Teslapunk: contos de realidades alternadas

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MARCOS DA MATA


O vidreiro 9

O raio da morte

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transmissor universal

obsessions beer

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evolução elétrica

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atrito primordial

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mágica alternada

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o que nos excita

a centelha

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estímulo desenfreado

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O VIDREIRO Adnelson Campos

Adnelson Campos é administrador, gerente de mineração da Industrialização do Xisto em São Mateus do Sul, PR. Possui vários textos publicados em antologias impressas e digitais. É autor do livro Histórias que as estrelas contam: um pouco de astronomia para adolescentes. Contato: adnelsoncampos@gmail.com



O VIDREIRO Adnelson Campos Carl Staklar fazia os últimos ajustes antes de acionar o dispositivo. A ciência não seria a mesma depois da experiência. Mal podia esperar pela próxima reunião da Academia e olhar nos olhos dos descrentes e do jornalista que o ridicularizou. O mundo era uma efervescência de descobertas. O telefone havia sido aperfeiçoado por Graham Bell, Tesla conseguira a primeira transmissão sem fio e disputava com Edison a Guerra das Correntes. O mais pesado que o ar estava prestes a voar. Foram cinco anos de intenso trabalho no velho galpão empoeirado e cheirando a cinzas. O calor do forno e da caldeira deixavam no seu corpo as marcas das várias tentativas de conseguir o material perfeito. A rotina se tornava suportável com a ajuda de Victor, seu assistente, que além de um cientista era um ótimo cozinheiro. A comida diminuía um pouco a ansiedade dos dias de confinamento. — Mestre, gostaria que eu preparasse algo antes do teste? — Obrigado, Victor, mas eu não conseguiria mastigar algo neste momento. — Seu pai sentiria muito orgulho, Senhor!

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— Preciso que dê tudo certo. Usei o dinheiro de toda uma vida de trabalho dele. Transformei a fábrica em meu laboratório. Me lembro do dia, um pouco antes de sua morte, em que ele me presenteou com o livro de Júlio Verne e disse: Carl, um homem de sucesso precisa ter visão de futuro. Este homem possui este dom e coloca no papel uma visão diferente sobre as potencialidades da ciência, do poder criativo e realizador do ser humano. — Vai dar certo! Nunca conversamos sobre isto, aliás, conversamos pouco, trabalhamos muito, mas tenho uma curiosidade: qual foi o livro de Verne e o que despertou o seu interesse pela ciência? — Quando li Vinte mil léguas submarinas foi como se algo iluminasse meu pensamento. O Nautilus possuía uma fonte de energia inesgotável e baterias capazes de acumula-la. A solução de Nemo não me parecia possível. Verne era um escritor, não um cientista. Assim, apesar de brilhante, não conhecia certos aspectos técnicos. Eu me tornaria o cientista que ele não foi. O Capitão Nemo tirava das águas, do mundo submarino pouco explorado, tudo o que precisava. Percebi que em nossa vida terrestre não nos damos conta de que no ar, na atmosfera, embora invisíveis estão elementos vitais para o nosso futuro. Tesla também havia chegado a mesma conclusão. — Agora sim! Me lembro de algo que o senhor havia resmungado por diversas vezes: é trágico imaginar que para nos comunicarmos precisamos estar presos a um cabo de telégrafo. Foi a cena onde o capitão Nemo dizia que para deixar o Nautilus num escaler usava um cabo de cobre preso entre a nave e o barco, não foi? — Isto mesmo. — Eu também li Vinte mil léguas submarinas e o que me

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impressionou foi a descrição da cena onde era possível ver, mesmo em grandes profundidades, o oceano através do vidro. Eu pensava: como o vidro poderia suportar tanta pressão? — Pois foi nesta cena que eu busquei a resposta para o meu projeto. Lembre-se que neste galpão funcionou a fábrica de vidros do meu pai. — Eu durmo, acordo e passo o dia trabalhando os cristais. Só não havia ligado tudo isso a história de Verne. No começo eu não entendia como um isolante elétrico poderia ajudar a compor uma fonte inesgotável de energia. — Não há fonte inesgotável de energia, nem um motocontínuo perfeito. Minha máquina será capaz de acumular e gerar energia com um pequeno impulso. Usará as forças eletromagnéticas presentes no universo para alimentá-la. – disse Carl como que tentando tocar algo invisível no ar. — Vejo que guarda segredos, não confia em mim Mestre. — Confio. Apanhe na gaveta de minha mesa um pacote. Passei o último fim de semana organizando meus documentos, minhas anotações. Preciso que guarde com você. — Por que o senhor mesmo não guarda? — Quando eu acionar o dispositivo, preciso que você esteja longe daqui caso algo dê errado. O aparelho de Carl possuía o formato de um grande obelisco de cristal quase que maciço. Em sua base, diversas camadas de vidro e metal fundidos em blocos e com dispositivos internos interconectados por fios do mesmo metal transparente. No centro, um pequeno motor, aparentemente simples, com um rotor e pequenos sensores magnéticos.

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Ao lado do motor, algumas bobinas e pequenas peças que lembravam o rádio de Marconi. Tais peças restavam num cubo totalmente fechada a vácuo, o que permitiria ao motor sofrer o menor impacto possível da força de atrito. Envolvendo a cúpula central, havia uma esfera com dois anéis que, em movimento, geravam um campo magnético capaz de isolar a ação da força da gravidade. Tudo permitindo a menor perda de energia nos movimentos. — Mas mestre, o que pode dar errado? — Pense, Victor! O aparelho foi concebido para concentrar e fornecer energia. Se o material isolante não for resistente o suficiente para suportar a alta temperatura e a energia gerada, o vidro poderá se partir e cada pedacinho se transformará num projétil. — Então, porque não isolamos o aparelho com algum metal mais resistente? — Para evitar qualquer interferência do metal. Lembre-se que o aparelho no centro é um receptor de ondas eletromagnéticas, que captura as ondas vinda do Sol e da própria Terra, precisa de passagem livre para ser recebido, decodificado e transformar as ondas em comandos para o motor, que devolverá as ondas concentradas, fazendo-as multiplicar por infinitas vezes a energia recebida, como se fosse o calor do próprio astro rei. — E como pretende controlar, comandar a intensidade dessa energia? — Lembra-se do controle remoto de Tesla? — Sim, mas se era realmente um controle remoto, só comandava direções. Era muito simples. Para controlar essas ondas precisaríamos de um cérebro artificial!

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— Teremos um cérebro natural! – afirmou Carl. Victor permaneceu em silêncio. Por um instante pensou que seu mestre era, como diziam, um cientista louco, uma espécie de Dr. Frankenstein, misturando matéria viva com uma máquina. — Fico aliviado por não contar com o meu cérebro, já que pediu que eu me afaste durante o teste final. Mas o senhor pretende retirar o cérebro de alguém? — Vá até o armário, nos fundos da oficina. Lá há uma caixa, traga-a. O ajudante atendeu à ordem, preocupado com o que encontraria. Pensou numa alternativa de fugir dali, caso o que encontrasse na caixa fosse o que ele estava imaginando. Carregou a caixa com um misto de medo e nojo e depositou-a sobre a bancada. — Vamos, abra-a! – ordenou Carl. Victor soltou os dois fechos, retirou a tampa de olhos fechados e os abriu lentamente. Aliviado, retirou uma espécie de capacete, com algumas bobinas e dispositivos desconhecidos para ele, tudo soldado na parte superior do objeto. — Que susto, senhor! Mas como um elmo o conectará com a máquina? — E, se eu lhe disser que o nosso cérebro é capaz de gerar energia suficiente para causar uma explosão? — Eu não acreditaria. — Gosto da sua sinceridade, Victor. Todo o organismo humano é movido por impulsos elétricos, comandados a partir do cérebro. A energia cerebral é transmitida para o meio externo através de ondas, em várias frequências, dependendo do estado de consciência cerebral.

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Isto conectará minhas ondas cerebrais aos comandos da máquina. — Me perdoe, senhor, eu me dedico a física, às ciências exatas, não tenho como compreender isso. — Lembra-se de que algumas vezes lhe pedi silêncio e me isolei em minha sala? — Pensei que se encontrava com sono e descansava. — Eu estava me concentrando, reduzindo a minha atividade cerebral, buscando frequências mais baixas, treinando o meu cérebro para o processo. — Sendo prático, senhor. Caso algo dê errado hoje, como eu retomaria um projeto assim, com algo em que não acredito? — Nas minhas anotações há mais informações a respeito. Também há o endereço de um médico francês, que mora na Terceira Avenida. Ele trabalha com sessões de hipnose e poderá ajudá-lo. — Não seria melhor que eu procurasse um monge budista? — Não zombe, Victor. Embora muitos não reconheçam, isto também é ciência. — Eu não queria ser indelicado, mas me falta fé! — Então, não percamos mais tempo! — Mestre, uma última pergunta, é possível? — Faça-a! — Seu pai trabalhou durante tantos anos na fábrica de vidros, muitos sopradores trabalhavam aqui também. Nestes anos o senhor descobriu mais sobre o vidro que nos últimos quatro mil anos. Porque não investe o dinheiro que lhe restou numa nova fábrica e transforma tudo numa grande fortuna? Seria reconhecido como um revolucionário na indústria de materiais, sem correr riscos.

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Também pensei nisso. Num futuro não muito distante o mundo será feito de cristais. Hoje tenho três motivos para o meu projeto: mostrar aos críticos do que sou capaz; realizar um sonho de juventude e conquistar o coração de certa pessoa. Não penso em dinheiro ou fortuna. — Sempre o vi como um homem frio, de poucas emoções ou sentimentos. — Quem sabe seja uma forma de proteção, meu caro Victor. — Quanto a pessoa a conquistar, é a jovem Rose, professora do Instituo de Artes, não é? — Como sabe? — Nas últimas duas vezes em que cruzamos com ela, o senhor quase acidentou-se. Na primeira vez torceu o tornozelo virando o pé na guia e por pouco não foi atropelado por um automóvel e na segunda vez o senhor deu de cara com o poste. — Fico bobo na presença dela, não é? — Todos ficamos na presença de uma bela mulher, senhor! — Me imagino perdido entre aqueles cabelos ruivos. Carl parou por alguns instantes, como quem ouve a melodia do instrumento, imaginando os dedos da jovem dedilhando o velho piano do teatro na apresentação de Natal. Ela indiferente a existência dele. — Será que ela leu a primeira página do Diário? – questionou Victor. — Quem não leu? Por isso preciso mostrar que estão enganados. Assim, quem sabe, Rose me perceba em sua vida. Não com um louco ou um bruxo. É incrível, mas o Século XX estava batendo às portas do mundo e quando não se consegue entender ou explicar determinado fenômeno confunde-se a experiência com magia ou feitiçaria.

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— Creio que eles tenham algum motivo para isso senhor. Eu mesmo... — Já sei Victor. Espere, depois me julgue. A edição de amanhã do Diário trará a chamada: Carl Staklar, o Mago do Novo Milênio, põe fogo em Nova Iorque. — Pretende colocar fogo em Nova Iorque? — Não, meu caro. Só reproduzo o exagera das manchetes. A cidade apenas será iluminada, um pouco mais do que o de costume. Fizeram os últimos ajustes. Victor conectou os últimos cabos e ajudou Carl com o capacete. — Mestre, posso abraça-lo? — Não precisamos de despedidas. Obrigado pelo apoio. Tudo isto está me deixando com fome. Volte logo! Quem sabe dê tempo para que você me prepare um lanche antes da chegada da multidão. Victor saiu a passos rápidos. Queria muito poder observar o funcionamento, o teste final da máquina, entretanto, não iria contrariar as ordens do mestre. Como combinado, posicionou-se depois da cerca da fábrica, no outro lado da rua, segurando o pacote com as anotações de Carl. No interior da fábrica, Carl acionou os dispositivos e iniciou a série de comandos. O receptor no interior do obelisco de cristal começou a receber os sinais: a pequena lâmpada ao lado da principal bobina ascendeu-se. Lentamente o motor começou a funcionar. As ondas eletromagnéticas fizeram o rotor movimentar-se e aos poucos a energia produzida começou a inundar o dispositivo. Era como se toda a força gerada se concentrasse no compartimento que envolvia o cérebro da máquina. Carl tocou o obelisco para verificar a temperatura. Tudo

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permanecia perfeitamente isolado. Remotamente comandou a conexão com o cabo condutor externo, que se ligava a uma máquina que acionava o alto forno da fábrica de vidro. A energia elétrica que substituía o carvão do forno aqueceu a massa e mais vidro se derramava nos moldes previamente dispostos. Carl sorria. Distante, Victor percebia a luminosidade do obelisco que iluminava as pequenas janelas na cobertura da fábrica e se expandia ainda mais pelas placas de vidro instaladas na cobertura. Provavelmente toda Nova Iorque estaria procurando a origem da luz projetada contra as nuvens altas que cobriam parcialmente o céu da cidade. Tudo ia bem, até o momento em que Carl percebeu estar recebendo sinais através de seu capacete. Os sinais, cada vez mais fortes minavam suas forças. Ele tentou acionar o dispositivo que desligaria a máquina, o cabo que fazia a ligação rompeu-se internamente à peça de cristal. O rotor girava agora numa velocidade indescritível e a energia parecia concentrar-se ainda mais. Não houve tempo para a expressão de uma única palavra saída da boca do cientista. Um clarão tomou conta de todo o espaço e a fábrica foi pelos ares. Victor esboçou uma fuga. Não chegou a deslocarse e foi atingido pelo impacto que destruiu muitos quarteirões em cada direção a partir do obelisco. No dia seguinte Rose segurava nas mãos um exemplar do Diário e a manchete da primeira página era a profetizada por Carl Staklar. Uma lágrima escorreu em seu rosto, lembrando do sujeito que assistia o seu concerto de Natal boquiaberto, a mesma expressão que se repetiu em alguns rápidos encontros nas ruas de Nova Iorque.

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O RAIO DA MORTE Alex Giacomin Rebonato

Alex Giacomin Rebonato é formado em História, RPGista, Akidísta e escritor. Contato: alexrebonato@gmail.com



O RAIO DA MORTE Alex Giacomin Rebonato Contei histórias de bicho-papão, Saci-Pererê e Mula-SemCabeça aos meus filhos, mas nunca contaria sobre a guerra. Mesmo assim, enquanto me preparo para alcançar o fim da linha, acredito necessário meu desabafo confidente. Há medos que somos propícios a superar com o tempo e a idade, mas há horrores que nunca deveriam sair da mente perturbada dos lunáticos. Fomos a Itália, na década de 1940, embora todos acreditassem que seria mais fácil uma cobra fumar do que o Brasil, pátria amada idolatrada, enviar teus filhos ao combate na Segunda Grande Guerra. Mas, a cobra fumou no final das contas. Em geral, nós do 1° Grupo de Aviação de Caça da Força Aérea Brasileira, fazíamos várias sortidas por dia, procurando inimigos que vagassem pelo céu, ou qualquer coisa com as cores do inimigo que se movesse em terra. A guerra pode ser difícil de superar, mas, pelo menos para mim, as mortes pareciam bem distantes. A FAB tinha a vantagem de não olhar os inimigos nos olhos. Que Deus abençoe a FEB.

