoas de importância para o governo. Além disso, é consolidada a área do proskenion (que deu origem à palavra proscênio), a qual possuía o objetivo de ligar a orchestra à skéne. Ornamentado com colunas, esse ambiente acomodava três portais que não apenas serviam de acesso para os atores, mas já se configuravam como cenários para as tramas encenadas. O próximo período importante para o desenvolvimento da Cenografia é o teatro medieval, o qual foi responsável por apresentar produções religiosas, encenadas em latim e que poderiam se estender por vários dias. Inicialmente, essas montagens eram feitas dentro de igrejas, porém, de acordo Ratto (1999), a liturgia se torna um espetáculo grandioso demais para ficar contido em um edifício, por isso vai às ruas com o objetivo de atingir a maior parte da população possível. (Ver figura 4). Essa migração do espaço interno para as ruas medievais gerou novas demandas ao universo da Cenografia, resultando no uso de cenários específicos

Conforme cita Kinas (2011, p.2), com o tempo aumentaram as sutilezas semânticas e os usos concretos da noção de mímesis pelos poetas e investigadores do tema. O uso do termo entra em crise no século XX pois inicia-se um questionamento a respeito da relação da obra artística com o real, de forma que “o que está em jogo é a definição de realidade e a(s) forma(s) de reproduzi-la artisticamente”. Portanto, o conceito adotado para o presente trabalho, será simplesmente como sinônimo de imitação representativa da realidade, ou do espaço real, tal qual Jacques Aumont o define em seu livro A Imagem (1993).

6


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para cada cena, os quais eram dispostos em “carros-palco” e plataformas. Como forma de comunicação do clero com o restante da população, de maioria analfabeta, esses palcos recebiam imagens significativas para as encenações, e se deslocavam estimulando as pessoas a seguirem o espetáculo como uma procissão. Desse período também remontam as trupes de palhaços, comediantes e domadores de animais, que também se apresentavam na rua e se caracterizavam por uma espécie de teatro mais acessível e popular. Devido ao grande improviso dos locais de encenação, as carroças dos membros desses grupos de teatro eram usadas como palcos, permitindo o deslocamento entre as vilas. Por isso, o uso de cenários nesses casos era praticamente inexistente. (Ver figura 5).

Figura 4 | desenho esquemático das encenações litúrgicas da Idade Média.

Figura 5 | desenho esquemático das encenações populares da Idade Média.


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Tempos depois, por volta do século XV, nascem os teatros renascentistas. Graças à influência de Vitrúvio, os espaços cênicos desse período seguiam os princípios estéticos greco-romanos, com o acréscimo de alguns ambientes que pudessem atender à novas necessidades teatrais da época. Para isso, a sala principal do teatro é subdividida em três. O proscênio, espaço destinado para a ação cênica, é mantido e são incluídos a cavea (degraus de madeira para a plateia) e o scaenae frons. Esse último é um cenário fixo de madeira com desenhos feitos em perspectiva, o qual, segundo Urssi (2006, p. 32) “ampliou ilusoriamente a cena”. Essa nova tridimensionalidade fornecida pelas novas técnicas de pintura trompe l'oeil é capaz de transmitir uma sensação de amplitude da cena ao espectador, ainda que seja uma amplitude apenas aparente. Além disso, o Renascimento trouxe consigo o acesso separado ao palco, partindo diretamente do camarim, para atores, músicos e demais artistas. Por fim, o acréscimo de planos deslizantes no palco e máquinas cênicas foram inovações tecnológicas que ampliaram ainda mais a imersão no espetáculo oferecida ao público. É durante esse período renascentista que o formato do teatro italiano floresce. A configuração retangular de seus edifícios enfatiza a separação entre o espaço do público (platéia) e o lugar destinado aos artistas (cena). (Ver figura 6) Essa divisão é responsável pela criação da teoria da quarta parede, que pressupõe a existência de três paredes no palco (o fundo e as duas laterais) e um quarto “plano transparente” que corresponde àquele criado entre cena e platéia. A quarta parede, enquanto uma parede imaginária colocada em frente ao palco, determina uma separação espacial bem definida do público em relação às ações cênicas. Essa separação é reforçada ainda mais através do uso de cortinas frontais no palco italiano, que são capazes de emoldurar a ação teatral. Além disso, a encenação recebe uma incidência de luz diferente do local destinado ao público, mostrando o início de uma valorização dos recursos de iluminação do espetáculo, algo


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que permanecerá como um elemento crucial na elaboração de projetos cênicos, principalmente depois do advento da iluminação elétrica a partir do século XIX.

Legenda |

plateia

palco

Figura 6 | planta baixa do teatro italiano Farnese (século XVII).

Cena 2 | Maneirismo: o contexto do teatro shakespeariano Ao fim do período renascentista, por volta de 1520, tem início o Maneirismo, o qual se origina na Itália mas se expande por boa parte da Europa como a manifestação de um novo estado de espírito, que refletia a oposição ao antropocentrismo renascentista, na chamada crise do Renascimento. De acordo com Hauser (1993, apud PUHL, 2003, p. 25), o homem, que antes era tido como o centro do mundo, começa a revelar sentimentos contraditórios, incoerentes e caóticos, o que resulta em manifestações artísticas de descrença, pessimismo, nostalgia e instabilidade. Isso porque, enquanto o homem renascentista tende a buscar as respostas de que precisa em Deus, o homem maneirista as busca dentro de si mesmo, o que faz com que a arte desse período tenha a presença de dualidade, contraste, paradoxos, melancolia, discussão sobre a transitoriedade do tempo, entre outros elementos. Em relação à literatura maneirista, tornam-se comuns na produção dos autores da época sentimentos de dúvida, fracasso, ambiguidade, duplicidade e ironia, com uso de oxímoros e antíteses. O


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fantasioso surge como uma fuga dos tumultos da realidade, e há um desejo intenso de ordem e paz, apesar dessa vontade vir acompanhada de uma certeza de que sua conquista é algo inexequível. Para Hocke (2005, p. 253, apud ESTÁCIO, 2019, n.p), a literatura maneirista se vê repleta de “faces duplas”, ou seja, cheia incertezas, tema que o autor discute na seguinte passagem: Deparamo-nos incessante e simultaneamente com tórridos desertos e montanhas de gelo, profundezas oceânicas e cumes áridos, fraqueza e amor humanos viscerais, ânsia de ultrapassar todas as fronteiras e desejo de atingir um porto seguro, sonho com uma fórmula matemático-religiosa e medo perante a ira invisível e perceptível do Deus vivo. Disso decorrem as relações de tensão na literatura maneirista: cuidado artístico da sagacidade logística e impulso demoníaco-vital à expressão; busca intelectual esgotante, demasiado esgotante e delírio nervoso em metafóricas cadeias associativas; cálculo e alucinação, subjetivismo e oportunismo frente às convenções (anticlássicas); beleza delicada e extravagância assustadora; fascinação embriagadora e evocação quase oracional; propensão à estupefação e onirismo histérico; castidade idílica e sexualidade brutal; crendice grotesca e santa devoção. (HOCKE, 1972, apud SILVA, 2019, n.p)

Com isso, o autor explicita a forma como o Maneirismo é repleto de manifestações artísticas complexas que discutem grandes questões humanas. Nesse contexto, a obra de Shakespeare ilustra bem a passagem da atmosfera renascentista humanista, idílica e classicista, para a melancolia, desencanto, complexidade e tragédia típicos do Maneirismo. Mais especificamente em Hamlet, a peça será analisada mais a fundo no Ato 03: Dia de Estreia, há no protagonista uma dualidade entre o homem de ação e o intelectual, uma incerteza que o constitui como um personagem independente, reflexivo e que, de certa forma, sabe enfrentar os conflitos internos por meio de seus questionamentos. Ainda segundo Hocke (2005, p. 253, apud ESTÁCIO, 2019) “a angústia e o intelectualismo — autêntica


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“preocupação” existencial — juntamente com o esforço lúdico e desesperado para superar essa mesma angústia, criam uma tensão que ameaça introduzir um verdadeiro dilema na consciência” de Hamlet. Ademais, para além do personagem principal, a peça explora diversos outros conflitos humanos, mostrando confusão em relação ao autoritarismo e aos conceitos de bem e mal, bem como a indecisão, a dúvida moral, os enganos quanto à aparência e às diferentes maneiras de se lidar com a morte e o luto. Todas essas temáticas podem ser demonstradas, em termos de linguagem verbal, por meio do uso de ironia, jogo de palavras e metalinguagem, recursos que Shakespeare inquestionavelmente dominava. Para Coyle e Peck (1995, p. 12), o que distingue Shakespeare de outros escritores é justamente como a sua linguagem traz profundidade, peso e significado aos personagens e ações, pois ao escrever em forma de versos, ele força nossa atenção para esses significados que quer passar. Não é um espelho exato da vida, mas algo próximo e tangencial a ela, e a ordem dos versos age em oposição à desordem da trama. Esclarecidas essas informações da conjuntura da época, é nesse contexto que surge o edifício teatral que esteve intimamente ligado com a produção de Shakespeare. Conforme escreve Urssi, o chamado teatro elisabetano era (2006, p. 29): construído em madeira em formato poligonal e com até três níveis. As galerias superiores eram destinadas aos espectadores mais abastados, as galerias inferiores e o centro para o público popular. O palco é elevado do piso popular em aproximadamente um metro e meio, onde duas colunas sustentam uma cobertura de ‘duas águas’, onde várias cenas poderiam ser apresentadas simultaneamente. O palco tinha pouca caracterização, utilizavam-se apenas alguns móveis e objetos.

Um exemplo desse tipo de edifício é o chamado Globe Theatre, uma casa de espetáculos construída em 1598 pela companhia de William Shakespeare para a encenação de suas peças e com uma reprodução inaugurada em 1996. (Ver figuras 7 e 8).


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Figura 7 | desenho em perspectiva do Globe Theatre original (1598) feito por Walter Hodges para a reprodução de 1996.

Figura 8 | fotografia do Globe Theatre atual (1996).


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Em relação às encenações que ocorriam nesses palcos, vale ressaltar que a pouca caracterização cênica no período elisabetano diz muito sobre as montagens de peças shakespearianas dessa época de maneira geral. Em contrapartida à linguagem intrincada do texto teatral de Shakespeare, o autor apenas sugere os ambientes de cada cena, não se preocupando em colocar rubricas ou detalhes para a encenação de suas peças. Tal fato se soma com o costume elisabetano de descrever os cenários por meio de falas, o que abre brecha para uma percepção mais livre das ambientações, algo que necessariamente dependeria da imaginação e repertórios pessoais por parte dos seus espectadores. Por isso, com personagens tão grandiosos, tramas tão intrincadas e temas tão complexos, as encenações de Shakespeare tendiam a tirar o foco da linguagem visual do espetáculo, dando mais ênfase ao seu aspecto verbal. Com isso se quer dizer que, nesses casos, a função de organizar e dirigir a encenação focava-se mais em, conforme já dito anteriormente, reforçar a interpretação do ator, jamais em sobrepor ou elevar a importância dos elementos visuais e espaciais em relação à narrativa e questionamentos profundamente filosóficos e quase existenciais propostos pelo texto . É essa questão que Ratto (1999, p. 27) critica quando diz que: as personagens [de Shakespeare] são grandes, até gigantescas; qualquer acessório em lugar de colaborar poderia prejudicá-las; elas precisariam de cenários, pelo menos no sentido que a partir do século XIX se deu a esta palavra? Claro que não, e isso é demonstrado pelas dezenas de edições do Hamlet que conseguiram deturpar, através das imagens propostas, as significações mais profundas que o texto coloca.

Com isso, quer-se dizer que diante de tais tramas e personagens, a Cenografia e a Direção de Arte poderiam até ser vistas como elementos supérfluos por algumas pessoas, e talvez até o pudessem ser em abordagens cênicas dos séculos passados. No entanto,


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pensando principalmente em termos de encenações feitas na sociedade atual, tão acostumada a imagens em todos os momentos, é difícil conceber qualquer boa representação shakespeariana que não se paute também em linguagem visual e espacial para transmitir as mensagens ao seu público, principalmente com a gama de recursos disponíveis (seja para uma montagem teatral ou cinematográfica). Isso porque, a partir do período Maneirista, percebe-se um avanço cada vez mais rápido da Cenografia e dos demais recursos visuais utilizados nos espetáculos, acompanhando as constantes mudanças de mentalidade que se refletiam no surgimento de novos movimentos artísticos. Assim, seguindo-se ao período Barroco, a Modernidade muda radicalmente a forma de se pensar nos espaços cênicos.

Cena 3 | A passagem do Barroco para a Era Moderna: principais nomes e referências Seguindo-se ao dualismo iniciado pelo Maneirismo, o movimento Barroco também é caracterizado por contrastes. Seus edifícios teatrais mantém a frontalidade do palco italiano, mas os cenários pintados passam a ter a intenção de representar espaços idealizados, algo que é reforçado pelo dinamismo trazido no uso de painéis planos que enfatizavam as perspectivas visuais das pinturas trompe l'oeil. Tais painéis, por meio de um sistema de alavancas e contrapesos, permitiam a mudança de cenários de forma instantânea, agregando grande carga dramática às encenações líricas da época, e enfatizando a monumentalidade característica do período. Essa grande quantidade de movimentos e mudanças no palco se torna ainda mais grandiosa com o surgimento das óperas na Itália, espetáculos que passaram a unir as representações teatrais com as músicas clássicas (dramas e fábulas musicais) na construção de encenações musicais acompanhadas por uma orquestra.


