NĂşmero 60 - 07 de maio de 2020
Nirlando BeirĂŁo
Refinado, sensível... Com texto refinado, Nirlando Beirão atuou em várias publicações “Autêntico, polêmico, mordaz, provocativo, humano, imaginativo, sensível, controverso, refinado, irreverente, inteligente.” Foi com essa sequência de 11 adjetivos que o jornal O Estado de S. Paulo, em março de 1991, anunciou que Nirlando Beirão estrearia a coluna Galeria, no Caderno 2. “Com tudo isso, você só pode gostar de Nirlando Beirão. Sem isso, você gostaria do mesmo jeito”, continuava o anúncio. Foi mais ou menos assim que amigos e colegas do jornalista referiam-se a Nirlando Beirão, de 71 anos, que morreu anteontem em São Paulo após anos lutando contra a Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), doença degenerativa. A dramaturga Marta Góes, mulher do jornalista, comunicou a morte do marido no Instagram: “Queridos, Nirlando se foi há pouco”. Beirão deixa a filha Júlia Beirão e os enteados Maria Prata e Antonio Prata. Nascido em Belo Horizonte, Nirlando Beirão tinha uma longa e vitoriosa trajetória na imprensa brasileira. Trabalhou no Última
Hora, no Jornal da Tarde, no Estado, em Playboy, Veja, IstoÉ e Carta Capital, entre tantos outros jornais e revistas. “Nirlando tinha uma facilidade muito grande de escrever, um texto de alta classe”, disse o jornalista Sérgio Augusto, colunista do Estado. Como afirmou o professor titular de Teoria Política da Unesp Marco Aurélio Nogueira, no ano passado, o jornalista transitou por toda publicação que se possa imaginar. “Seu texto sempre foi apreciado como um dos melhores.” Nogueira apresentava o jornalista nas páginas do livro Meus Começos e Meu Fim, no qual Nirlando combina as reflexões sobre a convivência com a enfermidade e as pesquisas que fez sobre um episódio marcante da história dos Beirão. “Um avô padre que um belo dia se apaixona e resolve se casar é um excelente assunto literário. Nirlando agarra o fato e o vira de ponta-cabeça, deixando fluir uma versão romanceada de jornalismo investigativo. Dá um show”, escreveu Nogueira. E continua: “Romance autobiográfico, escrito com leveza, algumas pitadas de ironia, um pouco de amargura
O jt Sempre é uma publicação com um único objetivo: manter viva a memória do Jornal da Tarde. É, acredito, a melhor forma de nos manter em contato, trocar informações, promover encontros para o papo agradável de sempre. Você pode participar. Mande sugestão, artigo, matéria, foto, histórias para mariomarinho@uol.com.br No campo “Assunto”, coloque: “JT Sempre”. Responsável: Mário Marinho.
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Com a mulher, Marta Góes, em foto de 2012
e bastante realismo diante dos efeitos práticos e existenciais de sua condição, é uma aula de resiliência. Mostra que a vida é mais forte e vibrante do que quer nos fazer crer o vão derrotismo. Tudo, no fundo, só acaba mesmo quando termina, para todos e cada um de nós.” Antes da coluna Galeria, Nirlando Beirão já havia colaborado com o Caderno 2 em 1986, assinando por alguns meses textos na coluna Antena, onde dividiu espaço, entre outros, com Caio Fernando Abreu. Numa delas, sob o título E você nem protocolou, brincou sobre os ofícios dos jornalistas e das secretárias: “Mentem as cartilhas e os manuais de redação quando dizem que a matéria-prima de nossa festiva profissão é a notícia. Na verdade, o jornalismo é mero
exercício de paciência. Surpreendime remoendo essa ideia, esta semana, no momento de praticar a sagrada missão do repórter: esperar. Esperava na antessala de um figurão e, à falta do que fazer, além de roer minhas unhas e ser informado, pela enésima vez, por um amarelado exemplar da revista Visão, que Vicente Celestino morreu naquela semana, eu me entreguei à execução mental de uma intrincada operação matemática, ao fim da qual, exausto mas envaidecido, cheguei à conclusão de que, somadas todas as horas de voadas por todos os pilotos da Ponte Aérea, elas não dão as minhas horas sentadas numa sala de espera. O número é impublicável...” Matéria publicada no Estadão, 02-05-2020
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Tímido e Cativante Mário Marinho A redação da edição mineira da Última Hora naquele ano de 1967 tinha, no máximo, uns 15 jornalistas. Todos jovens, entre eles alguns focas. O diretor de redação era o jornalista Demóstenes Romano com quem eu trabalhava no Diário da Tarde. Romano era um redator com texto de respeito e eu um mero foca. Pois ele leu um texto meu e gostou. Alguns meses depois, ele foi convidado a pilotar um projeto novo e ousado para a edição mineira da Última Hora. A Última Hora, jornal valoroso, combativo e combatido, ainda pertencia ao seu criador, o lendário Samuel Wainer que visitou aquelas acanhadas instalações que ficavam na rua Tupis, 722, em frente ao prédio do então Novo Mercadão. Anos mais tarde, em conversa com o Romano, que veio a ser meu padrinho de casamento, ele me perguntou, admirado: - Como é que com tão pouca gente nós conseguíamos fazer um jornal que era impresso no Rio, com rígidos horários de fechamento? Era uma turminha boa aquela. Pois foi naquele ano de 1967 que pintou na redação um garotão, depois fiquei sabendo que tinha 19 anos, quatro a menos que eu, tímido, porém com sorriso cativante que logo conquistou a todos. Seu nome: Nirlando Beirão.
