CARTA DE
SÃO PAULO Revista da Escola Brasileira de Psicanálise - São Paulo
#1 Ano XIX • Maio-Junho 2012
São Paulo
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CARTA DE
SÃO PAULO Revista da Escola Brasileira de Psicanálise - São Paulo
#1 Ano XIX • Maio-Junho 2012
Capa: O “X” da questão... - Estacionamento da loja Suxxar em São Paulo Carlos HK - Flickr.com
São Paulo
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CARTA DE
SÃO PAULO Revista da Escola Brasileira de Psicanálise - São Paulo
#1 Ano XIX • Maio-Junho 2012
São Paulo
SUMÁRIO
EDITORIAL
07
DEBATE
11
Maria Bernadette Soares de Sant’Ana Pitteri
Entrevista com Cristina Drummond
ENSINO
Alienação e Separação
15
Sandra Grostein
Lógica Lacaniana
23
Maria Bernadette Soares de Sant’Ana Pitteri
ACONTECE NA EBP-SP JORNADAS DA EBP-SP 2011 Feminização ou Destotalização?
27
Carla Cristini Bonadio Audi
Eixo: O não-todo e o gozo Sutilezas do feminino no século XXI
33
Blanca Musachi
Madame Bovary reescrita nos tempos modernos?
36
Samyra Assad
Seminários Declarados à EBP-SP
41
JORNADAS DE CARTÉIS 2012
42
SEMINÁRIOS DO CONSELHO Comentário sobre o Seminário do Conselho
51
Maria Helena Barbosa
Uma leitura sobre a Transferência no Seminário 11
54
Carmen Silvia Cervelatti
NOTÍCIAS DA AMP Atividade preparatória para o Congresso da AMP 2012
63
Patrícia F. Bichara
Livros lançados
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EDITORIAL
Maria Bernadette Soares de Sant’Ana Pitteri LINGUAGEM MENTIROSA E A ORDEM SIMBÓLICA NO SÉCULO XXI O VIII Congresso da AMP foca um fenômeno que vem sendo detectado desde o final do século XIX: A ordem simbólica no século XXI – não é mais o que era, o que leva os psicanalistas a se perguntarem sobre quais as consequências para o tratamento. Ao emergir, a psicanálise o fez num momento de crise simbólica, no final do século XIX e começo do XX. A ideia de um simbólico incompleto, faltoso, aparece no pensamento ocidental desde seus inícios, mas de forma incipiente, como em Platão no questionamento da linguagem, em vários de seus diálogos. A obra nietzschiana faz clara denúncia da pretensão à verdade universal que toda linguagem possui. Sendo ela apenas mais uma das criações humanas, as mudanças fazem parte de sua própria estrutura. Nietzsche, ao teorizar sobre a linguagem, aponta para os riscos que correria a humanidade ao desvelar-se o que Miller batizou de “delírio generalizado”: no momento em que a civilização ocidental leva sua racionalidade ao ápice, momento de queda de ideais, os humanos, perdendo suas referências, veem desencadear-se, brotar em todos os níveis, os efeitos que marcam a inexistência do Outro – o que é perigoso, muito perigoso, assim como viver (já o disse o velho e sempre bom Guimarães). Partindo da análise que Nietzsche faz da linguagem, chega-se a que os seres humanos criam visões de mundo, delírios que tamponam o real, o que o faz perguntar “Quanto de verdade suporta, quanto de verdade ousa um espírito?”1. Até onde manter os semblantes? Para além das estruturas e sua possibilidade diagnóstica, Lacan faz uma afirmação surpreendente a princípio: “todo mundo é louco, quer dizer, delirante”2, mas que se coaduna à doutrina por ele desenvolvida no decorrer de seu ensino. Levando em
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conta o jogo entre o universal que ele identifica no “para todos” aristotélico, o particular que lhe permite fazer a distinção entre as “estruturas” e o singular com “a loucura de cada um”, o cálculo da clínica inclui necessariamente a questão: até onde desvelar as criações com as quais o sujeito se defende do real?
O particular em lógica é a tentativa de capturar algo que se inscreve no universal, diferente do singular, que não encontra inscrição dentro daquele. A universalidade da loucura liga-se à articulação significante; afinal, o significante nada significa, apenas liga-se a outro significante para representar o sujeito. Mas a frase aforismática de Lacan remete a um paradoxo: o universal da loucura iguala-se ao singular do delírio, o próprio de cada um, para além do particular das estruturas clínicas. O singular da “loucura de cada um” remete ao inconsciente, conhecido apenas por suas formações: sonho, lapso, chiste, ato falho. O sintoma acrescido à lista traz um elemento clínico, diz Miller, pois as formações anteriores não são motivo para tratamento, são emergências, enquanto o sintoma se repete, insiste. Não se tem mais o sonho, como nos tempos áureos da psicanálise, de que o sintoma possa ser resolvido de uma vez por todas por meio da decifração. E por que não? O inconsciente é estruturado como uma linguagem e, se o simbólico é mutante, as formas de abordar o inconsciente também deverão sê-lo: a psicanálise que surge numa crise sem precedentes do simbólico, deve necessariamente mudar com ele.
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EDITORIAL
Falamos e acreditamos na linguagem, somos, para além da psicose, “tolos do significante”. Deliramos em função da “forclusão generalizada”, do furo simbólico estrutural ao ser humano que, ao falar, acredita dar conta da totalidade de seu mundo; ser falante que acredita que a linguagem diz a verdade. Postular a verdade da linguagem colocaria o simbólico ao abrigo das mudanças.
A propósito do que dissemos acima, leiam com atenção a entrevista de Cristina Drummond, que enfoca os meios oferecidos pela Psicanálise ao tratamento do autismo.
Linguagem mentirosa e a Ordem Simbólica no Século XXI
Maria Bernadette Soares de Sant’Ana Pitteri
Maria Bernadette Soares de Sant´Ana Pitteri
1 NIETZSCHE. Ecce Homo, p. 366. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978. 2 LACAN, Jacques. Transfert à Saint Denis? Ornicar?, n. 17-18, 1979, p. 278. 3 Jacques-Alain Miller, Todo mundo é louco. Curso da Orientação Lacaniana, 2007/2008.
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DEBATE
Cristina Drummond Entrevista sobre o Autismo para a Carta de São Paulo Elaboração das perguntas: Maria do Carmo Dias Batista
Cristina Drummond, Diretora-Geral da EBP, a partir de seu trabalho cotidiano com a psicanálise de crianças, muito gentilmente se propôs a responder algumas questões sobre o AUTISMO, para a Carta de São Paulo. CARTA DE SÃO PAULO - Você diria que a criança autista é uma criança “especial”?
CRISTINA DRUMMOND
CRISTINA DRUMMOND - Não gostamos de usar o termo especial em psicanálise porque ele se refere mais à maneira das terapias cognitivo-comportamentais e ao DSM que não tomam o conceito de sinthoma como orientador de leitura do real da clínica. Dizer que uma criança autista é especial supõe nelas um déficit ou um distúrbio a ser modificado. Gosto da formulação que diz que o autista é um sujeito fora das normas, ou seja, que sua maneira particular de habitar a linguagem não responde à lógica ordinária. Vemos que essas crianças têm muita dificuldade para normativizar seu corpo, as experiências mais ordinárias como alimentar, defecar, dormir, não funcionam da mesma maneira para esses sujeitos, e o fato de que em algum momento eles funcionem como os demais, não significa que esse funcionamento vai se manter. CSP - A psicanálise tem importantes meios para tratar o autismo: a valorização da subjetividade, a busca da particularidade, a ausência de padrões rígidos para o atendimento, entre outros. Esses meios são eficazes no autismo? CRISTINA DRUMMOND - O que os psicanalistas fizeram no trabalho com os autistas foi buscar construir a lógica da posição desses sujeitos que não são nem um pouco passivos, estão o tempo todo num trabalho constante de tentar regular o gozo invasivo que os atormenta. Todas essas maneiras que você citou de se colocar diante do autista, de tomá-lo como um sujeito e um sujeito inserido na linguagem, tal como Lacan nos ensinou, ainda que não fale, [11]
são orientadores do tratamento dos autistas. Entretanto, como disse anteriormente, muitas vezes o sujeito volta para sua posição de defesa diante da palavra e do olhar do outro. Isso diz que muitas vezes apenas o tratamento nas sessões de análise pode ser insuficiente e que o trabalho nas escolas, na família, nas instituições, vai colher melhores efeitos porque o sujeito tem mais oportunidades de buscar soluções para romper uma posição que constatamos ser muito fixada. De qualquer modo, Lacan nos ensinou que temos algo a dizer aos autistas e que nossa resposta pode ter um efeito de abrir novas chances para que o sujeito se presentifique.
CRISTINA DRUMMOND - O que diferenciaria é que tomamos o autista como um sujeito e suas ações, ainda que sejam apenas umas batidinhas numa superfície, são tomadas pelos analistas como uma tentativa por parte desses sujeitos de inserir alguma regulação em seu mundo. Temos um aparelho conceitual cujas bases nos foram indicadas por Lacan e que nos ensina a pensar o sujeito como uma resposta do real. Apesar de todas as particularidades dos autistas, tomamos os conceitos da psicanálise para ler a lógica de sua maneira de ser habitados pela linguagem. Não os consideramos como outro tipo de seres humanos, mas com os mesmos elementos lógicos que lemos a neurose, lemos o autismo, ou melhor dizendo, os autismos, já que seu espectro é amplo. Ao longo do tempo, a investigação a respeito do autismo tem avançado no campo da psicanálise a partir das experiências de tratamento, das experiências institucionais e do trabalho sobre os relatos dos sujeitos autistas. Hoje temos várias publicações de autistas que buscam transmitir sua experiência subjetiva. Podemos atualmente, tal como Freud com o texto de Schreber em relação à paranoia, ter acesso ao relato daqueles autistas que tentam expor e demonstrar a razão de suas experiências. São documentos que realmente fizeram avançar a pesquisa. Assim, é claro que nos interessa que esses sujeitos façam laço e encontrem maneiras de sair de seu encapsulamento, e de uma posição de gozo que às vezes é violenta e mortífera, mas sobretudo nos interessa acompanhar a sua maneira de tratar o real e as soluções
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DEBATE
CSP - E o que diferenciaria, nesse caso, a psicanálise de outras técnicas psicoterapêuticas?
particulares que eles encontram para dar conta do acontecimento de corpo que lhes é próprio. Essa construção teórica vai orientar muitos tratamentos com melhores chances para esses sujeitos.
Em Entrevista para a Carta de São Paulo
CRISTINA DRUMMOND
CSP - Como é a participação do SUS no tratamento do Autismo? CRISTINA DRUMMOND - Não sei dizer sobre essa questão no âmbito de nosso país. Sei que em Belo Horizonte essas crianças têm acesso à escola pública especial e que há um Cersam infantil que as acolhe, assim como um hospital psiquiátrico infantil estadual que trata de algumas delas. Os outros espaços tais como escolas, clínicas de tratamento, são particulares e o tratamento cognitivo comportamental é o mais considerado como capaz de tratar o autismo. Alguns de nossos colegas trabalham nesses espaços, e já tivemos a oportunidade de fazer um curso breve no IPSM-MG para a formação das professoras que se ocupam dessas crianças na escola pública. Entretanto, não há um projeto que verdadeiramente leve em conta essa dimensão da experiência autística tal como concebida pela psicanálise. CSP - A EBP, em sua gestão, lançou um livro sobre o Autismo, o que demonstra o interesse da Escola sobre o tema. Em linhas gerais, qual é o enfoque principal do livro? CRISTINA DRUMMOND - Nos interessamos justamente em promover no Brasil uma discussão sobre o autismo por achar que falta literatura sobre o tema e que o livro colabora com a discussão, assim como se propõe a discutir experiências de tratamento dessas crianças. Além disso, temos em psicanálise a formulação de que existe, para cada sujeito, um gozo autístico, separado da relação com o Outro, e esse tipo de gozo está cada vez mais presente em nosso mundo. Assim, o interesse pela discussão das questões da clínica com autistas é uma questão muito atual e interessa à psicanálise de maneira ampla. Queremos levar a público as contribuições da AMP e de nossa Escola sobre esse tema, pois é muito importante que as pessoas possam ter acesso ao que temos a dizer sobre essa questão. Pensamos que nossa orientação faz uma diferença nesse campo. Por se tratar de uma questão tão polêmica e instigante, a discussão sobre o autismo é uma chance de sustentarmos o valor da psicanálise em nosso mundo, o valor da psicanálise para nos orientar na leitura desse real que se encontra obscurecido nessa pluralidade de discursos baseados nos ideais da ciência.
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ENSINO
Sandra Grostein
Alienação e Separação Aula de 16/11/2011
Quando nos encontramos na posição de falar dos conceitos psicanalíticos, falamos da posição de analisantes. Haverá, então, partes obscuras em minha apresentação. Peço que vocês questionem para podermos avançar nas articulações. Quanto ao escrito, ele responde a determinadas demandas. Miller revela na aula de 19/01/2011 que os textos de Lacan nos Escritos foram feitos a partir de alguma encomenda, para congressos, revistas, livros, etc. É importante ressaltar a função do escrito ao responder a demanda do Outro. Isto fica patente quando percebemos que nós também estamos sempre às voltas com textos destinados a alguma atividade, revistas, congressos; produzimos mais a partir da demanda da instituição, seja da Escola, seja da AMP. Esta breve introdução tem como objetivo diferenciar nossa posição frente à transmissão oral e a escrita, principalmente no que diz respeito à relação com o Outro da linguagem. Quando falamos também somos falados; quando escrevemos, buscamos um ponto de apoio que estabilize esta tensão entre falar e ser falado. Neste contexto, abordarei a questão da alienação e da separação, fazendo um percurso um tanto tortuoso. Usei alguns textos como referência, além do Seminário 11, capítulos 16 e 17, o texto “Posição do Inconsciente”, de Lacan nos Escritos; o curso do Miller “Iluminações Profanas”, aula de 9 de novembro de 2005; em Para ler o Seminário 11, um texto de Éric Laurent em que trabalha alienação e separação e, claro, Perspectivas dos Escritos e Outros Escritos de Lacan: entre desejo e gozo. Parto da hipótese de que Lacan, ao propor as duas operações de causação do sujeito – alienação e separação – buscava responder como a constituição do sujeito do inconsciente está determinada pela relação do sujeito com o Outro. Em a “Posição do Inconsciente” Lacan diz que o inconsciente é um conceito forjado no rastro daquilo que opera para construir o
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sujeito. Alienação e separação, ou a relação do sujeito com o Outro é, basicamente, a maneira como Lacan apresenta a constituição do sujeito. Esta relação que ele estabelece entre inconsciente e sujeito me parece fundamental. Há dois campos, diz Lacan: o campo do sujeito e o campo do Outro. Esse sujeito ao qual nos referimos tem relação direta com o inconsciente e tem como pressuposto o sujeito cartesiano. O sujeito, portanto, tem como pressuposto o sujeito cartesiano e o Outro. É nesse contexto que, em “Posição do Inconsciente”, nos Escritos, página 853, Lacan diz: “O Outro é a dimensão exigida pelo fato de a fala se afirmar como verdade”. O Outro estaria colocado do lado da verdade.
