Reinações no Reino da Rainha Número 66 - 25 de janeiro de 2021
O Jornal da Tarde foi Murilo Felisberto e foi também muito o talento de seus jovens, revolucionários e sonhadores jornalistas. Que, até hoje, quase 10 anos após o fim do JT gostam de relebrar aqueles tempos e contar historias como as que seguem.
Porque Rainha Carlos Brickmann O apelido foi dado pelo Dirceu Soares. Inicialmente, era “Cristina, a Rainha Doida”, que foi sendo simplificado até chegar a Rainha. Um dia, o Dirceu Soares - que era um puta repórter, que se casaria com outra repórter maravilhosa, a Jane Soares - escreveu uma reportagem sobre algo que estava surgindo no Brasil: a soja, ou feijão-soja. Havia discussão no JT sobre o nome correto a ser usado: soja, sim, mas no masculino de feijão-soja ou no feminino de soja? O Dirceu fez algo maravilhoso: como o produto era conhecido como Rainha dos Vegetais, ele abriu a matéria com uma pergunta: “Afinal, a Rainha é homem ou mulher?” Tempos depois, eu era editor de Internacional e me caiu um telegrama delicioso nas mãos: a Rainha Elizabeth (sempre ela, claro!) estava pleiteando um aumento das verbas reais.
Havia resistência no Parlamento, havia aqueles movimentos antimonárquicos perguntando por que o Estado deveria pegar dinheiro do Tesouro para dar a uma família, só porque sua chefe era filha do chefe anterior, que era filho da chefe anterior... enfim, o de sempre. E havia informações bem inglesas: a Marinha inglesa, por exemplo, é de propriedade pessoal da Rainha, e será um dia de seu neto - ou bisneto, quem sabe? Abri a notícia com algo assim: “A Rainha está pedindo um aumento. Por que o Estado não dá um aumento à Rainha?”
O jt Sempre é uma publicação com um único objetivo: manter viva a memória do Jornal da Tarde. É, acredito, a melhor forma de nos manter em contato, trocar informações, promover encontros para o papo agradável de sempre. Você pode participar. Mande sugestão, artigo, matéria, foto, histórias para mariomarinho@uol.com.br No campo “Assunto”, coloque: “JT Sempre”. Responsável: Mário Marinho.
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Quatro histórias por Sérgio Vaz
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O Texto.
Robson Costa era um excelente copy, português perfeitíssimo; era mais um produto do bom jornalismo e das boas escolas de Minas importado pelo JT no início dos anos 70. Era também um sujeito tremendamente tímido – pessoa extraordinária, do bem, mas tímido. Na verdade, muito encucado. Tínhamos o costume de botar a Olivetti de pé, para ter mais espaço para canetar os telex das sucursais – nos casos em que não era necessário reescrever tudo nas laudas. Ao virar a Olivetti da posição normal para a vertical, Robson deixou cair a máquina, pesada pacas, no chão. Uma barulheira danada, e a redação parou por alguns minutos, todo mundo urrando, berrando, vaiando.
Uma barulheira típica de alunos de ginásio. Uma feliz e barulhenta algazarra. Ao terminar aquela zorra, fez-se um repentino silêncio. Foi quando, do outro lado da redação, onde ficava a editoria de Esportes, Mário Marinho, gaiato, falou, quase gritando, em alto e bom som: – Textinho pesado hein, garoto? Várias horas depois, incidente já esquecido por todo mundo – quase todo mundo –, Robson foi até a mesa do Marinho e se queixou baixinho, tímido, como era seu jeitão de mineiro calado e, ainda por cima, encucado: – Cê acha mesmo meu texto pesado?
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Quatro histórias
por Sérgio Vaz
O BEIJO. Era 1970 e eu um foca total que começava fazer estágio na Editorial de Reportagem Geral. Fernando Portela era o editor e Sandro Vaia chefe de reportagem, Jamais havia entrado antes em uma redação. Naquele dia, fui pautado para cobrir o caso policial, e saí com o Ywane Yamazaki, ele, um cara assim mei doidão, na qualidade dupla de fotógrafo e de motorista. O cas se deu na vizinha cidade de Mairiporã.
