JT Sempre Número 57

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Número 57 - 20 de abril de 2020

Vivendo em

portugal

Há quatro anos, Chico Santa Rita e Fernanda Zuccaro decidiram trocar o Brasil por Portugal. Lá, foram para a região do Douro onde Chico queria realizar o Sonho de sua amada Fernanda: fazer vinhos. Fernanda é historiadora. Nas páginas seguintes, ela relata como alemão Alzheimer chegou de mansinho e tomou conta do Chico Santa Rita. Ela quer escrever um livro contando a história de seu amor. E faz um convite: Você conheceu o Chico? Tem alguma passagem com ele? Ela gostaria de incluír Você na história do Chico. Leia nas páginas seguintes.


Um outro alemão na

Fernanda Zuccaro Conheci o Francisco em uma entrevista de trabalho. Foram três horas de conversa. Já trabalhava no marketing político e desafiei-me a ir trabalhar para/com ele. Coordenei campanhas para ele por mais de anos antes de nos envolvermos. Sempre com o respeito e profissionalismo que lhe é único. Nos casamos em final de 2008. Posso dizer que vivemos um casamento pleno. Cheio de amor, vida, trabalhos e realizações. Foram 12 anos. Hoje é diferente. Eu vi o alemão entrar sem bater à porta. Eu vi o Alzheimer chegar de mansinho e se instalar cada

vez mais forte. A dor que eu sinto ninguém sente. Eu vi os primeiros sinais de perda de memória. Os primeiros sinais da demência. Do simples esquecimento da carteira no avião a esquecer-se de mim, Fernandinha, esposa dele, dos filhos, dos amigos, de todas as suas memórias. O processo foi gradual e lento. Nos apegamos a esperança que se tratava apenas de uma situação momentânea. Quantos não foram os dias que, ao acordar, olhava para ele na esperança do meu Francisco José estar lá. Mas, passados alguns instantes, a realidade era que somente o corpo do Francisco estava lá. O meu Francisco José, o homem jornalista, publicitário, empresário, racional, cheio de

O jt Sempre é uma publicação com um único objetivo: manter viva a memória do Jornal da Tarde. É, acredito, a melhor forma de nos manter em contato, trocar informações, promover encontros para o papo agradável de sempre. Você pode participar. Mande sugestão, artigo, matéria, foto, histórias para mariomarinho@uol.com.br No campo “Assunto”, coloque: “JT Sempre”. Responsável: Mário Marinho.

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vida do

Chico Santa Rita

Chico e Fernanda

vida, atitudes e realizações não estava. O homem conhecido publicamente no Brasil e no mundo como Chico Santa Rita, marqueteiro e um dos fundadores do marketing político após a redemocratização no Brasil nos

deixou. Sobrou, apenas o corpo e memórias esparsas do que ele foi um dia ou do que quis ser... ou alguém da sua imaginação... Muitas vezes penso que Chico sabia que iria adoecer. A decisão de se mudar para Portugal foi uma forma de envelhecer e adoecer fora de

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cena. Ausente. Sei que quer ser lembrado como O CHICO SANTA RITA. Desde o diagnóstico (exame de ressonância magnética), realizado em outubro de 2018 iniciamos um tratamento para tentarmos estabilizar e manter a qualidade de vida. Estancar o avanço da doença. Travar a demência. Segundo os médicos, mais especificamente, segundo os estudos médicos, havia reserva cognitiva suficiente para segurarmos, travarmos o avançar da doença. Este estudo foi feito pelo professor Marques Teixeira e sua equipa, que foram os médicos quem trataram do Francisco José aqui no Porto, em Portugal onde vivemos desde final de 2016.

