Teslapunk: tempestades elétricas

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Teslapunk: tempestades elétricas

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Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica: Porto de Lenha Editora Editor responsável: Jackson da Mata Assessora editorial: Maiara Birck Schneider Ilustração de capa: Rafael Danesin

ISBN: xxxxxxxxxxxxxx Teslapunk: tempestades elétricas/ Org. Maurício Coelho. – Gramado, RS: Edições Cavalo Café, 2019. 1ª Edição. 112 p.; 14 x 21 cm 1. Literatura Brasileira - Coletânea; 2. Contos 3. Eletricidade e Eletrônica; 4 Nikola Tesla; I. Título CDU82-311

CDD: 537 Índice para catálogo sistemático: Contos - Eletricidade e Eletrônica - 537 Literatura brasileira - Coletânea B869.8



Teslapunk: o presente que foi negado pelo passado PROF. DR. ALEXANDER MEIRELES DA SILVA O futuro no passado O Retrofuturismo, subgênero da vertente da Literatura Fantástica chamada Ficção Científica, é definido pela projeção de um futuro extrapolado em um passado específico resultando em uma realidade alternativa de época diferente do conhecido pela História corrente. Ao longo do seu processo de disseminação em diferentes expressões, o Retrofuturismo é marcado pela presença de personagens ficcionais, baseados em pessoas reais, que são símbolos das suas épocas por conta de seus espaços de atuação na sociedade. É assim com Júlio Verne com o steampunk e Leonardo da Vinci no clockpunk, apenas para citar dois casos. Mas é apenas no teslapunk que vemos uma expressão retrofuturista tomar um personagem histórico não apenas para se nomear, mas também para expressar sua postura artística. Antecessores cibernéticos e vaporosos O teslapunk se configura como uma das diversas manifestações do Retrofuturismo surgidas com a disseminação do steampunk, cujo termo foi cunhado em fins dos anos oitenta do século vinte vinculado a outro subgênero da ficção científica que também ganhou forma na mesma década: o cyberpunk. ¹ Professor Associado da Universidade Federal de Goiás, onde leciona e orienta pesquisas sobre Literatura Fantástica na Graduação do curso de Letras e na Pós-Graduação em Estudos da Linguagem. É Doutor em Literatura Comparada pela UFRJ e Mestre em Literaturas de Língua Inglesa pela UERJ. Desde 2016 é produtor de conteúdo do canal do YouTube Fantasticursos (youtube.com/fantasticursos) e do blog Fantasticursos (fantasticursos.com), onde explica conceitos e obras ligadas ao universo da Fantasia, Gótico, Horror e Ficção Científica.


Batizado a partir de um conto do escritor Bruce Bethke publicado em novembro de 1983 na revista Amazing Science fiction, e popularizado pelo editor Gardner Dozois ao se referir à produção literária de um grupo de escritores da época, o cyberpunk tem seus marcos iniciais no romance Neuromancer (1984), de William Gibson e na coletânea de contos Mirrorshades (1986), organizada por Bruce Sterling. Caracterizado pela descrição de sociedades futuras nas quais a alta evolução tecnológica, incorporada até o nível do corpo humano, não trouxe melhorias para a baixa qualidade de vida da maior parte da população – uma ideia resumida na oposição “High Tech X Low Life” – esse subgênero da ficção científica se tornou uma das principais expressões literárias do ambiente finissecular ao capturar o ceticismo e pessimismo vigente no período quanto aos rumos do futuro. Foi essa popularização e significância do cyberpunk que inspirou o escritor Kevin Wayne Jeter, em uma carta publicada em 1987 na revista Locus, a explicar que o seu romance Morlock Night (1979), assim como também a obra The Anubis Gate (1983), de Tim Powers, entre outros exemplos, eram o que se poderia chamar de “steampunk”. Mas o que é exatamente o steampunk e como a compreensão de sua proposta contribuiu para o lugar de destaque do teslapunk frente a outras formas literárias do Retrofuturismo? Definida por John Clute e Peter Nicholls em The Encyclopedia of Science Fiction (1993) como uma narrativa, “...cujos elementos de ficção científica acontecem em um cenário do século dezenove”, o steampunk se diferencia do cyberpunk, em um primeiro momento, pelo elemento Tempo. No cyberpunk, em essência, “cyber” designa a força motriz do mundo distópico projetado no futuro e alicerçado nos sistemas de informação digitais e na estreita relação homem-máquina, enquanto que o “punk” remete a contestação e rebeldia contra o status quo.


No steampunk, por sua vez, “steam” designa a força motriz do mundo distópico projetado normalmente no passado e alicerçado no vapor e na estreita relação homem-máquina, enquanto que o “punk” remete a contestação e rebeldia contra o status quo. É um subgênero que incorpora releituras tecnológicas e estéticas do século vinte no imaginário do século dezenove. A vinculação entre cyberpunk e steampunk também se faz sentir em suas figuras chaves no campo da Literatura. Assim como fizeram respectivamente em Neuromancer e Mirrorshades, apontando os caminhos do cyberpunk, William Gibson e Bruce Sterling também moldaram o steampunk ao escreverem, em conjunto, o romance A máquina diferencial (1990), considerado um dos marcos desse subgênero (NEVINS, 2008, p. 3). A obra retrata o impacto que a invenção da máquina diferencial de Charles Baggage exerceu sobre a Inglaterra vitoriana de uma realidade alternativa, levando o país a conquistas tecnológicas movidas pela energia do vapor. Charles Baggage foi realmente um personagem histórico, um engenheiro e matemático que concebeu a ideia de uma calculadora mecânica programável como um computador e dotada de impressora, mas a limitação tecnológica do século dezenove não tornou possível a sua construção em nossa realidade. Já no mundo steampunk de William Gibson e Bruce Sterling, a Máquina, como o dispositivo de Baggage é conhecido, permitiu que a Inglaterra se tornasse uma tecnocracia, exercendo influência em regiões distantes como o Japão e provocando a divisão dos Estados Unidos. Na esfera doméstica, o elemento punk se revela, dentre outras formas, na supressão violenta aos luditas, críticos da tecnologia da Inglaterra de seu tempo.


A enorme predominância da utilização da Inglaterra vitoriana como ambientação das obras steampunk revela outra dimensão da categoria Tempo que o diferencia do cyberpunk. O cyberpunk captura as imperfeições do hoje e os extrapola em um amanhã que, como tal, pode apenas ser concebido pelo escritor ou escritora. Assim, é a partir do futuro distópico imaginado que se adverte sobre o presente, o que expõe a natureza do cyberpunk como criação única da Literatura. Já o steampunk, quando bem desenvolvido respeitando-se o seu zeitgeist, captura as imperfeições do ontem e os manipula no próprio ontem, provocando um diálogo entre História e Literatura expresso no uso do histórico como matéria-prima para a representação de sua sociedade distópica. A compreensão desse processo evidencia, portanto, que a Inglaterra da segunda metade do século dezenove, explorado pelo steampunk, apresenta elementos socioculturais, políticos e econômicos que a alinham com a proposta de futuro imaginado nas obras cyberpunk. Dentro deste quadro, chama a atenção que enquanto o cyberpunk e o steampunk apresentam visões distópicas sobre as suas sociedades, o teslapunk propõe ao leitor e a leitora um passado reimaginado pelo víeis utópico com o que o nosso presente poderia ser. Um passado alternativo de corrente alternada O teslapunk se insere cronologicamente entre os períodos abarcados pelo steampunk, isto é, a segunda metade do século dezenove, e o dieselpunk, cobrindo desde 1900 até a primeira metade do mesmo século. Considerando o nome que o batiza, o teslapunk cobre o período de vida do inventor austro-húngaro Nikola Tesla, ou seja, de 1856 até 1943. Percebe-se então que esta expressão retrofuturista está em um en-


tre lugar literário trabalhado pelas duas principais manifestações retrofuturistas: o steampunk e o dieselpunk. Sua distinção, no entanto, começa pela força motora deste universo. Ao invés do vapor e do diesel, a força que move o mundo teslapunk é um homem, ou melhor, a imaginação criativa de Nikola Tesla. Nikola Tesla, uma mente iluminada Nascido, conforme reza a lenda, em meio a uma tempestade elétrica na noite de 10 de julho de 1856 na aldeia de Smiljan, onde hoje fica o território da Croácia, no final do império Austro-Húngaro, Nikola Tesla demonstrou desde pequeno raciocínio lógico e memória excepcional. Após terminar os estudos básicos nas escolas em Karlovac, ele entrou para a universidade em Graz no ano de 1875 para seguir a sua paixão pela Engenharia Elétrica, mas abandonou o curso no quinto semestre. Após trabalhar como engenheiro assistente em Maribor, atual região da Eslovênia, ele retomou em 1880 o curso universitário na Universidade Carolina, em Praga, mas também abandonou a instituição após realizar um terço do curso. Contribuiu para os problemas de estudo de Tesla seus problemas psicoemocionais que o levavam a ter perdas de consciência e desmaios. Nestas ocasiões o inventor relatava que via clarões de luz acompanhados de alucinações sobre a eletricidade. Por diversas vezes Nikola Tesla demonstrou, nestes momentos de transe, possuir a capacidade de visualizar suas invenções completas e todo o processo de montagem das mesmas antes mesmo de iniciar o projeto. Outras expressões de seus distúrbios eram suas manias. Tesla tinha pavor do contato com sujeira e germes (misofobia) e recusava se hospedar em quartos de hotel cujo número era divisível por três.


Em 1880, Nikola Tesla foi morar em Budapeste e trabalhou na Companhia Nacional de Telefones. Junto com o inventor Nebojša Petrović, ele estudou turbinas gêmeas para criar energia de forma contínua. O resultado dessas pesquisas foi o desenvolvimento não apenas do primeiro sistema telefônico do país, mas também de um amplificador de telefone que pode ser considerado o primeiro alto-falante do mundo. Em 1884, Tesla foi para Nova York, onde foi contratado para trabalhar na Companhia Continental Edison, de Thomas Edison, em Manhattan. Trabalhando na empresa, Tesla resolveu diferentes problemas de reparo e melhoria de eficiência das máquinas da companhia, mas acabou percebendo com o tempo que estava sendo explorado por Edison e se demitiu. Contribuiu para o desgaste entre os dois inventores a famosa contenda que anos depois ficaria conhecida como a Guerra das Correntes em que Tesla defendia a implantação da Corrente Alternada ao passo que Edison, por conta dos contratos de sua empresa, defendia fervorosamente a manutenção do uso da Corrente Contínua. Após passar por um período de dificuldades econômicas, em abril de 1887 Tesla inaugurou a Tesla Eletric Company com a ajuda de empresários de Nova York e começou a demonstrar ao mundo as primeiras correntes alternadas polifásicas. Nikola Tesla registrou mais de trinta patentes na América e outras setecentas no mundo todo. Sua meta era que todas as pessoas tivessem acesso gratuito à energia elétrica e consequentemente melhorassem suas vidas. A ação de diferentes empresários, com destaque para Thomas Edison, no entanto, atrapalhou seguidamente os projetos de Tesla. Por conta desse fato, em 1912, Nikola Tesla recusou dividir o Prêmio Nobel de Física com Edison. O radar, a lâmpada fluorescente, o controle remoto, sistemas de


ignição, o motor de indução elétrica... o mundo de hoje existe por conta das invenções de Nikola Tesla. O que nos leva a perguntar: O que teria acontecido caso a sociedade da virada do século dezenove para o vinte tivesse acolhido a visão de mundo de Nikola Tesla? É isso o que o teslapunk quer mostrar. O que o Teslapunk tem a oferecer pra você? O teslapunk apresenta sociedades movidas a grandes bobinas elétricas, estações elevadas, torres de energia, dispositivos eletromagnéticos, capacitores, transmissores, rádio, além de elementos decorativos como o neon. Mas o seu principal ponto e que o diferencia de expressões retro-futuristas mais conhecidas como o steampunk e o dieselpunk e do próprio cyberpunk é a proposta de mundo trabalhado nas narrativas. A presença do “punk” no Retrofuturismo remete historicamente a contestação da juventude inglesa e norte-americana da década de setenta aos rumos políticos e econômicos da sociedade em fins do século vinte. No contexto do cyberpunk, apenas para citar a mais conhecida das manifestações da “literatura punk”, temos a contestação apresentada na forma de anti-heróis com moral própria e que desafiam o sistema, seja por contrabando, atividades como hackers e outras formas. Há uma tensão entre o elemento “cyber”, que remete aos avanços da tecnologia e o “punk”, que usa esses mesmos avanços contra os detentores da ordem, revelando a dimensão distópica do cyberpunk. O teslapunk, por sua vez, apresenta uma proposta positiva quanto aos rumos da sociedade. Tanto no elemento “Tesla”, quanto no “punk” se tem uma postura alinhada com a visão de Nikola Tesla, ou seja, um mundo de energia limpa, grátis e acessível. Assim, o “punk” no teslapunk não remete a luta contra o sistema, mas sim a escolha consciente


de um modelo de sociedade que se opõe a utilização de materiais fósseis e degradantes para a natureza, como o vapor e o diesel. Perguntas em aberto Assim como outras formas mais recentes do Retrofuturismo surgidas no século vinte e um, não se conhece ainda a gênese do termo “teslapunk”. Neste ponto, se pode especular que o termo tenha ganhado vida nos fóruns online de RPG e a partir daí vem sendo alimentado por escritores e escritoras. Há uma liberdade criativa para a expansão de suas fronteiras a partir de diferentes questões: as histórias teslapunk precisam necessariamente trazer a figura de Nikola Tesla? Poderia ser considerada como teslapunk uma narrativa ambientada na virada do século dezoito para o dezenove que lidasse com as pesquisas sobre eletricidade que estavam sendo realizadas na América por Benjamin Franklin e na Itália por Luigi Galvani? Seria o romance Frankenstein: ou o Prometeu moderno (1818), da escritora inglesa Mary Shelley um precursor literário do teslapunk? O mundo teslapunk Ainda são poucas as obras literárias que exploram o potencial colocado pelo teslapunk. Neste campo, destaque para o romance The Prestige, de 1995 escrito pelo britânico Christopher Priest e que se tornou filme em 2006 com o diretor Christopher Nolan e os atores Christian Bale e Hugh Jackman. Na obra, que recebeu no Brasil o título O grande truque, dois ilusionistas da virada do século dezenove para o vinte entram em um embate que dura anos na busca do truque mágico definitivo. Destaque no filme para a presença do cantor David Bowie como o inventor Nikola Tesla.


Ainda na Literatura, Zeppelins West (2001), de Joe R. Lansdale mescla elementos steampunk e teslapunk em um enredo que mistura a criatura de Frankenstein, Buffalo Bill e capitão Nemo no clima do velho Oeste. O Brasil também comparece nesta área com o romance Sherlock e os aventureiros (2019), de André Cordenosni e com a antologia Teslapunk: contos de realidades alternadas (2016), organizada por Maurício Coelho. Nikola Tesla marca presença com suas invenções elétricas. No campo dos games, o teslapunk marca presença no jogo indie Teslagrad (2013) e Tesla Vs. Lovecraft (2018). No primeiro, um puzzleplatformer 2D com elementos de ação, os jogadores são apresentados ao Reino de Elektropia, onde um rei governa com tirania, combatendo e destruindo os magos tecnológicos que habitam uma torre no centro da cidade chamada Teslagrad. Contra ele, surge um jovem herói que descobre estar em meio a uma conspiração. Já no segundo game, estruturado como um top-down arena shooter, a trama parte de uma apresentação de Nikola Tesla sobre a Bobina de Tesla na cidade de Arkham. No entanto, a apresentação é perturbada pelo escritor H.P. Lovecraft, que acusa o inventor de estar manipulando forças além da compreensão do ser humano. Apesar do aviso, Tesla não dá crédito às palavras do escritor e Lovecraft é colocado na prisão. Buscando provar a força do sobrenatural, o escritor invoca as criaturas do livro Necronomicon e o conflito começa. Na seara dos quadrinhos nacionais, em Le Chevalier: arquivos secretos (2016), com roteiro de André Cordenonsi e ilustrações de Fred Rubim. Nikola Tesla e Thomas Edison participam em uma trama em que o inventor austro-húngaro é raptado pelo Dínamo Rubro. Como se vê, o teslapunk possui ricas possibilidades narrativas. Os bravos inventores e inventoras de mundos aqui apresentados nesta coletânea da Porto de Lenha aguardam para levar você a um mundo de energia, e imaginação, ilimitadas.


Fontes usadas: CAUSO, Roberto de Souza. Ondas na praia de um mundo sombrio: New Wave e Cyberpunk no Brasil. 2013. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. Disponível em: <https://goo.gl/sPb9vZ>. Acesso em: 02.07.2019. CLUTE, John. Science Fiction: The Illustrated Encyclopedia. London: Dorling Kindersley, 1995. CLUTE, John & NICHOLLS, Peter. “Steampunk”. In: CLUTE, John & NICHOLLS, Peter (Eds.). The Encyclopedia of Science Fiction. New York: St. Martin's Griffin, 1995. FERNANDES, Fábio. A construção do imaginário cyber: William Gibson, criador da cibercultura. São Paulo: Editora Anhembi Morumbi, 2006. (Coleção moda e comunicação / Kathia Castilho (Coordenação)). GIRARDOT, Jean-Jacques, MÉRESTE, Fabrice. “Le steampunk: une machine littéraire à recycler le passe.” Revue Cycnos, v. 22, n. 1, 2006. Nice (França): Université de Nice. Disponível em: <httpa://goo.gl/2W5rLG>. Acesso em: 07.07.2019. NEVINS, Jess. “Introduction: The 19th-Century Roots of Steampunk.” In: VANDERMEER, Ann & VANDERMEER, Jeff (Orgs). Steampunk. San Francisco: Tachyon, 2008. PEGORARO, Éverly (2014). “Retrofuturismo e experiência ur-


bana: o steampunk no Brasil.” In: XII CONGRESSO DE LA ASOCIACIÓN LATINOAMERICANA DE INVESTIGADORES DE LA COMUNICACIÓN (ALAIC), Lima, Peru, 2014. Disponível em: <https://goo.gl/9R2rGZ>. Acesso em 20 fev. 2019. ROBERTS, Adam. A verdadeira história da ficção científica: Do preconceito à conquista das massas. Trad. Mário Molina. São Paulo: Seoman, 2018.