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No início das missões na Itália, nós brasileiros sempre ocupávamos o quarto lugar na esquadria composta por americanos. Eles chegaram lá primeiro, mas assim que tiramos os pés do chão, não envergonhamos nossa pátria. Com o tempo, passamos a voar juntos, quatro malandros no céu lusitano. Para superarmos o medo de morrer, primeiro superamos o medo de matar. Durante nosso serviço, em 44, mossa esquadria estava em missão como objetivo de destruir uma estação ferroviária que, segundo nossas ordens, estava em atividade e transportava munição e mantimentos para as forças do Eixo no fronte. Até aquele momento, não havia muita surpresa nas investidas. A fase do combate aéreo já havia praticamente terminado, então era mergulhar, fazer a mira, lançar as bombas e recuperar. Nossa única preocupação eram as defesas terrestres, que cobriam o ar com artilharia pesada bem onde deveríamos descer. Isso explicava a conta cara de três baixas por mês. Após a missão principal, a sortida consistia em buscar o que chamávamos de alvos de oportunidade, localizando e destruindo com nossas metralhadoras de .30pol em ação sempre que fosse preciso. Tínhamos oito dessas em cada P-47. Foi um orgulho pessoal muito grande quando, após o fim da guerra, meus companheiros comentassem que a Esquadria Amarela foi a de maior bravura no combate. Éramos destemidos, sem dúvida, mas o elogio teve seu preço. Todos nós caímos. Mesmo que eu tenha sobrevivido. Nesta última missão, demos com um pequeno comboio alemão percorrendo uma estradinha irregular que levava ao sopé da montanha. Havia uma caverna ali, e apesar de abatermos os últimos

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carros, boa parte da fila de veículos alcançou a segurança da caverna. Fizemos a volta. A manobra nos levaria ao alvo, e “sentaríamos o dedo” no gatilho, como costumávamos dizer, para, no mínimo, incomodar os inimigos. Foi nosso líder que viu os trilhos de trem que saíam da boca obscura da caverna. Antes que ele pudesse atirar, um grande vagão – bastante esquisito, como eu constatei depois – foi empurrado para fora da toca. O vagão transportava algo que me lembrou o cano de um tanque de guerra, mas não era exatamente como um. Era incompreensivelmente diferente. Aquilo estava apontado para o céu, para nós. Foi muito rápido, o clarão passou por nós com uma intensa vibração que fez tremer o avião. A luz teria nos cegado se não fossem os óculos, e, rápido como um raio, os aviões morreram em pleno ar. Tive tempo de tentar a comunicação com meus parceiros, mas, assim como todas as outras funções, o rádio também morrera. Lembro de ter aberto o canopy, desengatado tudo o que me prendia ao acento e saltado, rezando alto para que o pára-quedas não falhasse comigo. Aquele relâmpago vibrante foi o único tiro que o estranho canhão nazista disparou. A aterrissagem foi bruta, mas felizmente consegui descer sobre um capim que, apesar de seco e quebradiço, amorteceu bem o impacto. Meu líder – era ele o outro sobrevivente a ter saltado – já não teve tanta sorte. Os segundos a mais que levou para se desvencilhar do equipamento e conseqüentemente abrir o pára-quedas, foram propositais para a obtenção de um tornozelo inchado e fraturado. Escondi os equipamentos de salto que salvaram nossas

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vidas em moitas próximas, mas sabia que os alemães estariam em breve rondando aqueles lados a nossa procura. Nossa apreensão de nada valeu e passamos o restante do dia escondidos esperando os alemães que nunca vieram. Talvez estivessem rondando a nossa procura e fosse só questão de tempo até nos cercarem e efetuarem a captura – ou o abate – mas não vimos, nem ouvimos nem sinal do inimigo. Quem sabe acreditassem que todos os pilotos tivessem sido fatalmente abatido na queda, Mas os alemães, metódicos como eram, não deixariam uma presa fácil escapar. A não ser que algo mais importante requisitasse sua atenção. E isso, por sua vez, atraiu a nossa atenção também. Ao cair da noite, com a cobertura da escuridão que aumentava, fui de fininho buscar o local da queda dos dois aviões que não explodiram. Invadido por uma tristeza fria como o clima daquele inicio de noite, vi o metal retorcido e parcialmente chamuscado. O rastro e os destroços indicaram que assim que atingiu o solo, o principio de incêndio foi apagado bruscamente quando o avião ricocheteou na terra, deslizando por uns oito metros antes de se chocar com um amontoado de pedras e ali permanecer. Dentro, tão destroçado como a aeronave que pilotava, estava o piloto, meu companheiro e irmão de armas, e em meio à luz final do ocaso, constatei cheio de pesar que seu sangue, a despeito de todos os discursos inflamados que incentivavam os pilotos, não era verde oliva como nossos uniformes, mas sim de um vermelho vivo que apertava meu coração. Desisti de vasculhar a outra aeronave. Aquilo foi suficiente. Já abatidos, nos restava agora completar esta missão e dar o troco aos alemães. Dentro da caverna pudemos perceber porque nenhuma equipe de busca foi designada para averiguar nossa queda. Havia poucos

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soldados ali, armados, e um oficial – facilmente reconhecido pelo porte alinhado e por gritar mais alto com seus subordinados. O que estavam fazendo era grotesco e perturbador. Os trilhos da linha férrea que chegavam ali adentravam na gruta e foram por eles que o vagão abarrotado de corpos. Aos pilares naturais de pedra sólida se misturavam as grandes colunas que me lembraram Bobinas de Tesla, e eram delas que provinha a maior parte da iluminação que nos permitia ver. Feixes de raios constantes emitiam uma luz azulada e, assim como o raio que nos atingiu, também produziam o chiado arrepiante que nos deixou magnetizados. Como os soldados se apressavam em seguir as ordens do oficial, fui cada vez mais, mesmo que vagarosamente, conduzindo meu líder para o interior da caverna, sempre seguindo as laterais rochosas que nos ofereçam cobertura. Contei vinte soldados vivos, cuja maior parte retirava os soldados abatidos do vagão e os depositava em uma lona estendida ao chão. Indescritível foi minha repulsa ao ver que alguns, ainda que feridos de morte movimentassem fracamente seus membros ou pronunciavam resmungo de dor e desespero. Estávamos próximos agora do “vagão canhão” que nos atingiu, repousando sem qualquer operador. Meu líder, sujeito culto, disse algo e tal era seu medo que só pude entender “bobina primária” e “centelhador”. Segui a direção que seu dedo trêmulo indicava e observe dois homens de jaleco branco e luvas amarelas, ambos com óculos redondos e escuros lhes cobrindo os olhos. Ao dizer que eu estava liberado para tomar minhas próprias decisões, meu líder foi se arrastando para dentro do “vagão canhão”. Apesar da aparente dor que sentia por seu tornozelo partido,

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havia um resquício de bom humor no canto dos lábios. Ele sabia como acabar com uma festa. Enquanto ele preparava e reconhecia os comandos do mecanismo esdrúxulo, reparei de esguelha a rotina frenética dos soldados inimigos. Todo o equipamento dos homens abatidos era retirado e depositado em uma grande pilha onde se misturavam rifles, cintos de munição, algumas metralhadoras e, bendito seja Deus, várias granadas. As baionetas não. Essas eram separadas. O canhão foi se iluminando conforme girava em direção ao interior da caverna. O oficial alemão cessou seus gritos e por um momento todos cessaram também suas ações. Como o disparo daquela máquina esquisita não havia nos explodido, também não explodiria nada ali, e foi com esse pensamento que me líder – como despedida de uma guerra cujo papel que desempenhara poderia se orgulhar – fez mira onde os homens de jaleco branco trabalhavam. Um deles, recobrando a consciência, puxou uma exagerada manivela que pareceu “ligar” toda aquela parafernália. Uma série de raios azulados desprendeu-se da bobina central saltando aleatoriamente entre os outros pilares-bobinas até circular a lona onde os soldados abatidos jaziam inertes – em sua maioria. Os feixes se aglomeraram em torno de um grande equipamento que lembrava um lustre, suspenso sobre o amontoado de soldados parcialmente destroçados, que pareceu absorver a energia, para depois, com um clarão cegante, descarregar uma única rajada que fez os cadáveres dançarem em louca e horripilante convulsão. Neste exato momento, meu líder disparava o mesmo canhão que nos abatera, e a rajada vibrante atingiu, em cheio, o pilar central,

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causando uma espécie de curto que fez todas as luzes da caverna se apagar. Eu já havia acalcado a pilha de equipamentos, e dela estava retirando tudo que podia ser útil. Os soldados disparavam suas armas no vagão, onde meu líder estava, alheios a minha presença. Na escuridão total em que estávamos, ouvi as ordens gritadas do oficial da SS, e em seguida a movimentação frenética de uma manivela. Logo os holofotes que ladeavam as paredes da gruta se acenderam com uma luz fraca, no início, que se intensificava a cada impulsão da manivela do gerador. Meu líder saiu pela mesma abertura lateral do vagão, alvejado pelos tiros inimigos, e para ele arremessei uma metralhadora alemã, e revidamos fogo com fogo. Quando os holofotes atingiram sua plenitude, até os soldados alemães petrificaram-se ante as palavras gritadas do oficial da SS “Ja! Die Toten sind am Leben!” – que dizia, eu soube depois por meio de um tradutor – Sim! Os mortos estão vivos! Ele erguia suas mãos enluvadas ao alto e gargalhava freneticamente ante aos soldados que, outrora moribundos e sem vida, agora se levantavam tropegamente ou se arrastavam pelo solo. Muitos ainda sangravam de seus ferimentos, e nem a falta de membros – braços, pernas, mãos – e lacerações por todo o corpo, tórax, face e crânio, impediam que se movimentassem. Não falavam, todavia, mas emitiam grunhidos pavorosos, mantendo os olhos leitosos fixos a observar o nada. O oficial alemão despejava novas ordens gritadas e apontava para onde nos abrigávamos, enquanto eu procurava um fuzil de precisão, e os soldados “não-mais-mortos” passavam pela grande bancada e apanhavam baionetas, se dirigindo vagarosamente em nossa direção.

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Quando encontrei o que procurava, fiz mira e disparei

bem na garganta do SS, calando seu estridente júbilo, mas os inimigos reanimados não cessaram de avançar. Os soldados vivos, mesmo eles, se afastaram do caminho das criaturas desnaturadas, correndo para o lado oposto ao nosso. “Exploda o lugar”, foi o que meu líder me ordenou, descarregando a metralhadora inutilmente nos defuntos que avançavam. Ganhando terreno ante a impossibilidade de corrida do alvo – pois a fratura nos tornozelos, ele sabia lhe custaria à vida – os soldados inimigos não mostravam reação aos novos buracos de bala, e caíram sobre meu líder com as afiadas baionetas rasgando sua carne. Como não havia manual de instrução no mundo capaz de me dizer o que fazer, eu recolhi o máximo de granadas que pude e saí em disparada para a abertura da caverna. Arremessei uma das granadas no amontoado de equipamento, mas não estava a uma distancia adequada, e a força da explosão – bem maior do que eu esperava – lançou-me ainda mais adiante. Larguei os vários explosivos no pé de uma grande coluna e, ao correr, arremessei ali a última “granada de vara” alemã. A explosão estremeceu toda a montanha, e o desabamento me impeliu ainda mais para fora da caverna. Quando acordei, no dia seguinte, meu braço estava esmagado por um grande pedregulho, mas não havia sinal algum do que antes era à entrada da gruta. Só os trilhos de ferro, que morriam no amontoado maciço de rochas, denunciavam uma vaga ideia da trama anterior. Fui regatado mais tarde por partisanos, e dei conta dos

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meus ferimentos à queda que sofremos, mas preferi pegar um porre a contar a verdade. Embora tenha deixado a guerra com honrarias, nunca esquecerei aquela missão fatídica que me custara um braço e parte eterna de minha sanidade. Levaria o segredo comigo de bom grado para o túmulo, pois há bastante espaço no caixão pelo braço que me falta, embora não haja espaço em minha alma para manter apenas para mim o medo das coisas que os inventos mais absurdos podem ser capazes de criar.

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TRANSMISSOR UNIVERSAL Bruno Lopes Curiel

Bruno Lopes CurieL é mineiro e bacharel em Ciências Econômicas. Contato: curiel_br@yahoo.com.br



TRANSMISSOR UNIVERSAL Bruno Lopes Curiel Andreas Zimmer lia a carta pela sétima vez e ainda não cria em seus dizeres. Bebeu outra golada de uísque e recostou-se sobre o apoio da poltrona carmin. Respirou fundo e massageou sua testa vagarosamente em busca de conforto e concentração. Dobrou as folhas manuscritas tal como estavam antes de abri-las e as guardou de volta no envolpe. — Andreas, tenho outros clientes a atender. Amigos, amigos, negócios a parte. Se for ficar mais meia hora olhando para esse envelope terei de ir embora. — Desculpe, Louis, mas por que você só me entregou isso agora? — Fui contratado para lhe entregar essa carta na data de hoje. Você sabe muito bem como opero, mon ami. — Vou precisar de sua ajuda. E de seus serviços profissionais. — Ótimo — Disse Andreas, que abriu sua maleta de onde tirou um bloco de anotações, uma caneta ponta de pena, um tinteiro e uma pequena coruja de pedra. — Por que essa coruja? — É um amuleto. Vamos, diga tudo que preciso saber.

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— Bem, essa carta foi realmente entregue a você por Tesla? — Pela oitava vez, foi entregue pessoalmente por ele a mim. Disse que era seu plano B. — Ele realmente foi assassinado? Ele tinha quase noventa anos! — Não tenho dúvidas. Minhas fontes nunca estão erradas, mon cher. — Pois bem, recapitulando meus últimos contatos pessoais com Nikola, ele dizia estar perto de finalizar o Transmissor Universal. E em sua última carta ele parecia paranoico, falando sobre estar sendo perseguido e vigiado, isso foi em 1941, há quatro anos — Louis tomava nota e escrevia observações em seu bloco. Vez ou outra acariciava sua coruja de pedra, como se fosse um animal de estimação. — Muito bem, prossiga. — Bem, aqui há uma possível localização de onde estariam os projetos do Transmissor. Ele disse que trocaria sempre que houvesse alguma atualização. Só há um problema, existe a possibilidade de já terem roubado. — Uma guerra mal termina e outra parece estar prestes a começar, mon cher Andreas. Teremos de sair da Áustria o quanto antes com destino aos Estados Unidos da América. — Você acha que será difícil? — Se eu acho? Se eu acho? Que diabos de pergunta é essa? — Disse tirando seu chapéu e colocando-o ao lado da coruja — É claro que será difícil. Você está acostumado a ser o manda-chuva por aqui, mas há outros criminosos, Herr Andreas, outros criminosos muito mais poderosos que você.

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— Então você me vê como um criminoso? — Aos olhos da lei você é. Robin Hood era um criminoso, não era? Tesla não foi considerado criminoso, mas, por outro lado, assassinaram-no. Tomaram sua vida por desejar um bem maior. Por mais que a vaidade intelectual estivesse em jogo. Os lacaios dos finados Thomas Edison e J. P. Morgan são os responsáveis e com certeza vão procurar por qualquer evidência que coloque seus bolsos em cheque. — Mas se há tanta urgência, por que só recebi essa carta depois de mais de dois anos de sua morte? — Eu tenho uma modesta teoria. Mas vou guardá-la por mais um tempo. Não quero lhe dar falsas esperanças. — Ah, filho da mãe, não me deixe curioso. — Não pense nisso por enquanto. Preciso terminar o que vim fazer aqui. Obrigado pelos drinques. Sortemente saí de Paris com tudo o que precisava. Se estiver tudo bem para você, saíremos em três dias. O que me dizer, Herr Andreas? — Ótimo. A título de curiosidade, qual o serviço da vez? — Se for contextualizar toda a razão do serviço, acho que perderíamos esses três dias até a viagem. Digamos apenas que com Hitler fora da jogada, fui contratado para fazer uma pequena limpeza. Ainda há vestígios de seus seguidores políticos que precisam de umas férias lá no inferno e eu, como um bom agente de viagens, providenciarei a primeira classe. Após Louis Portier ir embora, rumo a sua empreitada, Andreas tirou seu diário de seu esconderijo e começou a escrever suas percepções a respeito do dia e os fatos fora do comum que caíram em seu destino. Desde a visita de seu grande amigo francês a sua nova missão no

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continente americano. A princípio sentira-se confiante a respeito de sua missão, contudo sentiu as pernas bambearam quando o amigo ressaltou as proporções inimagináveis do inimigo. Será que Portier já servira alguém mais poderoso que ele? * — Odeio viagens longas, ainda mais em um barco! — Acalme-se, mon ami! Era um navio muito bem estruturado. Estamos são e salvos. E em solo americano. — Louis, ainda acho um erro não ter trazido pelo menos dez de meus homens conosco. — Meus contatos aqui me garantiram uma pequena tropa se necessário, Herr Zimmer. Você não muda mesmo, sempre desconfiado. Quando foi que já te deixei na mão? — Bem, nunca... — Pois bem, vamos. Jason deve estar aqui em algum lu... — Monsieur Louis! — Jason, como vai? Já faz um bom tempo, desde nosso último encontro. — Sim. Tenho vontade de voltar a Moscou. — Os tempos agora são outros, acredito que seríamos menos bem-vindos ainda se fizéssemos uma visita. Onde estão meus modos? Jason, por favor conheça meu amigo, Herr Zimmer. — Prazer, senhor Zimmer — Trocaram um aperto de mãos. — O prazer é todo meu, Jason. — Peço que me acompanhem. O hotel fica próximo e lá poderemos conversar mais à vontade. *