Tanto no Seminário 11, quanto em “Posição do Inconsciente”, Lacan diz que além desses pressupostos mínimos é necessário entender que existe uma prioridade do significante em relação ao sujeito, ou seja, que o significante vem antes do sujeito. E, também, que a definição do significante é que um significante representa o sujeito para outro significante. A operação da alienação tem início no Outro na medida em que o conjunto de significantes é anterior ao sujeito. No meu entender, neste momento Lacan está às voltas com a ideia de que o sujeito é sempre evanescente. Na estrutura da divisão originária, nenhum sujeito pode ser causa de si mesmo. A alienação reside nesta relação do sujeito com o Outro, produzindo uma divisão. É na articulação do sujeito com o Outro que o sujeito do inconsciente se constitui, a partir da alienação do sujeito no Outro e da separação daquilo que é relativo ao sujeito e daquilo que é do Outro, constituindo três espaços: o campo do sujeito onde o sujeito dividido se localiza; o campo do Outro, onde o significante primeiro é buscado, e a intersecção, lugar do objeto, ou daquilo que não é significante. Utilizarei as referências de Laurent para discutir quais seriam estas duas operações. Ele diz que nessa relação do sujeito com o Outro se estabelece uma primeira falta, na medida em que o [16]
ENSINO
Sabemos que o Outro está no campo do significante, do simbólico. É fundamental entender o que significa estas duas operações de causação do sujeito, para articular com o que se estuda hoje.
sujeito não pode ser inteiramente representado no Outro. Há sempre um resto, que o define como ser sexual. Este sujeito, ao tentar se representar no conjunto de significantes, não se constitui como um sujeito todo, pois falta um significante que o represente sexualmente, como homem ou mulher. Laurent coloca, então, de um lado, o sujeito barrado; do lado do Outro, o S2 e, na intersecção, o S1. Por quê? Porque o S1 é o significante que se repete e, portanto, é contado uma única vez.
Alienação e Separação
SANDRA GROSTEIN
Já no campo do sexual, do lado do sujeito há o sujeito barrado; do lado do Outro, os significantes S1-S2 e, na interseção, o vazio de significantes, o objeto a. Podemos considerar uma segunda falta, pois o sujeito necessita de ao menos dois significantes para se representar. Pode haver a identificação com o S1 – e quanto a isso, Laurent dá um exemplo: o menino mau. A criança é representada como o menino mau na relação ao ideal de sua mãe; esta identificação, ou qualquer outra que serviu como significante mestre, funciona para o sujeito como uma linha mestra durante toda a sua vida. Ele é definido como tal e assim se comporta. Este primeiro significante com o qual o sujeito se identifica faz com que fique petrificado. Sempre que isolamos uma das identificações do sujeito, precisamos, em seguida, encontrar a fantasia que a acompanha. Como vivificar o significante a partir do momento em que o sujeito se identifica com o seu significante primeiro, alienando-se no campo do Outro? Ele se aliena no campo do Outro para se retirar desse campo. E o fará a partir de algo que não seja da ordem do significante. Por isso, na separação, o que fica entre os dois campos, é o objeto. Porque não existe, nem no campo do sujeito, nem no campo do Outro, um significante que represente o sexual. Se Laurent lembra que ao sujeito falta um significante que o represente frente ao sexual, Miller, em Iluminações Profanas, afirma que não é possível que o sujeito, quando se inclui no campo do Outro, se inclua pleno de sentido. Terá que incluir aí o não sentido. Ou seja, o sujeito ao se incluir no campo da linguagem se divide tanto pela falta de significantes quanto pela falta de sentido. Não dá para o sujeito permanecer identificado ao seu ser e, este ser, ficar pleno de sentido. [17]
Tanto do lado do sujeito, quanto do lado do Outro, falta o tal significante que nomeie o sexual. Miller se utiliza da lógica dos conjuntos para abordar essa questão. O que haveria de intersecção entre o conjunto do sujeito e o conjunto do Outro? Que elemento comum poderia haver nos dois conjuntos? O conjunto vazio de significantes.
Essa é a ideia da alienação: o que pode haver em comum entre um sujeito e o Outro? Vários significantes, mas podem existir significantes no campo do Outro nos quais o sujeito não se inscreve de maneira nenhuma. Existem significantes só no campo do Outro ou só no campo do sujeito, e o fundamental para nós, hoje, é trabalharmos com aquilo que não se inscreve no campo do Outro. Seria um significante fora da estrutura de linguagem. Miller afirma que o que dá consistência ao sujeito e ao Outro é algo que não está nem no campo do sujeito, nem no campo do Outro. Aí está, novamente, a intersecção: é o objeto. O sujeito deixa de ser instável e evanescente quando se fixa ao objeto no fantasma fundamental. Para atualizar esta questão temos que retomar a relação do falasser com a alíngua. Um substituto para a minha fala está no texto de Jacques-Alain Miller, Perspectivas dos Escritos e Outros Escritos de Lacan: entre desejo e gozo, à página 11: “a nova clínica psicanalítica é uma teoria sobre o incurável”. Em sua aula do dia 9/11/2005, diz que o falasser é o sujeito que se tornou durável ao escrevê-lo como UM corpo. O sujeito não é dado a priori; ele precisa se relacionar com a linguagem para poder se estabelecer. Esta é a base da psicanálise. Na hora em que ele se relaciona com a linguagem, perde algo: a sua relação com o sexual. É no fantasma que tenta recuperar algo do sexual. Pela própria definição de sujeito ele não se sustenta como ser sexuado, a não ser através de uma relação dife[18]
ENSINO
O que não faz parte dos dois conjuntos, o que é impossível de localizar, seja num conjunto, seja no outro, é o objeto a. Em Iluminações Profanas, Miller trabalha a união, ou seja, o elemento que possa fazer parte dos dois conjuntos. Qual seria este elemento? Miller ressalta a diferença grande que existe entre a adição e a reunião na teoria dos conjuntos. A adição é a soma dos dois conjuntos; na reunião, os elementos repetidos não se adicionam.
rente com o grande Outro, com algo que não faça parte do campo da linguagem. É aí que Miller inclui o conjunto vazio, vazio de significantes. Em Iluminações Profanas, ao utilizar a lógica dos conjuntos, introduz a referência do conjunto vazio. Não se trata de uma passagem direta para o objeto, mas de que é necessário passar por algo que não seja significante. Este conjunto vazio de significante será ocupado pelo quê?
Alienação e Separação
SANDRA GROSTEIN
Miller coloca em colunas – como é bem comum a ele – da seguinte forma: de um lado, o sintoma, a verdade, o desejo, a tiquê, a falta, a falta-a-ser, o sujeito, o fantasma; do outro lado, o sinthome, o gozo, a pulsão, o automaton, o furo, o ser, o falasser e o corpo. De que lado está o sujeito? Do lado do sintoma, da verdade, da falta-a-ser. A complicação atual se dá a partir dessa mudança de perspectiva dos conceitos: é preciso, segundo a proposta de Miller, incluir o corpo, o sexuado, o vivo. É o que experimentamos no dia a dia da clínica e na relação com a sociedade. São os ajustes necessários que se articulam na leitura de Freud e Lacan. Tais ajustes, trabalhados por Miller em Perspectivas dos Escritos e Outros Escritos de Lacan: entre desejo e gozo, ocorrem tanto no campo conceitual, quanto clínico. Trata-se de um movimento, por ele incentivado, da psicanálise aplicada para a psicanálise pura. Para ele, a psicanálise aplicada à terapêutica levou o psicanalista a se identificar ao terapeuta. Se ele se identifica ao terapeuta, é porque supõe que haja algo a ser terapeutizado, diferentemente da clínica psicanalítica, com tratar o incurável. Quando se pensou que seria importante a psicanálise abrir suas portas por meio das clínicas, os CPCTs, visava-se incluí-la no campo do Outro, o Outro social. Com a experiência, verificou-se que ao invés de a psicanálise entrar no campo do Outro social, foi o Outro social que entrou na psicanálise, através daquilo que Miller chamou de cavalo de Troia das instituições financiadoras que exigiam uma resposta terapêutica da psicanálise, na direção da normatização da sexualidade. O que fazer quando se tenta incluir a psicanálise no campo do Outro, ou quando o sujeito tenta se incluir no campo do Outro sem esse significante do sexual? A resposta de Lacan, tanto do ponto de vista institucional, quanto clínico, é por meio da fanta[19]
sia. A resposta institucional era o passe através do final da análise coincidindo com o atravessamento da fantasia, ou seja, esta seria o ponto limite a ser alcançado em relação ao gozo, a uma relação com o sexual com algo mais normatizado. A escritura da fantasia seria o sujeito articulado nessas duas operações, de alienação e separação com o objeto a. Através do lugar dado ao objeto na fantasia, o sujeito constitui um ponto fixo de estabilização. É um sujeito consistente em relação a uma norma sexual. Aí está a complicação: fazer essa relação com o Outro social, permitindo que este invada a psicanálise, e não vice-versa.
Miller afirma que, num primeiro momento do Seminário 11, Lacan explora a subordinação do gozo ao primado da estrutura, ou seja, a questão é como incluir o gozo tendo como primazia a estrutura da linguagem. A virada proposta por Miller é a subordinação da linguagem ao gozo. Antes perguntávamos: o que significa isso que está fora da linguagem, fora do campo do Outro, que não faz parte da constituição do sujeito? Hoje colocamos outra questão: o que isso satisfaz? Como consequência, a interpretação não visa a busca de sentido e sim a procura de algo que possa responder a uma constante. Ou seja: isso satisfaz na medida em que se repete. A partir de Iluminações Profanas, podemos dizer que o significante, além de ser o veículo que inclui o sujeito da relação com o Outro, também é causa de gozo. Se o significante também é causa de gozo, não é qualquer significante, não é um significante que possa fazer com que o sujeito se identifique a ele. Ou seja, não se trata de um S1. Se não é um significante com o qual o sujeito possa se identificar é aí que Lacan apela ao conceito de lalangue, marca da subordinação da linguagem ao gozo. Na clínica, estamos diante da questão de tratar o incurável. O paradoxo de fazer uma teoria do intratável é poder identificar essa marca da subordinação da linguagem ao gozo. [20]
ENSINO
Isso também está presente o tempo todo na clínica: as interpretações vindas do Outro fazem o quê? Fixam o sujeito na fantasia, pois se trata daquilo que falta. Não temos como interpretar isso, mas, ao mesmo tempo, não estamos fora da estrutura da linguagem.
Não se trata, então, de buscar na fantasia fundamental o limite, mas de buscar uma passagem pelo avesso. A fantasia é uma relação fundamental com o gozo modelada pela estrutura da linguagem; tem raízes imaginárias e simbólicas e uma função de real. Essa maquinaria teria, ela mesma, uma função de real.
Alienação e Separação
SANDRA GROSTEIN
É nesse lugar da fantasia como pulsão, pulsão para o sujeito na sua relação com o real, que será incluído o sinthome. Na clínica que praticamos hoje faz-se necessário uma teoria do incurável que pode ser substituído pelo sinthome, este como um funcionamento. O sinthome, assim como a fantasia, é um aparelho de gozo que não está contido nos limites do imaginário e do simbólico, como está a fantasia. Está apoiado num significante, lalangue, despojado da estrutura da linguagem; é um significante que não se articula. Estes significantes que não se articulam na articulação significante são significantes que também não estão no campo do Outro, da linguagem estruturada, mas que faz funcionar uma maquinaria significante. Que tipo de interpretação se pede quando o significante está despojado da figura de linguagem? Esta interpretação não visa a uma decifração. Se visasse a uma decifração teríamos, necessariamente, que supor a existência de algo obscuro, oculto. Estes significantes que não estão ligados à estrutura da linguagem servem para gozar. Não servem para outra coisa que não seja gozar, diz Miller. Não há um significante do homem ou da mulher no campo do significante, mas há um significante próprio a cada um que dá suporte ao gozo. É claro que está diretamente relacionado ao corpo. Miller trabalha em A salvação pelos dejetos uma saída possível que não é pela via da identificação do sujeito àquilo que o torna um ser sexuado. Se ele não tem esse significante e o objeto não dá conta de sustentar a posição de ser sexuado, ele precisa inventar, na sua particularidade, um meio próprio de se posicionar como ser sexuado, com um gozo particular articulado ao sinthome. Um sujeito produz uma relação de invenção para aquilo que é uma falta constitutiva. Como ser falante, ele nunca poderá, a partir da linguagem, se apresentar como homem ou mulher, mas inventa algo, também da ordem da linguagem, no campo de lalangue, em que pode se apresentar perante o Outro. [21]
Para concluir, retomo algo da introdução no que diz respeito à fala e à escrita: entendo os ajustes da orientação lacaniana, isto é, “orientação em direção a um discurso reduzido a uma escrita”, ajustes que Miller faz de tempos em tempos – muitas vezes mudanças bruscas – como ajustes na direção de não normatizar a relação sexual. Isso que Lacan fez com a releitura de Freud: apontar para o risco da normatização, ou seja, de tentarmos buscar no campo do Outro um significante que dê conta do ser sexuado. O gozo para o ser falante gera uma divisão, e todas as tentativas de estabilização, seja pela via da fantasia, seja pela do sinthome, são tentativas do ser falante de acomodar melhor no campo do Outro seu próprio gozo. Transcrição: Márcia Aparecida Barbeito Estabelecimento: Daniela de Camargo Barros Affonso Bibliografia Lacan, J. “O Sujeito e o Outro (I): A Alienação”. In: O Seminário livro 11 Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. Lacan, J. “O Sujeito e o Outro (II): A Afânise”. In: O Seminário livro 11 Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. Lacan, J. “Posição do inconsciente”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. Laurent, É. “Alienação e separação I”. In: Para Ler o Seminário 11 de Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. Miller, J.-A. Perspectivas dos Escritos e Outros Escritos de Lacan. Entre desejo e gozo. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. Miller, J.-A. Curso: Iluminações Profanas (2005-2006). Aula de 9/11/2005. (inédito) Miller, J.-A. Curso (2010-2011). Aula de 19/01/2011. (inédito)
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ENSINO
Miller afirma que sempre será um Outro paranoizante, pois produzirá intranquilidade no sujeito na medida em que ele goza de um jeito que não está incluído no campo do Outro. Distingue esta paranoia da relação do sujeito com o Outro nesse campo específico da relação do gozo, com a paranoia como doença mental. O Outro sempre vai exigir que se goze de maneira mais normatizada, e o sujeito com seu gozo particular ficará instável nessa relação, pois será, de certa forma, ameaçado: se bobear, cai no campo do Outro. É com isso que trabalhamos no dia a dia da clínica: possibilitar certa pacificação diante do gozo do Outro, que é sempre ameaçador.
Maria Bernadette Soares de Sant’Ana Pitteri
Lógica Lacaniana
“...le titre D´un discours qui ne serait pas du semblant, c´était pour vous faire sentir, et vous l´avez senti, que le discours comme tel est toujours discours du semblant.” (Lacan, ...ou pire, p.226)
Lógica Lacaniana
Maria Bernadette Soares de Sant’Ana Pitteri
O seminário 19 vem antes do 20 e depois do 18, e isto, embora possa parecer um chiste, não é um simples truísmo. No Seminário 18 vemos Lacan na busca lógica por um discurso que não fosse semblante, pois todos o são.
