Arte: Maristelly de Vasconcelos
Dois lados de muitas novelas Sinais do m de um longo período de desavenças surgem. E o que poderia ser um enredo de novela é, na verdade, a vida real de dois países.
Cuba e Estados Unidos
podem até não se entender, mas entendem e muito de um produto
bem brasileiro.
Assistir novela é uma paixão dos americanos e cubanos.
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Foto: Paul Rodriguez
Foto: Reprodução do YouTube
Dois lados de muitas novelas
Buena Vista Social Club. Existente desde a década de 40, é um dos mais famosos grupos musicais de Cuba.
Celina Y Dominguez. Uma das mais populares duplas de Cuba. Famosos por incluir em suas canções termos relacionadas com a Santeria.
“Não perca a estreia de 'Revolução Cubana', sua nova novela das nove” ou ainda “Em breve, a incrível história da 'Invasão da Baía dos Porcos', uma novela de época recheada de romances, intrigas e muita confusão!”. Enquanto a primeira poderia ter Candela do Buena Vista Social Club como a música do tema de abertura, à segunda caberia Pedacito De Mi Vida, da dupla Celina Y Reutilio.
A ilha de Fidel e o seu maior oponente, o império estadunidense, renderiam à brasileira Rede Globo, empresa que mais produz telenovelas no mundo, vários folhetins com grandes chances de se tornar sucesso de renda e público. Dá para imaginar o enredo de amor e ódio e de brigas e pazes entre os dois países. Personagens de ideologias tão diferentes têm tudo para exercer papéis fundamentais na ficção e na vida real. Mas nem só de diferenças extremas vivem Cuba e Estados Unidos. E, em uma das poucas semelhanças que os une, o Brasil está inserido, afinal não é só em terras tupiniquins que as novelas fazem sucesso e influenciam até no comportamento do público.
03 Fotos: www.gshow.com.br
Dois lados de muitas novelas O jornalista Thiago Stivaletti é um apaixonado por telenovelas desde criança. Esteve em Cuba de férias e ficou surpreso quando, ao se apresentar às pessoas como brasileiro, não escutar o que brasileiros sempre escutam fora de casa: perguntas sobre futebol e nativos cantarolando versos de “Ai, se eu te pego”, espalhada aos quatro cantos do mundo pelo cantor sertanejo Michel Teló. Os cubanos queriam saber sobre Carminha e Nina, a Cuba e os Estados Unidos de “Avenida Brasil”, ferrenhas rivais que chegaram ao fim da produção perdoando uma a outra. A relação conturbada entre os dois países nem sempre foi só de ódio. Em 1898, Cuba libertou-se da Espanha com a ajuda dos Estados Unidos. Os norte-americanos saíram da ilha em 1902, mas, antes da partida, deixaram a Emenda Platt que, na prática, lhes permitia intervenção direta sobre os assuntos do país. Fosse este um enredo de novela, poderia se chamar “O Dono do Mundo”. Quem seria o vilão que age de forma calculada esperando um retorno no futuro? Quem seria a mocinha que acredita em um falso amor e precisa lutar para se libertar do sentimento de ter sido passada para trás? Antônio Fagundes e Malu Mader, que deram vida aos papeis principais, estariam aí representados. Em 1959 se deu a Revolução Cubana. O General Fulgêncio Batista, mesmo apoiado pelos americanos, é vencido pelos nacionalistas que contavam com Fidel Castro e Che Guevara no seu time de guerrilheiros. E tudo isso em plena Guerra Fria, época em que o mundo estava dividido entre o bloco que defendia o socialismo e o bloco que defendia o capitalismo. Muita coisa aconteceu até que, em 2002, Cuba foi incluída no chamado “eixo do mal”. O então presidente George W. Bush via o país dos Castro como um desenvolvedor de armas biológicas. Cuba era considerada uma nação que patrocinava o terrorismo, assim como Síria e Líbia. E, mais uma vez, uma novela global caberia nesta história. “A Favorita”, de João Emanuel Carneiro, foi uma das poucas a não apresentar de forma clara e imediata quem era a vilã e quem era a mocinha da trama. Em se tratando dos dois países, talvez nunca sejam definitivos os conceitos de vilão e mocinho para cada um. E, como as muitas novelas brasileiras veiculadas fora daqui, “A Favorita” também dividiu as torcidas cubana e americana. De um lado, Donatela; do outro, Flora. A história das duas nações sofreu uma reviravolta em 17 de dezembro de 2014. Os presidentes Raúl Castro e Barack Obama anunciaram a retomada das relações diplomáticas e os países têm se reunido para definir os próximos passos. Apesar da reaproximação ser uma agenda antiga do Governo Obama, o aperto de mãos e o fim do “'tô de mal” atribui-se à interferência do Papa Francisco. Nem Cuba e nem Estados Unidos são países católicos, mas é nítido o poder da religião no Ocidente. Se a novela fosse “Roque Santeiro” , cuja exibição gerou enorme sucesso nos dois países, quem seria o Sinhozinho Malta e quem seria a Viúva Porcina?