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Já no quarto de hotel os três rapazes sentavam-se circundando uma mesa oval. Jason trajava um terno cinza, Andreas estava de preto e Louis trajava um terno cinza pomposo, com chapéu combinando, acariciava seu bigode fino enquanto Jason passava as instruções requeridas. — Este endereço é da Biblioteca de Nova Iorque. Tem certeza de que está correto? — Só descobriremos investigando — Observou o austríaco. — Ok. Aqui é o endereço da biblioteca, mas o que está escrito depois... O que ele escreveu, não estou entendendo a grafia. — Deixe-me ver — Pediu Portier, que pegou seus óculos piscinê para encontrar mais precisão. — ILLLY. — É isso mesmo — Concordou Zimmer. — Mas o que significa? — Monsieur James, acredito que seja a identificação de um livro — Andreas olhou para o amigo com insatisfação, já havia passado detalhes demais a respeito de sua missão — Mas agora deixemos o trabalho um pouco de lado. Percebi ali em cima alguns charutos para degustarmos. Distraíram-se por cerca de uma hora conversando a respeito de política, estratégias da II Grande Guerra e até mesmo sobre a beleza feminina em torno do globo. Andreas achou graça pelo fato de o fumo e o álcool terem o poder de unir pessoas tão diferentes e de origens distintas. Após mais meia hora de conversa fiada, Jason se despediu. — Gostei muito desse charuto. Precisamos repetir uma tragada antes de vocês irem embora. Se precisarem de mim, meu contato

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estará na recepção. Boa noite, amigos! — E saiu. — Louis, você é maluco? Você confia tanto assim nesse homem para lhe passar informações tão facilmente? — Claro que não. Não estou há tanto tempo no meu ramo distribuindo flores na rua, mon cher. Uma fonte segura me informou que Jason trabalha para os lacaios — Andreas fizera quase dezessete expressões diferentes procurando palavras para profanar o nome do amigo, quando finalmente encontrou uma, Louis fizera um adendo. — Eu nunca te deixei na mão, e nunca deixarei, mon ami. ILLLY não é a identificação de um livro, é um anagrama. Que quer dizer Lilly — A face torta ainda segurada por Andreas se desfez e a surpresa assumiu forma. — Você é um filho da mãe, monsieur Portier! Estou a décadas no submundo austríaco e você ainda me faz sentir um iniciante ás vezes. Mas diga, como poder ter tanta certeza do significado da sigla? — A razão de sua surpresa não é minha perspicácia. É, na verdade, resultado do trabalho de Tesla. Não fez sentido nenhum, mas quando me entregou a carta ele me disse cinco vezes seguidas “Lilly.” Fiz uma careta torta e ele repetiu mais cinco vezes. Quando finalmente perguntei o que diabos era Lilly, ele repetiu mais cinco vezes. Ou seja, quinze vezes ele me falou Lilly, e aquilo me atormentou por um bom tempo. Agora faz todo sentido. — Aquele Nikola foi sempre zombeteiro, não é mesmo? Adorava aquelas manobras visuais com eletricidade. Uma vez quase tive uma parada cardíaca. Aquele desgraçado ficou brincando naquela gaiola... Enfim, bons tempos. — É, você realmente tem bons amigos, mon cher. Agora vou

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para meu quarto, amanhã será um grande dia e é bom que estejamos descansados. * — Bela estrutura arquitetônica! — Qui. Tenho de concordar. Mais bela ainda é essa sua barba ruiva — Zombou do disfarce do amigo. — E você tem certeza de que não estamos sendo perseguidos? — Eu não reparei nada. E sobretudo, se você não reparou nada é por que realmente estamos seguros. — Isso é verdade. Embora eu tenha quase certeza de que vamos nos deparar com algum problema ali dentro. Ajeite sua barba, está meio torta. — Merci. E caso algo dê errado, nós precisaremos correr, mas não se preocupe. Tenho um coelho para tirar da cartola. Entraram na Biblioteca de Nova Iorque, era tão linda por dentro, quanto o era por fora. Observaram tudo ao redor. Aparentemente, ninguém os observava. Apenas a recepcionista que notara a presença dos forasteiros. — Tente a sorte na recepção. Darei uma volta aqui dentro, Louis. O francês tomou rumo para a senhora que os observava enquanto Andreas caminhava por entre as inúmeras prateleiras. Bonita, mas nem se compara à de Viena. Pensou enquanto procurava por algo que não fazia ideia do que poderia ser. Até que percebeu Jason com mais dois comparsas ao fim de uma das estantes a procura de algum livro. Pela pressa aparente, devia ser algo bem específico que procuravam. — Herr Zimmer! — Andreas olhou atônito para Louis. Fez

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sinal de silêncio para que não fossem descobertos e aproximou-se do amigo. — Jason está ao fim daquela estante com mais dois comparsas. E agora? — Agora nós vamos embora, eles estão em busca da pista falsa. — Você descobriu algo? — Lilly me pediu para esperar alguns minutos. — Então ela era Lilly? — Sim. Ela faz questão de conhecê-lo — Voltaram para a recepção, onde Lilly os esperava com um pacote na mão. — Andreas Zimmer! Que prazer finalmente conhecê-lo, sabe que Niko me falava muito a seu respeito, ríamos muito com a história da gaiola. — Aquele desgraçado! — Riram juntos das lembranças, deixando Louis um pouco deslocado. — Lá, são eles. Vamos pegá-los! — Lilly, foi um prazer — Disseram juntos ao perceberem que foram descobertos por Jason. Correram em busca de um bom refúgio. Ao saírem da biblioteca, Jason sinalizou para capangas que aguardavam do lado de fora e agora corriam de encontro aos dois estrangeiros. Um táxi seria o ideal naquele momeno, todavia nada encontraram. Louis percebera que alguns dos perseguidores tiraram armas de seus coldres. — Vire aqui, mon ami! Andreas o seguiu sem perceber onde entravam. Os seguranças do local foram de encontro a eles apontando suas armas para

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suas cabeças. Zimmer começou a manifestar novamente suas emoções por meio de caretas em busca de um palavrão para se dirigir a Portier, porém, percebeu que na verdade as armas estavam voltadas para o lado de fora, onde agora Jason estava parado com expressão de ódio junto a seus capangas. — Isso está longe de acabar, seus desgraçados! — E foi embora com seus empregados. — Louis, seu filho de uma cadela, onde nós estamos? — Ora, não use essas expressões em solo austríaco, mon cher. — Essa é a embaixada? — Certamente. O embaixador Strauss estava me devendo dois favores. — Esse deveria valer dois, Portier. — Disse o embaixador se aproximando. — Herr Strauss, que honra revê-lo! — Disse Andreas surpreso. — Louis, você pede a minha ajuda para salvar a bunda de um mafioso austríaco? Não podia ser italiano pelo menos? Já providenciei a extradição de vocês. Haverá um primeiro navio que enviará sósias por precaução e então vocês serão levados. * Dois dias depois estavam onde tudo havia começado, na sala de estar da casa de Andreas Zimmer, o mafioso mais procurado da Áustria. Momento quando finalmente abririam o pacote entregue por Lilly, a bibliotecária estadunidense. Sentavam-se lado a lado na mesa para desembrulhar o pacote. — Você fez suspense, se tivesse me falado de seu plano eu não teria quase me borrado todo.

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— E onde estaria a diversão nisso tudo? E falando nisso, qual é a história com a gaiola? — Eu te conto se você me contar a história da sua coruja. Temos um trato? — De acordo. — Tesla foi fazer a demonstração de sua gaiola para mim. Quando surgiu a eletricidade sobre ela ele caiu e começou a se debater, eu gritei feito uma mocinha assustada. Ele, por outro lado, levantou rindo da minha cara. Sempre que conversávamos ele lembrava desse maldito dia. — Após dois minutos rindo da cara de Andreas, Louis cumpriu sua parte no acordo. — A coruja é a única lembrança que tenho de meu pai. Ela é meu lembrete do porquê busco por vingança. Em outro momento conversamos mais a respeito. Mãos a obra — Desempacotaram o embrulho. — Projeto Mark Twain? — Indagou Louis. — Eles eram amigos. Samuel Clemens, o escritor. Provavelmente Tesla tenha homenagiado o amigo — Após um breve vislumbre sobre as páginas acrescentou — É, monsieur Portier, em cada página há uma assinatura de Nikola. Será que estamos mesmo perto de construir o Transmissor Universal, e realizar o sonho da energia gratuita?

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OBSESSIONS BEER DIEGO NAVARRO

DIEGO NAVARRO nasceu em Londrina, PR. É poeta, fotógrafo, designer gráfico e pesquisador musical. Em 2007 publicou Inverso Aparente. Também possui poemas publicados na Coyote e em outras revistas literárias. Escreve resenhas sobre bandas no blog 60’s Hotel. Contato: factorydesign@outlook.com



OBSESSIONS BEER DIEGO NAVARRO Não tenho outro modo de começar essa história a não ser com esse relato que aconteceu comigo logo ao mudar para os subúrbios de New York. Acordei uma noite com um cano de uma arma cutucando minha testa entre os olhos, não tive tempo de expressar qualquer reação com aquela situação, era um ser ligeiramente gordo com um bigode exposto em um terno roto e seu chapéu coco mal colocado na cabeça. Com uma voz amistosa e rouca dizendo que queria o que houvesse de valor no quarto e, pra minha surpresa, sua tagarelice não tinha fim. Não pude perder a chance de sacanear a figura em meu primeiro assalto. No meio de sua procura e nossa conversa, perguntei a ele se aceitaria um café, com todo cinismo, e, no meio do preparo adicionei mescalina em sua xícara. Aquela situação tinha que ter um fim cômico. Ele gritava todo tipo de loucuras, disse o policial quando encontrou meu “latro-amigo” em ruas isoladas da vizinhança. Suspeito por intoxicar essa pobre alma, o policial me encheu de perguntas dizendo que ele havia dito estar em meu quarto. Mas logo aquela madrugada se acabou. Naquelas primeiras manhãs de outono em New York, cruzei toda cidade a fim de reunir peças para um quebra-cabeça que existia em minha mente. Tinha um projeto ambicioso de uma máquina, uma

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espécie de armário movido à energia elétrica, seria refrigerada e teria uso doméstico. Trabalhava em vários empregos e perambulava por todo o canto trabalhando pra me manter naquela cidade. Após os dias cansativos de trabalho as noites começavam sempre em uma taverna perto de onde eu morava — Cohen’s Tavern, um lugar sempre com boas figuras ao balcão, com sua luz baixa, pó de serra pelo chão e alguém desmaiado no corredor que levava ao banheiro. Todas as noites eu passava para algumas cervejas e conversas ali mesmo pelo balcão onde estacionava todo tipo de maluco. Foi numa noite dessas que conheci Pietro Fiori, rapaz grande cabelos curtos falava aos montes arrastando seu italiano mafioso, sempre tinha um interesse curioso sobre tudo da pessoa com quem conversava. Na época, estava lendo sobre James Harrison, australiano, tinha desenvolvido há alguns anos a primeira máquina refrigeradora com o conceito da compressão a vapor. Harrison havia sido contratado por uma cervejaria para desenvolver este projeto e a cerveja fosse resfriada em seu processo. Assim, comecei a projetar os modelos para os compressores como uma bomba de calor para criar a refrigeração no ambiente interno da caixa, mas tudo numa escala doméstica e movida por eletricidade. Tinha poucos com quem contar e ainda precisava ter algo concreto para ter um investidor. Então minhas teorias e ideias precisavam flutuar pra fora da minha mente o mais rápido possível. Com o novo mundo acontecendo diante de todos, numa noite no Cohen’s me encontrei com Fiori e conversei por horas, e, num acidente total, me disse que havia encontrado um projetista que estava

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trabalhando numa ideia inovadora. Um refrigerador doméstico, onde caras normais tomariam sua cerveja gelada sentado em seu sofá sujo junto das baratas do quarto. Agora seria uma corrida mortal, minha inovadora ideia estava escorregando por aí e alguém iria ficar rico antes de mim. Precisava conhecer o tal figura, armei tudo com Fiori. Foi numa tarde, eu e Fiori chegamos bem amistosos, Fiori logo foi nos apresentando. — Esse é Irving Daniel’s, o projetista de quem lhe falei. — disse Fiori. Era um jovem rapaz; tinha certa inocência no olhar que era logo encoberta pela minha mesma ambição. — Esse é David Richards, o investidor de quem falei. — Havia combinado tudo com Fiori para falarmos e espionar até onde Daniel’s tinha chegado com o projeto. Era o mesmo quebra-cabeça sem fim e mistérios insolúveis. Mais tarde precisei explicar para Fiori quais eram minhas intenções. Dizer que eu tinha o mesmo projeto, mas não conseguia concretizá-lo, por isso estávamos ali com aquele teatro. Desde então, eu me encontrava numa obsessão imensa por saber que existia alguém tão perto, tentando realizar o mesmo que eu, já estava passando dias e dias trancado estudando e repassando o projeto, projetos finais pendurados por todas as paredes. Eram partes do compressor, capacitores, sistema de arrefecimento, a caixa, posição para o compressor, ideias para design. Era a obsessão em sua escala real. Fiori me veio com todas as histórias possíveis pra me fazer largar aquela obsessão e abandonar meu quarto pra fora daquilo tudo. O bom de tudo que sua preocupação sempre estava acompanhada de cervejas. Numa noite tentei limpar minha mente, saí para algumas voltas, perambular um pouco, talvez algumas cervejas e sexo barato. No fim

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estava no Cohen’s, no mesmo balcão, segui por tantas ruas estranhas e miseráveis passos que acabei com o velho pó de serra de sempre nos pés. Fiori não demorou a me encontrar ali, veio alucinado, dizendo que havia me procurado por toda cidade. Dizia ele quase alucinadamente, que na noite anterior havia bebido num bar com um empregado de um cientista chamado Nikola Tesla – Ele tem vários experimentos... E mencionou que daqui uns dias Tesla teria uma reunião com o Irving Daniel’s. Algo estava pra acontecer e Daniel’s estava se adiantando com Tesla. Disse para Fiori conseguir uma reunião com Tesla para mim antes de Daniel’s. Em poucas noites lá estava eu na minha obsessiva corrida contra Daniel’s, parado num portão de um velho casarão nos arredores da Cidade. Era a casa de Tesla. Era um sujeito esguio, olhar misterioso, cabelo aparado num bigode e barba muito bem feitos. Tinha uma conversa excêntrica, não fez nenhuma pergunta sobre mim, fez todo tipo de apresentação de seus experimentos — alguns eram verdadeiras loucuras, como obras de algum show bizarro soltando arcos elétricos por toda sala. Mas quando fomos ao seu escritório, Tesla tinha sobre uma bandeja dois copos suando com cerveja dentro, algo que me intrigou. Serviu-me de um, a cerveja estava gelada. Eu olhei pra Tesla com espanto e mudo, ele me devolveu um olhar de quem sabia exatamente o que eu queria. Tesla fez sua primeira pergunta. — Por que queria tanto me ver antes do Sr. Daniel’s? — Tesla disse como o senhor de todos os mistérios. Fui obrigado a explicar e dizer toda verdade, mesmo sabendo que um cientista como ele tinha as peças para meu quebra-cabeça e o de Daniel’s. Depois de tudo, Tesla disse no auge de sua excentricidade:

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— Me encontre aqui em duas semanas, com certo valor em dinheiro. — Mas Tesla me direcionou seu olhar e me perguntou: — Você está preparado pra isso? Pra ir adiante com essa obsessão... Nada me consumia mais do que o medo de Tesla ter tido a mesma reunião com Daniel’s. Já repassava os planos de como apresentar para o mundo tal projeto e como ficaria rico com aquilo. Revia minha obsessão nas paredes por todo quarto. Fiori apareceu poucos dias antes do encontro com Tesla, ele havia conseguido parte do valor que faltava. Agora, eu e meu novo sócio naquela loucura, estávamos prontos para buscarmos a máquina do futuro. Estava diante daquele velho portão novamente ao encontro do meu futuro. Um sujeito de olhar vazio veio em minha direção, dizia ser o empregado de Tesla e que estava me aguardando. Ao entrarmos no velho casarão perguntei sobre Tesla, se ele iria me receber, seu empregado disse que ele havia partido as pressas para uma viagem de última hora. Aquilo me pareceu estranho, mas naquela altura pouco me importava o paradeiro de Tesla. – O valor que combinei com Tesla está aqui, onde está minha máquina? –perguntei ansioso. De baixo de um pano, lá estava, revelada, foi como uma adaga de luz aos olhos. De posse do meu refrigerador doméstico, levei até meu quarto como uma joia. Era branco o meu sonho, tinha anéis que o decoravam por cima da caixa e escondiam o grande compressor, com um cabo o liguei na tomada. Pouco tempo depois constatei que seu interior estava gelado pronto pra resfriar várias cervejas. No interior do meu quarto só restou a minha obsessão.

