E atĂŠ aos confins do terra. uma histĂłria ilustrada do cristianismo
A era das trevas volume 3
Dedicatória Aos meus companheiros e professores do Seminário Evangélico de Teologia, e aos que antes e depois passaram e passarão pelas mesmas aulas.
E até aos confins da terra: uma história ilustrada do cristianismo l/A 2/ 3/ 4/ 5/ 6/ 7/ 8/ 9/ 10/
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dos mártires dos gigantes das trevas dos altos ideais dos sonhos frustrados dos reformadores dos conquistadores dos dogmas e das dúvidas dos novos horizontes inconclusa
Justo l. González
E até aos confins da terra: uma história ilustrado do cristian ismo
A era das trevas volume 3
Tradução
Hans Udo Fuchs
edições
c 1994 de Justo L. González Título do original: Y hasta lo último de la tierra: Una Historia Ilustrada dei Cristianismo Tomo 3 - La Era de las Tinieblas 1~edição: 1981 Reimpressões: 1985, 1988, 1991, 1997, 1998,2000,2001 Direitos reservados por SOCIEDADE RELIGIOSA EDIÇÕES VIDA NOVA,
Caixa Postal 21486, São Paulo-SP 04602-970 Proibida a reprodução por quaisquer meios (mecânicos, eletrônicos, xerográficos, fotográficos, gravação, estocagem em banco de dados, etc.), a não ser em citações breves, com indicação de fonte. Capa: O batismo de Clóvis - detalhe do quadro do Mestre de Saint-Gilles. Cortesia da Galeria Nacional de Arte, Washington, EUA Printed in Brazil / Impresso no Brasil
Dados internacionais de catalogação na publicação (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
(CIP)
González, Justo L. E até aos confins da Terra: uma história ilustrada do Cristianismo / Justo L. González; tradução Hans Udo Fuchs]: São Paulo: Vida Nova, 1995.
I
Titulo original: Y hasta lo último de la tierra: una história ilustrada dei cristianismo. Conteúdo: v. I. A era dos mártires - v. 2. A era dos gigantes - v. 3. A era das trevas - v. 4. A era dos altos ideais - v. 5. A era dos sonhos frustrados - v. 6. A era dos reformadores - v. 7. A era dos conquistadores - v. 8. A era dos dogmas e das dúvidas - v. 9. A era dos novos horizontesv. 10. A era inconclusa. ISBN 85-275-0215-1 (obra completa) I. Igreja - História
I. Título
95-2793
CDD-270
Índices para catálogo sistemático I. Cristianismo:
História
da Igreja
270
Indice
I.
II.
III.
IV.
Lista de Ilustrações. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Cronologia Sob o regime dos bárbaros ... Causase etapas do desastre. . . . . . . . . . . . . . . . O reino vândalo da Africa . . . . . . . . . . . . . . . . . O reino visigodo da Espanha. . . . . . . . . . . . . . . O reino franco da Gália As Ilhas Britânicas Os reinos bárbaros da Itália Resumo e conclusões .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . O monasticismo beneditino A vida de São Benedito A Regra de São Benedito. . . . . . . . . . . . . . . . . O desenvolvimento do monasticismo beneditino O papado ,. Origem do papado ......•............... Leão, o Grande. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Os sucessoresde Leão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Gregório, o Grande. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Os sucessoresde Gregório. . . . . . . . . . . . . . . . . A igreja oriental ... Esboço dos sete primeiros concíllos . . . . . . . . . Apolinário e o concíllo de Constantinopla. ...
IX XI 1 2 9 12 18 24 33 37 39 43 46 51 61 61 63 65 68 77 87 88 89
VIII / A era das trevas
Nestor e o condlio de ~feso . . . . . . . . . . . . . . . ~utico e o condlio de Calcedônia Os três capftulos e o segundo concflio de Constantinopla. ........................ O monotefsmo e o terceiro condlio de Constantinopla . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A questão das imagens e o segundo concflio de Nicéia V. As igrejas dissidentes O nestorianismo na Pérsia. . . . . . . . . . . . . . . . . Os monofisitas da Armênia . . . . . . . . . . . . . . . . Os monofisitas da Etiópia. . . . . . . . . . . . . . . . . Os monofisitas de Egito eSfria. . . . . . . . . . . . . VI. As conquistas árabes. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Maomé. .. .. . . .. .. . .. .. . .. As conquistas dos califas Conseqüências das conqu istas . . . . . . . . . . . . . . VII. Sob o regime dos carolfngios Carlos Magno . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Os sucessores de Carlos Magno . . . . . . . . . . . . . O sistema feudal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A atividade teológica VIII. A igreja do Oriente depois das conquistas árabes. A expansão do cristianismo bizantino As relações com Roma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IX. Antes do alvorecer, a noite escu ra Normandos ou vikings Magiares ou húngaros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A decadência do papado. . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Lista de ilustrações 1. 2. 3. 4.
5. 6. 7. 8. 9. 10. 11.
12. 13. 14. 15. 16. 17. 18.
19. 20.
21. 22-24.
25.
Mapa: as invasões dos bárbaros Os hunos Mapa: os reinos germânicos Saque de Roma pelos vândalos A morte de Hermenegildo A vitória de Clóvis O batismo de Clóvis Carlos Martelo Childerico, o Estúpido Patr ício batiza os irlandeses Missionário irlandês O rei Osvaldo Agostinho diante de Etelberto ., O rei Sigberto sai à batalha Telêmaco , ., Benedito de Núrsia Lenda de São Benedito Benedito e Totila Cópia de manuscritos Apresentação de uma criança ao abade Escola monástica Monges dedicados ao trabalho físico Monges alimentando os famintos
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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36. 37. 38. 39. 40. 41. 42. 43. 44. 45. 46. 47. 48.
49. 50. 51. 52. 53. 54. 55. 56. 57. 58. 59.
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trevas
Bonifácio em Geismar Gregório, o Grande . Gregório, o Grande, de acordo com um manuscrito antigo . Cirilo de Alexandria . Simeão, o copista . Mapa: o império de Justiniano . Santa Sofia . Justiniano e sua corte . Teodora e sua corte . Mapa: as igrejas dissidentes . Bispo nestoriano do século XIX . Gregório, o Iluminador . Tirfdates . Sajak, Mesrop e seus discípulos . Manuscrito em armênio ...•.............. Matança dos armênios na Turquia . Entrada de Maomé em Meca . A pregação do Corão . Entrada de Omar em Jerusalém . Mapa: as conquistas árabes . Batalha de Tours . A coroação de Carlos Magno . Carlos Magno destrói o Idolo de I rminsul . A conferência de paz entre Carlos Magno e Videquindo . O batismo de Videquindo . O batismo dos saxões . Mapa: o império de Carlos Magno . A árvore das batalhas ..........•......... Senhores e servos . O ju ízo de Deus . Mapa: as missões bizantinas . A chegada dos húngaros .......•.......... Desembarque normando . Valqufrla . Um ataque normando . Os normandos perante Paris .
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Cronologia / XV
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I Sob o regime dos bárbaros Se os bárbaros foram enviados para dentro das fronteiras romanas somente para que ... a igreja de Cristo se enchesse de hunos e suevos, de vândalos e burgúndios, de diversos e inumeráveis povos de crentes, louvada e exaltada seja a misericórdia de Deus, ... ainda que isto se dê mediante a nossa própria destruição. Paulo Orósio
o velho Império Romano estava moribundo, e não o sabia. Além das suas fronteiras do Reno e do Danúbio agitava-se uma multidão de povos, prontos para irromper nos territórios romanizados. Estes povos, aos quais os romanos chamavam de "bárbaros", seguindo o exemplo dos gregos, tinham habi lado <JS florestas e estepes da Europa Oriental durante séculos. Desde seu início o Império Romano fora constantemente obrigado a proteger suas fronteiras contra as incursões dos bárbaros. Para isto construiu fortificações acompanhando o Reno e o Danúbio, e na Grã-Bretanha uma muralha que separava os territórios romanizados dos que permaneciam em mãos de bárbaros. Para facilitar a defesa, repartiram as terras entre os soldados, que vi viam nelas como colonos, em condições de correr ao campo de batalha se fosse necessário. Deste modo o Império Romano conseguiu defender suas fronteiras até meados do século IV. Porém a partir de então a defesa ficou cada vez mais dif(cil, até que por fim toda a parte ocidental do Império sucumbiu diante das vagas de invasores.
2/ A era das trevas Causas e etapas do desastre Já se discutiu muito sobre as causas da queda do Império Romano. Na mesma época destes acontecimentos não faltaram pagãos que diziam que o desastre sobreviera porque o Império tinha abandonado seus velhos deuses, fazendo com que estes deixassem de protegê-lo. Esta acusação, que se costumava dirigir contra os cristãos em qualquer calamidade, já desde o século segundo, não apresentava nenhuma novidade. A ela os cristãos respondiam que a causa dos acontecimentos que ocorriam era o pecado dos romanos, em particular dos pagãos entre eles. Deus estava castigando Roma, não só por ela ter perseguido os cristãos, mas também e acima de tudo por seus costumes licensiosos e sua falta de fé. Em épocas mais recentes houve historiadores que adotaram uma ou outra destas explicações, se bem que modificando-as de acordo com os novos tempos. Assim, por exemplo, há quem diga que Roma caiu por ter-se convertido ao cristianismo, pois o pacifismo que os cristãos pregavam enfraqueceu seu poderio mil itar. Mas esta opinião esquece que quando Roma caiu tanto os que a defendiam quanto os que a tomaram eram cristãos, como veremos mais adiante. Contra isto há os que repetem a interpretação segu ndo a qual o Império caiu por causa de seus vícios, e tiram disto uma lição que deve ser aplicada em nossos dias. Mas fato é que não há provas de que os vícios dos romanos tenham sido maiores no século quinto do que no primeiro. As causas da queda do Império são muito mais complexas. O Império tinha de sucumbir porque era impossível manter o equil íbrio que existia entre a vida dos seus súditos e a dos Bárbaros. De um lado do Reno e do Danúbio era muito mais fácil viver do que do outro. Em conseqüência, os bárbaros se sentiam atraídos pelas riquezas do Império. Contra eles os defensores da velha civilização, acostumados como estavam à vida tranqüila que as riquezas dão, podiam oferecer pouca resistência eficaz. Por estas razões, quando os bárbaros começaram a atravessar as fronteiras, e por alguma razão o Império não estava pronto para a defesa, recorreu-se repetidamente ao recurso dos ricos: comprar a boa vontade da oposição. Dava-se terras aos bárbaros, dando lhes permissão para viver dentro das fronteiras do Impé-
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o regime
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rio, com o nome de "federados", para que em troca o defendessem contra qualquer incursão de algum outro grupo. O resultado foi que em pouco tempo a maior parte do exército se constilu ía de soldados bárbaros, freqüentemente debaixo do comando de oficiais da mesma origem. Estas tropas se consideravam romanas, e algumas vezes defenderam valentemente o Império. Mas em outras simplesmente se rebelaram contra a autoridade imperial, e seguiram seus próprios interesses. Boa parte dos bárbaros que causaram grandes preju fzos nas margens do Mediterrâneo na verdade eram soldados do Império. Por exemplo: o godo Alarico, cujas tropas tomaram e saquearam Roma no ano 410, era oficial do exército romano, e como tal tinha lutado na batalha de Aquiléia em 394, sob o comando do imperador Teodósio. Os romanos, por seu lado, também tinham certa curiosa atração pelos bárbaros. Sinal disto é que muitos imperadores gostavam de se cercar com uma guarda de soldados germânicos. Não faltavam romanos que, em meio à sua vida tranqüila e aborrecida, olhavam com saudades para o outro lado das fronteiras. Isto chegou a tal ponto que a princesa Honória enviou ao huno Atila uma carta de amor e um anel, oferecendo-se a ele em casamento. Hoje sabemos também que em regiões muito distantes das fronteiras do Império estavam tendo lugar acontecimenlOS que contribuíram para precipitar as invasões dos bárbaros. Durante séculos os hunos tinham vivido nas estepes asiáticas. Os hunos são provavelmente os mesmos que aparecem nos anais chineses com o nome de yung-nu, e contra os quais foi constru ída a partir do século III a.C. a Grande Muralha da China.Vendo que a resistência chinesa era invencível, os hunos começaram a se expandir para o ocidente. Além disto, é possível que eles tenham sido empurrados pelos mongóis e pelas mudanças de clima, que os obrigaram a procurar novas terras. Em todo caso, no princfpio da era cristã os hunos atravessaram os Urais, penetrando na Europa, e começaram a fazer pressão sobre os povos germânicos que viviam na Europa Oriental. Por volta do ano 370, os hunos cafram sobre os ostrogodos, que dominavam a costa norte do Mar Negro, e destruíram seu império. Um forte contingente ostrogodo, sob o comando de Atanarico, dirigiu-se para os rnon-
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tes Cárpatos, de onde começou a pressionar os visigodos (veja o mapa na pagina 5). O resultado de tudo isto foi que uma multidão de visigodos, sob o comando de Fritigernes, se apresentou nas fronteiras do Danúbio, pedindo permissão para instalar-se em território romano. Depois de uma série de negociações, os visigodos foram admitidos na qualidade de "federados". Porém pouco depois se rebelaram e levantaram as armas contra o Império. Foi então que teve lugar a batalha de Adrianópolis, a que referimos no volume anterior (ano 378). Ali a cavalaria goda derrotou a infantaria romana, e durante quatro anos os godos desolaram a região, chegando até às muralhas de Constantinopla. Por fim, em 382, O imperador Teodósio conseguiu fazer um tratado de paz com eles. Porém a paz não durou muito tempo. Roma não estava disposta a repartir suas riquezas com os godos, nem tampouco a defendê-Ias. Por isso, no ano 395 os godos estavam novamente passeando pela Grécia, saqueando seus campos e as pequenas povoações, e obrigando os habitantes da região a se refugiarem nas cidades muradas, onde dominavam pânico e fome. Algum tempo depois seguiram seu caminho por toda costa leste do Mar Adriático, penetraram na Itália, e em 410 tomaram e saquearam a cidade de Roma. Alarico, o chefe que tinha guiado seu povo nestas últimas campanhas, morreu no mesmo ano. Mas os visigotos já tinham demonstrado seu poderio. Continuaram até o sul da Itália, com a intenção de se estabelecer na Africa,_atravessando o Mediterrâneo. Porém uma tempestade frustrou seus intentos, e eles decidiram então marchar para o norte, onde se fixaram por algum tempo no sul do que hoje em dia é França. Foi ali que os emissários do imperador Honório os encontraram, indo solicitar seus serviços para lutar contra os bárbaros que tinham se estabelecido na Espanha. Em fins do ano 406 e princípios de 407 as fronteiras do Reno se tinham desintegrado. Uma multidão de povos germânicos penetrou no Império, e assolou os campos do que hoJe é França. Dali os suevos e os vândalos migraram até a Espanha, onde pareciam ter-se estabelecido definitivamente. Foi contra estes povos que o imperador Honório solicitou os serviços dos visigodos, na época sob o comando de Ataulfo, cunhado do falecido Alarico.
