NĂşmero 65 - 23 de agosto de 2020
Laerte Fernandes 07-02-1937 - 18-08-2020
Almoço da turma do Jornal da Tarde, em 09-11-2013. Foto de Reginaldo Manente.
Laerte Fernandes mo
Ele estava internado desde o dia 26 de junho na Beneficência Portugu Redação, O Estado de S.Paulo 19 de agosto de 2020 “Faleceu ontem, 18 de agosto de 2020, meu grande e querido pai Laerte Fernandes, aos 83 anos, vítima de um AVC. Estava hospitalizado há quase 2 meses e hoje se liberta dos fios e de um corpo que já não respondia e não podia se comunicar. Segue meu pai, livre, luz!!”, escreveu a filha Claudia Fernandes nas redes sociais. O jornalista Laerte Fernandes na comemoração pelos 20 anos do ‘Jornal da Tarde’ em 1986 Foto: Claudine Petroli/Estadão Laerte foi da equipe fundadora do Jornal da Tarde, era secretário da redação nos anos 1980 ao lado de Ivan Ângelo e Miguel Jorge, ex-ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior no governo Lula. Antes, foi também editor-chefe do JT. “Cuidava do jornal durante o dia, sempre muito preparado, tinha uma maneira de agir com as pessoas muito afável. Conseguia controlar bem tudo na redação, sem nenhuma prepotência, sobretudo na base da conversa. Ele era um homem da redação, sempre foi muito competente”, afirmou Miguel Jor-
ge, que conheceu Laerte em 1963. Formado em história e em direito e nascido no litoral norte, Laerte se identificava como caiçara. Além dos cargos no JT e no Estadão, é lembrado pelas reuniões que organizava em sua casa com jornalistas do Grupo Estado e políticos, cientistas sociais, ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e personalidades do mundo das artes. Professor de Laerte na graduação em história na USP, o historiador Carlos Guilherme Mota afirma que, no período da ditadura militar, ele “era uma espécie de farol dentro da noite”. “Se houvesse alguma perseguição, algum desaparecimento de pessoas, o Laerte estava atento e, dentro das possibilidades da época, ele noticiaria. Nos lugares em que eu ia falar – e eu pedia a volta dos perseguidos (pelo regime) –, eu sabia que o Laerte tinha destacado algum jornalista para me dar cobertura. E de fato eu tinha segurança, porque sabia que, se eu desaparecesse, o Laerte estaria ciente e tomaria alguma providência.” O companheirismo de Laerte durante o período também é relembrado pela historiadora Janice Theodoro da Silva, sua amiga dos tempos de faculdade. “Eu, que fui
O jt Sempre é uma publicação com um único objetivo: manter viva a memória do Jornal da Tarde. É, acredito, a melhor forma de nos manter em contato, trocar informações, promover encontros para o papo agradável de sempre. Você pode participar. Mande sugestão, artigo, matéria, foto, histórias para mariomarinho@uol.com.br No campo “Assunto”, coloque: “JT Sempre”. Responsável: Mário Marinho.
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orre aos 83 anos.
uesa, em São Paulo, após sofrer um Acidente Vascular Cerebral perseguida, não esqueço quem esteve realmente ao meu lado”, diz ela. “A memória de Laerte será minha companheira.” Janice destaca o episódio do sequestro, em julho de 1980, do jurista Dalmo Dallari, resistente ao regime. “A primeira pessoa para quem ligamos foi Laerte Fernandes. Ele foi muito importante porque, logo em seguida ao desaparecimento de Dalmo, os jornais já estavam dando a notícia.” “Laerte era aquela pessoa conciliadora da redação. Sempre com sorriso pronto e disposto a achar soluções. Tinha um espírito corpo de bombeiro, nunca incendiário”, lembra o jornalista Mário Marinho, que foi editor no JT. Um forte líder de equipe. É assim que a jornalista e professora da USP Cremilda Medina descreve Laerte ao rememorar seu trabalho à frente do Jornal da Tarde, onde os dois trabalharam juntos. A espirituosidade de Laerte marcou aqueles que conviveram com ele. “Eu o conheci no dia em que comecei a trabalhar no Jornal da Tarde, há 30 anos. Quando cheguei, ele já estava lá”, conta o escritor e jornalista Luiz Carlos Lisboa. Os dois passaram a tomar cafés juntos e firmaram amizade. E o hábito perdurou. “Nos últimos quatro anos, fomos vizinhos. Do meu apartamento, eu via a janela dele, e sempre descíamos para tomar café”, conta Lisboa, em tom emocionado. “Fa-
lávamos sobre tudo.” João Paulo Fernandes, filho de Laerte, destacou a paixão que o pai tinha pela profissão. “Um dia, comentou que se esquecia da vida e de problemas pessoais quando ia se aproximando do jornal. Esquecia de tudo e se dedicava ao jornalismo. Ele vivia intensamente isso, foi uma pessoa absolutamente realizada com o que fez”, afirmou. “Na guerra do Golfo, eu me lembro que ele voltava para casa altas horas da madrugada, já com o jornal do dia seguinte em mãos”, relembra a procuradora Márcia de Holanda Montenegro, que foi casada com Laerte por 24 anos. “Era um grande prazer para ele o jornal.” Letícia, a filha mais nova, conta que o prazer de Laerte com os escritos não se restringia às notícias. “A gente declamava poemas juntos”, diz. “Decoramos todo o poema Tabacaria, do Fernando Pessoa. Era nosso poema favorito. A gente declamava indo para a escola, nos encontros, nos almoços em casa.” Laerte e Luiz Carlos Secco, Almoço JT 2018. Foto: Mário Marinho