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Lá na delegacia de Mairiporã fiz as perguntas que tinha que fazer, fiz as anotações nas laudas amassadas, e estávamos para sair da delegacia e voltar para a redação quando surge o Hélio Cabral. Hélio Cabral dublê de duas coisas diferentes: era ao mesmo tempo jornalista e delegado de polícia. Na redação do JT, era um dos três caras que cobriam turfe (sim, em 1970, na editoria de Esportes, havia três jornalistas que cobriam turfe.) Ali em Mairiporã era delegado. Ao ver o Ywane (a mim, nem viu, não conhecia, ninguém conhece um foca), o Delegado – assim ele era chamado na redação – fez um gesto para que o japonês não desse bandeira, ficasse quieto, não falasse nada. Creio que o
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Delegado não queria que, na Polícia Civil, soubessem de sua outra identidade, de jornalista de turfe. Ywane dá um berro: – “Hélio Cabral! Hélio Cabral, meu querido!” Todas as pessoas presentes à delegacia de Polícia de Mairiporã olham para o japa fotógrafo. – Hélio Cabral! Hélio Cabral, meu querido! Repetia o japonês simulando gestos afetados. Aproxima-se do Delegado – e lasca-lhe um beijo na boca! E em seguida sai a toda velocidade da delegacia, rumo a seu Fusca, e eu, foca assustadíssimo correndo atrás. Ah, diacho, bons tempos…
Quatro histórias
por Sérgio Vaz
O PHRASEUR.
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Na sua época de ouro, o Jornal da Tarde teve grandes phraseurs, mas creio que Humberto Werneck era um dos maiores, senão o maior.
O Jornal da Tarde hoje não tem mais nada a ver com seus dias gloriosos; Humberto continua sendo um grande phraseur, dos melhores que há. Não muito tempo atrás, numa reunião para arrecadar fundos para um amigo nosso do velho JT que disputava a eleição para deputado, alguém falou em “nós”, referindo-se, claro, ao partido do candidato, logicamente o partido apoiado pelos presentes todos, e Humberto, com olhar espantado, perguntou: “Nós quem?” Humberto gostava de contar uma história de seus tempos de estudante. Um professor de Português que infelizmente teve Humberto como aluno estava ensinando à sua classe que, num
bom texto, não se deve repetir a mesma palavra. “Se você usar, por exemplo, a palavra incêndio, num parágrafo, no parágrafo seguinte não a repita. Use sinistro.” Ao que o aluno Humberto Werneck levantou a mão, para ter a palavra, e disse: – “Professor, sinistro é o senhor.” Humberto entrou no Jornal da Tarde no mesmo ano que eu, 1970. Tinha já um nome respeitável em Minas, eu não tinha nome algum. (Humberto viraria um nome respeitável em todo o Brasil; eu jamais viraria um nome respeitável em lugar algum.) Naquele começo dos anos 70, Eric Nepomuceno ainda não chegava a ser um nome respeitável. Depois viraria – amigo de Chico Buarque, de Gabriel García Márquez, de Eduardo Galeano, entrevistador privilegiado do primeiro, tradutor dos dois últimos, figura importante no período do lulopetismo, aglutinador dos geniais intelectuais de esquerda em prol da grande causa eleger Dilma Rousseff presidente. Naquele tempo longínquo, era apenas o Bicho Eric – apelido advindo de sua mania de usar em cada frase a expressão “bicho”, coisa de Roberto Carlos, portanto coisa menor, inferior; a intelligentsia
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achava Roberto Carlos um horror. Gênio sempre à frente do seu tempo, capaz, já que se falou em “bicho”, de perceber antes da imensa maioria a grandeza e a importância de Roberto, Caetano Veloso escreveu naquela época, para Bethânia cantar, a maravilha que é “Esse Cara” – “ah, que esse cara tem me consumido a mim e a tudo o que eu quis, com seus olhinhos infantis, com os olhos de um bandido (…) ele está na minha vida porque quer, eu estou pro que der e vier (…) ele é quem
quer, ele é o homem, eu sou apenas uma mulher”. Humberto tinha que rever e melhorar os textos, entre outros, do Bicho Eric. Bicho Eric, jovem ego já bastante inflado, entregava seus textos com propostas de títulos e olhinhos – olhinho, no jargão jornalístico, é aquela linha fina que vem embaixo dos títulos. Numa noite, no fechamento, Humberto soltou a frase: – O Bicho Eric tem me consumido com seus olhinhos infantis.
A CACHAÇA.
