NĂşmero 63 - 4 de agosto de 2020
Giles Lapouge 1923-2020
Giles Lapouge (Digne-les-Bains, 7 de novembro de 1923 — Paris, 31 de julho de 2020)[
Ele passou a sua infância na Argélia, onde o pai era militar. Estudou primeiro história e geografia, antes de tornarse jornalista. Ele contou sua ida para o Brasil em seu livro Equinoxiales, salientando seu desembarque no Rio de Janeiro e sua viagem para São Paulo, onde chegou no dia 20 de Janeiro de 1950.[2] Ele trabalhou como redator econômico no jornal O Estado de S. Paulo, na época o mais poderoso da América Latina.[2] Três anos depois, em 1953, voltou para a França, onde habita, continuando a escrever crônicas para este jornal há mais de 50 anos. Numa entrevista dada a jornalista Raphaëlle Rérolle, da edição online do jornal Le Monde, ele disse, sorrindo: « Eu calculei haver escrito [para o Estadão] o equivalente de 60 volumes da Pléiade,[3] célebre coleção de livros que publica obras completas de grandes autores. O acervo das crônicas de Gilles Lapouge pode ser consultado no Estadão,[4] provando a singular fidelidade do jornalista ao jornal
brasileiro e sua erudição fora do comum, permitindo-lhe abordar assuntos referentes a diversas disciplinas com grande mestria. Três anos mais tarde, voltou definitivamente para o seu país natal, começando a colaborar com os jornais Le Monde, Le Figaro Littéraire e Combat. É que este escritor, autor de ensaios, de narrações, de romances, jamais deixou de ser jornalista. [3] Pouco tempo depois, começou a trabalhar na estação de rádio estatal France Culture onde ficou 20 anos,[3] produzindo a emissão Agora e em seguida En étrange pays. Quase ao mesmo tempo, convidado pelo jornalista e escritor Bernard Pivot, iniciou uma longa colaboração no programa literário semanal de televisão Ouvrez les guillemets , que mais tarde passou a se chamar Apostrophes, um dos programas literários mais célebres da história televisual francesa. Morreu no dia 31 de julho de 2020 em Paris, aos 96 anos. WIKIPÉDIA
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O escritor do Brasil. Maria Fernanda Rodrigues, O Estado de S.Paulo O jornalista francês Gilles Lapouge, correspondente do Estadão em Paris, que morreu aos 96 anos em 30-07-2020, viveu por muitos anos no Brasil e a experiência e a saudade do País resultaram em pelo menos cinco dos cerca de 25 livros que escreveu ao longo de sua trajetória. O mais recente a ser publicado, durante a pandemia, foi Noites Tranquilas em Belém. O romance de 2015 foi lançado agora pela Pontes Editores que tem, ainda, em catálogo, Equinociais: Viagens Pelo Brasil dos Confins, publicado originalmente em 1977 e, no Brasil, em 1990. Noites Tranquilas em Belém é um livro multifacetado em que as culturas brasileira e francesa se mesclam num jogo de complementaridade. A vida do narrador se transforma do dia para a noite e um quebra-cabeça começa a ser montado com as peças que lhe são fornecidas pouco a pouco. Trata-se da busca da própria identidade e tudo o que se constrói a partir dela: amores, memórias e projetos. E, nessa busca, longe da França, pelas ruas, mercados e favelas de Belém, ele é guiado pelas mãos de uma criança. Em Dicionário dos Apaixonados pelo Brasil, lançado em 2014 pela Amarylis e em 2011 na França, Lapouge faz sua crônica do País a partir de palavras e nomes como acolhida, favela, escravos, Palmares, literatura e antropofagia, Rio Amazonas e Jorge Amado.
A Missão das Fronteiras, de 2002 e que saiu pela Globo em 2005, parte da aventura rocambolesca de uma tropa de soldados brancos e mamelucos encarregada de levar um marco de três toneladas para a fronteira mais ocidental da América portuguesa, nos confins da Amazônia, no século 18. Em 2000, o Estadão publicou a versão digital, a única disponível e com acesso gratuito, de Au revoir l’Amazonie, com tradução de Lauro Machado Coelho. Os interesses de Gilles Lapouge iam além do Brasil, seus personagens e suas contradições, e sua obra, de ficção e não ficção, foi traduzida para diversos idiomas. Ele estreou na literatura no final dos anos 1960 com Os Piratas: Piratas, Flibusteiros, Bucaneiros e outros Párias do Mar (Antígona, 1998), em que trata da pirataria como a revolta mais extrema e longeva que a humanidade conheceu. Em 1987, saiu na França e no Brasil (aqui pela Nova Fronteira) A Batalha De Wagram, sobre o confronto do exército de Napoleão Bonaparte com o austríaco em 1809. Mais recentemente, publicou, em seu país, Contribution à une Théorie des Climats e Atlas des Paradis Perdus.