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O nome não me era estranho e logo fiquei sabendo por que: ele era filho do Nirlando Beirão, que vinha a ser o presidente do Clube dos Diretores Lojistas de Belo Horizonte. Essa era uma entidade que tinha poder no efervescente comércio varejista de BH e o seu presidente era figura facilmente encontrável nas páginas da mídia. Pois ali estava o filho do seu Nirlando pronto para enfrentar as peripécias comuns à vida dos focas. Nirlando logo se enturmou. Numa determinada tarde, Romano comandava uma reunião de pauta bem no centro da redação que, tão simples e pequena, não possuía uma Sala de Reuniões. Lá pelas tantas, levantou-se um assunto econômico que pareceu bastante importante. Na discussão de detalhes, para julgar se dava matéria ou não, alguém sugeriu que ouvíssemos pessoa importante na economia de BH. E qual o nome sugerido? Ele mesmo, Nirlando Beirão, o Pai. Só que era necessário colher as informações na hora para decidir sobre o prosseguimento ou não do assunto. Nirlando Beirão, o Foca, se apresentou. - Se Você quiserem, eu posso ligar. Claro, todos queriam e lá se foi ele ao telefone. A reunião continuou e, passados uns 10 ou 15 minutos, Nirlando Beirão, o Foca, estava de volta. Interrompeu-se a reunião para ouvir o garoto. Silêncio. - Bem, começou ele, papai falou... Caíram todos na gargalhada. Todo mundo concentrado,
Encontro da turma do Jornal da Tarde, em 2012. Da esquerda para a direita: José Maria Mayrink, Ouhydes Fonseca, Decinho Pedroso, Alberto Morelli, Reinaldo Lobo, Marco Antônio de Rezende, Teresa Otondo e Nirlando Beirão
esperando o pronunciamento importante do notável e insigne presidente do Clube dos Diretores Lojistas e o Nirlando, na maior simplicidade, começa com... - Papai falou... Em janeiro de 1968 eu sai da Última Hora, deixei em BH a bela e aflita noiva e me mandei para o Jorna da Tarde. Vim trazido pelo Marco Antônio de Rezende. Poucos meses depois, chega o Nirlando Beirão também pelas mãos do Marco Antônio. Naquela época, na redação do Jorna da Tarde, era muito comum o uso do feminino mesmo no trato relativo aos homens. Assim, Murilo Felisberto, o redator chefe, era chamado de A Rainha. A redação tinha três Marcos Antonios: o Marco Antônio de Menezes, o Marco Antônio de Rezende e o Marco Antônio Lacerda. O primeiro recebeu o apelido de Meg. O segundo, de Peg. O terceiro de Leg. Era comum, então, referir-se à Meg ou à Peg ou à Leg. Assim, como eu e o Nirlando viemos pelas mesmas mãos do mesmo Marco Antônio, passamos a ser conhecidos como as irmãs filhas da Peg.
Eu sei, parece viadagem. Mas era assim mesmo. Continuei trabalhando no Jornal da Tarde, mas, a minha “irmã” ousada, bateu asas para outras redações, atravessou mares nunca dantes navegados, foi viver as delícias da Europa. Quando voltou, pulou de redação em redação, distribuindo generosamente o seu farto talento. Volta e meia nos encontrávamos nos saudáveis botequins da vida. Fui ao lançamento do livro dele sobre o Corinthians, escrito em parceria com o Washington Olivetto. A quem ele me apresentou como sendo sua irmã. Naquele sufoco que estava a noite de autógrafos, não houve muito tempo para explicações no meio daquela multidão. E o Olivetto ficou com cara de quem não estava entendendo nada. Voltamos a ficar juntos no Almoço anual do da turma do Jornal da Tarde que, há anos, eu promovo sempre no sentido de manter acesa a velha chama do JT. Ah!, também nos encontramos no velório do Murilo Felisberto, aquele que era A Rainha na redação do JT, nos tempos idos e saudosos de 1968. Tempo em que nos dois éramos irmãs.
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Um parto sem dor na Últim Demóstenes Romano Conheci Nirlando Beirão quando ele foi trabalhar na Última Hora, edição de Minas Gerais. Fui testemunha de nascimento dele como jornalista. Não é exagero dizer que fui parteiro desta graça de Deus para o jornalismo brasileiro, porque foi minha a primeira pauta cumprida por ele e foi a mim que ele entregou a primeira matéria escrita para um jornal. Antes de contar alguns passos do início de carreira do Nirlando, convém contextualizar tempo e espaço desta época. Estávamos em 1968, um dos anos mais agitados da política brasileira, e a Última Hora, fundada e dirigida por Samuel Wainer, era um jornal detestado por militares, perseguido por policiais, ignorado por políticos conservadores e discriminado por empresários. Imagine a dificuldade de acesso de um repórter nesta adversidade. Além do mais, as condições de trabalho eram precárias. A redação, na rua Tupis, em frente ao Mercado Novo, era improvisada em um salão onde funcionou uma loja (até o balcão que separava os clientes dos produtos continuava lá). E ainda tínhamos que conviver com o mau de cheiro de um córrego a céu aberto, com a pouca disponibilidade de um único fusquinha para atender a todos e com baixíssimos salários. Mas esta edição mineira da
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Última Hora era muito especial (a mãe dela era a edição carioca, matutina e vespertina, e as irmãs eram uma edição fluminense e outra de Brasília. Coisas do Samuel Wainer, um dos mais destemperados e visionários amigos que tive). Era uma redação de portas abertas para entrada e saída de jovens talentosos, uma espécie de time Sub 20, recebendo e preparando profissionais para a elite do jornalismo. Corro o risco de esquecimento de alguns nomes, mas posso lembrar, além de Nirlando Beirão, pelo menos de Marco Antonio de Rezende, Mário Lúcio Marinho e Berenice Furtado dos Santos, que se casou com o também mineiro Esdra Guimarães, o Guiminha. Eu mesmo passei para um veículo da divisão de elite, chefiando a sucursal da Editora Abril em Minas Gerais, por indicação de Alberico de Sousa Cruz (tive estreita convivência com o Mino Carta e só saí em solidariedade a ele, quando ele deixou a direção de Veja). Voltemos ao início da carreira jornalística do Nirlando Antonio Lacerda Beirão. A edição mineira da Última Hora era deficitária e a má vontade do mercado empresarial e publicitário com o jornal exigia dos corretores da área comercial um esforço desproporcional ao que conseguiam em minguados anúncios. Um dia um corretor chegou a mim dizendo que estava quase fechando a autorização de uma propaganda da loja Leão das Louças e que este negócio
ma Hora
poderia ser facilitado se eu aceitasse dar uma oportunidade de emprego a um jovem estudante de Ciências Sociais filho do proprietário, Nirlando Moacir de Miranda Beirão, que também era presidente do CDL – Clube dos Diretores Lojistas de Belo Horizonte. Não vacilei em aceitar a solicitação do necessitado corretor, não por razões comerciais, mas porque eu conhecia o velho Nirlando por entrevistas que fiz para a editoria de economia do jornal Estado de Minas e porque nossa equipe estava sempre aberta a novatos (num destes atos de boa vontade, um dia acolhi o Carlos Pereira, que era guarda de transito na região, insatisfeito com sua profissão, e ele tornou-se um dos melhores repórteres investigativos de Minas). No clima descontraído da nossa redação, zoação e bullyng faziam parte da convivência de todos. Tínhamos um companheiro, copy, Cretildo Rodrigues Crepaldi, que era um dos líderes nas
maldades com os mais novos. Um dia ele articulou com colegas do jornal Diário de Minas, que ficava na Praça Raul Soares, a algumas quadras da Última Hora, uma sacanagem com dois de nossos focas: Nirlando Beirão e Berenice Furtado dos Santos. Acertada a brincadeira de mau gosto, Nirlando e Berenice foram orientados a irem ao Diário de Minas buscar uma calandra (para quem não sabe, calandra era uma máquina pesadíssima e firmemente fixada no chão, destinada a prensar e empenar cada página impressa em chumbo por uma linotipo, fazendo um formato de telha que acoplada a cilindros da rotativa/impressora imprimia o jornal). Procurando no Diário de Minas o cúmplice do Crepaldi, os dois foram prontamente atendidos e voltaram suados e exaustos por carregar dois sacos cheios de pedras e restos de ferro-velho. Saudade, Nirlando. Espero que não exista calandra em outra Dimensão.
