A Morte e seus substantivos abstratos

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A Morte e seus substantivos abstratos



Sempre quis dedicar um livro a alguém, não poderia ser mais feliz sabendo que meu primeiro alguém é você. É muito bom ter amigos , que bom é encontrar sempre um pouquinho deles por aí.



Neste ano, aconteceu o pior que poderia acontecer. Passei pelo pior que poderia ter passado, mas não passei sozinha. Passamos pelo pior todos juntos e, por muito tempo, a melhor coisa em que poderíamos pensar era ir para o Japão. Falávamos sobre isso por dias inteiros. Foi pensando no que eu faria lá que consegui, pela primeira vez, entender o que estava sentindo. Comecei fazendo um mapa conceitual. Sentei com meus amigos. Juntos, começamos a escrever tudo o que relacionávamos com o que estávamos passando. Foram todos substantivos abstratos e todos eles se relacionavam entre si. Com isso, não fazia sentido que aquilo fosse um mapa tão somente. Ele deveria ter uma outra dimensão que pudesse se combinar mais facilmente. Ele tinha que ser móvel. Foi assim que surgiu o “jogo”. Coloquei cada palavra em uma cartinha de papel. Decidi, da forma que me seria possível, analisar nossos conceitos de morte no espaço amostral do Japão. Para isso, leria livros japoneses. Para cada livro, sortearia três pares de palavras, relacionando-os com os conceitos do livro. Lia bastante e, a cada livro, sorteava cartinhas. Por um semestre fiz isso quase todas as semanas. Consegui ir falando cada vez mais um pouco, até me sentir muito melhor.

Chegou a viagem. A melhor hora do ano. A situação mudou bastante, a realidade era completamente outra. Voltamos. Resolvi sortear as cartinhas com tudo o que tínhamos experenciado. Cada cidade que dormimos, ver como entendia cada espaço que vivenciamos. Escolhi Kyoto, Koyasan, Naoshima, Hiroshima, Kanazawa e Tóquio na exata ordem em que visitamos. As representaria por meio de abstrações. Já em Kyoto, reparei que não faria o menor sentido fazer aquilo só eu. O Japão havia sido incrível também porque eu não estava sozinha. Lógico que é um país absurdo, mas as histórias que vivenciei só vivencia por estar com os outros. Além disso, passar pelo semestre passado sozinha teria sido insuportável. Foi por causa dos outros que consegui mudar. Convidei a Júlia e a Beatriz para escreverem o Japão comigo. Minhas vivências foram escritas também por elas, assim como as delas também o foram por mim. Só faria sentido se estivéssemos as três presentes. Vai aí, então, o agradecimento por estar comigo em 2019, a todos que estiveram. O ano fez um pouco mais de sentido por estar com vocês.



1. Kyoto

cura + processo

O Japão fez parte de meu processo de “cura”, de certa forma. Não que eu acredite plenamente em uma “cura”, mas pensar que existiria em algum lugar a ideia da viagem me fez ter vontade de alguma coisa. Inclusive, foi a vontade de ir ao Japão que criou esse “jogo”. E foi esse jogo que me fez melhorar muito. Apesar de Seoul, Kyoto foi a primeira cidade japonesa que visitamos. O primeiro dia em Kyoto foi a concretização de que esta viagem estava realmente acontecendo, Seoul foi mais como um sonho. Foi o dia em que estava todo mundo morto, menos eu, e mesmo assim teve uma vontade absurda de fazer tudo, ver tudo, comprar tudo. Nesse dia, eu vi comprarem quase um quilo de chá, em diferentes lojas. Nesse dia, eu comprei o caderninho em que viria a desenhar as casinhas e desenhei a primeira delas. Não adiantava nenhum roteiro organizado, ninguém pensou que passamos quase seis meses falando do Japão todos os dias. O Japão era a maior parte do processo de cura de muita gente.