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Alguém acabe com esse a Mário Marinho É possível que em algum lugar do mundo, ou do tempo, uma fada má esteja sorrindo, vibrando com os maus fluidos, com as pragas que ela, porventura, tenha despejado sobre a humanidade. - 2020?! Quem viver verá, grasnou ela antes de soltar sua tétrica gargalhada. Pois o ano começou com as chuvas de verão que se transformaram em tempestades de janeiro. São Paulo teve ruas e bairros alagados. Dez pessoas morreram. Em Belo Horizonte, foram 55 as vítimas de desabamentos e enchentes. Antes do fim do mês, começam a chegar notícias alarmantes da China sobre a ação de um desconhecido vírus altamente contagioso. Atravessamos o mês de fevereiro com as notícias alarmantes, como se fossem um vírus, se espalhando pelo mundo. Mas, o pior ainda estava por vir. No dia 3 de março, morreu Kleber de Almeida, 76 anos. Da turma que fundou o Jornal da Tarde, Kleber foi vítima de problemas pulmonares. Felizmente, nós, seus amigos, pudemos nos encontrar para a despedida final e para abraçar a esposa Gina e a filha Ana Tereza. Foi a última vez que amigos e velhos companheiros
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do JT se viram ao vivo e em corpo presente. Porque então aquela doença lá da China já havia se transformado em pandemia e chegava ao Brasil. Então nós ficamos sabendo, nós daquela turma do JT, que fazíamos parte de um Grupo, não o grupo de amizade que tanto prezamos, mas de um Grupo de Risco. Afinal, estamos todos acima dos 60 anos. Tivemos, então, a partir de março, que nos recolhermos às nossas casas. Longe de entes queridos: amigos, companheiros, filhos, netos, sobrinhos – parentes queridos. A risada tétrica da fada-gralha se faria ouvir novamente no dia 7 de julho. Foi quando morreu Gilles Lapouge, francês que amava o Brasil e foi correspondente do Jornal da Tarde em Paris desde a fundação do JT e também do Estadão, desde 1951. Lapouge tinha 96 anos e ainda trabalhava com a lucidez e o vigor de tempos idos e vividos. Num sábado, dia 8 de agosto, ficamos atônitos ao receber a notícia da morte de Napoleão Sabóia, um maranhense de espírito universal que também foi correspondente do Jornal da Tarde, e do Estadão, em Paris. Aqui, no espaço do JT Sempre, eu me lembrei da feijoada que ele ofereceu a mim, à Vera, ao Luiz Carlos e à Maria de Lourdes, em Paris. Uma feijoada em Paris! Com certeza um cardápio improvável
ano de 2020, por favor!
Julio Moreno, Laerte, Rolando freitas e Bento Lenzi. Foto Reginaldo Manente, 2009.
para muita gente, menos para a cabecinha cheia de ideias do nosso Napoleão. Cansado das incertezas do mundo, Napoleão decidiu dar por finda a sua missão na terra. Foi embora. Agora, nesse 18-08-2020, a fada agourenta nos leva Laerte Fernandes. Não seria exagero afirmar que todos os jornalistas que chegaram ao Jornal da Tarde depois do lançamento do número um, no dia 4 de janeiro de 1966, foram recepcionados por Laerte Fernandes. Se não foi no primeiro dia, logo na chegada, foi no dia seguinte ou na primeira semana que o recémchegado ficou conhecendo Laerte e recebeu dele as boas vindas, as primeiras orientações. Assim foi,
ao longo das décadas em que o Laerte esteve no JT, de Chefe de Reportagem a Secretário de Redação. Levante a mão quem nunca teve uma dúvida. E levante a mão quem nunca procurou o Laerte para resolver uma dúvida, para pedir uma orientação. Fiquei surpreso ao saber que até Fernando Mitre, seguro, eficiente, brilhante redator chefe do JT também fez do Laerte o seu porto seguro, conforme depoimento do próprio Mitre na página 7. E atire a primeira pedra quem alguma vez ouviu um grito, um levantar de voz do sempre afável e paciente Laerte. Ninguém levantou a mão. Ninguém atirou uma pedra.
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Meu pai, Laerte Fernandes João Paulo Fernandes Antes de mais nada, é um tremendo conforto, o carinho que Vocês amigos e companheiros do Jornal da Tarde, dedicam ao meu pai. É motivo de orgulho o respeito com que Você se dirigem a ele. Meu pai, Vocês podem ter certeza, muito se orgulhava dessa turma. O Jornal da Tarde foi a grande paixão da vida dele. Ficamos, nós os familiares, emocionados com os depoimentos e homenagens dos colegas. Não me lembro quem, mas alguém disse que ele “Era um meiocampista” que harmonizava o ambiente da redação. Definição perfeita. Meu pai teve o enfarto no ano passado. Foi no dia 18 de maio. Mas foi coisa leve. Ficou uma semana internado e teve alta. Daí para a frente, vida normal. Em 7 de fevereiro desse ano, comemoramos os 83 anos dele. A foto ao lado é desse dia. A última dele. Veio a pandemia e, com ela, o isolamento. Meu pai começou a se queixar de falta de apetite, logo ele, um bom garfo. Pouco depois veio uma febre. No dia 4 de junho, fui com ele ao hospital. Descobriu-se que ele tinha pedras no canal biliar, o que provocou infecção no fígado. Ele foi internado numa quinta-feira à noite, no hospital 9 de Julho para extrair as pedras e teve alta no sábado. Mas, nesse meio tempo, constatouse que ele estava com o PSA alto e foi recomendada uma biopsia de
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próstata. Foi durante esse procedimento, no dia 24 de junho, que ele sofreu forte hemorragia e também forte queda na pressão. Aí veio o AVC que foi muito forte e atingiu o tronco cerebral. Nesse caso, o fornecimento de sangue para o cérebro é interrompido afetando a parte do cérebro acima da medula espinhal que regula a respiração, pressão arterial e frequência cardíaca É irreversível. A minha irmã, a Cláudia, todos os dias em sua visita, lia para ele poemas. Um dia ela notou que ele movimentava o pé direito. Assim que ele nos dava sinal de vida. E foi assim que descobrimos a comunicação dele conosco. Mas, veio o segundo AVC e até essa comunicação acabou. Estivemos sempre ao lado dele. Eu, a Cláudia, a Letícia, a Márcia. Não faltaram orações e manifestações de carinho por parte de todos e, mais uma vez, por parte de Vocês companheiros do Jornal da Tarde. Agradecemos profundamente de coração.