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Três amigos em Paris inteira sem desafetos.
Marco Antono de Rezende Em 1969, como em todas as editorias do Jornal da Tarde, havia um time de respeito também na Internacional. Lá estavam Reynaldo Lobo, Geraldo “Kiko” Galvão Ferraz, Alberto Morelli Cunha, Nirlando Beirão e, modéstia à parte, também este jornalista. Nirlando e eu tínhamos começado no jornalismo profissional (leiase: com carteira assinada) em Belo Horizonte, no vazio deixado pela primeira revoada de mineiros, os que estavam com Mino Carta e Murilinho Felisberto quando o jornal chegou às bancas, em janeiro de 1966. Com a ousadia típica do comando do jornal, me fizeram editor aos 21 anos e logo tive o OK de Murilinho para trazer Nirlando para o JT. Como logo se viu, Nirlando e o JT nasceram um para o outro. O filhote vespertino do venerando Estadão tinha sido lançado para inovar, ser moderno, criativo e leve no design gráfico e nos textos. O modelo não declarado era o new journalism americano, que fazia furor acompanhando tanto a revolução nos costumes daqueles anos quanto o pouso na lua, a Primavera de Praga ou a guerra do Vietnã. Era a velha e boa reportagem com uma pegada literária, ou quase isso. Nirlando, precoce poliglota e ávido leitor, exibiu logo seu texto primoroso, aveludado, que pegava o leitor pela mão e o levava até o fim com graça, clareza e precisão, sem sobressaltos ou lombadas. Uma bênção para os leitores. Para os colegas e amigos de Nirlando, a bênção vinha com seu tom pessoal ameno, bem humorado, generoso, com jeito único de falar sorrindo, o que o fez passar a vida
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Na inter, Alberto Morelli era o único que tinha estado no exterior, como comprovavam seus paletós de tweed (tinha feito extensão universitária na Sorbonne). E foi fácil, na inquietação da idade e da época, meses depois do AI-5, que Alberto, Nirlando e o signatário decidissem dar um tempo da redação e fossem juntos passar uma longa temporada em Paris, onde ainda fumegavam resquícios de maio de 68. O objetivo era viver de frilas e, no meu caso e no de Nirlando, estudar comunicação com o semiólogo Edgard Morin, na École Pratique des Hautes Études. Chegamos a ser aceitos e a nos matricular, mas o curso ficou pelo caminho. Pouco antes do embarque Murilinho me chamou, deu-me uma carta “to whom it may concern” apresentandome como correspondente internacional e garantiu-me 300 dólares de salário. Fomos direto do aeroporto de Orly para um hotelzinho ao lado do Pantheon, com o nome alvissareiro de Hotel des Grands Hommes e uma plaquinha esmaltada na porta: Conforts modernes. Ou seja, tinha água corrente fria numa pia no nosso quarto triplo, e só. O chuveiro quente era pago por fora e custava quase como a diária de 3 dólares. A situação melhorou quando conseguimos alugar um studio com mezzanino no nº 58 da Rue Quinquimpoix, de propriedade da pintora e galerista de origem gaúcha Ceres Franco, que morava na porta em frente. No seu belo apartamento, Ceres recebia nas tardes de domingo amigos e pintores do grupo vanguardista Nouvelle Figuration. Paris ainda era uma festa. Lá estavam os primeiros exilados
Alberto Morelli, Marco Antonio e Nirlando Beirão em setembro de 2018: 50 anos depois de Paris. da ditadura, Fernando Henrique Cardoso, professor na Sorbonne e Niomar Muniz Sodré, proprietária do combativo Correio da Manhã, e também artistas como Antonio Bandeira e Toledo Piza, a pianista Magda Tagliaferro, a escultora Lygia Clark. Graças ao fabuloso network de Alberto Morelli, conseguíamos entrevistar celebridades, entre elas Arthur Rubinstein, Raymond Aron e Salvador Dalí. O pintor surrealista nos recebeu na famosa suíte 106 do Hotel Meurice, reservada anualmente para ele passar o outono em Paris com sua mulher Gala e frequentada por uma corte de jovens pseudo-artistas, excêntricos em geral e alguns bajuladores. Era a mesma suíte onde o rei Alfonso XIII viveu depois de perder o trono da Espanha. Entre matérias, entrevistas e algum ócio cultural nos cineminhas de arte do Quartier Latin e nos dias de
abertura gratuita dos museus, nós três, Nirlando, Alberto e eu, ainda viajamos juntos para cobrir o festival de cinema de Cannes em 1970 e para visitar o futuro embaixador Sergio Paulo Rouanet (no inicio de carreira) em Genebra. De volta ao Brasil em 1971, fomos para redações diferentes e, no caso de Alberto, carreira diferente, em comunicação e marketing. Continuamos muito amigos e nos víamos sempre que possível. A última vez, em setembro de 2018, nos encontramos na festa de aniversário de 70 anos de Nirlando, organizada por sua mulher, a escritora e dramaturga Marta Goes, na casa do fotógrafo Hélio Campos Mello. Nirlando já estava numa cadeira de rodas e começava a ter dificuldade para falar. Mas, naquela atmosfera otimista e afetuosa, não foi difícil lembrar e rir das nossas estrepolias de 50 anos antes em Paris. Éramos amigos, éramos jovens
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O começo Alberto Morelli Para falar do querido companheiro de saudosas jornadas, meu breve depoimento começa em agosto de 1968, inicio acidental de minha carreira aqui narrada. Na época, Marco Antonio de Rezende, que editava a página internacional do JT, me acolhia recém-chegado após longa ausência do Brasil e levado pela bela e competente Claudia Batista, hoje Monja Coen. Ingressei na bancada de grandes talentos: Reinaldo Lobo, Décio Pedroso e o jovem Nirlando Beirão que, nos seus 20 anos, já respondia pelas matérias de fôlego, enormes textos pesquisados e redigidos ao longo da madrugada. Era a editoria que o Ruy Mesquita acompanhava de perto, preferida dele, diziam. Nirlando vinha de Belo Horizonte precedido de boas recomendações: valia a pena investir nele, talento multiforme, assim como os outros, igualmente jovens, criativos redatores, fotógrafos e ilustradores que compunham a extrovertida redação do melhor, sem favor algum, vespertino brasileiro. E vale acrescentar: bem à frente do seu tempo. Pouco depois, juntava-se a nós o experiente José Maria Mayrink,