Querida Mama, Acho muito curioso como essas duas palavras foram sorteadas juntas bem no início do trabalho. Eu tenho muitas explicações para essa combinação, mas a que eu mais gosto é que a gente viu essa viagem desde o começo comoum grande processo de cura para o que a gente passou esse ano sabe. Sei lá, eu só achei esse primeiro passo do exercício muito oportuno. Outra coisa que eu gostei quando pensei nas palavras juntas é que essa viagem também foi um processo importantíssimo de cura pra pequena e assustada Júlia, que tinha medo de ir nos estudos do meio do colégio e que teve uma crise de ansiedade e pânico muito grandes na escola itinerante do Vale do Paraíba. O interessante é que você e Annabelle estavam do meu lado lá também, do mesmo jeito que vocês estavam no Japão comigo também.

rastejar


morbidez + medo

paranoia

Em um dos últimos dias em Kyoto, visitamos obras de um grupo de jovens arquitetos, não lembro o nome deles. O primeiro projeto era a casa/atelier de um artista especialista em fazer “acessórios pós-morte”. A casa era muito legal, mas, sendo sincera, não consegui prestar muita atenção. Primeiro, o artista tinha uma filha muito gracinha que queria muito conversar. Segundo, eu pensava o tempo todo em como seriam os tais acessórios. A ideia de um “acessório póstumo” trazia tanto a imagem da morbidez que tinha medo de perguntar. No final, me fizeram perguntar e me foi uma das coisas mais chocantes do Japão, acho. O dono da casa se reunia com a família para conversar sobre o falecido. Normalmente, a família trazia alguma parte do falecido, na maior parte das vezes ossos e cabelos. Cabia ao artista transformá-los em alguma joia, na maior parte das vezes anéis ou berloques, dependia do material. É também muito comum encomendar esse tipo de acessório quando uma criança completa um ano. Os pais trazem alguns fios de cabelo, e o artista os transforma em anel. É um processo bastante parecido. Para mim, só a ideia de pegar parte do corpo de uma pessoa que morreu já é demasiado mórbida, quem dirá usá-la no dedo. Mesmo assim, o que mais me impressionou de longe foi tratarem quase do mesmo jeito o primeiro aniversário de alguém. A vida fica mais próxima da morte e, assim, a ideia de ter medo de qualquer uma delas parece um pouquinho mais distante.

Querida Marininha, É muito curioso que eu, tendo acompanhado todo o processo da sua pesquisa do Deriva e sabendo do que ela se trata, tente relacionar tudo e absolutamente tudo com a Annabel. Tipo, eu nem penso em nenhuma história de morbidez e medo em Kyoto, nem em como essas duas palavras se complementam dentro do período que a gente a passando, mas eu já pens direto nela sabe? Bom, mas talvez você esteja procurando uma resposta mais direta pra isso aí né, e acabou de me ocorrer que teve um dia que eu fiquei vagando sozinha pelos arredores do hotel lá em Kyoto né, o que me seu um tanto de medo, mas eu estava muito feliz por estar me desprendendo das pessoas e etc e tal. Enfim, nesse dia começou o festival de primavera, e eu achei por acaso o começo da parada do festival, e por mais bonito que fosse eu acabei achando meio mórbido, por causa de todas aquelas crianças vestidas de imperadores e com muuuuito pó de arroz na cara. Elas eram fofas, mas pareciam muito com assombrações.




família + retorno

No primeiro dia em Kyoto, acabei em uma loja de adesivos e comprei um para o meu irmão. Na hora que estavam empacotando o adesivo, pensei no quanto ele ficaria feliz em receber aquilo. Sempre que vemos um kiwi (pássaro), temos que comprar para o outro. Nenhum de nós nunca foi à Nova Zelândia, mas é assim já faz muito tempo. Imagina um kiwi do Japão. É um quase Pokémon, muito bonitinho. Meu irmão ia amar, não tinha como não. Voltando para a hora do pacote, eu pensei na hora em que eu o abriria de novo. Seria só no meu retorno para o Brasil, minha família estava do outro lado do mundo. Quando nos víssemos de novo, eu daria o adesivo, mas até lá ainda tinha três semanas. No final, quando, no chão do meu quarto, abri a mala e dei o tal do adesivo, tudo pareceu errado. Não parecia ter passado três semanas, não parecia que tinha ido viajar a um mês. Passou rápido demais. Já sonho com meu retorno, de novo.