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6/ A era dasnvas Ataulfo e os seus marcharam para a Espanha, e, se bem que o chefe godo morreu em Barcelona em 415, a conquista da pen ínsula continuou. Em pouco tempo os suevos estavam cercados no noroeste da península, enquanto que os vândalos que não foram exterminados se viram obrigados a partir para as ilhas Baleares (em 426) ou para o norte da África (em 429). Os visigodos ficaram, então, donos de toda a Espanha (exceto dos territórios suevos) e de boa parte das Gál ias. Porem a pol ítica de Honório não tinha dado bons resultados, pois agora os vândalos invadiam o norte da África, Como vimos no volume anterior, eles estavam diante das muralhas de Hipona quando Santo Agostinho morreu no ano 430. Nove anos mais tarde eles tomaram a cidade de Catago, e dali organizaram seus ataques contra as ilhas do Mediterrâneo (Sicília, Sardenha e Córsega). Por fim, em junho de 455, tomaram e saquearam a cidade de Roma, usando como pretexto o assassinato do imperador Valentiniano III, cuja viúva e filhas diziam defender. Enquanto isto a Gália (aproximadamente o território da atual F rança e Su Iça) sofria as conseqüências de ser um dos principais caminhos pelos quais os bárbaros entravam no Império. As ondas de vândalos, suevos e alanos que cruzaram o Reno a partir do ano 406 desolaram a região antes de continuar a sua marcha até a Espanha. Atrás deles, particularmente no sul e no oeste da Gália, vieram os visigodos. Em 451 as hordas de Atila semearam o terror, e muitos esperaram seu retorno quando Atila morreu em 453 e o império dos hunos se desfez. No sudeste da Gália os burgúndios tinham recebido terras como "federados" do Império. Mas a partir de 456 eles saíram de seus territórios e começaram a guerrear contra seus vizinhos, conquistando suas terras e suas cidades. Enquanto isto no norte da Gália os francos, que também tinham sido "federados" do Império, se estendiam para o oeste, até as fronteiras dos territórios visigodos. Em vista de todos estes desastres, as tropas romanas simplesmente abandonaram a Grã-Bretanha, deixando-a à mercê dos anglos e dos saxões, que não tardaram a invadi-Ia. Por último, os ostrogodos, que tinham se recuperado da sua grande derrota para os hunos, se apossaram da Itália e de toda a região ao norte desta península.
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Em 451 os hunos semearam o terror em toda a Europa. Diante das tropas de Ati/a, "0 açoite de Deus", tanto bárbaros como romanos fugiam apavorados.
Em resumo, em fins do século V a parte ocidental do Império Romano estava dividida entre uma série de reinos bárbaros. Destes os mais importantes eram o dos vândalos no norte da Africa, dos visigodos na Espanha, os sete reinos dos anglos e dos saxões na Grã-Bretanha, o dos francos na Gália, e o dos ostrogodos na Itália. Cada um deles receberá atenção especial em uma seção à parte, logo mais. Porém antes de passarmos a estas seções, devo fazer dois esclarecimentos que são de grande importância para o curso futuro da história da igreja. O primeiro destes esclarecimentos é que os diversos chefes ou reis bárbaros não se consideravam independentes do Império Romano. Muitos deles tinham cruzado as fronteiras com permissão do Império, para estabelecer-se como "federados". Outros, mesmo a princípio sendo invasores, tinham colocado suas armas a serviço do Império contra algum outro povo bárbaro. E todos continuavam declarando que eram súditos do Império Romano. Seu propósito não tinha sido destuir a civilização romana, mas participar dos seus benefícios. Por isso, mesmo se muitas vezes suas campanhas e pol íticas destru íram grande parte deta civilização, a longo prazo quase todos os povos estabelecidos
8 / A era das trevas
Os reinos germânicos
no velho Império acabaram por romanizar-se. Isto pode ser visto até os nossos dias nos indiomas falados em Espanha, Portugal, França e Itália, cujas ra(zes se encontram muito mais na I(ngua latina que nas dos bárbaros. O segundo esclarecimento é que muitos destes invasores eram cristãos. No século IV, quando os godos se encontravam ao norte do Danúbio, havia entre eles missionários provenientes da parte oriental do Império Romano. O mais famoso deles, de quem só sabemos o nome godo, Ulfila, tinha inventado uma maneira de escrever a Iíngua gótica, e traduzido as Escrituras para ela. Além disto, no tempo do imperador Constâncio, estivera em Constantinopla um forte contingente de soldados godos a serviço do Império. Muitos destes soldados se tornaram cristãos, e depois regressaram ao seu povo com sua fé. Já que todos esses contatos tiveram lugar na época do apogeu do arianismo no Oriente, os visigodos se converteram a esta forma da fá cristã. Através deles também os ostrogodos, os vândalos e outros povos bárbaros se tornaram cristãos arianos. A falta de documentos impede que conheçamos os detalhes desta rápida e enorme expan-
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são do cristianismo além das frontei ras do Império. Se os conhecêssemos, provavelmente seriam das mais interressantes páginas da história da igreja. Em todo caso, fato é que muitos dos bárbaros que no século V se estabeleceram na Africa, Espanha e Itália eram arianos. Isto trouxe conseqüencias sérias, pois até então a questão do arianismo nunca tinha sido discutida na parte ocidental do Império, como ti nha sido na parte oriental. Por isso boa parte da história da igreja durante os séculos V e VI consistirá no conflito entre o arianismo e a fé católica. (O modo com que aqui usamos o termo "fé católica" não se refere ao catolicismo romano atual, mas simplesmente à fé dos que aceitavam a doutrina trinitária que tinha sido promulgada nos concílios de Nicéia e Constantinopla. Neste sentido, tanto os protestantes quanto os católicos do século XX sustentam a "fé católica" frente ao arianismo.) O que estava em jogo era, primei ro, se os arianos obrigariam os católicos a se converter, ou vice-versa; e, segundo, se os bárbaros que ainda eram pagãos se tornariam católicos ou arianos. Passemos, então, a narrar o curso dos acontecimentos nos principais reinos bárbaros.
o reino vândalo
da África
Um dos reinos de mais breve duração foi o que os vândalos estabeleceram no norte da África, E mesmo assim, sua curta existência foi de grande importância para a história da igreja. Sob o comando de Genserico, os vândalos tomaram a cidade de Cartago em 439, e transformaram-na em capital do seu reino. Em pouco tempo este abrangia toda metade ocidental da costa norte da Africa. Dali empreenderam uma série de incursões que logo os promoveu à condição de árbitros da navegação no Mediterrâneo ocidental. Apossaram-se de Sardenha, Córsega e, por algum tempo, da Sic (lia. Em 455 tomaram e saquearam a cidade de Roma. Neste caso a destruição foi ainda maior do que quando Alarico e os godos tomaram a cidade. Genserico era ariano convicto, e por isso forçou seus súditos a aceitar a fé ariana. Já que nos territórios que ele tinha conquistado havia muitos crentes católicos (bem como donatistas,
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Os vândalos tomaram e saquearam Roma em 455. Neste caso os danos foram ainda maiores do que quando Alarico tomou a mesma cidade em 410.
como narramos no volume anterior), a persequrçao não se fez esperar. Todas as igrejas foram confiscadas e entregues aos aria-
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nos, ao mesmo tempo em que os bispos católicos eram expulsos do pa(s. Quando Genserico morreu, em 477, seu sucessor foi Unerico, que a princfpio foi mais comedido em sua pol ítica religiosa. Mas Genserico tinha estabelecido toda uma hierarquia ariana, sob a di reção do patriarca de Cartago, e quando houve um conflito entre este patriarca e o bispo católico da cidade, a perseguição irrompeu com mais força do que antes. Unerico proibiu a seus súditos vândalos que se tornassem católicos ou assistissem a cultos católicos. Pouco depois proibiu totalmente o culto católico, e expulsou os bispos e boa parte do clero desta linha. Muito foram torturados, alguns tiveram sua Iíngua cortada. Foi por causa deste perseguição que o termo "vandalismo" adquiriu o sentido que tem hoje em dia. Unerico morreu em 484, e então a perseguição se acalmou. A pol ítica do rei Trasamundo foi deixar que o catolicismo morresse por si, sem persegu í-Io abertamente. Com este propósito continuou a proibição de os vândalos se tornarem católicos, e promoveu debates entre católicos e arianos. Neste debates o bispo Fulgêncio de Ruspe reluziu como um dos grandes defensores da ortodoxia. Por fim, sob o governo de Ilderico, os católicos tiveram mais liberdade. Fulgêncio de Ruspe passou a ser o cabeça de um movimento renovador, e junto com o bispo Bonifácio de Cartago convocou um sínodo que se reuniu no ano 525. Porém o reino dos vândalos estava destinado a desaparecer em breve. A parte oriental do Império Romano, com sua capital em Constantinopla, estava gozando de um novo despertar sob o reinado de Justiniano. Um dos sonhos de Justiniano era restaurar a unidade do Império, e por isso, assim que os vândalos lhe deram ocasião; enviou seu general Belisário no comando de uma frota que se apoderou de Cartago em 533, e não tardou a destruir o reino vândalo. A partir de então o arianismo foi desaparecendo do norte da África. Tudo isto, no entanto, teve conseqüencia funestas para a igreja na região. Já observamos no volume anterior que a igreja no norte da, África havia se dividido por causa do cisma donatista. O cisma ainda persistia. E a ele se juntou meio século de governo ariano, e uma nova conquista por tropas que no fim das
12 / A era das trevas
contas eram quase tão estrangeiras como os próprios vândalos. O resultado de tudo isto foi que a região ficou tão dividida, e o cristianismo nela tão enfraquecido, que a conquista árabe um século e meio depois foi relativamente fácil, e depois desta conquista a fé cristã desapareceu.
o reino visigodo da Espanha Em seus primeiros tempos o reino visigodo se estendia por boa parte do que hoje é França, e sua capital ficava em cidades francesas como Tolouse e Bordeaux. Em princípios do século VI, entretanto, o reino dos francos, sob a direção de Clóvis, começou a expandir-se para o ocidente, às custas dos visigodos. Em 507, na batalha de Vouillé, Clóvis os derrotou, matando o seu rei Alarico II. A partir de então o reino dos visigodos foi se retraindo até que chegou a ser um reino quase somente espanhol. Por outro lado, nem toda a Espanha estava nas mãos dos visigodos, pois os suevos ainda conservavam a sua idenpêndencia na extremidade noroeste da península. Ao fixarem-se ali os suevos eram pagãos. Em pouco tempo, porém, a presença dos antigos habitantes da região, que eram católicos, se fez sentir, bem como a dos visigodos vizinhos, que eram arianos. Por isso alguns suevos se tornaram católicos, outros arianos. A conversão definitiva do reino ao catolicismo teve lugar por volta de 550, quando o rei Cararico pediu a São Martim de Tours (cuja vida narramos no volume anterior, e cuja memória era muito venerada na região) que curasse seu filho doente. Quando este filho ficou bom,Cararico se tornou católico, como Martim de Tours o havia sido. Depois tomou como conselheiro para assuntos religiosos o abade de um mosteiro das proximidades, Martim, a quem fez arcebispo de Braga. Como esta cidade era capital do reino, Martim de Braga passou a ser autoridade máxima de toda a igreja no país, e se dedicou a persuadir a todos da verdade da doutrina trinitária. Quando da sua morte, em 580, o arianismo tinha quase desaparecido. Enquanto isto o reino dos visigodos tinha se estabelecido firmemente no restante da pen(nsula ibérica, expulsando os vândalos e submetendo os alanos (outro povo bárbaro que tinha
Sob o regime dos bárbaros
REIS VISIGODOS DA ESPANHA Ataulfo Sigerico Walia Teodoredo Torisrnundo Teodorico Eurico Alarico II Jesalico Amalarico Teudis Teudiselo Agila
I
Atanaqildo Liuva I Leovigildo Recaredo Liuva II Witerico Gondemar Sisebuto Recaredo II Svintila Sisenando Chintila Tulga Chindasvinto Recesvinto Wamba Ervigio Egica Witiza Aquila Rodrigo
414-15 415 415-18 418-51 451-53 453-66 466-84 484-507 507 -11 511-31 531-48 548-54 554-67 568-73 573-86 586-601 601-3 603-10 610-12 612-21 621 621-31 631-39 636-39 639-42 641-49 649-72 672-80 680-87 687-702 702-710 710 710-711
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c hegado pouco antes). Sob o governo a capital foi 'estabelecid e Leovigildo em Toledo, que d o definitivamente até então tinha sido uma cidade de secundária. Foi também i mportância Leovigildo quem subjugou o reino dos suevos, uns cinco anos depois da mort e de Martim de Braga. Já que Leonovav igildo era ariano, ele introduziu mente o arianismo nos antigos territór ios dos suevos. Porém não sobrava muito tempo de vida ao arianismo na Espanha. Assim como no norte da África e em outras regiões do I mpério.. a antiga população católica não estava disposta a se tornar ariana, enquanto que os conquistadores bárbaros tinham a tendência de se adaptar cada vez mais aos costumes e convicções dos conquistados. Em pouco tempo o reino estava maduro para converter-se ao catolicismo, o que ocorreu através de uma série 'de circunstâncias pol íticas. O filho de Leovigildo, Herrneneqildo. tinha 'se casado com uma princesa fran ca de fé católica. A mãe de Leoviqildo, Goswinta, que era ariana fanática, temia que seu neto se deixasse lever pela fé da sua esposa, e a mandou sequestrar. Em resposta a isto Hermenegildo fugiu da corte e se reti rou para Sevilha, onde o bispo Lean dro o converteu à fé católica. O resultado foi que quando Hermenegildo empunhou as armas contra seu pai, sua campanha foi uma cruzada a favor da doutrina trinitária, contra O arianismo. A campanha de H Iil r-
14/ A era das trevas
Apesar de Hermenegildo parecer ter se rebelado por motivos de ambição pessoal, e não religiosos, o partido anti-ariano logo o considerou santo. Seu irmão Recaredo continuou a política religiosa do rebelde morto, e se tornou católico. Isto mercou a passagem da Espanha do arianismo para li fé ortodoxa. Depois disto começou-se a representar a morte de Hermenegildo como a de um mártir. Nesta ilustração sua alma vitoriosa presencia sua própria morte, dando 8 entender que sua aparente derrota foi na verdade um triunfo.
Sob o regime dos bárbaros / 15
meneqildo não teve bom êxito: ele foi derrotado e morto pelas tropas leais ao rei. Porém quando Leovigildo morreu, seu filho Recaredo, irmão de Hermenegildo, seguiu a pol ítica reliIJlosa do seu falecido irmão, e se tornou católico. Em uma qrande assembléia que teve lugar em Toledo, em 589, Recaredo declarou sua fé católica na presença de Leandro de Sevilha, o convidou a todos os bispos presentes a aceitar a mesma fé. Ao que parece, os bispos não tinham muita coisa contra, e logo a maior parte do clero do reino era ortodoxa. Em termos de pol ítica a monarquia visigoda sempre foi extremamente instável. O fratricídio era coisa relativamente comum, pois ainda que a monarquia fosse eletiva, na realidade quase sempre foi hereditária, e isto parece ter estimulado as ambições pol íticas dos que queriam se assenhorear da coroa do seu irmão antes que sua descendência direta chegasse à maioridade. Dos trinta e quatro reis visigodos, somente quinze morreram em campo de batalha ou de morte natural; os outros foram assassinados. Com esta instabilidade pol ítica a igreja se apresentou como um fator de ordem e estabilidade, sobretudo depois da conversão do reino ao catolicismo, quando cessaram as constantes contendas entre católicos e arianos. O arcebispo de Toledo logo passou a ser a segunda pessoa mais importante do reino, e os concílios de bispos que se reuniam periodicamente na capital tinham funções legislativas, não somente para a igreja, mas também para toda a ordem social. O personagem mais distinto da igreja espanhola durante todo este período foi sem dúvida Isidoro de Sevilha, irmão menor de Leandro, educado por este depois da morte de seus pais. Isidoro foi um erudito em meio a um mar de ignorância. Seus conhecimentos de latim, grego e hebraico lhe permitiram ajuntar boa parte dos conhecimentos da antigüidade e transmití-Ios às gerações seguintes. Isto Isidoro fez em parte através da escola que fundou em Servi lha, porém antes de tudo através dos seus escritos. Estes de modo algum são originais. Isidoro não era um pensador de grande calibre, ao estilo de Orígenes ou /\!IOSlinho. Mas o valor das suas obras está precisamente no modo com que compilou os conhecimentos que consegui ram sobreviver às invasões dos bárbaros e ao caos que as seguiu. Mesmo compondo
16/ A era das trevas obras de caráter histórico e comentários bfblicos, seu escrito mais notável é Etimologias, que é uma verdadeira enciclopédia do saber da época. Se bem que da nossa perspectiva do século
XX muito
do que está escrito ali pode parecer ridfculo e errôneo, fato é que as Etimologias de Isidoro foram um dos principais instrumentos com que a Idade Média contou para conhecer algo da ciência dos antigos. Ela inclui não só assuntos propriamente teológicos, mas também conhecimentos e opiniões nos campos da medicina, arquitetura, aqricultura, e muitos outros. Os estudos de Isidoro ainda lhe deixaram tempo para se ocupar da vida prática da igreja. Quando seu irmão Leandro morreu, ele lhe sucedeu como bispo de Sevilha, e como tal teve de presidir diversos concílios que em grande parte determinaram o curso da igreja e até do reino visigodo. Destes concflios provavelmente o mais importante foi o que se reuniu em Toledo em 633.