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vindo da Veja, reforçando a editoria naqueles momentos de contestações políticas diárias. Assuntos com dimensão histórica não faltavam: guerra do Vietnam, as várias Apolos e a grande edição do pouso do homem na Lua, o Oriente-Médio em permanente ebulição. Enfim o JT e o Estadão ainda respiravam a liberdade possível e cumpriam o seu importante papel de informar, com qualidade e arte. Até a noite do funesto anuncio do AI-5, que reuniu a redação em torno do alto-falante, narrado com detalhes no livro do Nirlando - Meus Começos e Meu Fim. A censura implacável e os riscos de uma atividade estritamente vigiada, já foram contados em farta literatura. Dois anos depois, de prática rotineira e fechamentos esquentando telegramas, dizia eu - decidimos nos juntar, Nirlando, Marco e eu, para viver como franco atiradores na efervescente Paris dos anos 60/70. Era uma cidade onde já tinha vivido, por um bom tempo, e que me permitiu cultivar o caminho de boas fontes. Logo integrados ao cotidiano da vida cultural e da sociedade afluente, não faltaram pautas interessantes que, regularmente, tomavam o rumo do Brasil, para edição no JT pelas penas brilhantes dos agora internacionais Nirlando e Marco. Para resumir, a partir daí, as
carreiras e as grifes destes dois consagrados jornalistas tiveram o merecido reconhecimento dos leitores nos diversos veículos por onde passaram e fizeram história. Sou muito grato a ambos, pois, tendo palmilhado esta estrada que já dura 50 anos, meus queridos colegas de ofício, cada qual ao seu modo, me proporcionaram recompensas e grandes alegrias que fizeram o sal da minha vida.
O FIM Recebi com imensa tristeza a notícia do passamento do velho amigo Dudá, como o chamava, apelido de família, e com quem reparti um longo convívio desfrutando encantado da sua inteligência e do seu mais fino humor. Excelente contador de histórias, elegante nas palavras e nos gestos, foi sempre solicito e generoso,
indistintamente, com todos os que dele se acercavam. Enfim, os depoimentos de seus inúmeros amigos e admiradores, que prantearam a sua partida, na sua unanimidade, já exaltaram o magnifico legado, jornalístico e literário, uma memória a ser preservada para sempre. É a melhor herança que, certamente, será guardada e cultivada pelos seus amados entes Marta, Julia, Maria e Antonio.
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Pai, Filho e Atlético Gilberto Mansur
Nirlando Beirão. Minha primeira notícia desse meu ainda futuro amigo foi...seu pai, Nirlando (Moacir de Miranda) Beirão. E penso hoje – como sempre pensei ao longo da nossa amizade - que não poderia ter existido começo melhor. Grande dirigente classista (presidente do Clube dos Diretores Lojistas de Belo Horizonte), o Nirlando-pai era reconhecido – entre tantas outras qualidades – pelo caráter, fidalguia, bom humor e, claro, por sua imbatível paixão pelo nosso glorioso Clube Atlético Mineiro. Começando em jornalismo, eu – que viria a trabalhar quase sempre nas áreas de Cultura e Variedades - caíra, por acaso, numa editoria de Política /Economia no Correio de Minas (de onde vieram praticamente todos os mineiros do Jornal da Tarde). Só me resignei a trabalhar em área tão distante dos meus jovens ideais quando conheci o Nirlandopai. Era muito mais do que cumprir uma pauta ir até a Avenida Santos Dumont (sede do CDL), em BH, para “entrevistá-lo”. As entrevistas eram assim: falávamos uma hora ou mais sobre o Galo e, depois, em cinco minutos, eu gravava uma declaração qualquer do meu “entrevistado”. E, embora meu chefe insistisse para eu fazer matérias na
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Federação das Indústrias, na Associação Comercial e em outras entidades do gênero - com as quais eu não tinha a menor familiaridade – eu sempre dava um jeito de inventar pautas no Clube dos Diretores Lojistas. Acabamos vindo – Nirlando-filho e eu - pra São Paulo, trabalhar no nosso JT. E o meu afilhado de casamento (que nunca me chamou de padrinho mas nunca deixou de fazer uma “referência” a isso, me chamando sempre de compadre) e eu acabamos fazendo alguns programas juntos, principalmente assistindo memoráveis vitórias do nosso glorioso Clube Atlético Mineiro. Chegamos a planejar um livro contando a História e as histórias do Galo. Mas eu – confesso - vacilei muito
No dia do seu casamento, em 1972, Nirlando abraça o amigo e padrinho Gilberto Mansur
e ele acabou encontrando outro parceiro e escreveu a História do Corinthians.. De todos os jogos que ousamos sofrer juntos nas arquibancadas o mais temeroso mas também o mais memorável, sem dúvida, foi o da estreia do Gerson (vindo do Botafogo) e do Toninho Guerreiro (vindo do Santos, em pleno Morumbi. Dia 21 de setembro de 1969, Morumbi, Torneio Roberto Gomes Pedrosa. Os jornais de São Paulo, todos, (inclusive o nosso JT) previram um massacre do time paulista que, mesmo sem Gerson e Toninho, era muito superior ao Atlético Mineiro. Exatos 37.593 torcedores... contando, claro, com Nirlando e eu.
Nosso técnico, o inesquecível Yustrich, pegou todos os jornais e praticamente esfregou na cara de cada jogador atleticano ainda no vestiário. Resultado: 5 a 2 pra nós. E isso porque, quando estava 5 a 1, o juiz deu um pênalti inexistente. Só pro Gerson (que acabara de entrar junto com o Toninho Guerreiro) não deixar de fazer um gol na estreia. Nirlando e eu, então, desfilamos, junto com nossa torcida, debaixo de uma enorme bandeira do Galo, pelas ladeiras do Morumbi. Todos entoando ainda um grito de guerra que o próprio Nirlando, de forma criativa e moleca, havia criado durante a emoção do jogo: “Põe o Gerson!!! Põe o Toninho Guerreiro !!!”