(Depoimento a Mário Marinho)
Um craque fundamental Fernando Mitre Laerte Fernandes foi um dos jornalistas mais importantes da história do brilhante Jornal da Tarde. O primeiro que vi, quando cheguei à redação, circulando entre os repórteres, distribuindo pautas, ainda nos dias de número zero. Distribuía, ao mesmo tempo, orientação e simpatia. Logo ficaria claro, pelo seu desempenho, que se tornaria um dos craques fundamentais na movimentação daquele time excepcional. Durante vários anos, dividi com ele o comando da redação. Culto, com formação na área de História, impecável na dedicação ao trabalho e no trato com a equipe. Fonte permanente de segurança nos momentos de dúvida da redação. Eu, quase sempre, submetia a ele as ideias mais ousadas de edição, naquele nosso tempo de tanta criatividade. Muitas vezes, elas eram recolocadas de maneira mais moderada ou realista. Mas, em algumas oportunidades, voltavam mais ousadas de sua mesa. Foi assim com uma capa (que considero das melhores daquela fase), quando escolhemos uma grande foto de uma parede de delegacia com um painel de “procurados”. E sobre aquelas dezenas de rostos de bandidos colocamos a manchete “Eles estão nos procurando”.
Laerte é o primeiro da esquerda para a direita. O Fernando Mitre está sentado. Atrás dele, Ivan Ângelo e Murilo Felisberto e, de óculos, Waldo Paoliello que foi a primeira baixa do Jornal da Tarde. A foto é de 1972.
A edição desse dia, dramatizando a insegurança em São Paulo, obrigou o governador a tomar as providências que a população exigia, na época. Todos os que trabalharam com o Laerte se lembrarão sempre daquele chefe gentil, disposto permanentemente a ouvir tanto um foca, que acabava de chegar, quanto um veterano profissional precisando de um conselho. Um personagem com lugar conquistado nobremente na história do jornalismo brasileiro. Laerte Fernandes, trajetória exemplar.
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Laerte Fernandes, um t Sergio Vaz Educado. Simpático. Sempre sorridente. Prestativo. Discreto. Um gentleman. Um excelente caráter. É impressionante como os mesmos conceitos foram sendo usados nas últimas horas pelas pessoas que conviveram com Laerte Fernandes, ao saberem de sua morte. E houve um fato que se repetia nas lembranças das pessoas: foi Laerte que as recebeu quando chegaram à redação do Jornal da Tarde. Quando aquele bando de jovens chegou ao JT, foi recebido pelo melhor mestre de cerimônias que poderia haver. É. De fato o JT era uma coisa meio parecida com um sonho. “As primeiras pessoas com quem falei na redação do JT, no dia em que cheguei para trabalhar nos números zeros, em outubro (ou novembro?) de 1965, foram o Laerte e o Sandro”, Fernando Portela escreveu no nosso grupo de WhatsApp, de veteranos do JT, orquestrado pelo Mário Marinho. “Laerte já assumira a chefia da reportagem geral e recebeu os dois jovens candidatos. Sandro estava ao meu lado. Entramos praticamente à mesma hora. Tive a impressão de que conhecia Laerte há tempos. Ele tinha o dom de deixar seu interlocutor muito à vontade. Um diplomata. Ficamos amigos, naturalmente. Quem não ficaria amigo dele? Leal, bom caráter, competente,
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paciente. Não o via há muitos anos, mas nunca deixei de pensar, com carinho, no tempo em que estivemos juntos naquela equipe transformadora. O JT – sobretudo nos primeiros anos – deve muito a Laerte Fernandes. Nós devemos.” “Que lamentável que não possamos nos despedir de quem a todos nós recebeu”, escreveu Moisés Rabinovici. “Era tão honesto e amigo que nenhum dos chefes de redação a quem serviu tirou-o do lugar que ocupava. Nunca se juntou a facções na empresa que ambicionavam o Estadão e a Agência Estado (ao tempo do Augusto Nunes). Torcia sinceramente pelo sucesso dos amigos. Boa pessoa, boa alma, sempre me dei muito bem com ele.” Sérgio Rondino escreveu: “Laerte foi a primeira pessoa a me receber no JT, no início de 1967, quando fui pedir um estágio. Afável e simpático, fez comigo uma pequena entrevista. Uma segunda conversa foi semanas depois com o Mino Carta, dia em que o JT ganhou 2 novos focas, eu e o Armando Salem. Ainda me lembro do sorriso acolhedor do Laerte naquele primeiro dia. Que pena saber que se foi!” “Foi meu guia, meu companheiro e consultor”, disse Luciano Ornelas. “O pai que tive aqui. Exemplo de bom caráter.” “Faço meus e minhas todas as lembranças e todos os elogios acima relatados por todos do grupo”, escreveu Gabriel Manzano Filho. “Minha convivência com o Laerte, desde a primeira fase do
título só com adjetivos. grato a ele, que foi quem me chamou de Porto Alegre para o JT, meio século atrás. Que descanse em paz!” “Foi meu primeiro chefe, um homem gentil e amável que tratava seus focas com um carinho todo especial”, disse Evelyn Schulke. “RIP, querido Laerte.”
6/1/1986. Foto Claudine Petroli/Estadão.
JT, anos 60, foi de uma amizade e confiança mutua permanentes. Entre outras devo a ele uma de minhas várias voltas ao JT depois de ter saído pra outros mares da vida. Mas que isso, o que me fica é sua maneira atenciosa de ouvir, de ajudar, de resolver, seu olhar de irmão ao conversar. Saudades enormes, de fato. Luiz Carlos Lisboa, o Doutor Lisboa, como o chamamos desde sempre, escreveu: “Repito o que todos disseram. Laerte Fernandes foi quem me recebeu na redação do JT há três ou quatro décadas, nem sei mais. Nos seus últimos cinco anos de vida convivemos como irmãos e vizinhos. Não conheci pessoa mais honesta, mais generosa, mais devotada ao que fazia. Boa viagem para a eternidade, meu querido irmão Laerte.!” “Foi-se um homem bom”, disse Luiz Henrique Fruet. Serei sempre
“Leio com emoção os depoimentos de todos que tiveram a ventura de ser fraternalmente acolhidos pelo querido Laerte”, escreveu Alberto Morelli. “Fui um deles. Seu traço de generosidade sempre encontrava um jeito diplomático e fraterno de solucionar as pendências e os conflitos numa redação plural como a do JT. À Cláudia envio meu abraço solidário e de conforto. Pois todos nós desejamos que pelos seus méritos somados, seu passamento possa ser cumprido com muita paz.” Ao post que fiz no Facebook – “Um gentleman. Um caiçara gentleman. Caráter absolutamente imaculado” -, Beth Lopes acrescentou: “Você traduziu o que sempre foi o nosso querido Laerte. Vai fazer uma falta danada nesses tempos difíceis.” “Que triste!”, disse Maura Fraga. “Me conduziu na Agência Estado. Um chefe e colega brilhante e gentil. Foram muitos anos de relacionamento, sem decepções. Meus sentimentos à família e aos amigos. Adeus, Laerte!” ‘Laerte foi generoso com cada um de nós”, disse Silvia Torika. “Recepcionava com afeto e delicadeza. Até um dia, Laerte Fernandes.”