A demonstração de que todos os discursos são semblantes, ou seja, de que todos os discursos se desenvolvem a partir de um significante mestre em nome do qual se fala, como observa Miller (Miller, J-A, Lettre em ligne, nº 42) exige de Lacan a passagem pela lógica. Buscar um discurso que não fosse semblante é buscar um discurso que fuja do imaginário, um discurso do real, um discurso do que não pode ser dito. Fazendo um percurso lógico extremamente denso, Lacan chega à “não-relação sexual”. No capítulo 6 do seminário 18, De uma função para não se escrever, Lacan critica a lógica aristotélica e passa desta lógica, lógica das proposições, para a lógica matemática dos quantificadores (Lacan, De um discurso que não fosse semblante, p.102/103). Ou seja, ele passa da lógica aristotélica, primeira tentativa na história do pensamento para formalizar a linguagem comum, para uma lógica cuja notação não seja verbalizável, mas que pode ser escrita. No capítulo O homem, a mulher e a lógica (Lacan, De um discurso que não fosse semblante, p.131) suas incursões o levam a negar o quantificador existencial, o que era proibido na lógica clássica criada por Aristóteles. O Seminário 19, ...ou pire, continua o percurso lógico de longo fôlego trilhado por Lacan para extrair as consequências da não-
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“La vérité implique déjà le discours. Ça ne veut pas dire que ça puisse se dire. Je me tue à dire que ça ne peut pas se dire, ou que ça ne peut que se mi-dire. (Lacan ...ou pire, p.226) O que Lacan adianta com esta verdade, verdade que implica o discurso, mesmo sendo este um mi-dire, é que o sexo não define qualquer relação no ser falante. Comentando o pas tout – a negação do quantificador existencial – e falando de lógica, ele pede a seus ouvintes que leiam a Metafísica e os textos lógicos de Aristóteles, para que possam acompanhar sua exposição. Assim, no Seminário 19, Lacan passeia pela lógica desde os primórdios do pensamento ocidental (desde o Parmênides de Platão) até a lógica da teoria dos conjuntos. Fazendo uso do quadrado das oposições aristotélico – que não foi criado por Aristóteles, mas montado pelos medievais a partir dos textos lógicos aristotélicos –, Lacan cria as fórmulas da sexuação, cria o quadrado da sexuação. Lacan se vale (como ele consegue?) dos avanços da lógica nos séculos pós-aristotélicos para enunciar que “não existe relação sexual” e partindo do Parmênides de Platão (por sinal, considerado um dos diálogos mais complexos do autor) chega ao [24]
ENSINO
relação. Ao comentar o título ...ou pire, ele observa que as reticências marcam, nos textos impressos, um lugar vazio, e que “le vide est la seule façon d´attraper quelque chose avec le langage” (Lacan, ...ou pire, p.11). Partindo daí e fazendo referência ao Seminário 18, ele interroga a lógica e diz que nos três pontos estaria um verbo, mas que, em lógica, o verbo é justamente o que não se pode elidir. Lacan o faz e, sendo pire um advérbio, no lugar das reticências, no vazio, ele coloca um argumento, “c´est-à-dire quelque substance” (Lacan ...ou pire, p.12), no lugar do verbo, coloca un dire. E qual argumento foi colocado nesse lugar vazio? Uma proposição completa – Il n´y a pas de rapport sexuel (Lacan ...ou pire, p.12) – no sentido em que não se pode escrevê-la, mas por isso mesmo é preciso escrever a outra relação, aquela que tampona, que barra a possibilidade de escrever a primeira. Un dire é o que Lacan propõe como verdade, mas como esta só pode ser dita pela metade, na outra metade entra pire.
Yad´lun, conceito fundamental para o desenvolvimento de sua lógica. De Platão a Aristóteles passando por Frege e chegando a Cantor e à teoria dos conjuntos (como ele consegue?), Lacan teoriza um novo saber, novo em relação a todo o conhecimento humano até a chegada da Psicanálise.
Lógica Lacaniana
Maria Bernadette Soares de Sant’Ana Pitteri
O Seminário 18 tem todo um arcabouço lógico que perpassa o 19 e desemboca no 20 e na teoria dos gozos; Lacan parte de Um discurso que não fosse semblante para atingir o que não é semblante – o gozo. “La jouissance, ça, ça existe. Il faut qu´on puisse en parler”. (Lacan ...ou pire, p.226) No Seminário 19 e antes dele no 18, toda a lógica desenvolvida por Lacan prepara o 20, o seminário que teoriza a relação complexa entre amor e gozo, sem deixar de lado o diálogo com Aristóteles. O amor aparece vinculado ao desejo no Seminário 8 (A Transferência), que analisa o Banquete de Platão, mas no 20 esta questão surge na oposição entre gozo fálico e gozo suplementar, o outro gozo. É quando Lacan recorre aos místicos para teorizar, utilizando-se de outra lógica, esta lacaniana. Afinal, ele vai usar nas fórmulas que aparecem no 19 e depois no 20, a lógica dos predicados de Aristóteles, mas não toda. Vai usar, partindo dela, a notação da lógica dos quantificadores e, ao mesmo tempo em que faz uso desta lógica, a subverte: a parte masculina é de origem aristotélica, mas a parte feminina subverte toda a lógica clássica, é totalmente nova. A lógica lacaniana foi criada para teorizar a questão do gozo ou dos gozos, problema para a Psicanálise desde, pelo menos, Análise Terminável e Interminável de Freud. Maria Bernadette Soares de Sant’Ana Pitteri
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JORNADAS DA EBP-SP 2011 [26]
ACONTECE NA EBP-SP
Carla Cristini Bonadio Audi*
Feminização ou Destotalização?
Lacan em Televisão, dispara: “Todas as mulheres são loucas... É por isso mesmo que são não-todas, isto é, não loucas-de-todo...” Lacan misógino? Pas du tout! Absolutamente! Mas, Lacan do pas-tout, do não-todo... Para a psicanálise, o sexo não é natureza, mas efeito do significante. Lacan ressignifica a sexualidade freudiana a partir do conceito de falo e inaugura o conceito de sexuação para além do sexo biológico, cuja anatomia destina o vivente à bipartição entre machos e fêmeas e para além da questão de gênero, feminino e masculino, apoiada nas identificações. Lacan procura na lógica, os instrumentos de uma escrita que lhe permita aproximar o real como impossível e constrói as fórmulas da sexuação, utilizando uma formulação intermediária entre a lógica aristotélica – de classes – e a lógica formal de Frege – de conjunto. A lógica de Aristóteles é uma lógica de classes e atributos e guarda proximidade com a gramática e com a linguagem, que são proposições com sentido. A lógica formal, também chamada de lógica moderna, a partir de Frege, está baseada no sem-sentido e evidencia que a ambiguidade surge pelo uso da linguagem. É por isso que Lacan passa das proposições de Aristóteles ao uso dos quantificadores, num esforço de formalização que busca escapar das armadilhas do sentido. A reformulação do conceito de falo, escrita a partir da função proposicional da lógica de Frege, possibilita a articulação entre o real do gozo – positividade – e a lei da castração – negatividade. Uma função é sempre relação entre elementos de séries disjuntas, e a relação entre falo e gozo se constituirá nas possibilidades de inscrição do parlêtre do lado homem ou do lado mulher na
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Na lógica clássica, a negação só pode recair sobre o predicado e jamais sobre o sujeito. O que Frege introduz com sua lógica formal é a possibilidade de a negação recair sobre o sujeito, o que abre espaço para Lacan desenvolver suas fórmulas da sexuação e o não-todo. Frege introduz os chamados quantificadores na lógica proposicional: universais ( x, para todo x, todo x, qualquer que seja x) e particulares ( x, existe ao menos um,existe x). O que Lacan inaugura é a possibilidade de negação sobre a proposição existencial (“não-existência”), sem se servir do recurso do formalismo lógico, que solucionava o impasse trocando o quantificador existencial pelo universal. Lacan inaugura, ainda, a possibilidade de negar a proposição existencial e a função fálica simultaneamente ao escrever o lado mulher da sexuação: “Não existe ao menos uma que não esteja submetida à lógica fálica”, “não existe mulher que não seja castrada”. Mais ainda: ousa colocar a barra da negação sobre o quantificador universal “não-toda mulher está submetida à função fálica”. Apoiado em Peirce1 – que introduz no quadrante aristotélico o conjunto vazio – conclui que o universal, o todo, necessita de ao menos um, de uma exceção que funde a regra: “A exceção não confirma a regra, como geralmente se diz, ela a exige, é ela que é seu verdadeiro princípio”2. Ainda servindo-se da referência peirceana, de que o universal pode ser uma categoria vazia, Lacan inverte a lógica de Aristóteles e funda a existência a partir dos particulares e não mais dos universais: “...às mulheres se impõe a negação que Aristóteles se recusa a aplicar ao universal, ou seja, serem não-todas...”3 A exceção que funda o universal do lado homem na sexuação é o pai primevo de Totem e Tabu, “o ao menos-um que não está submetido à função fálica”. Esta exceção funda o universal de todos os homens submetidos à função fálica e funciona como limite que permite estabelecer o conjunto do “todo”.
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sexuação. Homem e mulher são possibilidades onde cada ser falante se reparte segundo o modo singular de gozar da castração: um, todo fálico, e outro, não-todo fálico, respectivamente.
Feminização ou Destotalização?
CARLA AUDI
Do lado mulher, “não existe ao menos uma que não esteja submetida à função fálica”. Na falta da exceção do lado mulher, não se pode fundar o universal de todas as mulheres. E é a partir da inexistência do universal que se refere às mulheres que Lacan funda o pas-tout, o não-todo. O não-todo diz respeito à impossibilidade de coletivização, de toda possibilidade de inserção em um conjunto que possa ser percorrido por um operador do tipo (universal). Disto decorre a formulação lacaniana: “A mulher não existe”. A mulher não existe, enquanto entidade simbólica, enquanto possibilidade de circunscrição em um conjunto de “todas as mulheres”. A barra sobre o A indica barrar a universalidade do artigo definido, uma vez que “as mulheres não se prestam à generalização” (LACAN, 1975). “Quando escrevo
esta função inédita na qual a negação cai
sobre o quantificador a ser lido não-todo, isto quer dizer que quando um ser falante qualquer se alinha sob a bandeira das mulheres, isto se dá a partir de que ele se funda por ser não-todo a se situar na função fálica. É isto que define a...a o quê? – a mulher justamente, só que A mulher, isto só se pode escrever barrando-se o A (A). Não há A mulher, artigo definido para designar o universal. Não há A mulher, pois(...) por sua essência ela não é toda. (LACAN, 1972/73 p.98)
Segundo Miller (2003)4, o não-todo deve ser entendido a partir da estrutura de infinito e não de incompletude: “O não-todo de Lacan não tem valor a não ser inscrito na estrutura do infinito e não nessa pobre incompletude que permite somente a primeira referência que eu tinha feito em relação ao ter. O não-todo não é um todo amputado de uma das partes que lhe pertence. O não-todo quer dizer que não se pode formar o todo. É um não-todo da inconsistência e não da incompletude”.
Na teoria dos conjuntos, um conjunto é dito finito (homens) se todos os elementos do conjunto podem ser listados e nomeados, enquanto que nos conjuntos infinitos (mulheres) deve haver uma propriedade que deva ser satisfeita por todos os
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membros – “não existe ao menos uma que não esteja submetida à função fálica” – mas, neste, os elementos do conjunto não podem ser listados, não são enumeráveis, elas devem ser contadas uma a uma.
O pas-tout é uma negação discordante e não foraclusiva. Segundo Damourette e Pichon, a negação discordante é aquela que marca uma diferença, um desacordo. Diferentemente da negação foraclusiva, que diz respeito a fatos aos quais o locutor não considera como formando parte da realidade, a negação discordante considera que aquilo ao qual ela se refere forma parte da realidade, exceto por introduzir nesta realidade matizes decisivos. Assim, a mulher sempre fará obstáculo aos sonhos classificatórios, escapando a toda coletivização que produziria sua essência. A modalidade de inscrição da mulher na função fálica faz com que o universal da mulher constitua um impossível lógico, e que o não-todo seja um outro nome da contingência de sua relação ao falo. “O sujeito se determina a partir de que, não existindo suspensão na função fálica, tudo possa dizer-se dela, mesmo que provenha do semrazão. Mas trata-se de um todo fora do universo, que se lê de chofre a partir do quantificador, como não-todo. (...) O sujeito, na metade em que se determina pelos quantificadores negados, vem de que nada existente constitui um limite da função, que não pode certificar-se de coisa alguma que seja de um universo. Assim, por se fundarem nessa metade, ‘elas’ são não-todas. (LACAN, 1973, p.466)
A contemporaneidade pode ser lida a partir do matema S (A), correlativo à pluralização do Nome-do-Pai e ao Outro que não existe6. O Nome-do-Pai como operador que estrutura o acesso
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O não-todo não expressa que não haja nada, não expressa inclusive inexistência, do ponto de vista foraclusivo, mas antes, que aquilo que há não configura nenhum todo. “O não-todo não é um todo que comporta uma falta, mas uma série sem totalização. O não-todo foi relacionado por Lacan à sexualidade feminina, (…) ligada ao sujeito sem referência do discurso capitalista”5.
Feminização ou Destotalização?
CARLA AUDI
à lei e ao desejo cede lugar ao gozo acéfalo, cuja única lei que reconhece é a do mercado. Há uma passagem daquilo que Lacan chamou do gozo fálico – ligado à exceção, ao Pai – para o Outro gozo, o não-todo (fálico). Isto conduz a uma destotalização, referência ao não-todo do Outro gozo. Trata-se de um outro gozo, um algo mais, um gozo do corpo, suplementar: “Não é porque ela é não-toda na função fálica que ela deixe de estar nela de todo. Ela não está lá não de todo. Ela está lá à toda. Mas há algo mais.”7 A pulverização dos ideais abre espaço para que o sujeito, órfão das referências simbólicas que outrora o norteavam, busque a completude imaginária em objetos mais-de-gozar ofertados pelo mercado, como uma tentativa de escamotear a castração. É o império do gozo, que não conhece limites. Assim também é dito do gozo da mulher. Éric Laurent diz: “uma vez que há dois gozos, já não há o masculino e o feminino, isso é inegável, há o consumidor. No entanto, temos a ruptura com a função fálica, isto é, há pelo menos um lado, já não o masculino e o feminino, mas sim a força fálica do Outro, que não se formula em termos de totalidade mas sim de ruptura. Pelo menos um dos lados do quadro se abandona”. 8
A questão que coloco é se ao se ler a contemporaneidade a partir da lógica da sexuação é correto falar em feminização9, posto que feminino é um critério de gênero e não de sexuação10. Ao utilizarmos um significante que remete à questão dos gêneros ainda estaríamos no reino das identificações, sejam elas simbólicas ou imaginárias. Destotalização não seria a marca da contemporaneidade lida a partir do Real? Haveria então uma imprecisão conceitual ao se fazer equivaler feminização e destotalização? *Carla Cristini Bonadio Audi Psicanalista, diretora da Praxxi, Centro de Pesquisa e Tratamento dos Sintomas Contemporâneos.