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Era a manhã do novo mundo, eu tinha nas mãos uma invenção que me renderia milhões, ao abrir novamente a pequena porta, como na presença de Tesla, fiquei surpreso, havia uma cerveja dentro, em seu rótulo escrito Satanic Majesties Beer, só poderia ser uma piada de Fiori, fiz questão de beber quase num gole só... Mas tarde me encontrei com Fiori. – Como a máquina vai nos deixar ricos? – Você só pode estar brincando, não foi você quem deixou uma cerveja hoje lá? — E Fiori com cara de surpreso disse que não... O que me deixou da mesma forma. Fomos até nossa máquina. Na mesma noite fomos a cada canto sujo da cidade, voltas cambaleantes naquela histérica madrugada sem fim. Chegando ao meu quarto, mesmo bêbado não conseguia tirar os olhos da máquina. Precisava tocá-la e sentir seu ar gelado novamente, e, mais uma vez, lá estava à garrafa de cerveja Satanic Majesties Beer e mais nada em seu interior. Déjà Vu de um bêbado. Bebi mesmo assim e apaguei. Pela manhã, mais uma vez no interior da máquina, mais uma cerveja, como se estivesse me aguardando. Como poderia sair e mostrar aquilo pra alguém, iriam dizer que estava ficando louco. Como uma maldição escrita por Harrison ou Tesla, na caixa ao abrir, atendendo pelo nome de Satanic Majesties Beer à espera. Ela estava olhando de volta pra mim como um reflexo da minha obsessão. Como poderia me desprender daquela paranoia que me impedia de mostrar minha máquina a um grande investidor, com aquela cerveja aparecendo para mim toda vez que abria aquele refrigerador. Preso cada vez mais em meu quarto, tentando escavar uma saída. Até Fiori tentou me resgatar daquela maldição sem explicação. Mas foi inútil.

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Quando me vi sem saídas, pensei na resposta mais inocente para meus temores — Tesla — só ele poderia ter as respostas, ele havia concebido aquele sonho bizarro. Procurei certa noite ir à procura dele, era tarde da noite, minha paranoia não me permitia sair em outra hora que não fosse aquela. Naquela noite não esperei de frente ao portão entrei e bati a porta várias vezes, entrei, e para minha surpresa era como se ninguém tivesse morado ali, ou tivesse partido as pressas, como ficou claro, ao andar pelos cômodos vazios. Sem saber o que fazer, depois de alguns dias, sem examinar as horas ou os vestígios da minha coragem ou o que restou dela, tateei o chão, tropecei em várias garrafas, por onde olhava enxergava minha extensa obsessão materializada em garrafas com Satanic Majesties Beer escrita em seu rótulo, que brotavam do meu sonho branco. O que importava o dinheiro e as horas em seu movimento estupido. Quando enxerguei uma provável saída, meu pesadelo era movido à eletricidade, me movi até a parede e puxei o cabo. Não tive coragem de tentar ver se aquilo realmente funcionou. Não queria mais sentir aquela improvável perseguição me olhando de volta. Naquele mesmo momento, sem olhar pra trás, escapei porta fora correndo, quando toquei o asfalto não reconheci a cidade, o som da cidade soava estranho, até o ar tinha um peso sinistro ao respirar. Ao tirar meu queixo do peito, levantei meu olhar, alguém estava a minha frente, bem vestido em roupas bem alinhadas e sapatos elegantes, um bigode exposto ao rosto, um sujeito ligeiramente gordo num chapéu coco mal colocado à cabeça. Mas foi quando escorregou de sua boca aquela voz amistosa e meio rouca que tive a certeza de conhecêlo. Como é colocar as mãos no seu sonho e não poder materializá-lo? Veio a pergunta junto de um olhar que me penetrou a alma.

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– Gostou da cerveja gelada que lhe enviei durante esses dias? Era o verdadeiro mal estampando seu melhor sorriso direto para mim. Não fazia ideia do que falar para aquele ser, e me lancei numa rápida busca pela memória para tentar lembrar o que eu havia feito para estar passando por tudo aquilo. Teria sido mais um contrato simples, mais um sonho rodeado de ganância em troca de uma pobre alma; teria sido mais um bom negócio numa madruga perdida de outono, mas o seu cinismo tinha que estar à frente, você não quis ter o seu fim cômico, eu também sei escrever finais cômicos, agora seu sonho está nas mãos de outra pessoa não muito longe daqui, John Standart ficará rico com sua ideia e será lembrado durante anos. Agora eu sabia quem era e o que eu havia feito, e, pra quem eu havia feito de fato. Já tive o meu final cômico e você seu estoque inesgotável de Satanic Majesties Beer. O medo tomou conta de mim e tudo ao meu redor era como se estivesse parado, suspirei fundo e, mesmo sabendo que não poderia escapar, me virei e corri o máximo que pude, meio que de olhos fechados, cruzei as ruas sem contar e virei em alguma esquina sem saber onde estava, quando pisquei meus olhos, tudo estava normal, o mesmo cotidiano imutável, tudo no lugar. Era o mesmo grande quebra-cabeças com a imagem destorcida da minha obsessão, outra vez.

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EVOLUÇÃO ELÉTRICA Eduardo Yoshikazu Nishitani

Eduardo Yoshikazu Nishit ani nasceu na cidade de São Paulo. Atualmente vive em Suzano, SP e leciona Física para o Ensino Médio na E.E. “Luiz Bianconi”. Ele é licenciado em Física pela USP e Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura pela UPM. Contato: eduardonishitani@gmail.com



EVOLUÇÃO ELÉTRICA Eduardo Yoshikazu Nishitani Escuta algo como: “... voluntário para defendê-lo?”, enquanto desce tropegamente. Tem dificuldade em coordenar suas pernas entre degraus na penumbra saturada de névoa. Quase chegando à plataforma inferior, pisa em falso. Surpreende-se ao sentir braços que o amparam. Dessa vez, perto de seu ouvido, entende nitidamente palavras ditas num sussurro: “Não se preocupe. Sou seu advogado”. Apoiando-se no desconhecido, senta-se numa cadeira metálica. Seus pensamentos se concentram no estranho que tem um pombo branco em seu ombro. Suas elucubrações são interrompidas por uma descarga elétrica que lhe percorre violentamente seu esquelético corpo. Foi desagradável, decerto, mas familiar. Da primeira voz, entende algo como: “... levantar-se dessa cadeira, o fará sentir outro eletrochoque, está claro?”. Tentou balbuciar algo como resposta, mas o homem encapuzado a seu lado, o que o amparara, interpela em alta voz: – O réu concorda, meritíssimo. — Depois, dirigindo-se ao condenado com um enigmático sorriso, diz: — É um prazer encontrá-lo Dr. Galvani. – E o senhor é... — A voz de Galvani soa rouca. Há meses que não fala nada.

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– Seu advogado. Tentarei fazer com que esse julgamento seja justo. Pelo menos, esse tribunal deixa qualquer um defender os réus, uma vez que os advogados se recusem aceitar a causa. Então me voluntario. Peço que o senhor assine esses papéis para que possamos prosseguir com a impugnação. — De uma pasta, retira documentos e uma caneta prateada. Durante sua luta em entender as palavras impressas nos papéis e manipular a caneta para rabiscar sua assinatura, bombardeia seu interlocutor com perguntas, porém apenas recebe respostas evasivas, acompanhadas por um sorriso enigmático. – Confie em mim. Partilho da mesma paixão que o senhor: eletricidade. Um fraco facho de luz ilumina a ambos, enquanto as acusações são lidas pela voz austera do juiz, o qual conclui indagando sobre a prontidão da defesa. Após breve silêncio, o advogado faz um gesto. Gigantescos arcos voltaicos aparecem flutuando no ar formando um retângulo, arrancando muitas exclamações de sustos de pessoas ocultas ali reunidas. Um odor característico de ozônio preenche o ar. O defensor acalma a todos. Suavemente explica sobre o material que trouxera para trabalhar sua defesa. Na região interna dos arcos aparecem imagens de Galvani, jovial, retirando fetos e embriões de várias mulheres uniformizadas como prisioneiras de guerra. Outra cena: o acusado aparece dissecando um comprido animal aquático que se contorcendo numa mesa cirúrgica. – O réu deve explicar-nos o que está fazendo nesses registros — ordena o juiz. Com voz trêmula e rouca, o cientista diz que está retirando

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células da coluna vertebral de um peixe conhecido como Poraquê, injetando-as logo em seguida em fetos, que por sua vez foram colocados em incubadoras. – Monstro! — Faz-se ouvir uma voz feminina, apresentandose como Bertha von Suttner. — Com esforço, Galvani nota uma sombra agitada de onde viera a exclamação. Com voz chorosa de raiva, a baronesa prossegue: — Descartou as mulheres como se não passassem de carne para suas malditas experiências! Antes que a mulher continuasse, ouve-se um pigarro e um facho elétrico ilumina fortemente o suposto advogado de Galvani, quando este recomeça a falar: – Senhores, gostaria de protestar dizendo que as prisioneiras seriam cremadas vivas. Quanto aos bebês, pode-se afirmar que ao menos tiveram alguma chance de sobrevivência. Relatórios dizem que pelo menos seis sobreviveram, o que torna o meu cliente um herói... Um tumulto se instaura entre as sombras. Protestos se misturam a xingamentos, até que a voz austera se faz ouvir novamente, após pesadas marteladas impactarem um tambor. – Ordem! — Quando os murmúrios cessam quase por completo, a voz continuou: — A defesa pode prosseguir, mas sob a advertência de que não provoque mais os jurados. – Obrigado, meritíssimo — o advogado faz um leve gesto com a cabeça em direção à sombra postada mais ao alto. Apontou para os arcos voltaicos que mudaram a cena para um ambiente da Terra primitiva. Relâmpagos cruzam os céus, acompanhados de trovões. As primeiras gotas de chuva alcançam a superfície sacudida por terremotos, vaporizando-se nas lavas vulcânicas. O defendente discorre sobre a formação da sopa

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primordial, aminoácidos, descarga elétrica e o surgimento da vida. As cenas saltam em eras, acompanhadas pelo discurso apaixonado, esbanjando conhecimento de várias áreas, explanando sobre a evolução das espécies até o domínio do homo sapiens sobre a eletricidade. As imagens cessam de correr, focalizando em personalidades afamadas. Um resumo dos experimentos elétricos de mais profundo impacto é exibido. A fala torna-se solene enquanto há exibição de gigantescos geradores de corrente alternada disparando faíscas tremeluzentes. — E aqui chegamos ao ponto. Recordemos do que foi dito no início: Somos produto de milhares de anos de evolução. Hoje, com nosso cérebro, repleto de flashes elétricos de bilhões de neurônios, sabemos que a vida é um fenômeno eletromagnético. Manipulamos a eletricidade, graças à descoberta e esforço de pessoas como ele. — Nesse ponto, o defensor faz uma pausa de efeito, enquanto uma foto de Nikola Tesla ilumina todo o ambiente. Alguns até cessam de respirar, como se estivessem vendo uma entidade sagrada. — Pois bem, — continua o advogado em tom professoral — pergunto aos senhores, se estamos realmente adaptados a uma nova era. E se pudermos ajudar a natureza com a nossa ciência? Meu cliente estava justamente fazendo isso... O advogado teve que parar por causa da nova algazarra que se formou. Gritos só amainaram ante os bastões elétricos que zuniram cortando a névoa como dardos ziguezagueantes de tempestades. Os guardas, sob as ordens do juiz entraram em ação, para reforçar as marteladas. O silêncio voltou a reinar e o preletor prossegue: – Sabemos que as leis deveriam ser aplicadas inclusive em situações de guerra, mas digo aos senhores que estamos numa guerra que

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jamais sonharam em seus piores pesadelos. Quem são os inimigos? Eles não são deste planeta. Antes que um novo tumulto se iniciasse, as cenas entre os arcos voltaicos mostram seres exóticos massacrando multidões. Cidades são tomadas por estranhos objetos voadores. Ante as imagens seguintes, a fala do advogado se perde entre os horrores que se sucedem à população indefesa. Berros de desespero se mesclam aos terríveis sons incompreensíveis dos alienígenas. Com tom mais forte para se fazer ouvir, o intercessor continua: – Os mais evoluídos extinguem os menos. Nós, homo sapiens, aniquilamos os hominídeos menos adaptados na aurora da humanidade e varremos da face do planeta várias espécies animais e vegetais. Podemos acelerar nossa própria evolução com as pesquisas do Dr. Galvani. Entre nova algazarra que se seguiu, a voz do juiz rugiu com auxílio de amplificadores: – A defesa tem provas das alegações? O advogado faz um gesto com as mãos e todos os bastões dos guardas estouram em faíscas, gerando pânico. O enigmático homem manipula os amplificadores a distância. Com a intensidade sonora elevada a níveis próximas à dor, as pessoas reunidas no tribunal não puderam deixar de ouvir: – Sou produto de experimentos do Dr. Luigi Galvani numa outra realidade. A que em duras penas conseguimos rechaçar o inimigo, porque nos tornamos, além de sapiens, homo eletricus! — Apontando para o réu igualmente assustado com as afirmações do seu defensor, esse continua: — Dr. Luigi Galvani salvou a humanidade na realidade paralela a essa. — Quando os arcos voltaicos tremeluziram novamente, aumentou

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mais um pouco a potência de sua voz: — Sim. Há outras realidades além desta. Vim aqui como emissário da minha, onde conseguimos rechaçar os invasores. Eles neutralizaram nossas armas, mas não nosso dom de manipular a eletricidade. Nossa atmosfera está energizada, como a dos senhores, graças ao Tesla. Vejam. Os invasores não estavam adaptados ao fruto das pesquisas do Dr. Galvani donde vim. Nesse caso, fomos mais evoluídos! Todos fitam com misto de pavor e alívio, os alienígenas sendo afugentados por temíveis faíscas. – Assevero-lhes de que os invasores já estão vindo. Temos aproximadamente quatro gerações para nos prepararmos... – Desculpe-me por interromper a prelação, senhor defensor — diz uma das sombras ao fundo, com voz de um ancião, após pedir permissão para falar ao juiz. — Suponhamos que tudo o que diz seja verdade e não tenho razões para duvidar, pois meus estudos incluem mundos alternativos. Fiz rapidamente uma lista de perguntas. — O idoso aproxima um papel do rosto. — A primeira é: O que o faz ter certeza de que seremos invadidos por esses monstros vindos do espaço? A segunda: Como o senhor veio a essa realidade? A terceira: Por que o réu é importante, agora que sabemos sobre a ameaça? Quarta pergunta: Há alguma razão em ter vindo sozinho? Não houve maneira melhor de tentar nos convencer? Por um momento, o advogado acaricia seu bigode ocultado pelo capuz e, esboçando um sorriso discreto, responde: – Agradeço pelas perguntas tão oportunas, prezado senhor do júri. — Pousa a mão no ombro de Galvani e continua: — Nem mesmo os melhores geneticistas deste mundo poderiam entender as anotações do

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meu cliente, estou certo? — Sem esperar resposta prossegue: — Há certos eventos que se repetem em quase todas as realidades. A invasão alienígena é uma delas e o modo de neutralizá-los, pelo que que vi em outras realidades, é o mesmo. Vislumbrei mundos dotados de armas exóticas e espetaculares, mas infelizmente não tiveram sucesso. Há alguns anos, a Marinha deste país fez testes sobre invisibilidade, num projeto intitulado Philadelphia; exemplo de mais uma constante entre as realidades. Sabe-se que alguns valorosos marinheiros morreram, com exceção dos descendentes dos experimentos do Dr. Galvani. Com a manipulação do eletromagnetismo, somos incólumes aos efeitos das viagens entre as realidades, mas só pude vir porque meu outro eu daqui foi assassinado pelo invejoso Thomas Edison. — Citou o nome com irritação. Prosseguiu: — Eu e meus irmãos de experimentos nos encontramos no ponto zero durante o ápice do Projeto. — As imagens entre os arcos deixam todos atônitos. — E a partir dessa singularidade, pudemos vislumbrar toda a história da humanidade em várias realidades e seus possíveis futuros. Descobrimos que o amanhã não existe. Há probabilidades que podem ser reescritas, ao contrário do passado. Eu e meus irmãos somos emissários da realidade vencedora. Também descobrimos que só podemos viajar um por vez numa determinada realidade para não romper o tecido existencial. – Por que a espetacularização? O senhor poderia facilmente libertar o réu ou ter vindo numa época em que ele ainda não estivesse preso. — A sombra de onde vinha a voz idosa avança até a claridade, mostrando sua cabeleira rebelde e grisalha. – Trabalhei com o senhor na realidade de onde vim. Será que aqui o distinto cavalheiro se chama Einstein também? Logo após

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o desaparecimento e reaparecimento do navio que deveria apenas ficar invisível, o Einstein da minha realidade teorizou sobre janelas de aproximação entre as dimensões. Não posso escolher a época que quiser, mas tudo depende das zonas de convergência espaço-temporais, conhecimento de que o senhor deve ser mais versado do que eu. — O advogado fez um gesto de reverência olhando para o ancião estarrecido. — Sim. Posso libertar Dr. Galvani a qualquer momento, mas de onde vim, isso não seria ético. Cada realidade tem suas peculiaridades. Meu povo aprecia papéis assinados. Não nos seria correto libertar alguém taxado de criminoso. E reafirmo que ele aprimorou nossa evolução e nos deu chances de sobreviver. Suas pesquisas deram origem a mim e a meus irmãos e, em diversas realidades; espero que nessa também, temos esperança de um dia rumarmos às estrelas. Ainda acredito na força das canetas do que das armas, senhores. Peço-lhes sabedoria em suas decisões. Alego inocência ao meu cliente. — O defensor volta seu rosto para a sombra mais ao alto. — Meritíssimo, a defesa termina. O som ribombante se repete três vezes. O juiz explana sobre decisão dos jurados e retorno daqui a uma hora. As luzes se acendem aos poucos e a névoa se dissipa lentamente. Os jurados começam a se retirar, restando apenas um. Albert Einstein aperta a mão do advogado, indagando pelo nome. – Pode me chamar de Nikola. — O gênio da eletricidade retira o capuz, deixando seu interlocutor estupefato. — É uma honra conhecê-lo nesta realidade, senhor Einstein. Trabalhamos juntos no Projeto Philadelphia aqui também, não é Albert? – Tesla! — exclama Einstein, lívido. — Outra constante entre as realidades deve ser sua predileção em ser um showman! — O físico

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dá uma risadinha, mas logo se aquieta ao olhar para Dr. Galvani, que se levantava pesarosamente. — Por fim, diz resoluto: — Agora, com licença. Tentarei persuadir meus colegas. – Sim, velho amigo — diz Tesla, abraçando o cientista. — Salvaremos esse mundo. O pombo alça voo do ombro de Nikola Tesla graciosamente.