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Muitos, muitos, muitos colegas, companheiros, amigos expressaram sua admiração por ele – no grupo de WhatsApp, em posts e comentários no Facebook. Impossível reunir todos. Conforta saber que o Mário Marinho, que tem sido o guardião da memória do JT, já está preparando uma edição do “JT Sempre” dedicada ao Laerte. Eu também fui recebido pelo Laerte quando cheguei à redação do JT, em julho de 1970. Como havia feito a tanta gente antes, me recebeu com um imenso sorriso no belo rosto moreníssimo de caiçara, maneiras educadíssimas, tom de voz baixo. Quando cheguei, Fernando Portela era o editor de Reportagem Geral, Sandro Vaia era o subeditor, Laerte era o chefe de reportagem. Sérgio Rondino era copydesk, o doutor Lisboa era editor de Internacional, o Moisés Rabinovici era repórter especial, o Luciano Ornelas nessa época creio que era subeditor de Esportes, Luiz Henrique Fruet era copy do Esporte se não me engano, e o Gabriel Manzano Filho era o editor do Resumo. Foi ele, o Gabi, que editou o primeiro texto jornalístico que fiz na vida, ao final daquele primeiro dia de redação, à qual cheguei por obra e graça do Gilberto Mansur, que na época… Diacho, não me lembro se em julho de 1970 o Mansur era copy da Geral ou sub do Resumo, mas não importa. O que quis dizer é que cheguei depois de várias dessas pessoas que falaram bem do Laerte aí acima. Aprendi com cada um deles. Muito tempo depois, mas muito
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tempo depois, tive a oportunidade de trabalhar bem próximo do Laerte. Foi a partir do segundo semestre de 1988, quando o Rodrigo Mesquita reformulou completamente a Agência Estado, levou o Sandro Vaia e o Elói Gertel para serem diretores, logo abaixo dele, e criou o mesão, que reunia, além deles três, Laerte, Júlio Moreno, Adhemar Oricchio e eu. Ao Laerte, aquele gentleman, cabia fazer o contato diário com os correspondentes no exterior, para passar para eles as pautas pedidas pelos dois jornais, Estadão e JT, ouvir deles o que estava rolando de mais importante nos países em que trabalhavam. Era um time impressionante que incluía Moisés Rabinovici, Paulo Sotero, Gilles Lapouge, Reali Júnior, Napoleão Sabóia. Outros queridos colegas passariam depois pelo mesão – Fernanda Andrade, Wanderley Midei… Tive a sorte de conviver com aquele grupo de excelentes jornalistas no mesão da Agência durante uns dois anos. Jamais ouvi Laerte alterar o tom de voz suave que o caracterizava. Jamais. Nem uma única vez.
A educação, a elegância dele passaram para a filha. Dá para ver isso pela mensagem que Claudia Fernandes escreveu no nosso grupo de WhatsApp: “Faleceu ontem, 18 de agosto de 2020, meu grande e querido pai Laerte Fernandes, aos 83 anos, vítima de um AVC. Estava hospitalizado há quase 2 meses e hoje se liberta dos fios e de um corpo que já não respondia e não podia se comunicar. Segue meu pai, livre, luz!!”
Meu ombro amigo Luciano Ornelas Do momento em que os filhos Cláudia e João Paulo informaram sobre a morte de seu pai no final da noite de terça-feira até a tarde do dia seguinte, contei no WhatsApp do nosso grupo do Jornal da Tarde trinta expressões e adjetivos: “Homem bom, impecável, amigo, competente, bela pessoa, gentil, amável, carinhoso, gentleman, afável, simpático, sorriso acolhedor, leal, bom caráter, competente, paciente, honesto, generoso, irmão, devotado, boa pessoa, boa alma, atencioso, formal, educado, discreto, divertido, solidário, conciliador”. A figura de Laerte Fernandes comporta isso e o que mais houver no dicionário, tal a sua grandeza. Encampo todos os elogios e acrescento: ele sempre foi minha grande referência, pessoal e profissional, desde o 20 de novembro de 1965, quando o Kleber e eu desembarcamos em São Paulo. Seria a partir de então, e ao longo de mais de 50 anos, meu ombro amigo. Sabia atenuar os maus momentos e ampliar os bons. Em 1966, abatido pelo banzo, voltei para Belo Horizonte. Cinco meses depois, a convite do Tim Teixeira, vim de vez para São Paulo. Ao reencontrar o Laerte na redação, ele perguntou se eu já tinha onde morar. – Que tal morar num
quarto alugado ali na praça Marechal? Fomos lá ver. No caminho contou que uma amiga espanhola tinha um apartamento enorme e bons quartos de aluguel, principalmente para jovens estrangeiros. Dona Bernarda veio para o Brasil depois de perder seu único filho na guerra. Mas queria voltar para a Espanha: “Vou morrer lá”. Era – e ainda é – um daqueles prédios antigos da Marechal Deodoro, bem ao lado da TV Globo, em 1967. Adorei o lugar e morei ali até alugarmos – com meu irmão Warley e o Bicho Magro, o Guiminha – um apartamento na rua Japurá, pertinho do jornal. Dona Bernarda era então já idosa e fazia longos elogios aos bons modos e à educação do Laerte. Nunca perguntei como se conheceram, como se tornaram amigos. E duvido que alguém consiga desvendar a imensa teia de amizades que o Laerte construiu em sua vida, amizades sinceras. Portanto, acrescentese mais este adjetivo àquele rol inicial: ele era surpreendente.