Já que este concflio nos dá uma idéia da glória e da miséria da igreja sob o regime visigodo, convém que nos detenhamos para discutir algumas de suas conclusões. No campo pol ítico a ação mais importante do concílio foi apoiar as ações de Sisenando, que tinha usurpado o trono de Svintila. Sisenando se apresentou diante do concllio em atitude humilde, prostrando-se em terra e pedindo a bênção dos que estavam ali reunidos. Estes o receberam com grande satisfação. Isidoro o ungiu, como dantes Saul tinha sido ungido, e o concClio decretou: Quanto a Svintila, que renunciou ao reino e se desfez dos sinais do poder por temor causado pelos seus próprios crimes, decretamos ... que nem sua esposa, nem seus filhos jamais sejam admitidos à comunhão ... nem nunca mais sejam elevados aos postos que perderam por causa da maldade .... Além disto se lhes será tirado tudo que têm roubado dos pobres. No campo propriamente teológico o concílio confirmou mais uma vez a doutrina trinitária, contra os arianos, e decretou que o batismo deveria ser feito com uma só imersão, pois ,I imersão tr íplice poderia dar a entender que a Trindade estava dividida, e que portanto os arianos tinham razão.
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Além disto o concílio legislou com cuidado em relação à vida moral dos bispos e demais clérigos, em particular em rela(,;50 aos seus casamentos, que antes de efetivados precisariam da autorização do bispo. Porém os castigos determinados para os clérigos que se unissem ilegitimamente a mulheres são injuslOS sob qualquer aspecto, pois enquanto ordenam que a mulher <cja "separada e vendida pelo bispo", dizem simplesmente que () clérigo "fará penitência por algum tempo". Entretanto em sua legislação em relação aos judeus o concílio (presidido pelo homem mais letrado da sua época) nos dá mostras mais claras da barbárie que reinava. Mesmo declarando que os judeus não são obrigados a se converterem, decreta que os judeus que foram convertidos à força no tempo do "religiosfssirno príncipe Sisebuto" não terão liberdade para voltar à sua .mtiqa fé, pois isto seria blasfêmia contra o nome do Senhor. PaI a evitar que os judeus convertidos voltassem à sua velha fé eles loram proibidos de qualquer contato com os não convertidos (mesmo se estes fossem seus parentes mais próximos). Se além de tudo algum convertido continuasse com algumas das antigas práticas ou convicções (principalmente "as abomináveis circuncisões"), seus filhos lhe serão tirados, "para que os pais não os contaminem". E se algum judeu não convertido estivesse casado com uma mulher cristã, ficará sabendo que terá de escolher entre tornar-se cristão ou separar-se de sua mulher. Depois da sepa I acão, os filhos ficariam com a mãe. Porém se o caso é ao con rrário, sendo a mãe judia, os filhos ficariam com O pai cristão. Isidoro de Sevilha morreu em 636, três anos depois do Concílio cujos principais decretos resumimos. Depois da sua morte não houve outro personagem com a mesma proeminência em toda a igreja visigoda. Porém se a igreja carecia de diriqentes de destaque, o estado estava em circunstâncias piores. O lei Sisenando também morreu em 636, e continuou a interminável lista de usurpações e crimes pol íticos. Chindasvinto, por exemplo. se apossou do trono e o garantiu a seu filho Reccsvm lo matando setecentos homens, cujas mulheres e filhos rcpar uu entre seus amigos. Quando Recesvinto morreu, os nol» os ele Heram a Wamba, que teve de lutar contra rebeliões em diversas legiões, e por fim foi destronado. Esta longa história de traições. conspirações e crimes continuou até 711, quando o rei Rodrigo
18/ A era das trevas
ocupava o trono, e as hostes mulçumanas puseram fim ao reino visigodo. Porém a narração destes acontecimentos pertence a outro capítulo deste volume. Basta dizer aqui que em meio e todas estas idas e vindas pai íticas e igreja deu, muito mais que o governo pai ítico, certa estabilidade à vida.
o reino
franco na Gália
Durante a maior parte do século V os burgúndios repartiram com os francos o dom ínio da Gália. Enquanto os francos eram pagãos, os burgúndios eram arianos. Porém seus reis não perseguiram os habitantes católicos do país, como os vândalos o haviam feito no norte da Ãfrica. Pelo contrário, estes reis fizeram todo o possível para estabelecer boas relações com o povo conquistado, na maior parte católico. Gondebaldo, por exemplo, teve como um de seus conselheiros mais chegados o bispo católico de Viena (a mesma cidade cujos mártires ocuparam nossa atenção no primeiro volume deste história). Apesar de Gondebaldo não se tornar católico, seu filho Sigismundo deu este passo, e por isso a partir de 516 seus territórios estiveram unidos sob uma só fé. Quando os burgúndios foram conquistados pelos francos em 534, mantiveram sua fé católica. Os francos, por seu lado, que com o passar do tempo haveriam de se apossar de toda a Gália, dando-lhe o nome de "França", eram pagãos. Quando entraram pela primeira vez nos territórios do Império, estavam mu ito menos organizados do que os visigodos ou os burgúndios. Além disto seus contatos com a civilização romana tinham sido mais escassos. Longe de estarem unidos sob um só chefe, estavam divididos em diversas linhagens ou tribos, cada uma com seu próprio chefe. Pouco depois da sua fixação no norte da Gália, entretanto, começaram a se unir sob a direção inteligente e poderosa de Meroveu, seu filho Childerico e seu neto Clóvis. Em 486 este último começou uma série de manobras pai íticas e conquistas que em pouco tempo fizeram dele o dono do norte da Gália. Clóvis e seus francos tinham tido muitas oportunidades para conhecer a fé cristã, pois habitavam na Gália os descendentes dos povos romanizados que tinham sido conquistados pelos francos. Já que parte do propósito dos francos era participar
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Ao vencer os alamanes, Clóvis declarou que devia sua vitória a Jesus Cristo, e ordenou a seus seguidores que também seguissem ao Deus dos cristãos.
da civilização romana, estes antigos habitantes da reqiao eram respeitados e ouvidos por seus conquistadores. Além disto Clóvis tinha se casado com a princesa burgúndia Clotilde, que era cristã. Foi em meio de uma campanha contra os alamanes, um dos grupos que disputavam o domínio da Gália, que Clóvis se converteu. Conta-se que ele prometeu a Jesus Cristo, o Deus de Clotilde, que se converteria se ele lhe desse a vitória. Depois de uma batalha árdua os alamanes foram derrotados, e Clóvis recebeu o batismo no dia de Natal de 496, junto com vários dos seus nobres, das mãos do bispo católico Remigio, de Reims. Este acontecimento foi de grande importância, porque foi a causa da conversão povo franco ao catolicismo, e mais tarde daria origem ao grande império de Carlos Magno. Depois da morte de Clóvis os francos continuaram aumcn tando seu poderio. Em 534 anexaram o reino burgúndio, e dois anos depois tomaram algumas das províncias que tinham pertencido aos ostrogodos. Também se expandiram mais para o
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leste, passando o Reno, para territórios
que hoje formam parte
da Alemanha, e que nunca tinham sido conquistados pelo I mpério Romano. Apesar de tudo isto, entretanto, os francos não conseguiram formar uma grande potência, porque tinham o costume de divi-
No dia de Natal de 496 Clóvis foi batizado na cidade de Reims, pelo bispo Remigio. Junto com ele foram batizados vários dos seus nobres. A direita a rainha Clotilde dá graças a Deus pela conversão do esposo.
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dir seus reinos entre os filhos. Assim por exemplo, quando Clóvis morreu seus territórios foram divididos entre seus quatro filhos, e a conquista dos burgúndios somente foi possível porque três deles se uniram em um propósito comum. Além disto muitos dos descendentes de Clóvis demonstraram serem incapazes para governar, e mais tarde houve quem o fizesse em seu nome. O antigo reino de Clóvis estava dividido em várias partes quando, no século VII, a família dos carolíngios começou a ascender. Seu nome provém do fato que diversos deles tinham o nome de Carlos, que em latim é Carolus. O primeiro dos caroI íngios foi Pepino, o Velho, que possu ía enormes extensões de terra e usava suas receitas para seus propósitos pol íticos. Seu neto, Pepino de Heristal, ocupou o cargo de "mordomo de palácio" de um dos reis francos. Neste cargo Pepino era o verdadeiro rei. Porém não depôs quem reinava de nome; continuou mantendo a ficção de que quem governava era descendente de Clóvis. Com uma pol ítica hábil e várias campanhas militares Pepino de Heristal conseguiu reunir sob seu poder todos os territórios dos francos, mesmo sem dar-lhes uma unidade visível. Seu neto Carlos Martel ("martelo") aumentou o prestíqio da família ao derrotar os muçulmanos na batalha de Tours (também chamada de Poitiers), em 732. Quando da sua morte ele era o governante de fato de todos os territórios francos, se bem que sempre supostamente em nome dos descendentes de Clóvis. Por fim Pepino, o Breve, filho de Carlos Martol, decidiu dos!" zer-se de um rei inútil, Childerico III, "o Estúpido". Com a anuência do papa Zacarias, obrigou Childerico a renunciar ao trono, e a cortar os cabelos e tomar o hábito da vida monástica. Então Pepino adotou o título de rei, porém não por conta própria, nem por eleições de nobres, como os povos bárbaros costumavam a fazer anteriormente, porém deixando-se ungir pelo bispo Bonifácio, sob ordem do papa Zacarias. A unção de Pepino por Bonifácio é importante, pois temos aqui a transição da velha monarquia eletiva ou hereditária para a monarquia por direito divino, e ainda mais porque o filho de Pepino, a quem a posteridade conhece como Carlos Maqno, levou o reino franco ao auge do seu poder. Em meio a todo este processo a igreja leve um papel duplo. Às vezes, como havia reis poderosos como Clóvis, parecia
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que simplesmente prestava seu apoio ao poder real. Logo se estabeleceu o costume de que os bispos eram nomeados, ou pelo rei, ou ao menos com o seu consentimento. Conseqüência disto foi que muitos bispos eram mais funcionários do rei do que pastores, e que houve muitas nomeações por razões pol íticas. Ain-
Carlos Martel ("o martelo") foi o verdadeiro fundador da dinastia caroI íngia, mesmo sem jamais ter o título de rei.
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Com a anuência do papa Zacarias, Childerico III, "o Estúpido", gado a deixar o trono e receber a tonsura monástico.
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foi obri-
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da que boa parte das terras pertencia aos bispados (e às vezes exatamente por isto), os bispos não eram verdadeiros pastores, e mais senhores feudais que deviam sua posição à proteção de algum rei ou senhor poderoso. Nesta situação descuidava-se do serviço aos pobres, e havia pouco a regulamentar na vida eclesiástica. Em 742 Bonifácio (o mesmo que pouco depois consagraria Pepino rei) escreveu ao papa Zacarias dizendo-lhe que a direção da igreja estava praticamente em mãos de senhores leigos, e que um concílio de bispos para regulamentar e renovar a vida da igreja era coisa desconhecida no reino franco.
As Ilhas BritAnicas Mesmo no tempo de maior glória do Império Romano este não conseguira conquistar todas as Ilhas Britânicas, e tinha-se limitado à parte sul da Grã Bretanha (o que hoje em dia é Inglaterra). Ao norte estavam os territórios dos pictos e escotos (onde hoje é Escócia), separados do mundo romano por uma muralha que o imperador Adriano mandara construir. A Irlanda nunca foi invadida pelos romanos. Portanto, quando as legiões romanas se retiraram da Grã-Bretanha, em meio ao desastre das invasões dos bárbaros, o que de fato abandonaram foi o sul da ilha. Nesta área, todavia, havia uma população numerosa de povos cristãos e romanizados. Algumas destas pessoas se retiraram para regiões mais fáceis de defender, enquanto que outras permaneciam em suas antigas terras, onde ficaram sob o dom ínio dos bárbaros que logo invadiram a ilha. Estes bárbaros vinham do continente, e em sua maioria eram anglos e saxões. Mais tarde se fixaram em sete reinos principais (se bem que houve outros mais efêmeros e de menos importância): Kent, Essex, Sussex, Anglia Oriental, Wessex, Nortumbria e Mércia. Os governantes de todos estes reinos eram pagãos, mas entre seus súditos havia um bom número de cristãos, cujos antepassados tinham vivido nas terras desde antes das invasões. muito
Também antes das invasões tinha acontecido outra coisa importante para a história do cristianismo das Ilhas
Sob
o regime
dos b8rbaros
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Britânicas. Trata-se da ida de Patrício à Irlanda. Patrício era um jovem cristão que vivia na Grã-Bretanha, onde seu pai era oficial do exérciro romano. Ainda muito jovem ele foi sequestrado por um bando de irlandeses que assaltou a região, e levado prisioneiro para a Irlanda. Ali ele viveu durante vários anos como escravo, pastoreando gado, sem saber onde estava, aprofundando a sua fé. Afinal, através de um acordo com o capitão de um barco, conseguiu escapar, porém foi levado ao con-
Na Irlanda,
Patrício
chegou a batizar enormes multidões
de uma vez.
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tinente em vez de à sua terra, onde passou por muitas dificuldades antes de regressar à Grã-Bretanha. De volta ao seu lugar de origem, Patrício gozava do que parecia ser um repouso merecido, quando recebeu em sonhos o chamado para ir como missionário à Irianda, o mesmo lugar onde pouco tempo antes ainda fora escravo. Ele se pôs a caminho
Os missionários irlandeses se espalharam por toda a Europa, pregando nos cnmpos e onde quer que tivessem oportunidade.