Rafael Danesin ĂŠ o ilustrador desta antologia. Como escritor, participou das antologias O Corvo: um livro colaborativo e Cidades a vapor. Como ilustrador e desenhista, do livro Planeta Brutal e da HQ As aventuras de Argus & Galadil. Contato: danesin.rd@outlook.com


TUNGUSKA, 30 DE JUNHO DE 1908 RAFAEL DANESIN Agora. Não havia tempo. Ele teria que ser rápido, caso quisesse escapar de seus perseguidores. Skinner Plant, o melhor ladrão da Europa, tinha dois dos melhores agentes da polícia secreta em seu encalço, mas ele tinha uma carta na manga... O raio da morte, uma das maiores invenções do século XX, estava em suas mãos. Bastava ligar o aparelho e apontar para os dois sujeitos que corriam em sua direção, e ambos seriam incinerados. Ele apertou o botão, e acionou as chaves, o bico da bobina se irradiou, lançando micro relâmpagos no ar. Seus pelos se eriçaram com a eletricidade estática que pairava no ar, e após um zumbido que quase rompeu seus tímpanos o raio afinal disparou, em um grande clarão que o levou à inconsciência. Ele levantou-se, sentindo o gosto de neve fresca na boca, certo de que havia tido sucesso em seu intento maligno. Porém, ao se erguer ele se deparou com os dois agentes, armados e com expressões nada amigáveis. Um deles, um homem de estatura média e um ostensivo bigode, além de um eletrobraço mecânico na mão esquerda, disse: — Meu caro senhor, você está muito encrencado... Antes. Tudo começou em uma usual troca de prisioneiros, saindo de uma penitenciária em São Petesburgo em direção à capital. O caminho era íngreme e marcado pela neve, e conforme o camburão aproximava-se da cidade iluminada, trovões rasgavam os céus. Skinner Plant, conhecido ladrão de joias e espião internacional, preso pelo roubo de segredos científicos do estado, estava sendo transferido até a prisão de segurança 18


máxima de Moscou, guardada por seus imensos autômatos movidos por seus corações mecânicos que giravam a 200 joules por segundo. Skinner odiava toda essa nova tecnologia que havia tomado a Europa, resultado das invenções de um cientista sérvio que possibilitou a produção em massa de diversos equipamentos eletromagnéticos. Assim, Moscou tornou-se uma fortaleza, protegida por largas muralhas e dirigíveis movidos a eletricidade, e sua prisão era mais impenetrável que o próprio Gulag. Como não era de sua intenção passar o resto de seus dias ali, Skinner havia planejado uma fuga audaciosa: com um explosivo traficado do mercado negro da América, criou um explosivo dentro de uma goma de mascar, à qual havia grudado na parte inferior do comboio em que era transportado. E, exatamente como havia cronometrado, o veículo explodiu, a um quilômetro da capital, permitindo ao famigerado bandido uma fuga arriscada pela neve. Para toda ação, contudo, existe uma reação. No mesmo dia, no gabinete do serviço secreto na torre do relógio, um obelisco no centro da capital russa, o agente Fewdman aguardava pelos dois efetivos que o Imperador havia enviado para esta perigosa missão. Sendo apenas um intermediário, ele pouco sabia sobre os operativos de campo. Apenas sabia que um deles havia trabalhado nos EUA por um longo tempo, e sua fama o precedia-o, outro era um novato, um agente recém-chegado de Rhode Island, vindo da subdivisão especializada em assuntos paranormais. A tensão pairava no ar, e o único ruído era a batida dos corações elétricos dos macanoguardas que vigiavam a sala. Eis que eles chegaram. O agente T, de porte mediano, bigode e uma face austera, trajado em um rico terno de linho, o cabelo perfeitamente alinhado e dividido ao meio. Já o agente L era um pouco mais alto e mais jovem, e vestia um 19


largo sobretudo e portava um estranho livro com inscrições em uma linguagem perdida na cronologia humana. — Cavalheiros, a sua missão é a seguinte: Skinner Plant, um conhecido terrorista, escapou em meio às planícies próximas a estrada, sua localização é desconhecida, mas temos informes que ele esteja próximo ao bunker no qual várias peças do arsenal do governo estão guardadas, o que representa um enorme perigo para a população. Nossos dirigíveis e agentes robóticos já foram enviados para rastrear o criminoso, portanto vocês não estarão sozinhos. Alguma dúvida, rapazes? — Considere-o capturado, Sr. Fewdman — disse o agente T, e ambos se retiraram. —x— — Algum sinal do rastro dele, agente T? — perguntou seu colega. Várias horas haviam se passado desde o acidente, e o camburão destruído, bem como suas vítimas, já estavam cobertos por camadas de neve. — Espere — ele disse, regulando os motores de seu braço mecânico e conectando-os às baterias portáteis às suas costas. Talvez possamos fazer alguma coisa sobre isso. Uma pequena antena começou a emitir um raio ultravioleta, que começou a revelar uma trilha de pegadas no asfalto. — Por aqui — o agente T subiu na moto, L montou na cabina adjacente, o ronco da moto ecoou no ambiente desolado. Mas, após 200 metros, as pegadas sumiram. — Diabos! — exclamou T, pegando seu comunicador. — Polícia aérea, localizaram algo? — Negativo — disse uma voz, vinda dos dirigíveis — o maldito é um escapista de primeira. — Ainda existe uma chance — disse o agente L, tirando as travas de seu livro antigo, e o abrindo. Suas páginas emitiam um estranho brilho azulado, e ele começou a pronunciar palavras em um dialeto que apenas ele dominava: 20


Y'ai 'ng'ngah Yi nash mglw'nafh! Eis que, como de costume, as páginas se tornaram etéreas como um portal, através dele, os homens podiam ver, ao longe, a silhueta de Plant abrindo a entrada do bunker. — Ainda não compreendo como faz isso, amigo, mas bom trabalho — disse T. — Nem tudo na vida pode ser compreendido pela ciência, Nick... Minutos depois, no bunker A escadaria terminava em um largo corredor, que se estendia à frente deles. O agente T estendeu o eletrobraço, buscando captar ruídos próximos... — Captei movimento. O maldito ainda está aqui! Ambos sacaram suas pistolas e aproximaram-se com cautela, a adrenalina correndo por suas veias. — Que cheiro é esse? — perguntou L. — Fusíveis queimados — ao abrir a larga porta de aço no final do corredor, viram uma larga sala, que outrora abrigava o primeiro salão do arsenal, e agora estava totalmente destruído e parcialmente em chamas, graças a três robôs descontrolados. — O filho da mãe sabotou os seguranças! — Ajuste a arma para perfurar couraças, Sr. T. Em sincronia, ambos giraram uma roda próxima à mira das pistolas, e começaram a disparar contra os autômatos, abrindo rombos precisos em suas carapaças de titânio. — Pra trás! Tem um vindo em nossa direção! O agente L saltou para o lado bem a tempo de evitar ser esmagado, mas acabou perdendo sua arma. T acertou em cheio uma rajada elétrica no titã elétrico no coração, que explodiu. O outro robô, porém, o apanhou pelas costas e o jogou na direção das chamas. 21


L procurou entre os escombros no chão, e para sua sorte lá estava um rifle de plasma, uma invenção que ele conhecia muito bem. Enquanto isso, o mecanoguarda avançava em sua direção. — Você chegou na hora certa, belezinha — disse, puxando a trava e regulando a intensidade do disparo. Como um predador prestes a dar o bote em sua presa, ele esperou pacientemente até o seu alvo estar a dois metros de distância, e apertou o gatilho. O raio atingiu o robô em cheio, desintegrando seus circuitos internos e transformando-o em um purê de circuitos e metal retorcido. — T! Ei, me responda! Você está bem? Do meio da coluna de chamas, T surgiu, envolto em uma redoma de eletricidade que o protegia do fogo. — Pra que esse drama, garoto? Acredita mesmo que morreria tão facilmente? — Certo, agora que seu ego está satisfeito, temos um bandido para perseguir... Eles passaram para a sala seguinte, que fora destinada para as armas mais perigosas e letais. A arma de raios com mira laser, o próprio braço mecânico que T usava, até mesmo a temida Tsar Bomba repousava adormecida, esperando nunca ser acordada. — L, temos um probleminha. Ao fundo, no que parecia ser um grande cofre, havia um rombo na lataria, indicando que alguém havia roubado seu conteúdo. — O filho da mãe conseguiu. Ele roubou o raio da morte! MEU raio da morte! Sem aviso, os comunicadores de ambos chiaram, ao mesmo tempo. Ao ligarem os aparelhos, uma voz se manifestou: — Boa noite, cavalheiros, aqui é o Skinner Plant. Acharam que iriam me pegar, não? Mas não se pode pegar um fugitivo que não tem intenção de fugir, não é? — Do que você está falando? — disse L. 22


— Enquanto vocês combatiam os robôs aloprados, eu usei seu famoso raio da morte na capital russa, que agora não passa de um monte de cinzas. Acredito que esta é uma lição grande o bastante, não é, senhores? NÃO mexam com Skinner Plant! — Maldito! — Ele não pode estar falando a verdade — disse L. Instantaneamente, ambos correram pelo caminho por onde vieram, e logo abriram a escotilha do abrigo subterrâneo. O cenário ali era de devastação total, os eletro-dirigíveis jaziam caídos ao chão, em chamas, e ao longe, uma cratera esfumaçada marcava o local onde outrora havia a suntuosa Moscou. — Chegamos tarde, amigo — disse T. — Ainda não — disse L, depois de uma longa pausa. — Existe um jeito, mas é arriscado. — Do que está falando, novato? — Terei que fazer isso sozinho dessa vez, Nick. Determinado, ele abriu mais uma vez seu livro secular, procurando a página que havia jurado nunca mais ler. A mente humana não fora feita para suportar aquilo. Ele suspirou, fechou os olhos e começou a recitar as palavras: Ph'nglui mglw'nafh Cthulhu R'lyeh wgah'nagl fhtagn! Como num passe de mágica, seu corpo foi se desintegrando, cada uma de suas moléculas tragada pelo livro ancião. —x— Em outras paragens, além do espaço-tempo compreendido pelo homem Quem perturba meu sono? — perguntou o ser ancestral, em uma língua esquecida pelo mundo. — Sou eu, lorde tentacular, seu humilde servo — respondeu o agente L, do alto de um rochedo. 23


Deve estar muito desesperado para vir até mim... — De fato, ó poderoso — disse o homem, engolindo em seco — preciso de favor. A forma se moveu, revelando-se um ser gigantesco, um vulto colossal em meio à tempestade. Tu conheces o preço, humano. — Sim, eu sei — disse L, temeroso. — E o pagarei, meu senhor. Pois bem. Lhe concederei teu pedido, pois tu me serves bem, pequeno Howard. Em troca, porém, terás que rebelar ao mundo a verdade sobre nós. Sobre os antigos. — Agradeço, senhor. O imenso monstro abriu suas asas de morcego, e a escuridão caiu sobre o humano insignificante. —x— Moscou, meia hora antes... Aquele era um dia muito feliz para Skinner Plant. Ele havia acabado de escapar das garras da temida polícia robótica, e estava orgulhoso de sua audácia. Afinal, não eram todos os ladrões que tinham culhões para invadir um bunker do governo e roubar não apenas uma arma, mas “a” arma mais letal já criada, que agora estava bem em suas mãos, apontada diretamente para a capital do império russo. Esta seria a vingança mais doce que já havia provado antes, e não foi com pouca empolgação que ele iniciou a ignição do raio, a aproximadamente um quilômetro da cidade. Porém, algo bizarro e inesperado aconteceu. — Mas que diabos? Uma espécie de fenda no espaço se abriu no chão, e três enormes tentáculos saíram por ela, rapidamente agarrando Skinner e sua preciosa arma. — Não, seu maldito! Você não vai tirar esse momento de mim, não vai... 24


Todo esse drama, é claro, foi inútil, pois em instantes ele foi tragado para dentro da fenda. Após longos 2 minutos de escuridão total, ele foi jogado de uma altura de cinco metros, sobre uma planície deserta, totalmente desorientado. — Ora, mas que prazer ver você por aqui, Sr. Plant. Ao erguer a vista, lá estavam os dois agentes, e de repente ele começou a suar frio. Sua mente rápida, porém, logo arquitetou um plano de fuga — erguendo-se desesperado, correu até onde a arma estava caída, e com os dedos nervosos apertou o botão para iniciar a arma. E assim voltamos ao começo da história, senhores. — Meu caro senhor, você está muito encrencado — disse T. — Mas eu... eu não compreendo. O raio foi disparado, mas não atingiu vocês... O agente T começou a rir, enquanto L o algemava. — Você não faz a mínima ideia, não é? Esta arma em suas mãos... quem você acha que a inventou? — Espere — disse Skinner, perplexo. — Você está me dizendo que você é... — Exatamente. E é obvio que inseri um mecanismo de segurança para impedir que alguém usasse a arma contra mim! Mas chega de conversa. Skinner Plant, você está preso. — Isso é inútil, amigo. Não importa em que prisão você me jogar, eu encontrarei um jeito de fugir. — Não desta vez — disse L, abrindo mais uma vez seu livro. O agente colocou o livro no chão, aberto, e um vórtice começou a puxar o ladrão, sugando-o como um buraco negro. — Não! Vocês não podem fazer isso comigo! Não é justo. Antes que ele pudesse terminar a sentença, o livro já o havia sugado. L o pegou, calmamente, e fechou uma vez mais seu lacre. 25


— Missão cumprida. — E já foi tarde, atrevo-me a dizer — completou T. Epílogo — sede da inteligência do serviço secreto. — Agentes, vocês agiram, bem — disse o chefe da divisão — contudo, creio que já sabem sobre o incidente na floresta... — O senhor está falando de Tunguska? — Sim. O raio que você "desviou" acabou incinerando uma área de 2 quilômetros quadrados. Para nossa sorte — e sua também — não havia nada ali a não ser pinheiros congelados e tundra. — A alternativa, senhor, era bem pior — disse L — como você bem sabe. — Eu sei, Howard — embora não aprove seus pactos com o sobrenatural, isso salvou Moscou. No entanto, devem tomar mais cuidado, cavalheiros, certas coisas não devem ser invocadas. E certos pactos não devem ser selados. — Pode ficar calmo senhor, isso não se repetirá. — Nunca mais! — o chefe disse — pois bem. Sr. Tesla e Sr. Lovecraft, estão dispensados por hoje. Assim que os agentes saíram, o chefe sentou-se profundamente na poltrona. — Santo Deus, quase 100 anos de sono criogênico e ainda tenho que aturar isso! O que acha disso, Annabel Lee? O corvo fêmea saltitou sobre a mesa, mordiscando as migalhas colocadas em um cinzeiro. — Nunca mais — grasnou ela. — Você precisa aprender a ser mais original, docinho. Este poema é meu.

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Gabriel Mascarenhas nasceu na cidade de Pelotas, RS. Tem como principais inspirações Jules Vernes e a série Além da Imaginação. “Teletransfoto” é seu conto de estreia. Contato: gabimasc@gmail.com

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TELETRANSFOTO GABRIEL MASCARENHAS Alimentando os pombos no parque, percebo que o céu nublado é improdutivo para fotografias ao ar livre. Logo, volto minha atenção para as aves urbanas que estão ao meu redor comendo alpiste do chão. Analiso que tais criaturas são sociáveis umas com as outras, a ponto de não roubarem comida de seus semelhantes. Trovões estremecem os céus de Nova Iorque, interrompendo meu momento de descanso. Então, jogo o resto do alpiste que tenho em mãos aos pombos e saio do Central Park. Espero o semáforo de pedestres ficar verde. Parece mentira, mas recém estamos no início do século XX e já está ficando difícil atravessar a rua, são tantos veículos trafegando. A sociedade precisa mudar seus hábitos de locomoção. Mas, pacientemente, consigo cruzar para o outro lado da via. Então, caminho em direção ao hotel em que estou hospedado. Ao entrar no saguão do hotel, o jovem mensageiro, que ali trabalha, corre em minha direção segurando um papel em suas mãos. Sr. Tesla — diz o ofegante mensageiro —, chegou esse telegrama para o senhor. Pego o telegrama e vejo que o remetente é do Centro de Pesquisa Humanizada (CPH). Acho estranho, visto que mensalmente sempre vou visitá-los para consultar os experimentos dos jovens cientistas. Também nunca peço que me enviem correspondências de lá, pois os inventos sendo construídos são secretos e podem cair em mãos erradas, mas algo ruim pode estar acontecendo. — Obrigado — digo ao mensageiro, enquanto guardo o papel no bolso de meu casaco. Apressado, subo no elevador magnético. Segundos depois, des28


ço no 18º andar do edifício. Caminho rápido em direção ao meu quarto, preciso saber o que aquele telegrama diz. Entrando no recinto, vejo que a janela está aberta. Lá fora, observo um enorme Zepelim pescar raios das gigantescas nuvens carregadas do temporal que se forma, então fecho a janela. Tiro meu casaco e o jogo sobre a cama, nisso o telegrama que recebi cai no chão. Pego a mensagem do chão e abro. Dentro encontro a fotografia de um homem vestido de jaleco branco e de rosto assustado, parece ser alguém que conheço. Leio o comunicado: Sr. Nikola Tesla, sinto-lhe informar que o cientista, o Sr. Tyrone Lewis, encontra-se desaparecido. Lacramos a sala onde ele trabalhava, por ordens da Polícia. Encontramos essa misteriosa fotografia no chão do laboratório dele. Desejamos imediatamente a visita de vossa senhoria para resolver a situação. Julie Milton – Chefe do CPH Sento em minha poltrona, não consigo acreditar no que acabei de ler. Tyrone Lewis, um dos cientistas mais promissores que conheço. Me preocupo, pois faziam meses que ele havia parado de trabalhar em seu projeto, dizendo estar deprimido e com saudades de casa. Claro, deixei-o permanecer no CPH, sei como é frustrante para um cientista quando seu projeto não evolui, e ainda ficar longe da família piora mais a situação. Será que Tyrone fugiu para sua casa na Inglaterra? Imediatamente, me levanto e apronto uma mala com roupas e cadernos de anotações. Logo, partirei em direção à estação de trem. *** Meia hora depois, chego via trem magnético na estação de Boston. Desço segurando minha maleta e corro em direção a um táxi elétrico. Entro no carro. 29


— Para onde? — Pergunta o motorista. — Para o Centro de Pesquisa Humanizada, rua 846. O silencioso táxi elétrico arranca pelas ruas costeiras da cidade. Minutos depois, chego ao CPH. — Chegamos — diz o motorista —, são 5 dólares. Retiro uma nota de 5 dólares, nela há o rosto estampado de Galileu Galilei, e a entrego para o motorista. Saindo do táxi, caminho em direção a entrada do CPH, o guarda dali abre os portões para mim. — Bom dia, Sr. Tesla — diz o guarda. — Bom dia. Subo as escadarias do CPH e abro a porta de entrada. Dentro, vejo minha velha amiga Julie Milton vir em minha direção. — Sr. Tesla, é bom vê-lo — diz Julie. — Olá, Sra. Milton — a cumprimento. — Venha, vamos até ao laboratório do Sr. Lewis. No salão de entrada, os cientistas do CPH olham para mim assustados, pensando em uma revista surpresa em seus projetos. — Voltem aos seus trabalhos — diz Julie aos jovens cientistas —, o Sr. Tesla está aqui para ver o laboratório de Tyrone Lewis. — O que precisa que eu faça? — Pergunto à Julie. — Quero que estude o invento de Tyrone, você é a pessoa mais capacitada que conheço para entender máquinas movidas a eletricidade. Julie e eu subimos ao segundo andar pelas escadas. — Mas não devíamos estar à procura de Tyrone? — Questiono. — A polícia está fazendo isso. Creio que o desaparecimento dele está relacionado com a máquina em que trabalhava. Tentei eu mesma estudar as anotações para compreender o invento, mas estava ocupada na procura do Sr. Lewis. Por isso te chamei. Julie e eu caminhamos pelo corredor e entramos no escuro laboratório de Tyrone. Primeiramente, vejo uma parede com algumas fotografias. 30