reconsideração

Estimada Senhora Liesegang, Creio que para essa combinação de palavras, eu tenha uma interpretação mais direta que as anteriores, pois minha família retornou pra perto de mim quando eles chegaram em Kyoto. Sem mais delongas, um abraço, Júlia





2. Koyasan

paralelismo + luto

Acho que Koyasan é um dos lugares mais incríveis do mundo. Eu nunca tinha visto uma coisa tão bonita quanto o cemitério do lado do hotel. É que, na verdade, o hotel era um templo e eu nunca tinha visto um cemitério budista antes. É muito diferente dos cemitérios que eu estou acostumada. O processo de luto parece ser completamente outro: parece existir um paralelismo muito maior entre a morte e a vida. O cemitério não assusta, porque, apesar de lidar com a morte, ele tem muita muita vida. Se trata de um cemitério budista milenar, então existem lá milhares estatuetas de Buda, nas mais diversas formas dos mais diversos tempos. E, no Japão, as pessoas têm o costume de de vestir Budas com toquinhas de crochê, das mais diversas cores (me explicaram o motivo, mas eu esqueci, acho que tinha algo a ver com a proteção das crianças). Imagine, então, quantos Budas de toquinhas não existem em um cemitério de mais de mil anos. Além disso, tem muitas flores e pedrinhas empilhadas. As pessoas realmente usam o lugar na esperança de algo melhor. O cemitério não é frio, ou vazio, ele é extremamente acolhedor. Nele você se sente tão bem que quase perdi o ônibus da volta por não querer sair.

Marininha, ahh Mama, que cidade difícil ein. Difícil no sentido de que tenho tantas coisas pra falar, mas não consigo coloca-las em palavras. Koyasan foi a cidade do luto. Pra mim, tudo era luto naquela cidade. Não sei explicar, acho que era algo da “energia” sabe?

dança


existência + memória

Ah Mama, A Annabel existe na nossa memória, foi só disso que a gente falou lá em Koyasan.

Vou falar do cemitério de novo, dessa forma de ver a vida e a morte como tão paralelas. Pensando agora, todo cemitério deveria ser como o de Koyasan. Não que todo cemitério deva ser budista, mas todo cemitério deveria evocar a felicidade que aquele evoca, dentro de sua própria crença. Antes de tudo, eu sempre pensei que a morte não deveria ser tão necessariamente ruim. Pensando bem, não sei porque meu pensamento mudou tanto. Quando as pessoas morrem, guardamos a memória de sua existência. Deve ser por isso que depois que morremos, até nossos defeitos se transformam em qualidades. Pensar nas memórias que temos com quem não está mais aqui é sempre muito gostoso. Eles começam a existir dentro da gente, e tudo o que deles existe dentro de nós é bom. Um cemitério nada mais é do que um espaço físico de memória da existência de alguém. Essa memória não tem como ser ruim. Logo, não faz sentido que cemitérios sejam, em sua grande maioria, tão tristes.

presente



continuidade + inatingência

O cemitério era um quase corredor, uma espécie de “corredor radiado” que levava à subida de uma montanha extremamente sagrada no Japão. Acredita-se que lá no topo está um monge meditando a mais de mil anos. É um lugar muito, muito importante na cultura japonesa. Ele acaba em uma pequena ponte. Na outra margem, está o principal templo de Koyasan: o “Templo das Lanternas”. Jantamos, tomamos banho e fomos ao templo de noite, todos juntos. Passamos o cemitério inteiro e, quando chegamos, estava o templo inteiramente iluminado. Foi a coisa mais bonita que já vi em toda a minha vida. Nisso, comecei a pensar na diferença entre templos e santuários. Os templos são voltados a pessoas, santuários são voltados a entidades. Por isso, que entramos no templo, enquanto o santuário só pode ser visto de fora. O interior de um santuário será sempre inatingível a nós, meros mortais. Ele pode até ser vazio, que a este vazio damos uma conotação completamente outra. Me lembrou muito das lanternas antigas. Quando as vemos acesas, raramente pensamos que em seu interior, muito provavelmente, tem uma pequena lâmpada, não uma chama, porque, no fundo, não importa. Lá em Koyasan, pelo menos, pouco me importou. O interior daquelas milhares de lanternas me seria sempre inatingível, por lidar com o mais espiritual da gente. Mesmo sabendo que se contassem com fogo, elas incendiariam tudo, eu continuo acreditando que dentro delas há uma chama. É essa de continuidade que faz com que os santuários estejam sempre inatingíveis.