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e com grande perigo pessoal se pôs a pregar na Irianda. Depois de uma nova série de dificuldades começou a ver os resultados da sua obra, e conta-se que seu êxito foi tamanho que algumas vezes batizou multidões de irlandeses, simplesmente mandando que todos entrassem nas águas de um rio, depois do que ele pronunciava a fórmula batismal sobre a multidão. Logo ele começou a ordenar e instruir sacerdotes irlandeses, para que servissem de pastores para os recém-convertidos. Assim surgiu na Irlanda uma forte igreja, que logo começou a enviar os seus próprios missionários a outras regiões. A igreja que Patrício fundou na Irlanda tinha várias características que a distinguiam do cristianismo no restante da Europa. Destas a mais notável era que, em vez de ser governada por bispos, quem tinha autoridade eram os abades dos conventos. Além disto o Domingo da Ressureição era celebrado em outra data, as tonsuras dos clérigos eram diferentes, etc. Pouco depois da atuação de Patrício a Irianda tinha se transformado em um centro missionário. Considerando que a esta altura os bárbaros já tinham invadido a Grã-Bretanha, e que em todo caso os pectos e escotos do norte desta ilha nunca tinham sido cristãos, boa parte do trabalho missionário dos irlandeses foi Columba, que tinha sido instruído na Irlanda em um mosteiro que conservava muito da sabedoria da antiguidade. Por volta de 563 Columba e doze companheiros se estabeleceram na pequena ilha de lona, diante das costas da Escócia. Ali fundaram um mosteiro que queriam que fosse um centro missionário para a conversão dos pectos. A partir dali Columba e seus companheiros fizeram várias visitas aos territórios dos pectos, até que conseguiram que o rei Brídio e a maioria dos seus súditos se convertessem. A partir de lona o cristianismo também se estendeu até os reinos dos anglos e dos saxões. Quase quarenta anos depois da morte de Columba o rei de Northumbria, Osvaldo, se viu obrigado a refugiar-se em lona, por razões pol íticas. Quando em 635 chegou o momento da batalha decisiva em defesa do seu reino contra os bretões, conta-se que ele viu Columba em sonho, a quem dava muito valor. Na manhã seguinte, antes que o inimigo se preparasse para a batalha, Osvaldo levantou uma cruz 'rude, e pediu a vitória ao Deus de Columba. Então
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Na manhãseguínte,
Osvaldo levantou uma cruz rude.
ele e os seus se lançaram sobre os bretões, que fugiram espavoridos. O resultado foi que todo o reino de Nortumbria se tornou cristão. A pedido de Osvaldo os monges de lona enviaram missionários ao seu reino. Um deles, Aidão, fundou na ilha de Lindisfarne um mosteiro semelhante ao que Columba
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linha fundado em lona. A partir dali a fé cristã se expandiu para vários outros reinos da Grã-Bretanha. Os monges missionários provenientes da Irlanda eram ao mesmo tempo pessoas devotas e estudiosas. Os mosteiros irlandeses foram dos poucos centros onde se preservaram os conhecimentos da antiguidade durante o período caótico que seguiu às invasões dos bárbaros. Porém não só da Irlanda chegaram missionários à GrãBretanha. Conta a lenda que Gregório, o Grande, uni dos papas mais notáveis, cuja vida e obra discutiremos mais adiante, passeava pelo mercado de Roma quando uns jovens ruivos que estavam à venda como escravos chamaram sua atenção. - De que país são estes jovens? - perguntou Gregório. - São anglos - responderam-lhe. - São mesmo anglos, pois têm rostos de anjos. Onde é o país dos anglos? - Em Deiri. - São mesmo de ira, pois foram chamados da ira para a misericórdia de Deus. Como se chama o rei deles? - Aela. - Aleluia! Farei com que neste país seja louvado o nome de Deus. É possível que este diálogo, que cronistas antigos nos relatam, nunca tenha acontecido. Porém em todo caso não há dúvida de que Gregório desde jovem sentiu certa atração pelo país dos anglos. De certa feita quis ir a estes territórios como missionário. Ele, porém, era muito popular em Roma. O povo se reuniu e não o deixou partir. Em 590, como veremos mais adiante, chegou a ser papa. Nove anos mais tarde deu mostras do seu antigo interesse pelo país dos anglos enviando-lhes uma missão de vários monges encabeçada por Agostinho, procedente do mesmo mosteiro do qual Gregório fizera parte antes de ser papa. Depois de alguma hesitação Agostinho e os seus chegaram ao reino de Kent, na Grã-Bretanha. O rei deste pafs era Etelberto, que tinha se casado com uma princesa cristã e tinha dado mostras de que favoreceria a pregação do evangelho em seus territórios. No princípio os missionários não conseguiram converter muitas pessoas. Porém quando, depois de algum tempo,
30 / A era das trevas o próprio Etelberto se converteu, seguiu uma conversão em massa. Em Canterbury, a capital de Kent, foi fundado um arcebispado, e Agostinho foi o primeiro a ocupá-lo. Quando ele morreu, menos de dez anos depois de chegar à Grã-Bretanha, todo o reino de Kent era cristão, e havia convertidos em todas as regiões vizinhas. O processo de conversão dos sete reinos, todavia, não transcorreu sem dificuldades e oposição. No próprio caso de Kent, depois da morte de Etelberto houve uma breve reação
Na Grã-Bretanha Agostinho e os seus dirigiram para o reino de Kent, cujo rei Eterbelto tinha se casado com uma princesa cristã.
Sob o regime dos bárbaros /31 pagã, apesar de o novo rei se converter pouco tempo depois. Um dos episódios mais curiosos de toda esta história ocorreu no pequeno reino de Anglia Oriental. Por volta do ano 630 reinava ali Sigeberto, que se convertera e batizara durante um período de exílio na França. Sigeberto mandou vir de Kent o bispo Félix, que chegou com um contingente de missionários e professores. Em pouco tempo o reino se tornou cristão, e o próprio rei decidiu dedicar-se à vida monástica. Depois de abdicar em favor de um parente, ele se retirou para um mosteiro, onde recebeu a tonsura e se dedicou à vida contemplativa. Porém algum tempo depois o rei pagão de Mércia, Penda, atacou Anglia Oriental. Sem direção militar, os habitantes do
Por se recusar a usar uma espada, o rei monge Siqcborto saiu ao campo de batalha armado de um porrete.
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país acudiram ao seu antigo rei, suplicando-lhe que marchasse com eles ao campo de batalha. Sigeberto lhes lembrou que seus votos monásticos lhe proibiam usar a espada. Por fim, o rei monge se deixou persuadir, e saiu à batalha à frente das suas tropas. Porém armado de um porrete! Os cristãos foram derrotados pelas tropas de Penda, e Sigeberto morreu na batalha. Mas sua memória foi venerada por muitos anos, e no fim não só Anglia Oriental se tornou cristã, mas Mércia também. Tudo o que dissemos até aqui nos ajuda a colocar a obra de Agostinho de Canterbury em sua perspectiva merecida. Foi dito muitas vezes que Agostinho e seus sucessores conseguiram a conversão da Grã-Bretanha. Isto não é toda a verdade, pois como vimos Columba e seus sucessores tiveram pelo menos tanto êxito quanto Agostinho e os seus. Porém isto não diminui a importância da missão de Agostinho. Esta missão é importante por duas razões: em primeiro lugar, se trata da primeira ocasião em toda a história da igreja em que temos dados fidedignos de que um papa ou bispo de Roma envia missionários a terras estranhas. Em segundo lugar, a missão de Agostinho é importante porque através dela o cristianismo nas Ilhas Britânicas estabeleceu relações estreitas com o restante da Europa Ocidental. Como dissemos antes, o cristianismo irlandês que Columba e os seus trouxeram à Grã-Bretanha diferia em alguns detalhes do que se praticava no restante da Europa Ocidental. Mesmo que estes detalhes possam parecer insignificantes, é fato que eles impediam o contato direto e sem barreiras entre as igrejas das ilhas e as do continente. A partir de Kent e dos outros reinos do sul avançava o cristianismo procedente de Roma. A partir da Irlanda, da Escócia e dos reinos do norte avançava o que vinha da Irlanda e de lona. O conflito era inevitável, quando as duas formas se encontraram. No reino de Nortumbria o contraste entre estas duas formas de prática cristã se tornou insuportável. O rei seguia o cristianismo de origem irlandesa, e a rainha seguia o de origem romana. Como as datas em que se comemorava o Domingo de Ressurreição eram diferentes, enquanto o rei celebrava com festas e grande regozijo a rainha se retirava para celebrar o Domingo de Ramos com jejum e penitência.
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Para resolver estas dificuldades, reuniu-se um sínodo em Whitby, em 663. Os missionários irlandeses e seus seguidores defendiam sua posição diante do sínodo dizendo que tinham recebido sua tradição de Columba. Os missionários romanos discordavam, dizendo que a autoridade de Pedro era maior que a de Columba, já que o apóstolo recebera as chaves do Reino. Ao ouvir isto, conta-se que o rei perguntou aos que defendiam a tradição irlandesa: - Vocês estão de acordo com o que dizem aqueles, de que São Pedro tem as chaves do Reino? - Sem dúvida - responderam. - Então não há mais razões para discutir. Eu obedecerei a São Pedro, para que ele não me feche as portas quando eu chegar ao céu, e não me deixe entrar. Em conseqüência o sfnodo de Whitby optou pelas tradições do continente europeu, e rechaçou as dos irlandeses. Mesmo que a história que acabamos de narrar dê a impressão de que tudo se deve à ingenuidade de um rei, é fato que havia fortes razões para que a longo prazo o cristianismo das Ilhas Britânicas tenderia a seguir os costumes do restante do cristianismo ocidental. De outro modo teria ficado ilhado do restante da Europa. E graças à decisão de Whitby e de outros concflios semelhantes a igreja nas Ilhas Britânicas pôde ser um dos mais fortes meios para o contato destas ilhas com o continente.
Os reinos bárbaros da Itália Em nossa rápida passagem pelos diversos reinos que os bárbaros fundaram na Europa Ocidental, falta dirigir o olhar para a península italiana. Ali o Império continuou existindo por algum tempo, se bem que mais como fantasma que como realidade. Diversos generais bárbaros se apossaram do poder, um atrás do outro, pretendendo governar em nome dos irnpe radores. Estes últimos eram pouco mais que figuras decorativas que residiam em Roma, longe das campanhas militares, cnqu.m to que os generais que governavam de fato moravam em Milito, muito mais perto das fronteiras. Por fim, em 476, o general Odoacro, no comando das tropas hérulas, depôs o último dos imperadores cio Ocidente,
34 / A era das trevas Rômulo Augústulo. Porém mesmo então Odoacro não se desfez do fantasma imperial. Em vez de querer governar por conta própria, ele escreveu ao imperador Zenão, que governava em Constantinopla, dizendo-lhe que agora que não havia mais imperador no Ocidente o I mpério estava de novo unido, e se pôs sob suas ordens. Em troca Zenão deu a Odoacro o título de "patrício", e o nomeou para que governasse a Itália em seu nome. Porém as relações entre Zenão e Odoacro foram deteriorando, até que o Imperador do Oriente decidiu recorrer aos ostrogodos, para desfazer-se dos hérulos. Sob o comando de Teodorico os ostrogodos invadiram a Itália, e em 493 o reino dos hérulos tinha desaparecido. Teodorico foi um bom governante, e no princípio do seu reinado se rodeou de conselheiros sábios, escolhidos de entre os habitantes anteriores do país. Porém seu governo tropeçava em uma grande dificuldade: Teodorico e os ostrogodos eram arianos (como também os hérulos antes deles o tinham sido), enquanto que os ítalo-romanos que formavam a maioria da população eram católicos. O poder militar estava em mãos dos primeiros, enquanto que a administração civil ficava necessariamente em mãos dos últimos, pois entre os ostrogodos até o próprio rei era analfabeto. Não tardou que os ítaloromanos sonhassem com uma invasão por parte das forças do Império do Oriente, vinda de Constantinopla. Já que o I mpério do Oriente (também chamado de I mpério Bizantino) era católico, tal invasão voltaria a colocar a fé católica acima da ariana. Até que ponto estes sonhos chegaram a transformar-se em conspiração, e quantos participaram dela, não podemos saber. Porém Teodorico achou que havia mesmo uma conspiração, e que alguns dos seus conselheiros (talo-romanos estavam envolvidos nela. Boécio, quem dirigia toda a administração civil sob Teodorico, e que sem dúvida era um dos poucos sábios da época, foi encarcerado e morto. Na prisão ele escreveu sua famosa obra Sobre a Consolação da Filosofia, como que para recordar-lhe que a verdadeira felicidade não consiste em prestígio humano nem em bens materiais. Antes ele tinha composto numerosos comentários sobre diversas obras da antiguidade, e foi, portanto, através dele que boa parte da Idade
Sob o regime dos bárbaros /35 Média conheceu estes escritos. Junto com Boécio morreu seu sogro Sfrnaco, presidente do senado romano. Dois anos depois, em 526, o papa João também morreu nos cárceres de Teodorico. A partir de então os ítalo-romanos reconheceram Boécio, Sfrnaco e João como mártires, e sua oposição ao regime ostrogodo recrudeceu. O sucessor de Boécio no governo civil, Cassiodoro, tratou de mediar entre os arianos e os católicos, se bem que sem comprometer a sua fé católica. Por fim, talvez convencido de que Teodorico não lhe permitiria levar a cabo seu programa de governo, se retirou para Vivário, onde se dedicou à vida monástica. Ali compôs numerosas obras, das quais a mais importante foi Instituições das Letras Divinas e Seculares. Esta obra era um resumo dos conhecimentos da antiguidade, e sobre ela se baseou boa parte da educação medieval. Teodorico morreu em 526, e seu neto e sucessor Atalarico seguiu uma pol ítica mais moderada em relação aos católicos. Porém quando um novo rei, Teodato, voltou a estabelecer o antigo rigor contra os (talo-romanos, a corte de Constantinopla chegou à conclusão de que tinha chegado o momento de invadir a Itália. Na época reinava Justiniano em Constantinopla, um dos maiores imperadores da Idade Média, que tinha o sonho de restaurar o antigo I mpério. Já vimos que seu general Bel isário pôs fim ao reino dos vândalos na África. E este mesmo general empreendeu uma campanha que, depois de vinte anos de lutas, pôs fim ao reino ostrogodo. O regime imperial na Itália, todavia, estava destinado a durar pouco. Em 562 os ostrogodos foram definitivamente derrotados, e já em 568 um novo invasor se lançou sobre o país. Tratava-se dos lombardos, os quais, assim como os invasores anteriores, fugiam de outros inimigos mais temíveis, no caso os ávaros, Os lombardos entraram na Itália sob o comando do seu rei Alboino, e logo se apossaram do norte do país (especialmente das margens do rio PÓ, região que até hoje se drama "Lombardia"). Como eles -eram também arianos, semearam o terror entre os católicos. Felizmente para estes últimos, quando Alboino morreu os lombardos, em lugar de continuarem como um reino unido, se dividiram em trinta e cinco duca-
36 / A era das trevas
dos independentes, apenas capazes de manter os territórios que tinham conquistado. Quando, dez anos mais tarde, começaram a sentir a pressão dos francos, voltaram a organizar-se como monarquia. Porém sua invasão tinha perdido seu ímpeto inicial. Resultado da presença dos lombardos foi um constante estado de guerra e ansiedade. Como eles não tinham conquistado toda a região, as regiões que continuavam sob o governo de Constantino temiam ser atacadas. Estas regiões eram principalmente duas: o exarcado de Ravena, e Roma e circunvizinhanças. Constantinopla estava passando por momentos difíceis, razão pela qual nem Ravena nem Roma poderiam esperar ajuda de lá. Em conseqüência os bispos de Roma (os papas) tiveram de se ocupar do governo e da defesa da cidade. O papa Gregório, o Grande (o mesmo que enviou Agostinho à Inglaterra), se queixava da situação sempre tensa, pois tinha a impressão de que estava sempre rodeado de espadas. Ele chegou a escrever: "Já nem sei se meu cargo é de pastor, ou de príncipe temporal. Tenho de me ocupar de todas as coisas, inclusive da defesa e de pagar os soldados." Em tais circunstâncias os papas procuraram auxílio ao seu redor, e o encontraram nos francos. Em 751 o rei lombardo Astolfo tomou o exarcado de Ravena, e o papa Zacarias se sentiu mais só do que nunca. Em vista desta nova atividade conquistadora entre os lombardos Zacarias autorizou Bonifácio a ungir Pepino, o Breve, como rei dos francos. Pouco depois Pepino invadiu a Itália, onde obrigou os lombardos a ceder ao papa boa parte do exarcado de Ravena. Em troca o novo papa, Estêvão II, o ungiu de novo. Por fim, em circunstâncias semelhantes, Carlos Magno acudiu em socorro do papa Adriano I e destruiu o reino lombardo, tomando o título de "rei dos francos e dos lombardos". Durante todo este período a cultura sofreu graves revéses. Somente durante um curto período, na corte lombarda em Pávia e em Roma no tempo de Gregório, o Grande, foram produzidas obras literárias e artísticas dignas de memória. Também entre os lombardos os mosteiros foram, como em tantos outros lugares, um remanso em que alguns podiam dedicar-se ao estudo. Essa foi uma das fontes onde o reino de Carlos Magno foi
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beber para originar o que tem sido chamado carol (nqio ". Porém essa história pertence deste volume.