Novelas: Avenida Brasil (2013), O Dono do Mundo (1991), A Favorita (2008) e Roque Santeiro (1985)
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Foto: acervo jornal O Globo
As telenovelas brasileiras são uma das poucas coisas estrangeiras que entram sem restrições nos dois países. Há relatos de que, na década de 80, Cuba suspendeu o racionamento de energia para que o público não ficasse sem saber o que aconteceria com a sofredora personagem de Lucélia Santos em "A Escrava Isaura". Até os horários dos jogos de futebol sofreram alterações, pois a população não assistia as partidas por causa da trama. Anos depois, “A Escrava Isaura”, desta vez produzida pela Rede Record, chegou aos Estados Unidos e a enorme comunidade hispânica daquele país pôde acompanhar a saga da heroína via o canal Telemundo. Mais uma vez, o bem e o mal entraram em combate. Seria Cuba a figura da mocinha que não se deixava escravizar? Seriam os Estados Unidos o malvado Leôncio cheio de vontade? E, se Cuba deve ao Brasil parte de seu entretenimento, o Brasil deve a Cuba parte da história das telenovelas. “O modelo da telenovela brasileira descende da radionovela cubana. Eles se identificam com a Rubens de Falco e Lucélia Santos. gente por questões culturais”, pontua Luiza Lusvarghi, pós-doutora em Vilão e mocinha de Escrava Isaura. Novela de 1976 cinema pela USP e pesquisadora de séries policiais e produção audiovisual latino-americana. Prova disto é que, em 1964, a novelista cubana Gloria Magadan mudava-se para São Paulo depois de três anos exilada em Miami, para onde foi após a revolução. Aqui, ela cuidava das novelas da extinta TV Tupi e, já no ano seguinte, foi convidada por Walter Clark, o então diretor-geral da Rede Globo, a assumir o departamento de novelas da emissora. Magadan é a responsável pelo apelo romântico e exótico das telenovelas brasileiras, existente ainda nas produções atuais. Cubanos e americanos amam telenovelas. Luiza Lusvarghi conta ainda que os brasileiros se sentem em casa quando vão a Cuba. “Tem até baiana com charutão jogando búzios. Eles adoram telenovela e tanto as produtoras americanas quanto as de Porto Rico, país sede da Telemundo, vêm produzindo em espanhol justamente para ganhar este público”.
Amor verdadeiro
“O modelo da telenovela brasileira descende da radionovela cubana. Eles se identificam com a gente por questões culturais”
Segundo o médico César Oliveira, baiano que frequentemente visita os dois países, os cubanos [Luiza Lusvarghi] demonstram ser mais apaixonados pelas obras brasileiras que os americanos. O país tem lá suas produções e a exibição dos folhetins locais e brasileiros se dá em dias alternados. “Nos dias da novela do Brasil, o silêncio toma conta das ruas, enquanto que, no dia da transmissão da novela cubana, a audiência é menor e as vias públicas ficam mais movimentadas”, lembra. Outra particularidade é que, em Cuba, o público é composto por crianças, adultos e idosos de ambos os sexos. Todos envolvidos nas tramas e seus desdobramentos. Já nos Estados Unidos, as mulheres são a maior parte do público fiel. Uma das causas pode ser atribuída a maior variedade de canais e plataformas de entretenimento, os públicos infanto-juvenil e adolescente buscam outras opções além da TV. O Doutor César destaca também que, a exemplo do que aconteceu e acontece a cada dia nos países nos quais a internet está consolidada, a TV vem perdendo espaço para outras produções e para outras plataformas. Neste ponto, Cuba parece-se ainda com cidades do interior do Brasil nas quais o sinal de internet é muito ruim – ou nem existem ainda – e a TV e o rádio, estatais, claro, são as únicas fontes de entretenimento e informação. Celular, em Cuba, é artigo de luxo e as tarifas são muito caras. Quando ele precisa falar com amigos de lá, o e-mail não é a melhor opção, já que a comunicação via internet costuma ser monitorada. Uma solução que ele encontrou é fazer recargas no celular dos amigos cubanos para que os números permaneçam ativos e eles possam falar via telefone.