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Era muito mais Sérgio Vaz Nirlando Beirão não era apenas um dos melhores textos do jornalismo brasileiro. Sim, isso ele era, e tenho absoluta certeza de que ninguém discutiria sobre o assunto. É uma certeza unânime. Nirlando veio uma ou outra geração depois de Nelson Rodrigues, de Otto Maria Carpeaux, mas tenho certeza de que, se o tivesse conhecido, se tivesse convivido com ele, o homem teria cravado, como cravou sobre Otto, que, quando Nirlando começava um texto, o resto da redação se calava. Digo isso aí sobre o Nelson Rodrigues com a mais calma certeza do mundo – muito embora jamais tenha tido a honra, o orgulho, de trabalhar na mesma redação de Nirlando, nunca, jamé de la vi. O texto de Nirlando Beirão sempre foi unanimidade – apesar de Nelson Rodrigues ter dito tantas vezes que toda unanimidade é burra e que “mineiro só é solidário no câncer”. Nelson, aí, errou duas vezes. Mas o que eu gostaria de realçar não é tanto o texto – é o caráter. Nirlando Beirão foi uma das pessoas de melhor caráter que
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conheci na vida. *** Gostaria de contar duas historinhas. Outras notas podem entrar, mas a base é uma só, me ocorre escrever, citando a canção. Uma é um caso profissional; a outra é puramente pessoal, intransferível, feito dor de dente. A história profissional é absolutamente verdadeira, assim como a outra, a pessoal – mas, das duas, não me lembro de detalhes, de exatidões. Foi no começo dos anos 90, mas não sei precisar a data. Nirlando estava, na época, fazendo a coluna da página 2 do Caderno 2 do Estadão. Em 1993
ele sairia do jornal para fundar a revista Caras, e a coluna ficou então a cargo do Cesar Giobbi. Estava para dar uma vacância, um vazio, no cargo de diretor de redação do Estado. E várias pessoas importantes dentro da S. A. O Estado indicaram o nome do Nirlando. Não posso afirmar com absoluta certeza, mas creio fortemente que entre esses nomes estavam os de Sandro Vaia e Elói Gertel, então diretores da Agência Estado, e de Rodrigo Lara Mesquita, o diretor da Agência e patrão de todos nós. Ser o diretor de redação de um dos três maiores jornais do Brasil é, teoricamente, pelo menos, o sonho maior de qualquer
jornalista. É o ápice absoluto da carreira, o posto mais alto, o topo da escada, o trono. O cavalo encilhado passou na frente dele. Ficou ali rodeando o cara. Nirlando simplesmente disse que não, não estava a fim. Não queria. Estava bem onde estava. Me lembro da reação de alguns dos meus amigos. A gente não está acostumado a quem diz não ao cavalo encilhado que está ali para conduzir você ao sonho maior, ao ápice absoluto da carreira, o posto mais alto, o topo da escada, o trono. Meu amigo e mestre Sandro Vaia, que anos mais tarde assumiria exatamente aquele posto de diretor de redação do Estado de S. Paulo, e faria durante alguns anos uma administração brilhante, comentou na época que Nirlando estava sendo bobo. Tive, então, e tenho hoje, certeza absolutamente diversa da do Sandro. Nirlando não foi bobo: foi sábio. O quê? Pegar aquele trono – mas que é também o maior abacaxi que um jornalista pode pegar na vida? Nirlando disse não à mosca azul. Preferiu ficar onde estava – um lugar que certamente dava a ele algum prazer, e, sobretudo, não lhe torrava o saco. Tenho profunda admiração não apenas pelos jornalistas, mas por todas as pessoas que não dão bola para a mosca azul da ambição, da fascinação pelo ponto mais alto da escada. ***
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Não que não soubesse chefiar. Não, não, nada disso. Sabia, perfeitamente. Chefiou diversas redações – e seguramente chefiou bem. Só não estava a fim, àquela altura da vida e da carreira, ali pelo início dos anos 90, de ferrar a vida em nome da carreira. Fez naquele momento, creio eu, a opção preferencial pela qualidade de vida. Os acasos da vida são fascinantes. Por um acaso, acabei, em meados dos anos 80, sendo o editor de Cultura da revista Afinal – e uma das pessoas da editoria era Marta Góes, a mulher de Nirlando na época e praticamente a vida inteira. Não nos dávamos bem, Marta Góes e eu; nunca nos demos bem. Mas nos respeitávamos, creio. Creio também que jamais comentei com ela – até porque só conversávamos o essencialmente necessário para o funcionamento da editoria – que conheci Nirlando em 1957, quando eu tinha 7 anos e ele, 9. Mas os acasos da vida são realmente fascinantes, e então, em 1990, aconteceu de Nirlando – bom caráter sempre – trabalhar na campanha de Mario Covas para o governo do Estado de São Paulo. Na campanha estava Mary Zaidan. Mary sempre me contava – estávamos ali no segundo ano de namoro, já praticamente casando – como era gostoso ter Nirlando na equipe. Como ele era bemhumorado, como ele fazia brilhar as reuniões de que participava. *** Eu mesmo nunca tive o prazer, a
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honra, de ter trabalhado com o Nirlando. Nem de ter sido seu amigo. Fomos vizinhos e quase amigos quando éramos garotos, no bairro da Serra, em Belo Horizonte. Eu morava no prédio da Rua do Ouro que dava de frente para a Rua Ramalhete – ela mesma, a rua da deliciosa canção do Tavito. Exatamente diante do prédio, bem na esquina da Rua do Ouro com a Ramalhete, era a casa da família Beirão. Baita, bela casona. Aprendemos a ler na mesma escola, o Grupo Escolar do Instituto de Educação – ele dois anos antes de mim e de seu irmão Paulo Sérgio, este, sim, meu colega de classe. A historinha vem agora. Não me lembro dos detalhes. Mas, um dia lá, certamente incentivado pelo meu irmão Arnaldo, que trabalhava com vendas, fui falar com o Nirlando sobre uma enciclopédia tal e qual (não tenho idéia hoje de qual era). A venda resultaria em uns trocadinhos; a gente era apenas remediado, a família dele era rica. Assim… Mas me faltavam argumentos para tentar vender o produto, e então falei pouco. Nirlando percebeu minha falta de jeito, percebeu tudo, e disse algo do tipo: – Sei, sei. Você não está sabendo muito bem vender, mas é uma enciclopédia. Se eu comprar, você ganha alguma coisa. Compro. Não creio que o Nirlando se lembraria dessa história. Ele viveu tantas mais importantes. Eu jamais esqueci.