— O que são essas fotografias? — pergunto. — São registros de cobaias, pelo menos foi o que Tyrone me disse. — Interessante. — Sabe, na última vez em que o vi, parecia estar muito agitado. Dizia que agora com sua nova máquina, poderia ver sua família na Inglaterra. Não suspeitei de nada, eu estava feliz que ele havia voltado a trabalhar em seu projeto. Mas, agora creio que Tyrone deva ter fugido para algum lugar. — Pode ser — assenti com a cabeça. — Como soube que Tyrone havia desaparecido? — Fui saber quando um dos mordomos me disse que não o encontrava. Investiguei o laboratório e achei apenas aquela fotografia. Contatamos a polícia, mas não conseguiram achar ele pela cidade. Pensamos que deva ter fugido para a Inglaterra, porém seu nome não estava em nenhuma lista de embarque naval da Costa Atlântica. — Poxa! — Me sinto culpada. Como chefe do CPH, sou responsável pelos funcionários. Nem quando era médica me ocorreu algo assim. — Sei que não é fácil ser chefe, mas deve ter uma explicação sobre o desaparecimento. Eu acredito que Tyrone está em algum lugar, fugindo da vida urbana, eu já fiz isso algumas vezes. E não se cobre tanto, pois você é uma excelente chefe, foram seus requisitos de Médica e Professora que me fizeram te escolher para comandar o CPH, você é importante para manter a ordem aqui. — Obrigado, Sr. Tesla — ela sorri. Julie caminha em direção às altas janelas do laboratório e abre suas empoeiradas cortinas. Um gato, de cor alaranjada, sai correndo debaixo da mesa de estudos. — De quem é o gato? — Pergunto. 31


— Era do Sr. Lewis, o achou na rua faz algumas semanas, apelidou-o de Júpiter. Tyrone me disse que precisava de alguma companhia, então deixei ficar com o bicho. O felino ronrona e passa entre minhas pernas. O espanto para sair, gatos me incomodam desde que era criança. Só acho estranho Tyrone não ter levado o gato junto. Na porta, vejo parado o comissário de polícia com seu bigode grosso e trajando um sobretudo escuro. — Boa tarde, Sr. Comissário — falo. — Boa tarde, Sr. Tesla — diz o Comissário, que adentra ao laboratório em minha direção. — É triste o que ocorreu com o jovem Sr. Lewis — o comissário me cumprimenta. Espero que até às 20 horas você possa me dar alguma pista do desaparecimento. — Até às 20 horas você terá o que quer. Mas preciso ficar sozinho para entender toda situação. Odeio trabalhar contra o tempo, mas será necessário. — Bem, permitir você trabalhar em um local isolado pela polícia é contra lei, mas a Sra. Milton implorou para deixar apenas Nikola Tesla entrar aqui — o comissário enrola o seu bigode. — Autorizei, mas o tempo está correndo, quero algo até o início da noite, está bem? — Está bem — concordo. — Já que o tempo está correndo, o comissário e eu o deixaremos trabalhar — diz Julie. — Vamos indo comissário? — Vamos. Até mais, Sr. Tesla. — Até — me despeço. — Se precisar de meu auxílio, é só me chamar no telemóvel — diz Julie, mostrando o comunicador de curto alcance. — Estarei operando no canal 4. — Está bem — largo minha pasta sobre a mesa e vejo marcas de tintas no formato de patas de gato. — Mais uma coisa, Julie. — Sim? 32


— Leve esse bicho daqui, preciso me concentrar. — Está bem — Julie pega o gato e anda em direção à porta de saída do laboratório. Sozinho, sento em uma cadeira para ler as primeiras anotações em que Tyrone vinha trabalhando. Leio sobre um tipo de arma movida a eletricidade esboçada por ele. Me sinto incomodado, pois o CPH é um projeto que criei para que cientistas ajudem a melhorar a sociedade com seus inventos, e desenvolver armas vai contra os princípios daqui. Me levanto e vou observar as fotografias na parede. Vejo retratos de um vaso de flor, um relógio, um fonógrafo, uma bola infantil e do gato Júpiter. — O que significam? *** Passam-se algumas horas, e o Sol já está se pondo. O tempo está acabando, escolho deixar as anotações de lado, parecem incompletas. Começo analisar a nova máquina: um canhão elétrico que ocupa seis metros por dois de espaço no meio do laboratório, está apontado para uma parede grossa de concreto. Parece ser uma arma mortal, mas qual seria sua associação com as fotografias? Então, retiro os retratos da parede e percebo que atrás da imagem do vaso de flor está escrito "Teste nº 58". Corro até à mesa de trabalho e em meio a bagunça consigo encontrar o relatório de nº 58, que diz assim: 04/31/1908, Teste nº 58 Decidi reiniciar meu projeto. Fiz novos testes com minha máquina e pude compreender que o disparo de energia que atingia o alvo, na verdade não o destruía, apenas o fragmentava no ar. Portanto, precisei achar um jeito de armazenar toda a fragmentação do objeto, e o manter intacto em algum lugar. Como solução, desenvolvi um tipo de papel fotográfico, feito com uma fina camada de cobre e carbono, que foram eletrificados negativamente. Agora, toda a energia e informação seriam armazenadas dentro de uma fotografia. 33


Indo para a parte prática, testei primeiramente em um vaso de flor do saguão do CPH, a Sra. Milton me implorou para parar de roubar os vasos de flores ou ela descontaria da minha bolsa de pesquisa. Durante o experimento, regulei as bobinas de Tesla para operarem numa voltagem menos destrutiva. Posicionei a máquina em frente ao alvo, usando a mira fotográfica que havia instalado no canhão. Me afastei e fui em direção a gaiola de Faraday, protegido junto de meu gato. Então, apertei o botão de ativação da máquina, o som do disparo rasgou o ar provocando um baixo trovão dentro do laboratório, ainda bem que tem isolamento sonoro. Após o experimento, a máquina cuspiu a fotografia para fora. Usando luvas de borracha, fui em direção ao retrato e peguei-o do chão. Pude ver nitidamente o desenho do vaso de flor. A experiência havia sido um sucesso. Depois que a fotografia esfriou, a levei novamente ao canhão elétrico e coloquei-a em frente ao raio de disparo, onde uma lente protegia e impedia que o retrato fosse queimado. Novamente, liguei as bobinas e usei menos energia do que foi utilizada no início do experimento. Protegido ao lado de Júpiter, dentro da gaiola de Faraday, vi que o disparo foi rápido e outra vez provocou um baixo trovão no laboratório. Então, para o meu alívio, vi que o mesmo vaso de flor estava lá, intacto e fora da fotografia. Um grande avanço em meu projeto, o Sr. Tesla vai se admirar com meu feito. Logo, farei testes em outros objetos até poder experimentar em algo vivo. Vou tirar uma fotografia do vaso de flor usado no experimento e colocar na parede, para registrar meu primeiro sucesso em meses. P.S. A Sra. Milton ficou feliz em ver que o vaso de flor não desapareceu como os outros. A ideia que fez Tyrone ganhar a bolsa do CPH foi: uma máquina capaz de revitalizar a energia do corpo humano em poucos minutos, algo já incrível. Mas, ao ler como seu experimento evoluiu para um meio de transporte, via energia elétrica, me parece mais genial ainda. 34


São muitos os benefícios que esse tipo de invenção pode trazer para o transporte público. Porém, o desaparecimento dele ainda era uma incógnita, gostaria de aprender por completo a funcionalidade do invento. Percebo que sobre a mesa há um relatório com o título "Teste nº 62". Entretanto, o restante da folha está em branco. Caminho novamente para a parede das fotografias e encontro o retrato do Teste nº 62, quem posa na imagem é Júpiter. Porém, perco minha concentração ao ouvir o miado de um gato. Me viro e Júpiter está sentado sobre a poltrona. — Criatura irritante! O gato começa a arranhar meu casaco. Estou sem paciência, sou capaz de chutar aquele bicho para longe. Porém, vejo que a foto de Lewis está para fora do bolso do casaco. Vou até o assento e pego a imagem. O gato não para de miar em minha volta, parece querer me avisar de algo. Logo, me vem um clarão de ideias e chego à conclusão do desaparecimento: Tyrone Lewis está preso dentro daquela fotografia. — É isso! — Penso alto. Rapidamente, corro em direção à máquina e coloco a fotografia de Tyrone em frente ao canhão de raios, pondo a lente de proteção para não queimar o retrato. Sigo as instruções escritas nos relatórios; ligo as bobinas e regulo a energia para o disparo. Me abrigo, junto de Júpiter, dentro da gaiola de Faraday. Aperto o botão que aciona a máquina, o clarão do disparo é intenso e o barulho é alto. Vejo o corpo de Lewis ser atirado para longe de onde deveria aparecer, devo ter colocado energia demais. Vou até ele, porém está desacordado. Tento reanimá-lo com os meus básicos conhecimentos de primeiros socorros, mas sem êxito. — Julie, venha rápido! — A chamo no telemóvel. Segundos depois, Julie e o comissário de polícia entram correndo no laboratório. Os dois estão paralisados me olhando ao lado do corpo. — É o Sr. Lewis! — Diz Julie. — Onde você o encontrou? — Pergunta o comissário. 35


— O que importa agora, ele está desacordado — reclamo. — Está respirando? — Pergunta Julie. — Não — respondo. Julie vem até o corpo de Tyrone e coloca seu ouvido no peito dele. — Seu coração não está batendo — diz Julie. Então lembro que em meu bolso há um dispositivo de choque para afastar ladrões. Ajusto o aparelho em uma voltagem não mortal para reanimar o corpo. — Você acha que consegue reanimar o corpo com isso? — Mostro o aparelho à Julie. — É aquele dispositivo de choque? — Sim. — A voltagem está alta? — Não, regulei para não o ferir. — Posso tentar. Julie posiciona o dispositivo sobre o peito de Tyrone e dispara, todo o corpo dele estremece, mas não volta à vida. — Vou abrir a camisa e disparar direto na pele — sugere Julie. — Está bem — digo. Julie dispara um novo choque com o aparelho, mas agora sobre o peito nu do desmaiado. Após a descarga elétrica, Tyrone dá um forte suspiro e volta à vida. — Tyrone! — Grito. — Filho, você está bem? — Pergunta o comissário. Sentado no chão e desnorteado com o choque, Tyrone olha primeiramente para mim e vomita no chão. — Acho que sim — digo aliviado. 36


— Vamos Sr. Lewis, cuidarei de você — diz Julie ao ex-prisioneiro fotográfico. *** Já passam das 22 horas e lá está Tyrone Lewis em pessoa, sentado em sua poltrona, aquecendo-se próximo a lareira. Eu o encaro, segurando meu bloco de notas. Sente-se bem para responder algumas perguntas? — Pergunto a Tyrone. — Sim. — Primeiro, por que voltou a trabalhar em seu projeto? — Bem, eu estava entediado, então comecei a ler sobre a fragmentação dos corpos e me lembrei de meu invento. Logo, comecei a fazer novas experiências. Escrevo o relato em meu bloco de notas, enquanto Lewis toma chá. — Bem, não tive tempo de ler todos relatórios de seu novo experimento, mas fiquei fascinado como você contornou o problema da fragmentação dos objetos. Me explique como a máquina transportou o objeto-alvo para dentro da fotografia. — Bem, Sr. Tesla — diz Tyrone, enquanto larga sua xícara em uma mesinha ao lado da poltrona. — Na prática, o que fiz foi mudar a carga de disparo da máquina para polo positivo. Então, ao destruir o objeto, o raio do canhão pescou a energia fragmentada e a puxou de volta para a máquina, gravando toda informação do objeto-alvo dentro da fotografia de polo negativo. — Brilhante! — Abro um sorriso. — E por que fotografias? — Bem, acredito que usei a fotografia, porque é um meio comum de nos conectar com alguém ou com alguma lembrança gravada em nossa memória. Notei isso vendo fotografias de minha família da Inglaterra. Ver fotografias são a única maneira que encontro de estar com meus familiares. 37


— Entendo — escrevo. — Mas a fotografia é algo provisório, pois posso usar a máquina como meio de transporte de longo alcance. Basta fazer um segundo canhão e ligar ele ao primeiro, criando assim uma entrada e uma saída para transportar objetos. — Concordo, são grandes as aplicações que esse tipo de máquina terá no transporte público. Você deve saber bem que muitas pessoas ainda vivem dependentes da industrialização capitalizada imposta por Ford e Edison. Principalmente, em países de terceiro mundo, onde combustíveis fósseis ainda são usados. O que você criou, Tyrone, pode ajudar milhões de cidadãos a terem uma vida mais fácil. — Tem razão Sr. Tesla — diz Tyrone abrindo um singelo sorriso. — Já pensou em mudar de casa levando toda a mobília em um álbum de fotografias? — Seria muito prático — rimos. — Mas ainda não entendi como você ficou preso dentro da fotografia? Quem te aprisionou? — Tyrone foge o olhar de mim, passa a mão em seu cabelo ruivo. — Bem, Sr. Tesla... é tudo culpa do Júpiter. Fico surpreso, sem entender muito bem porque ele acusaria o mero felino. — Júpiter? Como pode fazê-lo desaparecer? — Bem, eu havia testado o disparo fotográfico no gato, foi o teste nº 62. Estava pronto para fazer o relatório. Mas, antes decidi calibrar a máquina para o teste nº 63. Então, coloquei uma fotografia em branco no dispositivo de captura de informação e fui medir minha estatura em frente ao canhão. Paro de escrever no bloco de notas e olho para Lewis. — Você já iria testar em você, não tinha outra cobaia viva? — Iria me arriscar. Além disso, pediria ajuda a Dra. Stone do laboratório ao lado para operar a máquina. Mas foi na hora de medir que 38


de repente… bem, Júpiter sentou sobre o botão que aciona o canhão. Apenas pude ver aquele forte clarão vindo em minha direção, não tinha como escapar. O que havia restado de mim, foi puxado para dentro daquela fotografia que o senhor recebeu. Olho para Tyrone e tento não rir com a situação. Aquele gato quase matou seu dono e eu já estava acreditando em espionagem industrial. Me levanto e caminho até o envergonhado Lewis. — Acidentes assim acontecem com qualquer cientista — o acalmo. — Mesmo? Coloquei minha mão em seu ombro. — Sim, certa vez quase morri com a descarga elétrica de uma antena de transmissão elétrica. Foi quando trabalhava no projeto de energia solidária em Paris. Esqueci que estava com uma miniatura da Torre Eiffel em meu bolso. Tinha que ver, fui atirado para longe com o impacto do raio — ri para aliviar Tyrone de sua situação tragicômica. — Sério mesmo? — Verdade. Foi dolorido, você pelo menos não se machucou. Me conte, como era estar dentro da fotografia? — Foi rápido, parece que estive lá apenas por um segundo. Quando vi já estava aqui fora no laboratório. — Incrível! Você ficou dentro da fotografia por 3 dias. — Nossa! Tanto assim? — Sim. Ainda bem que te encontramos. Dou tapinhas nas costas de Tyrone e pego meu casaco. — Já vai? — Pergunta Tyrone. Caminho até a porta e me viro para ele. — Sim, meu caro. Agora descanse bastante. Preciso tratar toda a situação com o comissário, não quero que a prefeitura feche o local por apresentar perigo. Mas quero ficar atualizado com o seu projeto, virei semana que vem para auxiliar no experimento. 39


— Sim senhor. Prestes a sair, Júpiter passa entre minhas pernas, ronronando por um pouco de carinho. — Mais uma coisa, Sr. Lewis, não deixe mais seu gato no laboratório, você viu o que pode acontecer. Lembre-se: animais são para as horas de lazer, não para as horas de trabalho. Tyrone assente com a cabeça. Logo após, fecho a porta de seu laboratório e vou embora. No primeiro andar, o comissário me espera. — Então, como está o rapaz? — Pergunta o comissário. — Está bem. — Que bom. Venha, preciso de seu relato para fechar o caso. Já está tarde e vejo que hoje não terei mais tempo para um descanso.

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Pedro Graeff nasceu em 2001, em Santa Maria, RS, onde reside atualmente; tem como principais influências Philip K. Dick e George Orwell. Contato: pedrohgraeff@gmail.com


GUERRA FRIA PEDRO GRAEFF O trem bala seguia o percurso. Seu potente motor elétrico silencioso puxava energia das bobinas de Tesla, gigantescas torres que liberam no seu topo raios azuis claro de energia. O caminho era composto apenas por arbustos e pequenas árvores. Nenhum sinal de cidade, mas a civilização tocava todos os cantos. Como Tesla uma vez sonhou, o mundo estava conectado por energia elétrica. Acesso gratuito a todos. Em uma das cabines, um homem por volta de seus 50 anos, cabelos grisalhos e barba por fazer com um pesar nos olhos enrugados puxava seu relógio de bolso dourado para ver o horário. Apenas olhando para o céu não era possível dizer que horas era. Os raios de energia cobriam todo o céu, o que tornava impossível enxergar uma nuvem, nem a Lua, nem o Sol. O dia é eterno. De frente para ele, um jovem de 18 anos, lendo um jornal que havia comprado na estação. Suas feições joviais estavam preocupadas com o que ele estava lendo. O senhor calejado sabia reconhecer essas expressões. Sabia que se tratava da guerra. Nos últimos dias, o relógio do apocalipse havia sido adiantado para 23:59. Meia-noite significa destruição total do mundo. Tudo isso devido as crescentes tensões em Cuba. Os soviéticos haviam realocado quase todo seu poderio de bombas para lá, e os Estados Unidos estavam prestes a começar uma guerra por medo. O velho sabia que podia seguir o resto do percurso em silêncio, apenas escutando a música tocada por rádio transmissão nos alto-falantes da cabine, não era sua obrigação conversar com ele. Porém, o seu íntimo dizia que ele poderia acalmar o jovem, ele mesmo já passou por essa sensação, esse medo. Se ia conseguir ele não sabia. Mas deveria tentar. 42