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Foto: Maristelly de Vasconcelos
A Professora Márcia Perencin Tondato, Doutora em Comunicação pela USP, publicou um estudo que desenha o cenário das exportações das telenovelas brasileiras para todo o mundo. O conjunto dos produtos televisivos, nos quais incluem-se as telenovelas, minisséries, filmes de TV, musicais, e no caso da Rede Globo, os Casos Especiais, já foi exportado para mais de 140 países. Em se tratando apenas de novelas, sejam da Rede Globo de Televisão, do SBT - Sistema Brasileiro de Televisão, da extinta Rede Manchete e da Bandeirantes, 102 países já importaram as telenovelas brasileiras. Este número considera apenas os países que efetivamente firmaram contrato, pois, quando se trata de venda para uma Publicação da Editora organização estatal, como por exemplo a China Filmes, a Globo. Dados de 252 distribuição pode acontecer pelas províncias e cidades de novelas da emissora. forma que a produtora original já não tem mais controle.
Foto: Maristelly de Vasconcelos
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Publicações do Observatório Íbero-Americano da Ficção Televisiva. Editora Sulina.
O mundo fora de Cuba
Em Vale Tudo, a personagem Raquel, interpretada pela atriz Regina Duarte, resolve montar seu próprio negócio para ganhar a vida. Depois de começar com a venda de sanduíches na praia, ela passou a entregar marmitas em domicílio e em seguida organizou uma empresa especializada em fornecer refeições para companhias aéreas, chamada de 'Paladar'. Mesmo sem a interferência estatal, os paladares precisam de autorização do governo para funcionar. Precisam também atender exigências mínimas, como pagar taxa mensal ao Estado e empregar no máximo oito funcionários, devendo todos ser parentes de primeiro grau do proprietário.
Desde a chegada da lendária Escrava Isaura (produzida pela Globo em 1976), em 1985, passando por títulos clássicos como Roque Santeiro, Vale Tudo, Renascer e A Próxima Vítima; além de importantes tramas contemporâneas como Insensato Coração, Araguaia e Avenida Brasil, a Ilha de Fidel Castro tem nas produções brasileiras, novelas da Globo em particular, um exemplo de qualidade e valor social. Trata-se de bens cada vez mais caros ao projeto de divulgar o patrimônio cultural originário na América Latina e desenvolvido com excelências pelos profissionais da Rede Globo desde o início da década de 1970, modernizandose constantemente por seu diálogo com o cotidiano brasileiro e internacional. A este projeto sociocultural, a aproximação dos Estados Unidos por meio de uma política altruísta promovida por Barack Obama, que visa unificar os povos, as culturas e os sentimentos por meio de um pensamento histórico-social progressista, só trará benefícios ao universo da telenovela brasileira. Um benefício que, diga-se de passagem, teve início com a eleição presidencial de Barack Obama, pois sendo Miami a capital da América Latina, a política desenvolvida pelo democrata só aumentou o interesse em torno do gênero telenovela. Neste sentido, observo claramente duas forças que se unem para ampliar ainda mais o impacto das novelas produzidas pela Globo ao redor do mundo. Mauro Alencar, autor de A Hollywood Brasileira – Panorama da Telenovela no Brasil, é mestre e doutor em Teledramaturgia Brasileira e Latino-Americana pela USP. É também consultor e pesquisador da Rede Globo.
Foto: acervo pessoal
A influência dos folhetins brasileiros em Cuba é tão grande que a novela “Vale Tudo” é responsável por “Paladares” ser o nome dos restaurantes privados. São negócios particulares, abertos geralmente na própria casa da família proprietária e independente do controle estatal. Nos Paladares, é servida a culinária popular cubana.
