NĂşmero 66 - 30 de dezembro de 2020
JosĂŠ Maria Mayrink
26-07-1938 23-12-2020
Um homem de fé Católico, ex-seminarista, o mineiro José Maria Mayrink, de 82 anos, fez do jornalismo uma profissão de fé. A trajetória dele como repórter começou em 1961, quando deixou o
seminário para dar aulas de latim e português e colaborar no semanário Jornal do Povo, da cidade de Ponte Nova, interior de Minas Gerais. No ano seguinte, em Belo Horizonte, trabalhou
O jt Sempre é uma publicação com um único objetivo: manter viva a memória do Jornal da Tarde. É, acredito, a melhor forma de nos manter em contato, trocar informações, promover encontros para o papo agradável de sempre. Você pode participar. Mande sugestão, artigo, matéria, foto, histórias para mariomarinho@uol.com.br No campo “Assunto”, coloque: “JT Sempre”. Responsável: Mário Marinho.
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no jornal Correio de Minas e iniciou o curso de jornalismo na Universidade Federal de Minas Gerais, estudo que concluiu mais tarde na Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo. Desde então, a reportagem o acompanhou pela vida, recebeu os prêmios mais importantes da imprensa brasileira, como o Prêmio Esso (1971), e chegou ao extremo da profissão de um operário da informação: entrevistou um santo. É de Mayrink a reportagem publicada no Estadão, em 14 de outubro de 2018, que dá a notícia da canonização de dom Óscar Romero, arcebispo de San Salvador, na América Central, tornado santo pelo papa Francisco em cerimônia em Roma. Mayrink conhecia bem o novo santo. Havia entrevistado o arcebispo no dia 21 de março de 1980, uma sextafeira, acompanhado por dois colegas, um americano, do Dallas Times Herald, e um alemão, da agência de notícias DPA. No meio de um conflito político que derivou para uma matança no país, com 75 mil mortos em 13 anos de guerra civil, o repórter foi logo ao cerne da crise: “O senhor tem medo de morrer?”, perguntou ao líder religioso salvadorenho. Três dias depois da entrevista, no dia 24, segundafeira, 18h30, dom Óscar Arnulfo Romero Galdamez, então com 62 anos, foi assassinado com um tiro no peito quando celebrava uma missa, disparo feito por um pistoleiro a mando de um líder da extrema-direita local. Na cobertura que fez da canonização do Santo Óscar Romero, em Roma, Mayrink recorda o episódio do crime em texto em primeira pessoa sob título “Eu entrevistei um santo”, acompanhado da reprodução da página do Estadão com o relato da morte do Mártir das Américas -
como o arcebispo foi nomeado na Igreja Católica por ter dado a vida em defesa dos direitos dos pobres e perseguidos. Mayrink morreu na madrugada desta quarta, 23, em decorrência de complicações de uma leucemia. O velório, reservado a poucas pessoas em função da pandemia de covid-19, está previsto para começar às 15h, no Cerimonial Pacaembu. Em seguida, o corpo será cremado. O presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Walmor de Oliveira Azevedo, classificou Mayrink como “um homem de virtudes” e uma “referência para muitas gerações de jornalistas, por seus textos sempre brilhantes, precisos, capazes de emocionar, sem recorrer a sensacionalismos”. Em nota, afirmou: De modo especial, Mayrink cobriu com brilhantismo os principais acontecimentos da Igreja Católica, sempre com independência, conquistando a admiração e o respeito do clero, de religiosos, de teólogos e de muitos evangelizadores leigos. dom Walmor de Oliveira Azevedo, presidente da CNBB E continuou: “Mineiro, foi seminarista, mas a sua vocação verdadeira era o jornalismo, que abraçou com amor e com irrenunciável fidelidade a princípios éticos. Guardo na memória o seu modo respeitoso e objetivo de entrevistar, sua sinceridade e clareza, capazes de conquistar a confiança de seus entrevistados. A sua trajetória profissional, sustentada por um humanismo singular, é selo de qualidade do jornalismo brasileiro. Sentiremos muito a sua ausência, a sociedade perde o olhar sensível de nosso já saudoso José Maria Mayrink, sempre traduzido em precisas e belas palavras. Rezo para que o bom Deus o acolha,
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dando-lhe o merecido descanso.” Dom Orani João Tempesta, arcebispo metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, também comentou a morte do jornalista. “Recebi com pesar a notícia sobre o falecimento do jornalista José Maria Mayrink”, afirmou em nota. “O País perde um grande exemplo de profissional da comunicação, que nos deixa um testemunho de atuação competente e ética, fundamental para o nosso tempo.” Natural de Jequeri, na Zona da Mata, a 730 quilômetros de São Paulo, casado com Maria José Lembi Ferreira Mayrink, pai de Cristina, Mônica, Luciana e Juliana, Mayrink nasceu em julho de 1938, filho de médico e de mãe professora, como conta o livro “Solidão”, de 2014, pela Geração Editorial. Com enorme tristeza, a família informou que a leucemia avançou muito nos últimos dias. Em declaração conjunta, seus familiares disseram: “Lutou como um guerreiro. Descansa agora como um anjo. Por toda a sua generosidade, caráter e fé, temos a certeza de que hoje é dia de festa no céu!” Juliana Mayrink, um das filhas do jornalista, usou as redes sociais para homenagear o pai nesta manhã. Lembrou do dia em que ele falou sobre um sonho, no qual se encontrava com Nossa Senhora e se apresentava como “Mayrink, do Estadão”. Segundo Juliana, uma das últimas alegrias do pai foi saber, semana passada, que a neta Cecília havia passado no vestibular da PUC-SP. O curso? Jornalismo. Muito antes de fazer carreira nas redações, Mayrink entrou, aos 13 anos, no seminário de Mariana, no interior de Minas. Depois foi transferido para o santuário do
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Caraça, onde completou o colegial e para o qual, sempre que podia, retornava com a família para curtir o sossego da reserva natural e as visitas do lobo guará que costuma passear à noite pelo santuário. Apreciador de uma boa prosa, o jovem Mayrink foi depois para Petrópolis (RJ), onde fez filosofia e também dois anos de teologia. Nessa época, 1960, escreveu seu primeiro livro, “Pastor e Vítima”, usando o pseudônimo de Augusto Gomes, nome de família de sua mãe. É autor de diversos livros: - Solidão (EMW, 1983) - Filhos do Divórcio (Paulinas, 1984), - Anjos de Barro (EMW, 1986), - 3 x 30 - Os Bastidores da Imprensa Brasileira (Best Seller, 1992), com Carmo Chagas e Luiz Adolfo Pinheiro - Vida de Repórter (Geração Editorial, 2002) -1968 – Mordaça no Estadão (Editora do Grupo Estado, 2008) “Anjos de Barro”, de 1986, com prefácio de Henfil, é dedicado ao pai, José Eduardo Mayrink. “O título é ótimo. Me deu até inveja do Mayrink, aquela inveja que todo criador profissional tem, quando um colega acerta o alvo. Mas não vou fazer um prefácio, este livro dispensa apresentações”, escreveu Henfil (1944-1988) sobre a obra, que reúne reportagens sobre crianças especiais, seus pais e especialistas que se debruçam sobre as diferentes deficiências, desde o impacto da descoberta até o sonho de um futuro capaz de ampará-los e torná-los independentes. Em “Solidão”, de 1983, reeditado
Melchíades Jr.,Edison Mello, Miguel Jorge; José Maria Mayrink, Ouhydes Fonseca, 2009, Encontro Anual do Jornal da Tarde