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Dessa forma, a percepção do espectador passa a lidar não somente com a crescente quantidade de elementos visuais, mas também com a carga dramática agregada pelas performances musicais. A partir daí, com a chegada da Era Moderna, surgem artistas cujas inovações foram tão significativas para a Cenografia, e posteriormente para a Direção de Arte, que merecem ser exploradas mais à fundo e individualmente. Assim, o primeiro nome relevante para esse estudo trata-se de Richard Wagner (1813-1883). Mais conhecido por seu trabalho como compositor, foi responsável também por propor o conceito de “obra de arte total”, que, como escreve Urssi (2006, p. 42) define o drama como sendo a união da “música, da mímica, da arquitetura e da pintura para uma intenção única: oferecer ao homem a imagem do mundo.” Dessa maneira, por meio do uso de iluminação, figurinos, gestos e música, a arquitetura cênica utilizada nas óperas de Wagner se torna uma experiência. Todos esses elementos acabam por compor um espetáculo completo que deixa de utilizar a Cenografia como simples elemento decorativo, mas a emprega a serviço da encenação como um todo. Influenciado por Wagner, Adolphe Appia (1862-1928) explora ainda mais as possibilidades que a Cenografia oferece para a encenação. Atuante entre o final do século XIX e início do século XX, foi graças a ele que as pinturas em perspectiva e trompe l'oeil surgidas com o Renascimento passaram a ser consideradas como formas limitadas de representação no espaço cênico. Por isso, esses elementos eram substituídos por volumes e planos dispostos no palco, os quais, somados com as novas possibilidades oferecidas pela iluminação elétrica, serviam como alternativa aos cenários que até então eram miméticos e bidimensionais. Ou seja, buscavam imitar a o espaço do espectador através da pintura de planos que ficavam dispostos no fundo do palco. Para explicar essa ruptura com a prática de encenação da época que era feita até então, Urssi (2006, p. 46) explica que com Adolphe Appia:


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a cenografia se dinamizou em arquitetura iluminada, mobilidade e fluidez. Seus espaços rítmicos compostos de volumes horizontais e verticais, de escadas e planos inclinados, mapeados por zonas de luz e sombras, privilegiou a cena flexível onde cada trama pudesse desenvolver-se completamente com todos os elementos integrantes do espaço seguindo um pensamento criador único transcendendo a própria representação. O teatro deixou de ser apenas um texto a ser lido.

Portanto, é possível notar que com Appia se inicia o uso da Cenografia que age de maneira a sugerir espaços e não entregá-los prontos e extremamente detalhados aos olhos do espectador; a instigar emoções em seus espectadores e a trabalhar com os temas do texto teatral de forma a explorar metáforas visuais e espaciais em seus cenários e demais caracterizações. Com isso, a limitação que a representação visual mimética oferecia é quebrada e o público passa a ser muito mais participativo nas encenações, visto que suas diversas interpretações imaginadas a partir dos elementos sugeridos e que compõem a cena são importantes para a total (e individual) compreensão da proposta cenográfica criada. Por fim, é essencial falar de Edward Gordon Craig (1872-1966) e suas contribuições para a Cenografia. Ainda segundo Urssi (2006, p. 47), “seu palco foi o equilíbrio da qualidade simbolista da luz com a construção arquitetônica.” Essa chamada “qualidade simbolista” diz respeito ao recurso de uso da luz e exploração das qualidades do ator para a construção de uma encenação que era claramente teatral, rompendo com a busca de uma representação “realista”. Isso é possível perceber na montagem de Hamlet desenvolvida por Craig em 1912, em que, conforme descrito por Berthold (2001 apud URSSI, 2006, p. 47 e 48) “lanças, setas e bandeiras erguidas em escarpa acentuavam a monumentalidade das verticais e, abaixadas, transpunham o fim trágico em imagem óptica” e ainda que “a silhueta esguia de Hamlet não era um acessório, mas um elemento prévio da visão cênica”. (Ver figura 9)


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Assim, a participação ativa do espectador quando observa uma encenação se torna cada vez mais importante, e os diretores de arte tomam consciência dessa habilidade perceptiva do público, passando a desenvolver projetos inovadores e explorando as possibilidades que o espaço cênico provém.

Figura 9 | imagem digitalizada do desenho do projeto de Gordon Craig para a encenação de Hamlet (aproximadamente 1912).

Cena 4 | O século XX e a consolidação do cinema Somando-se às inovações desde Wagner até Appia e Craig, a transição do século XIX para o século XX é um momento de efervescência cultural que traz consigo o advento de diversos movimentos artísticos de vanguarda, bem como o surgimento e difusão da sétima arte. O cinema tem sua origem em 1895 quando os Irmãos Lumiére apresentaram um filme de menos de um minuto em uma sala de cinema chama Eden, em uma pequena cidade do sul da França. Arrivée d’un train en gare à La Ciotat ou Chegada de um trem à


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estação da Ciotat assustou os espectadores da época que se viram enganados pela perspectiva visual apresentada na filmagem, a qual dava impressão de que o trem vinha na direção da plateia e poderia atingi-la a qualquer momento. Em pouco tempo, porém, essas imagens em movimento foram se tornando cada vez mais populares. Um dos responsáveis por essa difusão é Georges Méliès, considerado o pai do cinema de ficção e dos efeitos especiais, já que foi ele quem experimentou pela primeira vez as possibilidades que os cortes e efeitos especiais poderiam oferecer aos filmes. Além disso, Méliès introduziu narrativas em suas produções, em contraposição às demais películas da época que costumavam ser filmagens de eventos reais esporádicos. Porém, como escreve Garcia (2011), o cinema de Méliès ainda se utilizava de “cenários teatrais” e do eixo da câmera perpendicular à ação que ocorre na cena. Com isso, percebe-se que esse momento inicial do cinema é uma fase de transição do meio teatral para o cinematográfico, no qual a Cenografia e Direção de Arte ainda não haviam se adaptado e nem explorado as especificidades e possibilidades oferecidas pelo veículo de reprodução de imagens em movimento. Por isso, os elementos visuais presentes nos primeiros filmes criados eram muito semelhantes às pinturas perspectivadas destinadas à cenários teatrais mais convencionais e antiquados. Além do mais, a ausência de recursos para a movimentação da câmera faz com que essa tenha uma posição rígida que não corresponde às produções de cinema que foram surgindo posteriormente. Isso porque seu ângulo de posicionamento era, ainda segundo Garcia (2011), do ponto de vista do chamado “local do príncipe”, que corresponde ao ângulo que um espectador teria ao acompanhar uma montagem teatral se estivesse sentado no assento mais central da plateia. Por esse motivo, é possível afirmar que a Direção de Arte do cinema é inicialmente dependente da forma como se faziam as montagens no teatro da época. Porém, a mesma se desenvolve paralelamente às técnicas cinematográficas, ao aumento do uso


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de novos planos e enquadramentos e conforme o advento de novas tecnologias. Além disso, o contexto histórico e a influência de outros campos artísticos também são responsáveis por moldar as novas formas de Cenografia e demais elementos visuais e espaciais. Portanto, é importante ressaltar que nas décadas seguintes ao surgimento do cinema, o mundo da arte passava por uma fase de grandes mudanças, e as vanguardas artísticas surgidas foram responsáveis por influenciar tanto a produção teatral da época, quanto as novas produções cinematográficas. Como um exemplo dessas mudanças, o expressionismo trouxe consigo a ideia de que, os cenários não eram lugares, mas “visões sugeridas pela dramaturgia” (URSSI, 2006, p. 51). Ou seja, o espaço cênico retratado não se via na obrigação de seguir uma abordagem realista, uma estética que fosse semelhante ao espaço real. Talvez o exemplo mais claro disso seja o clássico cinematográfico do Expressionismo Alemão, O Gabinete do Doutor Caligari (1919), que mostra como a Direção de Arte da época utilizava as novas possibilidades propiciadas pelo cinema para explorar luzes e cores de alto contraste bem como planos distorcidos e maquiagens exageradas, utilizando a mesma linguagem observada em outras obras de arte visuais expressionistas. (Ver figura 10) Enquanto isso, o futurismo valorizava a velocidade e as máquinas modernas trazendo ritmo e movimento aos filmes que faziam uso de efeitos cromáticos. O construtivismo, por sua vez, fazia uso de projeções de imagens, tipografia e estruturas metálicas. Além disso, a aceitação do cinema como uma forma de arte expressiva, se refletiu ainda nas produções cinematográficas de nomes famosos em outras áreas artísticas. É o caso do filme experimental dadaísta Cinema Anêmico, de 1926, feito por Marcel Duchamp, assim como de Destino, animação da década de 1940, feita por Salvador Dalí em contribuição com Walt Disney, só para citar alguns. (Ver figura 11)


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Figura 10 | cena do filme O Gabinete do Doutor Caligari, de 1920.

Figura 11 | cena do filme de animação Destino, de 1945.


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Além desses exemplos do cinema, a Direção de Arte teatral vivia grandes mudanças, pautadas na rejeição do uso de representações naturalistas ou miméticas em seus espaços cênicos. Tal fato pode ser percebido na seguinte passagem escrita por Urssi (2006, p. 54) a respeito das montagens executadas pela Bauhaus, a icônica escola vanguardista alemã: Os espetáculos teatrais da Bauhaus buscavam o jogo das formas e cores, em direção a um teatro abstrato onde a geometria definia as relações do corpo com o espaço. (C. f. Borie, Rougemont e Scherer, 2004) O ator no centro do espetáculo com todos os outros elementos ao seu redor e os figurinos buscavam novas possibilidades de percepção do corpo do ator ora restringindo o livre movimento, ora exigindo novas atitudes e gestos diante da atuação.

Conforme explica Lautenschlaeger (2007), a Bauhaus tinha o objetivo de agregar as artes visuais com as tecnologias modernas, na busca por uma nova síntese da arte. Tal atitude está demonstrada na concepção de Oskar Schlemmer (1888-1943) por exemplo, professor da escola a partir de 1921, que tomava “a história do teatro como a história da transfiguração da forma humana, propondo a construção de movimentos abstratos, geometrizados e mecanizados.” (LAUTENSCHALAEGER, 2007, p. 4). Para isso, Schlemmer se utilizava de linhas, planos e volumes nos espaços do corpo e do palco, atribuindo significado a essas formas e dando base para o conceito que Aumont (1993, p. 37) retoma em seu texto, de que a percepção do espaço está ligada ao corpo e ao movimento. (Ver figura 12). Lászlo Moholy-Nagy (1895-1946) também é um bom exemplo na nova concepção cênica estabelecida na Bauhaus. Ingressando na escola em 1923, Moholy-Naly adotava a Gestaltung (o processo de composição) ao articular elementos como som, cor, luz, movimento, espaço e forma, num trabalho de palco fundamentado como “jogo de forças construtivas”. (LAUTENSCHALAEGER, 2007, p. 9)


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Ademais, o Totaltheater, edifício projetado por Walter Gropius em 1927, quando era diretor da Bauhaus, propôs a ideia de um “teatro total”, que buscava a diluição da separação entre palco e platéia, cujo sistema de configuração foram projetados para serem móveis, proporcionando diferentes tipologias de palcos: desde a arena central até o palco italiano. (Ver figura 13). Ainda que nunca tenha sido construído, a ideia de um edifício teatral, que se tornava ele mesmo um grande e totalizante espaço de representação, envolvia inclusive sistema de projeções de imagens (filmes) em todas as paredes internas da sala, concomitantemente ao espetáculo, rompendo com conceitos pré-estabelecidos e servindo de modelo para os espaços teatrais e cênicos surgidos nas décadas seguintes. Isso se deve ao fato de, tal qual expressa Lautenschlaeger (2007), palco e auditório fazerem jus à complexidade do organismo que é a combinação dos elementos que compõem uma encenação: luz, espaço, plano, forma, movimento, som e corpo.

Figura 12 | estudo feito por Oskar Schlemmer da relação entre corpo, figurino e espaço (1924).


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Figura 13 | maquete eletrônica (2013) do Teatro Total de Walter Gropius.

