NĂşmero 64 - 10 de agosto de 2020
Ah!, NapĂ´. Que tristeza !
Jornalista Napoleão Sabóia ‘Napô’, como era conhecido entre amigos, foi por cerca de 20 anos correspondente em Paris do ‘Estadão’ e do ‘Jornal da Tarde’, cobrindo predominantemente a área cultural Redação, O Estado de S. Paulo, 08 de agosto, 2020 Morreu neste sábado, 8, em seu apartamento em Copacabana, no Rio, aos 82 anos, o jornalista Napoleão Sabóia. Maranhense, tendo iniciado sua carreira no jornal O Imparcial, “Napô”, como era conhecido entre amigos, foi por cerca de 20 anos correspondente em Paris do Estadão e do Jornal da Tarde, cobrindo predominantemente a área cultural. De volta ao Brasil, em 2009, divorciado, instalou-se no Rio de Janeiro com seus dois filhos, Bruno e Antonio. “Ele deixou por todo lado a fama de um sujeito muito bom, comunicativo e falador”, diz Bruno, “que tinha entre amigos tanto figuras da cultura carioca quanto balconistas de bares na Rua Santa Clara”, ou
no Clube do Choro, que costumava frequentar na Rua da Carioca. Velho amigo desde seus tempos em São Luís, o ex-presidente José Sarney disse ter recebido “com grande comoção e tristeza” a notícia de sua morte – os dois trabalharam juntos na redação de O Imparcial. Ao assumir a Presidência, em 1985, Sarney o levou para o Planalto, onde “Napô” se encarregou da área cultural na imprensa internacional. “Com ele tive uma convivência fraternal durante o resto da vida”, disse na nota o hoje senador maranhense. “Era um grande talento e grande intelectual.” Sarney também destacou seu relacionamento “com grandes intelectuais e escritores, como Maurice Druon, Claude LéviStrauss, Denis Tillinac, e com o mundo político, tendo acesso, como correspondente de um grande jornal brasileiro, a (François) Mitterrand, (Jacques) Chirac, (Michel) Rocard, (Valéry) Giscard”. Em São Paulo, ele passou pela Folha de S. Paulo até se mudar para Paris, onde atuou na Radio France Internacional, e na Veja,
O jt Sempre é uma publicação com um único objetivo: manter viva a memória do Jornal da Tarde. É, acredito, a melhor forma de nos manter em contato, trocar informações, promover encontros para o papo agradável de sempre. Você pode participar. Mande sugestão, artigo, matéria, foto, histórias para mariomarinho@uol.com.br No campo “Assunto”, coloque: “JT Sempre”. Responsável: Mário Marinho.
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a morre aos 82 anos no Rio “Vez ou outra trocávamos zaps. Foi assim quando, há oito dias, morreu o (ex-correspondente do Estado) Gilles Lapouge.”
antes de se tornar correspondente do Estadão. Assim que chegou ao Rio, em 2009, o ex-correspondente foi trabalhar na Empresa Brasileira de Comunicação, a EBC, onde ficou até o início do ano passado – não permaneceu após a chegada do novo governo com Jair Bolsonaro. “Ele se movimentava por todo lado, não queria parar de trabalhar, tinha horror à aposentadoria”, lembra o filho Bruno, que vivia com ele no apartamento da Rua Santa Clara. No fim do ano passado, Napoleão veio do Rio a São Paulo para lançar seu livro Senhor da Festa, onde conta histórias bem-humoradas de sua vida profissional entre Maranhão, São Paulo e Paris. Da capital francesa, onde mora, a jornalista Rosa Freire d’Aguiar mandou aos amigos mensagem em que assinala que “Napô” vivia momentos difíceis no Rio. “Ele era muito amigo de nós todos, independentemente das brigas que volta e meia precisava ter com cada um”, escreveu no Facebook.