— Garoto. — Oi? — O jovem distraído demorou para assimilar que o senhor à sua frente estava falando com ele. — Desculpa incomodar, mas você parece tenso. O que houve? — O jovem apenas levantou o jornal mostrando a manchete sobre a guerra. O senhor não havia errado seu palpite. — Posso te contar uma história? — Claro. — Eu já estive em guerra. Lutei na Batalha de Paris. Me lembro o som de cada tiro ecoando pelo campo de batalha. Eu fazia parte do esquadrão de Aviões DV (decolagem vertical). “Os nazistas costumavam usar Zeppelins como bombardeiros, mesmo sendo lentos, eles eram silenciosos e conseguiam carregar muitas bombas. Por isso começamos a usar canhões de partículas. Um feixe e o dirigível virava uma bola de fogo. Eram eficientes, mas não conseguiam abater todos. Os nazistas encontravam jeitos de desviar ou usar aviões menores para receber os feixes. “Os caças eram essenciais contra os bombardeios e os aviões de suporte. O porém era sua demora para serem lançados. Era aí que nós entrávamos. Conseguíamos decolar de qualquer parte da cidade, estreito ou não. Mas os lançamentos ocorriam quase sempre nos tetos dos edifícios. Naquela época não existia essa vasta rede de bobinas liberando energia para todo mundo, as cidades ainda eram dependentes de cabos, e se encostássemos em um desses acabaríamos fritos. “Lembro-me de uma noite escura e fria de inverno em Paris. Era 2:30 da manhã e a gente tomava whisky com café, ajudava a manter o corpo quente e acordado. Eles vieram na calada da noite, os Zeppelins. Os malditos nazis esperaram a madrugada certa, cheia de nuvens e chovendo sem trovejar. Não enviaram um caça de suporte, eram barulhentos e saberíamos do ataque quilômetros antes. Então só os dirigíveis sobrevoavam Paris. Percebemos apenas quando a primeira bomba estou43


rou na zona norte da cidade. Era tarde demais, havia dirigíveis por todos os cantos, lançando bombas por Paris. “Nossos canhões ainda demorariam para serem carregados e o primeiro esquadrão de caças iria levar meia hora para nos ajudar. Então fomos a primeira contra-ofensiva. “Erguemos voo o mais rápido possível. Sabíamos que seria muito difícil, pois não carregávamos o mesmo poderio que os caças. Apenas metralhadoras leves devido ao tamanho dos aviões. “Quando subi, eu pude ver a cidade queimar. Milhares de inocentes mortos pelas bombas ou pelos escombros da cidade. Não era possível escutar o grito de desespero delas, apenas os motores do avião e as explosões. Tínhamos que subir muito alto para alcançar os bombardeios, para nossa infelicidade, eles tinham metralhadoras na ponte de comando, abaixo do balão. Antes mesmo que o comandante pudesse nos dizer o que fazer, seu avião fora abatido. Eu vi nossos aviões um por um sendo derrubados. E não havíamos nem sequer conseguido explodir um dirigível. “Quando percebi que a torre Eiffel havia sido destruída, senti que tudo havia acabado agora. Poucos colegas respondiam no rádio. Não havia mais estratégia, sobraram poucos de nós no ar e nenhuma hierarquia de comando, a única coisa que podíamos fazer era lutar até a morte e ver Paris sendo destruída. “Foi quando ouvimos os caças chegarem, rasgando o céu com altas velocidades e combatendo os dirigíveis. Ao mesmo tempo nossos raios da morte estavam carregados e começaram a atingir os dirigíveis fazendo com que seus gases entrassem em rápida combustão, explodindo-os na hora. “Todos os Zeppelins foram destruídos, mas os nazis conseguiram. Paris estava em ruínas. Quando pousamos e vimos toda a destruição e morte, achávamos que os alemães estavam a um passo de esmagar os aliados. Demoramos dias para curar as feridas, repor nossas energias 44


e enterrar nossos mortos. Tudo o que queria era voltar para casa, abraçar minha esposa. Mas sabia, se eu e todos nós voltássemos, só restava esperar os nazistas invadirem nossas terras e nós sermos subjugados e mandados para os campos de concentração. “Então ficamos, garoto. Eu fiquei. Permaneci entre as ruínas de Paris erguendo voo com meu velho ADV dia e noite para proteger o que restou e não deixar os nazistas avançarem. “No fim, conseguimos pará-los. “É normal perder a esperança após uma atrocidade daquelas, mas devemos sempre manter uma faísca de esperança, uma hora essa faísca irá se transformar em uma chama. Nos levantamos da lama pesada e juntamos forças do nosso mais íntimo para seguir a lutar. “Não foram as tecnologias de tesla que mudaram o rumo da guerra. Foi nossa vontade de proteger nossa terra e aqueles que amamos. Você já sabe como a guerra acabou, jogamos bombas de pulso eletromagnético em Hiroshima e Nagasaki assim que supostamente descobrimos que eles estavam fazendo uma tal de bomba atômica. Que piada usar uma bomba que destruiria e inutilizaria o território. Tesla ficou com medo de ser verdade, por isso saiu do seu exílio para trabalhar com Oppenheimer no projeto Manhattan. Ali nasceu a bomba PEM para acabar a guerra de uma vez. Naquela época ele já havia se isolado por se culpar de ter criado as tecnologias que foram usadas para destruição e morte durante a guerra. Por sorte, o velho Tesla morreu antes de ver o mundo dividido usando sua bomba com o propósito de destruir o mundo por convicção política. “No final, Einstein estava certo. 'Não sei com que armas a III Guerra Mundial será lutada. Mas a IV Guerra Mundial será lutada com paus e pedras.' Ele já sabia, sabia que o ser humano é autodestrutivo. Avançamos tanto tecnologicamente, carros elétricos, energia gratuita, tecnologia espacial. Mas era certo que chegaria uma hora que iríamos destruir tudo. Desde os primórdios da raça humana fazemos isso. Sem45


pre, lembre-se da Idade média, a biblioteca de Alexandria e por aí vai. “Eu entendo que você tenha medo de perder tudo, foi criado em um mundo elétrico e tecnológico. Eu também tenho medo, não posso negar. “Assim como a destruição faz parte da natureza humana, o sentimento de união e reconstrução também faz. “Infelizmente não posso te dizer que os mísseis em Cuba não serão lançados deixando o mundo inteiro em uma noite eterna, mas isso não está mais em nossas mãos. Porém, eu prometo a você, se algo acontecer nós vamos nos reerguer, reconstruir tudo do zero, se necessário, leve o tempo que precisar. Apenas esteja perto e proteja as pessoas que você se importa, até mesmo no apocalipse.” — Obrigado pela conversa, senhor... — Anderson. Não há de quê, gosto de ajudar os outros. — Posso te fazer uma pergunta pessoal? — Vai em frente. — Sente saudades? — De quê? — Voar. Anderson abre um sorriso ao escutar isso. — Nunca me fez falta. A saudade de casa e de minha esposa era maior. O jovem abriu um sorriso e disse: — Está indo encontrá-la agora? — Ela não, meus netos. E você? — Vou me apresentar ao exército, hoje é meu primeiro dia. — Boa sorte, garoto. Espero que nunca precise entrar em combate. Há meia hora do destino final, os dois não trocaram mais nenhuma palavra. O jovem largou seu jornal no banco adjacente prestando atenção apenas na paisagem calma do lado de fora. O senhor olhando para aquilo sentiu que havia conseguido. Então, em sua calmaria, aproveitou para cochilar o restante do percurso. 46


Daguito Rodrigues é escritor e roteirista. Formado em jornalismo na USP e em cinema na Faap. Foi repórter da Folha, diretor de criação da Publicis Brasil e roteirista na Rede Globo. Tem prêmios nos principais festivais de criação do mundo, com oito Leões em Cannes. Publicou o romance Vozes na rua (Kazuá, 2016) e mais de vinte contos. Contato: daguito@gmail.com


ARMISTÍCIO DE SANGUE DAGUITO RODRIGUES Era tradição dos alunos da Academia de Ciências e Tecnologia escrever ou rabiscar as camisetas claras, uns dos outros, na última semana de aulas. Não naquele ano. O vermelho que manchou a roupa de vinte e sete estudantes não veio da carga das canetinhas, mas do sangue que ainda jorrava de cada cicatriz aberta nos corpos inertes e estendidos no pátio molhado. Terminada a chacina, o céu caía em prantos sobre os azulejos portugueses, e, mal sabia eu, toda aquela água estava prestes a levar a minha vida numa inesperada torrente. Ao chegar com a capa preta castigada e o chapéu coco surrado que minha ex-esposa teimava que eu usasse, anos antes em dias chuvosos como aquele, um jovem de dezenove anos era encaminhado às pressas ao dirigível médico e detalhava, entre murmúrios morrediços, não só as máscaras de caveira que escondiam a identidade dos três agressores, mas também as curiosas pistolas de metal, madeira e vidro responsáveis pelas quase trinta mortes e os mais de quarenta feridos. Tomei notas do depoimento. Em duas décadas de Forças Internas, minha caligrafia jamais havia replicado no papel uma descrição como aquela. A rápida consulta na bibliopad não trouxe respostas: nenhuma arma como a mencionada foi localizada pelo banco de dados que eu levava no bolso. Quando subia os degraus de entrada, meu comunicador bipou em sintonia com um trovão e o holograma de minha chefe pairou a um palmo de meu rosto. Nenhuma surpresa. Mesmo sendo o oficial mais condecorado e um dos primeiros a chegar ao local, imaginei que ela não me quisesse no caso — como se a vontade dela pudesse me impedir. Fingi uma falha no sinal, desliguei o aparelho e invadi o prédio antigo de ar48


quitetura neoclássica que agora jazia chamuscado de fluidos e restos de carne e osso. Explosões de sangue. O testemunho do jovem recém-resgatado explicava o que machucava meus olhos e alfinetava meu peito: “não foram tiros, foram tempestades elétricas.” Nunca esquecerei daquela imagem de dor e morte — e que casava perfeitamente com as palavras do moribundo. Primeiro, porque a cena em si já era trágica. Segundo, porque me trazia lembranças. Claro que meu passado era o real motivo de minha chefe me querer distante da investigação, eu mesmo não desejava ter de rememorar cenas que eu acreditava já terem sido apagadas, mas o incidente na Academia estava longe de ser encerrado. Os criminosos se mantinham trancafiados no segundo andar com mais de cinquenta reféns. Não havia melhor negociador que eu. Minha chefe sabia. Todas as Forças Internas sabiam. Eu não tinha escolha, nunca tive. Nos corredores que me levaram à sala da diretoria, onde montamos nosso posto avançado, cartazes rivalizavam em paredes opostas. À esquerda, palavras defendiam a legislação antiarmamentista. À direita, frases de efeito sustentavam as vantagens do porte de armas. Eu era como aquela garganta de concreto e tijolos, engasgado e repartido ao meio. Sufocado. Meu lado agente das Forças Internas sabia que a liberação significaria um salto da violência e, principalmente, um maior risco para oficiais como eu. Meu lado pai, ou alguém que um dia já teve filho, fantasiava que uma pistola no punho do segurança da escola de Nelson poderia ter mudado o roteiro do meu passado, do meu casamento e da vida de meu menino. Antes que memórias embaçassem minhas decisões, fui notificado que um dos agressores gritava no átrio principal e, quando cheguei, confirmei a máscara de caveira descrita pelo jovem assim como a estranha arma de metal, madeira e vidro, cujo cano ele apertava na têmpora de uma estudante negra. Meu assistente não precisou nominar a vítima, Martinelle era conhecida por todos. Uma líder estudantil e ativista que 49


vinha defendendo os direitos daqueles que, como ela, foram libertos poucos anos antes da escravatura pela canetada da princesa e jogados na sociedade sem um tostão. A invasão da Academia de Ciências e Tecnologia, ficava claro para mim, era um ato político. Uma ação de um grupo que rivalizava com o de Martinelle. O fato de terem se infiltrado entre estudantes era a novidade para nós, que vínhamos investigando esses paramilitares desde os primeiros indícios de existência, alguns anos antes. As raízes do grupo penetravam e se fortaleciam nos mais variados setores da sociedade, galgando os mais altos degraus de poder. Eram tempos sombrios em que as canetas davam lugar às armas. Pedi a meu assistente que fotografasse e conseguisse mais informações daquela arma irreconhecível. Não houve tempo. Segundos depois, tive eu uma demonstração do funcionamento mortal do armamento. Tempestades elétricas. Os raios brancos penetraram o crânio de Martinelle, carregaram o corpo da garota como a uma enorme bateria e membros e órgãos explodiram diante de todos, chamuscando resquícios elétricos e corporais. Choque. A ativista foi morta ao vivo diante das câmeras, um assassinato transmitido aos milhões de bibliopads que cada cidadão carregava. Tragédia. Os restos da ativista foram levados para fora, mas o que vi na maca foi o que sobrou de meu filho. Lembranças que eu tentava esquecer. Minha chefe, já aceitando minha liderança no caso, exigia um plano. Meu assistente trouxe os dados coletados durante a demonstração da pistola enquanto eu tentava me desvencilhar dos repórteres que haviam furado o bloqueio. Um circo estava armado. A pistola claramente se carregava automaticamente na rede de eletricidade sem fio: não tinha cartuchos, não tinha balas; funcionaria ad eternum. Na mesma hora, trouxeram uma carta dos criminosos, queriam provar à sociedade a fraqueza do discurso antiarmamentista. Se os seguranças ou mesmo os professores daquela instituição estivessem ar50


mados, escreveram, a carnificina não teria ocorrido. A mesma conclusão à qual cheguei anos antes, no terror do momento, após a tragédia que vitimou meu pequeno Nelson. Reuni o grupo tático e dei a ordem mais óbvia de minha carreira: que desligassem a rede Wi-Fi de eletricidade de toda a macrorregião. Sem energia, as armas não funcionariam. Fui uma voz solitária em meio à revolta. Minha chefe, o prefeito e os demais burocratas de cadeiras de couro recusaram minha proposta com cólera. Eu sabia, significaria o desligamento total de todos os equipamentos de parte da cidade, de bibliopads a carros, de dirigíveis a aerometrôs. Sem contar a transmissão ao vivo em rede internacional por parte da imprensa. Como calar a mídia? Quem estava disposto a peitar tamanha ousadia? Só quem não tinha nada a perder. Eu. Ainda sem a autorização para a ordem que achava necessária, pedi que minha equipe conseguisse o máximo de informação dos três criminosos e, com as digitais coletadas das maçanetas do piso térreo, confirmamos que nenhum deles estava no banco de dados das Forças Internas. Obtive uma autorização de um juiz que me devia um favor e vasculhamos o Arquivo Nacional de Cidadãos. Fantasmas. Os três jamais estiveram registrados no governo. Aquelas digitais não nos levavam a lugar algum. Como os agressores puderam permanecer tanto tempo fora da vigilância burocrática do país? E com armas nunca antes vistas? O prefeito bateu o pé sobre o risco do desligamento do Wi-Fi, havia três hospitais na região; sugeri que transferissem imediatamente os pacientes a unidades mais distantes. Minha chefe se preocupava com os sistemas de trânsito e transporte público; falei que deveriam fechar os tráfegos terrestre e aéreo de toda a cidade. O representante da União falava do impacto na opinião pública; expliquei que a solução do sequestro valia o risco. Ainda assim, fui novamente vencido. A decisão tomada pela maioria e que queriam que eu colocasse em prática era a invasão sumária do 51


segundo andar e a morte dos assassinos e sequestradores, numa ação rápida e inesperada. Havia risco para alguns civis, mas para a maioria da cúpula era o preço a se pagar. Joguei meu distintivo sobre a mesa, eu não participaria de mais uma chacina. O armamento era capaz de aniquilar não só os reféns, mas toda a força tática. Minha chefe não aceitou minha demissão, mas me lembrou que era hora mesmo de eu ir para casa. Para minha casa vazia. Demissionário, abandonei o prédio e me cobri com a capa e o chapéu. Dissolvi na chuva que caía ainda mais afrontosa naquele fim de tarde. Antes que a noite viesse, haveria um temporal sangrento sem precedentes na Academia e eu não estaria lá para ver. Rumei pelas vielas até deixar o cerco das Forças Internas e rompi a cidade a passos raivosos. A burocracia e o apego ao poder eram uma doença corrosiva, um mal que eu não carregava. A morte de meu filho num ataque armado à escola, anos antes, era uma cicatriz que se abria em ferida viva e hemorrágica. Fresca e dolorida. O incidente na Academia galopava para o mesmo fim e, mais do que imaginar as vidas que seriam perdidas naquele ataque suicida ao segundo andar, o que não deixava meus pensamentos eram os pais e mães que, como eu, carregariam um vazio para sempre. Coices em minha mente. Não, eu deveria ser o último. Não mais nasceriam pessoas como eu, dominadas pela perda e com as vidas dilaceradas pela morte. Nem foto de meu filho e de minha esposa eu conseguia carregar na carteira. Doloroso demais. Pensamentos em nó. Só me dei conta de que não estava a caminho de casa quando empurrei as enormes portas de madeira e invadi o corredor principal de um prédio que eu desconhecia. Sem o distintivo, usei minha digital para ir até o andar superior e invadir o centro de controle. Empunhei minha pistola e fiz quase todos os funcionários deixarem o recinto, menos aquele que se fazia necessário para meu plano. A Central Elétrica. Emiti na frequência policial uma ameaça de bomba nos hospitais 52


da região. As ordens que eu tanto queria dar, de transferência de pacientes e fechamento dos tráfegos aéreo e terrestre, seriam cumpridas. Não teriam escolha. A partir dali eu já era um criminoso e sabia das consequências. Minha carreira já pouco importava e minha vida era um nada preenchido pela dor da perda. Estava disposto a abrir mão de tudo para salvar aqueles cinquenta estudantes e seus pais. Eu era assim e nada poderia me fazer mudar. O plano era simples. Eu obrigaria o único funcionário da Central, aquele que obriguei a permanecer na sala, a desligar toda a rede da região. Acompanhando pela TV, eu cortaria a energia no momento exato em que a força tática invadisse o segundo andar da Academia, a tempo de impedir o funcionamento das armas de tempestades elétricas. Era a solução para salvar todos os jovens. Apontei o cano para o técnico uniformizado e mantive os olhos nas imagens, aguardando o momento exato. Assim que houve a invasão, ordenei o desligamento. Feito. Breu silencioso. Uma pausa no sopro da vida. Um nada de pensamentos e um vazio de tudo. Escuridão. Abri os olhos oprimido por paredes brancas e luminárias frias. Um quarto de hospital. Estava deitado numa maca, coberto por lençóis limpos e amarrado com correias de couro. Era o amotinado que ignorou ordens superiores. O criminoso que invadiu a Central Elétrica. O sabotador que desligou a energia de toda a região. O terrorista que ameaçou com bombas três hospitais. Eu. Minha chefe entrou pouco depois. Tudo que eu queria era saber dos reféns. Estavam bem, sem ferimentos, e me senti aliviado. Tinha valido a pena. Quis saber dos três agressores, estavam sob custódia. Eu tinha mesmo impedido as tempestades elétricas, havia mesmo mudado o passado: não nasceriam outros pais como eu, não haveria mais sofrimento. Rasurei um sorriso nos lábios, algo bobo, e quis saber das armas, 53


se conseguiram identificar a origem - me sentia ainda a serviço das Forças Internas. Ela parecia ter outros interesses. — Você não se lembra de nada do que houve na Central? Agora eu percebia que minhas lembranças iam até o desligar da chave, tudo era nada depois daquilo, como se tivessem me golpeado e desligado minha consciência. — O que estou prestes a contar é sigiloso, mas não posso seguir este trabalho sem expor a você o que houve — pensou se deveria mesmo me contar e prosseguiu. O incidente na Academia foi planejado, foi tudo tramado pelo Governo. O caso se tornava enigmático. Continuou. — Os três agressores não entraram por acaso, nem a morte de Martinelli foi uma coincidência. Um novo modelo de armamento precisava ser testado e uma ativista precisava ser morta. Tudo travestido de um incidente inesperado. Era claro como o sol de verão que o governo havia aceitado a proposta da indústria de armas e tinha contratado aqueles três para invadirem a instituição e usarem as novas pistolas em inocentes. Não, eu estava errado. — As pistolas haviam sido testadas e já foram encomendadas pela União há alguns meses. Assunto velho. Sabemos da eficácia e do poder destrutivo delas. O teste ali era com outro tipo de equipamento. Eu não sabia de qual ela falava e minha chefe precisou me explicar. — Humanoides capazes de empunhar esta arma nova, de seguir ordens e de matar quem for necessário. Humanoides? — Robôs, máquinas assassinas que irão substituir soldados e policiamento. Vidas artificiais que irão atirar para matar. Talvez por isso não tínhamos encontrado nenhum dado sobre os três agressores nos arquivos. Então os boatos seriam reais? Eles exis54


tiam. Humanos cada vez mais substituídos por máquinas. Descontrole e caos social. — Você viu com seus próprios olhos, foi o primeiro a chegar. Sabe a visão governamental sobre a Academia, sabe o tipo de ideologia que se propaga naquele antro. Esse assunto é político e não nos diz respeito. Agora, me escuta. O principal teste não era com aqueles três humanoides, eles nós sabíamos que agiriam sem problemas, a missão deles era simples e direta. O teste era com a Classe B dos robôs, mais avançados e modernos. Máquinas que simulam sentimentos, que trazem memórias criadas e um passado que motiva. Máquinas capazes de desobedecer ordens e ir além para realizar o trabalho que deve ser feito. Máquinas que não têm escolha, que nunca tiveram. Tentei me acomodar na maca e voltei os olhos para minhas mãos, para minha pele e para os ossos que eu podia sentir por baixo dela. Levei meus pensamentos para a imagem de Nelson, para o rosto de minha exesposa, para o casaco e o chapéu pendurados no cabideiro. Era impossível. — Entende onde nós chegamos? Entende a importância que você tem para o país e para a humanidade? Você é um protótipo de um novo futuro. Um passo além na tecnologia elétrica e na inteligência artificial. Tudo que se conhece como mundo vai mudar a partir de agora, nossa sociedade jamais será como é hoje. Mesmo quando a rede foi cortada e você desligou, ao ser reconectado manteve as memórias, manteve os sentimentos. Você acha que é um paciente num hospital, você duvida do que acabei de falar, entende o tamanho disso? Você é o futuro no nosso presente. Há quanto tempo eu existia? Havia sido ligado minutos antes de minha chegada à Academia? As lembranças da tragédia na escola de Nelson, o próprio Nelson, minha ex-mulher, aquelas roupas, minhas condecorações, minha personalidade, meus questionamentos sobre as armas, meu jeito de falar... Há quanto tempo eu era eu? Por quanto tem55


po eu seria eu? Minhas digitais já estavam nos bancos de dados e permitiram minha entrada tranquila na Central Elétrica. Tudo planejado. O que era escolha minha e o que era um plano pré-determinado? — Eu sei que você tem uma série de dúvidas, eu sei que tudo isso é muito para você. Vou chamar o responsável pelo projeto, ele pode contar tudo que você quiser saber. Com certeza já ouviu falar dele, você vai adorar o Dr. Tesla. Enquanto minha chefe saía, uma lágrima escorreu de meu olho esquerdo. Tudo que eu pensava era que produto químico era aquele. Se seria salgado como o choro dos humanos ou se o HD em meu cérebro me enganaria e me daria a impressão de que tinha aquele gosto natural. Toquei na gota com a ponta do dedo e, enquanto levava minha digital molhada até os lábios, já nem me importava com a resposta. Aquela era a minha vida. Aquelas eram as minhas lembranças. Nelson era o filho que perdi. Minha esposa era a mulher que eu mais havia amado. Aquele era o meu emprego. Aquelas eram minhas lágrimas. Experimentei e, enfim, sorri. Eu não tinha escolha. Nunca tive.