tropeço

A tumba, Marina, a tumba das lâmpadas.




3. Naoshima, Teshima e Inujima

motivo + presente

Todas as coisas têm um motivo para estarem presentes em algum lugar, mesmo esse motivo não sendo necessário. Naoshima, Teshima e Inujima fazem parte de um empreendimento focado justamente nisso.

perspectiva

Museus desse porte não poderiam, agora, ser construídos em lugar quase nenhum, imagine então um grande complexo deles. Um mundo constituído quase que por eles (foi esta a minha sensação lá) é alheio a quase todo o resto. Por isso, que eles estão presentes ali, naquele complexo de ilhas onde antes se produzia o pior arroz do Japão.

Era um lugar bastante degradado, pelo que ouvi, precisando de uma cara para ser integrado. Acontece que ele nunca seria integrado por meio de obras “básicas”, daquelas que verdadeiramente suprem nossas reais necessidades. Afinal, já temos isso perto de nós. No Japão, ninguém precisaria ir até Naoshima para fazer um exame ou retirar documentos. Para ir até Naoshima, é preciso que lá exista algo que só exista lá e, seguindo a lógica que eu tentei construir, esse algo certamente não servirá a nada que não o deleite de quem o visita. Naoshima, Teshima e Inujima são aquele presente que você recebe como um mimo, que te faz sentir bem. Este é seu único motivo para usá-lo.

Sei lá, águas vivas





perigo + burocracia

inferno

“Não pode tirar foto dentro do museu”

Comparamos constantemente as “imas” a Inhotim. Ele certamente seria o que temos de mais próximo no Brasil, porque você se deslumbra, quase como uma Disney. A grande diferença está na relação que os empreendimentos têm com as cidades próximas. Inhotim é assim: um fim em si. Você entra lá sem ter a menor noção da vida em Brumadinho. Quando eu fui com a Escola, só passar a tarde, Brumadinho mal existia. De Inhotim, ela não chega nem a ser vista. Naoshima e companhia não são assim. Primeiro que os museus não fazem parte de um parque fechado. Tem um (uma série de casas adaptadas a instalações, ou de instalações adaptadas às casas) que precisa da cidade e das pessoas para existir. Não tem a menor graça você entrar em casas normais com artes dentro se não existe nenhuma casa normal. A outra coisa, que não pareceu tão marcante mas foi muito, é que ficamos em Naoshima durante o feriado do Mar. Não sei muito como que funciona esse feriado, mas é uma das datas mais importantes do Japão inteiro, são três dias de total e completo feriado. As ilhas, apesar de viverem quase exclusivamente do turismo, não fugiram a essa regra. Elas se alternaram: a cada dia funcionava uma (na segunda foi Naoshima, terça Teshima e na quarta Inujima). Assim, enquanto uma estava aberta, nas outras reinava o silêncio absoluto, a ponto de não ter nenhum taxi na rua. Esse negócio do taxi, inclusive, foi uma questão. Estávamos lá no porto do Sanaa. O nosso hotel era do outro lado da ilha. Estávamos em 10, era muito tarde e todo mundo cansado. Não tinha um taxi sequer na rua. Já tínhamos aceito ir a pé quando um casal simplesmente se voluntariou a nos ajudar. Eles ligaram para a família e, menos de dez minutos depois, chegaram uns três carros para levar-nos todos ao hotel no maior conforto. Foi uma das coisas mais gentis que já fizeram por mim, ainda mais desconhecidos. Não teve burocracia alguma, e com isso perigo algum. Nunca teria entrado num carro de jovens estranhos, só em Naoshima.



bobina + gótico

Querida Marina, Sinto que estou mais engraçadinha no presente momento e portanto escreverei a próxima mensagem tal como me sinto. Partindo do ponto que tudo era meio enterrado e os góticos gostam de coisas enterradas acho que a palavra tem tudo a ver com o local. Mas agora falando sério, todos aqueles museus tinham uma coisa com a luz muito forte, pareciam catedrais góticas.