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1 LACAN, J. (2006 [1971]) Le Séminaire livre XVIII: D’un discours qui ne serait pas du semblant. Paris: Éditions du Seuil (p. 69) 2 LACAN, J. 14/03/1962, (inédito). 3 LACAN, J. “Televisão”. In. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003 (p. 537). 4 MILLER, J.- A. “Uma partilha sexual” in Revista Clique 02 - Agosto de 2003 5 SOUZA LEITE, M.P. Clínica da cultura: Manifesto de uma psicanálise para o século XXI 6 MILLER, J. -A. “El Otro que no existe y sus comités de ética”. Buenos Aires: Paidós, 2006 (p.10) 7 LACAN, J. (1985 [1972-1973]). O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (p.100)
10 Salvo no caso do substantivo em questão funcionar como adjetivo ao substitutir [(de+mulher) = feminino] .
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMSTER, Pablo (2010) Elementos de Logica para Psicoanalistas in: Comunidad Virtual Russell http://www.comunidadrussell.com LACAN, J. (1985 [1972-1973]). O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. LACAN, J. “Televisão”. In. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003 LACAN, J. (2006 [1971]) Le Séminaire livre XVIII: D’un discours qui ne serait pas du semblant. Paris: Éditions du Seuil LE GAUFEY, G. (2007) “El notodo de Lacan: consistencia lógica, consecuencias clínicas”. Buenos Aires: Ediciones literales MILLER J. -A. (2006) “El Otro que no existe y sus comités de ética”. Buenos Aires: Paidós, SOUZA LEITE, M.P. Clínica da cultura: Manifesto de uma psicanálise para o século XXI, recuperado em 20/10/2011 em www.marciopeter.com.br
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CARLA AUDI
9 Feminizar. (Do lat. Femina, ‘fêmea’, + -izar.) a.Dar feição ou caráter feminino a.b. Atribuir o gênero feminino a. c. Assumir os caracteres da fêmea; adquirir qualidades ou modos feminis. (in: novo Aurélio, O Dicionário da Língua Portuguesa, Século XXI)
Feminização ou Destotalização?
8 MILLER J. -A. “El Otro que no existe y sus comités de ética”. Buenos Aires: Paidós, 2006 (p.307) (Tradução do autor).
Blanca Musachi
Eixo: O não-todo e o gozo
Sutilezas do feminino no século XXI
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- “El espíritu femenino há cambiado? - No me hable de lo que no existe”. Jorge Luis Borges (*) A feminização do mundo ou o Não-todo como forma de organização do mundo – diz Laurent em recente entrevista – assume a forma “fazer cada um ao seu modo”. Nesta forma de organização do mundo, regida pelo Não-todo, o gozo de cada um se apresenta como um direito. Nesse contexto, como são afetadas as mulheres? Na civilização contemporânea do século XXI, PierreGilles Gueguen nos fala do empuxo das mulheres à histeria, mesmo que esse sintoma já não exista no DSM. Isso se apresenta nas mulheres “seja pela identificação histérica ao homem, seja pela acentuação do domínio da mulher mãe sobre a célula familiar”. Mas quais são as condições de possibilidade da análise do feminino mais além da posição histérica do sujeito? Iremos nos servir de uma vinheta clínica, na perspectiva que Miller lançou em 1992, quando propôs uma clínica da posição feminina no discurso analítico. Ele situa a importância de recolher na clínica os fenômenos da experiência do gozo feminino o qual, mesmo que não se possa dizer por que não tem afinidades com o significante, “se diz de outras maneiras”. Estes fenômenos do gozo Não-todo podem situar-se na clínica nas experiências do extravio, de falta de identidade, de fragmentação corporal, de descontrole, etc. Uma jovem mulher busca análise para libertar-se do que ela chama o seu “ser mãe demais”, pois a apavora ver-se de repente como a própria mãe, uma mulher que se esqueceu de si mesma e se tornou mal-humorada. Sintomas da filha mais velha, queixas do marido e sintomas no corpo, colocam em questão a figura de supermãe, Ideal que ela se colocou como meta e que agora perde consistência. Cientista que deixou a profissão para
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É possível situar neste sujeito feminino alguns fenômenos que indicam a presença de um Outro gozo, que a nomeação como mãe não alcança metabolizar. Fazer-se mãe, um modo de fazer-se existir como “A mulher que tem”, a descentra de si, para perder-se na vida das filhas. Aparece de uma forma nada espetacular um “sem limites”, signo de estar fora de si, na forma de um abandono de si nesse “esquecer-se de si mesma”. Outro signo do seu extravio encontra-se no seu mau humor. Marcelo Barros assinala que o mau humor é um capítulo à parte da vida de muitas mulheres e com frequência é a própria mulher que teme a falta de limites a que isso pode levar cada vez que se desencadeia. É o caso deste sujeito que também se vê invadido periodicamente por um silêncio do qual nada pode dizer, silêncio signo desse gozo feminino não localizável pelo saber, que Miller chama antipredicativo: que não se pode falar, que só é possível sentir, experimentar. O elemento extraviado da posição feminina poderá libertar-se com a análise, que oferece essa oportunidade uma vez que o desvio da completude imaginária se mostra uma falsa solução realizada no eixo falo-castração. A questão é então levar ao bemdizer o que “se diz de outras maneiras” desse gozo impossível de negativizar. O bem-dizer implicaria um deslocamento do gozo que não pode ser negativizado, ligado ao falo como letra e não como significação fálica. (*) De uma entrevista em 1932 citada por Marcelo Barros em La condición femenina; Ed. Grama, Bs As,2010;p.60
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ser mãe, se diz presa de um “terrorismo materno”. Acostumada à rotina de mulher cientista bem-sucedida antes da maternidade, diz hoje não se conformar com uma vida de “Luluzinha” com reuniões de mulheres que só falam de filhos, empregadas e shoppings, mas sua alienação em seu “ser mãe demais” a impede de voltar a trabalhar fora de casa. Situa ao lado do que ela chama “os barulhos da maternidade”, um silêncio que a invade periodicamente e do qual nada pode dizer.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Laurent, Éric: “O Supereu sob medida”, in Agente nova série, EBP-BA, set. 2011. http://agente.institutopsicanalisebahia.com.br/entrevista.html Gueguen, P-G: “Hija, madre y mujer en el siglo XXI”, in Revista Colofón 30, Valencia, Nov, 2010. Miller, J-A: “Clínica de la posición femenina”, in Conferencias en España, ELP-RBA, Barcelona,1992. Miller, J-A: “Lo imposible de negativizar”, Sutilezas analíticas, cap. XV, Buenos Aires, 2011. Gorostiza, L.: Entrevista para a Carta de São Paulo Nro. 2, São Paulo, set-out. 2011.
Eixo: O não-todo e o gozo
BLANCA MUSACHI
Barros, Marcelo: La condición femenina; Ed. Grama, Buenos Aires, 2011.
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Samyra Assad
Madame Bovary reescrita nos tempos modernos?
Será que dificilmente afirmaríamos existir no âmbito social, hoje, o tipo clínico Madame Bovary, dada a época em que o romance de Gustave Flaubert1 (1821-1880), consagrado a essa personagem, aconteceu? Publicado em 1857, podemos ver nesse romance, os detalhes inumeráveis que refletiam as roupagens clássicas, a variedade de tecidos suntuosos e sobrepostos no corpo da mulher, nas rendas, cortinas, leitos, carruagens, tudo exposto num cenário que aparenta fazer parte de um passado, de outra cultura, com outros personagens no comércio, na farmácia, na medicina e na política da época... As ressonâncias dessa publicação nas classes conservadoras culminaram num escândalo, do qual adveio um processo no Tribunal de Paris, por ofensa à moral pública e religiosa. Mas, por final, Flaubert foi declarado inocente. O romance que trazia o tema do adultério não foi colocado dentro das celas, tampouco houve mandado para ser recolhido, o que já introduz uma questão referente a esse tipo de julgamento e seu resultado: o quê, efetivamente, fez com que essa obra não se submetesse ferozmente à moral pública e religiosa naquela ocasião, fazendo-a desaparecer? Será que a inocência de Flaubert teria sido atribuída ao conteúdo transmitido em seus escritos e, dessa forma, acertou-se, de alguma maneira, o invariável do gozo, a despeito da subjetividade da época, regida pelas pompas e pela referência simbólica à lei do Pai? Suponho ter sido a intenção do autor, ao escrever esse livro, o que fez “atingir”, ou fazer “passar” algo, exatamente, pelo lugar vazio, feminino, importante, mantido ali. Nesse sentido, recorto os próprios termos do autor: “O que eu gostaria de fazer é um livro sobre nada, um livro sem ligações exteriores, que se mantivesse pela força interna do seu estilo, um livro em que o sujeito ficasse quase invisível, se é que isso é possível”. [36]
ACONTECE NA EBP-SP JORNADAS 2011
O ROMANCE QUE NÃO CALOU, OU DO SEU ECO
Mas, veremos que, no fundo, o fato de Flaubert assumir que “Madame Bovary c’est moi...”, hors écrits, grosso modo dizendo, demonstra, do lado do autor, certa feminização pela arte, ou seja, enquanto escritor, nem homem, nem mulher – uma espécie de dessexualização, um gozo ligado à escritura, no vazio produzido por ela. Madame Bovary c’est moi... Quem? Certamente, cada um que se responsabiliza por esse algo a mais do gozo, a ponto de ser capaz, com isso, sobretudo e finalmente, dizer: “Sim, eu sou isso que não conheço”. Esse nada barulhento do gozo feminino.
SAMYRA ASSAD
Madame Bovary reescrita nos tempos modernos?
Contudo, como conceber esse estilo que, segundo as confissões de Flaubert, permitiria ir mais além da representação (mais além do sujeito do romance) para escrever um não-sentido fundamental? Seria essa a trilha que nos convidaria a ir mais além de dados históricos para, de fato, se chegar a algo invariável do gozo feminino ao longo dos séculos? MATEREAL Logo, como um homem que, de um lado, mais além de ser “apaixonado pela retórica, pelo lirismo, pelos altos voos de águia, por todas as sonoridades da frase e por ideias altas”, ou seja, o lado da semblantização, vemos que, por outro lado – o lado que se extrai aqui – ele “vasculha e escava o real tanto quanto pode, adora mostrar o detalhe de modo tão poderoso quanto o grande fato e gostaria de fazer com que sentissem quase que materialmente as coisas que ele reproduz”2. Materialmente... Desse modo, interessa-me extrair o caráter de transmissibilidade que a estrutura do personagem literário comporta, mesmo depois de quase dois séculos, dada a estranha familiaridade com os casos que nos chegam, pertencentes ao conjunto do qual “Madame Bovary” fez parte. O extremismo do desejo insaciável, a morte por um triz quando o corpo é o veículo para o olhar, a sucessão de amores vagos e a consequente virilização do corpo feminino, o consumo, a mãe desinteressada pelo filho(a), a depressão, o suicídio, enfim, a devastação feminina, não são aspectos raros em nosso dia a dia. Instigante portanto, é perceber nisso que algo se conservou, se considerarmos que, do ponto de vista da psicanálise, os tipos clínicos decorrem de uma estrutura, tal como Lacan diz. Se a estrutura psíquica mantém intacto algo que não passa por uma tradução, ou seja, se há um lugar vazio na estrutura, isso permite que os tipos [37]
Há, portanto, um determinado fracasso que resiste na evolução dos tempos, e hoje, apesar da intolerância radical à falta, da avidez pela satisfação oriunda do consumo, da sede do sempre mais e mais rápido, não se deixa de experimentar algo que diz: “não, não é isso ainda...”. Isso fracassa. Diríamos que o que se conserva se deve à presença de uma hiância insuperável na relação entre os seres, que causa os eternos e variados encontros com os desencontros, sob o pano de fundo da pulsão de morte. LENDO NÃO SÓ O ROMANCE, COMO TAMBÉM A POESIA Parece ser isso que Emma Bovary nos transmite com a sua fantasia, ao passo que todo o percurso a partir do seu casamento interiorano e insosso com o bondoso médico Charles Bovary (na sede inusitada e contingente de poesia nisso tudo, roguei para que fosse Baudelaire), levoua a buscar sempre mais no âmbito das aventuras amorosas e selvagens que tonificariam, na melhor das hipóteses, o seu desejo insatisfeito. Foi assim que ela se sentiu espancada pela vida, sua amargura se intensificou, as rugas lhe vieram com ferocidade e sua depressão se instalou durante algum tempo – ela foi morrendo aos poucos, ainda que algumas luzes se acendessem de vez em quando, trazendo para o palco da desilusão amorosa, uma cor fugaz da promessa de felicidade através de parceiros intensamente ocultos (Rodolphe e Leon). Estes, sucessivamente, selavam cada vez mais, a impossibilidade de se fazer dois em um, mas de um modo trágico, trazendo assim, via virilização do corpo feminino, a disjunção entre o amor e o gozo sexual. Não há o Um fusional e sim a sua seriação, voltada para o infinito3, sob o tom de que o amor, para Emma Bovary, (cito Flaubert), “devia surgir de repente, com ruídos e fulgurações, tempestades dos céus que cai sobre a vida e a revolve, arranca as vontades como folhas e arrebata para o abismo o coração inteiro. Ela desconhecia que nos terraços das [38]
ACONTECE NA EBP-SP JORNADAS 2011
que dela decorrem retornem hoje com outras vestimentas. Independentemente disso, o que se transmite, enfim, é o real da estrutura, ainda que hoje o corpo esteja mais desvestido, e sua pele grite mais alto no século XXI. Nem sempre ela é salva. Não dá tempo para isso. A morte sobrevém, quando esse vazio impossível de ser nomeado não tem a saída de ser encarnado, de alguma forma, ou através de alguma fôrma, singular.
casas a chuva forma poças se as calhas estão entupidas, de forma que ficou de sobreaviso, até que um dia descobriu uma fenda na parede”4. De forma poética, Flaubert deflagra através da sua personagem, algo que vai mais além de uma insatisfação, chegando assim à devastação feminina, onde o ilimitado do gozo apontaria o lado feminino do não todo.
SAMYRA ASSAD
Madame Bovary reescrita nos tempos modernos?
Como se isso não bastasse, Emma fez um câncer que depois foi sanado. Ela sempre se inspirava com a esperança de acontecer a presença de um homem em sua vida que a arrebatasse toda num beijo. Como diz Flaubert, “ela sofria uma grande queda e tudo se despedaçava; porque aqueles impulsos de amor vago a fatigavam mais que a lascívia da libertinagem”5. Seu desejo de morte insistia, a meu ver, assim retratado pelo autor: “Não é bom tocar nos ídolos; o dourado pode sair em nossas mãos”6. Assim, encarnando o real da estrutura, dando a fôrma para o vazio inominável através dos seus escritos, parece ter sido dessa maneira que Flaubert conseguiu transmitir, por outro lado, o modo pelo qual a personagem, por sua vez, lidou com o insuportável inerente a isso, eternizando o seu ser de gozo pela via da tragédia, através da sua morte por envenenamento: “Madame Bovary” permanece como traço do gozo feminino ou nome no conjunto da literatura. Ela seria reescrita hoje, ou reapresentada no cotidiano, a partir do qual, podemos indagar, “o desejo insaciável pode ser comparável à anorexia simbólica?7. Ainda que a resposta aqui me leve a afirmar que sim, só poderíamos admitir as exceções que compõem um todo universal. Basta sondar o porão, ou mesmo o sótão, nas calhas do coração, e, se houver coragem, reescrever o destino. 1 VASSALO, Sara – “Sartre et Lacan – Le verbe être: entre concept et fantasme – preface de François Regnault”, Paris, Ed. L’Harmattan, 2003, pág. 274. Tradução livre. 2 FLAUBERT, G. – op. cit., p. 07. 3 Sobre esse aspecto, ver MILLER, J-A. – in omnia vincit amor (l’amour triomphe de tout), veiculado pela EBP-VEREDAS na internet, extraído do “Point de Vue”, em 25/05/2011. 4 FLAUBERT, G.: op.cit, p. 108. 5 Idem, p. 291. 6 Idem, p.282. 7 VASSALO, Sara - op. cit., p. 263. Aqui Emma Bovary é comparada a Mazza, uma personagem de outro escrito de Flaubert em seus vinte anos de idade, Passion et Vertu. “As mortas de fome que não se nutrem”.