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Por um tempo funcionou. Mas, a partir de abril, maio de 2019 houve uma queda brusca de suas habilidades cognitivas bem como de sua interação com o mundo. Francisco desaparecia, dia após dia.Ele sempre foi um cozinheiro, um chef de cozinha. Desde fevereiro/março de 2018, Francisco parou de cozinhar. Confessou-me: “ Não entendo mais as receitas. Não lembro delas.” Escolher as roupas, tarefa simples do dia a dia, não existia mais. Não tinha mais discernimento do que era cada roupa. O que combinava com o que. O que era pijamas e o que era roupa de sair. Gradativamente foi perdendo as habilidades de leitura, de senso crítico – o que sempre


o caracterizou como um expert em analises de cenários políticos – habilidades da escrita e a memória ia deixando espaços vazios. Deixei de trabalhar. Fazia o quê e como podia. Deixei de acompanhar a produção dos vinhos, controle das vinhas, processo de marketing, processos administrativos e financeiros da empresa pois, Francisco era e é minha prioridade. Deixe minha vida de lado para me dedicar totalmente a ele. As noites sempre mal dormidas por quê Francisco se mexia na cama, eu acordava. De dia, Francisco pedia alguma coisa, eu estava pronta a decifrar e identificar o que queria. Os momentos de lucidez foram diminuindo. Eu era, por dia, várias pessoas diferentes: sua mãe, sua irmã, uma de suas filhas, sua exmulher, uma qualquer pessoa. Francisco começou a conversar com a televisão. Pensava que, o que via na tela estava em casa. Um dia fez-nos colocar a mesa do almoço para umas 10 pessoas. Dizia: acabando o jogo aqui vamos todos almoçar. O que para ele era mais valioso, seu instrumento de trabalho e de toda a realização da sua vida sucumbia-se a essa maldita doença: a demência.

O Alzheimer. Francisco sempre disse: “só faltava fazer o vinho e ver minha biografia escrita pela Fernandinha.” E foi isso que viemos fazer em Portugal. Em 2010 decidimos juntos, que iríamos nos preparar para mudar de vida. Em uma viagem para o Uruguai, em outubro de 2010, Francisco perguntou-me: o que queres fazer da sua vida Fernandinha? Eu respondi: vinhos. Escolhemos o Douro e o Douro nos escolheu. Honro e reverencio o legado que meu marido me deixou: o compromisso de honrar sua memória e sua história; o compromisso de honrar a Quinta Alta e os seus vinhos. Hoje sabemos que a doença tomou conta do Francisco. Que ele precisa de atendimento 24 horas. Precisa ter um atendimento que cuide, zele, ofereça total segurança para ele e para os que estão em sua volta. E isso ele tem. Com sua racionalidade e lucidez sempre que podia conversava comigo sobre o dia que eu precisaria tomar determinas decisões. Dizia ele. “ Fernandinha, tenho o dobro da sua idade. Quero que vivas tudo ou mais que eu vivi. Não olhes para trás. Voe. Faça tudo que queira fazer. Apenas continue você cuidando de mim. Quero ficar perto de você. E, viva Fernandinha, eu já vivi tudo que eu quis. E saiba, desde sempre,

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que estarei olhando por ti e sempre te amando.” É isso que comecei a fazer desde janeiro de 2020. Amigos queridos do JT, nosso Francisco está com demência mista e Alzheimer. Como diz um grande amigo nosso, José Luiz Franchini Ribeiro: “Nosso Chico, Chiquinho pegou seu cavalinho e foi passear nas terras do Francisco...” Amigas e amigos de Chico Santa Rita, convido-os para quem quiser escrever uma passagem de vossa vida com o Francisco. Quem tiver uma história, uma memória para compartilhar que o faça. Que ilustre tal momento com uma foto, com um símbolo ou algo que lhe faça lembrar do que viveram juntos. Eu desejo montar um arquivo digital dessas memórias ou um livro, ou os dois. Mas o mais importante é que gostaria de poder ler todas essas histórias ainda para ele.

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Fica aqui meu pedido. Meu e-mail é Fernanda@ chicosantarita.com.br e meu telefone whatsapp é +351 916 752 220.

Fernanda Zuccaro é Historiadora, Mestre em Comunicação Social e em Enologia e Viticultura. Esposa do Chico Santa Rita, dirige a Quinta Alta Unip. Ltda, empresa produtora de vinhos que os dois idealizaram juntos. Os vinhos QALT chegam ao Brasil até junho, se tudo correr bem! Promessa da Fernanda que nós aguardaremos com ansiedade - e sede - aqui no Brasil.