Luciano, Marli e Laerte
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Amigo leal, sempre um bom companheiro Miguel Jorge Conheci o Laerte em meados de 1973, quando, ainda no primeiro ano de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero, me candidatei e fui aceito por Eurilo Duarte, experiente profissional que viera do Rio para reformular a sucursal paulista do Jornal do Brasil. Laerte, o Lalá, como nós o chamávamos, era um dos coordenadores da sucursal, chefiada pelo fotógrafo Wilson Santos. Laerte já era experiente, tinha vindo da Folha, e trabalhamos juntos até outubro de 1965. A redação ficava na rua Barão de Itapetininga, quase esquina da Dom José de Barros. Bem na frente, ficava um bar onde íamos tomar café e comer sanduíches. Laerte era um dos poucos casados da redação, e no café, ao pagar, sempre tirava do bolso uma tirinha de papel de uns dois cm de comprimento por um de largura, onde estava escrito “Vale um café”. Laerte, nem ninguém da sucursal tinha carro (nem telefone, coisa de rico, naquela
época), e como todos nós andava de ônibus. Por causa do “vale um café”, inventamos que a Zélia, sua primeira mulher, com quem teve um casal de filhos, a Cláudia e o João Paulo, o mantinha na corda curta: além do vale-café, todo o dia recebia dela dois passes de ônibus, para ir à sucursal e voltar para casa. E nenhum dinheiro! Ele conviveu com essa história quase todo o tempo do JT. Convidados por Murilo Felisberto, que também tinha trabalhado na Folha e estava no JB do Rio, chefiando a Editoria de Pesquisa (que preparava textos de apoio às matérias do dia, dando todo o back-ground da notícia), algo totalmente novo no jornalismo brasileiro, nove dos dez profissionais da sucursal saíram para começar a preparar o Jornal da Tarde, um novo jornal do grupo Estadão, a ser lançado em 4 de janeiro de 1966, e que seria dirigido por Ruy Mesquita. Desse grupo faziam parte, além de Laerte, Carlos Brickmann, Rolf Kuntz, Bernardo Lerer e Guilherme Bill Duncan de Miranda. Laerte era perfeito
Meu primeiro chefe Muito triste com a partida do Laerte. Meu primeiro Chefe no JT. 15 anos que passaram rápido e sempre com seu sorriso bonacheirão, principalmente quando lhe pedia para redigir carta com mais complicada (eu, uma secretária executiva que nunca soube escrever nem me exprimir). Tive momentos muito bons, pena não ter nenhuma foto com ele. Ficam as saudades. Descansa em paz, meu chefe e amigo. Milai de Almeida
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Laerte e Miguel, Almoço da turma do JT em 2011
homem da cozinha da redação: organizado, calmo, paciente e educado, era o profissional certo para cuidar das muitas vaidades e esquisitices de uma redação em que o editor-chefe Mino Carta tinha 32 anos, e Murilo Felisberto, o sub-editor-chefe, tinha 27, e Ruy Mesquita, o diretor, apenas 40 – tirando esses três jornalistas, a idade média da redação era de 22 anos. Foi chefe de reportagem do jornal, e mesmo nessa função não muito fácil, outros adjetivos aplicados ao Laerte pelos amigos, eram os de generoso, leal, competente, correto, boa pessoa e bom caráter. Nunca vi o Laerte nervoso ou falando mais alto com alguém. Passava o dia conversando, telefonando, cobrando um ou outro, mas sempre daquele jeito amigo. De família caiçara, não muito alto e socado, ganhou o apelido de Pimpão, o que nunca o incomodou. Fiquei no JT até meados de 1977, quando fui convidado por Júlio de Mesquita Neto, irmão do Ruy, para assumir o cargo de diretor de redação do Estadão. Foi apenas atravessar o corredor
que dividia os dois jornais, o que ajudou a nos manter em contato constante, até porque ele e eu costumávamos trocar figurinhas sobre as matérias mais importantes do dia e o destaque que seria dado por cada jornal. Laerte era presença muito constante nos almoços da turma do JT, organizado pelo mineiro Mário Marinho, desde 2009. Depois de se separar, casouse com a Márcia, com quem ficou muitos anos, e com quem teve uma filha, a Letícia. A notícia do AVC que o levou ao coma, no final de junho, seguido por outro, dias depois, nos deixou muito tristes, principalmente depois das notícias de que sua situação era praticamente irrecuperável, pois não tinha qualquer reação aos estímulos. Foram dias de vigília, acompanhando de perto o sofrimento da família. Até que veio a inevitável notícia da morte, colocando um doloroso ponto final nessa história de muita amizade e companheirismo.
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Meu padrinho guarani Patricio Bentes Antes de participar da redação do icônico Jornal da Tarde, eu era um leitor voraz de todos os jornais do Rio e São Paulo. Acompanhava a trajetórias de jornalistas que conhecia apenas de nome, lendo suas reportagens e aventuras jornalísticas. Instalado na capital paulista, vindo do Rio de Janeiro, fui fazer o curso de cinema no Masp criado por Alberto Cavalcante. Foi lá assistindo às aulas do editor de filmes Máximo de Barro e do cineasta que realizou o filme “ O Saci”, Rodolfo Nanni, que me incorporei à uma turma que foi a responsável por minha opção definitiva à São Paulo. Uma dessas pessoas, a jornalista e cineasta Ana Maria Sanchez foi quem me apresentou ao jornalista Laerte Fernandes. Nosso primeiro encontro, na redação da Major Quedinho, foi respeitoso e cheiro de entusiasmo de minha parte. Aquele jornalista com traços de Indígena guarani e cabeleira abastada, me apresentou aos outros jornalistas como o novo “foca” da redação. Miguel Jorge, Tão Gomes Pinto, Carlos Brickmann, Ulisses Alves de Souza, Dirceu Soares, Mario Marinho e Percival de Souza foram alguns dos que me receberam como um “colega”. A primeira missão jornalística recebida era acompanhar um seminário de uma empresa.