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ACONTECE NA EBP-SP
SEMINÁRIOS DECLARADOS À EBP-SP
Título do Seminário: “Os órgãos e o corpo: como lê-los?” Responsável: Paola Salinas (membro da EBP e AMP) Datas: 10 e 31 de maio, quintas-feiras, quinzenalmente, às 19h30m Local: Centro Médico de Ribeirão Preto. Rua Tomaz Nogueira Gaia - nº 1275, sala 1, Ribeirão Preto-SP Informações: 3635-6906 ou paolasalinas11@yahoo.com.br
Título do Seminário: “Feminilidades” Responsável: Silvia Sato Datas: 4 e 11 de abril; 2 e 16 de maio e 13 de junho, quartas-feiras, às 19h Local: Livraria Cultura Rua Marcondes Salgado - nº 1541, Ribeirão Preto-SP Informações: 8156-5607
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JORNADAS DE CARTÉIS 2012 [42]
JORNADAS DE CARTÉIS DA EBP-SP 2012 & Conferência Preparatória ao XIX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano O mal-entendido entre os sexos
Conferência: Novas sinalizações do empuxo-à-mulher O século XXI abriu novas perspectivas sobre o regime de gozo do aparelho corporal. As novas tecnologias romperam definitivamente a barreira entre a anatomia e o design. Até que ponto, no novo contexto, é possível confirmar o veredicto freudiano de que a anatomia é o destino? Em 1972, Lacan, em seu texto o Aturdito, cunhou a expressão empuxoà-mulher para formalizar a lógica da posição sexual nas psicoses. Nossa proposta é interrogar até que ponto a forclusão do sujeito pelo discurso da ciência se aproxima do empuxo-à-mulher, no tratamento que dá à diferença sexual. Trata-se de um empuxo generalizado ou simplesmente de uma erótica para os tempos modernos? (M.V. 10.4.2012) Convidado: Marcelo Veras AME da EBP e da AMP - Diretor Geral Adjunto da EBP - Diretor do XIX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano e Diretor da FAPEX 16 de junho, sábado, das 9 às 19h Hotel Transamérica Flat 21st Century Alameda Lorena, 473 - Jardins, São Paulo
Inscrições e Informações: Escola Brasileira de Psicanálise - SP ebpsp@uol.com.br + 55 11 3081 8947 // 3063 1626 Rua João Moura, 627/647 - cj. 193 CEP 05412-001 - São Paulo - SP
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Sobre os Cartéis e suas Jornadas I - Da Comissão de Cartéis
1. Como de praxe, a produção dos Cartéis da EBP-SP, os pequenos achados, as articulações pessoais elaboradas ao longo do trabalho. A oportunidade servirá especialmente para apresentarmos os efeitos de formação de um cartel no Campo Freudiano, de forma que se possa destacar a particularidade do saber psicanalítico, diferente do saber universitário, que pode ser produzido no cartel. 2. Uma Conferência Preparatória ao XIX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, cujo tema é Mulheres de hoje – Figuras do Feminino no Discurso Analítico, será proferida por Marcelo Veras, convidado especial da EBP-SP e Diretor do XIX Encontro, que trabalhará Novas sinalizações do empuxo-à-mulher: “O século XXI abriu novas perspectivas sobre o regime de gozo do aparelho corporal. As novas tecnologias romperam definitivamente a barreira entre a anatomia e o design. Até que ponto, no novo contexto, é possível confirmar o veredicto freudiano de que a anatomia é o destino? Em 1972, Lacan, em seu texto O aturdito, cunhou a expressão empuxo-àmulher para formalizar a lógica da posição sexual nas psicoses. Nossa proposta é interrogar até que ponto a foraclusão do sujeito pelo discurso da ciência se aproxima do empuxo-à-mulher, no tratamento que dá à diferença sexual. Trata-se de um empuxo generalizado ou simplesmente de uma erótica para os tempos modernos? (M. V. 10.4.2012)
3. Compõem a Comissão Organizadora (Comissão de Cartéis): Carla Cristini Bonadio Audi, Cássia Maria Rumenos Guardado, Daniela de Camargo Barros Affonso, Eliane Costa Dias, Leny Magalhães Mrech, Maria Margareth Ferraz de Oliveira, Marilsa Basso, Patrícia Badari, Rômulo Ferreira da Silva e Veridiana Marucio.
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ACONTECE NA EBP-SP JORNADAS DE CARTÉIS 2012
Comunicamos que as Jornadas de Cartéis da EBP-SP, a se realizarem no dia 16 de junho de 2012 [sábado], serão também preparatórias ao XIX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano (23 e 24 de novembro de 2012 – Salvador). Organizada com a possibilidade de contemplar dois eventos, a Jornada de Cartéis apresentará:
II - Da Comissão Científica A Comissão Científica, juntamente com os “Mais-um” dos Cartéis, orientará a apresentação dos trabalhos: 1. Data limite para entrega dos trabalhos: 1.o de junho de 2012; 2. O trabalho deverá conter 4 000 (quatro mil) caracteres no máximo, incluídos espaços e referências bibliográficas; 3. O tipo utilizado deverá ser Arial 11; 4. O espaço entre as linhas, de 1,5, e o alinhamento do texto “justificado”;
É TEMPO DE CARTÉIS
5. Notas e referências bibliográficas serão listadas no fim; 6. O tema a ser apresentado, o nome e o e-mail do autor constarão antes do título; 7. Os trabalhos serão publicados em brochura, para circulação durante as Jornadas (motivo pelo qual solicitamos observância da data de entrega); 8. Por solicitação da EBP, os trabalhos também serão encaminhados para publicação em Dobradiça – Boletim Eletrônico dos Cartéis da EBP, desde que autorizado pelo autor. 9. Os textos deverão ser enviados aos membros da Comissão Científica: Cássia Maria Rumenos Guardado – cmrguardado@uol.com.br; Daniela de Camargo Barros Affonso – danielacbaffonso@uol.com.br; Heloisa Prado R. da Silva Telles – helotelles@uol.com.br; Maria Margareth Ferraz de Oliveira – margarethferraz@uol.com.br;
Notas: As inscrições para as Jornadas estão abertas, embora condicionadas ao espaço existente no local. Não haverá taxa de adesão. Os interessados já podem efetivar suas inscrições com o Anselmo através do e-mail da EBP-SP – ebpsp@uol.com.br ou pelos telefones +55 11 3081 8947 // 3063 1626.
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III – Cartéis em funcionamento CORPO E GOZO Rubrica: Leitura: conceitos fundamentais Início: 10 de fevereiro de 2011 Paola Salinas (Mais-Um)
Membro EBP/AMP O intratável do gozo
Armando Paulo Toniolo Cartelizante
Como esse corpo adoece? Que gozo há no adoecimento?
Betina Matarazzo
Cartelizante
Da boneca à invenção
Elisabeth Paschoalino
Cartelizante
Corpo, sintoma e gozo
Maria da Conceição Saldanha de Castro
Cartelizante
Paradoxo do gozo: abolição da subjetividade
Carmen Sílvia Cervelatti (Mais-um)
Membro da Escola (SP)
A generalização do sonho
Maria Wedna Tabosa Henrique
Cartelizante
Como o analista pode operar na clínica do delírio generalizado?
Eliane Chermann Kogut
Cartelizante
Qual a utilidade do conceito de delírio generalizado frente aos novos sintomas?
Griseldis Laura Achoa
Correspondente (SP)
A depressão generalizada e as pílulas da felicidade
Cláudia Aldigueri
Correspondente (SP)
O trauma da relação com a língua
O FEMININO Rubrica: Clínica: teorias e práticas Início: março de 2010 Maria Josefina Sota Fuentes (Mais-Um)
Membro da Escola (SP)
Nomeações ao feminino
Cynthia Nunes de Freitas Faria
Cartelizante
Masoquismo e devastação
Carlos Eduardo T. Murakami
Cartelizante
As mulheres e a passagem ao ato
Renata de Carvalho Duarte
Cartelizante
Devastação feminina e angústia
Mary Ellen Dias Barbosa
Cartelizante
A falta-a-ser na histeria
PSICANÁLISE COM CRIANÇAS Rubricas: Clínica: teorias e práticas Início: 01 de novembro de 2010
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Cristiana Chacon Gallo (Mais-Um)
Membro EBP/AMP
A psicanálise com crianças e a formação do analista Psicose e o infantil
Claudia Manaia Moreira
Cartelizante
José Danilo Canesin
Cartelizante
O brincar, o objeto e o gozo
Neusa Gomes
Cartelizante
Metáfora paterna e construção do sujeito no laço social
Thais Maria Pimenta e Souza Cartelizante
A escuta do analista no tratamento com crianças: escutar a criança e os pais
ACONTECE NA EBP-SP JORNADAS DE CARTÉIS 2012
FORACLUSÃO GENERALIZADA Rubrica: Clínica: teorias e práticas Início: agosto de 2010
É TEMPO DE CARTÉIS
PSICANÁLISE E INSTITUIÇÃO Rubricas: Clínica: teorias e práticas Início: março de 2011 Eduardo Benedicto (Mais-um)
Membro da escola Parceiro-sintoma na clínica do (SP) contemporâneo
José Renato F. da Cunha
Cartelizante
As normas da instituição e o desejo do praticante
Maíra Tumbioli Tosii
Cartelizante
O olhar da psicanálise na instituição: qual espaço para singularidade do sujeito?"
Thaís M. Pimenta Souza
Cartelizante
Atuação do psicanalista na instituição
Lucas Vinco
Cartelizante
Possibilidades do trabalho analítico diante do olhar institucional
Vagner Arakawa
Cartelizante
Qual a razão da escolha pela psicanálise no contemporâneo?
SEMINÁRIO X - A ANGÚSTIA Leitura: Clínica: teorias e práticas Início: 01 de novembro de 2010 Cássia M. R. Guardado (Mais-um)
Membro da Escola (SP)
O significante como corte no Seminário X
Maria de Fátima S. Luzia Correspondente O objeto a como dejeto, residuo da (SP) significação fálica e sua relação com a angústia, o gozo e a coisa no tratamento e na civilização Marilsa Basso
Correspondente A angústia na direção do tratamento (SP)
Regina Puglia
Cartelizante
A manifestação da angústia nas estruturas clínicas e sua diferença em relação a outros sentimentos
Valéria Ferranti
Cartelizante
O estatuto do objeto do fantasma após o Seminário X - A Angústia
TOXICOMANIA E PSICANÁLISE Rubrica Clínica: teorias e práticas Início: 11 de fevereiro de 2012 Durval Mazzei (Mais-um)
Aderente
Lugar da psicanálise no tratamento da toxicomania
Eliana Lima Guerra Nunes
Cartelizante
Toxicomania e o feminino
Angelino Bozzini
Cartelizante
Toxicomania e educação
Letícia Pedrozo
Cartelizante
Toxicomania e a psicose
Daniel Palaio
Cartelizante
Toxicomania e o gozo
Claudia Aldigueri
Cartelizante
Toxicomania e gozo contemporâneo
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A PSICANÁLISE E O GOZO FEMININO NA CLÍNICA ATUAL Rubrica Clínica: teorias e práticas | Início: setembro 2011 Sandra Arruda Grostein Membro O corpo afetado pelo gozo (Mais-Um) EBP/AMPe Sergio Prudente Cartelizante O aspecto do gozo na vergonha Gisele Lins do Prado Cartelizante O tratamento do gozo na análise Cláudia Aldigueri Rodriguez Correspondente A escolha do sexo e o gozo feminino Eliane Costa Dias Cartelizante O gozo e o feminino e os acontecimentos de corpo Emanuelle Garmes Pires Cartelizante Por que as mulheres bebem tanto no século XXI? PASSE E FINAIS DE ANÁLISE: QUESTÕES PARA O FEMININO Rubrica: Clínica | Início: setembro de 2011 Maria do Carmo Dias Membro Final de análise, sinthoma e feminização Batista (Mais-Um) EBP/AMP do gozo Edson Gusella Jr. Cartelizante O gozo feminino nos finais de análise depoimentos de passe Paula C. Verlangieri Caio Cartelizante Construir algum conhecimento sobre o gozo feminino Marcelo Fabri de Carvalho Cartelizante O gozo feminino e as posições sexuadas dos falantes Rodrigo Fernandez Cartelizante O passe na Escola de Lacan: qual relação com o feminino? O sintoma e a questão da cura Rubrica: Clínica: teorias e práticas | Início: fevereiro de 2012 Fernando Prota Membro Como podemos entender a noção de cura ao final (Mais-Um) EBP/AMP de uma análise? O que testemunham disso os relatos de passe? Marcos A. Nogueira Cartelizante O que é afinal a cura? E o que realmente acontece com a produção de sintomas na cura, uma vez que é impossível ao ser humano deixar de produzir sintomas? Carlos Ferreira Cartelizante A psicanálise funciona? Lucilena Bestetti Cartelizante A partir da manifestação no corpo(no real) dos sintoAlves mas (o que na medicina se dá como psicossomática), questiono como a experiência de análise "reflete nisso", para o analisando em sua demanda de cura? Edison Flora Cartelizante Quais as possibilidades e limites da interpretação na cura?