Assim, as experimentações feitas nos primeiros anos do século XX foram se somando com as novas técnicas e tecnologias surgidas nas décadas seguintes. Alguns dos questionamentos trazidos pela transição do modernismo para o pós-modernismo, já após a segunda metade do século, foi sobre a efemeridade dos espaços, bem como a subjetividade de vários conceitos que eram pré-estabelecidos na arte. Muito disso se deu graças aos avanços nas áreas de tecnologia e comunicação, os quais possibilitaram uma maior reprodutibilidade e acessibilidade de diversos conteúdos, incluindo de imagens que antes eram de difícil disponibilidade. Dessa maneira, com esse acesso inédito à novos repertórios, as representações artísticas se viram sujeitas, cada vez mais, à mistura de estilos, interdisciplinaridade e espontaneidade, algo que se demonstra na produção atual da Direção de Arte teatral e cinematográfica, caracterizada por uma combinação entre vários


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estilos e abordagens artísticas. No teatro contemporâneo, por exemplo, isso se reflete na relação frontal do palco e da plateia, que passa a ser questionada em diversos níveis, dando margem a rearranjos entre os espaços destinados ao palco e à plateia em suas mútuas relações. Tal relação espacial passa a ser constantemente substituída por diversificados arranjos em que o público pode apreender o espetáculo a partir de diferentes pontos de vista, envolvendo diversos ângulos da cena. Enquanto isso, a relação passiva do espectador com as encenações também é cada vez mais questionada, principalmente em montagens que exploram a participação mais efetiva e ativa do público em suas narrativas, prevendo respostas mais diretas para o espetáculo funcionar. Por fim, o edifício teatral foi sendo substituído pelo uso dos chamados espaços não-convencionais, locais que não foram projetados para receberem representações teatrais, e o uso da tecnologia é cada vez mais presente durante as encenações. O cinema também se aproveitou da experiência trazida em seu primeiro século de história para explorar as possibilidades oferecidas pela Direção de Arte. Apesar de ter tendências a formas de representação cênicas mais realistas7 dos espaços e ambientes, o tripé formado pelo diretor, diretor de arte e diretor de fotografia, utiliza diversos recursos para envolver os espectadores em seus filmes. Pensando nisso, cores e iluminação são usadas para evocar determinadas sensações e emoções, os posicionamentos de móveis e objetos podem enfatizar temas a serem explorados na narrativa, os figurinos e maquiagens dos personagens mostram suas características individuais de maneira visual, e a escolha de enquadramentos e técnicas de filmagem tem a capacidade causar

O uso do termo “realista” refere-se ao conceito de Aumont (1993, p. 105), mais profundamente explicado na Cena 1, Ato 03 do presente trabalho, referindo-se a um “conjunto de regras sociais, com vistas a gerir a relação entre a representação e o real de modo satisfatório para a sociedade que formula essas regras”. 7


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a imersão do público no filme e de moldar sua percepção. Finalmente, segundo Leão (2010, p. 11 apud MAIA, 2017, n.p), a situação atual da Direção de Arte consiste em três pilares para o uso da tecnologia na construção de espaços cênicos: a evolução das técnicas de efeitos especiais para o cinema, e mais tarde para televisão; a possibilidade de pré figuração do espaço construído através de softwares de modelagem 3D; e, por fim, a possibilidade de se gerarem ambientes e personagens em tempo-real. Com isso, nota-se que a situação contemporânea da Direção de Arte só é possível graças ao desenvolvimento gradual de novas técnicas e tecnologias, além da valorização da percepção do espectador para a montagem, algo que se torna imprescindível para a execução de boas encenações na atualidade.

Cena 5 | A Direção de Arte brasileira Para além do panorama geral da Cenografia e Direção de Arte, porém, é preciso entender ainda algumas características dessas disciplinas que são mais específicas no Brasil. A Direção de Arte teatral do país, por exemplo, passou a ser mais desenvolvida apenas a partir de meados do século XX e, para isso, alguns grupos e companhias de teatro foram essenciais nas inovações trazidas em suas encenações. Isso pode ser percebido, segundo Bouillet (2017), no envolvimento de Clóvis Bueno na Direção de Arte dos grupos Teatro de Arena (fundado em 1953 e responsável por montagens de cunho político-social de adaptações nacionais principalmente durante a década de 1960) e Teatro Oficina (fundado em 1958; famoso por suas encenações críticas e investigativas). Apesar das intensas atividades teatrais, porém, Santos Neto (2019) mostra como a profissão de Diretor de Arte só ganha seu primeiro crédito no cinema brasileiro alguns anos depois, no filme de Nelson Pereira dos Santos, El Justicero (1967), só chegando a realmente se consolidar no país a partir da década de 1980,


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mais precisamente, conforme explica Butruce (2017), com os créditos de Clóvis Bueno para o filme O Beijo da Mulher Aranha (1985), dirigido por Hector Babenco. Só a partir de então, com o uso cada vez mais frequente dessa função no cinema, que as produções nacionais passaram a ganhar destaque internacional, já que o próprio O Beijo da Mulher Aranha foi indicado à diversas categorias de Oscar, Cannes e Bafta. Além disso, nomes como Flávio Império, Anísio Medeiros, Luis Carlos Ripper e Régis Monteiro passaram a assumir essa função de Diretor de Arte em suas produções. Outro fator que serviu como “medida” para o desenvolvimento da Direção de Arte brasileira foi o envolvimento cada vez maior de arquitetos nos projetos das encenações além dos edifícios teatrais. Maia (2017) cita Lina Bo Bardi no projeto das plateias laterais do Teatro Oficina mas também de montagens da companhia e menciona ainda Oscar Niemeyer e José Liberal de Castro como arquitetos que passaram a participar no meio teatral, além de Flávio Império e J. C. Serroni, por exemplo. No entanto, um dos aspectos mais importantes que envolvem a Cenografia e a Direção de Arte brasileiras é “a falta de organismos estruturados, instituições específicas de ensino voltadas para essa atual demanda” (MAGNAVITA, [200-?], n.p). Ou seja, não existem cursos que lidam especificamente com o ensino de projetos cênicos de maneira profissionalizante como é o caso de outras profissões relacionadas à produção teatral e cinematográfica. Essa ausência de ensinamentos claros sobre arquitetura cênica, somados à dificuldades de ordem financeira, falta instrumental e incentivos básicos, a que se refere Ratto (1999), levam a uma execução de cenários de uma forma “improvisada”, utilizando-se o que se tem à mão, sem muitos recursos ou investimentos, e que é nomeada por Rocha (2018) como “estética da gambiarra”. Segundo a autora, o termo se refere a um objeto utilitário improvisado, podendo ser entendido como uma forma alternativa de design. Ainda de acordo com Rocha (2018, p. 62):


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Os recursos ‘gambiarrísticos’ vem se mostrando como alternativas interessantes para o diretor e o departamento de arte transpor ideias de forma poética, criativa e funcional, num contexto de parcos orçamentos, equipe reduzida, tempo apertado. Se configurando ainda como uma forma consciente de evidenciar uma estética do artifício.

Por meio dessas observações, percebe-se que as limitações (orçamentárias) impostas pelo contexto da produção teatral e audiovisual brasileira inspiraram uma nova demanda aos cenógrafos e diretores de arte ao adotarem soluções criativas em seus projetos. Ainda, por conta dessa característica de “gambiarra8”, o storyboard9, é, segundo Medeiros (2008), um processo muito útil na criação de cenários pouco usado no Brasil, apesar de muito adotado em produções estrangeiras. Isso porque, por vezes, pode engessar as encenações ao retratar a Direção de Arte de maneira extremamente detalhada. Portanto, mesmo não sendo necessariamente uma escolha dos cenógrafos e diretores de arte, a arquitetura cênica brasileira adquiriu, por meio de suas limitações, uma linguagem admirada

8 Tais princípios estéticos são debatidos e entendidos de maneiras análogas por diferentes autores. Ao descrever e caracterizar o campo de atuação de Flávio Império na Direção de Arte, artes plásticas e arquitetura (em que trabalhou junto com os arquitetos Rodrigo Lefèvre e Sérgio Ferro), a autora Koury, refere-se a esse conjunto de princípios estéticos baseados na invenção e criatividade utilizando parcos recursos, de “estática miserabilista” ou “miserabilismo”. Em sua dissertação de mestrado, Koury caracteriza esta estética nomeando-a de miserabilismo (ou estética miserabilista), in KOURY, Ana Paula. Grupo Arquitetura Nova, dissertação de mestrado, São Carlos, EESC - USP, 1999, p. 110 a 114. A “estética miserabilista” representa uma tomada de posição comum a alguns movimentos ocorridos na mesma época tais como no Cinema Novo, na Pintura Nova e na Arquitetura Nova. 9 Termo em inglês também conhecido como “esboço sequencial” que se refere à organizadores gráficos tais como uma série de ilustrações ou imagens arranjadas em sequência, desenhos quadro a quadro de um espetáculo, com o propósito de pré-visualizar a produção. A criação do storyboard é atribuída a um dos primeiros cineastas, o francês Georges Méliès (1861-1938); porém o processo de storyboarding no formato em que é conhecido atualmente foi desenvolvido por Webb Smith do Walt Disney Studios durante o começo da década de 1930.


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no mundo todo. Sua inventividade foi reconhecida, por exemplo, na maior premiação de arquitetura cênica do mundo, a Quadrienal de Praga. O Brasil foi premiado em 1995 e 2011 com a Triga de Ouro, o maior prêmio da competição, entregue à melhor exposição. Outras premiações já recebidas incluem: melhor design de palco, melhor figurino, melhor realização de uma produção, melhor trabalho de arquitetura de teatro, melhor utilização de tecnologia teatral, melhor exposição de estudantes, talento promissor, melhor conceito de curadoria, para citar algumas. Com isso, percebe-se a riqueza de nossa produção de Direção de Arte, apesar da falta de estímulos financeiros, ou talvez, justamente em razão dela.




ATO 03 - DIA DE ESTREIA Buscando entender a capacidade que a Direção de Arte tem de traduzir temáticas complexas presentes em peças para a forma de elementos visuais e espaciais de uma encenação, foi desenvolvido um estudo comparativo entre três montagens de Hamlet, talvez a peça mais famosa da literatura e do teatro ocidentais. Com isso, pretende-se analisar como as escolhas do diretor de arte em cada encenação são determinantes para, ora enfatizar, ora amenizar determinados temas presentes no texto original de Shakespeare, direcionando a percepção que o espectador tem das temáticas apresentadas.


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Cena 1 | Comunicação, Percepção e a Arte da Mentira De acordo com um dos primeiros autores da literatura brasileira, José de Anchieta (apud. SERRONI, 2013, p. 30), a Cenografia é a “a arte da mentira”. Ao pensarmos a respeito dos desdobramentos que essa simples afirmação nos traz, podemos levantar diversos questionamentos a respeito dos níveis de realidade com que a representação de uma encenação é percebida pelo espectador, por meio da Direção de Arte. Já foi mencionado como essa disciplina tem a capacidade de traduzir elementos de uma peça ou roteiro para a forma de linguagem visual e espacial de uma encenação, e agora é possível iniciar uma análise mais aprofundada de como se dá esse processo nos casos específicos que foram estudados. Durante uma encenação, seja ela no teatro ou no cinema, as temáticas abordadas pela história tem como destinação final a percepção que o espectador terá da obra. Com isso em mente, nota-se como uma montagem de um espetáculo é constituída por elementos de comunicação verbal, tais quais, roteiro, narrativa e diálogos, e de comunicação não-verbal, composta pelos conteúdos sonoros e visuais, cabendo ao diretor de arte o projeto desta última esfera. Dentro desses conteúdos visuais de uma montagem, existem componentes que dizem respeito ao tempo e aqueles que são referentes ao espaço. Quanto à questão do tempo representado em uma narrativa, no teatro aparece no próprio desenrolar da encenação. Ao passo que no cinema, este está diretamente ligado à edição, ou seja, à sequencialização de blocos temporais. Essa capacidade de “colagem temporal” será abordada com mais detalhes adiante, quando compararmos os diferentes dispositivos (ou meios) de transmissão de narrativas que são o teatro e o cinema. Já os elementos espaciais, esses sim se relacionam diretamente com Direção de Arte e abarcam o cenário, a luz, os figurinos, maquiagens, props e efeitos que constituem uma encenação. (Ver figura 14). Cabe esclarecer que, apesar dessa divisão entre os


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componentes de uma montagem, os trabalhos dos profissionais dessas diversas áreas se sobrepõem e se misturam, exigindo uma comunicação intensa entre eles.

Encenação

Elementos Não Verbais

Elementos Verbais

Elementos Sonoros

Elementos Visuais

Espaço

Tempo

Figura 14 | esquema dos componentes de uma encenação, sendo o Espaço o que se liga mais diretamente à Direção de Arte.

Quanto maior a quantidade de detalhes dedicados a esses componentes visuais, mais bem construído se torna esse mundo fictício criado. Logo, bom projeto e planejamento de uso de cores, efeitos, texturas e adereços cênicos faz com que a caracterização de uma montagem se torne mais complexa, mais carregada de significados. Isso não quer dizer, no entanto, que quanto maior a quantidade de elementos de uma Direção de Arte, melhor a qualidade de uma encenação, afinal de contas, uma montagem menos detalhada pode simplesmente ser uma escolha consciente de transmitir a mensagem do enredo dando maior ênfase aos aspectos verbais da mesma. Sobre isso, em um dos princípios cenográficos concebidos por Serroni (2013), intitulado “Cenografia não é Shopping Center”, o autor afirma que: O valor da cenografia não está certamente na quantidade de efeitos ou de elementos no palco (...) O espaço do palco pode ser cenografia, a luz pode ser cenografia, um efeito sonoro pode ser cenografia, a movimentação de atores no


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palco pode ser cenografia. Interessa que essas formas tenham conteúdo, significados, que criem espaço dramático. (SERRONI, 2013, p. 28)

Assim, verifica-se que todas as escolhas feitas pelo Diretor de Arte têm o intuito de transmitir uma mensagem, ou, conforme expressa Garcia (2011), “o espaço cênico tem uma função comunicativa” a ser recebida e interpretada pelo seu espectador. Por isso, todos os elementos que constituem uma encenação estão ali presentes para fabricar atmosferas que, ainda que sejam de uso dos atores em cena, estão voltadas para a percepção do público. Quando um encenador se importa com os detalhes, ela passa a ter um diferencial em relação à cenários meramente decorativos, e montagem adquire então uma espécie de estalo, algo que seria equivalente ao que Barthes (1980) chama de punctum ao discorrer sobre Fotografia. Ou seja, uma boa representação em um espetáculo traz ao seu público uma satisfação produzida por essa “imagem”, nesse caso formada por elementos cênicos, na qual o espectador “não somente acredita na sua realidade mas tem uma verdadeira revelação sobre o objeto representado”. (BARTHES, 1980, p. 45, apud AUMONT, 1993, p.127). Convém pontuar aqui, porém, que o termo “realidade” utilizado por Aumont (1993) é referente ao que se costuma chamar de abordagem realista em uma encenação. Assim, é fundamental não haver equívoco sobre o que significa esse realismo, e não confundi-lo com o que o autor chama de ilusão e de representação. Portanto, ainda segundo Aumont (1993, p. 105), A representação é o fenômeno mais geral, o que permite ao espectador ver ‘por delegação’ uma realidade ausente, que lhe é oferecida sob a forma de um substituto. A ilusão é o fenômeno perceptivo e psicológico, o qual (...) em determinadas condições psicológicas e culturais (...) é provocado pela representação. O realismo é um conjunto de regras sociais, com vistas a gerir a relação entre a representação e o real de modo satisfatório para a sociedade que formula essas regras.