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Era um daqueles dias de enchente, Marginal do Tietê alagada, trânsito interrompido, isolando a cidade de São Paulo em do lado de cá e d lado de lá da Marginal. Não havia como atravessar. Foram poucos os profissinais que alcançaram a heróica façanha. Lá pelas oito da noite, redação desfalcada, eis que surge o austero Bill Duncan, editor de Economia do Jornal da Tarde, com água pingando dos cabelos, descalço, carregando ostensivamente sapatos e meias encharcados. Senta-se à sua mesa com a mesma cara seriíssima de sempre, bochechas grandes, caídas. A desfalcada redação para e assiste atenta e respeitosamente
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toda a cena à espera do que irá acontecer. Ainda com a encharcada calça aregaçada até o meio das canelas, Bill levanta-se, olha para um lado, olha para outro e berra para o contínuo de modo que toda a redação pudesse ouvir – Tostão! Me traz um bloco de diagramação e uma cachaça!
Figura lombrosiana Mário Marinho
Essa é uma história que precisa ser cotada em dois atos e é do tempo em que o politicamente incorreto era tolerado. 1 - O personagem Cesare Lombroso foi um psiquiatra, cirurgião, higienista, criminologista, antropólogo e cientista italiano que nasceu em 1835 e morreu em 1909. Ele desenvolveu teoria segundo a qual, resumidamente, as pessoas nasciam com característica daquilo que seriam. Assim, uma pessoa má seria feia, teria olhos esbugalhados, sobrancelhas hirsutas, bigodes – enfim, a personificação do mal. É possível ver essas características aplicadas as filmes mudos dos primeiros passos do cinema. Filmes de Charles Chaplin, Gordo e o Magro, etc.
camiseta cavada, exibindo no pescoço grosso colar possivelmente de ouro. O Delegado não perde a ocasião para a piada. Abre os braços e se dirige aos três ou quatro funcionários da delegacia e exclama em alto e claro som: - Eis que adentra os portais desta casa de lei uma figura lombrosiana. O homem sem mudar sua feição de bravo, se dirige a delegado. - O senhor por acaso está imaginando que eu não sei o que é uma figura lombrosiana, não é? E na sequência, saca uma carteira e exibe quase esfregando-a na cara do Delegado: - Eu sou um Juiz de Direito. Rápido no gatilho, sentindo o cheiro de confusão, o Delegado exclama gentilmente: - Desfeito o equívoco, um cafezinho aqui para a Sua Excelência...
2 – A história Hélio Cabral era um dos repórteres de turfe do Jornal da Tarde. Na redação, piadista, irreverente, sempre pronto para uma brincadeira. Fora da redação, era Delegado de Plolícia plantonista que, na época, estava na lotado na 40ª Delegacia, no bairro do Limão. Era uma noite de verão bastante tranquila. Madrugada monótona. Mas, lá pelas tantas, aparece um homem negro de bermuda colorida, chinelo de dedo Típica figura lombrosiana
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Meu amigo Murilo Miguel Jorge No início de 1963, dois amigos e eu, nos primeiros anos de faculdade, e completamente duros, morávamos numa quitinete na rua Martins Fontes, em frente à Delegacia Regional do Trabalho. À noite, depois do jantar de marmita, descíamos para a rua e ficamos batendo papo e vendo o movimento até a hora de dormir. Acostumei-me a ver um rapaz magrinho, já meio grisalho, que chegava ao prédio carregando um monte de jornais debaixo braço. Zé Mãozinha (tinha um defeito congênito numa das mãos), me disse, quando perguntei; - Esse é o ´seu´ Murilo, jornalista que trabalha na Folha e namora dona Iolanda, que mora aqui no prédio. Eu o invejava, como invejava todos os jornalistas, profissão de meu sonho – por isso, entrara na Cásper Líbero, e quase toda noite, ficava na rua, em frente aos grandes janelões do prédio do Estadão, na esquina de minha rua com a Major Quedinho, vendo as grandes rotativas imprimindo o jornal. Conheci outros jornalistas, como o Marcelo Lins, que conhecia bem o Murilo, mineiro de Lavras, e soube que ele morava numa pensão perto da Santa Casa, na Santa Cecília e também era duro como nós. Soube que ele tinha se mudado para o Rio e trabalhava no Jornal do Brasil, de enorme prestígio na época. Ficou no JB durante algum tempo – criou o Departamento