de "renascimento a outro capitulo
Resumo e conclusões Os séculos V a VIII foram um período de obscuridade angústia na Europa Ocidental. As invasões dos bárbaros puseram um fim ao poderio efetivo do Império Romano na região, mesmo se durante séculos muitos destes mesmos bárbaros continuaram considerando-se súditos desse Império. Do ponto de vista rei igioso os bárbaros reintroduziram na Europa Ocidental os elementos que pouco antes pareciam estar quase desaparecidos: o paganismo e o arianismo. Quase todos os invasores eram arianos: os vândalos, os visigodos, os ostrogodos, os suevos, os burgúndios e os lombardos. Com o passar do tempo estes povos ou desapareceram (os ostro(lodos e os vândalos), ou se tornaram católicos (os suevos, os visigodos e os burgúndios). Quanto aos povos pagãos, todos se tornaram católicos. Algumas destas conversões foram resultado da pressão exercida por algum povo vizinho. Porém na maior parte foram simplesmente o resultado do processo de assimilação que ocorreu depois das invasões. Os bárbaros não penetraram no Império para destruir a civilização romana, mas para participar dela. Por esta razão a maioria deles logo esqueceu as I(nguas bárbaras e começou a falar (mal ou bem) o latim. [sta é a origem das nossas Iínguas latinas modernas. De igual modo os bárbaros abandonaram suas antigas crenças e acabaram por aceitar as dos povos conquistados. Esta é a origem do cristianismo ocidental, do tipo que a Idade Média conheceu. Em todo este processo há dois elementos da vida da Igreja que se destacam por sua importância na conversão dos bárbaros e na preservação da cultura antiga. Estes dois elementos são o monasticismo e o papado. Ao narrar nossa história, temos referido a monges como Isidoro de Sevilha, Columba e Agostinho de Canterbury. Também nos vimos obrigados a falar de papas como João, Zacarias, Estêvão II e, sobretudo, Gregório, o Grande. Se não tivéssemos adiado a discussão das controvérsias cristológicas para outro cap ítulo, também teríaf~
38/ A era das trevas mos tido ocasião de fazer referência ao papa Leão. Por isso, antes de continuar com nossa narração, precisamos nos deter nos próximos capítulos para dedicar U:Tl ao desenvolvimento do monasticismo neste período, e outro à seqüência papal. Além disso, mesmo tendo nos referido neste capítulo constantemente ao Império do Oriente (ou Bizantino), somente o fizemos quando isto foi indispensável para narrar a história dos acontecimentos que estavam ocorrendo na Europa Ocidental. Por isso, depois de abordar o monasticismo e o papado, e antes de retornarmos à ordem cronológica da nossa narração, nos deteremos para discutir o curso do cristianismo no Oriente.
II O monasticismo beneditino Tu, quem quer que sejas, que corres em direção à pátria celestial, pratica com a ajuda de Cristo esta pequena Regra, e então chegarás, por intermédio de Deus, às alturas mais elevadas da doutrina e da virtude. Benedito de Núrsia No volume anterior vimos que quando a igreja se uniu ao Império e tornou-se a igreja dos poderosos, houve muitos que, sem abandoná-Ia, se separaram dela para levar uma vida de renúncia especial, o que deu origem ao monasticismo. Se bem que naquele volume vimos como o ideal monástico se propagou do Oriente de fala grega até o Ocidente de fala latina (por exemplo, no caso de Martim de Tours), na verdade naquela época o monasticismo ainda era um fenômeno principalmente oriental, cujos centros mais importantes eram Egito, Síria e, algum tempo mais tarde, Capadócia. Os monges que existiam no Ocidente somente imitavam o que tinham aprendido ou ouvido dos monges do Oriente. O monasticismo oriental, todavia, não se adaptava de todo à Europa Ocidental. Além das diferenças de clima, que impediam que os monges ocidentais levassem a mesma vida que levavam os do Egito, havia diferenças significativas na maneira de encarar a vida cristã e a função do monasticismo nela. A primeira destas diferenças provinha do espfrito prático que os romanos tinham deixado como seu legado à igreja oci-
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o monge TelĂŞmaco pagou com sua vida a tentativa de interromper um combate de gladiadores. PorĂŠm sua morte determinou o fim destes espetĂĄculos, proibidos a partir de entĂŁo pelas autoridades imperiais.
o monesticismo
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dental. O cristianismo latino não via com bons olhos os excessos de vida ascética dos anacoretas do Oriente. O propósito da vida ascética, assim como de qualquer exercício atlético, não é destruir o corpo, porém fazer com que ele seja cada vez mais capaz de enfrentar todo tipo de provas. Por isso o Ocidente não via com aprovação o jejum até o desfalecimento ou a falta de dormir só para castigar o corpo. Além disto, como parte deste espírito prático, boa parte do monasticismo ocidental tinha o propósito de levar a cabo a obra de Deus, e não s6 de conseguir a própria salvação. Muitos monges do Ocidente usaram a disciplina monástica como um modo de se preparar para a obra missionária. Exemplo disto são Columba e Agostinho, e no transcurso desta história veremos que houve milhares de rnonqes que seguiram o caminho traçado por eles. Outros monges ocidentais lutavam contra as injustiças e crimes do seu tempo. Símbolo destes é Telêmaco, o monge que em princípios do século V se lançou ao meio de um combate de gladiadores, na arena do circo romano, para detê-lo. A multidão enfurecida, supostamente cristã, o matou. Porém a partir desta data, e em conseqüência da ação.ríe Telêmaco, os combates de gladiadores foram proibidos pelo imperador Honório. Outra diferença entre o monasticismo grego e o latino é que este último nunca sentiu a enorme atração pela vida solitária que dominou boa parte do monasticismo oriental. Apesar de haver no Ocidente alguns errnitões solitários, e de alguns dos mais famosos monges ocidentais praticarem por algum tempo este tipo de vida, a grosso modo, o ideal do monasticismo ocidental foi a vida em comunidade. Por último, o monasticismo ocidental poucas vezes viveu a tensão constante com a igreja hierárquica que caracterizou o monasticismo oriental, principalmente nos primeiros tempos. Até os dias de hoje o monasticismo segue seu próprio rumo nas igrejas orientais, prestando pouca atenção à vida da igreja em geral, a não ser quando algum monge é chamado para ser bispo. No Ocidente, ao contrário, a relação entre o rnonasticismo e a igreja hierárquica sempre tem sido estreita. A não ser nos momentos em que a corrupção extrema da hierarquia levava os monges a reformá-Ia, o monasticismo foi sempre
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o braço direito da hierarquia eclesiástica. Em mais de uma ocasião os monges reformaram a hierarquia, ou a hierarquia reformou o monasticismo decadente.
Benedito de Núrsia foi o verdadeiro fundador do m,onasticismo ocidental. (Detalhe do quadro de Leone Leoni, "Um milagre de São Benedito", lia Galeria Nacional de Arte dos EUA).
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De certo modo o monasticismo ocidental encontrou seu fundador em Benedito de Núrsia. Antes deles houve muitos monges da igreja ocidental, porém somente ele conseguiu dar ao rnonasticisrno latino o seu próprio sabor, de tal modo que depois dele' o monasticismo não foi mais algo importado do Oriente grego, mas uma planta autóctona.
A vida de São Benedito Benedito nasceu na pequena aldeia italiana de Núrsia, por volta do ano de 480. Para colocarmos sua vida dentro do quadro. de acontecimentos que narramos no capítulo anterior, recordemo-nos que Odoacro depôs o último imperador do Ocidente em 476, e que em 493, quando Benedito começava sua adolescência, toda a I tál ia estava nas mãos dos ostrogodos. A fam íl ia de Benedito pertencia à velha aristocracia romana, e é de se supor que ele presenciou, durante sua mocidade, as tensões entre católicos e arianos que caracterizaram esta época na Itália. Quando tinha mais ou menos vinte anos de idade Benedito se retirou para viver sozinho em uma caverna, onde se dedicou a um tipo de vida extremamente ascético. Levava ali uma luta contínua contra as tentações. Seu biógrafo Gregório, o Grande, nos conta que nesta época o futuro criador do monasticismo beneditino se sentiu dominado por uma grande tentação carnal. Uma mulher formosa, que ele tinha visto anteriormente, se apresentou em sua imaginação com tanta nitidez que Benedito não conseguia conter sua paixão, e chegou a pensar em abandonar a vida monástica. Então, nos diz Gregório, Ir • ele recebeu uma repentina iluminação do alto, recobrou os sentidos, e ao ver uma moita de espinheiros e urtigas tirou toda a roupa e se lançou aos espinhos e ao fogo das urtigas. Depois de se revolver ali durante muito tempo, saiu todo ferido .... A partir de então nunca voltou a ser tentado de maneira igual." Excessos como este, entretanto, não eram caractertsticos do jovem monge, para quem a vida monástica não consistia em destruir o corpo, mas em fazê-lo apto para ser um instru mento no serviço a Deus.
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De acordo com a lenda representada neste afresco da igreja de São Miniato, em Florença, alguns monges pediram a São Benedito que fosse seu chefe. Quando se aperceberam que o santo era um chefe austero, trataram de envenene-lo. Porém quando Benedito abençoou o cálice, este se quebrou.
Em pouco tempo a fama de Benedito era tal que um numeroso grupo de monges se reuniu a ele. Benedito os organizou em grupos de doze: esta foi sua primeira tentativa de organizar a vida monástica, que teve de ser interrompida quando algumas mulheres dissolutas invadiram a região. Benedito então se retirou para Montecasino com seus mon!I"S, um lugar tão remoto que ainda havia um bosque sagrado ,til, I' o', h.rhi tantes do lugar continuavam oferecendo sacrifícios
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em um antigo templo pagão. A primeira coisa que Benedito fez foi por um fim a tudo isto, derrubando as árvores, o altar e o ídolo do templo. Depois organizou ali uma comunidade monástica para homens, perto de outra que sua irmã gêmea Escolástica fundou para mulheres. Ali sua fama era tamanha que vinha gente de todo o país para visitá-lo. Entre estes visitantes se encontrava o rei ostrogodo Totila, a quem Benedito repreendeu, dizendo-lhe: "Fazes muitas coisas más, e já tens feito mais. Chegou o momento de parar com estas iniqüidades... Reinarás ainda por nove anos, e morrerás no décimo". E, de acordo com o que diz o biógrafo de Benedito, Gregório, o Grande, Totila morreu no décimo ano do seu reinado, como o monge o havia predito. Porém a fama de São Benedito não se deve às suas profecias, nem à sua prática ascética, mas à Regra ,que deu à comuni-
"Reinarás ainda por nove anos, e morrerás no décimo".
46/ A era das trevas dade de Montecasino em 529, e que em pouco a ser a base de todo o monasticismo ocidental.
tempo
passou
A Regra de São Benedito
O enorme impacto desta Regra não proveio da sua extensão, pois ela continha somente setenta e três breves capítulos, que podem ser lidos facilmente em uma ou duas horas. O impacto proveio do fato que a Regra ordena a vida monástica de forma concisa e clara, de acordo com o temperamento e as necessidades da igreja ocidental. Comparada com os excessos de alguns monges do Egito, a Regra é um modelo de moderação em tudo o que se refere à prática ascética. No prólogo Benedito diz a seus leitores que "se trata de constituir uma escola para o serviço do Senhor. Nela não queremos instituir nenhuma coisa áspera nem severa". Em conseqüência em toda a Reqr» domina um espírito prático, às vezes até transigente. Assim, por exemplo, enquanto que muitos monges do deserto se alimentavam somente de água, pão e sal, Benedito estabelece que seus monges devem se alimentar duas vezes por dia, e que em cada refeição deverá haver dois pratos cozidos e às vezes outro de legumes ou frutas frescas. Além disto cada monge recebia um quarto de litro de vinho por dia. Tudo isto, é claro, somente quando não havia escassez, pois neste caso os monges deveriam se contentar com o que havia, sem queixas ou murmurações. De igual modo, enquanto que os monges do deserto dormiam o menos possível, e da maneira mais desconfortável possível, Benedito prescreve que cada monge deverá ter além do seu leito uma coberta e um travesseiro. Ao distribuir as horas do dia, ele separa de seis a oito para o sono. Porém em meio à sua moderação, há dois elementos em que Benedito se mostra firme. Estes dois são permanência e obediência. Permanência quer dizer que os monges não devem andar vagando de um mosteiro para outro. Pelo contrário: de acordo com a Regra cada monge deverá permanecer o resto de sua vida no mesmo mosteiro em que fez seus votos, a menos que por alguma razão o abade o envie a outro lugar. Isto pode parecer tirania, porém Benedito queria remediar uma situação
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em que muitos se dedicavam a ir de mosteiro em mosteiro, desfrutando de hospitalidade por algum tempo, até que começava-se a exigir deles que levassem junto com os demais monges as cargas do lugar, ou até que começassem a ter conflito com o abade ou com outros monges. Então, em vez de assumir sua responsabilidade ou de resolver seus conflitos eles iam para outro mosteiro, onde em pouco tempo surgiam os mesmos problemas. A permanência foi uma das características da Regra que mais fez sentir seu impacto, pois deu estabilidade à vida monástica. A obediência é outro dos pilares da Regra de São Benedito. Todos devem obediência ao abade "sem demora". Isto quer dizer que o monge não só deve obedecer, mas que deve fazer todo o possível para que esta obediência seja de bom grado. Queixas e murmurações estão absolutamente proibidas. Se em algum caso o abade ou outro superior ordena a algum monge que faça algo aparentemente impossível, este lhe exporá com todo o respeito as razões pelas quais não pode cumprir a ordem. Porém se depois da explicação o abade insistir, o monge tratará de fazer com boa disposição o que lhe foi ordenado. O abade, entretanto, não deverá ser um tirano, pois o título "abade" é o mesmo que "pai". Como pai ou pastor das almas que se dedicaram, o abade terá de prestar contas delas no ju ízo final. Por isso sua disciplina não deverá ser excessivamente severa, pois seu intento não é mostrar poder, mas trazer os pecadores novamente para o caminho certo. Para governar o mosteiro o abade contará com "decanos", e estes serão os primeiros a admoestar secretamente os monges que de algum modo incorrerem em falta. Se estes não se corrigirem depois das admoestações, serão repreendidos diante de todos. Os que ainda depois destas admoestações perseverarem em seus erros serão excomungados. Isto significa que, além de não poderem participar da comunhão, eram também exclu ídos da mesa comum e de qualquer contato com os irmãos. Se ainda depois disto alguém insistisse em seus erros, seria chicoteado. O próximo passo era dado com grande pesar, como se um cirurgião fosse amputar um órgão, pois consistia na expulsão do mosteiro. Porém mesmo esta expulsão não fechava todas as portas ao monge, pois poderia ser readmitido no mosteiro, se se arrependesse.