Trabalhando na ocasião em Paris, para a revista Época, o jornalista Moisés Rabinovici fala dessa dupla – aliás, trio. “O trio de Paris do Estadão agora se reencontra em algum lugar inescrutável do pós-vida: Reali Júnior, Gilles Lapouge e Napoleão Sabóia.” Da dupla Reali-Napoleão, o editorialista do Estadão Rolf Kuntz tem uma história ainda dos anos 70. “Conheci Napoleão em 1974, no apartamento do grande Reali Jr., em Paris. ‘Napô’ ia fazer um teste, pelo telefone, para trabalhar como correspondente de uma rádio paulistana. Radialista veterano, Reali passou aquela manhã treinando o amigo. Deu certo.” Ele era “uma personalidade esfuziante, um furacão, tinha mais ideias do que conseguia processar”, resume Ricardo Augusto Setti, com quem “Napô” trabalhou ainda no início da carreira, em Brasília. Rabinovici guarda, da antiga amizade, momentos divertidos – a começar pelo fato de ele se chamar Napoleão e morar em Paris. “O nome dele intrigava os franceses, que não dão o nome de seus heróis a ninguém. Testemunhei a vez em que fomos alugar um carro, pediram-lhe o nome e, depois que ele o disse, o atendente resmungou: “Não estou brincando...” Nos últimos tempos, Napoleão havia informado ao filho Bruno que, quando morresse, queria ser cremado.
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Feijoada em Paris Mário Marinho Era julho/agosto de 1981. Estávamos em Paris, eu e a Vera, indo para o apartamento do amigo Napoleão Saboia, que ficava na Place Clichy, em Paris. Lá iríamos encontrar o jornalista Luiz Carlos Ramos e a mulher dele, Maria de Lourdes. Napoleão Saboia iria nos levar para jantar num restaurante brasileiro, o Dona Flor e o prato seria uma autêntica feijoada. Já passava das 19 horas, mas o dia estava bem claro naquele verão parisiense. Esperávamos uma chance de atravessar a Place Clichy, pois o apartamento dele ficava do lado oposto onde estávamos. De repente, um carro bem modesto, provavelmente um 1.0 da época, ocupado por dois rapazes. Parou junto à calçada, em nossa frente. Com um largo e simpático sorriso, o rapaz do banco de passageiros me perguntou: - Parle vouz français? - Non. Je ne parle pas. Pardon. Usando algumas palavras que eu identifiquei como sendo o francês e outras o italiano, ele me perguntou: - De onde Você é? Respondi: - Brasil. - San Paolo? San Paolo? - Sì, sì San Paolo. No minuto seguinte, eu e a Vera já éramos envolvidos por afetuosos abraços pelos dois jovens italianos. Usando de muita mímica, claro, de algumas
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palavras em francês, outras em espanhol e a maioria em italiano, o jovem se apresentou e contou a história que eu resumo. Os dois eram estudantes italianos que foram até Paris a passeio. Para ganhar algum dinheiro, trabalharam numa feira de roupas finas que acontecia naquela época em Paris. Disseram isso já nos mostrando dois casacos de pele tirados de uma caixa no banco traseiro do pequeno carro. Como a Feira não foi um sucesso comercial, eles foram pagos com roupas que precisavam vender para colocar gasolina no carro e viajar até Roma. - Quanto custa? Pediram 500 dólares por casaco. Ofereci 100 pelos dois. Pediram 200, mas aceitaram os 150. Pagamos e eles se mandaram. Quando atravessávamos a praça em direção ao apartamento do Napô, me ocorreu: - Vera, acho que isso é roubado. Ela entrou em pânico. - E se a polícia pegar a gente? Atravessamos a praça quase correndo, entramos no prédio e subimos até o apartamento. Napô estava preocupado com o nosso atraso. Contamos o que havia acontecido e ele não teve a menor dúvida: - Claro que isso é roubado. - E agora? perguntei. - Agora nós vamos jantar, senão perdemos a reserva da mesa. Você deixa isso aqui e amanhã eu levo ao seu hotel. O que de fato aconteceu. O restaurante Dona Flor era todo decorado com motivos e cores brasileiros e o som era de samba. Os garçons, maioria brasileiros, vestiam camisas de times de
futebol brasileiros. A feijoada foi um espetáculo. Nós vínhamos de 15 dias em Israel para cobertura da Macabíada. De lá, viajamos para o Egito, Grécia, Itália e Inglaterra. De Paris iríamos para a Espanha e de lá para o Brasil. Estávamos saudosos do feijão e, com a idade daquela época, nenhuma feijoada faria mal, mesmo à noite. Esse o Napoleão Saboia que eu só conhecia através de telex ou raros telefonemas. Eu era Editor de Esportes do Jornal da Tarde e ele correspondente em Paris que,
às vezes fazia matérias para minha editoria. Luiz Carlos, que também foi a Israel cobrir a Macabíada (uma competição mundial de esportes olímpicos só com atletas de origem judaica). Daí, nasceu uma amizade e um relacionamento que só terminaria no último dia 8 de agosto, dia do aniversário da Vera, minha mulher, que o Napô, às vezes se confundia e chamava de Clara. Foi o dia que ele escolheu para abreviar sua passagem por esse mundão de Deus.