pela Geração Editorial em 2014, pelo qual tinha carinho especial, reuniu histórias publicadas numa série de reportagens feitas em 1982 para o Estadão sobre o personagens que viviam o dilema de uma vida solitária. O livro recebeu saudações elogiosas de leitores ilustres. Prezado José Maria Mayrink. Recebi, com desvanecimento, a gentil oferta que me fez de seu Solidão, com amável dedicatória. Não pude lê-lo, ainda. Mas, ao respigar suas páginas, encontrei, ao lado da visão objetiva do repórter, o senso crítico do humanista e o travo doce do poeta – talvez insuspeitado de si próprio... Tancredo Neves (1910-1985), então governador de Minas Gerais Outro líder influente, personagem da história brasileira, comentando o livro, escreveu: Talento a serviço de grandes causas! Valeu a pena um jornalista observar, descrever e, entre as linhas, analisar um dos maiores problemas de hoje. ‘A solidão de Deus é incomparável.’ Também a comunhão com Ele, na comunidade Paulo Evaristo Arns, Cardeal Na longa carreira, que teve os “50 anos de contribuição
ao jornalismo brasileiro” homenageados em 2013 em solenidade no Estadão, Mayrink colecionou coberturas nacionais e internacionais de casos dramáticos desde os anos 70. Como mostra no livro “Vida de Repórter”, de abril de 2002, lançado durante a 17ª Bienal do Livro, um balanço de 40 anos de profissão, foi ele o encarregado de acompanhar no Chile, em 1973, o golpe militar que derrubou o presidente Salvador Allende. Mayrink cobriu o fato para o Jornal da Tarde, do Grupo Estado, com seu colega, Clóvis Rossi (19432019), à época escrevendo para o Estadão. Na viagem, reportou também o enterro do poeta Pablo Neruda, que terminou por ser a primeira grande manifestação pública chilena contra o ditador Augusto Pinochet. No livro sobre a vida de Carlos Marighella, o jornalista Mário Magalhães conta que Mayrink foi o primeiro repórter a chegar à cena do assassinato, ocorrido na Alameda Casa Branca, em 1969, quando o militante revolucionário foi morto a tiros numa campana preparada por agentes da repressão brasileira. Sempre preocupado com o rigor da informação, divertia-se recordando da lição aprendida
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no dia no qual, ainda um novato na lida, escreveu um texto chamando Pelé de “Joaquim Arantes do Nascimento”, memória que está no livro “Vida de Repórter”. Referência entre jornalistas, particularmente os especializados em religião, cobriu encontros e reuniões dos principais líderes católicos, como aquele que elegeu Bento XVI, em 2005, e a cerimônia de beatificação do polonês Karol Wojtyla (João Paulo 2º), em 2011. Em dezembro de 2008, nos 40 anos da escuridão do AI-5, lançou o livro-reportagem “Mordaça no Estadão”, sobre a censura nos jornais Estadão e Jornal da Tarde, no período de dezembro de 1968 a janeiro de 1975. “Mayrink foi uma pessoa excepcional, uma referência de caráter e competência para todos jornalistas, de várias gerações. Nos sentimos privilegiados de têlo tido como colega por tantos anos no Estadão”, disse o diretor de jornalismo do Estadão, João Caminoto. Durante a vida nas redações pelas quais passou – revistas Três Tempos, Alterosa, Família Cristã e Veja, jornais Diário de Minas, Correio da Manhã, O Globo e
Mayrink, Ouhydes Fonseca, Decio Pedroso, Alberto Morelli, Reinaldo Lobo. Marco Rezende, Tereza Otondo e Nirlando Beirão. Encontro Anual do JT, 2012
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Jornal do Brasil, além do Grupo Estado, para onde retornou em 2000 como repórter especial e no qual permaneceu até hoje -, foi também editor. Mas gostava mesmo era do contato direto com as fontes de informação em campo. Testemunha profissional de seu tempo, sempre com o olho apurado da coleta de dados e informações para os leitores, defendia a máxima segundo a qual “lugar de repórter é na rua”. Habituado aos relatos, em suas reportagens e livros cultivava o cuidado com as pessoas – ultimamente pensava numa forma de trabalhar no apoio a refugiados - não se esquecia de emoções vividas quando em visitas pessoais a lugares históricos de referência para sua fé católica. Recordavase que ao chegar aos locais sagrados em Israel foi tomado de emoção especial. Sentimento que também o dominava ao lembrar do encontro com o trágico local da matança dos judeus no campo de concentração nazista de Auschwitz, cujo texto, publicado no Estadão, escreveu de memória, sem consultar anotações Edmundo Leite e Pablo Pereira, O Estado de S.Paulo 23 de dezembro de 2020
O profissional. O companheiro.
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Um senhor editor Luciano Ornelas Um dos melhores repórteres do País era afável e divertido. Sabia como poucos se livrar de situações difíceis com tiradas de bom-humor. O contorno de sua imagem era composto também pela seriedade, pela paixão ao jornalismo, a devoção à sua família e ao catolicismo, com porções grandes de saudade do Santuário do Caraça, no qual foi seminarista, num trecho da Serra do Espinhaço, em Minas. Que eu saiba, um mosaico de virtudes em que sobressaía a fé nesta viagem pela vida. Mas quando o reencontrei, no começo de 1977, era outro. Vi um homem abatido por forte depressão, que chorava enquanto explicava o tormento em que se transformaram seus dias em Belo Horizonte. O sonho acalentado de voltar a Minas, como de tantos
Fernando Mitre, Moisés Rabinovici, José Maria Mayrink e Mário Ribeiro. Papo de mineiros no Encontro Anual do Jornal da Tarde, em 2013
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outros mineiros, havia se tornado um inferno. Foi na primeira viagem que fiz a Belo Horizonte depois que Miguel Jorge e eu assumimos a redação do Estadão. Sabia que ele estava na sucursal do Jornal do Brasil como chefe de Redação e era minha obrigação visitar o amigo naquele prédio da avenida Afonso Pena, em frente ao Palácio das Artes. Um encontro cordial, mas ele não queria conversar na redação e me levou a um restaurante. Soluços interrompiam sua narrativa: não aguentava mais o trabalho no JB. Entre outras tarefas a que era obrigado, uma especialmente ele considerava humilhante a um jornalista. Ao receber a relação de falecimentos do dia, tinha de ligar para as famílias e oferecer anúncios fúnebres no jornal. Fora ter de participar de todas as reuniões com possíveis anunciantes. Para
Carlos Brickmann, José Maria Mayrink e Moisés Rabinovici. Encontro Anual do JT, 2017
um repórter de sua estirpe, quase uma afronta. Foi sofrido ver o Zé naquele estado. De Belo Horizonte liguei para o Miguel: o editor de Internacional que procurávamos estava ali abatido pela angústia, pela volta frustrada a Minas. E Miguel topou na hora, também amigo do Mayrink e conhecedor de longa data de suas qualidades. Ele voltou a São Paulo com o bom-humor de sempre, o semblante da angústia desapareceu, e assumiu a chefia de uma equipe entre assustada e revoltada pelo que ainda chamavam de invasão do Estado pelo Jornal da Tarde. E foi como editor de Internacional que ele mostrou que não há tapume nos degraus da profissão para um bom jornalista. Como repórter ou como editor, a competência prevalece. Ele acalmou a equipe e, sem trocar ninguém, formou uma das mais brilhantes editorias do jornal.