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Logo, aplicando tais conceitos na Direção de Arte, a representação é a escolha de elementos que compõem uma determinada encenação, a qual permite ao espectador ter uma visão da chamada “realidade ausente”, ou seja, do espaço cênico. Essas escolhas são capazes de ditar o tom de uma montagem ao criar a ambiência na qual a ação dramática irá se passar. Tal montagem, por sua vez, é capaz de criar uma ilusão no espectador que a percebe, na medida em que ele, ainda que tenha consciência de que o espetáculo não passa de uma representação (ilusória) do mundo real, se deixa enganar por essa “arte da mentira” e aprecia a encenação como se os eventos que nela são retratados acontecessem (realmente) no seu espaço de espectador. Por fim, quando as escolhas feitas pelo diretor de arte se assemelham à “norma representativa em vigor” (AUMONT, 1993, p. 209) de uma determinada conjuntura social, histórica e cultural, tal representação tem uma linguagem visual chamada de realista, ou seja, ela segue uma tendência estilística que se parece com o espaço real de acordo com a percepção de um público inserido em um contexto específico. Logo, a percepção de qualquer tipo de representação depende de alguns fatores, visto que ela é a relação entre o homem e o mundo que o cerca (AUMONT, 1993, p. 17). Primeiramente, há o ponto de vista do diretor de arte, do modo particular como ele considera as questões presentes na peça ou no roteiro e traduz para o seu projeto cênico. Além disso, há, conforme percebemos pela relatividade do significado do termo “realismo”, o contexto em que a encenação se insere. Conforme discute é discutido no documentário Ways of Seeing (1972), tudo ao redor da imagem faz parte da construção de seu significado, e por isso, as regras sociais e culturais de onde montagem é mostrada (e vista), somadas às crenças, ideologias, conhecimentos e recursos disponíveis naquele local contribuem para a forma como uma encenação pode ser percebida. Em terceiro lugar, a percepção depende muito do espectador que a observa, o qual “tem uma capacidade de intuição que lhe


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permite ir além da visualidade proposta pelo espetáculo que está sendo apresentado” (RATTO, 1999, p.24). Afinal de contas, a vivência, ou o repertório do espectador influencia a maneira como ele irá perceber as informações passadas na montagem e, por isso, o sujeito que olha uma imagem pode ser considerado um parceiro ativo da imagem, de forma emocional e cognitiva (AUMONT, 1993, p. 77). É por ter consciência da habilidade projetiva na interpretação de um espectador que o diretor de arte se utiliza de diversas ferramentas para instigar interpretações específicas em seu público e influenciar a sua percepção. Isso porque alguns elementos são comumente usados em diversas encenações para simbolizar a mesma coisa: é o caso de alguns clichês como chuva durante uma cena triste para enfatizar esse sentimento, ou, em oposição, um belo dia de sol para retratar (enfatizar) alegria. Também é o que acontece com o uso de cores nas montagens teatrais ou cinematográficas, seja na luz, no cenário, em props ou em figurinos, pois esta é uma ferramenta poderosa para mexer com as emoções do espectador. Por isso algumas cores tem interpretações comumente difundidas (principalmente em representações ocidentais), sendo um signo de fácil apreensão para o público: vermelho tende a representar fogo, inferno, poder, sexualidade, amor, paixão, violência; amarelo costuma retratar riqueza e abundância ou doença e insalubridade; azul simboliza água, frio, estado de espírito remoto; branco gera uma sensação de pureza, espiritualidade e paz; preto é usado para retratar mistério, obscuridade e morte. Cores quentes no geral representam ternura e humanidade e cores frias simbolizam sentimentos austeros, distanciados, e isso para citar alguns dos exemplos mais comuns. No entanto, um bom diretor de arte sabe quando utilizar esses recursos já conhecidos pelo espectador e quando subverter esses mesmo significados re-produzidos por séculos de Direção de Arte e criar novos significados. Este uso inventivo das ferramentas que estão à disposição é capaz de agregar valor a uma encenação, inclusive quando são gerados em função da limitação de


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recursos para a execução da montagem, como em alguns casos reconhecidamente premiados da encenação nacional. Com isso é possível perceber que o trabalho da Direção de Arte é a utilização de quaisquer meios visuais e espaciais necessários que levem à construção de um espaço que seja capaz de fazer com que o espectador “se isole na obra, pense sobre ela e dentro dela, com a lógica própria apresentada”. (CASARIN, 2008. p. 5) Finalmente, tendo em vista a relevância de quem planeja e projeta a encenação, do contexto em que ela é recebida e da importância que o espectador têm na interpretação da mesma, cabe agora discutir a última influência exercida na percepção do sujeito observador. Por isso, a seguir serão analisadas como as ferramentas à disposição do cinema e do teatro são capazes de, usando de diferentes recursos, interferir na percepção do público.

Cena 2 | O Teatro e o Cinema Apesar de possuírem diversos elementos em comum nos seus espaços cênicos (tais quais cenários, figurinos, maquiagem, cores, texturas, adereços cênicos e luz), teatro e cinema são meios diferentes para veiculação de encenações, um fator que altera a percepção que o público possui da mensagem10 transmitida pela Direção de Arte. Portanto, ainda que as duas partilhem a capacidade de traduzir a linguagem do texto teatral ou roteiro oferecido (linguagem verbal), para a forma de signos visuais (linguagem não-verbal), há diferenças nos processos e procedimentos a serem adotados pelo diretor de arte, os quais dependem desse dispositivo.

Como já dizia sabiamente Marshall McLuhan, “O meio é a mensagem”, uma vez que diferentes naturezas de transmissão da mesma mensagem (ou informação) alteram estruturalmente os sentidos e significados que a mesma pode adquirir. 10


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O conceito de dispositivo, de acordo com Aumont (1993, p. 188), é o veículo que “regula a relação do espectador com a obra”. Isso significa que, no momento de se conceber um projeto cênico, é essencial que a Direção de Arte considere se o meio de transmissão (também chamado de veículo ou contato por McLuhan) se trata do teatro ou do cinema. Dessa forma, o diretor de arte pode fazer uso das melhores ferramentas disponíveis para cada tipo de dispositivo, entendendo as características, qualidades e limitações de cada um deles. Feitas essas considerações, a seguir são abordadas três diferenças entre teatro e cinema que influenciam na concepção de uma encenação: a escala em que é concebida; o uso de elementos metafóricos e os recursos da reprodução. Logo, primeiramente, é possível notar como o teatro possui montagens que levam em conta o fator inerente a esse meio: a experiência ao vivo. Tendo isso em vista, tais encenações são concebidas para serem usufruídas presencialmente e em uma escala destinada ao olhar do espectador, já que o público acompanha a cena focando e direcionando o seu olhar para setores e personagens que lhe despertem maior interesse. Por isso, nas montagens teatrais, elementos como estampas de figurinos, texturas e tamanhos dos objetos devem ser maiores do que aqueles do espaço real, de forma a serem percebidos até mesmo pelo espectador mais distante de onde se passa a ação teatral. Partindo do mesmo princípio, a maquiagem deve ser mais forte e marcada no rosto dos atores, aproveitando o recurso dramático que é a incidência de luz sobre eles. Em contraposição ao teatro, porém, o cinema se utiliza da escala da câmera, já que seu foco e enquadramento orientam fortemente o olhar do espectador. Isso se dá pela capacidade desse veículo de selecionar o que será registrado e o que ficará fora desse campo visual, fazendo o espectador enxergar de um modo particular qualquer imagem mostrada. Dessa maneira, a câmera é capaz de moldar o ponto de vista das imagens mostradas, influenciando a interpretação do espectador a respeito de uma cena ou persona-


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gem, como será analisado no Ato 03: Dia de Estreia. Além disso, um outro fator que influencia a percepção de quem assiste a um filme é o local em que ele é exibido, em geral escurecido, como as salas de cinema. Assim, conforme nos explica Benjamin (1955, p. 10), enquanto no teatro o desempenho do ator é apresentado ao espectador pelo próprio ator, no cinema, as lentes das câmeras (somadas ao operador de câmera, diretor e demais profissionais envolvidos) são fatores que influenciam na experiência do público. Em segundo lugar, nas encenações teatrais há uma recorrência do uso de recursos e elementos metafóricos, especialmente no Brasil. A adoção dessa figura de linguagem, estimula aqueles que assistem ao espetáculo a completarem (através da imaginação) os conteúdos e significados que o diretor de arte quer transmitir. É possível notar, portanto, que instigar a participação ativa do espectador é algo muito mais possível nas concepções cênicas voltadas para o teatro. Enquanto isso, no cinema a abordagem mais comum costuma representar seus elementos visuais de maneira mais “pronta e acabada”, seguindo uma linguagem realista e entregando ao público composições de entendimento mais imediato. Para isso, por diversas vezes, há uso de locações que aparentem ser o mais fieis quanto possível ao que é indicado no roteiro, como espaços externos ou edifícios históricos. Por último, observa-se como as encenações teatrais não são passíveis de reprodução. Ou seja, apesar de uma montagem poder ser registrada por meio de câmeras, e ser remontada diversas vezes em diferentes locais de apresentação, é impossível imitar a experiência ao vivo do teatro, o que afeta muito a percepção que se tem da mesma. Nesse sentido, na produção teatral, assim como na visita a um edifício arquitetônico ímpar ou exemplar, a experiência é impossível de ser reproduzida ou repetida exatamente da mesma forma: pode até ganhar diferentes configurações de caráter artístico ao ser encenada em diferentes lugares, mas em cada um deles a apresentação terá uma experiência única e diferenciada.


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Refletindo sobre essa relação da unicidade (aura) e a comparando com o caráter da obra de arte na época de sua reprodução em escala industrial, Walter Benjamin vai comparar a arte do teatro ao cinema, nos seguintes termos, (1955, p. 10) A aura está ligada ao aqui e agora. Dela não existe cópia. A aura que se manifesta em torno de um Macbeth pode ser separada da que, para um público ao vivo, rodeia o ator que representa aquele personagem. A especificidade do registro em estúdio cinematográfico reside no fato de colocar o equipamento no lugar do público.

Com isso, o autor considera que as obras de arte que são experienciadas ao vivo possuem um diferencial, uma aura. Isso não quer dizer, no entanto, que as imagens, produzidas e impressas em escala industrial, sejam elas estáticas ou em movimento, devem ser desvalorizadas. Nesse caso, seu caráter artístico permanece presente, ele apenas adquire outras conotações e especificidades. É o que se percebe pelo uso do recurso da edição no cinema, possível graças a sua reprodutibilidade. Segundo Aumont (1993, p. 170) a edição “fabrica um tempo perfeitamente artificial, sintético, que relaciona blocos de tempo não-contíguos na realidade.” Por isso, o autor considera que essa espécie de manipulação do tempo é o que torna o cinema uma representação com ilusão ainda maior que o teatro para o espectador que o percebe. Esse tempo fílmico não contém os acontecimentos da narrativa, mas é formado por eles, retrabalhado no sentido da expressividade, sendo capaz de obter essa ilusão temporal convincente por meio da fusão de imagens, aceleração e outros recursos. Portanto, independentemente da natureza própria de cada dispositivo, percebe-se que essas particularidades podem ser usadas a favor da mensagem que o diretor de arte deseja passar na encenação. Com isso em mente, a seguir veremos como a Direção de Arte atua na percepção do espectador por meio do estudo


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de três montagens diferentes de Hamlet, buscando analisar a escolhas visuais de cada encenação de acordo com o dispositivo em que cada uma é transmitida. Cena 3 | As temáticas de Hamlet em suas encenações Como já dito anteriormente, Hamlet é uma das peças mais importantes da literatura mundial, capaz de emocionar o público com suas temáticas universais mesmo séculos depois de sua primeira publicação. Pensando nisso, foram escolhidas três encenações contemporâneas para uma análise comparada de como esses temas são trabalhados (os quais estão listados cena a cena no Anexo 02 deste caderno), buscando encontrar quais elementos de Direção de Arte elas possuem em comum e quais demonstram as diferentes abordagens escolhidas para cada uma delas. As montagens selecionadas são diferenciadas pelo contexto cultural, social e geográfico em que foram produzidas, além de possuírem características diferentes quanto ao dispositivo em que elas estão sendo veiculadas e difundidas. Todos esses fatores contribuem para que a caracterização cênica de cada uma tenha diferentes abordagens e desdobramentos, as quais serão analisadas a seguir. Sendo assim, a primeira encenação escolhida é a adaptação cinematográfica de 1996 dirigida e protagonizada por Kenneth Branagh, conhecido por ser um dos mais importantes intérpretes de Shakespeare da atualidade. Branagh tem formação pela clássica Royal Academy of Dramatic Art, de Londres, e já dirigiu e atuou em filmes shakespearianos como Henrique V (1989), Muito Barulho por Nada (1993) e Como Você Quiser (2006), No caso de Hamlet (1996), comanda a única montagem deste texto feita para o cinema que preserva integralmente todas as falas escritas por Shakespeare, alcançando uma duração de quatro horas. A segunda encenação selecionada trata-se de uma montagem teatral filmada, feita em 2013 pelo BLC Theatre (o departamento de teatro da Bethany Lutheran College, dos Estados Unidos).