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Nosso Napoleão não Percival de Souza Francês não gosta de emprestar os nomes de seus grandes vultos para ninguém. Por isso, Napoleão, nome próprio, era intrigante em Paris, onde foi correspondente por duas décadas dos irmãos Estadão e JT. Mas Napô superou muito bem essa idiossincrasia nacional, conquistou o mundo cultural da cidade e sua grande influência a partir de 1792, quando ruiu Bastilha. Em termos de literatura, só tivemos similar – no mesmo JT – com Leo Gilson Ribeiro (o descobrir de Hilda Hilst), os arroubos intelectuais de Renato Pompeu e os textos saborosos de Luiz Carlos Lisboa, para nós arrebatadores e dignos de imitação como Gay Talese, Ernest Hemingway e Machado de Assis. Bons tempos, esses do JT. Tínhamos um livreiro que ia regularmente à redação e, dono de uma livraria nas Perdizes, conhecia os gostos de cada um de nós, fazendo as recomendações de um lançamento que considerasse leitura obrigatória. Mesmo estímulo aplicado por Marcos Faermann a seus repórteres, quando chefe de reportagem. Criar novas fórmulas, sempre. JT, marca registrada, sempre. O JT tinha um caderno de sábado que era literatura pura. O Estadão teve o seu clássico Suplemento Cultural. Hoje, o salutar hábito da leitura foi volatizado pelos neófitos que não sabem apreciar um bom texto, nem escrevêlo e muito menos ler bastante para aprender a escrever
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melhor. Nossa geração, não: o bom texto era uma obsessão, o estilo tinha de ser marcante e a leitura agradável. Tínhamos de apresentar, numa matéria, a “historinha” com personagem, mas historinha bem escrita, entenda-se bem. Nesse contexto, surge na planície o maranhense Napoleão. Antes de cruzar o Atlântico e instalarse na bela Paris, teve suas experiências tupiniquins, de sucesso, escrevendo entre outros para um jornal de São Luís, tendo com o parceiro José Sarney, o dos “Marimbondos de Fogo”, futuro imortal da Academia Brasileira de Letras. Bom texto, reconheça-se. A dinastia política é outra coisa. Registre-se, aqui, que um brasileiro radicar-se profissionalmente como correspondente cultural em Paris não é coisa fácil. Como correspondente, tinha de saber melhor do que ninguém que literatura é o espetáculo das palavras, que a poesia é a alma da literatura e, portanto, esse mágico mundo cultural precisa ser revelado, noticiado, com talento, sensibilidade e competência. Ah, isso o nosso Napô tinha de sobra. Quando conversava, seu olhar era inquisidor, penetrante, intrigante, exigindo capacidade de saber ouvir, dialogar, informar-se e informar. Contar. Saber contar. Texto límpido, sem necessidade de esmeril. Vários de nós fomos lapidando esse dom aos poucos, porque alguns sabiam apurar mas não sabiam escrever, e outros sabiam escrever mas não sabiam apurar. Curioso, não? É preciso profunda autocrítica para perceber isso. E lá se foi Napoleão Saboia com
conheceu Waterloo
Percival e Napoleão no Almoço do JT em 2017
seu jeitão próprio para Paris. Cativou e foi cativado. Conquistou e foi conquistado. Admirou e foi admirado. Foi polivalente; fez jornal, rádio (com instruções de Reale Junior, Jovem Pan, também correspondente em Paris) e revista. Consigne-se um registro da incrível incapacidade do JT para reter grandes talentos, perdendoos para concorrentes, fornecedor de matéria prima composta de talento, arte e profunda percepção. O JT foi mãe de várias publicações, tão sucessivamente que morreu das dores do parto. Isso me aborrece: vivemos o auge e testemunhamos o declínio fatal, provocado por mãos da incompetência. Mas não é disso que estamos falando. Falamos de Napoleão Saboia. Um homem acima das mesmices, do burocrático, do automático, do mecânico. Porque criativo, eternamente curioso, buscando novos formatos, lançando-se na busca das