Obra Prima Melchiades Cunha Júnior Nirlando Beirão deixou-nos uma obra prima, que lançou em maio do ano passado, com o título “Meus começos e meu fim”. Na época, empolguei-me com a beleza e a força do texto. Decidi escrever alguma coisa a respeito, e pedi ao amigo Mario Prata que encamihasse uma cópia ao autor, Dias depois recebi os agradecimentos do Nirlando, que muito mecomoveram. Eis o qye escrevi naqueles idos, com umas poucas correções. “O jornalista Nirlando Beirão lançou domingo passado (26 de maio), no restaurante La Frontera, entupido de gente, seu livro autobiográfico “Meus começos e meu fim” (186 páginas, Companhia das Letras). É uma obra belíssima, que se lê extasiado e que, certamente, fará jus a todos os prêmios literários a serem concedidos neste ano que atravessamos. Lê-se maravilhado e, no meu caso, acrescento que possuído por uma avassaladora inveja, dessas que não fazem mal a quem é devotada. Podem até mesmo estimular àqueles, que como o degas aqui, vivem da luta com as palavras. Vá escrever bem tanto assim, mon Dieu du ciel et aussi de la terre (d’après Sergio Vaz)! Que achados no deslisar das frases, que estilo, que riqueza vocabular, que memória espantosa, que engenho, que espírito! Sim, que espírito adentrou no nosso amigo (mineiro como eu, mas nascido dez anos
na frente dele), apesar,ou em razão, das circunstâncias, que o colocaram no campo de batalha contra a indesejada das gentes; Nirlando abre com estas palavras sua monumental peleja, vencida com as armas do engenho e da arte: “No inicio de julho de 2016 - o dia eu tenho com certeza anotado, mas é hoje cruelmente irrelevante - fui diagnosticado com uma doença degenerativa do neurônio motor. “Degenerativa” é uma palavra que tira você para dançar - uma dança de medo. “Degenerativa”, a palavra me pinçou a alma quando o médico a pronunciou, me tirou o chão.” Mas o livro vai muito além da dança do medo, de choramingas autopiedosas, voltando-se com maestria para as memórias familiares e as pessoais, por onde vaga nas alturas alcançadas pela grande arte literária. Let’s fly, friends. Bon voyage.”
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Texto e sorriso Luiz Carlos de Oliveira Ramos Na certeza de que esta merecida edição especial terá textos de amigos mais qualificados do que eu para falar do Nirlando e sua maravilhosa carreira, peço licença para relatar uma cena da qual fui testemunha, no fim da década de 1960. O novo reforço mineiro entrou sorridente na Redação para se apresentar ao “Jornal da Tarde”, abraçou amigos dos tempos de
Belo Horizonte, como Mário Marinho, e logo cativou a todos, com seu bom humor e carisma. Quanto ao seu texto maravilhoso, que conquistou os leitores do “JT” e dos demais veículos em que trabalhou, Nirlando tornou-se exemplo para jornalistas de sua geração e para jovens de hoje que tentam espaço numa profissão em queda, num Pais em crise. Estou triste pela partida do Nirlando e pelo fato de alguns veículos da mídia, ao noticiar a morte dele, tenham omitido o “JT” na lista de camisas vestidas pelo craque campeão. Uma pena.
Espírito de Minas Lindolfo Paoliello Nirlando permanece. Ele, afinal - como comentou certa vez sobre o mineiro- padecia de irrealidade. Pela sutileza, discrição e elegância interior. Desta parecia destoar uma vez ou outra, pela ironia. Mas esta se compreende. Machado de Assis já advertia: “ironia é o pudor da razão diante da vida”. Nirlando Beirão era crítico, como se constata entre pessoas sensíveis. Mas sua ironia era aquela dos mineiros que Alceu Amoroso Lima entendia ter mais do humour britânico, que trata com um sorriso das coisas graves, do que da ironia francesa que é ferina. Alinhandose como poucos ao perfil traçado pelo “Dr Alceu”, observava tudo o que se passava, mas não dava sinal de nada. Seu humour nunca
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se apressava e sabia aguardar o momento oportuno para atingir seu alvo. Não se dava por achado e sabia manter aquele certo sentimento de mistério que enerva e faz o outro apressar-se e errar. Sua finesse o conduzia aos entretons e entrelinhas mas, quando era tempo, sabia cortar em pedacinhos. Nirlando viveu como quem sabe apreciar lentamente a vida. Qualidade do homem da montanha, habituado a subir ladeiras, expressa na permanente impressão de paz e serenidade. Avesso ao artifício e à dissimulação afastava-se da exuberância e se distinguia pela simplicidade e sobriedade. Às vezes dava a impressão de ceder facilmente, mas no fundo não cedia nunca. Era sua aversão a reações bruscas. Nirlando Beirão foi a expressão viva da força na doçura.