Figura 15 | primeira cena no salão de cerimônias do filme de Kenneth Branagh (1996).

Figura 16 | cena de apresentação inicial dos personagens da montagem teatral filmada do BLC Theatre (2013).


Figura 17 | cena da encenação teatral da Armazém CIA de Teatro (2017).


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Esse grupo é conhecido por encenar diversos clássicos teatrais tais quais A Christmas Carol (2014), Oklahoma! (2018), além de The Tempest (2012), esta última sendo baseada no texto teatral A Tempestade, de Shakespeare. Quanto à montagem de Hamlet em questão, esta ocorreu no teatro da universidade, mas além de ter sido elaborada para atender ao público presente durante a encenação, ela também foi pensada tendo em mente o público que iria assisti-la por meio do vídeo captado pelas câmeras posicionadas no local. (Ver Anexo 01 deste caderno) Por fim, a terceira encenação escolhida é da Armazém CIA de Teatro, um dos grupos brasileiros mais prestigiados da atualidade. Apresentada em 2017 em uma turnê pelo Brasil e reapresentada em 2019 em uma pequena turnê na China, essa versão de Hamlet foi feita em comemoração aos 30 anos da Companhia, que é conhecida por suas interpretações inovadoras e Direção de Arte inventiva, como é possível perceber nas montagens de Alice Através do Espelho (1999), A Marca d’Água (2012), O Dia em que Sam Morreu (2014), entre outras. No caso de Hamlet, a caracterização visual e espacial é marcada pelo uso de recursos que são recorrentes à Companhia, como projeções, planos de vidro e iluminação com cores fortes. (Ver figuras 15, 16 e 17) Assim que as encenações foram definidas, iniciou-se um trabalho meticuloso de decupagem (como pode ser conferido no Anexo 02 deste caderno) de todas as cenas presentes em cada uma delas, de forma a comparar sua Direção de Arte com os elementos cênicos que o texto original de Hamlet sugere, assim como com as temáticas por ele trabalhadas em cada cena. No caso do filme e da encenação filmada, foi possível analisar na íntegra todos esses componentes, enquanto que no caso da montagem teatral nossa análise se baseou em fotografias, entrevistas e pequenos vídeos feitos para divulgação. Interessante notar que, mesmo que dispuséssemos de material mais completo sobre a produção em questão, a análise nunca seria completa sem a experiência de se assistir ao vivo a encenação no teatro. A análise começa então com os chamados Elementos Gerais, os


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quais registram resumidamente os acontecimentos de cada cena, bem como a página em que ela se inicia (no caso do texto teatral) ou o minuto em que acontece (no caso do filme e da encenação filmada). O segundo tópico estudado, intitulado de Elementos da História, compilou as principais temáticas das cenas, relacionando aspectos sociais, históricos, políticos e psicológicos das mesmas. Além disso, registrou qualquer mudança na narrativa que a adaptação fez em relação à história do texto teatral original. Finalmente, após feitas essas anotações, puderam ser relacionados os Elementos da Direção de Arte, divididos em: locação, cenário, personagens, maquiagem, figurino, props, luz, figuração, efeitos e câmera, além de análises sobre os sons e músicas (no caso do filme e da encenação filmada) que poderiam ser relevantes para os elementos visuais e espaciais definidos para a montagem. Partindo dessa organização, foi possível constatar que a narrativa de todas as montagens se encaixa na forma clássica do design de cinco partes, cunhado pelo escritor Mckee (2006) em seu livro Story. Seguindo essa divisão estabelecida por Mckee (2006), nota-se que tanto o texto original quanto as encenações iniciam-se numa situação de Equilíbrio, a qual é quebrada pelo chamado Incidente Incitante, um acontecimento que desarranja radicalmente a estabilidade da vida do protagonista. No caso da história de Hamlet, a revelação do Fantasma de que foi assassinado faz com que seu filho reaja com um plano de vingança, na busca de que o equilíbrio inicial de sua vida seja restaurado. Todas essas reações e suas consequências são as chamadas Complicações Progressivas, eventos que ao poucos elevam a tensão da narrativa, até chegarem em um momento de Crise, uma decisão final tomada pelo protagonista, que gera o Clímax da história. Novamente aplicando os termos à história de Hamlet, a decisão do protagonista de enfim executar sua vingança contra seu tio Cláudio é imediatamente seguida do momento de clímax que é a luta travada com Laertes. Por fim, após esse duelo, há a Resolução, o desfecho da história,


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com o estabelecimento de um novo equilíbrio, atingido nesse caso por meio do domínio da Dinamarca por Fortinbrás, o príncipe da Noruega (ver lista de personagens de Hamlet ao final deste caderno). Tendo em vista essa estrutura de progressão dos eventos da narrativa, com um aumento constante de tensão que chega ao ápice na morte de vários personagens, é possível estabelecer um primeiro condicionante que a Direção de Arte pode levar em consideração: a clara tragédia que é a história de Hamlet. Com um tom sombrio, a jornada do protagonista se trata de uma busca por vingança, num processo que o isola cada vez mais daqueles ao seu redor, faz com que ele se questione constantemente a respeito das reais intenções daqueles que o cercam e inclusive contemple o suicídio naquele que talvez seja o monólogo mais famoso da literatura ocidental, “Ser ou Não Ser”. Levando esse fator em conta, o filme de Branagh opta por encenar Hamlet no período da Era Vitoriana, século XVIII. O castelo em que se passam os acontecimentos da história tem seu exterior filmado na locação real do palácio de Blenheim, porém todo seu interior foi construído em estúdio. Rapidamente, é passado para o espectador o estilo de vida luxuoso e glamouroso da corte, por meio de seu grande salão principal ornamentado por balaústres, castiçais dourados, tapetes de veludo vermelho e o elemento que mais se destaca na Cenografia no filme: os espelhos. Segundo o próprio diretor, além de trazer a sensação de que o salão é ainda maior do que parece, a escolha dos espelhos representa a vaidade da corte, a qual está sempre sendo observada, seja pelos outros, seja por ela mesma. Ou seja, através de uma aparência de claridade, pelo uso em grande quantidade do branco na paleta de cores do filme (tanto no interior do castelo, quanto no exterior, repleto de neve), o mundo aparentemente perfeito da realeza se vê permeado de intrigas, golpes, traições e assassinatos, mostrando que, para citar a fala do personagem de Marcelo na peça, “há algo de podre no reino da Dinamarca”. (Ver figura 18)


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Segundo o escritor e autor, Samuel Crowl (1996), a adaptação realizada por Branagh se trata de um “filme noir11 com luzes acesas”. Com essa fala, Crowl mostra como a história de Hamlet, repleta de temáticas de suspense e tons sombrios, foi encenada no filme em questão com uma abordagem com a mesma entonação de um filme noir, mas exclusivamente se enfatizando os tons claros e amplos. O uso de muitas luzes, branco, figurinos formados por vestidos chamativos e uniformes militares, além de vários elementos luxuosos e exuberantes na caracterização cênica do filme tem, portanto, a função de reforçar que a realidade da corte é formada pelas aparências. A encenação filmada do BLC Theatre, por sua vez, escolhe uma ambientação e caracterização dos anos de 1920. Ao fundo do palco, o uso de grandes colunas na frente de vitrais (que são iluminados pela parte de trás) serve para passar a mesma impressão de suntuosidade e imponência da corte, assim como no filme de Branagh. Nesse caso porém, a grandiosidade é transmitida apenas por esses elementos cenográficos específicos, visto que figurino e mobiliário típicos da época (1920) são simples e não denotam o mesmo luxo explícito que a adaptação cinematográfica de 1996. (Ver figura 19) Para transmitir as principais emoções e temáticas de cada cena de forma que sua abordagem não fique tão simples, a montagem constrói um palco com uma estrutura metálica aparente que sustenta planos inclinados que simulam caixilhos envidraçados com vidros foscos, cujas cores vão sendo alteradas por luzes difusas durante todo o espetáculo, variando entre vermelho, branco e azul, conforme o tom emocional da cena. Lembrando que a maior parte do espetáculo, as luzes na frente de palco, são 11 Segundo Mascarello (2006), a expressão noir foi cunhada em 1946 pelo crítico francês Nino Frank para se referir a um tipo de longa-metragem de suspense que estava em voga nos anos 1940 (e que durou até cerca de 1950). Com ambientação urbana, temática criminal e anti-heróis, esses filmes possuíam uma estética de alto contraste entre claro e escuro, e contavam histórias sombrias de suspense no ambiente opressor das cidades.


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claras e amplas, iluminando o todo, mas esse “fundo de palco” sempre acaba caracterizando e fomentando a entonação de cada cena. Além disso, buscando promover maior dinamicidade dos locais e espaços destinados à encenação, o BLC Theatre utiliza duas sacadas nas laterais do palco para variar os ambientes em que as cenas ocorrem, bem como o espaço dos assentos do espectador, soluções usadas para envolvê-lo mais na trama e desconstruir um pouco a relação de frontalidade causada pela configuração de palco italiano do teatro em que ocorre o espetáculo. Nesse caso, percebe-se que a encenação privilegia seu aspecto verbal e as atuações dos intérpretes, uma vez que os elementos cênicos escolhidos descolam-se e libertam-se das temáticas mais específicas da peça, como é o caso do filme de Branagh e seu foco na vaidade da corte. Ou ainda, como acontece no tom lúgubre e melancólico adotado pela montagem da Armazém CIA de Teatro. Nessa última encenação teatral, ainda que não seja possível analisá-la na íntegra, percebe-se como o cenário é escuro, preto do piso ao teto. O figurino dos personagens também reforça esse tom sombrio, com uma paleta que varia entre preto, cinza, azul escuro e vinho. Além disso, as luzes do espetáculo são de dois tipos predominantes: focos brancos nos atores, o que dá ainda mais impressão da escuridão do restante do ambiente; ou luz geral em tons escuros de vermelho, azul ou amarelo, que nunca clareiam o espaço como um todo. (Ver figura 20) Assim, a abordagem da encenação da Armazém se utiliza de caracterização contemporânea (com uso da projeção da imagem do Fantasma em um plano de caixilharia metálica, que inclusive, tem um sistema de movimentação, que o faz ser suspendido ou baixado, conforme a necessidade cênica). A montagem brasileira utiliza ainda elementos de figurino que remetem ao período elisabetano em que a peça foi escrita (tais quais o rufo elisabetano do vestido de Ofélia e a armadura que Hamlet veste). Assim, fica claro o tom obscuro que a Direção de Arte quer passar, bem como a concepção do diretor e também cenógrafo


Figura 18 | Hamlet no salão cerimônias do filme de Kenneth Branagh (1996).

Figura 19 | Hamlet em um monólogo na encenação do BLC Theatre (2013).


Figura 20 | Hamlet no salão cerimônias do filme de Kenneth Branagh (1996).

Paleta do filme de Branagh

Paleta do BLC Theatre

Paleta do Armazém

Figura 21 | Paletas de cor das montagens selecionadas.