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JoĂŁo Augusto de Nardo nasceu em Dourados, MS e ĂŠ editor da Revista Aterrorizante. Contato: jaoanm@gmail.com


BARRACÃO 13 JOAÕ AUGUSTO DE NARDO O clima daquele amontoado de terras e barracas que já se foi chamada de cidade era pesaroso, desesperançoso. Vejo carcaças e restos pelo chão. Urubus a aproveitar de podres cadáveres. Porém, em meio a tanta desgraça e degradação humana existe sempre alguém que tenta fazer o bem, ou trazer algo melhor para os outros. Esse era o caso de um jovem rapaz que trabalhava na empresa de energia; os postes com inúmeros fios onde corvos agora pairavam eram sua criação, porém ele queria mais, ele queria uma forma que a miserável população não precisasse pagar por energia e apenas a usufruir como merece. Enfim, era algo utópico, assim como as políticas de governo nesse mundo anárquico que parecia piorar a cada dia. Ele trabalhava escondido, embora todos ao redor soubessem sobre seus planos, o governo não poderia ter conhecimento, pois tratariam de silenciar suas tratativas. É medonho pensar que ideias estupendas como essa tenham chances de se tornarem reais. Em meio a tanto caos, violência e mortes, uma notícia que animaria o mais árduo pessimista. De alguma forma eu penso que o maior medo daqueles que governam é a ira de seu povo. Essa terra já passou por muitas guerras, fome e peste. Inúmeros desastres ocorreram para que chegássemos onde estamos, no início. Estamos exatamente como há anos, e apesar da evolução em inúmeros aspectos, voltamos à estaca zero depois de tantas rebeliões e violência. Era tempo de guerra. Os oprimidos tentavam lutar contra os líderes e suas grandes tecnologias. A tecnologia rara que pertencia aos governantes se tratava de uma teoria da conspiração criada, da forma em que vivíamos na miséria eles ostentavam, mas nunca tivemos alguma prova que eles tinham algo tão superior a nós. 58


Todos eles viviam um grande palácio, a cidade era dividida entre fome e abundância, e eu sempre estive do primeiro lado. Já com 20 anos e sem chances de mudança de vida, eu resolvi me integrar à rebelião, me juntei aos Braços de Ferro. Esse era o nome dos rebeldes, por conta do grande líder que em uma das inúmeras guerras havia perdido um braço e agora tinha de usar um de ferro para as batalhas. Juntei-me aos vários que batalhavam. O protesto que se tornaria violento seria frente ao mais nobre palácio do governante, e possivelmente lá estariam todos os segredos escondidos do povo. Por ser um novo recruta, fui colocado em uma função de risco, eu mal sabia o que fazer, mas deveria. Enquanto distraiam os seguranças, eu deveria entrar pela parte de trás em um buraco, que daria uma passagem para dentro do palácio, que foi construído há dias pensado nisso. Passei pelo túnel subterrâneo rastejando, e com uma garrafa d'água e lanterna como companheiras, o medo também me acompanhava após receber as ordens de invasão. O local era enorme e haviam diversos barracões com diferentes propósitos. Conforme me passou o Braço de Ferro, no décimo terceiro barracão haveria tudo de novo que é escondido dos mais pobres, e eu mesmo sem acreditar muito decidi avançar nessa caminhada a fim de ajudar todo o povo revoltado. Entrei no barracão treze conforme as ordens que recebi, lá estariam as supostas grandes tecnologias escondidas que roubaríamos dos porcos que nos governam. A porta de ferro que trancava o barracão era enorme, um pé de cabra enferrujado foi o instrumento que usei para conseguir abrir. O vento batia nas minhas costas e o suor escorria sob meu corpo com medo de ter sido descoberto ali. Meus olhos brilharam ao ver maravilhado tudo que havia ali. Um robusto androide estava ao lado de um gigantesco foguete de cor bronze que certamente era funcional. Eu podia ver uma série de armas e instrumentos extremamente superiores ao que usávamos em uma bancada, 59


enquanto tínhamos que lutar usando pedaços de pau e restos de ferro. Me sinto extremamente fraco, e tremi de medo ao perceber que não existia apenas um androide ali dentro, e sim um exército deles que aos poucos caminhavam em minha direção. Eles me observavam e eu percebi algo diferente nas mãos robóticas de cada um. Eram arma que lançavam raios de energia, eu pude ver que com apenas um disparo fechavam a porta que com muito esforço abri. Olhando para cima, vi o teto repleto por ondas de energia que eles poderiam controlar facilmente, assim como controlam a população liberando a mínima parte de toda a inteligência. Lá fora eram apenas homens usando armas já conhecidas por todos para impedir o avanço rebelde, aqui dentro era algo muito mais desleal. Logo após perder a minha consciência diante dos ataques quase invisíveis, fui carregado para longe dali sem que ninguém percebesse, e aos poucos abri meus olhos e pude ouvir a voz do jovem que em segredo de estado tentava trazer a energia para toda a população; "Onde está o meu dinheiro por toda essa inovação? Os pobres tolos ainda acreditam que nada descobri depois dos postes de energia. Se eu quiser eu distribuo toda essa energia gratuita ao invés dessa manipulação toda que fazem, quero minha parte”. Segredo de estado. Todas as maravilhosas descobertas que poderiam mudar o mundo estavam guardadas por puro ego dos líderes de estado. Era uma tecnologia só deles, onde os mais poderosos podiam usufruir e a partir dela controlar todo um povo que aos poucos se rebelava. Jamais me esquecerei do que vi naquele barracão, tantos segredos escondidos de uma população marginalizada. Agora estou deitado em uma sala totalmente branca, as ondas de energia passam por cima se mim e parecem me cercar. Ao meu lado estão os mesmos androides que me atacaram, agora com novos instrumentos sinto que passarei por uma cirurgia; eles riscam meu rosto e eu tenho quase certeza que passarei por uma lavagem cerebral, como toda a parte da pobre população que está parada e apoia os líderes que nos sufocam e atrasam, sinto que serei apenas mais um alienado após descobrir toda a verdade. 60


Caio Fraga é formado em Engenharia Elétrica pela UFMG. Nasceu em Vitória, ES. Possui uma página no Instagram pelo pseudônimo @divagandopoesia, na qual posta frases, músicas e poesias sobre a vida. Contato: caio_csmf@hotmail.com


Os Segredos do Tempo CAIO FRAGA Edison, inventor, gênio ambicioso e ligeiramente arrogante. Talvez o último aspecto seja um mal das mentes brilhantes. Talvez seja devido a sua perda auditiva. O fato é que, com mais de 2 mil patentes, possuía fama inigualável pelo mundo inteiro. Tesla, verdadeiro excêntrico, ímpar. Não apenas um ponto fora da curva, mas o ponto. Raramente dormia, fluente em oito idiomas, ambientalista e de memória impecável. Tinha obsessão por pombos e abominava brincos. Mas, nada mais misterioso que sua própria pergunta: — O que estou fazendo aqui? Edison tomava todas as capas dos jornais. Anos após inventar a primeira lâmpada incandescente, tornando-se O Mago da Luz, finalizava seu projeto mais audacioso: a eletrificação das cidades. O prelúdio da industrialização definitiva. A corrente contínua. Sua apresentação para líderes mundiais aconteceria em uma semana. Questionado pelo maior jornal da época sobre sua motivação e genialidade para chegar a este marco histórico, Edison responde ríspido: — Os três grandes fundamentos para se conseguir qualquer coisa são, primeiro, trabalho árduo; segundo, perseverança; terceiro, senso comum. Nunca fiz nada dar certo por acidente; nem nenhuma das minhas invenções surgiu por acidente; elas vieram do meu trabalho. Resumo essa genialidade como 1% de inspiração e 99% de transpiração². ² Essas frases realmente foram — e são — atribuídas ao Edison. O site Wikiquote não menciona a frase “The three great essentials to achieve anything worth while are: Hard work, stick-to-itiveness, and common sense.” Ela é citada no livro Life is Sweet: 333 Ways to Look on the Bright Side and Find the Happiness in Front of You (2008) e tuitada pelo perfil oficial de Donald Trump (2014). O Wikiquote também não menciona a frase “I never did anything worth doing by accident, nor did any of my inventions come by accident; they came by work.” Sendo atribuída, às vezes, por Platão. A frase “Genius is one percent inspiration, ninety-nine percent perspiration” foi mencionada, entre outras fontes, na Harper's Magazine (1932). Nota do organizador.

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Ao fim, o jornalista sugere que Edison dê um recado aos leitores celebrando esta conquista. Edison, brevemente: — No momento em que unimos nossos medos a nossas paixões, moldamos nossa história. O futuro é agora. Tesla acabara de acordar de um de seus curtos cochilos. Acordara sobre o jornal em questão no Attic Lab, principal laboratório de Edison, e divagava: — Sr. Edison... O que estou fazendo aqui? Como dormira sentado, sentiu o braço direito dormente por ter apoiado a cabeça e uma estranha dor latejar na orelha. Ao olhar o próprio reflexo no espelho, reparou em um desenho. Cerrou os olhos e confirmou um desenho inscrito a uma circunferência em sua orelha esquerda. Desorientado, disse: — Mas o que... Isso é um pombo? Um círculo? Estava surpreso com a marca, não fazia sentido algum. Somente ele sabia de sua estima por pombos e seu ódio por superfícies circulares. Eram algumas de suas tantas características estranhas que pessoas julgavam. Poucas sabiam de uma, menos ainda da outra. Ambas? Ninguém. Sentou-se atordoado. Incapaz de retomar seus projetos, abriu o jornal indo à matéria de seu chefe, Edison. Após ler a entrevista, sentiuse desconfortável. Aquele sentimento de que perdia algo. Releu a matéria: — O futuro é agora. O futuro é agora... E como que em uma epifania: — É isso! Tudo fez sentido. Tesla lembrou de suas aflições e de seu propósito. Olhou-se novamente no espelho, observou a marca em sua orelha e disse: — Quando unimos nossos medos a nossas paixões, moldamos nossa história. 63


Convicto, começa a repassar sua agenda mental. Seu laboratório foi um dos grandes motivos para se mudar da Áustria para os Estados Unidos. — Perfeito. Apesar de detestar reuniões, agendarei uma com Edison. Direi ser um assunto crucial em relação ao presente projeto. Será irrecusável. Mais tarde, no mesmo dia, Edison e Tesla se encontram no laboratório. — O que há de errado com o novo projeto? Ele funcionava perfeitamente! Ademais, notícias já se espalharam por toda a imprensa! Não posso refutar minhas palavras... — Desculpe o alarde, senhor. O projeto funciona. Mas precisamos ser cautelosos. O futuro é agora, mas pode ser uma catástrofe irremediável. — Tesla, pare de devaneios. O que quer dizer exatamente? — Senhor, não há maneira racional de dizer algo tão absurdo. Prefiro ser direto: eu venho do futuro. — Tesla, agora foi longe demais! Sempre soube que era louco. Que fantasia é essa?! — Senhor, o nosso futuro é um caos. Vim por meio de uma Máquina do Tempo. Pensei que coexistiriam duas versões de mim. Ao que tudo indica, a minha consciência foi transferida para meu antigo eu, enquanto meu corpo deve estar desfalecido no futuro, pois apareci neste laboratório e com aparência jovem. — Tesla, prove esta loucura se for capaz. — Senhor, acredito que não fará sentido: a energia elétrica trouxe desenvolvimento sem precedentes. O mundo inteiro está conectado. A crise energética mundial foi solucionada por meio da energia solar, eólica e nuclear. A qualidade e expectativa de vida aumentaram consideravelmente. Mas vivemos uma crise populacional. O nosso planeta não tem recursos para suportar-nos. As nações mais pobres têm uma vida 64


miserável. As mais ricas guerreiam constantemente por recursos e territórios. A solução que cientistas encontraram foi a de colonizar o espaço, já que o homem conseguiu ir à lua e enviar robôs a Marte. Na contramão, iniciei meu projeto de como viajar ao passado e tentarmos resolver esse impasse... — Tesla, chega. É impossível acreditar nestas falácias. — Senhor, posso provar. Meses após a corrente contínua, tive a ideia do uso de corrente alternada. O senhor foi contra. Devido a essa desavença, começo a trabalhar para a Westinghouse. Damos início à chamada Guerra das Correntes. Enquanto Edison permanece pensativo, Tesla realiza alguns rabiscos, e minutos depois diz: — Aqui estão: cálculos e esquemáticos! — Tesla, admito que são impressionantes. Talvez esse delírio faça algum sentido. Mas como eu poderia ajudar? — Senhor, ambos somos os responsáveis por esta revolução. Você é o homem mais honesto que já conheci, além de ser o mais influente e respeitado. No seu pronunciamento, você precisa alertar a todos sobre as consequências negativas deste advento. — Está bem, Tesla, assim o faremos. E você, o que pretende fazer? — Reconstruir a Máquina e retornar poucos minutos após minha partida daqui a exatamente 50 anos. Receio que, com tecnologia e elementos cruciais escassos, seja possível realizar uma única viagem, sem erros. Tudo não passa de especulação. Meus cálculos me possibilitaram vir aqui, mas são inconclusivos para viagens ao futuro. Passada uma semana, todos se encontram na praça principal da capital. Tesla, após terminado os últimos ajustes da Máquina, está ansioso e esperançoso em meio à multidão. O relógio sinaliza o início, mas Edison não se manifesta. Surge um homem cancelando o evento e lendo a seguinte nota: 65


— Vivemos tempos loucos, quem sabe o que o futuro nos aguarda? Uma frase simples para a maioria. Mas, para Tesla, a verdade é que fora trapaceado. Às pressas, correu para seu laboratório. Chegou tarde demais. Via o corpo de Edison desacordado na Máquina. O homem que tanto admirava e confiava o traiu, mesmo sendo alertado sobre os perigos futuros e o destino da humanidade. Tesla sempre fora um louco para os outros, não poderia fazer nada. Desolado, relembra de todos seus projetos abandonados por não ver perspectiva na humanidade, ou por serem de perigo mortal. Relembrou de seu projeto de Energia sem Fio e... O Raio da Morte. Não havia mais esperanças, mesmo o homem mais honesto pôde ser corrompido. Decide retomar o projeto do Raio e, agora, pensando em utilização pior do que os governantes pretendiam na sua época. Pretendia destruir o planeta inteiro. Se, no futuro, apenas ricos devem viver e em conflitos sem fim, então ninguém vive. Tesla constrói o Raio, aponta para o núcleo da terra e profere as seguintes palavras: — Este é o fim da humanidade... Nunca saberei os segredos do tempo. —x— — Faz dias que não recebo notícias do sr. Tesla. Ele estava desenvolvendo um projeto secreto, não me contou muito — como se eu fosse entender algo mesmo com explicação detalhada e paciente. Entregoume apenas esta instrução macabra. Deve ser alguma piada. Como assim “se eu estiver desacordado?”, como assim “um homem...”. O jovem seguia carregando a sopa exigida pelo mestre. Ao chegar ao laboratório de Tesla, ele o encontra desacordado dentro de uma máquina. A cena assustava. De repente, um sr. de idade levanta de sua cadeira — não havia sido percebido até então. O garoto pergunta: — O que houve aqui? O sr. Tesla está...? — Sou um colega de longa data, antigo chefe e mentor. Por ser de 66


confiança, pediu-me que estivesse presente neste derradeiro experimento. Infelizmente, Tesla não demonstra sinais vitais. O que tem aí na mão, garoto? Com a voz embargada e desorientado: — Tenho uma sopa, senhor. — Uma sopa? Por quê? — O sr. Tesla disse que hoje seria um dia de provação. Edson, com ar debochado, pensa: — Bastardo, quem diria! Assim como usei este método, carregouo até os dias de hoje. Edison escolhia seus funcionários oferecendo um prato de sopa à pessoa e perguntava se ela queria sal ou pimenta para temperá-lo; se o candidato escolhesse um dos dois ingredientes antes de provar a sopa, Edison o eliminava imediatamente³. — Garoto, na sua outra mão são sal e pimenta? — Sim, senhor. Edison, então, confessa algo especulado no passado: — Sabe, garoto, apesar de ser mais velho, ter mais invenções, ter sido seu chefe e perdido a tal Guerra das Correntes, em homenagem a este trágico momento, eu admito: Tesla sempre foi o verdadeiro gênio. Inigualável. Lágrimas escorrem pelo rosto do garoto que engole em seco. — Garoto, traga a sopa, o sal e a pimenta para esta mesa. Passarei meu legado à frente, o qual foi reconhecido pelo grandioso Tesla. O garoto prontamente coloca sopa, sal e pimenta na mesa. Edison pergunta: — Garoto, essa sopa é para você. Você prefere com sal ou pimenta?

³ Edison realmente escolhia seus funcionários para trabalhar na Edison Electric Light Company desta forma, como mencionado por Paulo Eduardo Nogueira na edição número 128 da Época NEGÓCIOS (2018). Nota do organizador.