descobertas, lutando para que coisas boas não permaneçam ocultas. Amigo de correspondente no exterior vem a ser encontrá-lo de vez em quando, geralmente nas férias, ter encontros para manter as conversas em dia, saber das últimas e revelar as penúltimas. Cheguei a comentar com ele como seria conviver com um monstro sagrado chamado Gilles Lapouge, autor do lead que me impressionou ao longo de toda a minha vida profissional. A matéria começava com um pedido de desculpas ao leitor. (!!!). Era sobre o Egito, onde Lapouge tinha passado semanas para descrever a experiência. Ele escreveu: teria que ter vivido lá durante séculos par saber contar. Estive no ano passado no Egito e contemplando as pirâmides a frase de Lapouge não me saia da cabeça. Sim, Lapouge era um gênio, mas nem por isso Napoleão deixou-se ofuscar. Maravilhoso, isto: conviver, aprender., desfrutar,
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aproveitar a oportunidade, saber ganhar a partilha, oferecer algo em troca. Algo em troca? Caráter, dignidade, amizade verdadeira, lealdade, reconhecimento, convivência salutar. O DNA napoleônico. Nova travessia do Atlântico. Volta ao Brasil. Lançamento do livro “O Senhor da Festa”. Um telefonema: meu filho precisa de uma boa indicação sobre psiquiatria forense, aquela que penetra na mente dos assassinos. Eu gostaria de indicar Dostoievski, brinquei. Ele sorriu. Dei-lhe o nome e os contatos de um psiquiatra amigo meu, que atua nesta área. Ele agradeceu. Na última vez que nos vimos, num dos almoços idealizados pelo Mario Marinho, ele agradeceu
a indicação da qual nem me lembrava mais. “O cara é mesmo bom”. Perguntou como poderia retribuir. Respondi que com alguma indicação que eu não conhecesse de Victor Hugo. Por que? – Napoleão quis saber. Respondi: porquê ele tem uma frase que se ajusta ao Brasil de hoje: “quem poupa o lobo, condena à morte as ovelhas”. Ele reagiu intrigado, tentei explicar a frase, muito além de Jean Valjean x inspetor Javert em Os Miseráveis. Napô não conheceu Waterloo porque venceu todas as batalhas. Dominou a arte das guerras culturais, também intrigantes, desafiantes e devastadoras. Napoleão parte, o legado fica.
Ajuda ao magricela Estou tristíssimo com a morte do Napoleão Sabóia. Acho que tive o privilégio de me tornar seu amigo antes de vocês todos, porque ocorreu em Brasília, bem antes de ele colaborar com o Estadão. Teria muito a dizer sobre ele, na época personalidade esfuziante, com cara de rei inca e um sorriso de todos os dentes. Era um furacão, tinha mais ideias do que ele próprio podia processar e uma afetividade transbordante. Amigo de todo mundo, todo mundo gostava dele. Ajudou muito àquele novato magricela na cobertura política que era eu. Nunca lhe serei suficientemente grato. Ricardo Setti
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Vim buscar Napoleão Convivi bastante com ele antes e durante a Copa do Mundo de 1998. Ele me ajudou demais a montar a infraestrutura para a cobertura do Estadão em diversas sedes. Certo dia, em Paris, ele pediu um táxi para nós pegar no Centro de Imprensa. Quando deu o nome, a atendente bronqueou, achando que era brincadeira. O taxista, mais bem humorado, fez questão de descer do carro para anunciar aos berros no saguão do prédio: “Vim buscar Napoleão”. Roberto Benevides
O charme da voz atrapalhada Claudinei Urso Vieira Conheci Napoleão Sabóia há pouco mais de um ano, justamente para conversarmos a respeito de um livro de ficção que ele havia escrito e com muita vontade de publicar. Foi me apresentado pelo amigo Fernando Portela, também jornalista e escritor (quando conheci também Camila Aranha que sempre o recebia em casa para se hospedar e o conhecia muito bem). Eu não o conhecia, mas desde o primeiro instante firmamos o compromisso de publicar seu livro (que tinha outro nome na época, só depois ficou O SENHOR DA FESTA). O que quero dizer, e está difícil, não sei entender a morte, não sei entender essa absoluta falta de um ser humano, li alguma notícia que saiu há pouco no Estadão e suas referências profissionais de jornalista superrespeitado, dos tempos que trabalhou em Paris, e do carisma e de tantas amizades que ele teve. Mas não é deste Napoleão Sabóia que gostaria de falar. Não é exatamente este que vou lembrar sempre. Vou lembrar de uma das pessoas mais gentis e humildes que já conheci, de sua simpatia e carisma, de sua fala meio atrapalhada que era mais um charme em sua figura. Vou lembrar do escritor e da delícia que senti ao ler seu texto pela primeira vez e do orgulho de