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Paulo de Morais, de que ao adaptar uma peça tão relevante não se pode ser muito reverente. Segundo sua entrevista para o programa Agenda, em 2017, é preciso um posicionamento crítico muito claro sobre o texto em questão, nesse caso, expresso em uma encenação de Hamlet que é importante para o nosso tempo e para o “contexto tenebroso” do nosso país. (Ver figura 21) Partiremos agora para a análise de algumas cenas específicas da peça. É possível notar de forma ainda mais evidente como as escolhas de determinados elementos cênicos reforçam o tom geral que cada encenação estabeleceu. Logo nas duas primeiras cenas, em situação inicial de Equilíbrio, o texto teatral apresenta seus principais personagens e indica um mau presságio, um “augúrio de uma estranha comoção em nosso Estado”, como é dito por Horácio assim que avista o Fantasma do falecido rei da Dinamarca. Essas cenas também já estabelecem a diferença entre condições de vida da realeza e dos súditos, a relação política com a Noruega, além do contraste entre o luto de Hamlet pela morte do pai e a celebração de Gertrudes e Cláudio por seu novo casamento. Assim sendo, a aparição do Fantasma deve ser cercada por um aspecto sobrenatural, que causa espanto e temor naqueles que a presenciam. Para isso, a encenação do BLC Theatre e do filme de Branagh optam por um elemento em comum: a luz azul. Em ambos o casos, o uso dessa cor fria reforça os sentimentos de melancolia e isolamento transmitidos pelo espectro do falecido rei, além da sensação física do frio literal que Shakespeare descreve durante tais aparições. (Ver figuras 22 e 23) Na encenação teatral filmada, o azul é intensificado pelos holofotes superiores, que possuem um efeito semelhante à reflexos na água, acentuando a atmosfera misteriosa da cena. Enquanto isso, o filme faz uso de fumaça para propagar a luz azulada, recurso que, somado à angulação de câmera chamada de contra-plongée (focalizando de baixo para cima), dá um ar de grandiosidade assustadora para a figura do antigo rei. No caso da encenação da Armazém, a projeção é escolhida para enfatizar o evento sobrenatural, fantasmagó-


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rico, virtual e fugaz que ocorre na cena, diferenciando a aparição sobrenatural dos demais personagens presentes no palco. Além disso, o aspecto de grandiosidade da figura do antigo rei é atingido graças à proporção da imagem em relação ao tamanho do palco. (Ver figura 24) Essas cenas iniciais também são responsáveis por conter o primeiro momento em que Hamlet aparece na encenação. É interessante e importante registrar a maneira como o protagonista entra em cena, pois é possível assim já estabelecer suas principais características. Para demonstrar o luto do personagem, bem como seu isolamento em relação ao restante da corte e sua raiva a respeito do casamento de sua mãe com seu tio, o filme de Branagh é a adaptação que mais se destaca na forma de fazer com que o público perceba essas emoções ao se utilizar de alguns recursos que são exclusivamente cinematográficos. Assim, a câmera faz um movimento panorâmico lateral, sem cortes, que tira o foco da grande e barulhenta celebração do novo casamento real para ir se aproximando gradualmente de um Hamlet isolado, sozinho, estático no canto do salão, separado de todos os demais personagens. (Ver figura 25) Esse afastamento é ainda mais evidenciado pelo volume das palmas que instantaneamente diminui assim que o personagem é mostrado. Além disso, Hamlet está todo vestido de preto, seguindo a descrição do texto teatral do uso de um manto negro e “roupas usuais de luto fechado”. As demais encenações, porém, não contam com os recursos de edição e enquadramento do cinema, tendo em vista que o vídeo da montagem do BLC Theatre se trata apenas de um registro de uma encenação realizada num teatro, tendo como principais aspectos as preocupações com o posicionamento das três câmeras utilizadas para se realizar o registro da montagem, uma ao centro do palco e outras duas lateralmente posicionadas. Por isso, em encenações teatrais, o luto de Hamlet é representado de diferentes maneiras. No BLC Theatre, isso é feito por meio da roupa de Hamlet, composta por preto e cinza escuro e com uso


Figura 22 | Aparição do Fantasma no filme de Branagh (1996).

Figura 23 | Aparição do Fantasma na montagem do BLC Theatre (2013).


Figura 24 | Aparição do Fantasma na montagem da Armazém (2017).


Figura 25 | primeira aparição de Hamlet no filme de Kenneth Branagh (1996).

Figura 26 | primeira aparição de Hamlet na encenação do BLC Theatre (2013).


Figura 27 | primeira aparição de Hamlet na montagem da ArmazÊm (2017).


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de uma camisa desalinhada. Além disso, a raiva do personagem em seu primeiro monólogo é transparecida pelo forte tom de vermelho utilizado nas luzes laterais e ao fundo do palco. (Ver figura 26). Na mesma cena no espetáculo do Armazém, a figura de Hamlet também se utiliza de cores escuras em seu figurino, mais especificamente o preto e o vinho, mas seu isolamento tem um caráter de desamparo e fragilidade, evidenciados pela posição displicente do corpo da atriz que interpreta o protagonista, lançada na poltrona de couro no palco. (Ver figura 27) Portanto, após o estabelecimento do tom geral inicial das encenações e da apresentação de seus principais personagens, destacamos a Cena 5 do Primeiro Ato, uma vez que a mesma mostra-se como uma passagem essencial para análise da Direção de Arte em qualquer adaptação de Hamlet, pois é nela que ocorre o Incidente Incitante, a grande revelação que o Fantasma faz para para seu filho. Tratando-se de um momento tão crucial para a trama, as representações dessa cena tendem a evocar uma grande carga dramática de seus atores. Afinal, em uma única cena, são abordados temas como o assassinato do antigo rei, a traição de Cláudio e sua busca por poder, a devassidão de Gertrudes, a raiva e amargura do Fantasma, além da perplexidade de Hamlet e do começo de sua famigerada loucura (que se inicia como um fingimento para enganar aos demais personagens). Com o objetivo de passar essa grande quantidade de informações e emoções, o filme de Branagh opta pela intensidade visual e sonora: volume alto da música acompanhando a voz estrondosa do Fantasma, enquanto cortes rápidos revezam entre a figura do antigo rei, a imagem de Hamlet assustado e variados flashbacks (que mostram desde Cláudio se divertindo com Gertrudes até o momento em que ele matou seu irmão, envenenando-o). A cena possui luz azul difundida em meio à fumaça, mantendo o tom sobrenatural que foi estabelecido logo na primeira aparição do Fantasma, mas são ainda acrescidos efeitos de explosão e fogo saindo de um chão que treme e se parte. Tais elementos enfatizam


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um senso de urgência para que Hamlet jure vingar a morte do pai, além de fazer com que Horácio e Marcelo também jurem não contar a ninguém sobre esses eventos que acabaram de ocorrer (há inclusive um voice-over12 do Fantasma dizendo “jurem”, ou “swear!”, como na fala original). (Ver figura 28) Enquanto isso, a encenação da Armazém continua com o uso da já mencionada projeção em uma estrutura metálica (caixilhos) envidraçada, trazendo “falhas” no áudio do Fantasma e imagem em vídeo que trava propositadamente, enfatizando a diferença dessa aparição sobrenatural, e por que não, virtual, em relação aos demais personagens ali de corpo presente. Além disso, a exagerada proporção gigantesca do rosto do Fantasma em relação ao “pequeno” Hamlet que o assiste perplexo reforça ainda mais o momento frágil pelo qual o protagonista está passando, já que ele literalmente se enxerga como insignificante diante da revelação de fatos tão grotescos e graves das circunstâncias da morte de seu pai. Por fim, a luz amarela que incide no personagem nesse momento é comumente atribuída à significados como a loucura e a vingança, duas das principais temáticas tratadas pela peça e que são apresentadas pela primeira vez justamente nessa cena. (Ver figura 24 novamente) Finalmente, na encenação do BLC Theatre, há um retorno da luz azul para essa cena, desta vez acrescida de fumaça, mas essa intensidade de azul acaba se perdendo assim que o Fantasma sai do palco e os personagens de Horácio e Marcelo entram em cena. (Ver figura 29) O Fantasma é interpretado por uma atriz, dublada por uma voz masculina que se utiliza de voice-over para que o volume de suas falas possa ser maior, dando maior imponência e ar de superioridade moral ao personagem. Porém, se comparado com as soluções encontradas pela Direção de Arte no filme e na

Técnica utilizada no meio audiovisual na qual as vozes dos atores são gravadas e colocadas sobre o áudio de uma cena. É um recurso comum para narração ou ainda para conter diálogos de personagens que não aparecem fisicamente em uma determinada cena. 12


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encenação da Armazém, o BLC lança mão de recursos menos elaborados s, que focam mais no aspecto do sobrenatural do Fantasma e não dão ênfase nas demais temáticas abordadas na cena, como as reações de Hamlet e sua perplexidade. Assim, podemos partir agora para análises de duas cenas do Terceiro Ato da peça, que se configuram como parte das chamadas Complicações Progressivas. Conforme Coyle e Peck (1995) mostram em seu livro How to study a Shakespeare Play, qualquer análise de Hamlet que não passa pelo monólogo Ser Ou Não Ser, está incompleta. Nessa primeira cena do Ato 3, o protagonista está tomado por dúvidas de como agir a respeito desse plano de vingança no qual ele se viu enredado, e logo em seguida deve abrir mão do seu amor por Ofélia para manter a sua aparência de loucura. Por meio desse monólogo, Shakespeare descreve as dúvidas de Hamlet com o uso de metáforas obscuras e sobrecarregadas, algo típico do Maneirismo. Ao evocar imagens do mar e da guerra, figuras gerais com as quais os espectadores podem se identificar, o autor coloca em evidência os pontos fracos de seu protagonista, que se mostra um personagem profundo e complexo. Esse conflito interno mostra ainda outras características maneiristas presentes na obra, tais como a angústia existencial, a busca por respostas dentro de si mesmo, o relativismo, o individualismo, a descrença e a melancolia. Além disso, a peça como um todo trabalha muito a temática da dualidade (algo evidenciado no monólogo). Há a encenação de Hamlet mas também de outra peça dentro dela (chamada A Ratoeira); há dois personagens chamados de loucos (Hamlet e Ofélia), e ainda existe o convívio entre o realismo e o fantástico (o cotidiano comum da corte existe ao mesmo tempo que a sobrenatural aparição do Fantasma), para citar alguns exemplos. Ademais, a contraposição entre o homem de ação e o intelectual, o bem e o mal, a verdade e as aparências, a vida e a morte, são todas questões que perpassam o monólogo de Hamlet no qual o personagem contempla o suicídio como solução para seu


Figura 28 | cena do juramento do filme de Branagh (1996).

Figura 29 | cena do juramento da encenação do BLC Theatre (2013).


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tormento. No Terceiro Ato especificamente, quando o protagonista destrata a mulher que ama, por exemplo, fica evidente a chamada “dupla natureza do herói”, ou seja, uma complexidade de personagem que nos faz questionar a realidade de suas ações e até que ponto sua loucura é um fingimento. Nesse sentido, diversos personagens tem as chamadas “faces duplas” descritas por Hocke (2005), na medida em que agem de uma forma mas tem intenções ocultas, algo que é mostrado pela presença de Cláudio e de Polônio na cena, dois dos personagens que mais se importam com as aparências durante toda a peça. Partindo então para como os elementos cênicos das três encenações escolhidas representam esses temas tão complexos, percebemos como o filme de Branagh faz uso dos espelhos presentes no salão cerimonial no castelo para retratar, em vários níveis, as temáticas dessa cena, tomando como literal a afirmação de Hocke (2005) de que no Maneirismo há a revelação da própria loucura como que em um espelho. Em primeiro lugar, “dois Hamlets” se veem frente a frente quando o personagem parece conversar com o seu “eu espelhado” durante o monólogo, que é filmado quase sem cortes. Assim, não apenas ele se questiona sobre as suas escolhas e o fardo que é a vingança que prometeu cumprir, mas também o público percebe a existência de um protagonista que tem dois lados, e que demonstra incerteza até mesmo da sua sanidade. (Ver figura 30) Os espelhos em questão servem ainda para mostrar como Cláudio e Polônio mais uma vez se escondem e não mostram suas verdadeiras intenções, visto que são capazes de observar o confronto de Hamlet e Ofélia através desse espelho mas não de enxergar seu próprio reflexo. Ou seja, mais uma vez há uma alusão ao quanto eles estão sujeitos às aparências e como não confrontam a realidade de quem eles são. Em menor escala, mas ainda com as mesmas intenções de destacar Hamlet conversando consigo mesmo, a montagem do BLC Theatre tem um pequeno boneco de papel que o personagem


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segura enquanto faz o monólogo, como se simbolizasse a sua pequenez e impotência diante das suas circunstâncias. Porém, a luz utilizada neste momento fica num tom claro de azul, e não possui o mesmo impacto do que em outros momentos da peça (como é o caso vermelho forte do primeiro monólogo que Hamlet faz no início da peça). Além disso, não há variação na luz quando ele confronta Ofélia, sendo que em outras ocasiões explosivas do personagem, ou de conflitos em geral, a encenação costuma usar uma luz vermelha para simbolizar essa desordem e perturbação. (Ver figura 31) Por fim, na encenação da Armazém, a abordagem para o monólogo em si é simples, na medida em que conta apenas com o personagem declamando suas falas sentado sozinho na mesma poltrona de couro que aparece na primeira cena, com o uso de poucos elementos visuais a não ser o foco de luz branco-amarelada sobre ele. O conflito com Ofélia, por outro lado, é o mais enfático entre as três encenações: com uma luz amarela (enfatizada pela saia também amarela utilizada pela personagem) que mais uma vez enaltece a loucura de Hamlet ao tratar a mulher que ama de forma tão violenta. Além disso, Cláudio e Polônio, novamente se escondem por trás de uma fachada, nesse caso de forma literal por conta da estrutura de caixilho com vidro, e não parecem se importar com a situação de Ofélia após a briga com Hamlet. (Ver figura 32) Já na Cena 2, ainda do Ato 3, a dualidade maneirista se vê ainda mais evidenciada por meio da metalinguagem. Trata-se do momento da encenação da peça chamada A Ratoeira dentro da própria montagem de Hamlet. Essa mise-em-abyme13 enfatiza um dos temas recorrentes de Hamlet, que se trata da oposição e

13

Termo em francês que costuma ser traduzido como "narrativa em abismo", usado pela primeira vez por André Gide ao falar sobre as narrativas que contêm outras narrativas dentro de si. Tal recurso pode aparecer na pintura, no cinema e na literatura, e duplica imagens ou temáticas existentes na obra por meio do espelhamento das mesmas.