Fernanda no vinhedo, na página, à esquerda, em casa há pouco mais de um ano; na foto ao lado, este ano, um pouco antes de começar a quarentena e abaixo a marca da propriedade.

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Qual é mesmo o seu

Chico Santa Rita escreveu para o JT Sempre uma seção chamada “Causos do Chic

Chico Santa Rita O meu nasceu de uma distração da minha avó, em cidadezinha do interior do Paraná, onde só tinha uma rua... e uma parteira. Pra socorrer minha mãe a bandida me largou “morto”, em cima da roupa suja de parto. Sem reparar no sexo, dona Luiza chacoalhou o corpo inerte, rezando promessa pra Santa Rita: caso sobrevivesse, receberia o nome dela. O que acabou acontecendo por inteiro, entre o Francisco José e o Behr – sobrenome do meu pai. Com nome tão longo, tive que abreviar. Aparecia completo só na carteira de identidade, ou na voz da minha mãe. Num final de tarde estou em reunião com repórteres, redatores, colunistas, outros editores, quando toca o telefone. Alguém (juro que não lembro quem – talvez o Fernando B) atende e, na pressa, levanta a voz: - Não minha senhora, aqui não tem ninguém com esse nome! Desconfiado, pergunto o que aconteceu. - Era uma louca querendo falar com um tal Francisco José! Agora, depois disso tudo, volta e meia também sou chamado de Sant’Ana, Santa Maria, Santa Lúcia. Nem me importo, pois todas elas são companheiras celestiais da minha mãe. Ainda no meio deste ano, entrevistado sobre meandros do marketing político, os solertes repórteres do portal UOL e, dias depois, do Correio Braziliense, tascaram lá: “o consultor Chico Santa Rosa disse que...” Nem se deram ao trabalho de consultar meu site. É! Já não se fazem jornalistas como antigamente. Nem políticos/estadistas, como o Dr. Ulysses Guimarães – vejam a campanha presidencial que está em curso. No final do processo eleitoral em que ele era o candidato certo, na hora errada, entregoume o texto que queria falar na TV, solene, dentro da sua ingênua santidade: - Aqui está, Santa Maria. Com este pronunciamento vamos virar a eleição!

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Lá pelos fins de 1968 eu mesmo tinha feito uma troca oportunista de nome, que acabou desvendada, com certa graça. O causo: Alberto Helena Jr., contratado para dirigir a redação da Última Hora, inventou de fazer a edição dominical incrementada, meio revista, como fazíamos no JT aos sábados. A última página era uma coluna de variedades, à qual demos o pomposo nome de “Psiu!”. Seria hoje uma espécie de Mônica Bergamo, ou Sonia Racy: notícias + fofocas + artistas + o que pintasse na “pretinha”. Combinamos segredo absoluto, pois na condição de Editor de Variedades do JT eu não poderia aparecer como autor do texto, que acabou assinado por um tal Carlos de Albuquerque. Pois não é que o “Psiu!” começa a fazer um certo sucesso?! Tenho dito sempre que “segredo é coisa que eu sei... e não conto pra ninguém”. Tanto é verdade que uns dois meses depois, sou chamado à sala do Murilinho. Ao entrar vejo no rosto dele aquele riso meio sacana, que ele sabia ostentar com simpatia. Fala mansa e pausada como sempre, foi direto ao ponto: - Então, Sr. Carlos de Albuquerque, muito interessante o texto sobre a construção da beleza da Rachel Welch. Claro que meu free-lancer, segredo de polichinelo, foi pro espaço e só pude lamentar a perda daquele rico dinheirinho. Mas o Murilo sabia das coisas: pouco depois me indicou para a Lucinha Fragata – secretária de redação do Suplemento Feminino – que procurava alguém para fazer críticas e indicações de livros. Como ali, desde a direção da Cecília Mesquita, tudo era feito por mulheres – talvez eu devesse arranjar um pseudônimo feminino. Mas não precisou: a coluna passou a ser assinada pela Rita Behr.


nome?!

co”. Abaixo, o artigo que ele escreveu para o número 5, de outubro de 2014

Cachaça do Chico Era produzida comercialmente por empresa da qual Santa Rita era sócio. Quando deixou a sociedade, quatro anos atrás, continuou produzindo, agora só para atender o consumo próprio e o paladar dos amigos. O novo nome veio naturalmente pela forma como ela já era conhecida: “Cachaça do Chico”.