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Na volta à redação, caprichei e entreguei 20 laudas. No dia seguinte, apenas 5 linhas publicadas na página 2. Se sucederam outras matérias de cidade, polícia, variedades, até o dia em que fui enviado para acompanhar uma missão da Polícia Federal contra uma quadrilha de contrabandistas na região de Campinas. Depois de dois dias de campana, sem dormir, retorno à redação e recebo a ordem do Laerte de escrever a reportagem imediatamente que ela seria editada na Ultima Página do jornal, a mais nobre depois da primeira página. Naquele dia nascia o repórter Patrício Renato, com sua primeira matéria assinada. Os dias foram se passando, me transformei no repórter de variedades que acompanhava artistas nacionais e internacionais em visita à cidade e os festivais. Por essa época, ganhei o apelido de “Puru” por minha semelhança com Ulisses Alves de Souza. Outro momento marcante, foi durante o Festival da Record de 1967, quando fui o único repórter a acompanhar o cantor Sérgio Ricardo após ele ter arremessado o violão na plateia. A reportagem mereceu mais uma Última Página. Depois de quase um ano me sentindo um verdadeiro jornalista, recebo do próprio Laerte a notícia de que só haveria uma vaga para ser preenchida, destinada ao
Armando Salém e, eu teria que buscar novos ares. No seu jeito elegante e polido, sem nenhum traço de autoritarismo, Laerte Fernandes me fez buscar novos horizontes. No dia seguinte, me apresentei ao Múcio Borges da Fonseca em “A Gazeta” e me incorporei à sua equipe que era constituída por Albino Castro, Sidney Basile, Rui Falcão, Waldelcy Tenório, Tom Camargo, Roberto Benevides, José Kozel, Ágata Messina e outros jornalistas da
chamada “velha-guarda”. O projeto de resgate do jornal da Fundação Casper Líbero durou dois anos, depois fui ser repórter na “ A Folha de S. Paulo para aprender um pouco mais com Cláudio Abramo. Nunca mais encontrei Laerte Fernandes, meu padrinho no jornalismo, mas lhe sou grato pela oportunidade que me deu, e pude registrar em meu curriculum que fiz parte da escola jornalística que Mino Carta e Murilo Felisberto implantaram.
Dois ícones do JT: Laerte e Ewaldo Dantas Ferreira
Fez bem a todos nós Denise Mirás
Quando cheguei à redação do JT, em 1980, via o Laerte Fernandes lá no fundo (na verdade, o “fundo” éramos nós, do esporte...}, como se estivesse pairando sobre aquela agitação toda. Redação era sinônimo de barulho -- das batidas nas teclas das máquinas, aos gritos de uns chamando outros, de berros de “Desce!”, dos chutes nas latas de lixo aos telefones que não paravam. Nem sombra dessa “coisa”
de hoje, onde não se ouve um pio, porque até para falar com alguém à sua frente se manda mensagem -- sempre recebida silenciosamente. Passando o olhar por cima da balbúrdia visual e sonora (maravilhosa), se via láááá ao longe o Laerte, sempre queimado de sol, cabelo branco destacado, sorrindo tranquilo. Como se não fosse do mesmo planeta que a gente. Transmitindo calma, ouvindo paciente, falando baixinho, sempre sorrindo, desacelerando a taquicardia de quem atravessasse pelas mesas para falar com ele. Fez bem para todos nós, acredito. Figura boa, iluminada! Vai seguir na luz.
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Teremos um bom jornal
amanhã? Elói Gertel
A frase era repetida pelo Laerte Fernandes quando abria as reuniões de pauta que comandava no final de cada manhã. Na sala estavam os pauteiros, alguns subeditores e chefes de reportagem que abriam as editorias. Ele já sabia o que iríamos responder, passava antes pela mesa de cada um para sentir o que o dia prometia em cada área e – nesses momentos – era um mestre. Acalmava os inseguros, orientava os indecisos e esclarecia todas as dúvidas. Quando não tinha as respostas, indicava os caminhos. Era uma redação jovem, criativa, entusiasmada, querendo sempre fazer o melhor e para os que começavam o dia não existia sentimento mais gratificante do que ver, impresso, o resultado do que tinha sido pautado, reportado e editado. As reportagens, os furos, os toques e as edições inovadoras que faziam cair os queixos dos colegas, provocavam sentimentos prazerosos, de orgulho. Que belo time! Laerte sabia disso, sentia isso, incentivava esse espírito, mesmo quando testemunhávamos que sua manhã era terrível. Era ele o primeiro a ouvir as queixas da direção, nem sempre amistosas, sobre uma reportagem, um título, às vezes uma frase. A tristeza do Laerte,
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nesses momentos, nos afetava. E o que fazíamos? Tentávamos reanimá-lo naquelas reuniões. Laerte, teremos um bom jornal amanhã. A Variedade acenava com uma bela entrevista, a Economia traria uma explicação para aquele fato que ninguém estava entendendo direito, a Política seria cuidadosa, mas com um furo de grande repercussão, o Esporte contaria uma grande história sobre o craque do momento e a Geral prometia várias boas e belas reportagens, precisaria de muitas páginas. Aos poucos, sentindo aquele entusiasmo, Laerte voltava ao seu normal, sorria, perguntava, orientava. Sim, Laerte, teremos um bom jornal amanhã
Soube conquistar a todos Luiz Amando de Barros
Cheguei para conversar com o Murilo pertinho da semana santa de 1971. Eu vinha indicado por um primo, o professor Marcelo Moura Campos, amigo do Dr. Ruy. O Murilo ali do lado esquerdo de quem entra (o Palumbo também era por ali, se me lembro, ou mudou depois), 7 da noite, me recebeu folheando algum jornal, provavelmente o JT, cheio de revistas ao lado. Aqueles óculos de tartaruga, cabelo grisalho, as mãos me pareceram transparentes, pensei esse homem só deve andar à noite, tive a sensação de estar ao lado de um grande publisher.
A conversa foi breve e ele me passou para o Laerte. O Laerte com aquele sorriso conhecido, cordial, conversou, perguntou onde eu estudava, e quando falei meu nome ele foi taxativo: “aqui já temos um Luiz Carlos, o Moura Azevedo, vou te chamar de Amando”. E assim foi. Era chefe de reportagem. No dia seguinte, a primeira pauta: fazer um levantamento do que abre e o que fecha na semana santa. Nada mais foca. Laerte deixa a marca de um profissional capaz de conhecer toda a cozinha de um grande jornal, uma pessoa que soube conquistar todos que o conheceram, pela elegância no trato, pela fidalguia, pelo companheirismo.