ter editado e publicado seu livro (de ficção, sim, mas recheado de um monte de detalhes autobiográficos, com certeza), da delícia de sua escrita, do seu humor. Lembrarei de sua ansiedade de fazermos novos lançamentos, de divulgarmos ainda mais seu livro; o lançamento em São Paulo reuniu alguns amigos, no entanto, o dia foi complicado pelas chuvas e pela demora na entrega dos livros; a fome por novos lançamentos, portanto, ainda mais forte e premente. Lembrarei dos planos que estávamos fazendo. E que foram todos interrompidos (a gente pensava: ‘só adiados’) por conta da pandemia. Sei dessa pessoa e escritor que conheci. Mas ainda tentando entender o fato de que nunca mais o veremos. Caramba. Caramba. Recebi a notícia pelo amigo Fernando Portela me perguntando se eu não teria mais fotos de Napo (como era conhecido pelos amigos). Tenho mais algumas poucas, somente do lançamento do livro em São Paulo. Gosto de ver estas fotos. Gosto de vê-lo cercado de alguns amigos queridos que conseguiram atravessar a tempestade paulistana para cumprimentálo. Pessoas que o admiravam e respeitavam-no. Eu somente estava começando a conhecê-lo e já o admirava e respeitava. Mas ele foi cedo demais. Como sempre é cedo demais
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Um eterno sonhador Luiz Carlos Ramos Impossível deixar de atender um pedido do amigo Napoleão Sabóia, aquele que, em seus tempos de correspondente do “Estadão” e do “JT” em Paris, acolhia carinhosamente os jornalistas brasileiros. Em outubro de 2019, ele me telefonou, direto do Rio. Notei que o tom de voz já não exprimia o habitual entusiasmo do Napô. Com razão. Ele revelou que vinha sentindo intensas e prolongadas dores na coluna, mas esperava bom resultado no tratamento para poder vir a São Paulo no final de novembro e lançar seu livro, “O Senhor da Festa”. Seu pedido: “Meu querido, me ajude a divulgar o lançamento junto aos nossos amigos dos dois jornais.” É claro que ajudei. Tão logo foi marcada a data, 27 de novembro, às 20 horas, num bistrô perto da Rua Conselheiro Rodrigues Alves, na Vila Mariana, espalhei a informação para um monte de amigos. Infelizmente, Napô não teve sorte: São Paulo viveu uma das maiores tempestades dos últimos anos. Ruas inundadas, trânsito parado. Só cheguei lá porque fui de metrô e dei uma caminhada até o bistrô. Pelo menos, foi ótimo rever Napoleão, que tentava esconder o desconforto das dores. Napô me abraçou e logo perguntou: “Como está Lourdes?” Minha esposa, Maria de Lourdes, é eternamente grata a ele pelo apoio que nos deu em agosto
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de 1981, quando de nossa visita a Paris, com o Mário Marinho e a Vera, no final de um giro pela Europa, após a cobertura da Macabíada, em Israel. Tive novos contatos com Napoleão em três outras viagens à França. Na última, em maio de 2000, Napô se ofereceu para me hospedar em seu no apartamento, perto de duas estações ferroviárias, Gare Du Nord e Gare de l’Est. E me acompanhou na missão de cobrir, para uma revista, uma reunião no Palais des Congrès, em que a Organização Mundial de Saúde Animal iria declarar grande parte do território brasileiro, inclusive o Estado de São Paulo, livre da febre aftosa, favorecendo as exportações de carne. Não ficou nisso: ele me levou a um teatro para assistir ao show em que a magnífica Bibi Ferreira interpretou músicas de Edith Piaff e, na noite seguinte, fomos ao Stade de France, da Copa do Mundo de 1998, para a primeira decisão da Eurocopa em que os dois times eram do mesmo país – festa espanhola, Real Madrid 3 x Valencia 0. O jurista Saulo Ramos, ministro da Justiça no governo José Sarney, menciona em seu livro “Código da Vida” a cordialidade de Napô para