Uma tarde Mayrink levou sua mãe para conhecer o jornal. Escolheu uma hora morna, começo de tarde, para não incomodar. Passaram pela redação e outros andares. Mais tarde, o próprio Zé contou, gargalhando: – Ela achou tudo muito bonito, a redação, o prédio. Só estranhou porque viu muita gente lendo jornal: “Não vi ninguém “garrado” no serviço...” A fórmula de simplicidade do Zé Maria com a equipe da Inter era temperada com doses fortes de companheirismo ao promover churrascos em sua casa na rua Aimberê, entre Perdizes e Sumaré. Mas a alma do repórter despertava dia a dia. A cada matéria importante em qualquer área, ele chegava de mansinho à nossa mesa e murmurava: – O bom mesmo é ir pra rua, sô! E ele voltou à rua cinco anos depois para cumprir sua mais importante missão: repórter.
“Que legado rico de carinho e respeito deixa o nosso querido frei Mayrink. É todo de vocês agora, Maria José, filhas, genros e netos. Valéria Cuidem bem dele” Walli
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Um grande amigo, um grande jornalista Miguel Jorge osé Maria Mayrink foi um de meus melhores amigos. Cordato, tranquilo, sempre bom humorado, com enorme senso de responsabilidade, católico praticante, ex-seminarista, ocupou um lugar importante em nossa imprensa. Mineiro de Jequeri, então distrito de Ponte Nova, na zona da Mata de Minas, onde nasci. Meu pai e o dr. Mayrink, pai do Zé, também foram amigos. Predestinação ? Certamente ! O primeiro contato com o jornalismo foi no Jornal do Povo, em 1961, colaborando no pequeno semanário de Ponte Nova. Foi para Belo Horizonte, começou a estudar jornalismo e mudou-se para o Rio, onde ficou cinco anos como repórter de importantes jornais. Foi para SP, formou-se na Cásper Líbero. Depois de anos na Veja, onde eu o conhecera e ganhara um Prêmio Esso de Reportagem, junto com Ricardo Gontijo, outro mineiro. Saudoso das Minas Gerais, voltou para BH, com a família – esposa Maria José e quatro filhas -, para trabalhar na sucursal do Jornal do Brasil. O sonho só durou dois meses: nada era como tinha sido, e decepcionado, Mayrink quis voltar para São Paulo. Em 1977, eu acabara de assumir a direção de redação do Estadão e convidei-o para voltar e ser o editor de Internacional, uma das mais importantes editorias do jornal. Foi a escolha certa: com sua seriedade, retidão e
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seu senso de profissionalismo, tornou a editoria uma das mais respeitadas do jornal. Dirigiu a seção por cinco anos, até sair para ser repórter especial, quando destacou-se cobrindo religião: era o jornalista com mais fontes na Igreja Católica e sabia de tudo o que se passava nos bastidores da notícia. Cobriu escolha de papas; em Roma, hospedava-se num mosteiro ao lado do Vaticano, fez matérias importantes e passou a ser ainda mais respeitado por seu trabalho. Nunca deixou de ser amigo, nunca deixou de ser repórter, nunca deixou sua religião de lado. José Maria morreu aos 82 anos. Mas não será esquecido.
No Santuario do Caraça, em 26-072019, aniversário de 81 anos
Nosso querido Frei Percival de Souza Nosso frei, como carinhosamente o chamávamos, tinha o espírito de repórter e o próprio espírito da fé, que o alimentava e permitia conciliar perfeitamente o jornalismo com religião. Digo isso porque acredito que o primeiro repórter na terra tenha sido a pomba da arca de Noé, ao voltar com uma folha nova de oliveira no bico, transmitindo assim a grande notícia: a vida estava salva. Frei Mayrink esteve conosco no JT e depois no irmão mais velho, o Estadão, e virou símbolo de cobertura de temas religiosos. No caso do Estadão, foi o sucessor legítimo de Hélio Damante, o único que escrevia sobre esses assuntos (coluna “Movimento Religioso”). Observe-se que a maioria absoluta dos jornalistas não entende disso, até apresenta um certo desprezo por esse tipo de cobertura jornalística, estimulado muitas vezes por apedeutas bíblicos, que ignoram por completo o fato de as
Escrituras exibirem peças literárias maravilhosas, como – só para exemplificar - o cântico de Débora, em Juízes, e o Código sublime e belo das bem-aventuranças, guia ético para a humanidade, em Mateus. Com esse domínio, ele fez uma matéria especial sobre Israel, que seria minha guia em viagem para a Terra Santa, onde pude conhecer pontos tocantes da Terra Santa, descritos por Mayrink, como Belém, Nazaré, Jericó e Cafarnaum. A matéria foi grande estímulo para prosseguir viagem até o Egito. A rigor, “frei” era pouco para classificar Mayrink na hierarquia eclesiástica. Seu lugar era de muito mais destaque, porque transformava em matérias verdadeiras confissões de bispos e cardeais e os clérigos nas paróquias, das quais era assíduo frequentador para ouvir as homilias e participar fervorosamente da eucaristia. Sua fé era sólida, porque pensante, não de beato, e essa fé pensante contemplava leitores de todos os tipos, já que crédulos ou não precisavam ler Mayrink para saber
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dos últimos rumos teológicos, mutante ramo da filosofia. Nos anos de simbiose entre dourado e chumbo, a religiosidade era efervescente, com correntes opostas, com as freiras de mini-saia e os padres de passeata, de Nelson Rodrigues, e as de libertação, como Leonardo Boff. Era preciso um Mayrink para explicar esses mistérios para leigos, à busca de um Deus único. Nesse sentido, Mayrink, mignon por fora e gigante por dentro, era uma luz. Conversávamos muito sobre religião, prazeirosamente – eu, protestante, e ele católico, exseminarista que trocou a batina pelos teclados da máquina de escrever e do computador. Dominava o latim, chegando a ser professor da matéria, usando a língua-mãe para ensinar também português. Com ele, aprendi que Bach assinava partituras com o selo “Soli Deo Gloria”, só para a glória de Deus. Estimulou-me a passar alguns dias, de férias, no Caraça, conventopousada onde estudou. Para matérias sobre o alto clero, não havia como deixar de recorrer a Mayrink, inclusive nas reuniões da cúpula da CNBB, em Itaici, onde hermetismos teológicos eram decifrados com sabedoria pelo nosso frei em matérias exclusivas, muitas vezes antecipando a divulgação de documentos oficiais. Interessante os diálogos com o frei, porque amar o próximo, mandamento divino, incluiu mantê-lo bem informado e faz do jornalismo também uma espécie de sacerdócio, sem contar que a boa reportagem, uma arte, é um exercício político de qualidade. Conversei muito com ele sobre o que Martinho Lutero considerou fundamental para a reforma protestante, inclusive a tradução da Bíblia do latim para o alemão, tornando-a acessível e não mais exclusiva para padres. Como nossa geração viveu intensamente os anos que