Não passe das 80 linhas Waldeci Tenorio
“Você deve ter vivido nesse tempo”. Laerte Fernandes abriu um sorriso e me passou o livro de Luiz Roberto Alves, “A poesia e o intelectual em busca da liberdade”, sobre Bento Teixeira, nosso poeta no século XVI. “Escreva uma daquelas suas resenhas, mas não me passe das 80 linhas”. Ri também, “sim senhor”, e escrevi a resenha. “A literatura brasileira não começou tão mal assim e, ainda por cima (lembrando Capistrano de Abreu e piscando o olho para o Laerte) é filha de Olinda”. Depois limpei
a barra de Bento Teixeira. “Por trás do jogo aparentemente bajulatório (em relação ao governador Jorge d’Albuquerque Coelho) Luiz Roberto ouviu, na poesia de Bento Teixeira, vozes feridas mas conscientes. “Essas vozes nos falam da visão de mundo do intelectual acossado. E o que nos dizem? Que é preciso resistir a todos os Santo s Ofícios de todos os partidos e de todas a igrejas”. A resenha foi publicada na edição do Jornal da Tarde de 17 de dezembro de 1983. A partir daí vieram muitas outras resenhas e - deixo aqui um testemunho - sempre o mesmo sorriso do Laerte, o comentário fino, às vezes irônico, e sempre amigo. Fica uma saudade.
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Para os íntimos, Percival de Souza Conheci Laerte antes, muito antes, de todos vocês: préadolescente, era contínuo de redação na Folha. Ele pertencia à editoria de Polícia (!), algo que hoje pode ser considerado tão surpreendente quanto o desenhista Maurício de Sousa ter feito parte desse mesmo time. Para o moleque que eu era, aquela redação foi uma Faculdade: Murilo Felisberto, José Hamilton Ribeiro, Neil Ferreira, Woyle Guimarães, José Carlos Marão, Ennio Pesce... eu circulava entre eles como se fosse um mascote. Laerte tinha um jeito meigo de ser: sempre esboçando um sorriso, o mau humor não encontrava espaço no rosto. Não me lembro das matérias que fez, nessa época, mas me lembro muito bem de que anos depois nos reencontramos na redação do Jornal da Tarde, onde eu começaria a cobrir a área original dele. E que ele mantinha boas fontes criminais, indicandome excelentes - delegados e advogados - para conversar. Para o meu livro “Autópsia do Medo”, por exemplo, ele me forneceu preciosas dicas sobre o delegado Alcides Cintra Bueno, do DOPS, que foi um perseguidor do coleguinha Humberto Kinjô, irmão do Celso. Foi no JT que ele se revelou um grande executivo de redação. Chefe de reportagem, organizava as pautas, escolhia o repórter para cada assunto e ainda controlava a verba para os táxis, conseguindo fazer as três coisas ao mesmo tempo. Isso exigia grande talento, porque no time inicial havia os dotados de texto
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Pimpão.
impecável, sendo necessário, então, adequar o perfil de cada um ao que se buscaria obter numa reportagem. Era a arte de administrar egos, projetar alguns, estimular outros, aconselhar os que queriam evoluir. O decano Ewaldo Dantas Ferreira era monstro sagrado absoluto. Perto dele, éramos todos meninotes. A ponte Mino Carta-Murilo Felisberto-Ivan Ângelo era feita por ele. Laerte, executivo, era o maestro de uma orquestra jovem e talentosa, irreverente, sem limites, audaciosa, criativa, que buscava obsessivamente escrever bem, cada vez melhor, sabedores de que este era o grande negócio da nossa “Rainha”, o Murilo, e nós os seus súditos. Quando foi feito o primeiro transplante de coração na América do Sul, pela equipe do doutor Zerbini, o JT tinha a exclusividade da cobertura. O dia da intervenção não era sabido, e na noite de um domingo um homem atropelado e morto tornou-se o tão esperado doador. Laerte mandou buscarme em casa. Consegui identificar o doador, foi num grande furo, e ganhamos um Prêmio Esso com Laerte na coordenação da equipe. Laerte era de São Sebastião, no litoral norte. Tinha uma casa de praia na cidade, onde estive, como também na sua casinha em São Paulo, no bairro do Ipiranga, e depois – quando as vacas começaram a ficar mais gordas – no Morumbi. Nesses velhos tempos, as amizades eram diferentes das de hoje. Amigos eram confidentes, detentores de segredos, confiáveis, túmulos diante de certos assuntos. Foi nessas condições que, surpreso,
recebi telefonema da mulher de quem Laerte iria se divorciar, apรณs longevo casamento. Ela me comunicou
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Com Gilles Lapouge e a Márcia, em 2012; e no JT, em 1980
recebi telefonema da mulher de quem o Laerte iria se divorciar após longevo casamento. Ela me comunicou as intenções dele, pediu interferência como um velho amigo. Mas, ele percebeu, não sei como, e antecipou uma conversa comigo. Senti-me um terapeuta. Laerte, voz suave e mansa, foi descrevendo razões e argumentos. Ouvi-o longamente, até que ele arrematou estar apaixonado por uma promotora de justiça. Senti que era o exato momento para ser quebrado gelo. Levantei-me, abracei-o, e comentei: “benvindo ao mundo jurídico!”. A descontração funcionou. Tempo depois jantamos juntos com a nova musa. Traço a linha do tempo Folha-JT e novas aventuras jornalísticas. Como diria García Márquez, a vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la. É verdade! Professor universitário, deu aulas em duas Universidades – Mogi das Cruzes e Nove de Julho – para
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as quais ele me convidou para falar. Era amigo do Edmundo, correspondente do Estadão em Itapetininga, e de vez em quando, a pedido desse amigo, levava gente do JT para palestrar na Faculdade da cidade. A linha do tempo está ficando tênue. O nosso quórum vai diminuindo, implacável, enchendo o nosso coração de saudades. Ainda bem que temos o nosso Mario Marinho para manter acesa essa chama da História do jornalismo brasileiro. Vi Laerte pela última vez num dos nossos almoços. Ele me falou sobre uma sobrinha, recémformada, em busca do primeiro emprego. “Talvez com o seu prestígio você possa ajuda-la”. Pedi para mandar o currículo. Não mandou. Naquele que seria nosso último abraço, o que eu jamais poderia saber, retribui o sorriso amável e exclamei o seu apelido, coisa que somente a turma da velha guarda sabe: “Pimpão!”. Não sei a origem desse Pimpão. Mas Laerte era, sim, o nosso Pimpão.