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ATRITO PRIMORDIAL Gabriel Guandalini

Gabriel Guandalini nasceu em Belo Horizonte, MG. MantĂŠm o blog folhaembranco.com.br. Contato: g.guandalini@gmail.com



ATRITO PRIMORDIAL Gabriel Guandalini Tomás tirou do bolso do colete seu desgastado isqueiro prateado, no qual intricadas figuras dançavam em alto-relevo, e acendeu o cigarro que levava nos lábios. Tragou com vigor e, em seguida, expeliu a fumaça azulada para o céu carioca. — Você ainda usa esse tipo de porcaria? Por que não usa um acendedor elétrico? — perguntou Carlos, enrolando o bigode entre os enormes dedos. — É uma herança de família — respondeu Tomás, devolvendo o objeto ao seu lugar ao lado do peito. — De qual família? A daquela casa grande da semana passada ou a que tinha o mordomo e o cachorro? Os dois riram. Carlos retirou do bolso do paletó seu acendedor, um pequeno cilindro com uma esfera oca na ponta. Levantou-o em direção ao cachimbo que segurava na outra mão e, com um clique, um feixe de energia brilhante se formou no ar e acertou o fumo, levantando uma leve névoa de tabaco a frente dos olhos do homem atarracado e de braços fortes. — Tu não precisava fazer aquilo com o mordomo, por sinal — comentou Tomás, se recostando ao muro que os separava das docas, logo atrás deles.

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— Ninguém mandou ele me provocar — grunhiu o outro, com o cachimbo entre os dentes. — E tu queria que ele fizesse o quê? Te deixasse levar a prataria toda da casa sem mais nem menos? — Ele não precisava me apontar a maldita arma, Tomás! — exclamou Carlos, encarando o parceiro — Era queima-roupa aquilo! Até parece que você nunca viu o estrago que um rifle Gauss faz. — Tudo bem, eu entendo. Mas tinha que ser no banheiro? — Quem limpou a sujeira não foi você mesmo... Na rua, uma carruagem passou chacoalhando ruidosamente, sendo puxada por dois cavalos metálicos que cuspiam vapor enquanto trotavam sem ritmo. O cocheiro largara o controle de lado e tinha toda sua atenção voltada para o rádio com inúmeras antenas que levava nas mãos, absorvendo cada palavra que o aparelho lhe cuspia. O homem só voltou a olhar para frente quando uma senhora de vestido longo que seguia pela rua bradou impropérios assim que as rodas do veículo passaram perigosamente perto de suas anáguas. O cocheiro levou um dedo ao manche do controle e fez os cavalos marcharem de volta para o meio da pista, mas não se preocupou em manter os olhos na via. A rádionovela estava chegando perto do clímax. — E essas carruagens a vapor? — perguntou Tomás, puxando novo assunto enquanto esperavam — Tu acha que prestam? — Não trocaria as de bobina por isso, mas pelo menos é melhor que diesel — respondeu Carlos, entre uma baforada e outra. — Lá na transaerovia usavam alguma coisa de vapor? — Não, todos os foguetes lá eram elétricos. Vapor não compensa. Gasta carvão demais. Aquele cara esquisito desenvolveu as

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turbinas enormes foi para isso mesmo. — Mas e as patentes? — O dia que o Barão de Mauá pagar patentes para os ingleses, este país acaba e viramos parte da Nova República de Nova Iorque. — Até que não seria nada mal. Ouvi dizer que eles fazem cerveja com o que sobra do chá. — É? — É. Ouvi no rádio, no programa daquele cara que canta. Sempre toca um chorinho e uma música de gafieira. Como é o nome mesmo? — O do Jair Lemos. O Atrito Primordial. — Isso mesmo. Ele falou isso lá. Falou também que vão substituir os mineiros lá nas Minas Reais por rôbos. — Até que enfim. Já passava da hora daquele povo parar de morrer em desabamento. Do outro lado da rua, um senhor de bengala que passava lançou um olhar aos dois homens encostados ao muro e depois tocou a cartola em um cumprimento, antes de seguir em frente pela rua. Tomás jogou o cigarro no chão e o amassou com a sola do sapato, em seguida fazendo sinal para Carlos acompanhá-lo enquanto atrevessava a rua. O homem atarracado ajeitou o chapeú-coco na cabeça antes de seguí-lo. Logo a frente, o senhor de cartola virou à esquerda, entrando em um beco entre dois prédios. Tomás e Carlos pararam onde ele havia se virado e olharam em volta. Sem ver ninguém por perto, lançaram-se para dentro do beco. O homem mais velho os aguardava apoiado na bengala, próximo ao único poste de iluminação daquela pequena alameda, que ainda estava apagado naquele fim de tarde.

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— Olá, rapazes — cumprimentou o velho, a medida que os dois se aproximavam dele. — Boa tarde, Jorge — cumprimentou Tomás, enquanto Carlos tocava a aba do chapéu em uma breve reverência com a cabeça. — Não foram seguidos, presumo? — perguntou o senhor, tamborilando os dedos na base da bengala. — Tomamos as precauções usuais, não te preocupes — assegurou-lhe Tomás. — Ótimo. Preparados para hoje à noite? — perguntou Jorge. Ele tinha os lábios tortos, assimétricos, parte deles caída, acompanhando suas rugas. — Como sempre — respondeu Carlos, enfiando as mãos nos bolsos. — Mas hoje é um dia especial — afirmou o velho, com um sorriso brotando da boca molenga — Ligeiramente mais complicado do que o usual, eu diria. — Estamos prontos — tornou a afirmar Carlos. — Seu entusiasmo é louvável, meu jovem. É o que eu quero ouvir — e tornou a sorrir, apenas metade dos lábios deixando entrever os dentes, o que lhe deva um aspecto impossível de discernir entre o sarcástico e o sinistro. Carlos apertava os punhos todas as vezes que via aquilo. — Entramos, abrimos o cofre, pegamos os documentos e saímos — disse Tomás e acrescentou, antes que o velho pudesse perguntar — Sem alarde, sem testemunhas e tudo de forma irrastreável. Já preparamos o equipamento e revisamos todo o plano. — Bom, muito bom. Tenho certeza que já fizeram tudo que é

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preciso — afirmou Jorge, ainda com o sorriso enigmático no rosto. — E os convites? Tu conseguiu? — perguntou Tomás. — Oh, sim, é claro — respondeu, enquanto enfiava uma mão enluvada dentro do paletó e de lá de dentro tirava um envelope — Aqui estão. Dois convites para o baile da Marquesa de Cantagalo, para a inauguração de seu novo flutuador atmosférico. Carlos estendeu a mão e pegou o envelope. Abriu-o em seguida, puxando para fora os dois pedaços de papel grosso, ilustrado com nuvens douradas e o brasão da família do marquês que organizava a festividade, preenchido com a caligrafia fina característica da alta sociedade carioca, feita pelo rôbo que havia se popularizado entre a aristocracia no último ano. Era perfumado e continha o endereço da estação de lançamento de flutuadores, localizado ao lado do ponto inicial dos telefêricos intermunicipais no morro da Urca. — O que eu não consigo entender é por que o cofre estaria lá, no flutuador? Por que não guardar isso em casa? — perguntou o homem atarracado, levantando as grossas sombrancelhas. — Adrian von Zingler — limitou-se a dizer Jorge, aumentando o sorriso dual. — O alemão? — Suiço — corrigiu Tomás — Ele que vai cuidar de toda a parte técnica do lançamento. — E daí? — tornou Carlos — Onde tem um suiço tem que ter um banco e um cofre agora? — Ele é louco. Ou ficou louco — explicou Tomás — Desde que teve um acidente no experimento com aquela gaiola de raios, exige que todos as plantas, planos, esquemas e diagramas fiquem com ele, para

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serem revisados em caso de qualquer emergência. — Então é isso que nós vamos roubar? Papelada de experimentos de um louco? — Que diferença isso faz, Carlos? — Nenhuma, desde que ele pague direito — respondeu, apontando para o velho. Tomás chegou a enunciar as primeiras sílabadas de sua próxima frase, mas lançando um olhar para o senhor de cartola, calouse. Jorge tinha agora, na face, um esgar tão aberto que era possível lhe enxergar as gengivas e os olhos estavam esbugalhados. A face parecia se contorcer tentando aumentar o riso, mas um estalo atrás deles interrompeu o espasmo voluntário. O poste faiscou, ruídoso, e dele um grande feixo de energia, brilhante como um raio, surgiu, avançando para fora do beco, em direção a rua, onde se juntaria a outros milhares de feixes para iluminar a cidade. Anoitecia. — Bem, o papo está ótimo, mas é hora de ir — disse Tomás, tocando o ombro de Carlos, sem tirar os olhos do rosto de Jorge, que murchava aos poucos. — Nós entramos em contato pela manhã e combinamos o local para pegarmos o pagamento — afirmou Carlos, enquanto guardava o envelope com os convites. — Isso, isso — apressou-lhe, Tomás — Fique tranquilo que vamos cumprir o serviço, Jorge — completou ele, enquanto se virava para sair do beco. Tomás marchou pela alameda, pronto a ganhar a rua. Atrás dele, Carlos estendeu a palma em direção a Jorge, para cumprimentá-lo. Este se apoiou na bengala e, usando a boca, retirou a luva, revelando uma

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mão pálida, de dedos longos embranquecidos e unhas raiadas escuras, inteiramente coberta, do punho as polpas digitais, de manchas disformes de padrões variados. Ele estendeu a mão e apertou a de Carlos. Seu toque era gelado e rígido, mas firme. Ainda mantendo o aperto, deu um passo a frente e disse, quase num sussurro: — Não estrague tudo, se não… — ... vai descobrir por que me chamam de Mão Morta — completou Carlos, sem desviar o olhar do outro. Apartaram-se sem dizer mais palavra, Carlos de cara amarrada e Jorge sem mostrar os dentes. De súbito, o velho explodiu em um riso rouco e áspero, enquanto assistia o outro se afastando. Na entrada do beco, Tomás aguardava o companheiro, assistindo a toda a cena com a boca seca. Carlos passou por ele e seguiu pela rua. O mais alto o alcançou e caminharam lado a lado. — Por que tu faz isso? — perguntou Tomás. — O quê? — devolveu Carlos. — Provoca ele. — Ainda vou queimar a outra metade daquele desgraçado. Separaram-se. Algumas horas mais tarde, voltaram a se encontrar, vestidos em trajes de gala e portando cartolas, perto da entrada do baile. À sua volta, inúmeros cabriolés elétricos estavam estacionados, repousando ainda com os grandes dínamos que cercavam as quatro rodas a resfriar. Aqui e ali, uma ou outra carruagem estava parada, os cavalos metálicos de cabeça baixa aguardavam desligados. — Cadê tua gravata borboleta? — perguntou Tomás. — Não consegui amarrar — respondeu Carlos, levando as mãos ao colarinho amarrotado.

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— Me dê cá que eu arrumo pra ti. — Larguei no lixo aquela porcaria. — Eu não sei por que ainda pergunto… Mas e se eles perguntarem da sua gravata? — Eu digo que joguei fora. — Carlos… — Que é? É só uma gravata! Mulheres de vestidos voluptuosos e homens bem-arrumados dirigiam-se para a entrada da festa. Seguranças conferiam os convites e avisavam ao mestre de cerimônias quando alguém importante precisava ser anunciado. Tomás e Carlos misturaram-se aos convidados que chegavam e passaram pelos portões. Ninguém se interessou por eles, muito menos por suas gravatas, e eles fizeram o possível para continuar assim enquanto galgavam a rampa decorada que levava até o flutuador, onde o verdadeiro baile ocorria. Alguns fotógrafos tentavam capturar a magia da máquina movida por seis hélices metálicas imensas que se juntavam em uma grande estrutura oval, recoberta por vidro em toda superfície e encimada por um balão que a ajudava a levantar vôo. Acima do balão, ligando-se a ele por anéis que desciam até a aeronave propriamente dita, receptáculos de ponta cobreada aguardavam raios para energizar as hélices, recarregandoas em pleno vôo, e estavam decorados com bandeirolas com o brasão da Marquesa de Cantagalo. Tomás e Carlos adentraram o salão de baile, todo cercado por vidro, de onde podiam ver a baía de Guanabara iluminada. Zanzaram entre barões e bancários, agarrando drinques quando algum garçom lhes oferecia e largando-os logo a frente. Andaram por todo espaço,

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dos banheiros a beira do palco posicionado entre as grandes janelas, perscrutando pessoas e ambiente com olhar treinado pela malícia. Completavam o giro pelo salão quando Tomás puxou Carlos para a saída, de volta para a rampa. — Preciso de um cigarro — disse ele — Me empresta teu acendedor. — Que foi? Nervoso? — perguntou o bigodudo, passandolhe o pequeno cilindro metálico. Tomás não respondeu. Esperou a faísca do acendedor dar chama ao tabaco e o levou à boca, inalando profundamente. — Cadê aquele seu isqueiro? Deixou em casa? — perguntou Carlos. — Não. Está aqui no bolso. — E pra que me pediu o acendedor então? — perguntou o outro, levantando as mãos em um gesto de incompreensão. — Eu ouvi no rádio… — O quê? — Na radionovela… — Radionovela!? — inquietou-se Carlos, encarando o companheiro e franzindo o nariz. — É, no programa do Jair Lemos — respondeu Tomás e deu outra inalada profunda no cigarro — Na história, o herói leva um tiro. Bem aqui. No peito — completou, apontando para o próprio toráx. — E daí, Tomás? — Ele não morreu. Tinha uma Bíblia no bolso. Foi salvo por ela. Parou a bala. — Não me diga que…

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— Achei que podia funcionar com o isqueiro. Então coloquei ele direitinho em cima do coração. Não quero mexer nele e correr o risco de ficar fora do lugar. Ficaram em silêncio por três longas baforadas. — Tomás, por que você faz isso comigo? — O quê? — Me provoca. Os dois riram. Carlos colocou uma mão sobre o ombro do amigo e voltaram para dentro do salão. Pouco depois, surgiu a anfitriã da festa. Seguiu-se um emocionado discurso da marquesa, e então o flutuador ligou as hélices e começou a ganhar altitude sob uma salva de aplausos de todos os presentes. — Tomás — chamou Carlos. — O que foi? — respondeu ele, sem tirar os olhos da cidade que diminuía cada vez mais. — Estava aqui pensando… — No quê? — Pra quê que você colocou o isqueiro aí no peito se ninguém mais usa balas, só armas de raio? A banda começou a tocar. Era um choro com guitarras elétricas.