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Em Paris, o últim Luiz Carlos Lisboa
Dia 3 de maio de 2018 foi o dia combinado com Laerte Fernandes, em São Paulo, para nosso almoço com Gilles Lapouge em Paris. Seria na Brasserie Cafè du Commerce, restaurante favorito dele. Chegamos, eu e Mara, exatamente na hora combinada porque sabíamos da pontualidade daquele francês. Percorremos com o olhar a vasta sala à nossa frente e não localizamos o belo cabelo branco do Gilles. Falamos com o maitre e ele consultou seu relógio. Estranho, ele já devia estar ali, não sabia explicar. Decidimos esperar nosso amigo na porta do restaurante. Já na calçada, veio o maitre correndo em nossa direção. “Desculpe, houve um engano, o sr. Lapouge estava lá dentro. Numa sala especial, mais tranquila, onde ele encontra os amigos, vamos lá, por favor, venham comigo.” E logo encontramos o sorriso de Gilles, seu abraço educado e sua simpatia francesa. Falamos de início, mas não me lembro a que propósito, sobre os dias da Segunda Guerra mundial em que a França foi tomada de surpresa e dominada pelas tropas nazistas, e Gilles comentou o trabalho heroico da resistência e a luta dos maquisard. Mas havia alguma coisa no ar que eu não entendia bem. A partir daí eu quis sondar o vago pessimismo que parecia rondar o antigo e querido correspondente do Estado. Conversávamos em francês e ele me perguntou como eu falava
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quase sem sotaque a língua local. Contei que tinha vivido alguns anos em Paris por volta dos 20 anos. Mas minha familiaridade com o francês havia começado bem mais cedo. Tive uma avó francesa que morava em São Cristóvão, no Rio, com quem às vezes passava temporadas. Numa casa onde havia quatro ou cinco cães, com que eu gostava de brincar. Mas agora ali, falávamos em francês também porque Gilles estava muito esquecido do português. E o que ele me disse então era que estava cansado primeiro com a situação do mundo, depois um pouco de si mesmo.
mo café
Meu Deus, por quê? “O homem não aprende, o homem não aprende”, ele repetia, esboçando um leve sorriso. A beleza, a poesia e a arte em geral estavam em toda parte, quase em todo o lugar onde se presta atenção, mas o homem, esse o problema, o homem era capaz de tudo, exceto de olhar para si mesmo. Ficamos um instante calados. Não me recordo exatamente dos termos que ele usou para falar o que eu acabava de ouvir. Disse-lhe que quando viesse ao Brasil queria apresentá-lo a uns amigos que já o conheciam muito de nome.
Gilles Lapouge fez um gesto que todos dizem ser absolutamente francês, encolhendo os ombros: “Quer que lhe diga?” perguntou. “Gosto imensamente do Brasil e da sua gente e por isso lamento. Não acredito que vou voltar ao Brasil novamente”. E aí desconversamos. Quando nos despedimos na calçada ele parecia tranquilo como sempre. E acenou com um leve movimento de mão. Numa sacola ele levava três livros meus que lhe dei. Nunca mais tornei a ver esse homem incomum, esse trabalhador incansável, esse intelectual perfeito.
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Adeus, Gilles Lapouge! Carlos Brickmann Não tive o prazer de conhecer Gilles Lapouge em pessoa. Mas conheci boa parte da obra de Gilles Lapouge. Um ótimo repórter, ótimo pensador, jornalista completo, uma beleza de escritor. Valia a pena ler o que publicava no O Estado de S. Paulo. Valia a pena ler O Estado de S. Paulo. Pois foi lá que eu, ainda muito jovem, vi o que jamais imaginaria: Lapouge, correspondente em Paris, adversário de primeira hora do regime mllitar brasileiro, contestando a opinião do patrão Ruy Mesquita, um dos articuladores da deposição do presidente João Goulart. O Estado passou a se opor ao regime militar tão logo se tornou claro que não havia a menor intenção de devolver o poder aos civis. Mas, naquela época, a famílila Mesquita acreditava que os militares se limitariam a colocar ordem na casa e, em menos de dois anos, convocariam eleições diretas (no caso, seu candidato era Carlos Lacerda). Pois o duelo entre o dono do jornal e o correspondente na Europa durou um bom tempo - a cada dia, um respondia ao outro. Jamais Lapouge foi cerceado por contestar o chefe; isso jamais passaria pela cabeça de Ruy Mesquita, um homem notável. A cada dia, eu lia o debate - um belo debate, de altíssimo nível, enriquecedor. Minha posição pessoal era muito mais próxima da de Ruy. Mas Lapouge, o tempo mostrou, tinha razão.