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misturaram dourado com chumbo, nossas conversas, por vezes em voz bem baixa, incluíam falar sobre tendências, abordagens e teologias, entre elas uma libertária que fascinou várias correntes de pensamento, entre elas a de um grupo dominicano. As perguntas na polícia do pensamento, o DOPS, feitas para padres capturados, eram sobre como conseguir conciliar teologia com luta armada. Essa ligação levou à execução de Carlos Marighela, na alameda Casa Branca, e lá estava Mayrink para a cobertura, para ele repleta de significados, com o cadáver do guerrilheiro encolhido dentro de um fusca. Frei Mayrink estava acima disso, em outro patamar, como se sobrepairasse, e não precisasse de gurus para desenvolver o seu trabalho, em nebulosos tempos nos quais boa parte da redação se dividia em grupos de militância clandestina, assunto que ainda se evita tocar, mas nem por isso menos verdadeiro. Sei disso porque tive a minha fatia nesse bolo, distinguindo quem era quem e onde. A potente bomba que explodiu no Estadão, ferindo gravemente o porteiro, deixou claro até onde certas coisas poderiam chegar. Mas o que importa, aqui e agora, é colocar José Maria Mayrink como um perdigueiro da notícia, aparentemente frágil, fisicamente, mas por dentro uma fortaleza estoica, exemplar, que não cobria apenas religião, sua especialidade. Religião, religare, atar novamente os laços com o divino. Repórter, o que reporta, conta. Mayrink, homem profundamente religioso. Profundamente repórter. Profundamente humano. Deixa um vácuo na nossa espécie em extinção. Seu espaço esteve sempre reservado numa nova morada, de planícies encantadoras e uma glória imortal, e disso ele sempre teve absoluta certeza. Acho que Deus também.
Ótimo jornalista, excelente colega. Fernando Mitre Ouvi seu nome, pela primeira vez, na redação do Correio de Minas, onde comecei, em Belo Horizonte. O Mayrink já tinha ido para o Rio, onde brilhava no Jornal do Brasil, antes de vir para São Paulo. Em Minas, já era citado como exemplo para os que chegavam. Foi um belo exemplo a vida toda. Quando falei com ele, pela última vez, num telefonema para o hospital, senti que o guerreiro resistia, mas já muito enfraquecido. Mesmo assim, ainda foi possível trocar algumas ideias e lembranças sobre o nosso trabalho no Jornal da Tarde e Estadão. Ele fazia menções rápidas a episódios de resistência, na redação, no auge da ditadura, depois contados no livro e no vídeo “A Mordaça...” Há muito o que recordar da passagem brilhante do Mayrink pelas redações. Era um trabalho de qualidade técnica, sempre irretocável, sustentado na sólida formação do exseminarista. Vale reler o belo trabalho que fez na cobertura da escolha de dois papas. Assim como é leitura necessária o livro em que descreve a vida do repórter. Tantos são os momentos preciosos a serem lembrados, em que ele deixou sua marca de competência e dignidade. O exemplo veio para ficar.
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Acima de tudo, grande amigo Carmo Chagas José Maria Mayrink e eu começamos a trabalhar como jornalistas no mesmo dia, no mesmo jornal. Foi em março de 1962, em Belo Horizonte, no Correio de Minas, criado para dar sustentação ao governador Magalhães Pinto, que tinha intenções de disputar a presidência da República em 1965. Mayrink entrou como repórter de Geral, eu como repórter de Esportes. Dali em diante, passei para a Reportagem Geral durante um período, depois mudei para o Diário de Minas como repórter de Geral e em seguida copidesque. Fiz uma carreira movimentada – revista Alterosa, filial mineira da agência de publicidade Denison, copidesque da equipe que fundou o Jornal da Tarde em 1966, dois anos depois participei da equipe que fundou a Veja, onde entrei como editor-assistente, passei a editor e era redator-chefe quando saí de lá, em 1980. Já o Mayrink sempre foi repórter de Geral. Especializou-se em assuntos religiosos, mas cobria de tudo, inclusive algumas guerras. Sempre com brilho. Em 1986 fez reportagem política, na campanha para o governo estadual paulista. Nessa ocasião, me entrevistou, pois eu era o assessor de Imprensa do
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A última foto na redação do Estadão ao lado de Luciana Garbin, Guilherme Evelin, Ricardo Grinbaum e Marcelo Godoy. Em 19-02-2020
candidato Antônio Ermírio de Morais. Estivemos juntos, também, no livro 3 x 30 – Os Bastidores da Imprensa Brasileira. Ele e eu somos autores, juntamente com o Luiz Adolfo Pinheiro, outro que começou no Correio de Minas em 1962. O livro saiu em 1992, quando os três completávamos 30 anos de jornalismo, daí o título 3 x 30. Mayrink foi um grande profissional e, sobretudo, foi um grande amigo.
Domingo no Parque, em Londres Gabriel Manzano Foi num domingo de solzinho morno, em maio de 1976, que logo de manhã bateu à minha porta, sem aviso prévio, ninguém menos que o Mayrink. Eu morava num modesto apê na Gloucester Road, em Londres, a 20 minutos de ônibus da BBC, onde trabalhava desde março. Depois de um almoço de muita conversa, eu e a Thais o levamos a conhecer os Jardins Botânicos Reais, belíssima coleção de plantas e flores do mundo inteiro, onde, numa gigantesca estufa -- padrão Ceagesp -- fomos apresentados a seringueiras e vitóriasrégias. O que levava o Zé à Inglaterra era a visita oficial de Geisel, que foi pedir (mais) dinheiro e dar garantias de que a dívida (já alta) com Londres seria paga. Mas o pano de fundo era pesado. Nos seis meses anteriores tinham acontecido a morte de Vladimir Herzog, a de Manoel Fiel Filho e a demissão do general Ednardo do II Exército. Zé formou, nessa missão, um “trio de ferro” com Reali Jr., deslocado de Paris, e Evandro Paranaguá, de Brasília. A cobertura, que foi dominantemente econômica, deu manchete do jornal por dias seguidos, durante os quais a
Mayrink e Gabriel Manzano em Londres, 1976. delegação brasileira foi literalmente perseguida por grupos militantes com faixas tipo “Não ao empréstimo às ditaduras!” “Deixem a Anistia entrar e investigar a tortura!” Mas esses grandes momentos apareciam, aqui e ali, apenas no corpo do texto. A tal distensão “lenta, gradual e segura” mal engatinhava. Silvio Frota, ministro do Exército, só cairia daí a um ano e meio e Sérgio Fleury passaria mais três anos circulando à cata de inimigos.