Grande Nirlando Humberto Werneck
À maneira de um repórter que põe à prova a exatidão das informações garimpadas, repasso minhas lembranças de Nirlando Beirão, falecido no último dia 30 – e não encontro uma que não seja boa. De quantos amigos, por melhores que sejam, pode alguém dizer o mesmo? Em meio século de camaradagem, tudo que me veio dele foram atenções, delicadezas, alegrias. E não falo apenas de momentos obrigatoriamente inesquecíveis, desses em cuja moldura parecem pendurar-se cachos de serafins a soar trombetas. A minha primeira noite em Paris, por exemplo, num verão distante, quando nos deixamos levar, sem rumo, para onde o nariz apontasse, nós dois e o José Márcio Penido, que nem as folhas mortas no outono do poema de Prévert. Curiosidade: no emblemático maio de 68, ainda sem se conhecerem, o Nirlando e o Zé Márcio deixaram Belo Horizonte no mesmo ônibus da Viação Cometa, rumo a São Paulo, cada qual com seu convite do Jornal da Tarde. Tinham então 19 e 23 anos de idade. Em 1970, lá estavam dividindo apartamento em Paris. Houve bem mais que momentos festivos. Minha camaradagem com Nirlando resistiu à prova do convívio em redações, onde a trepidação do ofício de encher páginas pode ser moenda para amizades as mais resilientes. A seu convite, estivemos lado a lado, ainda jovens, na revista Veja e na aventura do efêmero Jornal da
República de Mino Carta, e mais tarde, já maduros, na Playboy. Nos dois primeiros, foi meu chefe – dos melhores que tive, capaz de combinar firmeza e doçura no comando. Nirlando estava comigo na noite em que me tornei pai – foi ele que, tendo visto a luz azul acender-se no painel das salas de parto, veio me anunciar que o Paulo acabara de chegar. Poucas semanas depois, chegaria a sua Julia, filha da Rachel, a bela Rachel de Almeida Magalhães, sua primeira mulher, que haveria de partir dois meses antes dele. Tenho sob os olhos uma foto em que os dois bebês dividem uma coberta estendida no chão da varanda da fazendola de meus pais, nas vizinhanças de Belo Horizonte, a cidade onde nascemos, o Nirlando e eu. Tive o privilégio de estar nas suas imediações nas longas décadas que meu amigo repartiu com a não menos bela Marta Goes, jornalista talentosa, dramaturga melhor ainda, mãe da Maria e do Antonio Prata, crias do Mario Prata para quem Nirlando não foi menos do que pai, e mais adiante amoroso avô dos filhos deles. Me lembro de visitá-los na Bryaxis, ruazinha simpática onde moravam também a dona Gilda Mello e Souza e o professor Antonio Candido, e num par de vezes, pelo menos, cruzei a rua para estar com os mestres. Em 2002, aliás, ele topou prazerosamente um convite para prefaciar – “Bom trabalho, rapazes” – a segunda edição de Cabras, delicioso caderno de viagem, com textos, fotos e desenhos, nascido de incursão que o Antonio Prata, o Paulo Werneck, o Chico Mattoso e o Zé Vicente da Veiga fizeram ao Nordeste, no
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programa Universidade Solidária. Estive por perto nos quase quatro anos em que Nirlando encarou a luta desde o início perdida para a esclerose lateral amiotrófica, e o vi transitar, sem lamúrias, da bengala ao andador, e do andador à cadeira de rodas – na qual, certa noite, rodou de seu apartamento, na rua Itacolomi, ao restaurante La Frontera, a algumas quadras dali, para jantar comigo e com Ana Massochi, a dona da casa, numa carreira que pôs à prova o fôlego da Marta. O mesmo La Frontera onde, faz um ano neste mês de maio, centenas de amigos foram festejá-lo no lançamento de seu último livro, Meus Começos e Meu Fim. Já privado de boa parte de seus movimentos, Nirlando substituiu os autógrafos por três alternativas de carimbos, todos eles com a assinatura do autor ao lado de um desenho; para o meu exemplar, fiz questão da taça de vinho e da máquina de escrever, mas, cruzeirense incurável, declinei do escudo do Corinthians, o clube com o qual o torcedor atleticano dividiu seu coração, ao ponto de lhe haver dedicado um livro, em coautoria com o Washington Olivetto. A noitada de lançamento foi ocasião de reencontro para as inumeráveis amizades que ele fez e alimentou, e só entre os jornalistas com os quais trabalhou seria possível formar ali algumas redações. Inesquecível, também por isso, o espetáculo daquela multidão de cabelos escuros, brancos e grisalhos, para não mencionar aqueles que, em sentido figurado ou não, azularam, pois Nirlando Beirão (que esplêndido nome!, comentou comigo Otto Lara Resende, numa carta) cuidou, a vida inteira, de ter em torno de si uma enriquecedora mescla de veteranos e principiantes,
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recusando-se à pobreza de se restringir a seu próprio vagão geracional. (Ao reviver agora aquela noitada para todos gloriosa, me dou conta de uma dupla perda, pois além de Nirlando Beirão já não temos La Frontera, fechado em definitivo pela pandemia do maldito vírus.) Nosso amigo não entregava os pontos. Seu último texto foi enviado à redação da CartaCapital na véspera da morte. Com os movimentos reduzidos a um dos dedos da mão direita, até o fim Nirlando seguiu escrevendo na revista do Mino Carta – amigo a cujo time pertenceu intermitentemente sob vários tetos, desde o dia de 1977 em que, a convite dele, deixou a Veja para incorporar-se à equipe
Ricardo Setti, a mulher Márcia, Humberto Werneck e Nirlando Beirão no aniversário de 60 anos do Humberto, em 2005.
que iria lançar a IstoÉ. Por onde passou, deixou textos memoráveis, sem data de validade, pois seu modo de contar encanta até mais do que a coisa contada. Muitos, não tenho dúvida, merecem estar em livro, pouco importando quando foram feitos, pois sua fatura é tão fina que o tempo que passou por eles não lhes cavou rugas. Sua produção mais alta ficou sendo Meus começos e meu fim, livro no qual o drama da condenação à morte, contado sem um grão de pieguice, se entrelaça ao literal romance de António – seu avô paterno, jovem padre português que há mais de cem anos veio dar com os costados em Oliveira, no interior de Minas, onde se apaixonou pela
jovem Esméria. Como que fiel ao preceito cristão, o casal cresceu e se multiplicou, e há muito repousa no cemitério do Bonfim, em Belo Horizonte, num túmulo que acolheu também Nirlando e Leda – e, faz uns dias, o segundo Nirlando de uma bela história, por ele tão bem contada. Na última vez que nos vimos, em janeiro, presentes a Marta e o Ivan Marsiglia, ele já não falava, mas a mente, acesa, acompanhava o papo, que aqui e ali pontuava com sorrisos. Na minha cabeça, boiava o tempo todo o verso de Drummond que ainda agora me atormenta: “Por que Deus é horrendo em seu amor?”
Publicado no O Estado de S. Paulo, 5/5/2020 .
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Gentil, leve Chico Brant
Fui colega do Nirlando no começo da sua vida profissional, na sucursal da Última Hora em BH. Entre os vários colegas, Nirlando era o ícone admirado e estimado de jovens e veteranos jornalistas. Gentil, leve, inteligente, bemhumorado e repórter de mão cheia, já se distinguia por um fato definitivo: não tinha pretensão de ser o bom geral, como se dizia então, simplesmente porque era excelente pessoa e grande jornalista. Homem bom, sem enfeites, Nirlando se revelava inteiro no convívio pessoal e no trabalho. Em suas reportagens ou simples matérias, lá estava ele com informações precisas e texto impecável e muito, muito agradável. Redigir bem era quase um cânone no jornalismo da época, mas no caso de Nirlando
a pessoa e o profissional se expressavam no seu estilo. Depois da curta temporada na Última Hora, imolada no altar medonho do AI 5, nos reencontramos no Jornal da Tarde/ Estadão; ele em São Paulo e nós na sucursal em Belo Horizonte, aonde vinha sempre para fazer reportagens e matérias especiais, ou estar com a família. Chegava à sucursal como um amigo que fazia falta, e ao mesmo tempo como festejado colega. Como conseguia ser amigo e elegante? Com talento próprio e seu jeito sereno e alegre na conversa pessoal, e atencioso nas coberturas e entrevistas. Fosse com quem fosse o entrevistado, ele praticava o jornalismo, dialogando como uma boa prosa mineira, sem predisposições e jamais com viés ideológico que emburrece quem escreve e quem lê. Por tudo isso, a morte se torna ainda mais perversa, quando ceifa precocemente um ser humano da qualidade de Nirlando Beirão!