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MÁGICA ALTERNADA Gregório Bernardino Matoso

Gregório Bernardino Matoso nasceu em 1997 na cidade de Cambé, PR. Atualmente cursa História na Uel. Contato: grematoso@gmail.com



MÁGICA ALTERNADA Gregório Bernadino Matoso Mais uma noite normal na feira, poucas barracas já estavam funcionando, mas ainda era pôr do sol. Duncan já estava fazendo suas magicas, uma garotinha estava maravilhada com uma carta flutuando na altura do rosto de seu pai. Eles deixam uma moeda de prata no balcão e seguem pela feira. Duncan se senta em uma cadeira mais para dentro, rodando um par de bolas boading na palma da mão esquerda e do toldo caem raios, que atingem em cheio a cadeira, mas parece não afetar o magico. Na barraca da frente, Ramona, sua esposa, via a sorte de um cliente nas cartas, quando essa se levanta e, ela acena para Duncan como sempre fazia quando tinha um bom resultado. A noite estava meio fraca para magicas, mas assim que saia um cliente, vinha outra falar com Ramona. Os postes foram acessos agora que a noite cobria a cidade, começando na torre central, os raios foram se espalhando pela cidade criando um caminho de luz. Duncan percebe uma pessoa estranha se aproximando da barraca de sua esposa, vestia um manto muito longo com um capuz que escondia seu rosto e um símbolo nas costas que ele já tinha visto, mas não conseguia se lembrar de onde. Ramona usa a bola de cristal e pareceu não

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perceber que a luz de um poste próximo diminuiu, Duncan se levanta e vai até a barraca de Ramona e fica atrás da pessoa desconhecida e notou que estava dizendo alguma coisa, em um tom inaudível. — Ramona — ela não esboça reação — Ramona, esta me ouvindo? — seus olhos se moviam muito rápido — Ramona! — pula o balcão e chacoalha ela pelos ombros — Acorda, Ramona fala comigo — Duncan tira ela de frente da bola de cristal e seus olhos diminuem a velocidade do movimento. — Duncan... O que... Eu... Eles olham para a bola de cristal, ela tinha uma nuvem elétrica se contorcendo dentro dela. Duncan se aproxima da pessoa desconhecida, tira o capuz e veem que era uma mulher, seus olhos brilham como se tivesse conseguido um grande feito; ela carregava no pescoço um pequeno raio azulado, que Duncan reconheceu — Você não fez... — Sim, ele esta outra vez entre nós — ela se ajoelha e ergue as mãos para a bola de cristal — Bem vindo de volta, mestre. — Duncan, o que está acontecendo? — Ramona encostouse à parede do fundo, estava muito assustada — Quem é ela? — Uma eletromântica — Duncan respirava pesadamente — você amaldiçoou a todos nós, os mortos não devem ser perturbados, o lugar de seu mestre não é nesse mundo. — Quem é você para dizer isso? — a mulher pega a bola de cristal — liberte-se mestre — e atira no chão, a bola se esmigalha e uma nevoa azulada sobe de onde ela se quebrou e um som agudo de interferência elétrica tomou todo o quarteirão. As lâmpadas começaram a vibrar, como se algo tentasse fugir

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delas. Elas se quebram e a energia dentro delas se junta no meio da rua se contorcendo, aumentando a massa elétrica, até que tomou uma forma semelhante à de um homem. Ele se movia lentamente, parecia não estar acostumado a esta forma; tocava seu rosto, sentindo seu novo corpo e pequenas descargas subiam do chão e se ligavam a sua perna na altura do joelho. Os olhos da garota pareciam brasas — mestre, mestre — ela se ajoelha na frente do ser elétrico — me guie... — ao dizer isso ela toca umas das mão nele, que parece tentar impedir e assim que a mão dela o toca ela cai convulsionando. As pessoas das barracas olharam preocupadas, alguns corriam para longe, outros se aproximavam com curiosidade. Duncan se aproxima do homem e se ajoelha — senhor... O homem estica uma das mãos e Duncan retribui o gesto, mas uma rajada elétrica sai em sua direção. O raio atinge sua mão estendida, passa por todo o seu corpo e sai pela outra mão em direção ao solo — Duncan, você esta bem? — Ramona estava desesperada. — Estou bem, pelo menos ainda — ele ofegava — temos um grande problema. O homem ergue o braço, todos os postes da rua se apagam e mandam raios de energia que chegam até o seu braço. Sua forma tremula e cresce; Duncan corre para sua barraca, abre um baú e tira uma besta, uma serie de dardos de metal e um cabo de fios de cobre. Enquanto a criatura absorvia a energia dos postes, ele enterra uma das pontas do cabo no chão, a outra em um dardo, carrega a besta e mira no meio do peito. O dardo crava no corpo elétrico, faíscas saiam como sangue de uma ferida, e o cabo se ilumina quando parte da carga elétrica atravessa

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ele. A criatura solta um forte grito, uma interferência elétrica alta que faz muitos se curvarem cobrindo os ouvidos, o cabo estoura e cai no chão, ele tira o dardo do peito e sai correndo em direção ao centro da cidade. Duncan pega no baú mais alguns cabos e um par de luvas de couro, pula o balcão e se vira em direção ao centro — Ramona, corra até os bombeiros, diga que vamos precisar de muita água na central elétrica. Vá junto com eles, te espero lá — e sai correndo atrás do monstro, ela na direção contraria. A criatura corria e absorvia a energia dos postes que passava, crescendo cada vez mais. Duncan seguia atrás, carrega outra carga da besta e dispara na perna, parte do pé desaparece, mas o cabo tenciona e cai e uma parte da energia da perna forma um pé novo. As pessoas do começo da rua ainda não sabiam do ocorrido, e muitos se assustam quando um homem elétrico com quase dois metros de altura passa correndo por ele. O guarda saca a arma e atira, mas as balas atravessam direto; quando Duncan passa quase tromba com ele — O que diabos é isso? — Sem tempo de explicar agora policial — tira o cassetete do cinto dele — vou precisar disso emprestado — já iam longe quando grita — mande reforços para a torre! Ramona corria o mais rápido que suas pernas permitiam, quando chega ao Corpo de Bombeiros ofegava muito, um deles a vê — Senhora, precisa de alguma coisa? — Meu marido pediu... Vai precisar... Quer que vocês vão para a torre... — Calma, respire e diga novamente. Com calma. — Meu marido pediu para que vocês vão para a torre central,

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que vai precisar de muita água. — Hmm — o bombeiro parece não entender — quem é o seu marido e por que ele pediu isso? — O nome dele é Duncan, ele é o magico da feira aqui perto. Uma eletrocromântica invocou um espirito elétrico, ele esta indo em direção à torre e o Duncan foi atrás. — Certo, senhora... Ela interrompe — me chame de Ramona. — Certo, Ramona — ele puxa uma alavanca na parede — sou o Major Arthur — um alarme toca no prédio — Duncan falou quanto de água vai precisar? — Só que era muita. — Certo — deixa Ramona de lado um pouco — Homens, temos um incidente elétrico na torre. Quero três caminhos tanque e um de aterramento. Partindo agora — diz no alto falante — você vem comigo, vamos tentar impedir que essa coisa chegue até a central — Os dois sobem em um dos caminhões tanque e saem do quartel seguido pelos outros caminhões. Duncan vira uma esquina e olha em volta, perdeu a criatura de vista; respira funda tentando recuperar o folego. De repente, uma descarga elétrica sai da parede e ele rola pelo chão, quase sendo acertado pelo raio. Caído, Duncan vê o ser correndo novamente, prepara um novo disparo da besta e volta à perseguição. Amarra dois cabos e mira na cabeça, o dardo atravessa e crava no chão do outro lado formando um arco com o cabo. A criatura cambaleia e cai com um joelho no chão quando duas descargas saem de seu corpo, Duncan dispara em sua direção com o cassetete em punho

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e bate na altura da cintura, a borracha divide o corpo em dois, mas pequenos raios juntam as duas metades novamente. Duncan respira fundo, já estava cansando de correr. Quando ia voltar à perseguição, um caminhão do Corpo de Bombeiros vira a esquina e para meio atravessado na rua — quer uma carona? — a porta do passageiro estava aberta e Ramona o esperava lá dentro. — Certo, mágico, o que fazer? — Bom, Major, vamos o mais rápido possível para a central de distribuição de energia e torcer para chegar antes da criatura, se encontrarmos ele no caminho, daremos um banho nele. — E se ele chegar primeiro? — Tem mais gente com você? — Dois caminhos já indo para a central. — Eles têm que ficar olhando, passe um radio para eles, se alguma anomalia acontecer por perto de lá eles desligam a chave e começam o aterramento. Assim que chegarmos reforçamos a operação. — Entendido — Arthur pega o radio. — Tenente, onde está e qual a situação? Uma voz meio destorcida sai do painel: — Chegamos à central senhor, os computadores estão acusando uma enorme vasão de energia, e se aproxima de nos. — Me da isso aqui — Duncan pega o rádio. — Tenente, desligue a chave geral da cidade. Deixe que criatura entre na central, vamos aprisionar ele dentro do prédio e diminuir a força dele. — Isso vai dar certo, mágico? — É o melhor e mais eficiente que consigo pensar agora Major — Duncan sai pela janela e se prende na cesta da auto-escada,

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esperando pela hora de agir. A torre se apaga, e gradativamente a luz de toda a cidade se apaga, quarteirão por quarteirão. O monstro suga o ultimo pulso elétrico e diminui o ritmo da corrida, ele se volta para trás como se soubesse os responsáveis pelo fim da energia, arranca um dos postes e atira na direção do caminhão. Duncan aponta a mangueira para o poste e a liga, uma forte rajada de água diminui a força, e ele bate de raspão na lataria, ele gira mais a torneira e aumenta a pressão o suficiente para que a águe chegue até a criatura. Ele urra quando é atingido, uma chuva de faíscas toma a rua e faz Arthur frear. O monstro vai diminuindo conforme a água o atinge, mas consegue se transformas em um grande raio e se dirige ao poste ao lado, e continua seguindo rumo a torre. Duncan se pendura na lateral do caminhão e coloca a cabeça dentro da cabine — mande abrirem caminho até a bobina. — Você está louco? Vai abrir caminho para um demônio elétrico chegar até a bobina de energia que alimenta a cidade? — Confie em mim. Com a chave desligada ele não vai ter acesso nenhum à energia, e vai estar em uma câmara completamente isolada. Coloquem uma barra de cada lado da entrada para servirem de para-raios. — Caso esse plano maluco não funcione, não vou me responsabilizar pelo desastre — Arthur repassa as instruções pelo radio e acelera o caminhão, seu inimigo agora andava a uma velocidade muito alta. Quando a criatura chega à central, as portas estavam completamente abertas. Sua forma já não era mais de um homem, estava

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completamente disforme e retorcida; se arrasta lentamente na direção da bobina no centro do prédio. O caminhão chega pouco depois, o monstro se vira e tenta lanças um raio, mas as barras na entrada da bobina os atraem e dissipam. — Fechem a porta! — Duncan desce do caminhão e se dirige ao painel de controle, enquanto um dos bombeiros gira uma manivela fechando a porta da bobina. Ele meche nos controles e a bobina começa a girar devagar. — O que esta fazendo? Vai dar ainda mais na energia para esse monstro? — Só confia. Major prepare as mangueiras. Ramona vem aqui. Ela se aproxima e para atrás dele — quando eu disser, você empurra esse alavanca — toca a mão direita uma alavanca com a ponta vermelha — até o fim, sem hesitar. — Certo — ele da um beijo no seu rosto e aperta um botão no meio do painel; uma serie de raios cruza o teto do prédio e indo para a torre de distribuição. A criatura espanca a porta da bobina, e gritos muito altos são ouvidos dentro da sala. Duncan abre a porta e um enorme raio corte o ar da sala, a criatura se debate fortemente enquanto sua energia era sugada pelo gerador. Ele faz sinal e os bombeiros jogam três fortíssimos jatos de água no corpo elétrico. Ramona olha atentamente toda a cena, o espirito tentava sair, mas a água o empurrava para trás, a bobina girava lentamente e Duncan se aproximava da porta entreaberta. Ele aponta para Ramona e ela empurra a alavanca para cima com toda sua força, a bobina alcança velocidade máxima e o mostro vai diminuindo de tamanho rapidamente;

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o chão da câmara estava alagado e a água parecia dissolver a eletricidade. Arthur usa o caminhão de aterramento e lança um dardo, muito maior do que os que Duncan usou, com um cabo supercondutor aterrado, e acerto no meio da massa elétrica. Ele parece desistir de lutar, a energia era imensamente sugada pela bobina e pelos jatos de água; quando a situação parecia controlado, Duncan pula para dentro da câmara da bobina. Todos correm para a porta e tentam ver o que acontecia dentro da sala, mas uma nuvem de faíscas impedia de verem qualquer coisa. Em um ultimo suspiro, o monstro solta um ultimo urro de interferência elétrica, já sem força e com tamanho muito reduzido, ele desaparece nos meandros da bobina e, do outro lado, Duncan estava segurando uma capsula opaca, estava todo desgrenhado. Ele sai da câmara meio cambaleante — senhores — se vira para Ramona — e senhoras, conseguimos — e ergue a capsula. Um dos bombeiros avança, tentando pegar a capsula — nós assumimos daqui... — Não, não. Prefiro eu mesmo dar um fim nisso. Não se preocupe ninguém mais vai chegar perto disso novamente — e os dois, Duncan e Ramona saem do prédio rumo a noite estrelada.

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O QUE NOS EXCITA Jean Thallis

Jean Thallis é geógrafo e escritor do gênero gore, atualmente escreve seu quarto livro sobre o tema, tendo já lançado o primeiro livro em 2013, pela Chiado Editora, Lapso Esquizofrênico. Publicou contos nas antologias Maravilhosas Distopias, Épicos Homéricos e Seres Amazônicos, organizadas por Maurício Coelho.



O QUE NOS EXCITA Jean Thallis No balcão, um jovem de nossa idade mexia lentamente a cabeça em sintonia com a música elétrica. O ambiente era propício e favorável para aquele estereótipos. Em suas costas uma suástica brilhava na jaqueta que vestia, em LED’s vermelhos, é a última moda entre os nazistas, uma bela jaqueta de couro com uma suástica. Ainda era cedo e o estabelecimento estava quase vazio, a música ainda soava numa frequência hipnótica, talvez seja ela que transforme tantos jovens em adeptos do nazismo, é claro que este gênero não me agrada, mas em 1918 nenhum lugar toca nem mesmo Wagner, quando mais um Beethoven. Essa música elétrica infectou a cidade como a Gestapo, em todos os lugares agentes da URSS e da Alemanha Unida estão fumando um cigarro, bebendo vodca ou espancando um mulato na esquina por não ter obedecido ao toque de recolher para negros. Por eu e meu amigo sermos brancos, podíamos nos deliciar com a maravilhosa música elétrica que a cada dia forma nazistas e mais nazistas numa progressão geométrica. Pois sim, se trata de uma ironia, não seria menos do que isso, mas confesso que até mesmo eu já estou aprendendo a reconhecer os estampidos, chiados, silvos e as diferentes frequências dessa nova corrente musical.