Sempre grande coração Luiz Henrique Fruet Conheci e fiquei amigo do Laerte por telefone. No segundo semestre de 1970 – há 50 anos, portanto --, ele ligou para aquele jovem foca lá na Folha da Tarde, de Porto Alegre, convidando-o para ser um dos correspondentes para o Robertão. Bons tempos: tinha um setorista para o Grêmio (eu) e um para o Internacional! E exclusivos do JT! Claro que eu aceitei. Era o começo da realização de um sonho, trabalhar naquele jornal de vanguarda que eu conhecera no segundo ano da faculdade, por indicação de um professor, e que ia ansiosa e religiosamente buscar, todos os dias, às sete da noite, na banca da Praça da Alfândega. Era o Laerte que tratava com os correspondentes, com uma paciência infinita para tirar as dúvidas e inseguranças daquele foca deslumbrado. Falávamos praticamente todos os dias. Passados uns dois meses, um belo dia ele me ligou perguntando se eu não gostaria de vir para São Paulo para trabalhar na redação do JT! Foi um dos dias mais felizes da minha vida profissional. No início de dezembro eu já estava aqui. Nos primeiros tempos, ele continuou sendo o meu conselheiro. Embora no Esporte, todos os dias eu dava uma passadinha na mesa dele para um papinho. Sempre paciente, sempre suave, com aquele gesto característico das mãos girando sobre si mesmas ao explicar qualquer assunto. Depois a convivência esfriou um pouco, porque eu logo passei para o
Foto: Marli Gonçalves/217
fechamento, e chegava ao jornal quando ele já estava de saída. Passou o tempo, e uns cinco anos depois, quando fui convidado a ir para a Veja, voltei a procurá-lo. Queria que ele fosse o primeiro a saber. Entendeu perfeitamente, deu a maior força, me desejou muita sorte. Perguntei-lhe, então, como eu deveria fazer a carta de demissão, pois era a primeira vez que deixava um emprego. E ele falou que não precisava, podia deixar por conta dele. Não entendi, e ele me explicou: no dia seguinte, ele iria me demitir. E, assim, eu ainda poderia sair com alguns trocados do Fundo de Garantia. Era o Laerte, sempre grande coração. Descanse em paz, caro amigo.
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A Última página Moisés Rabinovici
Era a rotina: repórter chegava, ia até o Laerte, recebia a pauta e partia para executá-la. Um dia, uns quatro ou cinco repórteres coincidiram em tomar antes um cafezinho no bar ao lado do Estadão. Todos de pé no balcão, acabei primeiro e me justifiquei para deixá-los: “Tenho que ir... Estou com a última página.” Ao que um deles reagiu: “Pera aí, eu é que estou com a última página”. No que um terceiro ajuntou: “A última página é minha”. Era o espaço mais nobre do jornal para o reportariado. Um prêmio. Mas, claro, só havia uma única última página; outras, numa edição com vários cadernos, iam para o Esportes, ou à Variedades, ou à Internacional, até para a Política, dependendo da notícia. Foi aí que descobrimos que o Laerte, na ânsia de nos motivar mais do que já éramos motivados, criava uma última página para cada repórter. Dia seguinte ele diria, paizão, à guisa de consolo: Ah, foi a reunião da tarde, ou foi o Mino, o Murilo... enfim, a última página prevista tinha sido derrubada. Aí ele continuava, nada pimpão: “Mas o texto estava legal, muito bom, viu?” Só então distribuía aos repórteres a última página de amanhã. Às vezes, emplacava. Outra marca “laertal” eram os “sides”, os detalhes orbitando um acontecimento. Fosse um desastre, que não esquecêssemos os parentes das vítimas, como tinha sido o dia do considerado culpado, o depoimento de alguma testemunha, não deixar de ver no hospital o estado de quem ficou internado, conferir a placa dos veículos no Detran e mais uma porção de detalhes. O JT caçava histórias humanas.
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No segundo prédio a pegar fogo em São Paulo, eu já editor de Geral, fui à rua para vê-lo ao vivo. Vi lá os repórteres trabalhando e fiquei hipnotizado pelas chamas. Depois de ouvir o que tinha cada repórter, faltou o quê? O incêndio, é claro. Todos reuniram uma montanha de detalhes, mas ninguém trouxe a descrição do incêndio. Aí eu mesmo a escrevi, com o olhar livre de pauta a cumprir. Um dia de 1977, o jornal resolveu me mandar para Israel, que o egípcio Anuar Sadat iria visitar, iniciando um histórico processo de paz. Laerte ligou para avisar o embaixador israelense em Brasília, antecipando as providências necessárias. Foi informal: “Estamos mandando o rabino” – ele avisou. Do outro lado fez-se um silêncio de alguns segundos até que o embaixador perguntou: “Mais um? Por que um rabino?”. Fui. Meu contato com o Laerte mudou completamente. Não havia computador, e-mail, nenhuma comunicação instantânea a não ser a proibitiva ligação internacional por telefone, muito cara. O jornalpapel só chegava uns dez dias depois à loja da Varig. A gente se falava por telex, na agência Reuters, onde eu aparecia todas as tardes para copiar meu texto escrito em casa na máquina de escrever. Havia um cartaz advertindo que os operadores não copiavam textos em japonês e nem em português. Laerte passou a ser, para mim, o Brasil, o cordão umbilical. Ele mandava um jornalzinho por telex para os correspondentes. Nele nos atualizava com as notícias nacionais, falava do aproveitamento do material enviado no dia anterior, se teve chamada na capa ou se deu última página. Sim, ainda havia sempre uma chance de ser publicado na “UP”, a última página. Anos a fio trabalhando juntos, nunca brigamos. Não havia como brigar com o querido Laerte Fernandes.