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ACONTECE NA EBP-SP JORNADAS DE CARTÉIS 2012
A CLÍNICA DO AUTISMO Rubrica: Teorias e práticas | Início: agosto de 2011 Rômulo Ferreira da Silva Membro EBP/AMP As respostas da psicanálise para um (Mais-Um) clínica do autismo Heloisa Prado Telles Membro EBP/AMP Clínica diferencial entre autismo e psicose Rosângela de Faria Cartelizante Tempo e linguagem na clínica com crianCorreia ças autistas Valéria Ferranti Cartelizante Como pensar a sexualidade como limite à pulsão no autismo? Siglia Leão Cartelizante Diagnóstico diferencial entre psicose e autismo
IV – ProcuraM-se Cartéis 1. Ana Paula Sartori – (apcsartori@uol.com.br) Tema: ... ou pior 2. Cilaine Alves – (cilaine@usp.br) Tema: Arte e psicanálise 3. Cláudia Renó Monteiro (São J. dos Campos) (claudiareno@hotmail.com) Tema: Objeto a 4. Daniela de Camargo Barros Affonso – (danielacbaffonso@uol.com.br) Tema: A ética da psicanálise na ordem simbólica do século XXI
É TEMPO DE CARTÉIS
5. Fábio Camarneiro – (camarneiro@uol.com.br) Tema: Arte e psicanálise: apenas uma mulher 6. João Gonçalves Vilela Leandro – (vilelaleandro@hotmail.com) Tema: Seminário 23: O sinthoma 7. Maria de Lourdes Mattos – (lourdesmattos@uol.com.br) Tema: Ordem simbólica no século XXI 8. Maria Bernadette Soares de S. Pitteri – (m_bernadettep@yahoo.com.br) Tema: Analista cidadão no século XXI 9. Marta Maria Rogrigues Ferreira – (hdlink_marta@hotmail.com) Tema: Corpo, gozo e saber 10. Maria Noemi de Araújo – (noemi.araujo@globo.com) Tema: Arte e psicanálise: apenas uma mulher 11. Mônica Bueno de Camargo – (monibca@uol.com.br) Tema: Ordem simbólica no século XXI 12. Rejane Arruda – (rejane.arruda@usp.com.br) Tema: Arte e psicanálise: apenas uma mulher 13. Silvana de Oliveira – (silvanadeoliveira@uol.com.br) Tema: Seminário 23
Maria Margareth Ferraz de Oliveira Diretora de Intercâmbio e Cartéis da EBP-SP (2011-2013)
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ACONTECE NA EBP-SP
Maria Helena Barbosa
Comentário sobre o Seminário do Conselho Dando prosseguimento à leitura e discussão do Seminário 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, o Conselho da Seção São Paulo convidou Ariel Bogochvol para trabalhar o conceito da repetição. Iniciou sua apresentação situando o contexto em que aconteceu este seminário (1964). O fato de ser imediatamente pós-excomunhão de Lacan da IPA, a mudança de local e de audiência (abre seu seminário para o público em geral), a fundação da Escola Freudiana neste mesmo ano, a mudança na forma de desenvolvê-lo na medida em que, se antes ele tomava uma obra de Freud como referência, isto deixará de ocorrer. Lacan procederá a uma virada radical e decisiva na história da psicanálise e na sua orientação. O seminário parece ser um tributo a Freud, mas vai além, posto que introduz seus próprios conceitos. Para tratar o tema, Ariel tomou Silet como referência, partiu das aulas IV e V do Seminário 11 e, concluindo com o Seminário 17, O avesso da psicanálise, destacou e desenvolveu a articulação entre a repetição e a conexão S1-S2. A partir do artigo freudiano, Recordar, Repetir e Elaborar, Lacan destaca a função da repetição como a relação do pensamento com o real. A repetição se introduz em referência à rememoração que só marcha até certo limite – o real. O real é o que retorna sempre ao mesmo lugar onde o sujeito, na medida em que cogita, res cogitans, não o encontra. A repetição aparece em ato e no lugar de uma recordação. Aponta que, em Para além do princípio do prazer, a repetição aparece inicialmente associada à neurose traumática que reproduz em sonho a cena traumática. Problematiza a função da repetição neste sonho uma vez que não se pode justificá-lo do ponto de vista do
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princípio do prazer, assinalando a evidência da divisão subjetiva onde a repetição aparece como enigma na bipartição entre o princípio do prazer e da realidade. O que se passa só pode ser concebido no nível do funcionamento mais primitivo, aquele em que se trata de obter a ligação da energia. É o trauma como o inassimilável e motor da repetição.
Reinterpretando estes conceitos, Lacan relaciona a tiquê ao encontro sempre faltoso com o real que escapa e que vige por atrás do autômaton que é a rede de significantes, o discurso do Outro, a insistência dos signos. Desta forma, o seminário introduz uma clivagem na repetição: há repetições e repetições. A repetição, em si mesma, constitui a diversidade mais radical. Autômaton e tiquê corroboram a oposição entre estrutura e contingência, cada um comprometendo uma dimensão específica da lei do azar, seja como o destino, seja como o inesperado. Por um lado, o que se repete é algo que se produz por acaso, apresentado sob a forma de traumatismo, como falta de representação e que demanda o novo. Por outro, a repetição como o retorno dos mesmos significantes que dão prova do inconsciente, obedecendo às leis da determinação simbólica que tornam sensível esse lugar do sujeito como as-sujeitado à insistência da cadeia significante. Lacan diferencia repetição e transferência. Referenciando estes conceitos ao inconsciente como estrutura temporal, de pulsação entre abertura e fechamento, situa a transferência no imaginário, enquanto que a repetição fica situada no simbólico e no real. A transferência aparece como fechamento do inconsciente, de inércia, de estase, de estagnação da dialética simbólica. Ao mesmo tempo, é obstáculo à rememoração e presentificação, colocação,
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ACONTECE NA EBP-SP SEMINÁRIOS DO CONSELHO
Lacan introduz as noções aristotélicas de tiquê e autômaton, relacionadas à teoria das quatro causas. Para Aristóteles, a tiquê é o encontro, ao acaso, de duas séries causais independentes e autômaton é aquilo que se move por si só.
em ato, da realidade do inconsciente, de sua realidade sexual. Lacan concebe o fechamento do inconsciente pela incidência de algo que desempenha o papel de obturador – o objeto a. A transferência presentifica o objeto a. A transferência aparece como tiquê da repetição.
Comentário sobre o Seminário do Conselho
Maria Helena Barbosa
Cabe ressaltar que, ao presentificar o objeto a na transferência, Lacan opera uma passagem do gozo, antes situado no imaginário, para o real. É a permanência do real, no mesmo lugar, apesar da dinâmica dialética do significante. Já a repetição aparece essencialmente ligada à abertura do Ics. A repetição implica no contínuo decepcionar-se com o encontro com o objeto que a transferência presentifica. É a relação da repetição com o objeto, com o esforço para encontrar o objeto perdido, continuando a visá-lo e, ao fazê-lo, não o encontra. Vai em direção a um real em relação ao qual ela falha. É a falta, sempre no momento preciso, do bom encontro. Finalizando, Ariel se remeteu ao Seminário 17 que aborda a relação do significante e do gozo através do Um, do traço unário. Lacan trabalha essa relação a partir da conexão S1-S2 onde o S2 é uma tentativa de fazer ressurgir o S1. Nesta tentativa, entre os dois significantes, por um lado, surge o sujeito – efeito de discurso e, por outro, aí opera a perda, essa função do objeto perdido. Neste seminário, o que Lacan chama de saber, S2, é a repetição na medida em que ela se relaciona com o gozo. Por mais simbólica que seja a repetição, ela é determinada pelo trauma e se estrutura em torno de uma perda numa insistência que ao se repetir não coincide com isso que repete – é a repetição de um fracasso. Repercute, ao mesmo tempo, a simbolização do gozo e sua anulação. É a repetição como memória do objeto perdido, um resto de gozo, irrupção de gozo. É a insistência do simbólico articulado a um elemento excêntrico, não preso à cadeia, onde reside o nascimento do sujeito sustentado na dialética que mantém com o gozo. No limite, os quatro conceitos podem ser reduzidos à relação do sujeito do Ics com o gozo sexual.
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No Seminário 11, Lacan trabalhou os conceitos fundamentais da psicanálise, o inconsciente, a repetição, a transferência e a pulsão, aproximando-os e diferenciando-os. Neste momento, ele encerrou o período considerado como “o retorno a Freud” e fez um conceito conversar com outro, num movimento de retomada dos destinos que anteriormente sofreram na psicanálise. Também os atualizou desde a perspectiva dos pós-freudianos e da própria teorização precedente. Atravessar este Seminário de uma só vez exige um movimento de vai e vem, nesta dança entre os conceitos, pois nos deixa frente à rata: algo rateia. Para organizar esta leitura sobre o conceito de transferência foi necessário acompanhar o movimento de Lacan, num ir e vir entre os capítulos. Ele trabalha o conceito de transferência principalmente em dois momentos, nos capítulos X e XI e, ao final, nos capítulos XVII, XVIII, XIX e XX, tendo o conceito de pulsão no entremeio. Um nó a desatar, como a transferência: a transferência é um nó [126], um nó radical [128], um nó górdio [129], fenômeno nodal do ser humano [219], como disse Lacan. Um nó górdio significa um problema complexo que se resolve de maneira simples. Uma forma de entender a transferência como nó górdio reside no uso deste conceito freudiano pelos pós-freudianos, que privilegiaram suas faces negativa e positiva, equivalendo transferência e repetição. Lacan diferencia estes dois conceitos, dando à transferência um estatuto de atualização e não de repetição de conteúdos inconscientes recalcados atuados na relação com o analista; pensava-se que aquilo que não pode ser rememorado era repetido na conduta, repetido também com o analista. O nó górdio também se refere à transferência na experiência analítica? Seria algo que se passa numa análise, um nó que se desataria em seus confins – liquidação da transferência para alguns – simplificando a vida do sujeito, depois da experiência terminada? Esta é uma interrogação motivada pela afirmação de Lacan de que este conceito é determinado pela função que tem na práxis; ele determina o modo de tratar os pacientes, e é isso que comanda a transferência. [120]
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ACONTECE NA EBP-SP SEMINÁRIOS DO CONSELHO
Carmen Silvia Cervelatti Uma leitura sobre a Transferência no Seminário 111
Transferência e inconsciente
Uma leitura sobre a Transferência no Seminário 11
Carmen Silvia Cervelatti
O conceito de transferência está enlaçado ao de inconsciente. A presença do analista é uma manifestação do inconsciente [121] .Se o inconsciente é pulsátil, abre para em seguida fechar, como aqui ele propõe, a transferência seria revelação de uma verdade (abertura) ou enganação (fechamento)? Ou é revelação e enganação? Freud formulou o inconsciente a partir de suas formações (sonhos, atos falhos, chistes e sintoma). Nelas, ao modo do tropeço, nada se esclarece propriamente, pois na transferência analítica, seu surgimento convoca o sujeito a secretar sentido a partir do que emerge da hiância, da fenda aberta no instante mesmo, para no instante seguinte fechar. Por isso, a interpretação aponta ao equívoco, demonstrando a razão do inconsciente como pura pulsação, e convoca o analisante a produzir o sentido naquilo que falta sentido. Isso nos remete ao Prefácio à edição inglesa do Seminário 11 (1976) onde Lacan diz que é somente quando o “espaço de um lapso já não tem mais impacto de sentido (ou interpretação), só então temos certeza de estar no inconsciente”2. As formações brotam da fenda, da falha do inconsciente, possibilitam o sentido, mas aí não se está mais no inconsciente. Não podemos dizer que Freud teorizou o inconsciente desta maneira; Lacan sim lhe deu o estatuto de real. A presença do analista não é necessária para que se produzam formações do inconsciente, mas somente sob transferência isso pode ganhar sentido e ter efeitos. Sob transferência, um saber é construído. Em sua leitura sobre este Seminário, Miller comentou que na experiência analítica, contrariamente ao discurso comum, “dizemos ‘é isso’ quando um lapso ou uma falha ocorrem. É o que Lacan chama de sujeito. Ele tenta apresentar o inconsciente como algo que é ao mesmo tempo uma modalidade do nada e uma modalidade do ser. É um estranho tipo de ser que aparece quando não deveria: precisamente quando uma intenção estranha está sendo realizada. Lacan optou por enfatizar o inconsciente como sujeito, um sujeito que não tem substância, que é um tropeço, já que não se encaixa, mas se expande para preencher o próprio desejo.”3 Miller diz que neste Seminário Lacan apresenta o inconsciente como sujeito, repetição, transferência e pulsão.
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Transferência não é repetição
Seguirei o conselho de Miller quando diz que para compreender o Seminário 11 devemos ligar a transferência à realidade, ilusória, e a repetição ao real, aquilo que não engana. O inconsciente como transferência é algo que ilude, que engana. O sonho da Bela Açougueira sempre é um bom exemplo – Lacan o trabalha, sobretudo no texto A direção do tratamento e os princípios de seu poder e no Seminário 5. É um sonho que a paciente disse ter produzido para provar a Freud que o sonho não é a realização de um desejo, uma frase denegativa. Um meio de tentar satisfazer alguma coisa em seu analista através do sonho, dando consistência ao desejo do analista, tomando-o como desejo de Freud, um desejo baseado em sua doutrina. Sujeito suposto saber e o desejo do analista Para tecer suas considerações sobre o Sujeito suposto saber, Lacan abordou Descartes com o seu sujeito suposto saber: o desejo de certeza levou-o à dúvida, num movimento que deve ser a cada vez e para cada um, repetido; para assegurar-se de que não há um Deus enganador precisou passar por um ser infinito. Na psicanálise o sujeito suposto saber é o analista [213], e não é necessário um ser perfeito e infinito para que se introduza a função de Sujeito suposto saber. O analista não é Deus para seu paciente. O que ele deve obter é a confiança necessária para que a experiência aconteça, se estabeleça. A transferência é um fenômeno essencial, ligado ao desejo como fenômeno nodal do ser humano[219]. Lacan demonstrou isso no Seminário 84 mediante o texto de Platão dedicado ao debate sobre o amor, “O banquete”. O momento que Lacan localiza como essencial para a questão da ação do analista é aquele em que é dito que Sócrates nada quis saber, a não ser o que diz respeito a Eros, quer dizer, o desejo. Com isso, Platão teria indicado o lugar da transferência. Neste diálogo de Platão, cada um fala sobre o que considera como éromenon, como desejável no outro. Alcebíades compara Sócrates [56]
ACONTECE NA EBP-SP SEMINÁRIOS DO CONSELHO
Para Lacan, o conceito de transferência diferencia-se do conceito de repetição, pois neste Seminário a repetição foi desenvolvida como rede de significantes e como real. A transferência atualiza uma rata. Transferência e repetição são aspectos diferentes do inconsciente; a transferência é “atualização da realidade do inconsciente” [139] e não repetição, não é uma “restauração” do que estava oculto no inconsciente. Real e realidade não se confundem.