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A verdade é que este som todo parece nos colocar numa tempestade de raios no olho do Maelstrom pulse. O pulso eletromagnético russo que obliterou a frota marítima e aérea da Inglaterra. Deve ser dos chiados dos mortos e das descargas elétricas daquele genocídio que surgiram esses sons.... Não consigo pensar em outra coisa que não isso. É desta forma que embriagado pela música decidimos pedir vodca, vetores de luzes dançavam pelo bar e a todo tempo seria possível delirar como holofotes soviéticos fritando seus neurônios. Os efeitos de luzes irritavam meus olhos, um caleidoscópio cobrindo todas as paredes do bar e as pessoas a medida que se moviam. Admito que nestes bares é possível ficar meio louco, grogue ou extasiado sem o uso de álcool ou pilhas... Não sei se hoje é o dia de ficar pilhado... Quero me manter são, não deveria ter vindo até aqui, um pessoal bem diferente está frequentando o lugar. – Tem isqueiro? Obrigado. Por agora talvez só fumar, beber e tentar esquecer estas luzes, me fritam a cabeça, não é disso que gosto, não gosto de sentir meu cérebro derreter com essa merda toda. – Vou dar uma carga, já volto. No banheiro as propagandas do “mundo global” de sempre, um neon do Tesla em alta definição, ele tinha um moicano como corte de cabelo, ao estilo dos elmos romanos com plumagens coloridas. – É, Tesla... Essa aqui é pra você! Peguei a pilha que sempre costumava usar, já estava habituado aos seus volts, peguei o transmissor, o tubo da pilha, e injetei no músculo da coxa. O tesão foi imediato, meu corpo se chacoalhou por dois segundos, meus cabelos se espetaram e um leve deleite passou pelas

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minhas entranhas correndo pelo corpo num só pulso e terminando nos meus testículos. Suspirei e fechei os olhos, sorri... Estava recarregado e pronto para sobreviver àqueles espectros de cores lá fora. Meu amigo disse que um olho meu parecia ainda um pouco desarticulado. Mas logo voltaria ao normal. – Pode acreditar, essas luzes estão atrapalhando mais minha visão.... Parece que esta onda de luminosidade só tende a se expandir. – É o que você sempre diz. O efeito em breve passaria, melhor, os efeitos colaterais, eu voltaria a ficar um chato com ele, com Felipe, meu amigo. E havia motivos para tal, eu o acompanhava para uma apresentação de luminescência, as luzes seriam apagadas e algum artista louco e delirante por comprimentos de ondas eletromagnéticas iria propor desenhos no negrume do bar. Esta parece ser outra comunhão religiosa dos com pactos ao deus Magneto e glorificação dos Nêutrons e Elétrons, com o intuito de obter fótons. Me parece mais uma Igreja com cristãos ortodoxos, ao invés temos um monte de nazistas... Me perdoe, talvez pague com a língua, mas dei-me os malditos cristãos e devolva aquele cara pregado numa cruz para o Vaticano! Minha mente se acelerava e meus olhos estalados queriam gritar na escuridão. Mas logo apareceram as luminescências flutuando no bar, começaram com fótons amarelados, depois tapei minha visão e pedi para que Felipe me avisasse chegado ao término da apresentação. Estranhamente me senti excitado, Felipe neste momento estava muito próximo de mim, sentia o cheiro da sua pele, o calor que saía do seu corpo, me imaginei chupando sua vara, minha boca salivou

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e tremi por dentro, senti angústias, quando eu poderia revelar a ele meu gosto por homens? Num país que a cada minuto um afeminado vai parar na cadeira elétrica? Toda vez que penso em nossa amizade, imagino o quanto ela é forte para ser ao menos compreendido, para não ser denunciado a delegacia... Nem sei se ele se simpatiza com o nazismo, pois até isso é difícil falar com um ser humano sem correr o risco de ser preso por subversão e receber umas boas doses de sessões de choques, nenhum pouco parecidas com o pulso de dar uma recarga, agora eles podem fazer você só sentir dor... Tem um fio de eletrocussão em cada distrito policial... O quanto vale este meu desejo? Se não for pelos soviéticos, ou pela Alemanha Unida, será por minhas próprias mãos? Me embrulha o estômago pensar que meu mundo só fara sentindo com meus desejos sexuais realizados. Abri os olhos e havia acabado a apresentação alucinógena, todos pareciam dopados e que não se lembrariam caso beijassem uma boca homossexual. – Olá, senhores. – Não, Demitri, sem delongas. Aquele último lote de pilha foi ruim, não tremi nem por meio segundo. – Eu tô com uma pilha eletroloca, agora, confia. – Não, não quero. – Essa aqui não é qualquer comprimento de onda. Vai fazer seus nervos saltarem! – Eu conheço dessas, não gosto dos volts elevados. – Não, você não conhece, peguei com um cara da Gestapo. Trouxe direto da Alemanha! Essa pilha vai levar seus sangue para o crânio

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e você vai disparar centelhas de tesão! Você é meu camarada. Toma, leva uma, depois você me procura. É uma amostra grátis. – E quem garante que as outras serão como essa? Ele riu e gargalhou longamente. – A Gestapo, amigo! A Gestapo! Levantou-se com um sorriso sardônico e foi-se embora. Na suas costas a suástica brilhava em um neon vermelho. O tempo passando, luzes girando, um espectro de tom azul correndo por paredes e pinturas, um mosaico da modernidade, aquilo girava em minha mente, ou seria o ápice de nossa amizade que estava dando enjoos? Não sei até que ponto tudo isso se confunde, os brilhos e reflexos nos olhos me incomodam, não tenho este fascínio por elas, prefiro sentir as correntes elétricas dançando em meu corpo. Queria sair dali... – Conhece o morro escuro? – Só de ouvir falar. Dizem que lá é escuro. Rimos falsamente. – Quero recarregar lá, peguei uma pilha com aquele cabeça raspada. – Tudo bem, vamos lá. A vista deve ser ao menos interessante. – Como falei outras vezes, Felipe, muito melhor que estas nebulosas. – Duvido que seja, mas a experiência é sempre excitante. – É a palavra certa! – Experiência? – Excitante.

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Gargalhamos e brindamos nosso último copo de vodca que nem lembrava como havia ido parar aquela garrava na mesa, mas sabia não ter bebido muito, ainda poderia dirigir meu Denmark, 1890, carro dinamarquês conceituado ainda, sendo o melhor dos primeiros veículos movidos a dínamos eletromagnéticos. Fui dirigindo e Felipe bebendo a vodca, não andamos mais de oito quilômetros em profundo silêncio introspectivo e o vasilhame havia acabado neste percurso, ao chegarmos ao Morro Escuro. – O pessoal da Gestapo costuma dispensar alguns cadáveres aqui, ouviu esta história alguma vez? – Vi isto acontecendo. Mas o que achou da vista? — Não queria entrar naqueles assuntos, iriam desviar minhas pretensões. – É uma cidade brilhante e tanto, mas prefiro as nebulosas. Dei um meio sorriso. Um pouco a frente víamos de um pequeno mirante um horizonte de luzes brancas, amarelas, vermelhas e azuis. – Eu acho uma bela composição... Me aproximei um pouco mais dele, embriagado do modo como costuma ficar, mas desta vez existia uma real chance. Com ele poderia ser tudo diferente, mas não foi. Com um ímpeto alcoólatra ele se desvencilhou da minha mão que tocava seu ombro, furioso fitou-me com olhos em chamas e sibilou: – Tenho a nítida certeza que confundiu minha sincera amizade! Uma pena, pois pensei ser um homem de verdade, — tentei intervir, mas não consegui, ele me cortou e subiu o tom — não pense que pode abusar de mim se aproveitando do meu estado etílico! – Felipe...

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– Não! Eu como um cidadão de bem venho a cumprir meu dever e declarar-te voz de prisão por homossexualidade! Felipe caiu se contorcendo no chão com o choque elétrico que recebera de minha arma, teve alguns espasmos e depois tentou recuperar o fôlego enquanto iniciava o meu discurso. – É pena, pois pensei que nada disso seria necessário. – Seu filho da puta. Bicha desgraçada. Ah, ah, ah! Dei-lhe outra sessão de choques para que batesse os dentes, só para ter o deleite em vê-lo se contorcendo. – É uma pena como falou, uma pena ser heterossexual e querer me prender, mas hoje quem sorri sou eu e quem morre é você. – Você não tem coragem! — Bradou cuspindo — Você não tem culhão para me matar! Você não é homem! Eu injetei aquela pilha no músculo, a corrente explodiu em meu cérebro, meus olhos saltaram, esqueci por que aquele corpo estava no chão, tremi inteiro e cerrei os dentes por três segundos num deleite onírico, a Gestapo entendia de choques. Meu coração sentiu alegria, um riso bobo no rosto, descartei a pilha e no porta-malas do carro peguei minha espada eslava, sentia uma leve corrente elétrica ligando meu corpo ao metal. – Vamos! Mostre se é um homem! Você é um viado! É um, ah! Ah! Ah! A primeira espadada lambeu o meio das suas costas fazendo-o arquear, gritou e berrou como um porco no abatedouro, a lâmina era uma extensão de minhas mãos, que desceram duas, três, quatro vezes em suas costas num ritmo alucinante, com cada corte saindo uma saraivada de sangue levada pela espada.

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Pisei em suas costas, em suas feridas, seus olhos desesperados voltados para trás, soluçando por causa do sangue saindo dos pulmões e indo extravasar pela boca. – Você grita como uma bicha! Você geme mais que um viadinho dando a bunda! Ele cuspiu sangue, tentou rir. – Você nunca vivera como um homem.... Nunca! – Não importa, Felipe. O que importa é que você vai engolir sua homofobia e morrer como uma bicha! Tirei o cinto da minha calça, Felipe gritou por socorro, tentou gritar tossindo com o próprio sangue, enquanto ainda morria, engasgando com o próprio sangue tentando se arrastar para longe de mim. Vi lágrimas saindo de seus olhos enquanto eu arrombava o cu apertado dele com meu poderoso falo. E trepei no asfalto daquele morro. Soquei em sua bunda aos gorgulhos que fazia, a suas lamúrias, vendo o muco que escorria de seu nariz, implorando para que o mata-se de uma vez. – Me mata! Por favor! Cof, cof, cof — cuspia sangue. — Me mata... — dizia choramingando. – Me diz?! Como é ser uma bicha, nazista! Me diz como é ser viado! — Bradei em loucura. – Me diz!? Levantei, juntei a espada e o decapitei com três movimentos, era o ápice da minha insanidade. Tudo era um frenesi intenso e saboroso, o cheiro de sangue abundou todo o ar de forma espantosa. Fui tragado pelo odor forte de sangue e morte fresca... Pode ser que pareça doentio, mas nas cidades globais

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nazistas, onde nada para, onde as luzes te perseguem o tempo todo, onde pássaros de aço sobrevoam o ar e prédios arranham a abobada celeste, matar alguém não seja louco. – Aliás, o que talvez você pense ser louco, seja apenas excitante.

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A CENTELHA Leandro Zerbinatti de Oliveira

Leandro Zerbinatti de Oliveira é advogado, apaixonado pela fantasia. Começou a escrever por diversão e hoje se lança profissionalmente na literatura. Contato: abaddon_ascidhiz@yahoo.com.br



a centelha Leandro Zerbinatti de Oliveira Um livro. Nem mesmo os museus aceitariam aquela coisa, ao menos não depois da invenção da digitalização tridimensional táctil. Era o que Trev havia pensado ao encontrar a relíquia durante a escavação de um velho laboratório com séculos de idade. Felizmente ele resolvera dar uma olhada além da capa encouraçada antes de se desfazer da coisa. Tratava-se de um diário manuscrito; uma obra única, certamente, que ao contrário dos demais textos, não havia sido ainda digitalizada. Assumiu então a tarefa para si, concomitantemente à sua primeira leitura: À quem algum dia ler estas palavras, saiba que aqui está contida a verdade sobre seu mundo. Ou sobre como ele será, alguns anos depois dos eventos aqui narrados. Yurev é como me chamo, e você com certeza não ouviu falar de mim. Meu nome foi apagado da história, mas eu estava lá, ajudando a escrevê-la. Eu salvei a vida dele... E, no final, é irônico pensar que não passamos de um amontoado de carne e impulsos elétricos. Nikola Tesla. É dele que irei falar. Tesla era (e creio que isso não tenha mudado) visto como um gênio por alguns, como um louco iludido por outros... Mas o homem era único; algo que era de se supor do responsável por transformar os

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Estados Unidos na capital mundial da energia, com suas carroças sem cavalos e teleféricos autômatos, ambos correndo sobre trilhos elétricos que cruzavam a cidade por terra e céu. Sua grandeza me foi evidente desde o primeiro momento, e não digo pelo fato de que o homem media quase um metro e noventa, nem pelo que ele fizera, mas pela forma com que ele via as coisas, o modo com que sua mente funcionava. Era como se ele estivesse sempre enxergando além; compreendendo as nuances do mundo, ao passo que os homens normais vislumbravam apenas uma superfície artificial. Eu havia sido contratado para ser seu guia e carregador de bagagem em uma expedição, mas só fui conhecê-lo no dia da partida. Lá estava eu, em Nova Iorque, no dia 23 de fevereiro de 1823, parado à porta do hotel, quando ele surgiu, cabelos negros repartidos ao meio, bigode encerado, trajando um terno preto e carregando desengonçadamente três pesadas valises pretas. — Senhor Nikola, eu... — Sim, sim, o carregador. Tome, carregue estas. Cuidado, são extremamente valiosas e um punhado de imbecis invejosos e incapazes adoraria roubá-las — ele sequer se apresentou ou perguntou meu nome. — Se me permite senhor Tesla, onde estão os guarda costas? — Não há guarda costas — o homem estava carregando itens de extremo valor, de acordo com suas palavras, e sequer providenciara um serviço de escolta. Eu começava a compreender sua fama de louco, e temia que aquilo fosse só o começo. — Espere! — ele berrou depois de darmos os primeiros passos. Então se aproximou de mim, pegou meu pulso e nele prendeu uma pulseira rústica de metal, com pequenas antenas ao redor de sua

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circunferência. Fez o mesmo consigo, e sem qualquer explicação pôs-se a caminhar. Enquanto o seguia, ele parou diante de um bueiro e lá atirou uma bola de papel amassado e um objeto quadrado. O homem andava a passos lagos e eu lutava para acompanhálo. O caminho nos levou ao Central Park. Diante dos portões, um grupo de cavalheiros nos aguardava. Assim que nos avistaram franziram o cenho e vieram até nós, foi quando me dei conta que não eram de fato cavalheiros, e sim capangas, portando facas, bastões e pistolas. — Senhor Tesla, vejo que vai tirar férias. Isso significa que nossa encomenda já está pronta? — disse um homem calvo e magro, aparentemente liderando o grupo. — Dói-me o orgulho informar, senhores, mas o projeto provou-se impossível. O plano não deu certo. — Não se atreva a nos ludibriar! Nós lhe pagamos uma fortuna, e esse dinheiro voltará em eletroarmas ou em sangue! — Cavalheiros, o dinheiro cobria apenas os gastos com pesquisas, ademais, o excedente, tendo em vista que as pesquisas revelaram a impossibilidade da criação das eletroarmas foi revertido em prol da cidade. Sintam-se gratos. Cheguei a saltar de susto quando os tiros foram disparados. Tesla morreria ali, e eu com ele. Mas os tiros não nos acertaram, em vez disso as balas pararam no ar, a alguns centímetros de nós, e então, repentinamente voltaram contra os atiradores. No meio do caos, os demais avançaram com suas armas brancas, mas estas pareciam parar em alguma barreira diante de nós, antes que o golpe fosse impulsionado de volta com muito mais força, vindo ainda a eletrocutá-los.

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Ali percebi a genialidade incomensurável do homem. Quando me dei conta, Tesla pegava dois pares de objetos metálicos de dentro de seu paletó. Pareciam palmilhas. Um par ele encaixou sob seus sapatos, o outro, jogou pra mim e ordenou que eu fizesse o mesmo. — Senhor Tesla, e quanto aos homens que acabamos de matar? — Não matamos ninguém, felizmente. Eles se mataram. Ação e reação. Não pude responder. De súbito alguma força passou a atuar nos aparatos sob meus pés. Tanto eu quanto meu patrão passamos a deslizar pelas ruas; não pelas trilhofaixas condutoras, de onde a eletricidade guia e mantém os carros afastados do solo. Foi como esquiar, mas sem controle do destino. Notei que estávamos sendo perseguidos. Magnetomóveis estavam em nosso encalço. Por mais que os aparatos nos conduzissem por caminhos escusos, eles sempre nos encontravam. Meia hora e chegamos ao nosso destino, um grande galpão abandonado nos limites da cidade. Foi ali que nossos perseguidores nos cercaram. Parados o centro do círculo formado pelos Magnetomóveis já estacionados, nós esperamos enquanto os ocupantes desciam. Eram capangas, tais quais os primeiros homens com os quais lidamos no Central Park, mas estes se vestiam com mais formalidade, embora suas armas se resumissem a pedaços de pau. — Tesla, você vem conosco! — Madeira? Engenhoso — observou meu patrão. — Assim meus aparatos não podem manipular suas armas; mas recuso o convite. — Então vamos arrancar seus segredos aqui mesmo...

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— Os impulsos elétricos das suas mentes os tornam tão previsíveis, se vocês apenas soubessem... Os homens avançaram. Tesla segurou meu braço e eu por reflexo me virei, já em desespero perante a ameaça que nos cercava. Então em um único segundo centenas de coisas aconteceram. Todos os meus pelos se arrepiaram. Ao mesmo tempo os homens foram arremessados para longe, enquanto que um clarão iniciou-se no círculo de veículos, cresceu e nos envolveu. Tudo ficou branco. Foi como tomar um choque e ao mesmo tempo receber uma agradável carícia. Abri os olhos e senti o frio. Ao nosso redor, o Himalaia surgia imponente, despejando neve. Tesla estava em pé, me olhando. — Desculpe, Yurev. — Quem eram eles? O que foi aquilo? O que fazemos aqui? — Eram tolos incapazes. Rivais que desejavam meus projetos. Aquilo foi um dos meus aparatos que aproveitou a eletricidade dos veículos deles e nos transportou até aqui. Dada a sua confiabilidade, vou lhe dizer a verdade. — Como sabe que sou confiável? — Pois atiraram em você também. E principalmente, porque meu animômetro analisa suas ondas cerebrais. Agora ouça, meu caro, a eletricidade sempre me fascinou, e sem falsa modéstia, minha mente sempre transcendeu os limites do comum no que tange suas aplicações. Mas tudo o que eu criei sempre me pareceu simplório. Sempre senti como se faltasse algo. A vida depende da eletricidade; nossos músculos, pensamentos, dependem de impulsos elétricos. Mas criar algo tão complexo e duradouro como a vida está além da minha genialidade.