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— Creio que pimenta, senhor, há algo de nobre em seu ardor. Edison gargalha enlouquecidamente. Imaginava o quão Tesla era um gênio inútil. Incapaz até mesmo de escolher um mísero ajudante. Então, esbraveja com mais uma vitória: — Eliminado, garoto! Você falhou no teste! Pegou uma colher de sopa e a tomou. Eufórico, engasgava e dizia: — Como é capaz de escolher sem sequer provar antes?! O garoto, envergonhado: — Desculpe, senhor, não sei. Apenas confiei cegamente no sr. Tesla seguindo esta pequena nota. Coloquei os ingredientes comuns, 100 mg de Hemlock... — Hem...? Edison, com expressão apavorante, jazia no chão antes mesmo de completar a sentença... Ou, em verdade, teria sido realmente concluída?

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Adnelson Campos é administrador, gerente de mineração da industrialização do xisto em São Mateus do Sul, PR. Possui sessenta textos publicados em antologias impressas e digitais, incluindo um conto em Teslapunk: contos de realidade alternada. É autor do livro Histórias que as estrelas contam: um pouco de astronomia para adolescentes. Contato: adnelsoncampos@gmail.com


RAIOS E ESCURIDÃO ADNELSON CAMPOS Uma das minhas primeiras missões foi no verão de 1856. Tudo estava preparado para mais uma inserção. Esta foi a forma escolhida para semear tecnologia, de dividir um pouco do conhecimento que adquirimos. Escolhemos o menino como hospedeiro. A preparação foi feita aos poucos. A mãe, em seus sonhos, nas noites de tempestades, foi a primeira a receber as informações. Sim, as tempestades elétricas foram nosso instrumento para criar o nosso Mestre dos Raios. Mas houve um imprevisto. As descargas elétricas também afetaram uma outra criatura, concebida quase que no mesmo momento que a primeira. Os partos aconteceram com diferença de poucos segundos. Os relâmpagos, raios e trovões criavam um clima assustador. A mãe parecia serena. Quando o menino dos Tesla chorou pela primeira vez, a parteira que o tinha nas mãos sugeriu que seria uma criança da escuridão, prenúncio de tempos tempestuosos. A mãe discordou, disse que seria da luz. Ela estava certa. A parteira também estava certa, pois num quarto de hospital, perto dali o outro menino, Andras nascia para fazer da luz uma tentativa de escuridão. Os meninos foram crescendo, como crescem os demais, exceto pelas visões. Tanto Nikola quanto Andras, as recebiam através de clarões de luz. Com base nessas visões escolheram a profissão, formaram-se em Engenharia Elétrica e a partir daí começaram a compreender um pouco mais das informações que recebiam em nossas inserções. Percebiam que estavam a frente de seu tempo, mas não sabiam como explicar como recebiam suas informações privilegiadas. 70


Tesla desenvolveu seus projetos em benefício da humanidade, enquanto Andras envolveu-se em projetos de destruição. Tesla migrou para os Estados Unidos, Andras preferiu trabalhar na Rússia, escondido através de um falso nome e da menor expressão da Rússia, naquela fase da história, como potência industrial e tecnológica. Mesmo apresentando os resultados concretos de seus trabalhos, muitos não os enxergavam como cientistas e acreditavam que os dois apenas transformavam a ficção científica em projetos teatrais, fundamentados nas ilusões que os perseguiam. Boa parte da comunidade científica os enxergava mais como preparadores de truques de engenharia do que como cientistas. Nikola sabia do poder de suas descobertas. Ao mesmo tempo que a energia barata, transmitida à distância traria benefícios para a humanidade, o uso indevido das fontes geradoras ou do direcionamento das energias transmitidas poderia gerar destruição. Andras dispunha das mesmas informações e conhecimento, mas sua obstinação por construir um raio da morte era maior que a de Tesla. Ele uniu aos seus experimentos às descobertas dos Curier na área da radioatividade, modificando a natureza, com base em suas próprias leis e nas definidas pelas pesquisas dos Curier. Não, nós não poderíamos interferir, apesar de nossa falha, pois queríamos o que de bom a tecnologia podia oferecer e colhemos armas de guerra com contrapartida. O excesso de informações que recebia e o descrédito da sociedade os tornou obcecados, não pelo poder, mas pela busca do reconhecimento do gênio que era. O primeiro grande teste do poder do raio de Andras aconteceu em 30 de junho de 1908. A partir de sua torre, numa pequena vila próxima a Moscou, dirigiu seus raios para o meio do Ártico, porém o gerador ainda não possuía capacidade suficiente para a distância e atingiu, por sorte, uma região de mais de mil quilômetros quadrados de floresta na re71


gião de Tunguska, na Sibéria. Como diziam alguns habitantes de regiões próximas, o clarão pareceu dividir o céu em dois. Indevidamente, alguns chegaram a propor que fora Tesla quem havia gerado tal destruição. Com apoio de parte do governo Russo, Andras continuou seu projeto. Em maio de 1824 o The New Times publicou que “Notícias vazaram dos círculos comunistas em Moscou que, por trás do recente pronunciamento de guerra de Trotsky, existe uma invenção eletromagnética para destruição de aviões”. Sim, tanto Tesla quanto Andras sofreram pressões para desenvolver algo que pudesse neutralizar o poderio de outra grande invenção daquele início de século terrestre. Embora não se tenha registro de algum avião abatido em conflito, havia relatos de que alguns aeroplanos tenham desaparecido, sem explicação, em pleno ar. Verdade ou não, russos e alemães diziam ter obtido sucesso em suas baterias antiaéreas eletromagnéticas. Ao menos os russos blefaram, mas Andras havia conseguido precisão em sua arma de raios, porém a curta distância. No outro lado do mundo, em Colorado Springs, Tesla fazia demonstração do que poderia ser uma arma de raios. O tempo passou, mas a obsessão dos dois pelo raio da morte não. Isso foi a causa de sua ruína. Registros, porém deixaram de lado muitas das informações inseridas por nós. Os governos sabiam que era muita tecnologia nas mãos de apenas um indivíduo e armaram seus planos para reduzir a credibilidade dos dois, cada um em seu país de trabalho. Sem dinheiro, não havia como levar os planos em frente. Andras era menos resistente e pensou em acabar com a própria vida. Antes, resolveu ler a coleção de recortes de jornais e de revistas que haviam lhe posto nas mãos, mas que ele recusava em ver, por não acreditar que alguém, do outro lado do mundo pudesse ter as mesmas ideias que ele. Passou a noite em claro, lendo. Quando o dia amanheceu, percebeu que não poderia ser só coincidência. Uma das matérias lhe chamou 72


a atenção. O texto dizia que Mark Twain era o autor preferido e amigo de Tesla. Um dos livros preferidos de Andras era O Príncipe e o Mendigo, do mesmo autor. Quando uniu este pensamento às informações da biografia de Tesla, pensou que talvez pudesse haver uma coincidência, pois habitavam a mesma região quando nascidos. Fisicamente não eram nada parecidos. Decidiu procurar Tesla. Conseguiu com a ajuda de alguns amigos no governo russo sair disfarçadamente do país, já que possuía informações consideradas de segurança nacional pelos soviéticos. Pretendia dividir seus conhecimentos com Tesla, se ele já não os tivesse todos, porém seu maior objetivo era receber mais do que fornecer informações. Voltaria para o solo russo, precisava recuperar sua reputação. Depois, desenvolveria sua máquina que deixaria todos em suas mãos. Chegou em Nova York em junho de 1931. A capa da Time Magazine estampava Tesla, em seu aniversário de 75 anos. A banca no aeroporto exibia os exemplares às dezenas. Embora reconhecido pela sua capacidade por cientistas e público em geral, Nikola estava pobre e recluso. Parecia a Andras que os dois teriam o mesmo destino, mas ele não tinha a fama do compatriota radicado em solo americano. Quando encontrou o hotel onde Tesla se hospedava, Andras não acreditou no que via. Os homens realmente eram incapazes de compreender e valorizar a genialidade. Talvez a destruição os trouxesse à razão. Andras bateu à porta do apartamento 333. O velho e desgastado Tesla o atendeu. — Pensei que fosse o porteiro novamente. Eu já disse para ele que não sou eu quem traz os pombos até aqui. Espere, parece que o conheço! Já nos encontramos antes? — Perguntou Tesla, reconhecendo no homem à sua frente a mesma expressão de olhar que ele via todos os dias quando olhava no espelho. — Não, não nos encontramos. Mas acho que temos algumas coi73


sas em comum. Reconheço aquele projeto pregado na parede de seu quarto! — Isto não é possível, o rabisquei e preguei ali hoje pela manhã e ninguém entrou aqui depois disso! Sem olhar para o papel na parede, Andras começou a descrever os detalhes do projeto. — Eu tive a mesma visão há dois dias, na cabine do navio que me trazia até aqui — afirmou Andras. — Muito prazer, senhor...? Vamos, entre! — Jak milé setkání s vámi, jmenuji se Andras — falaram em tcheco a partir dali. Tesla e Andras perceberam o quanto tinham em comum. — Acho que seu amigo Mark Twain estava correto, sim, seria possível dois seres nascerem praticamente ao mesmo tempo e terem muito em comum, não na aparência, mas pelo conhecimento — disse Andras. — Só que pelas aparências estamos os dois para mendigos e não há nenhum príncipe! Ambos sorriram. Algo raro para os dois nos últimos tempos. Os dois homens velhos falavam e anotavam freneticamente as informações de um e de outro. Se Andras desenvolvera seus estudos complementando-os com os dados das pesquisas radioativas, Tesla baseara alguns de seus projetos nas propostas de Einstein e de outros cientistas com quem havia convivido ao longo de sua vida. Como era comum para eles, não perceberam os dias e noites passados, nem a fome os tirou o foco das discussões. Depois de três dias, Andras partiu. Tesla usou um pouco da influência que ainda tinha e conseguiu uma passagem aérea para ele. — Tem certeza que não vai usar seus raios para destruir o aeroplano? — Brincou Andras antes da partida. Não chegou ao seu destino. Depois de pisar em solo inglês, foi 74


abordado em um beco de Londres. Depois de lhe tirarem os blocos de anotações, ele foi espancado até a morte. Mais tarde, alguns de seus inventos foram usados na guerra que surgiria, mas não o suficiente para se conseguir uma vitória. Tesla ainda tentou convencer alguns banqueiros e empresários a construírem algumas das máquinas propostas por ele, com base em algumas das novas informações que obtivera. Quem o recebia, acreditava que ele estava mais louco do que nunca. O avião fora inventado há pouco e o homem insistia em uma máquina capaz de voar numa velocidade próxima da velocidade da luz. Como Tesla insistia em divulgar tal conhecimento, o governo americano lhe confiscou os estudos. O tempo se apoderou de suas memórias. Os homens no comando desenvolveram armas de alto poder de destruição. Fomos obrigados a voltar. Em breve, um novo nome surgirá e será capaz de proteger o homem de si mesmo. O projeto Guerra nas Estrelas prosperará e será capaz de destruir armas lançadas através da atmosfera terrestre ou interceptar corpos celestes vindos do espaço. Novas máquinas voadoras surgirão, outras já existentes chegarão. Não desistimos de nossa missão.

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Jonnata Henrique reside em Brejo da Madre de Deus, PE. É poeta, escritor e cordelista. Participou de antologias pela Darda Editora, como Antologia Cibernética: contos cyberpunk, e pela Porto de Lenha e seus selos, como Abomináveis Pesadelos e Inefáveis. Contato: poeta.jonnata.henrik@gmail.com


A CENTELHA DE ZEUS, FAROESTE EM OESTE ROCHOSO JONNATA HENRIQUE Oeste Rochoso era um pequeno condado, localizado no meio do nada e com nada para oferecer: sem minas de ouro a serem exploradas, uma reserva de água generosa, que justificasse possível disputa territorial, também não tinha bons cavalos, uma fábrica de armas, ou um banco cheio de dinheiro. A exceção dava-se pela tímida mudança de cotidiano, proporcionada pela construção da via férrea, que passava no centro da primitiva aglomeração de pessoas. Foram meses de muita agitação, a cidade não dormia, os trabalhadores bebiam, jogavam, desfrutavam da companhia de meretrizes e, como sabemos, a combinação de álcool, jogos e sexo será sempre perigoso. Pancadaria, pólvora, póstumos predicados resultarão. Com a chegada dos trens, a luz veio como consequência do progresso, a humilde localidade passou por algumas transformações, já que, a evolução trouxe revolução. O saloon passou a funcionar em outro horário, resguardado na iluminação. A jogatina não foi muito beneficiada com a claridade, pois os cowboys, pistoleiros e outras espécies de apostadores tiveram seus truques e trapaças evidenciadas. O antro de perdição que funcionava na mesma rua aumentou movimento, graças aos frequentadores que passaram a ter segurança, num estabelecimento melhor iluminado, supostamente livre da ação de oportunistas. Finalizando o grupo de satisfeitos e insatisfeitos com o progresso, estava a igreja local, seu reverendo não gostava do fato, da edificação destinada a preces e louvores, estar localizada nas proximidades do saloon e do prostíbulo, que devidamente iluminados, tornavam difícil a vida do pregador, obrigado a suar bastante a camisa, para convencer os fiéis sobre o pecado morando ao lado. O tempo passou, e o local cresceu, graças a fama de possuir boas mulheres, diversão, e por abrigar os sujeitos mais procurados do oeste. Juntamente a esta progressão de status gerada pela inserção de energia 78


elétrica, surgiram os rumores, as lendas, as histórias sobre uma fonte de energia valiosa e inesgotável, atraindo aventureiros, foras da lei, e todo tipo de gente disposta a lucrar, em possivelmente mítica invenção. Nas mesas de jogos, no prostíbulo, entre os populares, e até mesmo na igreja circulavam informações sobre a visionária e divina “Centelha de Zeus”. Segundo descrições, tratava-se de uma bateria potente, do tamanho de uma garrafa de bom uísque, que poderia alimentar por eras, cidades, fábricas, servir de base fornecedora de eletricidade, para testar e movimentar o mercado em expansão de parafernálias tecnológicas. Oeste Rochoso havia crescido, indo de centenas para milhares num piscar de olhos, pessoas interessadas na corrida do ouro, ou melhor, a corrida eletrizante para localizar a Centelha de Zeus. Nesta busca, certos personagens destacavam-se pelo foco, criatividade, por mobilizarem recursos e irem até as últimas consequências para conseguirem o que querem. O inescrupuloso e carrasco Lord Belford, xerife da cidade, usando o que possuía à disposição para a frenética caçada. Espiões, bandidos, presidiários, prostitutas e intelectuais eram manipulados, ameaçados, forçados a trabalharem para atingirem seus objetivos. O banqueiro William Hart, figurava nesta lista, por acreditar o quão especial e lucrativo seria achar o reluzente item, podendo multiplicar sua já vultuosa fortuna, acrescentando significativos zeros a quantia. Por último, a bela e sedutora Linda Rockwell, mais conhecida como a estrangeira, uma inglesa que partiu pro tudo ou nada, em odisseia para localizar solução eficiente, que mantivesse vivo o seu debilitado rebento, carecendo de recargas mensais, cada vez mais caras, raras e provocando efeitos colaterais desagradáveis, queimaduras, desmaios e febres repentinas. Qual desses iria conseguir a meta? O xerife sedento por poder? O banqueiro ganancioso? A mulher que daria a vida pelo filho? Estas perguntas seriam respondidas, brevemente... Era mais um dia na enferrujada e empoeirada Oeste Rochoso, seria mais um dia de interrogatórios sangrentos do Lord Belford, chantagens e subornos de William Hart, diálogos persuasivos da estonteante e determinada Linda Rockwell, entretanto, o dia não terminou bem! 79


Circulava rapidamente, qual grão de areia numa tempestade, os boatos de um abandonado armazém, onde estaria a ansiada Centelha de Zeus. O xerife tomou providências, liberando todos os que estavam presos, prometendo liberdade e um lugar no novo mundo alimentado através de fabulosa engrenagem. William Hart, por sua vez, contatou os melhores caçadores de recompensas que o dinheiro podia comprar, direcionando-os para o armazém, recanto este, que Linda Rockwell se encontraria, pois não desperdiçaria a oportunidade de salvar seu primogênito. O bang bang estava anunciado, as balas dançavam, o sangue cobria o chão, o espetáculo de luzes e sons trazia frenesi para Oeste Rochoso. No armazém sobravam apenas alguns capangas do xerife e do banqueiro, enquanto embate continuava. Restando apenas Lord Belford e William Hart, os mesmos rolavam no chão, entre socos e pontapés, agarrados com o objeto que brilhava e vibrava gradativamente. Foi então que ocorreu o estampido, uma carga de luz maciça emanou do artefato, reduzindo a pele queimada, sangue e vísceras, o banqueiro e o xerife. Linda Rockwell, que estava escondida, se aproxima da centelha, agora negra, inerte, disfuncional, chora desconsolada, pois perdera ali a única chance de salvar seu menino, contudo, para seu júbilo, a Centelha de Zeus voltou a brilhar novamente, mantendo as esperanças de Linda. Talahada no aparelho, a seguinte frase: — A energia negativa será convertida em trevas, a positiva em luzes e bonança. Sabendo disto, descobriu, curaria seu descendente. Saindo do local, insere a centelha no coração de Vitor, salvando ele da morte certa. Abandonando o local, ela nunca mais foi vista, nem seu herdeiro mais que especial. Dias atuais, uma conspiração faz sucesso na internet, uma história sobre um menino com centenas de anos, aparência jovial, e um coração elétrico, cobiçado por nações, que lutam por uma energia limpa e sustentável, a Centelha de Zeus. 80


B. B. Benitez é físico e professor da Universidade de São Paulo. Possui contos publicados na revista SOMNIUM do Clube de Leitores de Ficção Científica. Ganhou o prêmio NOVA de 1990 (conto amador). Publicou O Beijo de Juliana: quatro físicos teóricos conversam sobre crianças, ciências da complexidade, biologia, política, religião e futebol (Editora Multifoco, 2014) e Projeto Mulah de Tróia (Drago Editorial, 2016). Contato: okinouchi@gmail.com


PASSAPORTE PARA MAGÔNIA B. B. JENITEZ Nikola Tesla morreu em sete de janeiro de 1943, mas ainda hoje somos surpreendidos por alguns de seus escritos, especialmente o que se convencionou chamar de seus “cadernos perdidos”, material revelado por biógrafos e historiadores a partir dos anos 2000. Aqui comentarei apenas seu caderno mais polêmico e curioso, apelidado por vezes de Passaporte para Magônia, em homenagem ao livro de Jacques Vallée. Tal caderno é visto como apócrifo por alguns de seus biógrafos, na tentativa de preservar a memória de Tesla. Outros o consideram fruto de uma mente delusional, senil e mesmo psicótica (sua última entrada é de quinze de dezembro de 1942, ou seja, menos de um mês antes de sua morte). O tema central do caderno são experimentos e teorias de Tesla sobre os assim chamados raios globulares ou relâmpagos esféricos (ball lightning). Na verdade, sabemos que Tesla tinha interesse por tal fenô4 meno desde meados de 1890, como atestam as Colorado Spring Notes . Nelas, Tesla faz hipóteses sobre a formação, duração, movimento e explosão dos relâmpagos esféricos. Nas ideias iniciais de Testa, expostas nas Colorado Spring Notes, um relâmpago esférico é uma massa de gás rarefeito muito aquecida pela passagem de um relâmpago e que se expande até se tornar visível e luminosa. Sua duração se deve a que o gás tem dificuldade em ceder energia ao meio ambiente, tanto por contato térmico quanto por convecção e mesmo radiação, durando assim vários segundos. Seus movimentos seriam lentos e mesmo erráticos, sendo carregado por correntes de ar. Finalmente, sua explosão final, relatada apenas em uma parte das observações, seria devida à enorme eletricidade estática liberada pelo relâm4

Tesla, Nikola (1978). Nikola Tesla – Colorado Springs Notes 1899–1900. Nolit (Beograd, Yugoslavia), 368–370.