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Vida de repórter Como Mayrink começou no jornalismo – e depois no JT –, segundo ele mesmo. Sergio Vaz Terno de linho branco, sapatos pretos e gravata azul disfarçando o jeito caipira, peguei o elevador do velho prédio do Binômio e me apresentei ao Guy de Almeida, no último andar. Dezenas de faixas anunciavam nas ruas de Belo Horizonte, em janeiro de 1962, o próximo lançamento de um novo diário, o Correio de Minas, cujos jornalistas estavam sendo recrutados ali, numa sala emprestada da Rua Curitiba, esquina com Carijós, bem no centro da cidade, enquanto a sede definitiva não ficava pronta, três quarteirões mais abaixo, na Avenida Olegário Maciel. Este é o lead que José Maria Mayrink escreveu para seu relato autobiográfico Vida de Repórter. O texto, de cerca de 100 páginas, foi publicado no livro 3 x 30 – Os Bastidores da Imprensa Brasileira, lançado pela Editora Best-Seller em 1922. Além do de Mayrink, o livro traz os relatos de Carmo Chagas e Luiz Adolfo Pinheiro. Eis a continuação da abertura do texto de Mayrink sobre o início de sua vida como jornalista: Cheguei pelo faro, levado talvez pela suspeita de que, se era capaz de escrever crônicas no Jornal do Povo, o pequeno semanário que os irmãos Lopes publicavam em Ponte Nova, na Zona da Mata, bem que podia tentar um emprego de jornalista na capital.
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Eu tinha 23 anos de idade e acabava de deixar o seminário – curso colegial em Mariana e no Caraça, depois Filosofia e Teologia em Petrópolis – e me orgulhava de uma bagagem humanista, ao mesmo tempo promissora e inútil. Dava aulas particulares de Português, Latim e Matemática, ainda sem saber se ia ser advogado ou professor, quando a Universidade Federal de Minas Gerais anunciou a abertura do curso de Jornalismo, na Faculdade de Filosofia da Rua Carangola. Era minha salvação. Se não havia estudado Física e Química o bastante para seguir a carreira de meu pai, médico em Jequeri, a minha cidade natal, pelo menos embarcaria no gosto dele pela literatura – herdeiro de seu apego aos livros e de certo jeito para escrever. Jornalismo devia ser isso, e a prova trazia debaixo do braço: o livrinho Pastor e Vítima, história do missionário italiano Giustino De Jacobis, que eu havia publicado com o pseudônimo de Augusto Gomes, nome de família de minha mãe. - Essa história não tem o menor interesse, mas o estilo é de repórter – sentenciou Guy de Almeida, folheando as páginas da minha obra-prima e decidindo meu destino. Contei esse episódio no Jornal da Tarde quando o papa Paulo VI canonizou De Jacobis, em 1975, elevando às honras dos altares o herói de minha primeira reportagem. Meu editor, Fernando Portela, fechou a página com a
sensibilidade profissionalmente cristâ. “O Primeiro Milagre Deste Santo: Nosso Repórter”, foi esse o título que deu a meu depoimento numa brincadeira que haveria de divertir Guy de Almeida no Peru, onde vivia como exilado político. Guy de Almeida foi o meu professor. A figura daquele homem imenso e, à primeira vista, inacessível, domina a redação do Correio de Minas, correndo e gritando entre mesas provisórias.
Não sei quem chegou primeiro, mas naquela hora já deviam estar quase todos ali – Moacir Japiassu, Hilton Ferreira, Adauto Novaes, Carmo Chagas, Antônio Lima, Luiz Fernando Peres, Moura Reis, Décio Mitre, Marco Antônio Rodrigues Dias, Dirceu Soares, Luiz Adolfo Pinheiro, e mais meia dúzia de focas que a distância e o tempo varreram de minhas lembranças. Os jovens-veteranos Hélio Fraga, Estácio Ramos, Samuel Dirceu, José Salomão David Amorim e Dídimo Paiva eram os nossos chefes. Revezavamse na coordenação da reportagem e na edição de um númerozero que jamais sairia das máquinas. – “Lamento isso até hoje” – confessou Guy de Almeida, 30 anos depois, ainda inconformado de não ter conseguido materializar em edições experimentais (os números-zero) um trabalho de treinamento que, em sua garra profissional, considerava imprescindível. Ele publicou uma notinha na primeira página no número 1 do jornal desculpandose por possíveis falhas. *** Várias páginas adiante, Mayrink conta sobre sua chegada ao Jornal da Tarde: “Na primeira semana de 1969, apresentei-me na Rua Major Quedinho, 28, onde o JT dividia o quinto andar com o Estadão.
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O jornal ainda era vespertino, chegava às bancas depois do meio-dia. Com exceção dos repórteres, que entravam à tarde, quase toda a equipe trabalhava à noite, estendendo o fechamento madrugada afora. Ali, sim, os mineiros dominavam. Ivan Ângelo, Fernando Mitre, Flávio Márcio, Kléber de Almeida, Miguel Jorge, Moisés Rabinovici, Humberto Werneck, Marco Antônio de Rezende, Fernando Moraes, Gilberto Mansur, José Márcio Penido, Dirceu Soares, Nirlando Beirão, Luciano Ornelas, Marco Antônio Menezes, Ricardo Gontijo... Parecia interminável a lista de editores, copydesks e repórteres que Murilo Felisberto, também mineiro, foi garimpar em Belo Horizonte. A redação do JT era uma festa. Ou o contrário, como haveria de testemunhar outro mineiro, Luiz Vilela, no seu romance O Inferno é Aqui Mesmo, documento-ficção daqueles anos 70. Valia tudo, ousava-se demais. Não me lembro de ambiente mais descontraído em jornal nenhum deste país. “É uma bagunça, uma desordem, um barulho, uma confusão danada: estão fazendo um jornal. O mais bem feito da cidade” – assim uma reportagem da revista Bondinho, da equipe ex-Realidade, descreveu aquela zona que era o quinto andar da Major Quedinho em setembro de 1971. E não eram só os mineiros. A foto de capa do Bondinho estampava outros heróis daquela competentíssima e, aparentemente, irresponsável equipe. Fernando Portela, Demócrito Moura, Valéria Wally, Inajar de Souza, Antônio Carlos Fon, Randáu Marques, Anélio Barreto, Percival de Souza, Sandro
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Vaia, Marcos Faerman, José Eduardo Borgonovi e Silva (Castor), José Nicodemus Pessoa, Rof Kuntz, Moacir Bueno, Luiz Henrique Fruet, Paulo Chedid, Guilherme Duncan de Miranda, Toinho Portela, Valdir Sanches, Uirapuru Mendes, Gabriel Manzano... todos estavam lá. Quem mais poderia estar faltando? Carlos Brickman, Ewaldo Dantas Ferreira, Waldo Polielo, Laerte Fernandes, Yole di Capri, José Eduardo Faria, Sérgio Rondino, Ubirassu Carneiro da Cunha, Vital Bataglia e Alberto Helena Júnior eram mais alguns craques do time. Sem falar da Cláudia Batista, a bela repórter que derrubou corações de incontáveis colegas. Cláudia abandonou o jornalismo e o Brasil para se tornar monja budista e viver de esmolas no Japão.