Uma leitura sobre a Transferência no Seminário 11
Carmen Silvia Cervelatti
com o Sileno5, que continha em seu interior o agalma6. Foi isso que provocou o amor de Alcebíades. O agalma é o nome do objeto parcial, objeto que causa o desejo, objeto a na medida em que ele é o pivô, o centro, a chave do desejo humano. Com isso, podemos entender quando Lacan disse, no Seminário 11: é com este objeto, o objeto a, que o inconsciente se fecha, ele tem papel obturador. O fechamento que a transferência comporta é causado pelo a [128]. “A transferência presentifica o fechamento do inconsciente” [138], afânise do sujeito. Mas também presentifica o momento de apreensão de um desejo, diante do qual o desejo do sujeito faz junção ao desejo do Outro, como numa banda de Moebius: pela pergunta O que o Outro quer de mim? Che vuoi? Instala-se o enigma. “O desejo do Outro é apreendido pelo sujeito naquilo que não cola, nas faltas do discurso do Outro” [203], por isso o “desejo do sujeito se constitui no ponto de falta” [207]. A entrada em análise se dá a partir desse suporte fundamental – “o sujeito é suposto saber, somente por ser sujeito do desejo”. O Sujeito suposto saber trata-se de “um ponto absoluto por não ser nenhum saber, e sim o ponto de encaixe que liga seu desejo mesmo àquilo que se trata de revelar”[239]. O efeito disso é amor, campo narcísico, que se opõe à revelação. Amar é querer ser amado. O amor tem efeito de tapeação. O Sujeito suposto saber produz o amor. Então, transferência é enganação, mas ela permite que um saber seja construído pela junção do desejo do sujeito com o desejo do analista. Freud já o disse, nada pode ser atingido in absentia, in effigie – razão da transferência. A transferência “não é a sombra de algo que tenha sido vivido antigamente. Muito ao contrário, o sujeito, enquanto assujeitado ao desejo do analista, deseja enganá-lo dessa sujeição, fazendo-se amar por ele, propondo por si mesmo essa falsidade essencial que é o amor. O efeito de transferência é esse efeito de tapeação no que ele se repete presentemente, aqui e agora” [240]. Porém, por trás do amor de transferência há um laço entre dois desejos, o do paciente e o do analista, que se diferem. Este é o salto de Lacan neste Seminário: passar do amor imaginário ao laço social próprio a uma análise. Para formular que o desejo de que se trata é o desejo do analista e não o desejo de alguém, da pessoa, Lacan traz o exemplo de Ana O. e Breuer, donde se descobriu a transferência. Breuer estava encantado com a tagarelice da limpeza de chaminé de Bertha. A
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Sobre o desejo do analista: “A formação do psicanalista exige que ele saiba, no processo que conduz seu paciente, em torno do quê o movimento gira. Ele deve saber, a ele deve ser transmitido, e numa experiência, aquilo de que ele retorna. Esse ponto pivô é... o desejo do psicanalista.”[218]. “Enquanto o analista é suposto saber, ele é suposto saber também ir ao encontro do desejo inconsciente. É por isso que eu digo que o desejo é o eixo, o pivô, o cabo, o martelo graças ao qual se aplica o elemento força, a inércia que há por trás do que se formula primeiro no discurso do paciente como demanda, isto é, a transferência. O eixo, o ponto comum desse duplo machado, é o desejo do analista... um ponto que só é articulável pela relação do desejo ao desejo.”[222] No último capítulo “Em ti mais do que tu”, além de remeter ao próximo Seminário, Lacan retoma o objeto a. O analisante diz ao seu parceiro, seu analista: Eu te amo, mas, porque inexplicavelmente amo em ti mais do que tu – o objeto a minúsculo, eu te mutilo. Amase o objeto a e não a pessoa do analista. Isso é o mesmo que encontramos na interpretação de Sócrates a Alcebíades: não é a mim que você ama, e aponta aquele que está ao seu lado, Agatão. Por isso, Lacan imputa a Sócrates a posição de analista. Lacan já havia dito que a questão para cada sujeito coincide com o ponto desde onde ele se baliza para dirigir-se ao Sujeito suposto saber, e, a cada vez que essa função pode ser encarnada por alguém, analista ou não, a transferência já está instalada. Quando o sujeito começa a falar com o analista, com o Sujeito suposto saber, lhe é oferecido algo que vai se formar como um pedido: que o analista saiba o que seu paciente deseja, que o aconselhe.
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sexualidade entrou nesta relação por intermédio de Breuer. A esposa reclamava de que ele estaria se ocupando demais da paciente, e eis que Bertha apresenta uma pseudociese, um sintoma, algo que significa algo para alguém, um signo. Se o desejo do homem é o desejo do Outro, Lacan se pergunta: por que então não poderia ser a manifestação do desejo de Breuer? Posteriormente, Breuer foi para a Itália com sua mulher e se apressou em fazer um filho. Lacan simula um diálogo entre Freud e Breuer: “Mas o quê! Que negócio é esse! A transferência é a espontaneidade do inconsciente dessa Bertha! Não é o teu desejo, é o desejo do Outro!” Isso não o desculpabiliza, mas desangustia.[149]
O manejo da transferência: manter a distância entre I e a
Uma leitura sobre a Transferência no Seminário 11
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“A operação e a manobra da transferência devem ser regradas de maneira que se obtenha a distância entre o ponto desde onde o sujeito se vê amável, – e esse outro ponto em que o sujeito se vê causado como a, e onde a vem arrolhar a hiância que constitui a divisão inaugural do sujeito. O a minúsculo não atravessa jamais essa hiância. É nesse ponto de falta que o sujeito tem que se reconhecer.”[255]. Ou seja, o a somente recobre o ponto de falta, é uma rolha que obtura a fenda do inconsciente, fazendo-o pulsátil, e a experiência analítica conduz o sujeito a reconhecer-se no ponto de falta, desde onde se constituiu. Podemos localizar aqui a razão, ou uma das razões que levaram Lacan a postular a transferência enquanto nó górdio. No trabalho da análise, o analisante ao se dizer e ao se orientar no sentido da tapeação do amor, algo se produz. Mas o que se produz não deve levar à identificação ao analista, que Lacan tanto criticou nos pós-freudianos. “Toda análise que se doutrina como devendo se terminar pela identificação ao analista revela, ao mesmo tempo, que seu verdadeiro motor está elidido. Há um mais-além para essa identificação, e esse mais-além se define pela relação e pela distância do objeto a minúsculo ao I maiúsculo idealizante da identificação.” [256] Transferência a -------------I
Para Lacan, o fundamental da operação analítica é manter a distância entre I e a. Como mantê-la? Ao final, encontramos algumas formulações que servem como balizas: “se a transferência é o que, da pulsão, desvia a demanda, o desejo do analista é aquilo que a traz ali de volta. E, por esta via, ele isola o a, o põe à maior distância possível do I que ele, o analista, é chamado pelo sujeito a encarnar. É dessa idealização que o analista tem que tombar para ser o suporte do a separador.” [258]. O desejo do analista é o operador que torna possível esta distância e, pela operação de separação, o objeto a transforma-se em resto. Com o conceito de desejo do analista e o manejo da transferência, Lacan concebe a travessia do plano da identificação como final de análise
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Se a transferência se exerce no sentido de reconduzir a demanda à identificação, Lacan pôde dizer que é “na medida em que o desejo do analista, que resta um x, tende para um sentido exatamente o contrário à identificação, que a travessia do plano da identificação é possível pelo intermédio da separação do sujeito na experiência. A experiência é assim reconduzida ao plano onde se pode presentificar, da realidade do inconsciente, a pulsão.” [259]. Por isso, no capítulo A alienação, ao trabalhar as duas operações constitutivas do sujeito, Lacan nos adiantou que é na separação que vemos apontar o campo da transferência. É na alienação que vemos constituir-se o sujeito suposto ao saber (O que ele quer de mim? Che vuoi?): a alienação acontece em relação ao desejo do Outro. Na separação se encontra o ponto fraco do par S1 e S2, pois a articulação significante tem algo de essencialmente alienante, ponto fraco por ser uma fenda, favorecendo a instalação do amor de transferência, o a enquanto elemento obturador e não é sem o a que o sujeito encontra a satisfação. Vemos assim perfilar-se o vel da fantasia fundamental: $ <> a. Então, desde a fórmula “a transferência é a atualização da realidade do inconsciente” é possível um passo adiante: a transferência é uma atualização na medida em que coloca em jogo a pulsão na experiência analítica. Isso vem ao encontro da concepção de Lacan sobre o final da análise neste Seminário: uma retificação no nível pulsional. A transferência na civilização do Outro que não existe Na atualidade, constata-se a vacilação das identificações simbólicas, ao Ideal do eu, e a prevalência ao empuxo do gozo, notado por Miller como I<a em seu Seminário dedicado ao tema “O Outro não existe”7. Posteriormente, Miller8 aproximou a civilização atual ao Discurso do Analista, pois, em sua leitura, identificou os mesmos elementos ocupando os mesmos lugares, com uma diferença: na atualidade, tais elementos estão desconectados, enquanto que numa análise estão conectados, constituindo-se em laço social. Como a psicanálise poderia intervir no estado de coisas que configuram a civilização atual? Pelo amor, sugere Miller. No que tange à transferência, haveria, no último ensino de Lacan, uma inversão. Tradicionalmente, o Sujeito suposto saber é o pivô
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ACONTECE NA EBP-SP SEMINÁRIOS DO CONSELHO
e a experiência da fantasia fundamental torna-se pulsão. “Como um sujeito que atravessou a fantasia fundamental pode viver a pulsão?” Lacan não responde diretamente, mas deixa algumas indicações.
Uma leitura sobre a Transferência no Seminário 11
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da transferência, como Lacan postulou no Seminário 11. Para que uma análise possa hoje acontecer, a transferência deve ser o pivô do Sujeito suposto saber, uma inversão. O que pode fazer existir o inconsciente como saber é o amor, disse Miller. No Seminário 209, Lacan apresentou uma nova concepção do amor: o amor é o que poderia fazer a mediação entre os uns-sozinhos. O inconsciente primário não existe como saber e para fazê-lo existir é preciso o amor. Miller também recuperou que, no Seminário Les Noms Du Père, Lacan disse que uma psicanálise demanda amar seu inconsciente. Seria o único modo de estabelecer uma relação entre S1 e S2 porque primariamente eles estão sozinhos. “A psicanálise demanda amar seu inconsciente para fazer existir a relação simbólica, não a relação sexual.” Nesta concepção do Seminário 20, o amor vem em suplência à não relação sexual. “O desejo do analista não é um desejo puro. É um desejo de obter a diferença absoluta, aquela que intervém quando, confrontado com o significante primordial, o sujeito vem, pela primeira vez, à posição de se assujeitar a ele. Só aí pode surgir a significação de um amor sem limite, porque fora dos limites da lei, somente onde ele pode viver.” [260].
1 A maioria das referências deste texto é deste Seminário, suas páginas estarão citadas entre colchetes: LACAN, J. O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2.ed., 1998. 2 LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p.567. 3 MILLER, J.-A. “Contexto e conceitos”, in Para ler o Seminário 11 de Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p.23. 4 LACAN, J. O Seminário, livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992. 5 Pequenas embalagens que serviam para oferta de presentes ou caixinhas de joias. 6 Objeto precioso, joia, algo que brilha. 7 MILLER, J.-A. El Outro que no existe y sus comités de ética. Buenos Aires: Paidós, 2005. 8 MILLER, J.-A. “Uma fantasia”, in Opção Lacaniana nº 42, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, fevereiro 2005, pp.7-18. 9 LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1982.
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NOTÍCIAS DA AMP
Patrícia F. Bichara Atividade preparatória para o Congresso da AMP 2012 “As meninas superpoderosas” e a aspiração à feminilidade1 A rádio CBN noticia que Ângela Merkel, Hilary Clinton e Dilma Roussef são consideradas as mulheres mais poderosas do mundo e as apelida de “meninas superpoderosas”, como as do desenho, Lindinha, Florzinha e Docinho. A notícia e a sátira ao poder das mulheres interrogam a autora: seria a posição dessas mulheres sustentada na ordem fálica, coletivizável, como parece ser a ficção das meninas superpoderosas? Constata com Marie-Hélène Brousse (Lacan Quotidien 52) uma ascensão das mulheres em numerosas culturas. Mas seria uma ascensão em potência do feminino? Miller no Curso de Orientação Lacaniana de 2011(aula de 09 de fevereiro) introduz a ideia de “aspiração contemporânea à feminilidade”, em oposição à “aspiração à virilidade”. Para Miller, essa “aspiração à feminilidade” provoca uma reação fundamentalista que quer reintroduzir tal aspiração na ordem androcêntrica. Elisa utiliza como exemplo o grupo feminista Femen, formado por belas jovens que utilizam seus corpos, sempre ameaçados em sua integridade, e a nudez, para protestar e chamar a atenção para suas ideias. Seria este um exemplo do novo feminismo lacaniano? Tratar-se-ia, portanto, de “uma nova figura do protesto masculino freudiano ou algo característico de uma nova ordem simbólica, mais próxima do regime de gozo feminino que Lacan chamou de não-todo fálico?”. A ordem simbólica no século XXI não é mais o que era. Falase em precariedade dos laços e do sentido, em simbólico desencarnado, numa clínica orientada pelo real. Então o que é a ordem simbólica a partir da qual os analistas podem operar? Elisa aponta que o discurso analítico enlaça os elementos que na atualidade estão soltos: o sujeito, o significante mestre, o saber e o gozo, e que a ordem simbólica no século XXI seria [63]
A ordem simbólica atual não é mais centrada no falo como significante ordenador, ela é “descentrada e implica um enxame de nomeações segregativas, ancoradas na exigência de satisfação pulsional”. A autora faz dela a questão colocada pelos colegas da EBP-SP como argumento para suas jornadas em 2011: “no momento em que os sintomas atuais indicam uma pujança da pulsão de morte, o gozo feminino ser-lhe-ia um importante contraponto, quase um antídoto, ou iria na mesma direção?”.2 Para respondê-la apresenta um caso clínico onde se verifica uma face do gozo feminino, vizinha de uma demanda de amor sem limites, que retorna para o sujeito como devastação, e se pergunta se não haveria outra face possível, mais próxima à encarnação do objeto a, que uma mulher poderia presentificar para o homem como causa do seu desejo. Em seguida, distingue a posição do analista como objeto a, semblante que tem afinidades com a posição feminina, de S(A) barrado, outra face do feminino que aparece na contemporaneidade como aspiração ao gozo sem limites. No início de seu ensino, Lacan pensou o gozo feminino a partir do gozo masculino, mas em seu último ensino, como nos indica Miller, o gozo feminino é concebido como princípio do regime de gozo como tal. Ao generalizar o gozo não-todo fálico para o ser falante, Lacan pôde isolar o que chamou de sinthoma. A au-
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NOTÍCIAS DA AMP
algo bem próximo do discurso analítico, que parte do real, ou do que existe, para dar-lhe nome, ou um pouco de sentido. Como operar com a palavra sobre o gozo? Cita Miller para afirmar que nas patologias contemporâneas, onde predominam as passagens ao ato e os sintomas que põem em cena o corpo e seus modos de satisfação, onde muitas vezes é difícil introduzir a suposição de saber no inconsciente, primeiro temos o amor e depois o saber, “e esse amor só acontecerá se o sujeito puder depositar no analista o objeto de seu investimento libidinal, supondo-lhe, a partir daí, algum saber”.
PATRÍCIA F. BICHARA
Atividade preparatória para o Congresso da AMP 2012
tora conclui afirmando que o analisante que se torna analista poderá vir a ocupar o lugar de um corpo esvaziado de gozo na função analítica, lugar ao qual um analisante poderá vir a se conectar, depositando aí algo do seu gozo.
1 Apresentação de Elisa Alvarenga – AME/AE da EBP/AMP durante as jornadas 2011 da EBP-SP - “O gozo feminino no século XXI”. 2 Frase do texto de Maria do Carmo Dias Batista, publicado na Carta de São Paulo Online nº 1, escrito como argumento para as Jornadas da EBP-SP 2011.
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LIVROS LANÇADOS
SINOPSE
Fiéis ao título de nosso VIII Congresso da AMP, poderíamos dizer “o Scilicet no século XXI não é o que era”. Quais são as mudanças do Scilicet no século XXI? Essa sequência já nos permite falar de uma série de textos preparatórios que são o instrumento necessário para que os membros da AMP, em cada uma de suas Escolas, preparem o Congresso que está por vir. Mas não se trata apenas disso: espera-se também que o Scilicet, por meio de seus artigos breves, claros, concisos, possa interessar a um público mais amplo e, desse modo, fazer conhecer, mais além das Escolas da AMP, nosso modo de pensar a Psicanálise de Orientação Lacaniana. Este breve percurso nos permite dizer que Scilicet é um significante que faz parte de nossa tradição que interroga os conteúdos da psicanálise vinculados, a cada dois anos, aos temas de cada Congresso. Apresentamos neste volume escritos que abarcam uma pluralidade de temas referidos, nesta oportunidade, às fragilidades da ordem simbólica com as quais o psicanalista deve se confrontar nos dias de hoje. Foi-se o tempo em que Sigmund Freud lia os sintomas do sujeito vinculados à consistência da ordem simbólica. Ele nos deixou um testemunho evidente disso em seu escrito fundamental: “O mal-estar na civilização”. Hoje, nos interrogamos sobre as fragilidades da ordem simbólica, sobre as consequências dessas mudanças no sujeito que, como se vê na experiência comum, nos confronta diariamente com sintomas diferentes daqueles provocados pela moral vitoriana. Esta é nossa posição, ela se dirige ao reconhecimento dos sintomas do Outro, suas debilidades, suas fragilidades e os efeitos sintomáticos que tal fragilidade tem sobre o sujeito. Vocês poderão encontrar na série desses trabalhos a interpretação particular que cada autor dá a essa problemática atual. Da apresentação de Flory Kruger.