Agora, bobina eu não sei.

Nas imas não tem nada, absolutamente nada, de gótico. Na verdade, não me lembro de ter visto nada de gótico no Japão inteiro, o que é bem doido, de certa forma. Explica a bobina deles rebobinarem coisas tão extremamente diferentes das nossas. Ir pra Coreia do Sul e pro Japão me fez entender finalmente porque japoneses, coreanos e chineses tiram tanta foto no ocidente. Eu lá era igualzinha, e eu nem ligo tanto para fotos. É tudo muito diferente, tudo. Quer dizer, as coisas são as mesmas (restaurantes, lojas, mercados, metrôs), mas não podiam ser mais diferentes em suas semelhanças. Por isso, que lá todos nós fotografávamos principalmente o banal. Pensando agora, parte dessa diferença doida se deve também a no Japão não ter uma ilustração gótica.

progresso





4. Hiroshima

patrimônio + ideia

Toda a ideia de patrimônio no Japão é completamente diferente. A ideia de “originalidade” é outra que não cabe tanto ficar aqui explicando agora porque a explicação é muito clichê e facilmente encontrável em outros lugares. Mas, falando de forma bastante rápida, no Japão o original é o humano e aqui o original é a matéria. É que lá seria completamente impossível associar o material à originalidade, porque muita coisa foi destruída e reconstruída vezes várias demais para contar. É o ser humano que consegue fazer aquilo tudo de novo, da forma que só a ele cabe. Acontece que dentro dessas destruições há graus, graus de abalo a quem ouve a história. Ouvir de um terremoto, de um furacão, de uma enchente é muito triste, mas ouvir de uma bomba atômica é qualquer coisa de muito surreal. É o ser humano fazendo o que só ele sabe fazer. Ouvir de Hiroshima é normal, mas pensar que tudo aquilo aconteceu ali, numa cidade normal, é estranho, muito estranho mesmo. Você caminha por um parque, mas não era para haver parque nenhum ali se o ser humano não fosse tão horrível. Ver aquele esqueleto de construção ali no meio do parque todo queimado, pensar no que ele viu é dar ao patrimônio um outro valor. Aquele esqueleto ali é a materialização de toda a falência de uma ideia. E eu nunca tinha pensado em ver uma ideia tão horrível em forma de patrimônio.

necessidade

Querida Mama, Provavelmente a minha resposta pra essas palavras vai ser muito confusa, e se você vier a colocar ele no livrinho provavelmente ninguém vai entender, mas vamos lá. Uma das coisas que eu achei muito doidas em Hiroshima é que a cidade é muito moderna, mas ao mesmo tempo toda ela é um patrimônio, mas não por causa dos prédios antigos, mas por causa da falta de prédios antigos por causa da bomba. Tipo, é uma ideia totalmente diferente de patrimônio, é meio que um patrimônio material e imaterial ao mesmo tempo.


transformação + solidão

“A cidade sofreu uma grande transformação, mas ela está sozinha no mundo diante ao que passou”... bicho sei lá to sem inspiração.