48/ A era das trevas Se caísse de novo e fosse expulso, e se arrependesse, seria novamente readmitido, até três vezes. Depois disto não teria mais oportunidade: nunca mais poderia por os pés no mosteiro. Como vemos, a Regra de São Benedito não foi escrita para santos veneráveis como os heróis do deserto, mas para seres humanos e falíveis. Talvez seja este o segredo do seu êxito .. Outra característica da Regra é sua insistência no trabalho físico, do qual todos deveriam participar. A não ser em casos muito especiais de dotação excepcional para um tipo de trabalho, ou de doença, todos deveriam revezar-se em todas as ocupações. Assim, por exemplo, havia cozinheiros semanais, que preparavam os alimentos durante uma semana. Este serviço não deveria ser encarado com desprezo ou má vontade, mas pelo contrário, e por isto Benedito prescreve que a cada semana a mudança do grupo de cozinheiros seja feita na capela, e até estabelece um breve ritual para isto. Além disto todos se revezavam no trabalho nas plantações e em todas as outras tarefas necessárias para os sustento do mosteiro. A distribuição das tarefas, entretanto, levava em conta a condição dos doentes, dos anciãos e dos meninos. Para estes a Regra não era tão rigorosa, e não lhes conferia trabã1ho muito pesado. Os mais fracos também recebiam carne, da qual o restante da comunidade se abstinha. Não haveria preferência alguma no mosteiro para monges que procediam de farn ílias ricas ou poderosas. E ainda mais: se estas fam íl ias enviassem algo ao seu parente, isto não era entregue ao monge, mas ao abade, para que dispusesse da remessa como melhor lhe parecesse. Nos casos em que fosse necessário estabelecer uma ordem de autoridade ou de respeito, não se seguia os costumes do mundo exterior, mas o novo regulamento -do mosteiro. O rico não tinha mais autoridade que o pobre, porque no mosteiro todos são pobres. O mais velho também não tinha mais autoridade que o jovem, pois no mosteiro se contava a idade a partir da aata em que a pessoa entrou na vida monástica, e não a partir do seu nascimento carnal. C voto de pobreza de um monge beneditino tinha, então, um propósito diferente do que O dos monges do deserto. r~o I qito muitos .se faziam pobres simbolizando sua renúncia pes-
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soaI. Para São Benedito a pobreza individual era uma maneira de estabelecer uma nova ordem coletiva. O monge deveria ser absolutamente pobre, não possuir coisa alguma, e o mosteiro deveria ter tudo que fosse necessário para a vida da comunidade: vestimentas, provisões, instrumentos de trabalho, terras, prédios, etc. A pobreza individual do monge, portanto, era uma maneira de un í-Io ainda mais à comunidade, evitando que ele se glorie diante dela. Se o mosteiro carecesse de algo, o monge tinha de aceitar esta falta. Porém o ideal não era que o mosteiro passasse por necessidades, mas que tivesse todo o necessário para proporcionar uma vida razoável. De modo que o monge beneditino, contrastando com o do deserto, sofria necessidades somente em casos extremos. Por outro lado isto não quer dizer que São Benedito defendia um tipo de vida confortável. Pelo contrário, cada monge deveria se esforçar para precisar o menos possível. Cada um deveria contribuir para a vida comunitária com tudo que lhe fosse possível, de acordo com seus limites de saúde e força. Porém para a distribuição não servirá de base o quanto cada um contribuiu, mas de quanto cada um necessita. Alguns receberão mais que outros. Por exemplo: os doentes receberão carne. Mas isto não é sinal de que uns valem mais que outros, mas que as fraquezas de todos devem ser levadas em conta. "Aquele que precisa de pouco, esteja agradecido e não reclame; aquele que precisa de mais, humilhe-se por causa da sua fraqueza, e não se orgulhe do que recebeu por misericórdia." Ocupamo-nos até aqui da administração do mosteiro, ~as para São Benedito a principal atividade dos monges deveria ser a oração. Todo dia havia horas separadas para a oração individual, além dos cultos comuns que tinham lugar na capela ou oratório. Destes cultos havia oito por dia: sete durante o dia c um no meio da noite, seguindo as palavras do salmista: "Sete vezes no dia eu te louvo" (Salmo 119:164), e "Levanto-me à meia-noite para te dar graças" (Salmo 119:62). O dia começava a partir da oração da meia-noite, que na verdade era feita de madrugada, antes do raiar do dia, c se chamava "Vigília" (depois recebeu o nome de Matina). Durante o dia orava-se nas horas chamadas Laudes (louvores), Prima, Tertia, Sexta, Nona, Vísperas (véspera) e Completas. As origens
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destas horas de oração são diversas. Algumas delas remontam aos costumes dos judeus na sinagoga, e há ind ícios de que os
Nos mosteiros é que os escritos da antigüidade cristã eram copiados e ronsarvedos, inclusive a Bíblia.
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primeiros cristãos continuaram observando-as (por exemplo Atos 3:1 e 10:9). Outras têm origem monástica. Em todo caso a forma que São Benedito lhes deu continuou sendo usada durante toda a Idade Média e, com algumas modificações, até os nossos dias. Nestas horas de oração a maior parte do tempo era dedicada à recitação dos Salmos e à leitura de outras porções das Escrituras. De acordo com a Regra de São Benedito, todos os salmos deveriam ser recitados no transcorrer de uma semana. As outras leituras bíblicas dependiam da hora de oração, do dia da semana e da época do ano. O resultado de tudo isto foi que quase todos os monges sabiam os salmos de cor, bem como muitas outras porções da Bíblia. Por isso não é verdadeiro dizer que na Idade Média não se lia a Bíblia. Pelo contrário: por causa do impacto do monasticismo beneditino, a maioria dos monges (e muitos leigos devotos) da Idade Média podia recitar a Bíblia de cor por horas e horas. O próprio Lutero mostra em suas obras um conhecimento dos Salmos que seria surpreendente se ele antes não tivesse sido monge, recitando todos os salmos uma vez por semana durante anos e anos. A expansão do monasticismo beneditino
A Regra de São Benedito dizia pouca coisa sobre o estudo, mas em pouco tempo o monasticismo beneditino se distinguiu neste sentido. Já antes de São Benedito, Cassiodoro, o ex-ministro do rei godo Teodorico, tinha combinado a vida monástica com o estudo. O sistema beneditino logo seguiu o exemplo de Cassidoro, e os mosteiros beneditinos se transformavam em centros de estudo, onde se copiava e conservava manuscritos. Em certo sentido a Regra apoiava este hábito, mesmo que não explicitamente, pois para que os monges pudessem rocitar os salmos e ler as Escrituras em suas horas de oração era necessário que soubessem ler, e que o mosteiro tivesse manus' critos. Em pouco tempo, enquanto o restante da uropa ocidental se esquecia dos conhecimentos da antiguidade, os mosteiros foram se transformando em centros onde estudava e conversava estes conhecimentos. O "scriptoriurn", onde os
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Por diversas razões muitos pais dedicavam seus filhos à vida monástica desde tenra idade. Neste desenho, copiado de um manuscrito do século XIII, o abade recebe a criança junto com o dote que seus pais ofereceram ao mosteiro.
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monges copiavam manuscritos, veio a ser um dos principais vfnculos da Idade Moderna com a antiguidade (sobretudo com a antiguidade cristã). Além disto já vimos que em diversos lugares a Regra mencionava crianças. Isto porque ·por várias razões pais dedicavam seus filhos à vida monástica. Estas crianças não tinham liberdade para abandonar o mosteiro quando chegavam à idade adulta, pois os votos que seus pais tinham feito em seu nome eram tão válidos como se eles mesmos os tivessem feito. Isto, naturalmente, em alguns casos acarretou graves problemas, pois dava margem a que existissem monges que não que-
Durante vários séculos os mosteiros foram as escolas da Europa ocidental, e os monges foram os professores de um continente inteiro.
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riam sê-lo. Em séculos posteriores este hábito chegou a corromper-se a tal ponto que muitos nobres e reis utilizavam os mosteiros para colocar neles seus filhos ilegítimos, ou às vezes algum filho menor que poderia complicar a herança. Por outro lado isto também fez com que os mosteiros se transformassem em escolas em que estas crianças dedicadas à vida monástica aprendiam a ler e escrever. Não demorou que as escolas monásticas fossem praticamente as únicas que existiam na Europa ocidental, e os monges foram os professores de um continente inteiro.
Os monges beneditinos, em sua dedicação à agricultura, semearam campos que estavam abandonados, ... derrubaram árvores ... e de mil maneiras deram certa estabilidade a um continente constantemente sacudido por guerras e rumores de guerras.
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Se o impacto cultural do monasticismo beneditino foi notável, seu impacto econômico não foi menor. Os monges beneditinos devolveram ao trabalho a dignidade que tinha perdido entre as classes supostamente mais refinadas. Enquanto os ricos pensavam que o trabalho físico deveria ficar reservado para as classes baixas, supostamente ignorantes e incapazes de elevar-se ao n(vel dos ricos, os monges, muitos deles provenientes de famflias ricas, mostraram ao mundo que é poss(vel combinar a vida religiosa e intelectual mais rigorosa com o trabalho f(sico. Em séculos posteriores (principalmente a partir do século XVIII), os historiadores, filósofos e teólogos tiveram a tendência de desprezar o pensamento que predominava naqueles antigos mosteiros beneditinos. Dizia-se que este era grosseiro, sem originalidade e sem coragem para especulações. Tudo isto é verdade. Mas também é verdade que ele tinha raízes profundas na realidade humana, no suor e na terra, que historiadores, teólogos e filósofos que não cultivam a terra nem preparam seus próprios alimentos não podem compreender. Além disto, os monges beneditinos, em sua dedicação à agricultura, semearam campos que estavam abandonados, derrubaram árvores e de mil maneiras deram certa estabilidade a um continente continuamente sacudido por guerras e rumores de guerras. Quando, em conseqüência destas guerras e das migrações em massa que as acompanharam, muita gente sofreu fome, freqüentemente eram os monges que puderam alimentá-Ia com os recursos do seu próprio trabalho. Por outro lado o monasticismo beneditino passou a ser o braço direito da obra missionária da igreja medieval. Agostinho, o missionário que obteve a conversão do rei Etelberto, de Kent, e que veio a ser o primeiro arcebispo de Canterbury, era um monge beneditino. Os trinta e nove monges que o acompanharam e os muitos que os seguiram também o eram. Talvez o melhor exemplo da relação entre a expansão missionária e o monasticlrno beneditino seja Bonifácio. Ele era natural da Inglaterra, onde nasceu por volta de 680. Aos sete anos, ao que parece por sua 'própria vontade e com a concordância dos seus pais, ingressou em um mosteiro. Como em toda a Inglaterra o impacto de Agostinho e de seus sucessores se fizera sentir, o mosteiro em que Bonifácio ingressou era beneditino. Ali
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passou seus primeiros anos, até que foi transferido a outro mosteiro para que continuasse seu estudos. Neste novo mosteiro ele logo se destacou por sua devoção e inteligência, de modo que foi feito diretor da escola e ordenado sacerdote. Bonifácio, porém, se sentia vocacionado para a obra missionária, e em 716 partiu para os Pafses Baixos, terra habitada pelo povo bárbaro e pagão dos frfsios. Quando as circunstâncias pol fticas o impediram de continuar a sua obra, ele regressou à Inglaterra por um breve perfodo, e dali foi para Roma, onde o papa Gregório II o
Quando havia escassez, freqüentemente eram os monges que alimentavam os famintos, com recursos do seu próprio trabalho.
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Em Geismar, Bonifácio cortou o carvalho sagrado de Tor. Os pagãos esperavam que Tor destruísse o missionário atrevido; porém um vento forte começou a soprar e derrubou a árvore, e muitos deles se converteram. Com a madeira do carvalho Bonifácio construiu uma capela.
comissionou para que fosse em seu nome retomar sua missão. Isto Bonifácio fez, com o apoio não só de Gregório, mas também dos governantes francos, que estavam interessados no trabalho missionário como meio de pacificar suas fronteiras. Por causa do seu relacionamento com os governantes francos, com o passar do tempo Bonifácio dedicou a maior parte dos seus esforços não à missão entre os frísios, mas a reformar e organizar a igreja nos territórios francos. Em 743 fixou residência em !\1ogúcia, que pertencia aos francos, e dali se dedicou a fundar mosteiros em toda a região, que por sua vez fossem centros para reformar a igreja. Como Bonifácio era beneditino, em todos os mosteiros que ele fundou observava-se a Regra de São Benedito. Além disso foi ele quem ungiu Pepino rei dos francos, representando o papa. Por fim, depois de passar muitos anos na segurança relativa dos territórios francos, Bonifácio decidiu empreender uma vez mais a evangelização dos fr(sios. Alguns monges o acompanharam neste intento, pois parte do seu objetivo era fundar um mosteiro beneditino nos Países Baixos. Quando estavam a caminho foram atacados e mortos por um bando de ladrões. As vidas de Bonifácio e de Agostinho de Canterbury servem para nos dar uma idéia de como a Regra beneditina se es-
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tendeu primeiro às Ilhas Britânicas, e depois ao reino dos francos e vizinhanças. Se pudéssemos continuar aqui esta história, veríamos como depois penetrou na Espanha e em outras regiões. Em outros capítulos veremos como foi necessário reformar o movimento repetidamente. Porém aqui nos interessa simplesmente mostrar como o monasticismo beneditino se expandiu, e qual foi sua contribuição ao novo sistema que se desenvolvia. Esta expansão do monasticismo beneditino se relacionou estreitamente com sua aliança com o crescente poder papal. Como veremos no próximo capítulo, o papado foi o outro elemento de estabilidade em meio à desordem que seguiu às invasões dos bárbaros. E para levar a cabo sua tarefa o papado contou antes de tudo com o monasticismo beneditino. Esta aliança nasceu em meio a circunstâncias, ao que parece, tristes para os beneditinos. Em 589 Montecassino, o mosteiro fundado por São Benedito, foi atacado e queimado pelos lombardos. Os monges se viram obrigados a fugir para Roma. Ali vivia Gregório, que no ano seguinte foi eleito papa. Assim que Gregório assumiu esta posição, começou a fazer todo o poss(vel para difundir o uso da Regra de São Benedito. Primeiro vários mosteiros de Roma se adaptaram a ela. Depois, pelo trabalho de Agostinho e de outros como ele, o monasticismo beneditino foi exportado a outras regiões da Europa. A obra de Bonifácio, então, é continuação da de Gregório e Agostinho. Em uma época de desordem e incertezas era necessário que surgissem elementos de unidade, que guiassem a Europa até o novo sistema que viria. Estes elementos foram o monasticismo beneditino e o papado. Assim como neste capítulo discutimos as origens deste monasticismo, dedicaremos o próximo à expansão do poder papal.