Maria Elisa, Luiz Carlos Ramos e Napoleão Sabóia
receber pessoas – famosas ou não – quando era o correspondente respeitado por políticos e intelectuais, amigo de Jorge Amado e Sebastião Salgado. Ótimo pai, Napô soube encaminhar os dois filhos, que conheci há alguns anos: Bruno, jornalista, e Antônio, cineasta. Na noite da tempestade que frustrou o lançamento do livro, fui recebido por Bruno, a quem havia levado para conhecer a PUC-SP em 2002. Não mais do que 20 pessoas compareceram ao bistrô. Ruy Mesquita Filho, João Lara Mesquita e Rolf Kuntz lá estavam. Reencontrei a professora Maria Elisa Porchat, que foi minha colega na Rádio Trianon e que trabalhou nos bons tempos da Rádio Jovem Pan. Ela é irmã de Amelinha, viúva do Reali Júnior. Pedi ao Bruno para tirar uma foto
nossa: Maria Elisa, Napô e eu. Postei a imagem no Facebook e elogiei o livro, que, por causa da chuva, chegou atrasado ao local do lançamento. Ao se despedir, Napoleão me disse: “Em fevereiro, eu volto, e a gente faz outro lançamento, para valer.” Nos primeiros meses de 2020, trocamos mensagens pelo WhatsApp. No início de julho, ele se mostrou feliz com a bela resenha da sua obra, publicada pelo Caderno 2. Napô ainda mostrava esperança de vir novamente a São Paulo como autêntico “Senhor da Festa”. Não deu. O grande jornalista e magnífico caráter era um eterno sonhador. Ao apressar sua partida do mundo em que fez tantos amigos, Napô revelou estar cansado da dor e da saudade. Para nós, fica a imensa saudade.
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Até lá, meu querido amigo Fernando Portela Não consigo pensar em Paris sem que o Napô me venha à mente. Todas as vezes em que lá estive – pelo jornal, pela Fiat do Brasil, ou de férias – era o primeiro a procurar. Tínhamos um acordo: ele sempre me levava aos restaurantes de comida francesa, genuína, desconhecidos de turistas; alguns bem pequenos, de poucas mesas, mas, gastronomicamente, insuperáveis. Ele era amigo de todo mundo naqueles lugares recatados, quase escondidos em ruas estreitas, onde só transitavam franceses. Além dos assuntos óbvios – notícias internas do jornal, novidades do setor, tendências, mais política e literatura – era uma conversa de nordestinos, sempre recheadas de muito humor. Do Maranhão às Bahia, não escapava nada. Morria de me rir – como se diz em Olinda. Fui apresentado, no seu apartamento, a alguns colegas famosos, sobretudo de tevê, que nunca havia visto no Brasil. Como Reali, Napô era um embaixador informal. De todos os segmentos, não só da imprensa. Ano passado, ele, já no Rio, voz mansa de modéstia, perguntoume se indicaria uma editora que ao menos examinasse os originais de “O Senhor da Festa”, o livro que lançou o ano passado. Me deu uma brevíssima sinopse. Ora, liguei na hora para Claudinei Vieira, dono da “Desconcertos
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Editora”, disse-lhe que lhe passaria uma joia rara, insinuando que já havia lido. Claudinei confiou e fechou contrato dias depois. Por que eu precisaria avaliar um texto literário do meu amigo, um dos grandes personagens de romance da minha vida? Só podia ser muito bom. Na nossa última conversa, dias atrás, ele me agradeceu pela enésima vez a apresentação, embora eu insistisse que a Desconcertos é que deveria me dar um prêmio por tê-lo indicado. Claudinei, justiça seja feita, sentiu-se orgulhoso do seu novo escritor. Nem toda editora jovem tem um Napô no portfólio. Como não acredito que ninguém morra, apenas se transforme, todos nós estaremos com ele, um dia, deliciando-nos com suas histórias. Então, só me resta dizer: até lá, meu querido amigo; divirta-se muito, nesses novos mundos.