oposto

Tenho grande dificuldade em lidar com transformações. Não é uma parte de mim da qual me orgulhe muito, então raramente falo dela, mas tenho grande resistência a mudanças. E transformações implicam qualquer mudança de muito grande. Quer sim, quer não, a transformação vem de como saímos da mudança. Às vezes, as coisas acontecem sem que queiramos, em menor ou maior grau. Lidar com elas nos maiores graus realmente parece impossível. É qualquer coisa de dilacerante. Mas ajuda muito não estarmos sozinhos. Quando tem mais gente passando pelo que estamos passando, junto com a gente, a transformação se torna muito mais fácil. A solidão consegue ser ainda mais dilacerante que a transformação. Foi assim comigo, neste ano, e deve ter sido assim em Hiroshima também. No museu da bomba atômica, tinha não sei quantos depoimentos de pessoas que perderam pessoas. Tais pessoas que perderam pessoas devem ter sido cruciais umas para as outras. Foi isso na escala de uma cidade inteira. A ajuda foi tanta que eles conseguiram criar aquele museu, com não sei quantos arquivos. Conseguiram se organizar para promover ações anti-bombas (tinha uma carta ao governo norte americano se posicionando contra testes nuclearas, ver que ela fora assinada em maio deste ano me dilacerou também). Essas pessoas todas juntas conseguiram mudar o posicionamento do mundo todo em relação a bombas nucleares. Essa transformação nunca teria acontecido se as pessoas estivessem sozinhas.




morbidez + esquecimento

É muito, muito, muito estranho pensar que Hiroshima e Nagasaki viveram a bomba atômica em cores. Conforme o tempo foi passando, essa história foi se dotando de cada vez mais morbidez, a ponto de me fazer esquecer que, na realidade, seria impossível que ela não tivesse se passado em preto e branco. Não falo das fotografias dos milhares de sofrimentos, estes nunca me foram pretos e brancos. Eu estou falando da fumaça da bomba, do cogumelo. Ela não era cinza, ela era luz. E ser luz é muito estranho, porque luz não combina com a nossa ideia de morbidez. Morbidez é tão cinza, ou sépia, que me fez esquecer o óbvio de ser impossível se queimar no escuro.

fobia

Querida Mama, Ai, essa é intensa viu. Sei lá, quando eu cheguei em Hiroshima eu achei uma cidade muito mórbida, não por algo em especifico, mas por tudo que você ouve da cidade sempre. E quando você tá lá não dá pra esquecer do que aconteceu. Eu achei a cidade muito doida mesmo. Parece que todos os fantasmas das pessoas vaporizadas pela bomba ficam sussurrando no seu ouvido que você tá em Hiroshima.





5. Kanazawa

amizade + amor

essencial

Ai, eu lembro quando a gente tava num shopping lá em Kanazawa, depois da Saboya ter passado horas na loja de 100 ienes e aí a gente desceu pro térreo e eu e você estávamos comprando uns negócios nas máquinas de cacarecos e aí a Karime recebeu a resposta de que ela tinha sido contratada por um escritório de design na Inglaterra e a gente comemorou muito juntas e foi muito legal.

Eu amo minhas amigas.

Foi em Kanazawa que fomos ao karaokê pela primeira vez. Eu me lembro muito bem de ter saído para jantar, comer sushi na esteira de um jeito muito doido (era tudo muito mecanizado, mal havia garçons). Como não tinha ninguém para perguntar (ninguém tinha muita paciência), acabei pedindo errado e, ao invés de pedir seis sushis, eu pedi seis duplas. Na hora, eu fiquei meio chocada, mas no fundo, achei ótimo, porque estava realmente excepcionalmente bom. Enfim, voltando ao que interessa, eu comi demais. Já tínhamos combinado de fazer algo à noite, mas eu estava “pesada” demais para isso, me sentindo total esculhambada, certamente não iria a lugar algum. Foi aí que encontrei parte do grupo no caminho do karaokê. Falei que certamente não iria a lugar algum. Bastou me dizerem sorrindo muito “você realmente vai perder a oportunidade de sair em Ribeirão Preto do Japão?”.