III O papado
As instruções que te dei ... devem ser seguidas com afinco. Zela para que os bispos não se metam em assuntos seculares, a não ser quando seja necessário para defender os pobres. Gregório, o Grande Foi durante a "era das trevas" que o papado começou a surgir com a pujança que o caracterizou em séculos posteriores. Porém antes de narrar estes acontecimentos convém que nos detenhamos para discutir a origem do papado. A origem do papado
O termo "papa", que atualmente é empregado no Ocidente exclusivamente para o bispo de Roma, nem sempre teve este sentido. A palavra em si significa simplesmente "papai", sendo, portanto, um termo de carinho e respeito. Na época antiga ele era usado para qualquer bispo distinto, sem importar se ele era ou não o bispo de Roma. Assim há, por exemplo, documentos antigos que se referem ao "papa Cipriano", de Cartago, ou ao "papa Atanásio", de Alexandria. Além disto, enquanto no Ocidente o termo acabou ficando exclusivamente para o bispo de Roma, em várias partes da igreja oriental ele continuou sendo usado com mais liberalidade. Em todo caso a questão mais importante não é a origem do termo "papa" mas de que maneira o bispo de Roma .chegou a
62/ A era das trevas gozar da autoridade que teve durante a Idade Média, e que ainda tem na igreja católica romana. As origens do bispado romano se perderam na penumbra da história. A maior parte dos historiadores, tanto católicos como protestantes, concorda com que Pedro esteve em Roma, e que provavelmente morreu nesta cidade durante a perseguição de Nero. Porém não existe nenhum documento antigo que diga que Pedro transferiu sua autoridade apostólica aos seus sucessores. Além disto, as listas antigas que enumeram os primeiros bispos de Roma não coincidem. Enquanto algumas dizem que Clemente sucedeu diretamente a Pedro, outras dizem que ele foi o terceiro bispo depois da morte do apóstolo. Isto é tanto mais digno de nota por termos listas relativamente fidedignas de outras igrejas .. Isto, por sua vez, levou alguns historiadores a conjeturar que talvez o bispado de Roma, em seu princípio, não tenha sido "monárquico" (isto é, com um só bispo), porém um bispado colegiado onde vários bispos ou presbíteros dirigiam a vida da igreja em conjunto. Seja qual for o caso, fato é que de todo o período que vai desde a perseguição de Nero em 64 até a Primeira Ep/sto/a de C/emente, em 96, o que sabemos do bispado romano é pouco ou nada. Se o papado tivesse sido tão importante desde as origens da igreja, como dizem alguns, teria deixado mais vestígios durante toda esta segunda metade do primeiro século. Durante os primeiros séculos da história da igreja o centro numérico do cristianismo esteve no Oriente, e por isso bispos de cidades como Antioquia e Alexandria tinham muito mais importância que o bispo de Roma. E também no Ocidente de fala latina, a direção teológica e espiritual não esteve em Roma, mas na África latina, que contribuiu com Tertuliano, Cipriano e Santo Agostinho. Esta situação começou a mudar quando o Império aceitou a fé cristã. Como Roma era, pelo menos de nome, a capital do Império, a igreja e o bispo desta cidade logo se viram em posição de destaque. Em todo o Império a igreja começou a se organizar de acordo com os padrões estabelecidos pelo estado, e as cidades que tinham jurisdição pol ítica sobre uma região logo tinham t.IITlIJém jurisdição eclesiástica. Depois de algum tempo a igreja
Opapado/63 estava dividida em cinco patriarcados, que tinham suas sedes em Jerusalém, Antioquia, Alexandria, Constantinopla e Roma. A própria existência do patriarcado de Constantinopla, uma cidade que nem sequer existia como tal em tempos apostólicos, mostra que esta estrutura correspondia mais a realidades pol Iticas que a origens apostólicas. E o caráter quase somente simbólico do patriarcado de Jerusalém, que poderia reclamar para si ainda mais autoridade apostólica que a própria Roma, mostra a mesma coisa. Quando os bárbaros invadiram o Império, a igreja do Ocidente começou a seguir um rumo bem diferente da do Oriente. No Oriente o Império continuou existindo, e os patriarcas continuaram subordinados a ele. O caso de João Crisóstomo, que vimos no volume anterior, se repetiu com freqüência na igreja oriental. No Ocidente, entretanto, o Império desapareceu, e a igreja veio a ser a guardiã do que restava da velha civilização. Por isto o patriarca de Roma, o papa, chegou a ter grande prestígio e autoridade.
leão,
o Grande
Isto podemos ver no caso de Leão I, "o Grande", de quem já se disse que foi o primeiro "papa", no sentido corrente do termo. No próximo capf'tulo veremos sua intervenção nas controvérsias cristológicas que dividiram o Oriente durante seu tempo. Ao estudarmos estas controvérsias, e a participação de Leão, duas coisas ficam claras. A primeira é que sua autoridade não era aceita pelas partes em conflito, somente pelo fato de ele ser o bispo de Roma. Enquanto os ventos pol (ticos sopraram na direção contrária, Leão pouco pôde fazer para impor sua doutrina ao resto da igreja (particularmente no Oriente). E quando, por fim, sua doutrina foi aceita, isto não aconteceu porque ela provinha do papa, mas porque coincidiu com a do partido que no fim conseguiu sair vitorioso. A segunda coisa que se nota é que, apesar de Leão não poder fazer valer sua autoridade de maneira automática, esta autoridade aumentou por ter sido usada em prol da ortodoxia e da moderação. Portanto, as controvérsias cristológicas, ao mesmo tempo que nos mostram que o papa não tinha jurisdição univer-
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sal, nos mostram também como sua autoridade foi aumentando. Porém, enquanto que no Oriente duvidava-se de sua autoridade, em Roma e vizinhanças esta autoridade se estendia até além dos assuntos tradicionalmente religiosos. Em 452 os hunos, sob o comando da Átila, invadiram a Itália e tomaram e saquearam a cidade de Aquilea. Depois desta vitória o caminho para Roma estava aberto, pois em toda a Itália não existia nenhum exército capaz de barrar-lhes o caminho até a velha capital. O imperador do Ocidente era um personagem débil e sem recursos, e o Oriente tinha dado a entender que não prestaria nenhum socorro. Nestas circunstâncias Leão partiu de R~ma e foi até o acampamento de Átila, para falar com o chefe bárbaro que todos temiam como "0 chicote de Deus". Não sabemos o que Leão disse a Átila. Conta a lenda que quando o papa se aproximou, junto dele apareceram São Pedro e São Paulo, ameaçando Átila com uma espada. Em todo caso, fato é que Átila, depois deste encontro com Leão, abandonou sua intenção de atacar Roma, e rumou com seus exércitos para o norte, onde morreu pouco depois. Leão ainda ocupava o trono episcopal de Roma quando os vândalos tomaram a cidade, em 455. Nesta ocasião o papa não conseguiu salvar a cidade das mãos dos seus inimigos. Porém pelo menos foi ele quem negociou com Genserico, o chefe vândalo, e conseguiu que ele proibisse incêndios e assassinatos. Apesar de a destru ição causada pelos vândalos ter sido grande, ela poderia ter sido muito maior se Leão não tivesse intervindo. I
Tudo isto nos mostra que em uma época em que a Itália e boa parte da Europa Ocidental estavam atoladas no caos, o papado preencheu o vazio, proporcionando certa estabilidade. Esta foi a principal razão por que os papas da Idade Média alcançaram um poder que os patriarcas de Constantinopla, Antioquia ou Alexandria nunca tiveram. Leão, porém, não baseava sua autoridade somente em considerações pol (ticas. Para ele a autoridade do bispo de Roma sobre todo o restante da igreja era parte do plano de Deus. Jesus Cristo tinha dado a São Pedro as chaves do Reino, e a Providência divina tinha levado o velho pescador à capital do Império. Pedro era a pedra sobre a qual Jesus Cristo tinha
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prometido edificar a sua igreja, e por isso quem quisesse construir sobre outro fundamento estaria edificando sobre a areia. Foi a Pedro que o Senhor disse diversas vezes: "Apascenta as minhas ovelhas". E tudo isto que as Escrituras dizem sobre o I(de'r dos apóstolos também vale para seus sucessores, os bispos de Roma. Por isto a autoridade do papa não advém simplesmente do fato de Roma ser a antiga capital do Império, nem que na época não havia em todo o Ocidente quem pudesse dirigir os destinos da sociedade, mas era parte do plano de Deus, e existiria para sempre, pois as portas do inferno não prevalecêriam contra ela. Como vemos, em Leão encontramos os principais argumentos que através dos séculos seriam reunidos a favor da autoridade papal. Os sucessores de Leão Leão deve parte do seu prestígio à sua própria pessoa, e parte às circunstâncias do momento. Sem dúvida ele era um personagem excepcional, e diz-se com razão que em sua época não existia quem pudesse se comparar a ele em firmeza de caráter, profundeza de percepção teológica e habilidade pol (tica. Porém tudo isto pôde se manifestar graças à situação pol (tlca em que lhe coube viver. Com efeito, Leão 'foi papa durante um período de relativa anarquia na Itália, e boa parte da sua grandeza residiu em saber preencher o vazio criado por esta anarquia. Quando Leão morreu sucedeu-lhe Hilário, que tinha sido um dos seus principais colaboradores. Este fez tudo que pôde para continuar a pol (tica de Leão, se bem que com menor êxito. Oueante o pontifrcado de Simpl (cio, que sucedeu a Hilário, as condições pol íticas começaram a mudar. Em 476 Odoacro depôs o último imperador do Ocidente. Na teoria isto queria dizer que agora todo o Império estava de novo reunido debaixo do imperador que residia em Constantinopla. Na verdade quem governava era Odoacro e os demais chefes bárbaros, como monarcas independentes, apesar de dizerem que governavam em nome do imperador. Portanto, sempre que estes monarcas eram fortes, faziam sombra ao papa, esforçando-se por manejá-lo de acordo com suas próprias intenções.
66/ A era das trevas Em outras ocasiões, porém, não havia poder pol ítico algum capaz de se sobrepor ao caos, e então os papas se viam na obrigação e na oportunidade de preencher este vazio. Na época de Simpl ício e dos seus sucessores Félix III, Gelásio e Anastácio II as relações entre os papas e os imperadores de Constantinopla foram bastante tensas, pois os imperadores tratavam de conquistar a simpàtia dos monofisitas da Síria e do Egito, e os papas e todo o Ocidente cristão se opunham a esta pol ítica. Como ver~mos no próximo capítulo, o monofisismo era uma das doutrinas resultantes das controvérsias cristológicas que abalaram o· cristianismo de faJa grega durante o século V. Se bem que esta doutrina foi condenada oficialmente pelo concílio de Calcedônia em 451, ela ainda contava com numerosos adeptos no Egito e na S(ria. Como estas províncias faziam parte das mais ricas regiões do Império, os governantes de Constantinopla fizeram tudo que podiam para granjear para si a boa vontade dos monofisitas, o que, por sua vez, criou tensões entre os papas e os imperadores. Por outro lado, na época de Félix os godos invadiram a Itália, sob o comando de Teodorico. Em 493 Teodorico era dono de quase toda a península. Como os godos eram arianos, sempre temiam que seus súditos italianos conspirassem a favor de Constantinopla, e por isso Teodorico e seus sucessores viram com bons olhos as desavenças entre os papas e os imperadores, e trataram de fomentá-Ias. Lembremo-nos também que foi Teodorico quem mandou prender e matar Boécio, suspeitando que seu ministro conspirava para trazer de volta O poder imperial. Antes da vitória definitiva de Teodorico, o papa Félix III tinha rompido relações com o patriarca de Constantinopla, Acácio. Isto é o que os historiadores ocidentais conhecem pelo "cisma de Acácio" (enquanto os orientais culpam o papa pelo cisma). Agora, com os interesses de Teodorico e dos seus sucessores, o cisma se perpetuou. Em 498, quando morreu o papa Atanásio II, a tensão entre godos e bizantinos resultou na existência de dois papas rivais. Enquanto os' godos e boa parte da população romana dpoiélva Símaco (que os católicos até hoje consideram como
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verdadeiro papal, o governo de Constantinopla sustentava Lourenço. Nas ruas de Roma houve conflitos armados em que morreram várias pessoas. Uma série de concflios se reuniu para resolver a questão, até que por fim Símaco saiu vencedor. Sob o sucessor de Símaco, Hormisdas, a situação começou a mudar. O novo imperador, Justino, começou a se interessar cada vez mais-pelo Mediterrâneo ocidental, e neste intento se aproximou do _papa. O sucessor de Justino, seu sobrinho Justiniano, seguiu esta pol ítica muito mais ativamente, e sob seu governo o antigo Império Romano gozou de uma breve reascensão. Depois de uma série de negociações, e ainda enquanto Hormisdas era papa, o cisma entre Roma e Constantinopla foi eliminado. No começo o rei godo Teodorico se opôs a esta aproximação entre seus súditos e as autoridades imperiais. Porém mais perto do fim de seus d.as ele começou a suspeitar que os católicos conspiravam para derrubar o governo dos godos e devolver a Itália ao Império; foi então que ele mandou prender e matar a Boécio. Pouco depois Teodorico enviou o papa João I como embaixador para Constantinopla e, quando este voltou sem conseguir tudo o que o rei queria, o rei o condenou à prisão, onde morreu. Conta-se que Teodorico estava empenhado a entregar todas as igrejas de Ravena aos arianos quando a morte o surpreendeu. A morte de Teodorico iniciou o ocaso do reino godo na Itália. Teodorico morreu em 526, e em 535 o general constantinopolitano Belisário já tinha conquistado a maior parte da península. A despeito de se esperar que a nova situação pol Itica resultaria proveitosa para o papado, isto não ocorreu. Somente em seus últimos anos de vida o ariano Teodorico permitiu aos seus súditos ortodoxos que seguissem a sua própria consciência em questões de fé. Agora o imperador ortodoxo Justiniano, supostamente aliado do papa, impôs ao Ocidente o costume oriental de colocar os rendimentos da igreja nas mãos do estado. O resultado foi toda uma seqüência de papas que não passaram de títeres do imperador e da sua esposa Teodora. Os poucos que ousaram tentar interromper esta sequência sofreram todo o peso do desaqrado imperial. m meio às controvérsias teológicas da época alguns destes papas escre-
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veram páginas tristes da história do papado, como veremos no próximo capítulo. O domínio bizantino sobre a Itália, entretanto, não durou muito. Como já dissemos antes, o último baluarte godo foi conquistado pelas tropas imperiais em 562, e já seis anos depois os lombardos invadiram o país. Seu poderio era tal que, se tivessem continuado unidos, não teriam demorado em conquistar toda a península. Eles, porém, se dividiram depois das suas primeiras vitórias, e a partir de então as suas conquistas foram esporádicas. Em todo caso a presença dos lombardos e as guerras constantes que esta presença acarretou obrigaram os papas a se ocuparem não só das questões religiosas, mas também da defesa de Roma e circunvizinhanças. Quando Justiniano morreu, o Império Oriental começou de novo a decair, e em pouco tempo a sua autoridade na Itália era quase nula. O exarcado de Ravena, que teoricamente pertencia ao Império, se viu obrigado a se defender contra os lombardos por conta própria. O mesmo podemos dizer de Roma, sob a direção do papa. Quando Benedito I faleceu em 579 as tropas lombardas assediaram a cidade. Seu sucessor Pelágio II salvou-a oferecendo aos lombardos altas somas em dinheiro. Além disto, já que Constantinopla não lhe enviava ajuda, Pelágio iniciou negociações com os francos, para que estes atacassem os lombardos pelo norte. Estes contatos iniciais ainda não levaram a ações militares, mas serviram de sinal para o que sucederia várias gerações mais tarde, quando os francos se transformaram nos principais aliados do papado. Gregório, o Grande As coisas estavam assim quando uma terrível epidemia irrompeu na Itália. Pelágio fez tudo que podia para enfrentar este novo desafio, mas acabou ele mesmo sucumbindo à peste. Era o ano de 590, e o eleito para sucedê-lo seria um dos maiores papas de todos os tempos. Gregório nasceu por volta do ano 540 em Roma, em uma família que, ao que parece, pertencia à velha aristocracia do lugar. Era a época em que Justiniano reinava em Constan tinopla, e seus generais estavam empenhados em derrotar (JS !lodos na Itália. Depois das primeiras vitórias, Justiniano
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tirara seu general BelisĂĄrio do campo de batalha, quando Totila conseguiu reorganizar as tropas godas, e deter por algum
GregĂłrio I, que foi papa de 590 a 604, foi sem dĂşvida um dos maiores papas de todos os tempos.