PS que se faz necessário: O grande Mayrink se esqueceu pelo menos de dois mineiros que já estavam no JT nessa época que ele cita aí, 1970, 1971: Mário Marinho, que é o cara que mantém viva a memória do JT, que une os veteranos em conversas no WhatsApp e nas edições do JT Sempre, e Sérgio Vaz, este escriba aqui que teve a idéia de incluir nesta homenagem estes trechos da Vida de Repórter e ficou com o trabalho braçal da digitação. Sempre nós, Marinho! Deus perdoa. E, já que estou com a mão na massa, aproveito para mandar um recado ao Mayrink, um dos melhores jornalistas e uma das melhores pessoas que conheci: Dê lembranças a seus velhos amigos Evaristo, Karol, Hélder, Angelo Giuseppe por nós.
Mayrink Recebe das mãos do ministro do Interior Costa Cavalcanti prêmio do Concurso de Reportagem do Projeto Rondon. Foto AE - 1972
“De modo especial, Mayrink cobriu com brilhantismo os principais acontecimentos da Igreja Católica, sempre com independência, conquistando a admiração e o respeito do clero, de religiosos, de teólogos e de muitos evangelizadores leigos” dom Walmor de Oliveira Azevedo, presidente da CNBB 19
Aventuras com
Mayr
Marco Antonio de Rezende A tradição diz que o chefe da igreja católica é sucessor de Pedro, o primeiro bispo de Roma. O papa, portanto, só é papa porque é antes de tudo o bispo da diocese romana. Sendo assim, quem o elege são os vigários das várias paróquias da cidade. E para que o colégio cardinalício possa eleger os papas, cada novo cardeal recebe, junto com a púrpura, a titularidade honorífica de uma igreja local. No dia 3 de março de 2013, terceiro domingo da quaresma, o arcebispo de São Paulo, cardeal Odilo Scherer, manteve a tradição de, sempre que está em Roma, celebrar a missa na paróquia romana da qual é titular, a igreja de Sant’Andrea al Quirinale, pequena joia do gênio do barroco Gian Lorenzo Bernini. Dom Odilo entraria no conclave dias depois para votar no novo papa e nada impedia que pudesse ser ele próprio o eleito. Dois dos jornalistas brasileiros que foram a Roma para a sucessão de Bento 16 decidiram cobrir a celebração e conversar com dom Odilo em busca de prognósticos. Vizinhos na cidade, saíram do Borgo Pio, pertinho do Vaticano, a bordo de uma Vespa, com capacetes e tudo. No volante, este repórter. Na garupa, um veterano de coberturas religiosas, José Maria Mayrink. Ao ver a Vespa, Mayrink havia relutado: “Esse trem não é perigoso demais não?”. Garanti que não e, mais ainda, que Maria José, sua esposa, jamais saberia da aventura e ele acabou
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Mayrink por Marco Antonio confiando num velho parceiro. Fizemos um caminho atravessando várias camadas de história romana: corso Vittorio Emanuelle, avenida aberta pelos Savoia no fim do século 19 para modernizar a capital do reino recém-unificado; Largo Argentina, onde Júlio Cesar foi assassinado; praça Veneza, sob a varanda de onde Mussolini arengava às multidões; e palácio do Quirinal, residência do presidente italiano. Paramos na calçada da igreja de Sant’Andrea, Mayrink desceu, depositou o capacete sob o assento, deu a volta, tropeçou na roda da frente da Vespa e se esborrachou no chão. Felizmente, levantou-se sozinho, sem danos, e disparou, rindo sozinho: “Já posso dizer que tive um acidente de Vespa em Roma...”. Mayrink e eu fomos contemporâneos no JT até 1969,
rink em Roma nos tornamos bons amigos e depois, em redações diferentes, cobrimos juntos muitas viagens pontifícias e quatro conclaves: João Paulo I, João Paulo II, Bento 16, Francisco. Como eu trabalhava para revista semanal e ele para jornal diário, tínhamos pautas, enfoques e prazos diferentes, o que nos permitia eventualmente trocar fontes, informações, dicas. No último conclave, apresentei a ele um professor de direito canônico e ele me apresentou um jesuíta que, na ocasião, era diretor do serviço brasileiro da Rádio Vaticana. O diretor morava na Cúria Generalícia dos Jesuítas, junto com outros jesuítas que trabalham na Santa Sé e alguns prelados idosos e aposentados, e nos convidou para um almoço de domingo no velho prédio da Cúria. O almoço rendeu zero informação, mas foi divertido. Assim que terminamos a sobremesa entrou um garçom empurrando um carrinho de destilados e digestivos: uísque, conhaque, licores, amari. Mayrink perguntou ao
jesuíta: “Uai, isso pode?” Ele respondeu: “Claro, aqui a gente diz que esse é o carrinho de ver Deus”. Na véspera do conclave que colocaria o cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio no trono de São Pedro, fui com Mayrink e um grupo de jornalistas visitar a Capela Sistina pouco antes que fechassem as portas para o mundo exterior. Lá, fiz uma foto sua ao lado da estufa que produz a fumaça que dá ao mundo a notícia do novo papa, e ele retribuiu fotografando-me quase na mesma posição. De onde está agora, com sua fé infinita e apurado faro de repórter, tenho certeza que continuará acompanhando os conclaves na Capela Sistina por toda a eternidade. Marco Antonio por Mayrink
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Trabalho bom é o trabalho que dá prazer.
Mas, peraí. Pode dar prazer esse trabalho de comunicar a morte de um companheiro tão querido e venerado por todos os jornalistas que com ele conviveram? Pode dar prazer o trabalho com a morte? Com a tristeza da sofrida família? Não, não pode. Mas, ao editar esse JT Sempre, me invade sentimentos conflitantes. Junto da tristeza da notícia em si, há o prazer de saber que estou prestando uma homenagem e ajudando a perpetuar a memória do companheiro José Maria Mayrink. E mais: Junto desse sentimento, há imensa responsabilidade de trabalhar com os melhores textos do nosso jornalismo, nomes que fizeram a grandeza do Jornal da Tarde. Como escreve bem essa turma! Aí, a homenagem fica mais bonita. E como se não bastassem esses belíssimos textos, mais à frente o leitor vai se deparar com outros textos cheios de emoção das filhas e netas do Mayrink. Fico com a certeza que há, ali, o DNA do Jornal da Tarde. Mayrink está se orgulhando disso. Mário Marinho
A essencial velocidade Luiz Veludo Se eu dissesse que privei de qualquer proximidade com o Mayrink estaria mentindo. Mas tive uma rápida passagem com ele em 1972, na redação do JT. Eu trabalhava em alguma matéria de fôlego, talvez tenha sido algo do novo plano diretor de São Paulo. Eu estava tentando fazer o melhor e, portanto, ultrapassei o prazo para o fechamento da matéria. Por alguma razão o Mayrink estava envolvido no projeto e aí ele chegou pra mim e sapecou: “você acha que está
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trabalhando na revista Exame”? Era o jornalista experiente dando uma lição pra quem estava começando. Texto de jornal é qualidade, mas, também velocidade. Anos depois quando, por acaso, ficamos um ao lado do outro no velório do Dr. Ruy Mesquita, demos um dedo de prosa sobre a rica e variada coleção de arte da casa da rua Angatuba. Ambos ficamos impressionados com o número de obras com dedicatória para o diretor do Jornal da Tarde. O Mayrink sempre com a lucidez de quem está conectado no mundo.