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Continuei ouvindo, apreensivo. — Parece loucura, mas foi durante o sono que ele me visitou. Você é nativo destas terras, então conhece os antigos mitos. Raijin, a divindade do trovão. Ele falou comigo. Disse que está morto, mas seu poder — sua centelha — ainda permanece neste mundo. A falta de fé das pessoas fez com que ele e os demais definhassem, mas ele carregava o elemento chave da vida, por isso não se foi completamente. Aguardou, até que encontrasse alguém capaz de compreender e de empregar, de forma que nem ele seria capaz de imaginar, o cerne da eletricidade. Quando então o vestígio de sua consciência sentiu minhas criações, ele me procurou e me passou estas coordenadas, para que eu herde o trovão condutor da vida. A primeira reação seria duvidar. Seria chamá-lo de louco. Mas ele era o homem responsável por toda a maravilha luminosa que guiava as principais nações. Tudo fazia sentido. Ele não sentia frio. Um gerador que armazenava a estática ambiente junto com uma ínfima fração dos impulsos nervosos, acoplado às suas costas o aquecia. Eu tampouco. Aquela era minha terra natal e por isso ele me escolhera. Eu o guiei pela neve, entre as entranhas tortuosas do Himalaia até onde ele dissera que os restos de Raijin estariam. Em uma falésia encontramos um velho templo, e logo adiante estaria nosso prêmio. Nossa jornada quase acabou abruptamente, entretanto. Os habitantes do velho templo eram descendentes dos antigos opositores dos servos de Raijin. Resquícios de um clã obscuro, outrora dedicado a dominar e corromper. Caímos direto em sua emboscada, e antes que pudéssemos

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contar com a genialidade de Tesla, meu patrão foi atingido por um dardo envenenado. Eu não teria tanta sorte, pois em minha direção voaram flechas. Corri e o arrastei. Pulei com ele e por pouco não morremos, rolando pela neve, e nos penduramos em uma beirada. Com sorte consegui erguê-lo e o levei até uma caverna. Por cinco dias cuidei dele. O veneno era extraído de uma planta típica da região. Quase perdi minha vida buscando as plantas para criar o antídoto, vagando por uma tempestade. No fim consegui salvar meu patrão, ainda que isso tenha me custado uma mão quebrada. O homem se levantou revigorado, como se nada houvesse acontecido. — Obrigado, meu amigo. Muito obrigado. Agora vamos ao nosso objetivo. Ele equipou novamente todos os aparatos metálicos, fios e pequenas bobinas que eu removera de seu corpo e de suas vestes e pôs-se a pensar. — Se formos até lá novamente, eles voltarão a tentar nos impedir. Temos que bolar uma distração — e a distração seria eu. Outra pessoa se arrependeria de ter ministrado aquele antidoto. Correndo no meio da nevasca que se iniciava estava eu, com abafadores nos ouvidos, carregando em minha mão boa uma pequena caixa negra. Lá estava o velho templo, e lá estavam os membros do clã Zait´Arun. Ao menos as chances deles me acertarem eram remotas. A pequena caixa era um rádio especial, que criava ondas sonoras em uma frequência única, iludindo os sentidos. Enquanto eles focavam em qual fosse a ilusão que eu os fazia

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ver, Tesla surgiu por trás do grande grupo. Em seu braço direito uma espécie de manopla, cujos fios se ligavam a uma haste que se erguia de suas costas. O vento começou a soprar mais forte. O céu cinzento se enegrecia com nuvens tempestuosas. Finalmente eles se deram conta de Tesla, foi então que um relâmpago atingiu a haste nas costas do meu patrão, mas ao invés de mata-lo, a energia envolveu seu corpo. Um movimento de seu braço e um chicote de energia se projetou da manopla, partindo tudo ao meio: inimigos e templo. Estava acabado. Sob a antiga geleira, Raijin não passava de uma luz azulada pulsante. Seu pulsar, no entanto, cresceu à medida que Nikola Tesla se aproximava. Com a haste que outrora usara de para-raios, Tesla perfurou o gelo, fazendo a torrente de eletricidade jorrar sobre si. Tudo virou luz. Nikola Tesla que surgiu diante de mim era mais pálido, como um fantasma. — Nós mudamos o mundo, meu amigo... — Como? Onde está Raijin? — Agora eu e ele somos um. Agora, eu sou a eletricidade e a eletricidade sou eu. Desde a pequena faísca aos impulsos elétricos no corpo de cada ser humano, até as tempestades que cercam a atmosfera terrestre. Tudo é minha vontade. Minha consciência é o mundo e a vida. Graças a você, meu leal Yurev. Este corpo nada mais é do que uma projeção, pois o mundo não pode saber a verdade, não até que ele mude. Ocasionalmente eles verão este simulacro perecer; enquanto isso o mundo mudará. A tecnologia e o homem serão um só, e as guerras se tornarão mitos.

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E assim foi. Com seu poder, ele me levou de volta à América. Os homens acreditam que Nikola Tesla morreu, mas na verdade, ele é parte de tudo agora, foi sua vontade que nos guiou ao brilhante futuro. Trev acabou a leitura boquiaberto, mas ainda cético. Tocou no ar, fazendo com que o monitor holográfico aparecesse para realizar a digitalização e então por mera curiosidade indagou. — Você está aí, Tesla? A resposta ecoou por todos os circuitos, inclusive na mente de Trev. — Sim!

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ESTÍMULO DESENFREADO Lucas M. Carvalho

Lucas M. Carvalho é um jovem escritor de 23 anos. Publicou dois livros: O Espetáculo de Grimnlaud (Canápe) e Abaixo das Nuvens (Dracaena). Possui um conto publicado na antologia Espada e Feitiçaria 2, da Editora Buriti; e outro pelo selo Átame, da Editora Oito e Meio. Contato: lucasmcarvalho2015@outlook.com



ESTÍMULO DESENFREADO Lucas M. Carvalho O céu brilha num fulgor magenta, e as cores que os olhos veem diluem-se em meu corpo. Mil anos neste país, e sou só uma criança. Contudo, já estou voltando. — A bobina estourou! — ouviu o grito do pai. — Qual delas, maldição? Tudo parou numa dor aguda que se esticava. O velho correu mancando pelas escadas espirais de ferro e lançou-se na tempestade lá fora, deixando o filho sozinho no décimo quinto andar da torre. O irmão estava morto, um corpo frouxo pesando para o lado. Não estava assim da última vez, pensou o menino, agora que as manchas na vista diminuíam. Ainda estava, e talvez permanentemente, incapacitado de se mover. Não aguentou a última carga. Eu talvez também não aguente a próxima. Mas ainda falta tanto tempo... Os trovões seguiram-se de faíscas e estampidos nos cabos. Mais uma parte do maquinário estourou. — Ferramentas! — gritou o pai, voltando e fechando a porta atrás de si — Onde eu as deixei? Ora, está vazando óleo também aqui dentro! Tirou as luvas para tatear e descobrir o ponto do vazamento.

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Enfiou o braço entre cabos úmidos — o lugar era tão estreito que tinha de usar a mão direita, com seus apenas dois dedos opositores. Um choque fê-lo recuar, e, como sempre, agitou o braço e enfiou-o novamente. Desde que perdera uma parte da perna, alguns dedos e um punhado de pele, já quase não sentia dor. — Que diabos de vazamento. Você viu minhas ferramentas? O menino sobre o leito respondeu: — Eeeeg nan vio... — Não viu? Não viu? O velho subiu correndo de novo, e desapareceu pela porta, que deixou aberta. Veio a ventania, quase um cataclismo, e as descargas elétricas descendo do céu sobre os receptores que as lançavam contra os transformadores. O som da perna mancando sobre o ferro se aproximou de novo, e a porta se fechou com as travas múltiplas. — Aqui estão elas — disse o velho encharcado. — Por favor, não foi difícil de achar. O que aconteceu com seu irmão? Aproximou-se e tomou o corpo da criança nos braços para colocar na posição correta no leito. — Filho! Filho! Está morto? Oras! Ele morreu? Você sabe se ele morreu? — Eeeeg acha quie sima, pa. — Ah, isso não pode ser. Vamos dar mais uma carga pra ver se ele acorda... A frase foi interrompida por mais um cano acima que estourou. O velho puxou uma escada portátil de ferro. O líquido fazia a queimadura na cabeça meio calva cintilar. — É impossível trabalhar assim. Deve ser a pressão... Pressão,

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pressão, pressão. Que se dane. Num salto, e imundo de óleo, puxou três alavancas e girou dois botões do maquinário. — Vamos ver agora! E veio a eletricidade. Estou nadando num gigantesco labirinto submerso. Não preciso respirar. Tem homens andando pelas paredes com ternos secos. — Senhor, pode me ajudar e encontrar a saída? Ele tira o chapéu em cortesia. — Certamente! Tem duas mil portas com duas mil chaves, e você deve tentar uma a uma. E eu levo dez anos para encontrar a primeira porta. E faço amigos. Como amo esses amigos! E muita coisa acontece, e já não os vejo há tanto tempo, e sinto nostalgia. Depois de mil e novecentas portas, os reencontro. Estou feliz, tão feliz que as fibras do meu corpo se desamarram. — Falta pouco para a saída? — Sim, finalmente. Uma explosão sacolejou toda a estrutura. O menino acabava de acordar quando ouviu o som do pai abrindo a porta novamente, deixando uma pancada de tempestade entrar. — Mais um transformador já era! Preciso regular a tensão. Enquanto o velho usava as mãos mutiladas para ajustar cabos e botões, o menino sentia a cabeça latejar. Um caco de espelho partido no canto permitia que olhasse seu reflexo: estava pior, a cabeça grande,

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as veias grossas como um polegar. O olho esquerdo estava bom, porém o direito cobria-se de uma membrana vermelha, como uma bolha de fluídos sobre pressão. — Eeel nog acoor du. — O quê? O quê disse? Ah, sim, ele não acordou. Muito fraco, esse seu irmão, não suportou o limite. Eu calculei tudo certo! De uma mesa, derrubou uma xícara de leite e papéis, deixando apenas o grande panorama da anatomia cerebral cheio de manchas e rabiscos. — Vamos continuar. Deixa-me ver você. Aproximou-se do leito, e segurou a enorme cabeça, olhando os dois lados, depois em cima e embaixo. Com a lupa perscrutou o olho, depois a nuca. Os oito pinos de ferro cravados na espinha e no cérebro tinham superaquecido e se fundido à carne. — Você é forte. Mais forte que seu irmão ou sua mãe foram. — Errrrgggg errrrrrggg. — A dor está voltando, não é? Você vai para lá de novo. Mais um ajuste, e vamos deixar esfriar um pouco. Vou passar o gel. — Euuug nanc qeer. Acionou o maquinário, e veio a eletricidade. É como se uma porta fosse rompida. Todas as infinitas memórias voltam de uma vez, simultâneas e contraditórias. É um túnel de luz no espectro de cores. E vejo número, e vejo formas, geometria. Estou entendendo como o espaço se dobra e como... Sempre foi tão simples? E num outro mundo, reflexo invertido de um mundo fingido, vi uma cor nova. Cor que não se explica, que não é mera mistura de cores.

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O tempo... nunca foi tão longo. Uma gigantesca tumba no deserto, e cada sonho, que é uma vida inteira, me traz de volta para essa tumba com um grão de areia na boca. Dois, três, quatro, milhares. Enche minha boca e a cuspo. Quadrilhões, quintilhões, a tumba transborda ao deserto. E o sonho de um grão me leva a outra tumba que vai se encher, e eu penso que jamais sairei, que jamais farei o caminho reverso. E em algum ponto, num dos mundos sem fim, numa das vidas que vivi, encontrei novamente aquela cor estranha e nova. A cor estava no vestido de uma mulher. E eu a vislumbrei por um instante. Um instante que pesou mais que todos os outros. O motor de corrente alternada perdeu potência quando o ciclo foi concluído. — Duas horas. — disse o velho — Esse foi nosso limite! Veja só quanta corrente passou pelos seus neurônios! Veja essa curvatura, o quanto seu cérebro foi acelerado! Estendeu um bloco cheio de número e equações. O menino, em expressão débil, não era capaz de focalizar o objeto com o único olho bom que restara — o outro já se circundava numa crosta de pus ou remela sobre a bolha de sangue e fluídos. Os membros inferiores estremeciam. — Vou pegar o suco. Você precisa descansar e se alimentar, isso sim. Vamos ver até onde aguenta na próxima. — Êeeeeeeergaaaa... Percebeu que seu irmão fora tirado dali. Por um momento pensou que tinham sido siameses, mas agora não conseguia se lembrar. Queria olhar para a própria barriga, mas o peso da cabeça não permitia.

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Ouvia os batimentos cardíacos ecoando como pauladas ao redor do crânio. O pai trouxe um limão maduro e espremeu num pote. — Os jornais vão ser entregues amanhã... Aquele Edison com sua “lâmpada”... Hoje disseram sobre um trem que não precisa de vapor. É bom, filho, é bom. Mas é um desperdício... Ouviu o som do filho engasgando-se, largou o suco e meteulhe uma colher na boca. A saliva espumosa escorria até o chão, mas com dificuldade o filho pôde voltar a respirar. — Um desperdício do poder de Deus em nossas mãos. Máquinas de tudo? Aqueles Westinghouse e Tesla estão apostando nas correntes alternadas... Para quê? Aquecer a água do banho? Será que não podem pensar mais alto? Onde está a ousadia do homem? Serviu um pouco do suco, que, inútil, escorria para fora da boca. — Você, filho, é o homem que foi mais longe. Quer continuar? — Iiihhhh... — Isso, muito bem. Mesmo que morra na próxima, viveu muito mais do que eu. Desistiu do suco e subiu novamente as escadas, talvez pela vigésima vez hoje. O vento trouxe um forte cheiro de borracha queimada para dentro. — A tempestade está mais fraca. Temos que nos apressar. Depois da correria de ajustes, verificação de vazamentos e controle de carga, o velho tirou as botas dos pés e deu um beijo na testa do filho. — Você vai viver de um modo que invejo. Volte para mim, se

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puder. Isso é o futuro. — Maaa... aaa... — O que diz? Pelo rio de saliva que crescia em bolhas e espuma, a língua tentava se expressar. Dois filetes de sangue brotaram das orelhas. — Cageee massiee me... — Carga máxima? O olhar do velho se perdeu por um instante. Virou um pote de óleo sobre o menino e espalhou. Esperou esfriar, mancou aos resistores. — Você já não é mais uma criança. É mais humano que eu, Edison, Westinghouse e Tesla juntos. Você sabe o que pede. Primeiro, carga normal. Em dois minutos multiplicarei por dez. Em trinta minutos canalizarei toda a energia que vem do céu. Seu corpo vai fritar, sabe, filho? Pior do que na minha perna. Deve morrer em poucos segundos. Mas, pelos meus cálculos, a quantidade de estímulo acelerará a atividade cerebral exponencialmente até beirar o infinito. Você será imortal um instante antes de morrer, e jamais sairá desse instante. O menino, ou o que restara dele, boquiaberto e demente, já não esboçava resposta. Quando a carga das nuvens rompeu do firmamento atingindo os receptores várias vezes, sobrecarregando a estrutura, o velho, com os dois dedos que restavam na mão direita, puxou a alavanca no espetáculo de faísca e fagulhas. — Bom dia, meu jovem. — Bom dia, senhor. — O que o traz a minha chácara? — Estou procurando uma pessoa. Uma mulher. Tenho

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esperança de que possa me ajudar, senhor, sendo sua sabedoria famosa em toda a terra. Vim de muito longe para perguntar-lhe isso. Seria uma longa história. — Vejo que sim. Vejo barro avermelhado nas suas botas. Só há barro avermelhado porá além das cordilheiras e do mar. Irei ajudá-lo. Como é a mulher que procuras? — Lembro-me principalmente de seu vestido. — Qual a cor do vestido? — Uma cor que não tem nome, nem pode ser descrita. — Compreendo. Posso indicar o caminho. Quando chegar à beira do mundo, tanto tempo terá se passado que o sol será vermelho. E lá precisará buscar um sábio maior do que eu. — Obrigado, senhor. Tenho todo o tempo do mundo.

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