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de Pesquisa do jornal – e veio para São Paulo, no final de 1965, para ser o segundo de Mino Carta na redação do futuro Jornal da Tarde. Mais grisalho, ainda andando pelas ruas com montes de jornais e de revistas debaixo do braço, começava ali um período que o tornaria um dos grandes profissionais de Imprensa de sua época. Murilo, nascido em 1939, era uma figura única. Pequeno, magrinho, muito quieto, falava baixo, e às vezes, era até difícil entendêlo. Foi responsável por trazer de Belo Horizonte os jornalistas que ficaram conhecidos como “o grupo Mineiro” – nomes como Ivan Ângelo, Flávio Márcio, Ramon Garcia y Garcia, Mauro Ribeiro, Alberico Souza Cruz, Ezequiel Neves, Fernando Mitre, Marco Antônio de Menezes, Moisés Rabinovici, Salomão Davi Amorim, Ricardo Gontijo e muitos outros, além do que se agregaram ao grupo ao longo do tempo. Acho que a primeira grande prova do Murilo ocorreu quando Mino, com menos de dois anos dirigindo o JT, e contratado pela Abril, saiu para preparar a primeira revista brasileira semanal de informação. Seria natural que Murilo sucedesse o Mino, mas poucos na redação imaginavam que um grupo sem nenhum mineiro, claro -, se insurgiria contra isso. Certamente, o comportamento retraído, tímido e de poucas palavras ajudou a que ele não fosse uma unanimidade. Esse pequeno grupo de jornalistas resolveu fazer um movimento para impedi-lo de ser o novo editorchefe (ou diretor de redação). Seu
candidato era o repórter Ewaldo Dantas Ferreira, profissional respeitado e experiente, e que já fora presidente do Sindicato dos Jornalistas. Durante algumas semanas, a redação viveu um clima de intranquilidade e nervosismo, até que Ruy Mesquita decidiu: Murilo seria o novo editor-chefe. Inconformados, uns dez jornalistas saíram do jornal e foram para a revista semanal Visão,que fora comprada recentemente pelo empresário Henry Maksoud, uma das maiores e mais respeitadas empresas de serviços de Engenharia do Brasil. Essa experiência durou poucos anos, até a revista fechar Dirigido pelo Murilo, em sua melhor fase, que durou de 1968 a 1988, o JT foi um grande laboratório de Jornalismo. Além das discussões internas, do enorme sofrimento em busca do melhor e mais enxuto texto, da busca incessante pela qualidade no escrever e no fotografar, seus jornalistas discutiam o jornal durante todo o tempo: na redação, nos bares, nos encontros de final de semana. Muitos de seus jornalistas eram fanáticos pelos textos de Gay Talese, Tom
Wolf, Truman Capote, Norman Mailer, que liam como uma Bíblia – esses autores eram os grandes representantes do new journalism, no seu auge nos anos 60, e cuja principal característica eram a mistura de narrativas jornalistas com texto literários. Nos bons tempos do JT, na Rua Major Quedinho, 28, as mesas do bar Guarujá, ao lado do jornal, ou no Picardia, restaurante do outro lado do viaduto Dona Paulina, viviam cheias de jornalistas do JT, que varavam as noites em intermináveis discussões sobre o jornal – ou sobre como mudar o país e o mundo. Às vezes, se encontravam no bar Estadão, do outro lado da rua, para comer o sanduíche de pernil de porco, famoso até hoje. Murilo tinha uma enorme capacidade de encontrar bons profissionais, e era um verdadeiro descobridor de talentos. Todo dia, lia vários jornais de vários Estados e prestava atenção nos melhores textos – quando encontrava uma reportagem muito bem escrita, dava um jeito de falar com o jornalista para tentar contratá-lo para o jornal. Como privilegiava o texto e o design, o Murilo exigia um enorme esforço de