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pago esférico quando em colisão com um meio material, seja uma mesa ou um corpo humano. Essas ideias iniciais seriam modificadas e reformuladas por Tesla ao longo dos próximos quarenta anos. Não sobraram muitos registros dessa atividade, aparentemente porque Tesla a considerava mais como um hobby do que pesquisa científica séria. Não publicou nada sobre o assunto (o que é um dos argumentos dos que defendem de que Passaporte para Magônia não é canônico). O caderno, porém, está escrito com a letra de Tesla e é compatível com a ideia de que, após aposentado, ele se dedicou integralmente a este seu hobby científico. O caderno não é um diário, mas um conjunto de relatos feitos de memória e teses que se sucedem no tempo, conforme o pensamento de Tesla se desenvolvia sobre o assunto. Apenas no final se encontram notas diárias. A primeira entrada é sobre uma observação feita em setembro de 1941 pelo navio mercante S. S. Pułaski, que transportava tropas britânicas no Oceano Índico, divulgada nos jornais da época. Dois marinheiros reportaram um “globo estranho brilhando com luz esverdeada, com cerca de metade do tamanho da Lua cheia”. Eles alertaram o oficial britânico, que observou o fenômeno por mais de uma hora. Tesla anota que, conhecendo-se apenas o ângulo sólido, mas sem se conhecer a distância do objeto, não é possível calcular o tamanho real do mesmo, de modo que poderia ser compatível com um relâmpago esférico. Observa também que o tempo de observação é muito grande e incompatível com suas teorias. Uma anotação na margem do caderno apenas diz “estudar melhor mecanismos de estabilidade dos ball [lightning]”. Parece que foi este caso com duração anômala que despertou novamente a atenção de Tesla para os relâmpagos esféricos. Nas próximas anotações, do início de 1942, Tesla freneticamente esboça várias ideias sobre como o fenômeno poderia adquirir estabilidade, nenhuma delas muito satisfatória. E então lhe vem uma ideia não usual, dado que ele tinha ojeriza em relação à Teoria de Gravitação de Einstein e mesmo a re83


jeitava em público: um miniburaco negro carregado e com momento angular poderia emitir luz via processo acreação do ar vizinho, e assim ter duração estável indeterminada. Mas é claro que Tesla, não sendo físico-matemático, não elabora realmente as equações que controlariam o tal relâmpago-esférico/buraco-negro, nem fornece uma ideia de como tal objeto poderia surgir do nada em nossa atmosfera. Lembremos que Tesla é um engenheiro-inventor, um homem prático, não um teórico, embora seu lado teórico tenha se desenvolvido em seus anos finais. Assim, não lhe basta criar apenas mais uma ideia (na época, já haviam várias outras sobre a origem dos relâmpagos esféricos). Tesla quer e precisa fazer um experimento para provar sua teoria. Assim, contata um colaborador mais jovem e ainda na ativa, o suíço Michel Aegerter, que também tinha algum interesse no assunto, tendo publicado uma teoria de que relâmpagos esféricos seriam aerogéis de sílica gerados pelo contato de raios muito energéticos em areia comum. Extratos das cartas entre os dois pesquisadores foram reproduzidas no caderno Magônia. Nelas Tesla observa que o fenômeno observado pelo S. S. Pułaski ocorreu no mar, contrastando com as ideias de Aegerter. O suíço responde que a formação inicial da bola luminosa poderia ter se dado sobre um banco de areia atingido por um raio. Ambos notam que a reportagem não relatava as condições do tempo no momento da observação, ou se relâmpagos e raios estavam presentes. Aegerter possuía na época acesso a um grande laboratório de engenharia elétrica na Universidade de Nova Iorque. Monta então uma equipe informal com pesquisadores admiradores de Tesla, visando testar suas ideias. Percebem que, se for possível criar miniburacos negros via cargas eletrostáticas, a quantidade de energia a ser concentrada seria enorme. Mas Aegerter e Tesla concordam que a teoria do miniburaco negro não precisa estar certa: basta que criassem um relâmpago esférico artificialmente para que tivessem elementos sobre como aumentar seu tempo médio de vida. Optam por uma mistura das duas teorias: o raio 84


artificial seria ordens de magnitude maior que os produzidos nesse tipo de estudo e estaria dirigido para uma placa de pura sílica. Devido à idade, Tesla não acompanha de perto a montagem do experimento, mas é convidado com pompa para o primeiro teste, realizado em uma data não muito alvissareira, treze de novembro de 1942, uma sexta-feira. A partir daí, as anotações se sucedem em um frenesi: algo aconteceu no experimento, algo que nem Tesla nem Aegerter conseguem explicar totalmente, algo em que a física da eletrodinâmica interage com a física do corpo humano, do cérebro humano, da mente humana. É aqui que o caderno Magônia deixa de ser apenas científico e se torna um relato pessoal de uma mente atormentada. Curiosamente, a primeira entrada sobre o experimento não ocorre no dia do experimento, mas no domingo, como se Tesla estivesse se recuperando de algo muito traumático. Ele escreve em quinze de novembro: Aegerter ainda não responde aos meus telefonemas. O que realmente aconteceu? Alucinações induzidas por indução magnética? Gases psicotrópicos sintetizados na sílica? Real? Não, não é possível! Mas… e as fadas? os anjos? os monstros? Virgem Maria, Jesus. Estudiosos do manuscrito divergem sobre o significado da última frase. Afinal, Tesla não era um homem religioso5, não caberia aqui ele fazer uma exclamação mais apropriada na boca de um católico. Alguns especulam que a produção do relâmpago esférico afetou a mente dos observadores, por meios físicos ou químicos, como bem conjectura Tesla. E que alguns deles, segundo sua cultura própria, viram fadas, ou5

Tesla, como mencionado no posfácio, era religioso.

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tros a Virgem Maria, outros a figura de Jesus. Não fica claro o que Tesla realmente viu. Seguem-se as anotações dos dias seguintes. São muito breves, como se Tesla quisesse mandar uma mensagem telegráfica para si mesmo em vez de uma descrição completa. Segunda, 16/11: Ainda não consigo dormir. Súcubos. Terça, 17/11: Michel veio me visitar. Compartilhamos as visões. Não são idênticas, mas parecidas. Muitos dos pesquisadores do projeto estão tendo colapsos mentais. Ele ordenou o desmonte do experimento. E diz que está sendo seguido por agentes do governo. Quarta 18/11: Uma pequena bola luminosa flutuou em meu quarto. Durou um minuto (ou mais?), e se apagou suavemente. Quinta, 19/11: Unicórnio em meu jardim, escondeu-se na floresta. Sábado: Anjos e demônios lutando por mim. Portas do inferno. Domingo, 21/11: Michel foi internado, esquizofrenia paranoica. E eu, quanto tempo? Existe um hiato aqui. As anotações retornam em dezembro. Sexta, 4/12: O sexo com deusas é extenuante. Domingo, 6/12: Conversas com espíritos. Fantasmas pela casa. Uma semana sem registros. Pesquisas posteriores revelaram que Tesla buscou médicos psiquiatras neste período, sem resultados. Sábado, 12/12: Extraterrenos? Visitei sua nave espacial? Cirurgia. Colocaram algo em minha cabeça. Ou simples paranoia? Domingo, 14/12: Vozes que não param. Tormento. Segunda, 15/12 Súcubos novamente. Preciso dormir, não aguento mais tanto prazer e dor. Exausto. Não existem mais registros no manuscrito até seis de janeiro. Nele, uma simples frase: Morrerei amanhã. Enfim, a liberdade.

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Caliel Alves nasceu em Araçás, BA. Possui contos publicados na Antologia Cibernética: contos cyberpunk (Darda Editora) e na Cyberlife (Editora Sem Tinta), além da web novel Um Reino de Monstros, publicada em plataformas pela internet. Contato: caliel_alves@hotmail.com


DANÇANDO SOBRE AS FAÍSCAS CALIEL ALVES Art. 1º A produção, distribuição e consumo de energia elétrica deve atender a critérios de segurança nacional e desenvolvimento econômico. [...] Ato Adicional nº1, Diário Oficial da União - Seção 1 Guanabara, 117º da Independência, 48º da República. O carro ronronava baixinho. O céu se preparava para chover canivete. Ele pôs a cabeça para fora do carro, já garoava. Voltou ao volante. Numa pichação do muro à sua frente estava inscrito: “Goethe é gueto”. Ele tentou não imaginar qual as mensagens subliminares implícitas naquela inscrição. Pensou em desligar o carro até a viatura desaparecer. Mas estava mais seguro com o veículo ligado, preparado para uma possível fuga, em ruas inóspitas das comunidades periféricas, onde inexistia luz. Postes e rede elétrica se estendiam como monumentos de um progresso sepultado em ruas e vielas obscuras. Havia lugares onde se descolava um “gato”, o motorista sabia onde. Tratar com os traficantes de energia é que são elas. Esteve tão perto! Agora estava ali, praticamente encurralado entre as facções. O aparato repressor do Estado marcava forte presença. Um novo tipo de blindado “Caveirão” quebrava algumas das barreiras montadas pelos traficantes no outro lado da rua. Um helicóptero fazia um voo rasante. 88


Estava como que tudo pronto a um trágico desfecho. O crepúsculo demarcava a hora do caos. O blackout institucionalizado nas comunidades pobres era a deixa para que os praças saíssem de cena e entrassem as diversas maltas em ação. Não havia mais tempo a perder. Aquela área era uma das zonas mais perigosas da cidade. A chuva aumentava. Os escoadouros se entupiam com lixo, fazendo com que a água subisse rapidamente ao nível dos pneus. Demorando um pouco mais ele estaria ilhado. Acelerou o carro. A distância foi vencida com alguma dificuldade. A carroceria vibrava e o sistema de refrigeração começava a apresentar falhas, logo iria fundir o motor. Caso a água alcançasse as placas de circuito, estaria perdido. As ruas labirínticas guardavam segredos. As casas se lançando sobre os passeios públicos transmitiam uma agonizante claustrofobia. Uma cidade cancerígena dentro de outra cidade. Marcada pela segregação social e terrorismo de Estado. Watts dirigia com resignação. Do alto de lajes, traficantes locais portavam pistolas-tasers. Um único tiro e o alvo poderia ficar imobilizado, ou encontrar a morte certa. O motorista buzinou, apagou os faróis e os acendeu umas três vezes. O olheiro fez que sim com a cabeça. Essa era a deixa, o aval do avanço. Dentro do carro, ele aumentou o ar-condicionado. No painel, um crucifixo enferrujado preso ao espelho. Uma miniatura de Tesla balançava a cabeça ao ritmo das ruas esburacadas. Logo acima do visor eletrônico em néon, a foto de sua esposa. O carro adentrou um velho galpão dentro da comunidade. Lá dentro, diferente da obscuridade do mundo lá fora, havia luz. Uma orgia iridescente. Centenas de lâmpadas, fios e tomadas de variados tipos se entrecruzavam pelas estruturas de metal e pilastras. Dezenas de carro elétricos estavam sendo desmontados com uma prática ini89


gualável. Todos estavam armados até os dentes. Viam-se de jovens a adultos, todos o seu quinhão nesse mundo dividido entre aqueles que tem direito e os que lutam por ele. Watts já entrou com os vidros fumê abaixados. Em negócios no submundo, o jogo do claro e escuro demonstra poder. E o forasteiro sabia bem disso. O líder local veio recebê-lo. Era um rastafári de 1,80 m, com tatuagens e usando um moletom marrom, a mão, uma metralhadora com trava eletromagnética. A volta dele, dezenas de milicianos. — Watts, meu bom, até que enfim você deu o ar da graça — disse o homenzarrão. — Desculpe, tinha esquecido o meu guarda-chuva — retrucou o outro. Ambos se cumprimentaram à moda do gueto. O traficante de energia ofereceu um cigarro enrolado em palha, o interlocutor rejeitou. — Você é muito cafona, sabia — falou o contraventor. — Olha, cara, eu vim aqui falar de negócios... — Pra quem mexe com essas coisas, tu tá muito apressado, morou? E reacendendo o cigarro com um isqueiro, ele soltou uma longa baforada no rosto do outro. O traficante local vivia de instinto. E quase nunca falhava. Watts era um cara de meia-idade, com porte militar e linguagem de favelado. Um mulato que se vestia de modo puído e mesmo assim tinha um possante! Nada se encaixava para o criminoso. — Quanto de energia tu quer? — perguntou o chefe local. — Um gato que dê uns vinte dias por aí assim... — Isso é muito, esse tanto é difícil fornecer. Vai aonde? Lua? — Uruguai — disse ele. — O país está em processo de redemocratização. O traficante coçou o queixo com sua mãozorra. Deu sorriso debochado e ordenou: 90


— Puxa o rabo do gato pro nosso maroto aqui — disse ele. — E aproveita também e faz uma busca. — Velho, pra que isso? Eu... Ele não pôde completar. O rastafári colocou a arma apontada para sua cabeça. Watts ficou imóvel, pôs as mãos na cabeça. E olhando firme para o criminoso disse: — Se me matar não tem grana — disse o prisioneiro. — Se a gente encontrar surpresinha nesse carango, sua morte vai ser o meu pagamento. Como dizia minha vó: “Confie desconfiando, meu filho”. O cabo de alimentação foi conectado ao carro. O painel se acendeu por trás dos vidros fumê. O mostrador digital fascinou o traficante. Quando carro passava pelo processo de recarga, os sistemas do carro se ligavam automaticamente. E isso era um problema para Watts, pois podia denunciar o sistema de rastreamento do carro. Os traficantes tentaram abrir o carro, mas não conseguiram. — Chefe, a joça não abre! — E por quê? — questionou o traficante. — A droga da maçaneta só abre se lê as digitais do dono — retrucou o jovem. — É simples — disse o líder —, é só pedir um dedo de nosso amigo emprestado — disse o traficante arrastando uma faca da cintura. O homem acuado tremeu. O agressor se aproximou com a lâmina em riste. Quando iria desferir o primeiro golpe, o inesperado deu o ar da graça. Um dos portões do galpão foi arrombado pelo Caveirão. O veículo que em suas laterais ostentava o símbolo do Batalhão da Ordem Patriótica Estadual – uma enorme caveira de boina militar mordiscando um punhal, tendo ao fundo duas pistolas cruzadas –, adentrou como a suprema cavalaria. De pontos estratégicos nas laterais e no teto do veículo, os militares desfecharam um fogo cerrado com munição eletrocutora letal. 91


Watts aproveitou a deixa para derrubar o seu oponente no chão. O traficante revidou e golpeou com um soco em seu flanco. A dor foi insuportável e fez o infiltrado cair longe. O oponente saltou sobre ele com a faca. O oficial segurou os braços do inimigo, tentando evitar o golpe fatal. À volta de ambos, acontecia um violento tiroteio, onde os projéteis de descarga elétrica silvavam pelo ar, indo explodir nas paredes ou nos corpos com um som de chilreio. Do teto, os militares faziam sua entrada triunfal, descendo do enorme helicóptero. O líder do crime local rangia os dentes, o outro apenas tentava defender-se da investida. — Eu sempre soube que você era um milico de merda! — E você um ladrãozinho de energia qualquer — retrucou o outro. — A gente rouba essa merda porque o governo não fez a parte dele, mano — disse o traficante ampliando a força dos potentes braços. — Só tem luz no centro, nós ficamos aqui às escuras como bicho. A conta de luz só aumentava. Quando o povo não tinha mais nada, brou. O povo se revoltou. A droga do racionamento impediu criança de estudar, do povo ir ao hospital e... Um tiro acertou a cabeça do agressor. Watts jogou o corpo do defunto para o lado. Ergueu-se do chão há muito custo. Um alto oficial o ajudou, o líder da operação. O homem não parecia feliz com o desfecho. — O que foi, sargento Watts? É só mais um traficante qualquer. Estatística. — Esse é o problema — disse Watts. — Não me tornei militar para engrossar as estatísticas. — Muito bem — retrucou o chefe da operação. — Espero que não tenham tocado em um fio do seu cabelo — rosnou Watts. — Ela teve um tratamento “diferenciado” para um perigoso agente subversivo como sua esposa — disse o chefe da operação. — Conse92


guiu infectá-lo com ideologias alienígenas, desviando o seu caráter contra a Doutrina de Segurança e Desenvolvimento... — Não seja paternalista, mostre-me que ela está bem! — ordenou o homem, severo. — Alguém que usa a mulher de um homem como suborno para fazer algo contra a sua vontade não pode falar de caráter — desafiou Watts. O alto-oficial cedeu fotografias do cárcere onde a mulher estava. Era uma sala pequena, na sede do Serviço Nacional de Informação. Tinha banheiro com ducha, uma mesinha e uma cama retrátil. Parecia saudável, apesar das olheiras. Watts guardou a foto no bolso da japona e caminhou ao seu veículo. Tinha uma esposa para rever.