Figura 30 | cena do monólogo Ser ou Não Ser do filme de Branagh (1996).


Figura 31 | cena do monólogo Ser ou Não Ser da encenação do BLC Theatre (2013).

Figura 32 | cena em que Ofélia é humilhada na montagem da Armazém (2017).


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dos limites entre a verdade e da falsidade, na medida em que constrói um cenário dentro de um espaço que já é cênico, fazendo com que o espectador questiona os limites do seu espaço em relação àquele representado. Assim, essa cena é sempre um desafio para o diretor de arte, que deve encontrar soluções que mostrem um espaço cênico dentro de outro espaço cênico. Se formos analisar as três encenações por ordem da sua complexidade, os recursos visuais utilizados pelo BLC Theatre são os mais simples. (Ver figura 33) O patamar no centro do palco torna-se o local da encenação de A Ratoeira, e os personagens-atores entram e saem usando figurinos coloridos e extravagantes que os diferenciam dos demais personagens. Essa escolha do uso de muitas cores faz com que essa encenação tenha um tom mais voltado para a leveza de uma comédia, mesmo que ao final a reação de Cláudio seja a mesma (de se revoltar e se retirar do recinto). Há um destaque para o bom uso da luz vermelha nesse momento em que o rei sai de cena, elemento que enfatiza sua raiva por ser confrontado por Hamlet. De maneira geral, a montagem de A Ratoeira nesse caso serve mais diretamente aos propósitos da trama em si e não há tanto o questionamento sobre o quanto a narrativa em abismo pode servir para nos fazer repensar sobre o conceito de realidade, algo que se vê mais presente no


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filme de Branagh, por exemplo. Inclusive, na adaptação cinematográfica, os atores impressionam Hamlet por sua capacidade de fingir emoções nas suas interpretações, as quais ocorrem em um palco construído no salão de espelhos. (Ver figura 34) A cena volta a representar todo o luxo e valorização das aparências por parte da corte por meio de uma paleta repleta de vermelho, preto, branco e dourado, além de que o posicionamento elevado de Cláudio destaca sua posição de rei. A carga dramática depositada na encenação de A Ratoeira é reforçada pela caracterização desses atores ser muito parecida com a de Cláudio e Gertrudes, tornando mais evidentes as intenções de desmascarar o rei. Por fim, o uso de arquibancadas para que as pessoas vejam essa montagem remete à maneira como o filme é acompanhado em uma sala de cinema, lembrando ao público mais uma vez de se questionar o quanto a representação mostrada é uma ilusão e o quanto retrata o seu próprio espaço de espectador. Por último, a encenação da Armazém é a que mais modifica a pantomima referida no texto original shakespeariano ao optar por uma apresentação musical de punk para desmascarar Cláudio. (Ver figura 35) Fazendo uso de recursos metafóricos, há uma luz vermelha intensa durante esse momento no espetáculo, evocando o conflito entre Hamlet e seu tio e aumentando o ar de urgência na busca que o protagonista tem pela verdade. Além disso, os figurinos bem alinhados, principalmente de Cláudio e Polônio, fazem forte contraposição ao personagem de Hamlet que se vê cada vez mais instável, sendo que nessa cena não usa camisa (a atriz que o interpreta, Patrícia Selonk, usa um sutiã preto) e canta agressivamente no microfone as suas acusações. Por fim, nota-se que a escolha do local em que os personagens se sentam para acompanhar A Ratoeira são poltronas vermelhas que são comumente utilizadas em teatros e cinemas, recurso utilizado para reforçar a narrativa em abismo para o público.


Figura 33 | cena da montagem de A Ratoeira da encenação do BLC Theatre (2013).

Figura 34 | cena da montagem de A Ratoeira do filme de Branagh (1996).


Figura 35 | cena da montagem de A Ratoeira da encenação da Armazém (2017).


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Finalizados esses momentos importantes para a trama, cabe agora analisar as soluções encontradas para as Cenas 5 e 7, do Ato 4, que ainda se enquadram nas Complicações Progressivas, as quais são decisivas para as futuras atitudes de Hamlet e que levarão ao seu destino final. É nessas cenas em que somos, de certa forma, reapresentados à Ofélia, que agora se vê tomada por uma loucura após a morte do pai (o qual é assassinado por Hamlet na Cena 1 do Quarto Ato). Mais do que isso, rapidamente a situação se agrava com o suicídio de Ofélia, que se afoga. Tal cena, no texto teatral, é apenas descrita verbalmente por Gertrudes, mas é um evento que causa tanta comoção em leitores e espectadores, assim como nos personagens da trama, que é frequentemente representado também visualmente nas encenações. No caso do filme de Branagh, Ofélia é caracterizada vestindo uma camisa de força (que, na Era Vitoriana na qual o filme se passa, era usada como instrumento de tortura) sobre uma camisola branca em um pequeno cômodo acolchoado e cinza. Quando ela entrega flores aos demais personagens, na verdade não tem nada nas mãos, enfatizando sua instabilidade. Essa situação em que a personagem se encontra se opõe em muito a sua caracterização anterior, sempre bem arrumada e alegre. Por isso, mais do que seguir rigorosamente as falas da peça em que Gertrudes descreve para Laertes e Cláudio sobre o afogamento de Ofélia, é mostrado um plano da personagem com olhos fixos sob as águas, impactando o espectador com essa única imagem mais do que apenas com as palavras sobre sua morte. (Ver figura 36)


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A encenação do BLC Theatre também dá ênfase na representação da loucura de Ofélia, que agora tem cabelos curtos, anda descalça, tem o vestido todo desalinhado e carrega flores secas que distribui aos outros personagens. (Ver figura 37) O afogamento da personagem nesse caso, é mais dependente da descrição de Gertrudes, porém há o uso sutil de mudança de cores nas luzes laterais e de fundo, as quais lentamente mudam de vermelho para azul, para remeter às águas em que Ofélia se afoga. Por fim, a representação do declínio da situação mental de Ofélia no caso da encenação da Armazém, se dá, de maneira semelhante às outras duas, por meio da mudança de figurino. Agora, a personagem passa a usar um longo vestido preto, como que antevendo o seu destino, além de uma gola típica elisabetana, em referência ao período em que o texto teatral se passa (Ver figura 38). A personagem canta suas falas sob o foco de uma luz branca no meio da plateia, de forma que essa proximidade com Ofélia causa mais impacto no espectador quando a mesma se afoga logo em seguida. Quando esse evento acontece, por sua vez, não há apenas uma descrição de sua morte, como na abordagem predominante das outras duas encenações, mas a personagem está presente em cena, causando grande impacto visual, parecendo flutuar diante de uma projeção de reflexos de água azul feita na estrutura de vidro do palco. (Ver figura 39) Dessa forma, a ligação emocional que o espectador tem com a personagem da Ofélia se mostra mais intensa nessa caracterização cênica feita pela Armazém, o que faz com que as atitudes extremas que os personagens tomam nos próximos atos sejam ainda mais justificadas.


Figura 36 | cena do afogamento de Ofélia do filme de Branagh (1996).

Figura 37 | cena da loucura de Ofélia da encenação do BLC Theatre (2013).


Figura 38 | cena da loucura de Ofélia da encenação da Armazém (2017).

Figura 39 | cena do afogamento de Ofélia da encenação da Armazém (2017).


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Agora, nos aproximando do fim do espetáculo, a penúltima cena se passa no cemitério onde Ofélia é enterrada. Sendo a última cena de Complicações Progressivas, o Ato 5 se inicia com Hamlet e Horácio observando o trabalho de dois coveiros que parecem não se importar com a proximidade que eles lidam com a morte diariamente. Por isso, a cena toda é repleta dessa temática de mortalidade, bem como do luto (principalmente de Hamlet e de Laertes no momento em que Ofélia é enterrada). É por questionar a significância da vida, e contemplar a forma como todos nós temos o mesmo destino final que a cena de Hamlet segurando uma caveira é tão emblemática para a história das encenações: retrata perfeitamente a dualidade entre a vida e a morte. Assim, o filme mostra o cemitério em um tom azulado, frio, enquanto que o local onde o coveiro trabalha emana uma luz laranja, mostrando de forma surpreendente que o conforto e o calor emanam justamente da cova, talvez para mostrar o bom humor do coveiro ao lidar com a morte, além de simbolizar sua aceitação a respeito da própria mortalidade. Em oposição a essa aceitação, Hamlet é mostrado por um ângulo lateral segurando o crânio do bobo da corte de sua infância na altura dos olhos. Tudo isso ocorre diante de um ambiente azul, frio, demonstrando sua desilusão a respeito do destino de todos os seres. (Ver figura 40) Além disso, o luto na cena é mostrado pelo uso de roupas pretas de todos os personagens. Na encenação do BLC Theatre, por sua vez, há um uso inventivo do espaço do fosso que normalmente é utilizado por uma orquestra, o qual é transformado na cova de Ofélia. Todos os personagens também usam preto, e a luz azul é predominante durante a cena. É interessante reparar também que a forma como Hamlet segura o crânio não é captada pelas câmeras do teatro com a mesma dramaticidade do filme, justamente porque as mesmas estão ali apenas para registrar a peça, sem se preocupar com focos e enquadramentos. (Ver figura 41) Por fim, a Armazém retrata a morte de Ofélia colocando sobre o palco, ao invés de um caixão ou do corpo da atriz, o vestido preto


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com a gola elisabetana que a personagem usava ao morrer. Esse uso de metáfora também está presente na forma como Laertes demonstra seu luto, despejando um balde de terra sobre sua própria cabeça em desespero. (Ver figura 42) Além disso, a forma que Hamlet segura o crânio não tem uma preocupação com o ângulo em que será percebida, assim como acontece na encenação teatral filmada. Isso porque, como ambas acontecem num ambiente de teatro, o ponto de vista da cena varia conforme o posicionamento do espectador na plateia. Enfim, na última cena (Cena 2, Ato 5), é possível perceber o ápice de todas as temáticas trabalhadas na peça até então, chegando à Crise, ao Clímax e à Resolução da narrativa. Com o embate final de Hamlet contra Laertes e Cláudio, e a morte dos três (além de Gertrudes), é possível perceber a mensagem do autor de que a realeza fica envolta em seus próprios dramas e acaba por perecer, já que a Dinamarca é invadida pela Noruega ao final da trama. A maneira como todos acabam morrendo envenenados no fim, simboliza justamente como o mal pode se espalhar entre os humanos, contagiando a todos, gerando desordem e caos, e mostrando como ninguém é tão bom que não possa se corromper, o que inclui o protagonista. Como diz Horácio ao descrever esses acontecimentos, “mortes instigadas por perfídias e maquinações (...) caindo na cabeça de seus inventores”. Pensando nisso, todas as encenações mostram a luta de esgrima entre Hamlet e Laertes, com uso das taças para simbolizar o veneno que é bebido. O filme, seguindo sua estética vitoriana e tom dramático, mostra o salão de espelhos ser todo destruído na invasão de Fortimbrás, além de uma estátua do antigo rei sendo derrubada, representando o fim daquela corte que tanto era associada aos espelhos e demais símbolos de poder. No caso do BLC Theatre, a montagem mantém o uso das suas luzes laterais para evocar emoções de tristeza e perplexidade diante da violência ocorrida, já que essas vão ficando gradativamente mais vermelhas no decorrer da luta de esgrima e totalmente vermelha ao final da encenação (com a morte de Hamlet). De maneira semelhante, a


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Armazém também opta por finalizar a peça com um forte tom de luz vermelha, uma metáfora da extrema violência que acabou de se passar. (Ver figuras 43, 44, 45 e 46). Portanto, os distintos elementos visuais e espaciais adotados mostram, dessa maneira, como o tom de uma encenação pode ser modificado por meio das escolhas da Direção de Arte, o que muda a forma como o público percebe suas temáticas.


Figura 40 | Hamlet segurando o crânio de Yorick no filme de Branagh (1996).

Figura 41 | Hamlet segurando o crânio de Yorick na encenação do BLC Theatre (2013).


Figura 42 | Hamlet segurando o crânio de Yorick na encenação da Armazém (2017).


Figura 43 | cena após o confronto de Hamlet e Laertes no filme de Branagh (1996).

Figura 44 | cena após o confronto de Hamlet e Laertes na encenação do BLC Theatre (2013).


Figura 45 | cena do confronto de Hamlet e Laertes na encenação da Armazém (2017).


Figura 46 | cena após o confronto de Hamlet e Laertes na encenação da Armazém (2017).