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todos os profissionais do JT. Ao contrário dos outros jornais, os próprios editores desenhavam suas páginas, o que acrescentava mais uma qualidade a esses profissionais. Uns editores eram mais criativos que outros, e com isso, não havia uma unidade gráfica – mas havia, sim, uma excepcional qualidade no desenho de suas páginas. Murilo acompanhava de perto o que cada um fazia, e sempre que necessário, na procura da melhor forma. Murilo deixou o Jornal da Tarde para ser diretor de criação da DPZ, na época uma das mais conceituadas agências de publicidade do Brasil, do brasileiro Roberto Dualibi, o D, e dos espanhóis Francesc Petit, o P, e José Zaragoza, o Z. Trabalhou na agência até 2000, quando voltou ao JT, ficou até 2003. Morreu em maio de 2007 por causa de um tumor no fígado. No final dos anos 90, o JT já começara sua decadência, acentuada cada vez mais até seu fechamento, em 2012. Murilinho era capaz de atos estranhos. Numa das vezes em que o Luiz Carlos Secco conseguiu um furo, com as fotos de um novo lançamento dos Dodge Dart, da Chrysler (que, anos depois, seria vendida para a Volkswagen), recebeu a visita do americano John De Denghi, diretor de Relações Públicas da montadora. Com quase dois metros de altura, meio arrogante, De Denghi entrou na sala do Murilo, sentouse e começou a reclamar em altos brados que o jornal não poderia publicar as fotos do novo carro, pois isso traria garndes prejuízos para a montadora, que atrapalharia a campanha de marketing do lançamento e por aí afora. Murilo adorava o branco e sua sala, no novo prédio novo da Marginal do Tietê, era totalmente
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branca: paredes, todos os móveis, tapetes, tudo era branco. Na sala de seu apartamento, em Pinheiros, tinha até um piano branco, de cauda, que dedilhava de vez em quando. De repente, Murilo se levanta, e sem dizer nada, sai da sala. De Dengui olha para o Secco, também surpreso. Os dois esperam uns minutos e saem, ao concluírem que Murilo tinha ido embora e os deixara ali. Claro que, no dia seguinte, as fotos do carro estavam na primeira página do JT. Uma matéria que ocupou um espaço privilegiado foi a abertura da primeira loja de pão de queijo na cidade, numa travessa da Avenida São João, com um título muito comentado, escrito pelo Murilo: “De repente, fila para comprar pão de queijo”. Esse jeito diferente de ver determinados fatos e a maneira de descrevê-los era motivo de muitas críticas e de estranhamento da maioria dos profissionais dos outros jornais, que, praticamente, usavam apenas os tradicionais o que, quando, como, onde e porque em seus textos. Muitas vezes, para tentar ridicularizar os repórteres do JT, os coleguinhas diziam “- Isso é coisa de veado”, até por causa dos homossexuais que trabalhavam no jornal – o JT foi o primeiro grande jornal a aceitar homossexuais assumidos na reação. Apesar de criticado por alguns, Murilo era elogiado e até adorado muito por seu profissionalismo, correção, senso ético, educação e pela excepcional capacidade criativa. Tinha alguns problemas, como não saber como poderia machucar alguém. Até hoje Charlotte, minha mulher, se lembra que Murilo foi almoçar em casa, e ao terminar, pediu um Sonrisal. Ela nunca o perdoou.
Duelo na redação Aílton Fernandes Nos tempos atuais, penso que seria uma heresia imaginar a redação de um grande jornal adotar casos e situações como constantemente acontecia no JT. Por várias razões: pressão por fechamento, espaços menores, gente mais sisuda. A verdade é que quem entrasse no meio da redação do JT na noite do dia 26 de agosto de 1987 (quarta-feira), um pouco antes do início do primeiro jogo da final do Campeonato Paulista entre São Paulo e Corinthians, no Morumbi, iria ver duas mesas no centro da redação com comidinhas e bebidas para os torcedores das duas equipes. Na mesa dedicada exclusivamente para os são-paulinos era possível ver no centro uma garrafa de Moet Chandon geladinha, diversas taças, torradinhas e patês de vários sabores. Guardanapo de papel timbrado. Tudo muito chique e arrumadinho. E na mesa corintiana? Bem, lembro de ter passado rapidamente por lá (sou são-paulino). Mas deu pra ver que tinha mortadela, salsicha no molho, coca-cola e sucos TANG sem açúcar. Guardanapo? Não, não tinha, o pessoal se servia mesmo com as laudas espalhadas pela mesa. Não fiquei sabendo de quem foi a ideia. O Camarinha, será que estava nessa parada? O Valtinho? Ou Tostão, continuo. Quem mais? Alguém arrisca dizer. Só sei que sai de lá dando risadas depois de batucar uma matéria da gloriosa Federação Paulista de Futebol.