A FamĂlia. Sagrada.
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Meu avô jo Meu avô, José Maria Mayrink, era jornalista. Nunca vi alguém mais apaixonado pela profissão do que ele. Seu trabalho em todas as empresas em que já esteve foi admirável. Ele viajou muito, conheceu países que pouquíssimas pessoas tiveram a oportunidade de ir. Ele era especialista na área da religião. Sempre que o jornal precisava mandar alguém para cobrir algo relacionado a isso, era ele o escolhido, pois sua dedicação e qualidade nas reportagens eram inquestionáveis. Ele era chamado de “o grande mestre” por seus colegas. Era uma pessoa muito querida. Foi por suas histórias e ouvindo suas aventuras, que decidi que quero seguir a mesma carreira que ele. Mesmo quando ficou doente, ele nunca deixou de exercer sua profissão. Fez entrevista em pleno hospital. É a pessoa mais persistente que já conheci. Ele e minha avó, Maria José, são a mais pura definição de amor verdadeiro. Eles são um só. Juntos, criaram nossa linda família, da qual tenho muita sorte e orgulho de fazer parte. Meu avô foi quem nos deu a oportunidade de conhecer o Caraça, um lugar que é especial e até mesmo sagrado para todos nós. Ele também amava a Itália, que hoje considero meu país também. Por esse motivo, e principalmente por causa dele, decidi começar a estudar italiano, idioma que ele mesmo já havia tentado me ensinar quando viajamos para lá. Hoje, dia 23/12/2020, ele faleceu. A ficha ainda não caiu.
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A vida é muito curta, mas meu avô soube como aproveitála. Ele entregou a esse mundo todo o seu amor e bondade, e transmitiu isso para todos os que tiveram a oportunidade de conhecê-lo. Durante os 17 anos que estive ao lado dele, fizemos memórias juntos que quero sempre guardar comigo. O sorriso dele era contagiante e sua energia encantadora. A saudade já é grande e aperta o coração. Descanse em paz, vô. Nós vamos ficar bem e vamos nos manter unidos, como sempre fomos. Sabemos que você estará sempre olhando e cuidando de nós daí de cima. Que Deus te receba com amor e paz. Você fez muito por esse mundo, está na hora de descansar. Meu amor por você é pra sempre.
Cecília Mayrink, neta, 17 anos.
Lutad Quando ele soube que a filha caçula namorava um redator foca na Agência Estado, ele usou a antiga intranet do grupo para me conhecer antes mesmo de sermos apresentados oficialmente. Era o pai, mas também o repórter em ação. Se eu já admirava o jornalista José Maria Mayrink (senhor Mayrink como sempre o chamei), nos anos seguintes tive o privilégio de conviver com o pai, o “tio do relógio”, o avô e o homem de fé. Mas se eu pudesse descrevê-lo em apenas uma palavra, diria
ornalista
José Maria e Maria José Mayrink no aniversário de 55 anos de casados, em 12-07-2020
dor. Incansável. “incansável”. Foi desta forma que atuou por mais de cinco décadas nas redações de jornais e nas páginas dos livros que escreveu. Como se não bastasse, com mais de 70 anos ainda se meteu a fazer cinema como produtor, roteirista e personagem de documentário - de dar inveja a qualquer Orson Welles... No ano passado, quando foi diagnosticado com leucemia, fiquei com pena. Não dele, mas da doença. Pois sabia que o sr. Mayrink não a deixaria em paz. Primeiro, querendo saber de todos
os detalhes com a insistência de quem precisa publicar uma reportagem para o dia seguinte. Depois, porque não se daria por vencido. Se ele agora nos deixou, tenho certeza que foi por uma certa compaixão cristã com o pobre câncer, que não teria a menor chance. Como os santos sobre os quais escreveu e venerou, fica o exemplo quase impossível de ser seguido, mas que será sempre lembrado. Vinícius, genro.
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Ser mineiro...
Em entrevisa à TV Horizonte, canal católico, de Belo Horizonte
Meu pai era, ou melhor, é mineiro, de Jequeri. Sempre teve muito orgulho de ser mineiro. Hoje, após sua partida, consigo enxergá- lo com clareza no poema Ser Mineiro, de José Batista de Queiroz, principalmente nestes versos iniciais: “Ser mineiro é não dizer o que faz, nem o que vai fazer, É fingir que não sabe aquilo que sabe, É falar pouco e escutar muito, É passar por bobo e ser inteligente É vender queijos e possuir bancos....” Ele era assim. Não comentava seus atos, mas fazia na surdina o bem para tantas pessoas. Não discutia política ou religião apesar de saber tanto sobre estes assuntos. Ouvia as pessoas em suas entrevistas e escrevia reportagens memoráveis. Era inteligente, tinha uma memória sem igual. Não vendia queijos, mas adorava presentear amigos com goiabada e cachaça da sua terra. Não possuiu um
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banco de dinheiro, mas sim de conhecimento. Nas homenagens da imprensa, onde dedicou toda sua carreira profissional, nas homenagens da Igreja, onde dedicou toda sua fé e nas homenagens dos familiares e amigos, a quem dedicou sua generosidade e amor, encontramos depoimentos de seus atos que nem sabíamos que tinha feito e que deixaram marcas. Sua ética e sua dedicação a tudo que fazia foi reverenciada. Eu, como filha, tive o privilégio de vivenciar seu amor pela família, sua paixão por viagens, sua fé e a necessidade de se abastecer de trabalho até os últimos dias. Ele lutou contra a leucemia sem reclamar. Ficou conosco 1 ano, nos preparando. Foi mais uma lição de vida que tivemos. Ele partiu em paz e nos deixou em paz. Sua passagem foi como a de um bom mineiro, quietinho, dormindo. E como bom mineiro, vai continuar de longe, em silêncio cuidando de todos nós. Luciana Mayrink, filha.