Tristeza nãol tem fim J A Dias Lopes Morreu o jornalista mineiro Nirlando Beirão. Foi um dos melhores textos da imprensa brasileira de todos os tempos, com estilo e fluência inimitáveis. Conseguia ser grande redator e repórter ao mesmo tempo. Além disso, era dotado de retidão moral, de finesse e de cordialidade extraordinárias. Fomos colegas de redação durante algum tempo, mas esqueci se era pessoa de fé. Isso não importa agora, eu sou. No dia em que cruzar com Deus vou perguntar a razão de nos ter levado o Nirlando tão cedo. Hoje, 71 anos é idade de menino. Tristeza não tem fim.
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um lorde Luiz Nassif
Conheci Nirlando Beirão pouco antes de sair da revista Veja. Era pouco mais velho do que eu e chegara de Belo Horizonte. Fazia parte de uma geração de mineiros amantes das letras e da elegância no trato e no texto. E também da ironia fina. Gente da estirpe dele, de Humberto Werneck, Marco Antonio Rezende, seguindo o pioneirismo de Ivan Angelo, Geraldo Mayrink. Saí da Veja em 1979, Nirlando permaneceu. A carreira de jornalistas de primeiro time é curiosa. Sempre mantém o nível, mas há momentos em que um tipo de texto se destaca, como uma pintura colorida sobre um quadro branco e preto. Nirlando teve vários desses momentos, o primeiro dos quais na própria Veja. E olha que não era fácil se enquadrar no estilo estereotipado da revista, com suas laudas de linhas de 37 toques, títulos com 16 caracteres e adjetivação abundante - e, muitas vezes, pouco seletiva. Naqueles anos 70 e 80, a Editora Abril enveredou por uma espécie de jornalismo digamos fútilsofisticado, Visava um público específico, que emergira da fase de ouro das agências de publicidade, pessoal que frequentava o Riviera, gostava de Godard, bebia muito uísque e apreciava a sensualidade elegante. Foi um período em que se sobressaíram as revista Playboy, Vip, Caras e outras. Nirlando seguiu esse caminho, com a competência de sempre até emplacar, durante algum tempo, uma coluna social no
Estadão. Mas sua referência maior sempre foi Mino Carta. Em 1986, quando enfrentei o então Ministro da Justiça Saulo Ramos, e fui abandonado pela Folha, uma entrevista na revista Senhor, concedida a Mino e a Nirlando, me permitiu juntar forças para prosseguir na briga. Nirlando acompanhou Mino em todas as empreitadas, no jornal A República, na revista Senhor e, depois na Carta Capital. Anos atrás fui a um jantar na casa de Mino, presente Nirlando. Era encantadora a maneira como ambos esgrimiam marcas de vinho, cinema italiano e francês, literatura e conceitos civilizatórios. A doçura de Nirlando impediu que fosse para a linha de frente contra o jornalismo que surgiu em meados dos anos 2.000, repleto de violência, factoides, discurso de ódio. Mas nunca abdicou de seus princípios, mesmo quando a abjuração era condição essencial para reabrir portas na grande imprensa. E, sempre que nos encontrávamos, manifestava sua indignação contra a deturpação da profissão, o corporativismo dos colegas, a submissão ao antijornalismo que começou a ser praticado e que resultaria, anos depois, no fenômeno Bolsonaro. Meu último contato com ele foi no lançamento de seu último livro, no qual narra a saga familiar. A doença já tinha dominado seu corpo. Mas os olhos continuavam vivos e emocionados. Sua maneira de se comunicar era olhando e, através do olhar, manifestando carinho, acolhimento, e todos os afetos que sempre foram a marca central da personalidade de Nirlando. Um lorde em terra de bárbaros.
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Um príncipe Ricardo Setti É tão simples quanto isto: a partida do Nirlando Beirão abriu um buraco no meu coração. Tinha por ele um afeto de irmão, solidificado por uma amizade que começou no longínquo 1968 e acrescido de uma admiração que dediquei a poucas pessoas na vida. Foi por isso que, quando nasceu minha filha Adriana, arrastei o Beirão comigo até o cartório, para ser testemunha na certidão de nascimento do primeiro de meus dois filhos. Nascia aí o tratamento mútuo de “Cumpádi”, por ele utilizado na última mensagem de whatsapp – brincalhona – que me enviou, 13 horas antes de ir embora da vida. Foi-se o príncipe dos jornalistas brasileiros, em todos os sentidos. Foi-se a inigualável fidalguia pessoal, a convivência deliciosa, a elegância nos menores detalhes, a inteligência aguda, o texto estupendo, a agenda de contatos como nunca vi igual, o senso de humor personalíssimo, a capacidade de escrever matérias irresistíveis tanto sobre os desfiles de alta costura em Paris ou as delícias da ilha de St. Barts, no Caribe, quanto sobre o crescimento da dívida pública ou os bastidores de uma campanha presidencial. Foi-se o amigo com quem certa vez minha mulher, Marcia (a “Cumádi”), e eu compartilhamos a emoção de cruzar em Buenos Aires com Jorge Luis Borges. Com quem compartilhei, muitas outras vezes, a alegria e o sofrimento de torcer para o Corinthians.
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Foi-se o irmão que depois do diagnóstico do mal que injustamente o aprisionou no corpo, chorava a cada reencontro
nosso. Também eu sempre chorava – e meu choro de agora ele não mais contempla.
Em sua casa, Nirlando comemora o título de campeão paulista de 2019 do Corinthians ao lado de Ricard Setti e Gustavo Mayrink, filho do saudoso Geraldo Mayrink.
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Foi com este anúncio e com estes adjetivos que o Estadão anunciou a estreia de Nirlando Beirão no Cardeno 2, no começo dos anos 1990.
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