Fui e me diverti absurdos. Eu realmente amo muito os meus amigos.





suicídio + nascimento

Viver o século 21 é doido. Ter passado a maior parte da minha infância no século 21 é mais doido ainda. Isso faz com que eu vá a um museu de vidro redondo com uma piscina simulada e fique fascinada com a exposição de um designer gráfico japonês do século 20. Não fiquei tanto tempo vendo o prédio, mas passei horas na mesma sala vendo cartazes. Nos comparar a gerações mais velhas é, neste sentido, bastante curioso. Por exemplo, fizeram questão de ficar falando que, ao contrário da arquitetura moderna, aquela do Sanaa nunca seria eterna. Eu não acho que arquitetura nenhuma seja eterna. A própria ideia de dar a eternidade a uma ideia já é bastante esquisita, quem dirá, então, a fiel crença de uma ideia como eterna. Isso só acontece, acho, porque vivi uma parte muito grande da minha vida no século 21. Nasci no século 20, mas vivi o 21 cedo demais. Estou mais que acostumada a ver as ideias se suicidando dentro de seu próprio tempo. Nesse sentido, um museu que se propõe retratar o século 21 o fez de forma excepcional: ele conseguiu parecer efêmero a uma pessoa de outro século sem que ela perceba a sutileza.

carrossel

Samurais e o bairro dos samurais que a gente não foi, kkkkkkkkk



banalidade + processo

Querida Mama, Escrevo essa resposta para perguntar-te encarecidamente se todas elas precisam de uma resposta da viagem, pois se não for o caso, a minha resposta é que eu não tenho uma resposta. Atenciosamente,

Sua querida amiga Júlia.

Vou de novo falar do Museu do Século 21, até porque ele foi o único motivo para nos hospedarmos em Kanazawa. Pensando bem, esse não é o único motivo por ter me lembrado logo do museu. É que eu acho que poucas palavras são tão século 21 quanto “banalidade”. É que, provavelmente, foi o século 21 que me fez ver qualquer processo como uma enorme sequência de banalidades, talvez o contrário. Foi o século 21 que deu a muita gente a capacidade de tirar fotos sem precisar comprar filmes. Com isso, podemos fotografar literalmente qualquer coisa, menos aquelas demasiado valiosas para serem fotografadas (tinha um fila para fotografar-se dentro da piscina simulada, mas não era permitido fotografar os cartazes do designer). Assim sendo, acabamos fotografando uma enorme sequência de banalidades (o que nos é mais banal que nosso próprio rosto, por exemplo). Nos nossos celulares, conseguimos organizar as fotos por dias. Ao ficarmos passando nossas fotos no celular, reconhecemos nosso dia a dia como o enorme acúmulo de momentos quase tão banais quanto aqueles. Considerando que nossa vida é composta por nosso dia a dia e que nos tornamos quem somos por meio de processos que só nós reconhecemos, nossa vida se resume a banalidades em processo.

inevitável



6. Tokyo

natureza + ideia

É muito legal que Tokyo é uma cidade muito parecida com São Paulo em alguns aspectos, mas eles tem muito mais verde lá. Outra coisa que eu gostei muito era que um dia eu e estava andando com a Karime e a gente entrou num cemitério sem nem saber, tipo do nada, não tinha nem muro de nada, era como se fosse um parque e era muito, muito verde. E muito bonito. E muito gostoso.

anormal

Estava pensando essa semana na ideia de natureza que nós mesmos criamos. A gente não pensa que ela seja tão artificial quanto todas as nossas outras ideias. A gente pensa que o estado natural das coisas seja tudo aquilo em que nós não estejamos, mas eu não acho que seja bem assim. Uma cidade tão caótica quanto Tóquio é tão natural quanto uma floresta. Afinal, se tratam de dois ambientes que contêm, dentro de si, a vida de inúmeros outros seres. Pensando bem, a ideia de Tóquio é muito mais natural a meu cotidiano que qualquer paisagem virgem. Eu estou acostumada a inúmeras coisas acontecendo ao mesmo tempo, pessoas que nunca vi nem nunca mais verei, barulho, notícia e fumaça. Só me vejo em realidades “tranquilas” quando estou de férias. Isso que é doido. São Paulo já é uma cidade enorme. Normalmente, vou a lugares muito menores, em que não acontecem coisas 24 horas, por maiores que eles sejam. Tóquio foi uma das poucas cidades que já fui que supera São Paulo nesse sentido. Em comparação a Tóquio, São Paulo parece pequena. A hora do rush de Tóquio é tanta gente que até eu me impressionei. Não estou acostumada a essa ideia até agora. É outro mundo real. É uma natureza que assustou até a nós, que moramos na quinta maior cidade do mundo.