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Maurício Coelho nasceu em Belém, PA. É formado em letras inglês pela UFPA. Possui quatro obras publicadas, entre elas Crononautas e Notívago. Em 2019, publicou Fantasmagória e outros poemas, de Lewis Carroll. Contato: moccoelho@gmail.com


CIDADE LUZ MAURÍCIO COELHO Plínio, todo vestido de preto, escorava-se em um poste de Li-Fi colocado recentemente por funcionários públicos da cidade de Santa Maria de Belém do Pará. O poste, além de fornecer iluminação de neon, disponibilizava internet gratuita para os transeuntes. Ele aguardava por Lévy. Lévy, um angolano, refugiou-se no norte no Brasil há quatro anos. Viera atrás de emprego nas inúmeras usinas solares e pluviares cercadas ao redor da capital. Com as políticas públicas de integração do governo, Lévy conseguiu emprego como operador de máquinas elétricas na Usina Pluvial do Grão-Pará. O autocarro do governo parou bem em frente ao poste que Plínio estava. Lévy, trajando o macacão laranja da empresa, notoriamente cansado saía do veículo a passos de tartaruga. Cumprimentou o amigo. — Eu tenho um trabalho pra ti – disse Plínio, tirando os óculos escuros. Mesmo à noite, era extremamente claro. — Eu já tenho um trabalho – replicou Lévy. — Tu também já tem. Como andam as coisas na usina de reciclagem? Plínio sempre trabalhou na estatal E-Lixo Reciclagem de Mosqueiro. — É, é um bom emprego – confessou. — Eu quero mais. Quero ganhar mais, sabe? — O que tem em mente? – perguntou Lévy. — Não quero nada ilegal. — Moedas eletrônicas. Após um suspiro, Lévy indagou: — Moedas eletrônicas? — Sim, teslapiéce, para ser mais específico. Como Lévy nada disse, Plínio continuou: 96


— Teslapiéces são moedas virtuais inventadas para... — Eu sei o que elas são – interrompeu Lévy. — O que tu quer com isso? Por que precisa da minha ajuda? — Nós vamos roubar as grandes corretoras privadas. Tu vai me ajudar a hackear. Lévy elevou as mãos até as têmporas. Os primeiros cabelos brancos já se atreviam a aparecer. — Não seja idiota, tá bem? Eu fiz um! Somente um trabalho para um hacker em Luanda. Não sou um hacker. Eu não faço isso. — Mas fez, não fez? O que tu fez mesmo? Era ilegal, não? — Só porque eu fiz, não quer dizer que vá fazer de novo – Lévy admitiu. — Mas tu mexeu com isso, com TP, sabe como as TPs funcionam... — Esquece – disse Lévy, levantando a mão. — Cinquenta. Cinquenta porcento. Cinquenta meu, cinquenta teu. A gente só precisa de um handnote e internet pra isso. Por sorte, a gente tem os dois – respondeu Plínio, tirando o aparelho do bolso e apontando para a luz de neon do poste. —x— Faltavam poucas horas para o sol raiar. Eles estavam sentados no meio-fio. Lévy bocejava. — Concentra. Tu já rompeu a primeira barreira de autenticação – disse Plínio. A bateria do handnote já teria descarregado se não fosse pelo banco-elétrico portátil conectado ao dispositivo. — Agora falta só mais uma. — Por que eu tô fazendo isso? — Porque eu te convenci – replicou Plínio, dando tapinhas no ombro do amigo. — Sabe quem é assim de convencer os outros? — Quem? 97


— O Diabo. Plínio riu. — Consegui – declarou Lévy. — Já? — É. Depois da primeira barreira, a outra fica fácil. Só preciso do número da tua carteira eletrônica pra transferir tua parte pra lá. Plínio acessou no handnote e Lévy digitou. — Quanto deu? – perguntou Plínio. — 108 milhões TPs. Se a gente converter, vai dar uns 4815 milhões de réis. Já está na conta. Plínio abriu um largo sorriso, como um maligno gato de Cheshire. — Metade, metade, como combinado – ele disse. Lévy se levantou, espreguiçando-se. Ajudou o amigo a se erguer. — Nunca mais vou trabalhar – proferiu Plínio. — Boa sorte. A gente se vê. Despediram-se. Foram para suas respectivas casas-contêiner para descansar. —x— Plínio acordou com o estrondo na porta da sua casa-contêiner. O barulho ressoava por todos os cantos. Levantou-se com raiva e abriu a porta. Era um guarda-autômato. Daqueles modelos antigos, de uma década atrás, com dois metros de altura, uma pistola desintegradora na mão e um compartimento cheio de granadas elétricas no peitoral. — Identifique-se – ordenou a máquina. — Plínio Calce. Portador do RG de número 162342. — Senhor Plínio, siga-me. O senhor está banido da cidade de Santa Maria de Belém do Pará. — O quê? — Por favor, senhor, siga-me – os dedos do autômato se fecharam, segurando a pistola com mais força. 98


Plínio saiu da residência apenas com a roupa do corpo: pijamas e chinelos. Entrou na viatura policial e lá dentro, através da janela engradada pôde ver Lévy se comunicando com o guarda. — Lévy! – ele gritou. Lévy, que tá acontecendo, cara? Lévy, olha pra cá. Lévy se aproximou do veículo, encostando-se na porta. — Parece que vai conseguir o que queria... Tu vai ser banido, vai pra fora dos muros da cidade. Não vai mais poder trabalhar nunca mais. — O quê? — Roubo é coisa séria. Essa é a pena para quem rouba moedas eletrônicas. Nada que tu não saiba. — Não é possível... Cara... Mas e tu? Lévy... Lévy – Plínio não acreditava. — Tu me denunciou? — Eu fiz um acordo com a polícia. Denunciei o hacker que roubou milhões de TPs e em troca, posso trazer minha família pra morar aqui. Em poucos anos, iremos obter o visto de cidadania brasileira. Plínio ria nervosamente. — Tu não precisava disso. Tu não precisava me denunciar. E todo aquele dinheiro? Poderia ter utilizado todo aquele dinheiro pra trazer tua família. — Sabe, Plínio, às vezes fazemos acordo com o Diabo – Lévy bateu na traseira do carro sinalizando o autômato para dar partida. Lévy ainda pôde ver as feições de Plínio. O rosto vermelho e as veias pulsando na testa. Provavelmente estava xingando tudo e todos. O carro seguia rapidamente até a zona de banimento, até a região escura.

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Tesla: filósofo da natureza e futurista PROF. DR. EDGAR INDALECIO SMANIOTTO

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Nikola Tesla viveu entre o fim de um mundo e o início de outro mundo, o mundo que findava, e do qual ele era um representante era o velho mundo dos filósofos da natureza, homens dedicados a explorar o mundo “o Cosmos”. O novo mundo, era o mundo dos inventores empresários, homens cuja dedicação a ciência visava o domínio da natureza e daí construir máquinas com o qual podiam criar novos empreendimentos e amealhar fortunas. Se Tesla era um filósofo da natureza, Thomas Edison, que viria a ser seu maior rival, era um inventor empresário. Sérvio, Tesla nasceu em 1856, já sob as conquistas da primeira revolução industrial, e na época certa para contribuir com a segunda revolução industrial, da qual seria uma das mentes mais revolucionárias. Teve uma infância marcada pela perda do irmão, pela descoberta de suas aptidões para a ciência e o desejo do pai, padre ortodoxo, de que seguisse uma vocação religiosa. Tesla foi um aluno notável, conseguindo sempre um ótimo desempenho, a sua dedicação se somava a uma incrível capacidade imaginativa. Por toda a vida Tesla dirá que conseguia visualizar mentalmente cada parte de suas invenções, capaz de concebê-las mentalmente com detalhes, antes de enveredar para a sua construção. Nisso irá se diferenciar de seu futuro rival, Thomas Edison, que utilizava um método oposto, ou seja, a tentativa e erro, iniciando experimentos práticos, pois era pouco afeito a teorias e experimentos mentais. Poliglota, Tesla dominava doze idiomas e era um leitor voraz, conhecedor de literatura e da filo6

Filósofo, antropólogo, mestre e doutor em Ciências Sociais. Pesquisador, trabalha com antropologia da ficção científica, transumanismo, filosofia da astrobiologia e da astronáutica. Site: www.edgarsmaniotto.com.br; Contato: edgarsmaniotto@gmail.com 102


sofia. Leu, por exemplo, as obras completas de Volteire, filósofo conhecido pela defesa da livre expressão, do iluminismo e da obra de Isaac Newton. Foi um de seus professores, Poeschl, que em uma experiência em sala com um dínamo despertou a vontade de Tesla em se tornar um engenheiro elétrico, carreira que ele conseguiu seguir após uma doença. Tendo quase falecido, em meio à doença seu pai prometeu que deixaria o filho seguir qualquer carreira caso se recuperasse. Tesla pôde então seguir a carreira de engenheiro elétrico, ao invés de religioso. A Eletricidade não era mais um mistério, diversos cientistas tinham desvendados seus múltiplos aspectos. O filósofo jônico Tales havia descrito a eletricidade estática; o médico inglês Willian Gilbert em 1600 publicou uma obra, resultado de dezoito anos de pesquisa, sobre a relação entre eletricidade e magnetismo; o alemão Otto von Guericke em 1660 “construiu o primeiro gerador eletrostático” (SÁNCHEZ, 2016, p. 27). Na década de 1730, o inglês Stephen Gray “descobriu que a eletricidade podia ser transportada por um corpo condutor” (SÁNCHEZ, 2016, p. 27). Na mesma época o físico francês Charles du Fay descobriu a existência de dois tipos diferentes de cargas elétricas, já o holandês Pieter van Musschenbroek inventou a garrafa de Leiden, que podia armazenar cargas elétricas, utilizada por Benjamim Franklin em sua famosa experiência com uma pipa, em que buscava armazenar a energia de um raio (SÁNCHEZ, 2016). O anatomista Galvani (1737-1798) por sua vez estudou a eletricidade animal, enquanto Volta (1745-1827) se dedicava a eletricidade mecânica e desenvolveu a pilha voltaica. A partir da construção de pilhas voltaicas, Humphry Dady iria demostrar que a “eletricidade produzida pela pilha voltaica provinha de interações eletroquímicas” (SÁNCHEZ, 2016, p. 43). Faraday e Ampère, já na primeira metade do século XIX, deram o importante passo que tiraria a eletricidade do campo das ciências puras 103


para o campo das engenharias: “Dois aparelhos especiais nasceram dos trabalhos de Faraday e Ampère, que foram depois utilizados e aperfeiçoados por Edison e Tesla. O primeiro é o dínamo, que produz uma corrente elétrica fazendo girar uma bobina de fio num campo magnético; o outro é o motor elétrico, que transforma energia elétrica em energia mecânica” (WHITE, 2003, p. 194-195). Após uma breve carreira como engenheiro na Europa, Tesla, com uma carta de recomendação foi para os Estados Unidos fazer a vida, e trabalhar junto aquele que era seu maior ídolo e futuro concorrente: Thomas Edison. Tesla trabalhou por um ano para Edison, sendo um funcionário competente e dedicado, mas acabou pedindo demissão ao não ter seu acordo e pagamento por seus trabalhos honrados por Edison (WHITE, 2003). Tesla, que acreditava que “os fatos mostram de modo inequívoco e universal que os melhores resultados são sempre obtidos pela sadia competição comercial” (p. 98-99), fundou sua própria empresa, a Tesla Electricity Company, dedicada à pesquisa e distribuição de energia elétrica utilizando corrente alternada. Sua concorrente, a poderosa Continental Edison Company, trabalhava com corrente continua, inicia-se então a guerra ou batalha das correntes (WHITE, 2003; SÁNCHEZ, 2016). Estes dois tipos de correntes pressupõem duas formas diferentes de fornecer e gerar energia elétrica. De acordo com Sánchez (2016), a corrente contínua “circula sempre num mesmo sentido e os seus valores instantâneos são constantes no tempo. Os terminais de maior e menor potencial são sempre os mesmos e a voltagem é constante” (p. 77), atualmente este tipo de corrente é utilizada em pilhas e baterias elétricas. Já a corrente alternada é aquela em que “o sentido do movimento das cargas varia ciclicamente” em um total de “cento e vinte mudanças de sentido por segundo”, para sua utilização a “corrente alternada pode transformar-se em contínua por meio de um dispositivo chamado retificador” (p. 78-79). Hoje é a corrente alternada que é utilizada no mundo 104


todo, mas no final do século XIX, não ficava claro qual seria a corrente vencedora. George Westinghouse (1846-1914), um inventor e empresário genuinamente preocupado com a melhora de vida das pessoas, passou a apoiar as pesquisas de Tesla, possibilitando então que este viesse realmente a concorrer em igualdade com Thomas Edison, que era conhecido e tinha como sócio o poderoso banqueiro J. P. Morgan. Surgia assim a Westinghouse Electric Company, empresa que ficou com a propriedade das patentes de Tesla. A concorrência entre as duas companhias elétricas se torna uma guerra, com golpes baixos como a eletrocussão de animais com corrente alternada por parte de Brown (engenheiro ligado a Edison); a execução do primeiro criminoso em uma cadeira elétrica utilizando a corrente alternada (feita por Brown), e uma implacável propaganda liderada por Edison contra Tesla com a divulgação de panfletos e artigos acusando a corrente alternada como insegura (WHITE, 2003; SÁNCHEZ, 2016). Mesmo utilizando todos estes métodos, que foram prontamente rechaçados e desmentidos por Westinghouse, Edison não vence a guerra das correntes, que por fim é vencida por Westinghouse e Tesla. O modelo de distribuição de energia por corrente continua era mais cara “exigia a construção de estações geradoras individuais e podia ser utilizada apenas para a operação de um número restrito de máquinas”, enquanto “a corrente alternada vinha de uma fonte de energia distante, era muitas vezes mais barata e, ainda assim, era nitidamente mais versátil e poderosa” (WHITE, 2003, p. 236). Entretanto, uma crise financeira iniciada na Argentina ameaçava as empresas de Westinghouse, e a fim de garantir a sobrevivência da empresa e a vitória na guerra das correntes, Tesla “renunciou aos milhões de dólares que já ganhara e a lucros futuros incalculáveis. Em troca, recebeu um pagamento único de 216.600 dólares pelas suas patentes” (SÁNCHEZ, 2016, p. 121). Tesla era profundamente religioso, e como muitos filósofos natu105


rais, ele não via uma contradição entre ciência e religião. Para ele o “dom do poder mental vem de Deus”, e por isso mesmo dedicou um ano inteiro ao estudo da Bíblia. A religiosidade de Tesla era focada no cristianismo, ao contrário de seu oponente, Edson, que era teosofista e escreveu sobre um invento que lhe possibilitou entrar em contato com os mortos (o que atualmente denominamos transcomunicação). Tesla, por sua vez, não acreditava em fenômenos psíquicos e paranormais, quando sua mãe faleceu ele julgou ter tido uma experiência sobrenatural, mas após pensar sobre o ocorrido, chega à conclusão que nada ali contrariava os fatos científicos, bastava apenas seguir o raciocínio e a metodologia científica para compreender o ocorrido. Se Edson pretendia falar com os mortos, Tesla, por sua vez, afirmou ter recebido mensagens de supostos alienígenas. Ele realmente pode ter captado “mensagens” do espaço, mas hoje sabemos que corpos celestes emitem ondas de rádio (radioastronomia), o que não era conhecido na época de Tesla. As afirmações de ambos os cientistas sobre contatos com inteligências não humanas, sejam espíritos ou alienígenas, são impossíveis de serem verificadas, e, portanto, sobrevivem como uma idiossincrasia tolerável em gênios, e um rico material para escritores de história alternativa e ficção teslapunk explorarem. Tesla imaginou poder controlar o clima através da eletricidade fazendo chover em regiões desérticas e assim poder “transformar o planeta inteiro e as condições de vida sobre ele” (p. 76). Embora cientificamente inaplicável, a ideia de controle do clima permanece um dos temas recorrentes tratados, muitas vezes de forma sensacionalista, quando se refere-se a Tesla na cultura popular. O mito de que Tesla teria desenvolvido uma arma climática é recorrente, e pode tanto dar vazão a teorias de conspiração, como a imaginativas narrativas de ficção científica. No capítulo cinco de suas memórias, Tesla revela seus planos para a construção de um “Sistema Mundial de Transmissão sem fio”, o 106


que possibilitaria que “um assinante de telefone pode ligar para qualquer outro assinante na Terra” (TESLA, 2012, p.82). As ideias de Tesla de interconexão de todas as centrais de telégrafos e telefones, distribuição universal de notícias, distribuição de música, reprodução de imagens fotográficas, caracteres, cartas, cheques, manuscritos (TESLA, 2012 p. 86)... lembra muito a atual internet. Se Tesla não foi o criador, pelo menos preconizou a existência de uma rede mundial de comunicação sem fio. Rede esta que ele acreditava traria “unificação e harmonia”. Afinal, a transmissão sem fio “oferece perspectivas incomensuravelmente maiores e mais vitais ao aperfeiçoamento da vida humana do que qualquer outra invenção ou descoberta na história humana” (TESLA, 2012, p. 99). Tesla defendia a possibilidade de utilização da energia solar, e também fez experiências no sentido de transmitir energia elétrica a distância em uma estação em Colorado Springs, mas nunca chegou a transmitir energia a distância. Outra ideia futurista que Tesla defendia, era a utilização da teleautomática, controle a distância de máquinas, como armas de guerra. Futurista, já havia construído engenhos autômatos, mas após presenciar a grande guerra, passou a visualizar nosso mundo, em que DRONES se tornaram armas de guerras, e ataques podem ser realizados por controladores a milhares de quilômetros de seus alvos, ou mesmo, por inteligências artificiais que pouco necessitam de um controlador humano. Sobre DRONES, escreve que havia concebido uma máquina voadora controlada mecanicamente e com energia sem fio que revolucionaria a guerra, para Tesla seria possível utilizar um míssil capaz de “cair em qualquer lugar exato designado, que pode estar a milhares de quilômetros de distância” (TESLA, 2012, p.115). Outra arma que Tesla teria desenvolvido seria um “Raio da Morte Elétrico”. Tesla chegou a enviar seus planos para o governo da Inglaterra, que desistiu do acordo guando Tesla exigiu pagamento antecipado. Depois tentou vender o raio da morte para a Iugoslávia, do qual agora a 107


Sérvia era parte, e que estava cercada pelos nazistas. As ideias de Tesla nunca saíram do papel, mas atualmente países como Estados Unidos, China e Rússia desenvolvem armas de energia direcionada (laser) como defesa contra mísseis balísticos e ataque a satélites militares. Tesla nunca acreditou ingenuamente que a paz poderia ser alcançada por novas tecnologias, mas que de forma correta, acreditava que a paz só poderia vir com a educação universal e a “mistura das raças”, pois “todos os homens da Terra são iguais” (TESLA, 2012, p. 102). Por “mistura das raças”, podemos entender todo o fim de preconceitos e rivalidades étnicas e nacionais. Tesla faleceu aos 87 anos em janeiro de 1943, pobre e cercado por pombos, que alimentava cotidianamente. Viu no decorrer de sua vida muitas de suas invenções revolucionarem a indústria e ajudou a criar um novo mundo. Algumas de suas ideias, mais afeitas à ficção científica, nunca saíram do papel, mas assim como os projetos de Leonardo da Vinci ou a ficção científica de Júlio Verne ainda são capazes de inspirar gerações de cientistas, filósofos e escritores, inclusive aqueles que compõem esta coletânea de contos que o leitor tem em mãos.

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Referências Bibliográficas: GRANT, Edward. História da Filosofia Natural: do Mundo Antigo ao Século XIX. Trad. Tiago Attore. São Paulo: Madras, 2009. SÁNCHEZ, Jaén Marcos. Guerra de Correntes: a revolução da eletricidade. Trad. Isabel Mafra. Portugal: Cofina Media SA, 2016. TESLA, Nikola. Minhas Invenções: a autobiografia de Nikola Tesla. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Editora UNESP, 2012. WHITE, Michael. A Batalha das Correntes: Nikola Tesla e Thomas Edison (1884-1893). In: Rivalidades Produtivas. Trad. Aluizio Pestana da Costa. Rio de Janeiro: Editora Record, 2003.

Documentários: POWER: O Poder por Trás da Energia. Direção: Ivahn Aguilar Naim. Produção: Canal History, 2014. (1h23min44seg). TESLA: o mestre do raio. Direção e Produção: Robert Uth. (1h25min19seg)



SUMÁRIO Prefácio: Prof. Dr. Alexander Meireles da Silva..........................05 · TESLAPUNK: O PRESENTE QUE FOI NEGADO PELO PASSADO Rafael Danesin.....................................................................17 · TUNGUSKA, 30 DE JUNHO DE 1908 Gabriel Mascarenhas............................................................27 · TELETRANSFOTO Pedro Graeff........................................................................41 · GUERRA FRIA Daguito Rodrigues...............................................................47 · ARMISTÍCIO DE SANGUE João Augusto de Nardo.........................................................57 · BARRACÃO 13 Caio Fraga..........................................................................61 · OS SEGREDOS DO TEMPO Adnelson Campos................................................................69 · RAIOS E ESCURIDÃO Jonnata Henrique................................................................77 · A CENTELHA DE ZEUS, FAROESTE EM OESTE ROCHOSO B. B. Jenitez........................................................................81 · PASSAPORTE PARA MAGÔNIA Caliel Alves.........................................................................87 · DANÇANDO SOBRE AS FAÍSCAS Maurício Coelho..................................................................95 · CIDADE LUZ Posfácio: Prof. Dr. Edgar Indalecio Smaniotto..........................101 · TESLA: FILÓSOFO DA NATUREZA E FUTURISTA



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