As azeitonas e o scargot Gilberto Mansur Era 1979, o Líbano – mais uma vez - tentava se reconstruir e eu tinha ido conhecer e, se possível , socorrer minha família de lá. Na volta, uma passagem por Paris pra encontrar alguns amigos – como Peg , o nosso Marco Antonio Rezende, que já estava se tornando um local e, claro, Reale Jr., embaixador dos jornalistas brasileiros na cidade. Na hora de arrumar as malas, os primos – plantadores de azeitona e produtores de azeite - dobraram o peso de nossa bagagem com quantidades absurdas desses produtos. “Não vai passar pela alfândega”, eu pensei. Mas, espantosamente, passou. “De Paris pra São Paulo, não passa de jeito nenhum,” eu repensava. Aí tive a grande ideia: avisei ao Reale que iria lhe entregar, de presente, toda a valiosíssima (como ele mesmo definiu) “carga” excedente... Realinho teve algum problema de última hora (felizmente, como se verá) e enviou, como seu digníssimo representante, um jornalista que eu conhecia só de
nome: Napoleão Saboia. E valeu a pena, foi uma alegria conhecer o Napô! Ele ficou de nos encontrar no hotel, Vivina (minha companheira de viagem) e eu. Morava muito longe, como nos contou, tomou vários metrôs mas conseguiu ser europeiamente pontual. E nos levou a um simpático e típico restaurante francês onde - sem nenhuma solenidade nem prévia consulta ou preparação de espíritos – nos apresentou ao... escargot. Falou muito durante todo o jantar: da alegria que sua mulher de certo teria por ganhar tanto azeite e tanta azeitona e de tal qualidade - luxos aos quais não podia se dar com o salário, decente, mas, limitado, que ganhava. Contou muitas histórias do seu Maranhão, nos detivemos em Ferreira Gullar, amigo que ele admirava e que eu conhecera, anos antes, ao convida-lo para uma palestra na Faculdade Letras que eu frequentara ainda em BH. Gostava muito da França, mas, sentia também muita falta do Brasil, perguntou por todos os muitos amigos do Jornal da Tarde, mandou abraços pra todo mundo. Depois trocamos algumas cartas e, quando ele veio ao Brasil, fizemos - em casa - um jantarzinho bem mineiro, desses que não se encontram em restaurantes. Lembranças muito, muito antigas mas cada vez mais presentes, ainda mais agora que o nosso amigo se foi...
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Que tristeza! Moisés Rabinovici O que um dos primos de Napô contou, o Haroldo, em Paris, é que ele andava numa terrível depressão e resolveu apressar o fim. Parte do ano passado ele estava trabalhando na EBC, a Empresa Brasileira de Comunicações, no Rio. Napô e eu fomos amigos desde sempre, mas mais íntimos quando fui morar em Paris, correspondente da revista Época./ O nome dele intrigava os franceses, que não dão o nome de seus heróis a ninguém. Testemunhei a vez em que fomos alugar um carro, pediram-lhe o nome e, depois que ele o disse, o atendente resmungou: “Não estou brincando...” A ideia de suicídio já passava pela cabeça de Napô quando ele me procurou para ajudá-lo a publicar um livro, O Senhor da Festa, no ano passado. Mandei os originais dele para o editor José Renato Almeida Prado, da 11Editora, que tinha publicado um livro meu, e lá o prazo para impressão não o agradou: ele tinha pressa. Acabou
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Almoço do JT, 2017
em outra editora que lhe entregou o livro em três meses. Mas no dia do lançamento caiu um temporal impressionante, e a maioria dos amigos não compareceu. Napô começou em jornal no Imparcial, do Maranhão. Ele é considerado um maranhense-cearense, foi assessor de José Sarney. Ele passou pela Folha de S. Paulo até se mudar para Paris, onde colaborou com a Radio France Internacional, e para a Veja. Depois, foi para o Estadão, com Reali Júnior e Gilles Lapouge, ambos mortos. Ficou mais de 20 anos, escrevendo, principalmente, para a área cultural, com entrevistas memoráveis com Claude Lévi-Strauss e Jorge Amado. Soube que ultimamente tinha pesadelos com AVC, tão reais que até disse a um amigo que tivera um. Também se queixava de dores na coluna, que o imobilizavam na cama. Hoje, a cadeira ao lado da janela, em Copacabana. Que tristeza! (Napô tinha 82 anos e deixa dois filhos, Bruno, jornalista, e Antônio, ator que trabalhou em Bacurau).
Kassia recebe Kassia Caldeira, além de excelente jornalista, é também cozinheira de mão cheia. Sua especialidade, como não poderia deixa de ser, é a comida mineira, cultura que ela traz lá de Guanhães, cidade mineira que também deu ao mundo o nosso saudoso Kleber de Almeida. Fiquei sabendo que, de vez em quando, ela costuma recebe alguns amigos. Entre os convivas, Laerte Fernandes, Moisés Rabinovici, Zeca Santana, Napoleão Sabóia Lourenço Dantas Mota, Tonico Pereira e outros ilustres. Pouco depois de uma dessas acontecido há uns três ou quarto anos, ela recebeu o texto abaixo enviado pelo memorável Napoleão Saboia: “Kassinha, salut! Primoroso o encontro. Uma soirée française très chic: comida saborosa, um pernil dos deuses, fromages délicieux, vinho très honnête, sobremesas no mesmo nivel. Detalhe: comida gostosa e magra! Comeu-se en bonne conscience, ça faisait pas grossir! Convidados de marca, como sempre. E Zeca foi o centro de
Kassia, em Guanhães.