capítulo + ajuda

Tóquio foi a última cidade que visitamos. Apesar de ainda termos uma semana inteira de viagem (ficamos em Tóquio de domingo a sábado), tinha um que de último capítulo. Eu estava muito ansiosa para chegar em Tóquio, desde de Seoul. Era uma outra capital que eu poderia comparar, era o lugar que eu reservei para comprar as minhas roupas, é a Tóquio que tanto aparece nas músicas, sabe, em muitas músicas. Mas, eu ficava o tempo todo “falta tempo até Tóquio”, “falta muito tempo até lá”, esse tipo de coisa. Até que o tempo passou e, de repente, eu estava finalmente em Tóquio. Naquele domingo, fui desenhar em Ginza (a principal avenida de Ginza vira um calçadão, lembra bastante a Paulista). Algumas pessoas foram fazer compras, mas eu não queria muito. Precisava passar um tempo pensando, porque voltar para o Brasil significava voltar a uma realidade em que eu precisaria de ajuda. Foi aí que eu encontrei uma amiga que também queria muito desenhar. Resolvemos fazer um desenho juntas, aproveitando que a rua estava fechada para sentar no meio dela. Menos de 10 minutos depois, a rua abriu de novo e a gente se mudou para a calçada normal. Muita gente parou para nos ver. Fizemos até um amigo chinês muito fofinho, tem foto e tudo. Quando terminamos o desenho, o dia tinha acabado, tinha que voltar para o hotel. Conversamos sobre tudo estar passando tão rápido e daqui a pouco ser a hora de voltar. Eu não queria voltar, ela também não. Mas, pensando bem, ainda tínhamos Tóquio inteira. Tóquio certamente merecia um capítulo inteiro que ainda não tinha passado. Eu nem agradeci à ajuda na hora, deveria ter agradecido. De qualquer forma, está aqui meu agradecimento. Naquela hora, a gente ainda nem sabia que ficaríamos completamente perdidas antes de chegar no hotel.

desespero

Posso apenas dizer que Tokyo foi o último capítulo dessa louca aventura que eu tanto amei, e que tanto me ajudou a superar meus medos, traumas e inseguranças e começar uma nova fase da minha vida. (kkkk que brega).


saudade + futuro

Querida Mama, A saudade caiu como última luva nessa última combinação, porque contando essas histórias do Japão e lembrando de tudo que a gente viveu lá me bateu uma saudade muito grande. O que eu tava pensando outro dia também é que eu posso até ir pro Japão mais uma vez na vida, mas eu acho que nenhuma outra viagem que eu fizer pra lá vai ser tão boa quanto essa, porque não vai ter as mesmas pessoas, e foram elas que fizeram a viagem.

Sempre me irritou bastante não conseguirmos falar com nossas versões futuras. Já tentei estabelecer algumas comunicações, mas é sempre o futuro falando com o passado, nunca o passado com o futuro. Por isso, sentimos saudades. Eu sinto bastante falta de julho, como um todo. Mas, a coisa que eu mais sinto saudade de julho é aquele impulso que eu tive em fazer as coisas. Eu tive várias ideias que eu quis muito realizar e que, agora eu esqueci. Não que tenha esquecido a ideia como um todo, mas esqueci a vontade. Não entendo mais o que seria tão legal em realizá-las. A primeira coisa que consegui fazer desde julho foi isso, e nem sei se vai ficar legal ainda. Acho que tenho sentido muita saudade da vontade de fazer coisas no futuro próximo, que eu tive muito em julho.

dicotomia





LIVRO COMPOSTO NA FONTE TIMES NEW ROMAN E IMPRESSO EM NOVEMBRO DE 2019 SOBRE PAPEL PÓLEN 80 EXPOSTO NA GALERIA DA CIDADE EM NOVEMBRO DE 2019 E NA JAPAN HOUSE EM FEVEREIRO DE 2020




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