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Vale a pena lembrar o Estadão - onde mais esse duelo seria possível? A família Mesquita tinha tradição: Jorge Amado, comunista numa época em que ser comunista dava cadeia, e não xingações em redes sociais, contou que, quando tinha problemas, sabia buscar soluções com os Mesquita. Ali conviviam dois militantes católicos que discordavam em tudo, Hélio Bicudo e Lenildo Tabosa Pessoa - ambos intelectualmente bem formados, mas adversários desde as posições da Igreja Católica até a política internacional. Havia jornalistas próximos ao fascismo, e um dos principais editorialistas do jornal, o brilhante Miguel Urbano Rodrigues, era dirigente do Partido Comunista Português. O Miguel Urbano tinha desprezo por Churchill, “homem da guerra fria”, e para mim Churchill tinha sido o maior estadista ocidental do século. Duelávamos na redação do Jornal da Tarde, sempre amigos - e levei algum tempo para entender que esses debates contribuíram para minha formação, já que não podia enfrentar um intelectual como Miguel Urbano estando despreparado. Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir foram jantar com Júlio de Mesquita Filho no sítio de Louveira. Conversaram, naturalmente, em francês. Nada os unia, exceto o prazer de dialogar com gente inteligente, que o casal partilhava com o Dr. Júlio. E mais uma história de Lapouge: Ruy Mesquita pediu-lhe que convidasse Régis Debray, o antigo revolucionário pró-cubano que escreveu “A Revolução na Revolução”, o companheiro de
Ché Guevara na guerrilha da Bolívia (onde ficou quatro anos preso, condenado à morte, até ser libertado) para vir ao Brasil fazer uma palestra. Debray veio, por conta do Estadão, com Lapouge. E Ruy os levou para jantar em Louveira. “Foi um bate-papo
fascinante”, comentou Lapouge. Saudades de Gilles Lapouge, que morreu neste dia 31. Saudades dos tempos em que adversários políticos se reuniam para conversar, trocavam ideias e aprendiam uns com os outros, sem medo e sem ódio.
Afável, atencioso, quase sentimental. Waldecy Tenório Fomos amigos à distância e toda vez que ele vinha ao Brasil retomávamos a conversa iniciada desde quando eu era um dos editores do Suplemento Cultura do jornal “O Estado de S. Paulo”. O que havia de novo na literatura brasileira? Ele queria saber, mas logo voltava aos seus “clássicos” e perguntava se afinal o Brasil estava dando a eles o seu devido valor. Aos poucos foi se distanciando.
“Não conheço mais o Brasil”, queixava-se com uma infinita tristeza. Não compreendia como pudemos chegar à situação a que chegamos. Desde que nos conhecemos, tive um grande respeito pelo profissional que ele era, e pelo seu jeito de ser afável, atencioso, quase sentimental. Tenho orgulho de ter-lhe apertado as mãos algumas vezes. Por tudo isso escrevo estas linhas com muito sentimento, guardando a lembrança de textos nos quais aprendi muito - elegantes, precisos, irônicos, sensíveis, belos.
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Paris não será a mesma. Moisés Rabinovici Senti-me sem fala, assim que soube da morte de Gilles Lapouge, querido amigo, brilhante intelectual, premiado escritor na França, o melhor correspondente do Estadão no exterior, e uma pessoa humilde, simples, sensível, delicada e muito acessível. Em dois de nossos almoços, gente de outras mesas veio lhe perguntar: “Monsieur Lapouge?” Ele confirmava, parava de comer para papear, encantava. Quem sabia onde ele almoçava já trazia um de seus livros para lhe pedir dedicatória. Não gostava muito do que ele sempre comia, tripous, prato de tripa de ovelha recheada com carne de carneiro, ervas e vegetais, acompanhado de um bom tinto. Íamos a pé para o restaurante, nossos “studios” distantes um do outro uns 20 minutos. Ele passava o dia num porão entulhado de livros pelas prateleiras, chão e até sobre uma cama de solteiro. A tardezinha ouviamse as vozes dos estudantes do liceu em frente, saindo para casa. Trazia a alegria do coro de uma passarada. Lapouge era conhecido na França porque convidado frequente de um célebre programa literário na TV chamado Apostrophes, líder de audiência às sextas-feiras, e porque publicou muitos livros que lhe valeram a indicação para o Grande Prêmio do Romance da Academia Francesa e os prêmios Femina de Ensaio
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e Deux Magots. Ele adorava o Brasil, tanto que escreveu o Dictionnaire amoureux du Brésil, e chamava o Estadão, orgulhosamente, de “meu jornal”. Ao Le Monde ele disse, certa vez, que deveria ter escrito para o “mon journal” o equivalente a 60 volumes da Plêiade, coleção de obras completas de grandes autores. Sem o Reali Júnior e sem Lapouge, Paris, para mim, jamais será a mesma.