nossas alegrias congraçadas. Belo cara! O Cara. Precioso amigo. Soirée inesquecível, inteligente, todo mundo ligado nos papos diversos, à la française: todos escutavam e todos falavam! E você, impecável no seu papel de anfitriã, realizando um soberbo meio-campo, artifice de uma “convivialité” que celebrava a amizade e a arte da conversação, essa arte tao francesa e brasileira. Gostei muito. Você está muito bonita, figurino francês, cabelinho curto, esbelta, de olho no peso. Bom! Se Zeca ainda estiver aí, dê meu abraço afetuoso no amigo, o apto está às ordens de vocês aqui no Rio. Merci, mille merci pela encantadora soirée. Beijo carinhoso do Napo” (Mário Marinho)
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Nunca haverá outro maranhense francês como o Napô Miguel Jorge Não me lembro mais quando encontrei o Napoleão pela primeira vez. Mas me lembro, perfeitamente, que ficamos amigos de cara. O jeito simples, o sorriso fácil, o bom amigo, o contador de casos: em todos os encontros, ano após ano, Napô era o mesmo, uma pessoa amável e de uma grande cultura. Toda vez em que estive em Paris, era obrigatório o encontro para conversas com ele e o Reali, às vezes com a Amelinha junto. Hoje, cada vez que lembro das últimas notícias sobre nosso amigo Napoleão, fica difícil de acreditar que ele passava por uma depressão terrível e que isso o levou a desistir de viver. Difícil porque todas as lembranças são de alegria e de uma enorme cordialidade. Numa das viagens a Paris, o Reali nos levou em seu velho Peugeot 504 para jantar num bistrô de um casal
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seu amigo. Chegamos cedo e saímos tarde – eu, bem mais jovens que ambos, passei a noite aproveitando e aprendendo com dois grandes profissionais. Começou no jornalismo no O Imparcial, de São Luís, onde também trabalhava o redator José Sarney, que seria seu amigo durante toda a vida. Tanto que o levou para ser seu assessor especial quando assumiu a Presidência da República, entre 1985 e 1990. Depois de passar pela Folha de S. Paulo em Brasília, foi para Paris, e durante 20 anos, foi correspondente
especial do Estadão e do Jornal da Tarde, especialmente para assuntos da área cultural. Quando vinha a São Paulo, sempre tinha longas conversas com Ruy Mesquita, de quem era gostado e por quem era gostado. Era amigo de todos, e com todos sempre era de uma conversa fácil e cheio de amabilidades. Napô se foi mas, mas como no caso de Gilles Lapouge, que nos deixou uma semana antes dele, ficaram para sempre as boas lembranças, as grandes entrevistas e sua obra literária.
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Talvez ele só quisesse se despedir Rosa Freire
Napô era um amigo muito, muito querido de nós todos, independentemente (ou até por causa) das brigas que volta e meia precisava ter com cada um. Era talvez seu jeito de fortalecer a amizade, que ele retomava, meses ou anos depois, como se nada houvesse. Comigo, ele estava num desses momentos de afastamento. Desde que eu me neguei a ler pela terceira vez os originais do romance que ele escreveu e para o qual, nas duas primeiras leituras, dei dezenas de sugestões que ele acatou. Mas, vez por outra nos trocávamos zap’s. Foi assim no Natal, foi assim quando o parabenizei pelo livro editado, foi assim quando, há 8 dias, morreu o Gilles Lapouge. Mandei para ele um post que tinha publicado no facebook. Ele me ligou, creio que equivocadamente com a câmera ligada mas com o som desligado. Eu o via na tela mas não conseguimos nos falar e ele desligou. Não sei se queria retomar o contato: o Haroldo, primo dele, com quem conversei longamente agorinha, me disse que desde o início de junho Napo estava ligando para reatar as relações estremecidas entre os
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dois fazia mais de vinte anos. O que me deixa a suspeição de que naquela chamada do dia 31 de julho que me fez pelo zap talvez quisesse que retomássemos o contato. Não deu tempo. E estou muito triste.