“A vida do homem é só o tempo de se contar ‘um’"


A arte é visão ou intuição. O artista produz uma imagem ou um fantasma: e quem aprecia a arte volta o olhar para o ponto que o artista lhe indicou, observa pela fenda que este lhe abriu e reproduz dentro de si aquela imagem.” Benedetto Croce


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O teatro de Shakespeare é a expressão da tragédia e do conflito humano. Por isso, suas encenações geram tantas possibilidades, já que, como diz Ratto (1999, p. 36), o “espaço cênico se multiplica pela dimensão do texto e de seus personagens”. No caso de Hamlet, Coyle e Peck (1995, p. 62) reforçam ainda que se trata de uma peça extremamente complexa, visto que a narrativa não é o seu principal aspecto, mas sim a forma como ela é contada, como a desordem e o caos apontados nos diálogos são representados em suas montagens. Dessa maneira, os pensamentos e reflexões têm mais importância do que os eventos da trama em si. Pensando nisso, e levando em conta a proposta de cada encenação, elas atingiram seus principais objetivos por meio do uso de diferentes recursos. Ao realizarmos a análise detalhada de diversas cenas podemos classificar as encenações citadas em três níveis diferentes de abstração no que se refere à sua Direção de Arte, de forma análoga ao que Aumont (1980) descreve em seu livro A Imagem. De maneira geral, a montagem cinematográfica possui uma abordagem mais realista, com uso de elementos típicos da Era Vitoriana para representar explicitamente a grandiosidade da corte e uma vida cercada por exposição. A encenação filmada do BLC Theatre, por sua vez, também tem características realistas (nas colunas, vitrais, mobiliário e figurino), mas já há um certo nível de abstração pelo uso de cores advindas das luzes laterais do palco. Por fim, percebe-se que a abordagem da CIA Armazém é a que possui uma representação mais abstrata entre todas elas, com a utilização de maior quantidade de elementos metafóricos (relacionados à estética tipicamente brasileira, vinculada com a criatividade e as possibilidades geradas pela “gambiarra”). Bons exemplos são: a projeção para simbolizar a aparição do Fantasma, o figurino de Ofélia esticado no chão para simbolizar seu corpo no caixão, a utilização música punk para invocar os protestos e denúncias feitos por Hamlet em sua encenação de A Ratoeira, só para citar alguns. Em relação ao questionamento de como a Direção de Arte


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influencia na percepção das temáticas e suas ênfases, é possível perceber claramente que cada uma das três encenações escolheu uma abordagem diferente em relação ao mesmo texto, e sua caracterização visual e espacial reforçou esse ponto de vista, pois a soma entre cenários, luzes e efeitos foi capaz de fabricar suas respectivas atmosferas, marcadamente diferentes entre si. Assim, o filme de Branagh seguiu um tom realista que, por meio do contexto de Era Vitoriana, enfatizou a futilidade da corte e a maneira como o valor que os personagens dão às aparências e à exposição clara e exuberante como símbolos de nobreza e eternidade, gera consequências desastrosas no final da trama. Já a encenação teatral filmada do BLC Theatre é um exemplo de uma representação mais verbal, de forma que os elementos visuais e espaciais são mais elementares, mas nem por isso, desprezíveis, e espelham uma abordagem que foca mais nos eventos da trama do que em aprofundar as temáticas do texto, possuindo inclusive diversas cenas voltadas para a comédia. Por fim, a Armazém utilizou metáforas para trazer um tom melancólico, sombrio, contrastante, escuro e misterioso para a montagem, focando nos sentimentos de isolamento e impotência dos seres humanos diante de determinadas circunstâncias. A determinância do dispositivo ou veículo aparece ao constatarmos que o filme de Branagh soube bem usar recursos de edição e enquadramentos para guiar e direcionar o olhar e a percepção de


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sua audiência de forma mais explícita, enquanto que, por outro lado, as duas encenações teatrais tiraram muito proveito de ensinamentos como o de Appia (apud RATTO, 1999, p. 96), que diz que “a luz, como o ator, deve ser ativa”. Além disso, nota-se como a montagem teatral filmada do BLC Theatre é um exemplo de como não é possível reproduzir o mesmo sentimento do teatro ao vivo, da mesma forma como só foi possível ter um panorama geral do que foi a encenação da Armazém, uma vez que a experiência de sua montagem não foi vivenciada presencialmente. Enfim, a Direção de Arte tem muito a dizer e definir quanto às características, entonação e aspectos da mensagem que o encenador quer priorizar baseando-se no texto original. Essas mensagens (as encenações) são formas de expressão artística que buscam proporcionar uma experiência marcante e duradoura para seus espectadores. Tal experiência, tal maneira de percepção (recepção) da encenação, por sua vez, passa a fazer parte da memória de quem a vivencia, e ao se lembrar de uma montagem ou adaptação específica, pensando em seus significados tempos depois de tê-la assistido, o público denota que o diretor de arte conseguiu alcançar seus objetivos. Para Barthes (1980), talvez seja exatamente esse impacto o objetivo final a ser atingido pelo artista afinal.


SUPORTE TÉCNICO


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PERSONAGENS DE HAMLET | Cláudio: rei da Dinamarca Hamlet: filho do falecido rei, sobrinho do atual rei Polônio: lorde camarista Horácio: amigo de Hamlet Laertes: filho de Polônio Voltimando: cortesão Cornélio: cortesão Rosencrantz: cortesão Guildenstern: cortesão Osric: cortesão Um cavalheiro Um sacerdote Marcelo: oficial Bernardo: oficial Francisco: um soldado Reinaldo: criado de Polônio Atores Dois clowns: coveiros Fortimbrás: príncipe da Noruega Um capitão Embaixadores ingleses Gertrudes: rainha da Dinamarca, mãe de Hamlet Ofélia: filha de Polônio Damas, cavalheiros, oficiais, soldados, marinheiros, mensageiros e servidores Fantasma do pai de Hamlet: o Rei Hamlet Cena: Dinamarca


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| FICHAS TÉCNICAS Encenação Cinematográfica de Branagh (1996) Direção: Kenneth Branagh Roteiro: Kenneth Branagh Produção: David Barron Trilha Sonora: Patrick Doyle Fotografia: Alex Thomson Edição: Neil Farrell Design de Produção: Tim Harvey Direção de Arte: Desmond Crowe Figurino: Alexandra Byrne Elenco Principal: Kenneth Branagh (Hamlet), Derek Jacobi (Rei Cláudio), Julie Christie (Rainha Gertrudes), Kate Winslet (Ofélia), Richard Briers (Polônio), Nicholas Farrell (Horácio), Michael Maloney (Laertes), Rufus Sewell (Fortinbras). Ano: 1996 Duração: 4h2min Encenação BLC Theatre (2013) Direção: Peter Bloedel Direção de Arte: Peter Bloedel Elenco Principal: Michael Lilienthal (Hamlet), Olivia Lee (Ophelia) Dramaturgia: Lydia Grabau Figurino: Emily Kimball Iluminação: Jake Yenish Música: Benji Inniger Ano: 2013 Duração: 2h44min


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Encenação Armazém CIA de Teatro (2017) Direção: Paulo de Moraes Dramaturgia e Tradução: Maurício Arruda Mendonça Elenco Principal: Patrícia Selonk (Hamlet), Ricardo Martins (Claudius), Marcos Martins (Polonius e Coveiro), Lisa Eiras (Ofélia), Jopa Moraes (Laertes, Guildenstern e Ator, Isabel Pacheco (Gertrudes) e Luiz Felipe Leprevost (Horácio, Rosencrantz e Loba), Adriano Garib (Espectro - participação em vídeo) Direção de Arte: Carla Berri e Paulo de Moraes Iluminação: Maneco Quinderé Figurinos: João Marcelino e Carol Lobato Música: Ricco Viana Preparação Corporal: Patrícia Selonk Coreografias: Toni Rodrigues Preparador de Esgrima: Rodrigo Fontes Fotografias: João Gabriel Monteiro, Mauro Kury, Guto Muniz e Leo Aversa Vídeos: João Gabriel Monteiro Programação Visual: João Gabriel Monteiro e Jopa Moraes Técnico de Palco: Regivaldo Moraes Assistente de Produção: William Souza Assessoria de imprensa: Ney Motta Produção Executiva: Flávia Menezes Patrocínio: Petrobras e Banco do Brasil Produção: Armazém Companhia de Teatro Ano: 2017 Duração: aproximadamente 2h30min


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| REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO AUMONT, Jacques. A Imagem. 13ª. ed. [S. l.]: Papirus, 1993 BARTHES, Roland. A Câmara Clara. [S. l.]: Nova Fronteira, 1980. BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica. [S. l.], 1955. BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. Arquitetura. In: A Formação do Homem Moderno Vista Através da Arquitetura. 1987. Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, [S. l.], 1987. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/BUOS-9NTGSR. Acesso em: 3 out. 2019. BUTRUCE, Débora. A Direção de Arte e a Imagem Cinematográfica - sua inserção no processo de criação do cinema brasileiro dos anos 1990. 2005. Dissertação (Graduação) Universidade Federal Fluminense, Niterói, Brasil, 2005. CASARIN, Marcela Ribeiro. Hoje é dia de Maria: a influência das artes visuais nas direções de arte e fotografia. In: XXXI CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 2008, Natal, RN. Natal, RN: [s. n.], 2008. COYLE, Martin; PECK, John. How to Study a Shakespeare Play (2nd Edition). [S. l.]: Palgrave, 1995. DEL NERO, Cyro. Cenografia: Uma breve visita. [S. l.]: Claridade, 2008. DIENER, Patrick. Repetição Mise-en-abyme. O Efeito de Duplicação Aplicado em Videoclipes de Michael Gondry. Curitiba, Brasil, 2010. Disponível em: http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2010/resumos/R5-1871-1.pdf. Acesso em: 8 jun. 2019. ESTÁCIO, Denise de Quintana. Maneirismo e narrativa: o jogo de espelhos de Armadilha para Lamartine. Nau Literária, [S. l.], 2017. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/NauLiteraria/article/viewFile/79916/46915. Acesso em: 8 jun. 2019.


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REFERENCIAL IMAGÉTICO | Figura 1 | Fonte: divulgação oficial da peça. Disponível em: http://www.davidkorinsdesign.com/. Acesso em: 23 jun. 2019. Figura 2 | Fonte: divulgação oficial da peça. Disponível em: http://www.dearevanhansen.com/media/#photos. Acesso em 18 nov. 2019 Figura 3 | Fonte: RATTO, Gianni. Antitratado de Cenografia: variações sobre o mesmo tema. [S. l.], edição pessoal. Senac São Paulo, 1999. Figura 4 | Fonte: desenho de Marina Dias a partir de: OLIVA, César; TORRES MONREAL, Francisco. Historia básica del arte escénico. Madrid: Cátedra, 1990. p.90. Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/revistas/ read/arquitextos/11.127/3692. Acesso em: 01 jul. 2019. Figura 5 | Fonte: desenho de Marina Dias a partir de: OLIVA, César; TORRES MONREAL, Francisco. Historia básica del arte escénico. Madrid: Cátedra, 1990. p.90. Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/11.127/3692. Acesso em: 01 jul. 2019. Figura 6 | Fonte: desenho de Thomas A. Kligerman. Disponível em: https://www.ikekligermanbarkley.-com/posts/parmas-teatro-farnese. Acesso em: 01 jul. 2019. Figura 7 | Fonte: desenho The Globe Playhouse pelo escritor Walter Hodges. Disponível em: http://fbandelizabethan.weebly.com/the-globe-theatre.html. Acesso em: 27 nov. 2019. Figura 8 | Fonte: fotografia do interior do Globe Theatre atual.


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Disponível em: http://www.elizabethan-era.org.uk/globe-theatre-interior.htm. Acesso em 27 nov. 2019. Figura 9 | Fonte: imagens digitalizadas de Edward Gordon Craig Collection at Eton College Library. Disponível em: http://www.edwardgordoncraig.co.uk/media/eton-college-library-collection/ Acesso em: 26 nov. 2019. Figura 10 | Fonte: Das Cabinet des Dr. Caligari, 1920. Disponível em: https://www.archdaily.com/ 300945/films-architecture-the-cabinet-of-dr-caligari. Acesso em: 01 jul. 2019. Figura 11 | Fonte: Destino, 1945. Walt Disney Animation. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=K6XCN6gNJFw. Acesso em: 01 jul. 2019. Figura 12 | Fonte: Figurines in Space: Study for the Triadic Ballet (Figurinen im Raum: Mise-en-scène for Das Triadische Ballett). Desenho e colagem feito por Oskar Schlemmer em 1924. Disponível em: https://www.moma.org/collection/works/33327. Acesso em: 27 nov. 2019 Figura 13 | Fonte: renderização de maquete eletrônica do Teatro Total feita por Carlos Pérez. Disponível em: https://www.domestika.org/pt/projects/104888-teatro-total-gropius. Acesso em: 27 nov. 2019 Figuras 14 e 21 | Fonte: acervo pessoal (2019) Figuras 15, 18, 23, 25, 28, 30, 34, 36, 40 e 43 | Fonte: HAMLET. [S. l.]: Castle Rock Entertainment, 1996. Arquivo pessoal. Figuras 16, 19, 22, 26, 29, 31, 33, 37, 41 e 44 | Fonte: divulgação oficial Past BLC Productions. Disponível em: https://www.flickr.com/photos/bethanylutherancollege/albums/72157633455886094 Acesso em: 11 jun. 2019. Figuras 17, 20, 24, 27, 32, 35, 38, 39, 42, 45 e 46 | Fonte: página oficial Armazém CIA de Teatro. Disponível em: https://www.armazemciadeteatro. com.br/repertorio/hamlet. Acesso em: 11 jun. 2019.


ANEXO 01 |

1

2

3

3

Esquemas de Planta Baixa e Corte do Sigurd K. Lee Theater, local de encenação de Hamlet pelo BLC Theatre, mostrando a localização das câmeras que registram o espetáculo



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