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Chico participou de muitos dos nossos encontros, enquanto esteve morando no Brasil. Mas, mesmo em Portugal, marcou presença em um de nossos Encontros da Cantina do Gigio, quando mandou seu filho levar alguns litros da Cachaça do Chico. Luciano Ornelas, Gilberto Mansur, Mário Ribeiro, Chico Santa Rita, Fernando Mitre, Laerte Fernandes, Roberto Araújo e Mário Marinho (sentado). Encontro anual do Jornal da Tarde, 2015. Abaixo, no Encontro de 2014.

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Alzheimer, essa triste doença. Mário Marinho Talvez a maior tristeza causada por esse mal chamado Alzheimer é a perda, ainda em vida, de um ente querido. Sim, porque é isso que acontece. Num dia Você tem essa pessoa querida a seu lado. No outro, tem uma pessoa absolutamente desconhecida. Minha mãe foi uma das milhões de vítimas dessa doença que é considerada a mais estudada do planeta e permanece com suas causas classificadas de “pouco conhecidas”. Desde a Antiguidade ela aflige a humanidade. Tempos atrás, dizia-se que a pessoa estava caducando quando deixava de se lembrar das coisas e apresentava confusão mental. Sempre foi estudada. Até que em 1901 o médico alemão Alois Alzheimer passou a estudar uma mulher que apresentava esses sintomas publicou relatórios médicos e a doença passou a ser conhecida universalmente como Mal de Alzheimer. Mais de 100 anos depois de estudos intensivos, pouco se sabe o que fazer para prevenir esse mal. Minha mãe padeceu desse mal por 12 anos. Logo que ela foi diagnosticada com Alzheimer, lembro-me que meu primo, o médico Rui Marinho, sobrinho dela, nos disse, a mim e aos irmãos: - Esqueçam a tia Celina que existiu até hoje. Daqui para frente, haverá uma outra pessoa. Foi realmente o que aconteceu. A mulher de fibra, dinâmica, ativa, cheia de vida, enérgica, que sempre mandou – e como mandou – no marido, nos filhos, nos netos, nas noras, nos genros foi dando lugar uma

pessoa passiva até ficar ausente. Mamãe foi cercada de todos os cuidados pelos irmãos, lá em Belo Horizonte, por cuidadoras e pessoas que sempre gostaram delas – e que foram muitas. Eu acompanhei de longe, aqui de São Paulo, visitando-a o maior número de vezes possível. Mesmo sofrendo da doença, ela me visitou algumas vezes aqui em São Paulo, trazida pela mana Maria Helena, acompanhadas de uma cuidadora. Todas as vezes eu a levei a Aparecida, de quem ela era fervorosa devota. Depois, corpo muito enfraquecido, as viagens tornaram-se impossíveis. O dia que ela não mais me reconheceu, foi um choque violento, muito triste. Eu estava em Belo Horizonte e fui à casa dela. Conversamos, batemos papo muito próximo da normalidade. Ela se expressava com razoável clareza, me chamava pelo nome, conversou com a Vera, perguntou pelos filhos. Parecia apenas uma pessoa um pouco debilitada por alguma doença qualquer. No dia seguinte, fui fazer minha caminhada e me encontrei com a mana Maria Helena que levava mamãe para sua caminhada. Perguntei para ela, jovialmente: - E aí, dona Celina, firme e forte? Ela me olhou com o olhar um tanto ausente e perguntou pra minha irmã: - Quem é ele? E não houve jeito de ela se lembrar de mim. Foram 12 anos até o dia em que ela definitivamente deixou o nosso mundo. Não há cura, não há remédio. Há apenas um caminho: cercar de amor e carinho a pessoa amada.

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Ainda no Brasil, 2015.

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