Gargalhadas que aumentaram depois que o tricolor venceu o tradicional rival por 2 a 1 e foi campeão no domingo com um empate sem gols. Brincadeiras (rivalidade) à parte, a verdade é que este clima de descontração, bom humor e ousadia era levado diariamente para as páginas do JT. Quem não lembra no nariz do Maluf aumentando a cada dia no caso Paulipetro ou da foto do Jânio Quadros com o título “É isso aí”. Puxando um pouco mais pela memória, lembro de mais dois ótimos títulos: em um sábado, antes da eleição indireta para governador de São Paulo, o JT saiu com o seguinte título: “Desculpem senhores, mas os candidatos são estes: Paulo Maluf e Laudo Natel”. Na segunda-feira, depois de uma eleição tumultuadíssima, o título foi: “Vejam o que fizeram com São Paulo. Escolheram Maluf”.
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Garçons muito sincer Valdir Sanchez
Na noite em que conheci o garçom mais sincero da minha vida, estávamos recém-chegados a Passos, no sul de Minas, para matéria sobre a Hidrelétrica de Furnas. Este da caneta, e Hélvio Romero, das câmeras e objetivas (mas pode chamar de texto e fotos). A hidrelétrica estava muito mal, com água pelas canelas. Às tantas, deixamos o hotel para jantar. Sempre viajei com o Guia Quatro Rodas, e me louvei em suas boas indicações. Mas Passos não constava nele. Assim, recorri à segunda opção mais confiável. O ponto de táxis da praça principal. Seus motoristas rodam toda a cidade, sabem de tudo. A prova disso é que nos indicaram um restaurante recém inaugurado, e discorreram sobre suas excelências, ambiente agradável, cardápio variado. Ora, vamos a ele. Uma vez instalados, sondei o cardápio de pratos e bebidas. Lá estavam duas ofertas de scotch oito anos. Vem o garçom. Pergunto: – A casa garante a qualidade desses scotchs?
Fiquei perplexo. – Não? Explicou com naturalidade que os clientes reclamavam muito, ele avisava os patrões, mas não adiantava nada. Em todo caso ia buscar uma garrafa da bebida. – O senhor faz uma prova. Foi minha vez: – Não! Não lembro o que tomei de aperitivo (e se tomei). Talvez tivessem uma cachaça aceitável para uma caipirinha. Em outra viagem… houve um fato (literalmente) marcante, em uma churrascaria rodízio. Desta vez, Heitor Hui estava nos cliques (naquela época as máquinas fotográficas faziam esse som ao disparar). A churrascaria não era má. Vem o garçom e apóia na mesa um espeto cheio de carnes. Espera que eu escolha um dos pedaços. Aponto e, ele, rápido, corre a faca – tão rápido que corta a carne e o meu dedo! Pede um momento, sai, e fico com o guardanapo segurando o sangue. Passa outro garçom, percebe que há algum problema: – Precisam de alguma coisa?
E ouço a seguinte resposta:
E Heitor, rápido:
– Não.
– Fio de sutura.
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ros O corte foi superficial. O garçom autor veio com um bandeide e aplicou no meu dedo. Serviu também um comentário. – Não deixamos faltar o bandeide. Esses cortes acontecem muito. E a seca e a crise da hidrelétrica, que nos levou a Furnas, no sul de Minas Gerais, em junho de 2001? Um dos textos mostra que a igreja do vilarejo de Velha Barra, inundado pelas águas do Rio Grande, para a formação do lago, em 1963, reaparecia agora, 38 anos depois. Segue a abertura do texto. “Talvez por hábito, o pai de Maria da Penha, a professorinha, fechou a porta da casa quando todos saíram. Um gesto dispensável. Nas horas seguintes, as máquinas vieram para demolir as casas, os prédios públicos, tudo o que estava em pé em São João da Barra. Só restou a igreja. Depois disso, as águas começaram a subir.
Agora, 38 anos depois, Maria da Penha de Andrade, 67 anos, professora aposentada, voltou a pisar na Velha Barra, como hoje é chamada a cidade sepultada pelas águas de Furnas. O encolhimento do lago da hidrelétrica deixou à vista algumas áreas e os restos do cemitério, onde um irmão de Maria foi enterrado. Com os pés no passado, Maria reviu cenas de uma vida feliz, na cidade de ruas sem calçamento. O pai, José, era pessoa muito respeitada: barbeiro e juiz de paz. Na Velha Barra, os dois maiores rios da região, o Grande e o Sapucaí, se encontravam. O primeiro tinha suas águas limpas; o outro, turvas. As águas não se misturavam. Seriam elas, afinal, que cresceriam com a barragem da hidrelétrica e inundariam a cidade. Maria retém as palavras para chorar. O lago está à sua frente. “Minha cidade está aí embaixo, não vou ver nunca mais.”
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