A retomada das relações tende a modificar a forma de Cuba se comunicar com o resto do mundo e até mesmo de agir como boa parte do planeta. As gigantes Apple e Coca-Cola já demonstram interesse em vender seus produtos para os cubanos que vivem na Ilha de Fidel. Além destas, empresas e provedores de internet veem no país um mercado a ser explorado e que tem tudo para garantir o retorno financeiro esperado. Hoje, uma hora de acesso à internet em Cuba chega a custar US$ 8, o mesmo valor que a Netflix anunciou que cobrará, por mês, para oferecer naquele país o seu serviço de streaming. Dos 57 milhões de assinantes nos 50 países onde a Netflix atua, 5 milhões são da América Latina, número que tende a crescer.
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Tanto no Brasil quanto em outros países, os serviços de streaming são responsáveis pela queda da audiência das TVs atualmente. Nos Estados Unidos, por exemplo, 40% das residências é assinante deste tipo de serviço. O campeão em números de clientes é justamente a Netflix, com uma fatia de 36% de lares. Então será a abertura de Cuba à vida moderna um risco para o mercado brasileiro de telenovelas? Será que o Brasil deixará de ser uma potência na teledramaturgia e perderá espaço para as produções norte-americanas em Cuba? Só o tempo dirá. Mas, "se o Brasil continua um grande exportador de romances, histórias de amor e guerra, mesmo com tantos países abertos à tecnologia, acredita-se que Cu-ba mudará, mas não no amor às produções tupiniquins". É no que acredita o especialista Mauro Alencar, Doutor em Teledramaturgia Brasileira e Latino-Americana
“A entrada de outras mídias na Ilha em nada deverá alterar o sentimento do povo cubano em termos de consumo e parâmetro cultural.” [Mauro Alencar]
pela USP e consultor da Rede Globo. Segundo Mauro, “a entrada de outras mídias na Ilha em nada deverá alterar o sentimento do povo cubano em termos de consumo e parâmetro cultural”. Ele acredita que a novela produzida pela Globo já está enraizada no imaginário latino-americano, servindo como fonte de conteúdo para as novas mídias que não param de surgir no acelerado século 21. E se Cuba e Estados Unidos viverão um grande e eterno amor? Só resta ao resto do mundo esperar ouvindo “Quizas Quizas” na voz de Ibrahim Ferrer.
“TV a Gato” em Cuba? Sim! Ela existe! Leonardo Padura é jornalista, escritor e cineasta cubano. Mora em Havana e assina uma coluna quinzenal n'A Folha de São Paulo. Em um dos seus artigos, falou sobre o “cabo” cubano. Na época dos vídeos-cassetes, eram as locadoras clandestinas que ajudavam os cubanos a ver produções que não entravam no país. Já com os aparelhos de DVD, a população passou a contar, fora da lei, é claro, com os fornecedores de discos carregados de filmes e programas de TV. Estes fornecedores passavam pelas casas semanalmente administrando o aluguel de seus discos, nos quais eram gravadas produções transmitidas por emissoras estrangeiras. Agora, a “TV digital à cubana” é mais moderna. Quem se dispõem a pagar o valor de 2 pesos conversíveis cubanos –um pouco mais de US$ 2, recebe a programação do “cabo”. “Cabo” não significa TV a cabo, pois ela ainda não existe em Cuba, e sim o nome dado a este serviço paralelo ao sistema de difusão estatal. É, na realidade, um sistema pelo qual um grupo de pessoas capta sinais televisivos de Miami e distribui, através de dispositivos portáteis, a quem queira adquirir esse serviço. Assim, são criados “pacotes” televisivos com filmes, musicais, telenovelas, programas de informação, programas esportivos e até antivírus, além e páginas de internet. O consumidor pode acessar o “pacote” em seu computador ou, se conseguir visualizá-la, em seu aparelho de televisão.
Universidade Nove de Julho Curso de Jornalismo Unidade: Memorial 5º Semestre Disciplina: Jornalismo Internacional | Professor: Renato Vaisbih Disciplina: Jornalismo Interpretativo | Professora: Adriana Alves Aluna: Maristelly de Vasconcelos Carvalho | RA 913107766