No Céu. Ou seja, em Casa. Um dos cantores favoritos de minhas filhas é Ed Sheeran. Gosto das músicas dele também, mas há uma que especialmente me toca: Supermarket Flowers. Tomo emprestada a música do Ed (licença para tratá-lo quase como um amigo neste momento) e a dedico ao meu pai, que se foi ontem, enquanto dormia, e horas depois de ter chamado em voz alta, com a força que lhe restava, por minha avó (“Mamãe!”). Durante um ano, meu pai lutou bravamente contra a leucemia, e nesse tempo fomos sendo preparados para sua partida. O Céu está em festa. Ele deve ter entrado lá com sua credencial de “repórter da alma”, como o chamou o amigo Hugo Almeida há poucos dias, em uma linda dedicatória. Talvez tenha repetido aquilo que viu em um sonho, lembrado por minha irmã Juliana, no qual se encontrava com Nossa Senhora e se apresentava:
“Mayrink, do Estadão”. Do meu novo amigo Ed Sheeran, destaco e altero, levemente, a estrofe que me faz crer que ele chegou aonde queria e que está bem: So I’ll sing hallelujah You were an angel in the shape of my dad [mum] When I fell down you’d be there holding me up Spread your wings as you go And when God takes you back He’ll say: Hallelujah, you’re home. “Então eu vou cantar Você foi um anjo na forma do meu pai [da minha mãe] Quando eu caí você esteve lá me segurando Abra suas asas enquanto você vai E quando Deus te receber de volta, vai dizer: Aleluia, você está em casa”
Mônica Mayrink, filha.
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Mayrink, do Estadão. Às vésperas de ter alta de sua segunda internação, em 23/09/20, dia do meu aniversário, meu pai estava calado. Ao ser questionado por uma das enfermeiras sobre o porquê de estar tão quieto, respondeu: “Eu crio laços”. Ia voltar pra casa, que era o seu maior desejo, mas estava triste por deixar pra trás profissionais que se tornaram seus amigos. Criar laços era realmente uma de suas maiores virtudes. Era um homem de amizade fácil. Em suas passagens pelo hospital, autografou e presenteou médicos, enfermeiros e fisioterapeutas com seus livros. Das nossas viagens a Minas, voltávamos carregados de queijo, goiabada e a cachaça “Tira Mágoa” de Jequeri, que ele fazia questão de trazer para os amigos. Das viagens a Roma, trazia terços. Ao longo dos anos, perdemos as contas dos religiosos, dos políticos, das fontes e dos leitores que criaram laços na vida pessoal e profissional do meu pai. Prova disso está nas inúmeras mensagens que recebemos desde o dia 23/12. Dois dias após sua morte ainda não conseguimos ler todas as mensagens, tampouco agradecer a tantas manifestações de carinho. “A Itália vai rezar por ele!”, “Perdi meu melhor amigo!”,
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Mayrink na Capela Sistina, fotografado por Marco Antonio Rezende
“Os ensinamentos dele são parte de minha vida”... Impossível conter as lágrimas. Isso só reforça a minha convicção de que meu pai, “um eterno foca”, como ele sempre se intitulou, colheu o que plantou ao longo de sua vida. Deixa um legado de generosidade, de fé, de amor à família e à profissão. Deixa laços de admiração, de gratidão e de eterna saudades. Mas, é dia de festa no céu! Há muitos anos, meu pai contou que sonhou que chegou ao céu e encontrou Nossa Senhora. Não teve dúvida e se apresentou: “Mayrink, do Estadão!” Colecionamos muitas reportagens, lições e boas lembranças dessa sua longa vida por aqui. Descanse em paz, paizinho!
Juliana Mayrink, filha.
O meu vôzinho Nos últimos dias, a leucemia avançou tanto que nós sabíamos que estava chegando a hora. No dia 22 à noite, me despedi de você e disse que te amava, e você abriu os olhos por um momento - algo que já estava sendo difícil para você. Fui deitar com o coração apertado, e três horas depois Você partiu. Ainda bem que Você me ouviu uma última vez. Você lutou bravamente e nos preparou para o luto por mais de um ano, mas a verdade é que nunca estamos preparados para lidar com a perda. Sua partida é uma dor para todos que passaram pela sua vida, e mais ainda para quem conviveu com Você diariamente. Neste ano tão doloroso, passei meses na sua casa. Colhíamos limões no quintal, conversávamos até o relógio bater 22h. Te dava bom dia e boa noite todos os dias. Acompanhei cada fase da doença. Mas mesmo no momento de maior debilidade, nunca te vi tão forte. Ainda não acredito que Você partiu de vez. Que não vou te dar mais bom dia, seguido de um sorriso, nem ganhar mais um tapinha na bochecha ou te dar um abraço. Nesses últimos dias, fiquei sentada ao seu lado dia e noite, segurando sua mão, falando com Você baixinho e colocando ópera no rádio na esperança de que Você estivesse ouvindo. E acho que estava mesmo. Você sempre ouvia tudo e ainda vai olhar por todos nós daí de cima. É inevitável a sensação de querer ter feito mais por Você, vôzinho.
se foi.
Mesmo sabendo que fizemos tudo o que estava ao nosso alcance. Mas sei que Você se foi em paz e com conforto. Por aqui, com o tempo, nós vamos ficar bem. Só que com uma saudade eterna dentro do peito. Vou sentir sua presença no canto de cada sabiá, em cada missa, em cada viagem de trem, em cada badalada do seu relógio. Toda vez que formos à sua casa, ao Caraça, a Jequeri. Sempre juntos, com muito amor e união, como Você nos ensinou. Me despedir de Você foi a coisa mais difícil que eu já fiz. Mas agora sei que Você descansa em paz. Obrigada por ser mais do que um avô para mim. Você foi e sempre será meu porto seguro e meu guia em todos os meus passos. Obrigada por ser meu maior exemplo e herói na vida. Te amo muito e pra sempre.
Melina Mayrink, neta, 22 anos.
Usted no fue mi tío, ni mi abuelo ni mi padre. Usted fue mi suegro. Sólo yo sé cuánto lo voy a echar de menos. John, genro.
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Só posso te agradecer
Te agradecer por tudo, Vovô, por todos os ensinamentos e momentos, pela família que você me deu, pela sua fé e valores que sempre pregou. Dói muito, mas tenho certeza que você está em um lugar melhor e lindo, que Deus te recebeu de braços abertos e que o céu está em festa! O natal não foi o mesmo sem você, mas você estava presente, está em nossos corações, isso é para sempre! Sua força, dedicação, generosidade e bondade me inspiram, seu coração e sua luz tocaram muitas pessoas! Quando você me perguntou no dia de finados: “Bia, quando eu morrer, vocês vão continuar fazendo churrasco no dia de finados?”. E eu te respondi com um nó na garganta: “Lógico que sim, em homenagem, mas isso ainda vai demorar né!”, e não demorou tanto... Mas a resposta é a mesma, lógico que nós vamos te homenagear e lembrar do avô, pai, tio, amigo, cunhado,
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Passeio no Vaticano, 2017
profissional e marido que você foi, vamos rir e chorar lembrando de tudo que passamos com você! Obrigada por tudo, vá em paz, descanse, olhe por nós, nos guie e nos ilumine. Vamos cuidar da sua Mizé, agora temos um anjo no céu e outro na terra! Tenho certeza que vou lembrar de muitas coisas que queria ter te falado, mas isso fica entre a gente, em alguma das nossas futuras conversas, vou te levar comigo para onde eu for, eu te amo para sempre! Beatriz Mayrink, neta, 14 anos.