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NOTÍCIAS DA AMP
SCILICET - A ORDEM SIMBÓLICA NO SÉCULO XXI Responsáveis: Angelina Harari e Vera Lúcia Avellar Ribeiro Responsável pela equipe de edição da Seção São Paulo: Maria do Carmo Dias Batista Editora Scriptum
LOUCURAS DISCRETAS: UM SEMINÁRIO SOBRE AS CHAMADAS PSICOSES ORDINÁRIAS Autora: Graciela Brodsky | Editora Scriptum
LIVROS LANÇADOS
SINOPSE
Este livro é produto de um trabalho concebido a partir da necessidade, detectada pelo Conselho Técnico e pela Comissão de Ensino do CLIN-a, de criar um programa de ensino que privilegiasse a formação continuada e a pesquisa. Contamos com a valiosa colaboração de alguns colegas da AMP com experiências diversas em Institutos do Campo Freudiano. Graciela Brodsky foi um dos motores desse debate e, seguindo a orientação que nos transmitiu, decidimos convidá-la para administrar o primeiro daqueles que passaram a ser denominados “Cursos Avançados”. Inaugurou-se, assim, uma série flexível em relação a temas e funcionamento: cada curso é pensado de maneira isolada, a fim de desenvolver uma questão compartilhada no coletivo. Graciela Brodsky compartilha suas elaborações com o CLIN-a há algum tempo, trazendo sua experiência como docente do Instituto Clínico de Buenos Aires onde está desde a fundação. O conteúdo desde livro traz o vivo do debate inaugurado por Jacques-Alain Miller na Conversação de Antibes, cuja repercussão ultrapassa as fronteiras do Campo Freudiano. As psicoses ordinárias tornaram-se tema de investigação para muitos de nossos colegas da Associação Mundial de Psicanálise; muito se tem publicado sobre o assunto e, como observa a autora no início de sua exposição, inúmeras vertentes e recortes foram feitos para avançar nessa pesquisa. O interesse do CLIN-a em produzir um curso avançado com o tema surgiu do debate entre a autora e nosso colega Rômulo Ferreira da Silva. Testemunhamos, na ocasião, uma conversa apaixonante que nos instigou a colocá-la a público por meio de um curso. A clareza e a simplicidade em expor temas complexos fazem a marca de Graciela Brodsky. O leitor que acompanha seus trabalhos, escritos ou de transmissão oral, pode comprová-lo aqui. O percurso por ela empreendido tem o mérito de expor as diferentes formulações acerca do tema, bem como de expor suas próprias indagações. Embora as intervenções de Rômulo Ferreira da Silva não estejam aqui compiladas, podemos recolher o produto de uma interlocução que se mantém até o final. Agradecemos a ele por ter acatado o desafio de se dedicar a um tema como este, não sem sua paixão que inspirou a todos. Contamos com o trabalho minucioso e ágil de Maria josefina Sota Fuentes, responsável pela transcrição, tradução e estabelecimento do texto. Expressamos a ela nossos agradecimentos, e também a Heloisa Prado Rodrigues da Silva Telles, que se ocupou da revisão final. Por fim, agradecemos, de forma especial e afetuosa, a Graciela Brodsky por compartilharmos esse intenso trabalho, e pela autorização e colaboração efetiva em transformá-lo em um escrito. O primeiro de uma série que nomeamos Coleção CLIN-a. Luiz Fernando Carrijo da Cunha, novembro de 2010
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SINOPSE O resgate das raízes do controle e da punição na sociedade brasileira do Século XIX faz parte da obra Crítica da Razão Punitiva: Nascimento da Prisão no Brasil. O livro é de autoria do professor Manoel Barros da Motta, especialista em filosofia contemporânea. A obra é o resultado do trabalho de pesquisa e estudos realizados ao longo de muitos anos pelo professor Manoel Barros da Motta. O autor procura resgatar as raízes do controle e da punição que foram instauradas na sociedade brasileira no século XIX, e adota como aspectos teóricos as orientações da Escola de Frankfurt e a obra Vigiar e punir, do filósofo Michel Foucault. A partir do surgimento do Código Penal de 1830, quando a penalidade carcerária tornou-se o modo formal de punição no Brasil a despeito das punições humilhantes geralmente aplicadas aos escravos, o autor desenvolve uma abordagem crítica das razões que promoveram essa mudança, sobretudo nos seus aspectos filosóficos e históricos. A obra analisa o período regido pelas Ordenações Filipinas, conjunto de leis anterior ao Código Penal de 1830, cujo sistema de punições resumiase aos castigos corporais, e nos mostra como se deu o nascimento da prisão no Brasil. Segundo o autor, o trabalho transcende o período ao qual se limitou, e traz subsídios para o melhor entendimento da realidade prisional brasileira. O livro analisa o surgimento do sistema prisional no país num momento em que o cárcere como meio de regeneração social já era questionado na Europa e mesmo nos EUA, hoje recordista em número de presos, com cerca de 2,3 milhões. Se a prisão como principal forma de punição também é discutida por estudiosos aqui, a principal resposta continua sendo o aumento da pena e do número de presos — dado que não foi modificado pela maior adoção das penas alternativas na última década, nem pelo fim da pena para usuários de drogas com a Lei 11.343 de 2006, conhecida como Lei de Drogas.
Luis Nassif (blog Luis Nassif Online - http://blogln.ning.com)
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NOTÍCIAS DA AMP
Crítica da Razão Punitiva Autor: Manoel Motta Editora Forense Universitária
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PSICANÁLISE, EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE Autor: Leny Mrech, Mônica Rahme e Marcelo Pereira Editora Fino Traço SINOPSE A Editora Fino Traço e a FAPEMIG lançaram, nos últimos meses de 2011, dois livros importantes. O primeiro deles, “Psicanálise, transmissão e formação de professores”, reúne os principais nomes da Faculdade de Educação e do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, e foi organizado por Leny Magalhães Mrech – psicanalista, socióloga, membro da Escola Brasileira de Psicanálise, Livre-Docente da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e Coordenadora da Área de Pós-Graduação de Psicologia e Educação da FESP, e Marcelo Ricardo Pereira – psicólogo, psicanalista e Doutor em Psicologia e Educação, Professor da FaE/UFMG e coordenador da área de pesquisa da Pós-Graduação de Psicologia, Psicanálise e Educação. O segundo livro, “Psicanálise, Diversidade e Educação” foi organizado por Leny Magalhães Mrech, Monica Maria Farid Rahme (psicóloga, professora da ICHS/UFOP, doutora em Educação) e Marcelo Ricardo Pereira. No primeiro livro, os autores se perguntam sobre os meandros que perpassam os variados processos formativos entre o conhecimento e o saber, problematizando a questão da transmissão em um contexto sociocultural bastante adverso. Tomando como efeito da Educação a produção de uma relação com o saber e possível produção do laço social, os artigos sustentam a diferença entre informação e transmissão, considerando que esta opera com o sujeito dividido. Além disso, sustentam que a transmissão assim considerada pode ocorrer na tangência entre o desejo de ensinar e o desejo de saber, implicando um inesperado em que impera o acaso e nunca a certeza prévia de seus resultados, dada a pulverização inerente ao discurso capitalista. No segundo livro, a partir da constatação do mal-estar na cultura e na Educação, os autores assumem a posição de que a Psicanálise não pode recuar diante do real que se manifesta nas particularidades que compõem a contemporaneidade, nas vivências da infância e da juventude, nas questões que rondam a profissão docente e seus processos de formação ou, ainda, nas diferentes formas empregadas pelo aluno-sujeito para manifestar sua subjetividade no interior da experiência escolar. Em cada capítulo, é possível identificar distintos recortes e práticas variadas, mas em todos, a Psicanálise surge como grande eixo de articulação. Não se trata, porém, de apresentar uma articulação rígida e estrutura normativa: o que é trazido são esboços, pequenas telas que indicam estilos, traços, formas diferentes, extraídos de leituras dos próprios autores a respeito do real. Leny Mrech
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inconsciente e responsabilidade PSICANÁLISE DO SÉCULO XXI Autor: Jorge Forbes Editora: Manole SINOPSE
Ao escrever “Inconsciente e Responsabilidade”, Jorge Forbes fez seus colegas se sentirem menos sós. Os que apostavam na possibilidade de instalar a experiência analítica em sociedades horizontais, mas não sabiam qual direção clínica adotar, encontraram alento e esperança ao ler o manuscrito. O que fazer para tratar pacientes sem queixa nem culpa? O que fazer com as legiões de apáticos que sofrem da falta de alegria de viver, mas não encontram ânimo para alterar sua vida? De modo claro e convincente, Forbes expôs os princípios de uma Psicanálise que, honrando a herança de Jacques Lacan, leva cada um de nós a encontrar, na vergonha, seu ponto de ancoragem. Visitando a clínica, a escola, a família, o direito e a empresa, mostrou que, paradoxalmente, a vida nasce do encontro com a morte. Levou o leitor a perceber que a responsabilidade psicanalítica pode ser instalada quando, para além da famosa luta pela sobrevivência, o sujeito se depara com algo pelo qual valeria a pena perder a vida. Um livro de cabeceira. Uma segunda mini-crítica, de Alain Mouzat, psicanalista, professor da USP: Em “Inconsciente e responsabilidade: uma psicanálise para o século XXI”, Jorge Forbes devolve à psicanálise toda a sua virulência, explorando pistas abertas por Jacques Lacan, particularmente a partir do que é conhecido como “a segunda clínica”, que se pode identificar em seu ensino nos anos 70. Sublinhando que já se encontra o conceito de responsabilidade pelos sonhos em Freud, e pela nossa posição de sujeito em Lacan, Jorge Forbes desenvolve o conceito de responsabilidade pelo inconsciente, entendido aqui não mais como acidente que traz efeitos indesejáveis e precisam ser sanados pelo levantamento do recalque via interpretação, mas como encontro com o acaso, a tiqué, cerne do inconsciente, “estranho” onde não me reconheço e que, no entanto, constitui meu mais íntimo, e pelo qual não posso deixar de me responsabilizar . Proposta implacável: ser responsável pelo que lhe acontece! Mas no encontro com o real, não há negociação discursiva possível, desculpas ou justificativas. Ele é. A psicanálise aparece assim não como remédio ao desbussolamento do homem no mundo globalizado, órfão dos grandes discursos provedores de sentido, mas sim como a possibilidade de fundação de um novo laço
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NOTÍCIAS DA AMP
Uma primeira mini-crítica, de Cláudia Riolfi, psicanalista, professora da USP:
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social, baseado não mais na palavra cheia de sentido que leva à compreensão entre indivíduos, mas no ressoar da palavra no corpo, além da significação; no lugar do diálogo, monólogos articulados. As consequências para a clínica psicanalítica na condução da análise e no final de análise são mostradas e comentadas com precisão por relatos de apresentação de pacientes, dando a exata ideia de como age a “segunda clínica” lacaniana: clínica do equívoco visando a implicar o sujeito na sua fala. Mas devolver à psicanálise toda sua virulência é também mostrar os efeitos que ela pode ter no mundo: na família, na empresa, na escola, como ela pode permitir, não recuperar um passado, mas participar na “invenção do futuro”. Uma questão me persegue: porque uma leitura da psicanálise tão precisa, clara e inovadora é produzida no Brasil, enquanto uma massa de produção intelectual – na França, por exemplo – que serve muitas vezes de material de estudo para os analistas brasileiros, não chegou a fornecer uma obra dessa densidade para pensar uma psicanálise para o século XXI? Muito obrigado Jorge Forbes. Comentário da mini-crítica de Alain Mouzat, por Ariel Bogochvol, psicanalista, psiquiatra, membro da EBP e da AMP: A apresentação do livro de Jorge Forbes por Alain Mouzat é notável. Sucinta, sintetiza um texto difícil de ser sintetizado. Rigorosa, assinala a novidade das concepções ali desenvolvidas. Provocativa, mostra como o establishment psicanalítico e lacaniano é questionado em sua prática, teoria e política por estas concepções. Radical, dá consequências às proposições do autor. Está à altura do texto que apresenta. O livro apresenta várias teses. Partindo das noções de Inconsciente e Responsabilidade, coloca em questão concepções e conceitos fundamentais da psicanálise como inconsciente, culpa, repetição, função paterna, transferência, amor, sintoma, laço social, interpretação, posição do analista, direção do tratamento, ética da psicanálise... E investiga a aplicação da psicanálise em campos tão distintos como a medicina, a psiquiatria, a genética, a educação, a empresa, a mídia, a economia, a cultura. Uma viva demonstração de psicanálise pura e aplicada e uma prova de que podem ser abordadas a partir de outra topologia. Apenas começamos a entrever o grau de virulência do texto de Jorge Forbes. Fazemos votos de que produza uma infecção generalizada.
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EXPEDIENTE
Carta de São Paulo é uma publicação da ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANÁLISE - SÃO PAULO Conselho Editorial - Diretoria Executiva da EBP-SP (2011-2013) Luiz Fernando Carrijo da Cunha (Diretor Geral) Maria do Carmo Dias Batista (Diretora Secretária-Tesoureira) Maria Margareth Ferraz de Oliveira (Diretora de Intercâmbio e Cartéis) Maria Bernadette Soares de Sant’Ana Pitteri (Diretora de Biblioteca) Conselho Deliberativo da EBP-SP (2011-2013) Cássia Maria Rumenos Guardado (Presidente) Heloisa Prado da Silva Telles Leny Magalhães Mrech (Secretária) Luiz Fernado Carrijo da Cunha Marizilda Paulino Sandra Arruda Grostein Editora: Maria Margareth Ferraz de Oliveira Redação: Daniela de Camargo Barros Affonso Comissão Editorial: Carla Cristini Bonadio Audi Cristiana Maria Lopes Chacon Gallo Daniela de Camargo Barros Affonso Marilsa Basso Paola Salinas Endereço: Rua João Moura, 627/647 cj. 193 - CEP 05412-001 - São Paulo - SP Telefone 11 3081 8947 Fax 11 3063 1626 E-mail - ebpsp@uol.com.br Site - www.ebpsp.org.br Blog - www.ebp-sp.blogspot.com Twitter - http://twitter.com/ebp_sp Facebook - Escola Psicanálise Ebp Sp Projeto Gráfico e Editoração: Mgerais.net Impressão: TCS Soluções Gráficas | Tiragem: 400 exemplares
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CARTA DE
SÃO PAULO Revista da Escola Brasileira de Psicanálise - São Paulo
#1 Ano XIX • Maio-Junho 2012
São Paulo
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CARTA DE
#1 Ano XIX • Maio-Junho 2012
SÃO PAULO Revista da Escola Brasileira
de Psicanálise - São Paulo