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tempo o avanço dos exércitos imperiais. Em 545 Totila sitiou Roma, que se rendeu a ele em dezembro de 546. Quando os godos entraram na cidade, o arcediano Pelágio (o mesmo que depois seria papa) 'saiu ao encontro do rei vencedor e lhe suplicou que respeitasse a vida e a honra dos vencidos. Totila concordou, e por isso a queda de Roma não foi a catástrofe que poderia ter sido. É muito provável que Gregório tenha estado em Roma durante estes acontecimentos. - Em todo caso não há dúvida de que a atuação de Pelágio foi um dos modelos que-Gregório seguiu quando coube a ele ser papa. Tudo isto nos mostra que a Roma em que Gregório cresceu estava muito longe daquela cidade nobre dos tempos de César Augusto. Pouco depois da vitória de Totila, Belisário e as tropas imperiais tomaram novamente a cidade, somente para perdê-Ia de novo. Com tantos sítios seguidos a população da antiga capital reduziu-se enormemente. Muitos dos velhos monumentos e ediffcios foram destru (dos, ou durante os combates, ou para utilizar suas pedras para reforçar as defesas da cidade. Os aquedutos foram interrompidos seguidamente pelos diferentes atacantes, e por fim ficaram abandonados. Descuidou-se dos sistemas de -drenagem dos antigos pântanos, e as inundações freqüentes traziam consigo epidemias não menos freqüentes. Sabemos pouco da juventude de Gregório na cidade. Parece que ele foi prefeito, antes de decidir ser monge. Algum tempo depois o papa Benedito o fez diácono, isto é, membro do conselho consultivo e administrativo do papa. Quando Benedito morreu, Pelágio II lhe sucedeu, e este nomeou o monge Gregório seu embaixador na corte de Constantinopla. Na cidade do Bósforo, Gregório passou seis anos representando os interesses do papa e dos romanos diante do imperador. Durante este tempo esteve repetidamente envolvido nas controvérsias teológicas que sempre ferviam na corte bizantina, porém apesar disto nunca aprendeu grego. Ali também ele fez amizade com Leandro de Sevilha, a quem já nos referimos como principal instrumento da conversão do reino visigodo da Espanha à fé católica. Por fim, em 586, o papa Pelágio enviou
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embaixador,
e Gregório
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regressar à tranqüilidade
do seu mosteiro em Roma. No mosteiro de Santo André, Gregório logo foi feito abade, ao mesmo tempo que servia ao papa Pelágio como ajudante e secretário. Nestes tempos a situação em Roma era difícil, pois dois anos antes do regresso de Gregório os lombardos tinham acabado por se unir debaixo de um rei, com o propósito de completar a conquista da Itália. Apesar de o imperador enviar alguns recursos esporádicos para a defesa de Roma e de outras cidades ainda não conquistadas, e apesar de os francos invadirem freqüentemente os territórios lombardos, vindos do outro lado dos Alpes, a situação militar era precária. Para complicar as coisas irrompeu uma grande epidemia na cidade, dizimando a população. Pouco antes houvera uma inundação que destru íra os principais armazéns da igreja, onde era guardado o trigo de que dependia boa parte dos habitantes. Como a peste produzia alucinações, começaram a circular rumores de todo tipo de coisa estranhas. Um grande dragão apareceu no rio Tibre. Do céu choviam flechas de fogo. A morte aparecia aos que iam morrer. O pânico se somou à fome e à peste. Para cúmulo dos males o papa Pelágio, que tinha se esforçado para manter a cidade relativamente limpa, com a ajuda de Gregório e de outros, para enterrar os mortos e alimentar os famintos, adoeceu da praga e morreu. Em tais circunstâncias não eram muitos que ambicionavam o posto vago. O próprio Gregório não tinha outro desejo senão regressar à tranqüilidade do seu mosteiro. Porém o clero e o povo o elegeram com entusiasmo e, ao menos no momento, Gregório não podia fazer outra coisa senão continuar a obra interrompida de Pelágio. Uma das suas primeiras medidas, entretanto, foi escrever ao imperador pedindo que confirmasse sua nomeação (pois naquela época havia o costume de os imperadores de Constantinopla darem sua aprovação ao papa eleito, antes que ele pudesse ser consagrado). Porém, o prefeito da cidade, que sabia que não poderia cumprir com suas obrigações sem o auxílio de um papa como Gregório, interceptou a carta. Outra das medidas de Gregório foi convocar todo o povo para uma grande procissão de penitência, pedindo a Deus que
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perdoasse seus pecados e que fizesse cessar a praga. Depois de ouvir um sermão do novo papa, que ainda existe, todo o povo saiu em procissão angustiada, e conta-se que a praga cessou. Mesmo não desejando ser papa, assim que Gregório se viu institu ído no cargo começou a cumprir com suas obrigações cabalmente. Na cidade de Roma organizou a distribuição de alimentos aos necessitados, de modo que havia quem levasse comida até os cantos mais afastados da cidade. Ao mesmo tempo o papa supervisionava as remessas de trigo que vinham da Sicflia, para ter certeza de que não faltariam provisões. Por outro lado era necessário garantir que a cidade fosse habitável e defensável, e Gregório se dedicou com afinco a estas tarefas, que normalmente cabiam às autoridades civis. Na medida do possível os aquedutos foram reconstruídos, bem como as fortificações, e a moral da guarnição foi renovada, pois ela quase a tinha perdido por falta de pagamento. Para defender a cidade contra os lombardos, Gregório solicitou ajuda de Constantinopla. Porém como esta ajuda não chegava, em duas ocasiões ele se viu obrigado a negociar diretamente com o inimigo, como se ele fosse o representante do poder civil. Por fim conseguiu com a rainha Teodolinda que ela deixasse educar seu filho na fé católica, e não na ariana dos lombardos. Em tudo isto, por causa da inexistência de uma política por parte do Império, Gregório viu-se obrigado a atuar por conta própria, e por isso ele é considerado o fundador do poder temporal do papado. Este poder se estendia diretamente a uma série de territórios que de um ou outro modo tinham se tornado propriedade do papado, e que recebiam o nome comum de "patrirnônio de São Pedro". Além das igrejas e de vários palácios em Roma, ao redor da velha capital havia terras que faziam parte deste patrimônio, bem como em outras partes da Itália, em Sicília, Córsega, Sardenha, Gália, e até na África. Como proprietário de todas estas terras, o papado gozava de enormes riquezas. E Gregório pôs este recurso a serviço da grande tarefa de alimentar o povo romano. Apesar de não lhe pertencer o governo da cidade de Roma, Gregório viu-se obrigado a exercê-lo. Este precedente, junto com a decadência do poder imperial
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na Itália, fez com que, com o passar do tempo, os sucessores de Gregório ficassem sendo donos e governantes da cidade de Roma e arredores. Algum tempo depois, perto do fim do século VIII, alguém falsificou um documento, a chamada Doação de Constantino, que pretendia que o grande imperador tivesse doado estes territórios aos sucessores de Pedro. Em Roma, além de se ocupar com as necessidades f(sicas do povo, Gregório dedicou também seu tempo à vida da igreja. Ele dava muita importância à pregação, razão pela qual dedicou boa parte dos seus esforços pregando nas diversas igrejas da cidade, e assegurando-se que todo o clero desse atenção especial à pregação. Os luxos a que alguns tinham se acostumado foram proibidos, assim como pagamentos excessivos que alguns clérigos recebiam por seus serviços. Além disto Gregório adotou medidas em favor do celibato eclesiástico, que paulatinamente tinha se generalizado na Itália, mas que muitos não cumpriam. Como bispo de Roma, Gregório se considerava também patriarca do Ocidente. Sem reclamar para o papado a autoridade universal que Leão tinha definido antes, Gregório fez muitos mais que seu antecessor para aplicar esta autoridade em diversas regiões. Na Espanha ele deu apoio às medidas que seu amigo Leandro de Sevilha e o rei Recaredo tomavam em favor da conversão do país do arianismo para o catolicismo. Na verdade foi ele quem interpretou assim a rebelião de Hermenegildo, a quem nos referimos antes, que logo foi considerado mártir da fé ortodoxa, sendo que mais tarde apareceu o culto a "São Hermenegildo". Na África o principal problema não eram os arianos, mas os donatistas, cujo cisma ainda perdurava. Na época de Gregório, e graças às conquistas de Justiniano e de seu general Belisário, todo o norte da África fazia parte do Império Romano. O Egito estava sob a jurisdição do patriarca de Alexandria. Gregório, entretanto, como patriarca do Ocidente, achava que tinha certa jurisdição sobre o antigo reino dos vândalos, que sempre fizera parte do Império do Ocidente. Por isso tratou de intervir nesta região para destruir o donatismo que ainda existia. Os bispos africanos, todavia, não tinham interesse em levar avante a pol ítica intransiqento que Gregório queria lhes impor, e se contentaram em convlvui
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com os donatistas, como tinham aprendido a fazê-lo durante os dias diffceis do regime vândalo. Gregório, por seu lado, fez pressão para que as autoridades imperiais aplicassem as leis de Constantino e dos seus sucessores imediatos contra os donatistas, que supostamente ainda estavam em vigor, mas que ninguém aplicava. Os representantes de Constantinopla, entretanto, também se mostraram mais tolerantes que o papa, de modo que a pol ítica deste no norte da África foi, em termos gerais, um fracasso. À Inglaterra, Gregório enviou Agostinho e seus companheiros de missão, e depois outros contingentes que continuassem e ampliassem a obra. Nos territórios francos Gregório aumentou o prestígio da sede romana através de unia série de manobras hábeis. Os diversos reis francos estavam em constantes lutas entre si, cada um tentando aumentar seus domínios às expensas dos seus vizinhos, e obter a hegemonia da região. Em tais circunstâncias as boas relações com o prestigioso bispo de Roma poderiam contribuir para o triunfo de um ou outro reino. Gregório aproveitou, então, os desejos de vários destes governantes para estabelecer relações com eles, sobretudo ao outorgar honras especiais a este ou aquele bispo deste ou daquele reino. Ao mesmo tempo começou a usar estes contatos para pedir aos governantes que reformassem os costumes eclesiásticos em seus domínios, onde era _hábito comprar e vender cargos na igreja, e onde era freqüente o caso de algum leigo ambicioso ser nomeado bispo de um dia para outro. Em outras tentativas de reforma Gregório fracassou redondamente, .pois os chefes francos queriam reter seu poder sobre a igreja; e o que o papa pedia acabaria com este poder. Porém ao mesmo tempo que não conseguiu as reformas desejadas Gregório conseguiu aumentar o prestígio e a autoridade do papado nos territórios francos, pois a partir de então ficaram numerosos precedentes que pareciam .indicar que o papa tinha jurisdição sobre os assuntos eclesiásticos na França. Em resumo, mediante a simples pol ítica de intervir em diversas situações, quase sempre c0'Tl lato e habilidade diplomática, Gregório estendeu a esfera de influência do papado. Para esta tarefa ele contou com a ajuda do monasticismo beneditino, que começava a se disseminar pela Europa ocidental.
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Já que o monastrcisrno e o papado foram as duas características principais do cristianismo medieval, podemos dizer que no tempo de Gregório foram colocadas as bases que a longo prazo permitiram à igreja ocidental sair da "era das trevas". Porém, como veremos adiante, a obra de Gregório levou séculos até chegar à sua expansão máxima, e os períodos de corrupção e obscurantismo foram mais freqüentes que os momentos breves de luz e reforma. Não faríamos justiça a todas as razões por que Gregório recebeu o tftulo de "0 Grande" se nos esquecêssemos de sua obra literária e teológica. Desde antes de ser papa ele tinha se dedicado ao estudo das Escrituras e dos antigos autores cristãos. Sendo papa, mesmo dedicando menos tempo a este estudo, produziu numerosos sermões e cartas, muitos dos quais ainda existem. Através destes escritos ele fez sentir seu impacto sobre todo o pensamento medieval. Gregório não era um pensador de altas esferas, nem um comentarista original das Escrituras. Pelo contrário, ele achava que dever-sé-Ia evitar por todos os meios possíveis o que parecia ser "original" ou "novo", pois não é tarefa do mestre cristão dizer algo novo, mas repetir o que a igreja tem ensinado desde seu nascimento, e por isso somente os hereges são autores ou pensadores originais. Quanto a si, Gregório se conformava em ser o porta-voz da antigüidade cristã, seu intérprete para tempos presentes. Bastava-lhe ser discípulo de Agostinho, e mestre dos ensinos deste. Porém os séculos não passam em vão. Um abismo enorme se abria entre o bispo de Hipona e seu intérprete de fins do sexto século. Apesar de toda sua sabedoria Gregório viveu em uma época de ignorância, e em certa medida tinha de participar desta ignorância. Além disto, somente por considerar Agostinho seu mestre infal ível Gregório já está torcendo o espfrito do seu venerado mestre, cujo gênio residia, pelo menos em parte, em sua mente inquieta e suas conjeturas arriscadas. O que para Agostinho não passava de suposição para Gregório passa a ser certeza. Assim, por exemplo, Agostinho se aventurara a dizer que talvez haja um lugar onde os que morrem em pecado tenham de passar por um pr cm,';() de purificação, antes de entrar na glória. Baseand S(' 111"0111
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conjetura de seu mestre, Gregório declara que indubitavelmente existe este lugar, e começa a desenvolver a doutrina do purgatório. Principalmente no que se refere à doutrina da salvação foi que Gregório deformou e até transformou os ensinos de Agostinho. As doutrinas agostinianas da graça irresistível e da predestinação passaram despercebidas nas obras de Gregono, que dedicou sua atenção à questão de como podemos oferecer a Deus uma satisfação pelos pecados que cometemos. Esta satisfação oferecemos através da penitência, que consiste em arrependimento, confissão e pena ou castigo. A estas três fases se junta 'a absolvição sacerdotal, que confirma o perdão que Deus já conferiu ao penitente. Os que morrem na fé e em comunhão com a igreja, mas não fizeram suficiente penitência por seus pecados, vão para o purgatório, onde passam algum tempo antes de ir para o céu. Uma das maneiras de os vivos ajudarem os mortos a saírem do purgatório é oferecer missas em seu nome. Para Gregório a missa é um sacrifício em que Cristo é imolado de novo (e diz a lenda que em certa ocasião em que esse papa celebrava a missa o Crucificado lhe apareceu). Esta idéia da missa como sacriffcio, que talvez poderia ser deduzida de alguns textos de Agostinho, mesmo que forçando-os, é parte fundamentai da devoção e da teologia de Gregório. Conta-se que quando Gregório ainda era abade de Santo André ficou sabendo que um dos seus monges, que estava à beira da morte, tinha escondido algumas moedas de ouro. A sentença do abade foi dura: o monge pecador morreria sem escutar umaI palavra de perdão ou çonsolo, e seria enterrado em um monte de esterco, junto com seu ouro. Depois de cumprida esta sentença, e para salvação da alma de Justo (este era o nome do monge), Gregório ordenou que durante os próximos trinta dias a missa do mosteiro fosse lida em memória a ele. Findado este pedodo o abade declarou que, de acordo com uma visão que o monge Copioso, irmão carnal do falecido, tivera, a alma de Justo tinha saído do purgatório e estava agora na glória. Tudo isto não foi invenção de Gregório. Era mais parte do ambiente e das crenças da época. Porém enquanto os anti-
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gos mestres da igreja haviam se esforçado para evitar que a doutrina cristã fosse contaminada com superstições populares, Gregório simplesmente aceitou todas as crenças, superstições e lendas da sua época como se fossem verdade evangélica. Suas obras estão cheias de narrações de milagres, aparições de defuntos, anjos e demônios, etc. Quando, com o correr do tempo, a produção literária de Gregório passou a ter a mesma autoridade infalrvel que tinha tido a de Santo Agostinho, boa parte das crenças populares do século sexto foi realmente incorporada à doutrina cristã. Os sucessores de Gregório
Os papas que seguiram a Gregório mostraram-se incapazes de continuar a sua obra. Seu sucessor imediato, Sabiniano, achou ser prudente vender a bom preço o trigo que Gregório tinha distribu ído gratuitamente. Quando os pobres se queixaram, dizendo que somente os ricos podiam comer, enquanto eles morriam de fome, Sabiniano começou uma companha de difamação contra Gregório, dizendo que ele tinha utilizado o patrimônio da igreja para se fazer popular. A reação foi que começou uma campanha pública contra o papa reinante. Pedro, o Diácono, admirador fiel de Gregório, declarou que, ainda em vida deste, tinha visto o Espírito Santo, em forma de pomba, sussurrando-lhe ao ouvido. (A partir de então, boa parte da iconografia cristã tem apresentado Gregório com uma pomba sobre seu ombro.) Quando Sabiniano morreu, antes de completar dois anos de pontificado, dizia-se que Gregório lhe tinha aparecido três vezes, sem que o papa lhe desse atenção, e que na quarta aparição o espírito de Gregório se enfureceu tanto que matou Sabiniano com um golpe na cabeça. O próximo papa, Bonifácio r II, conseguiu que o imperador Focas lhe concedesse o título de "bispo universal", que Gregório tinha recusado. Mais tarde outros papas cit arum este precedente para dizer que a igreja bizantina tumbóm chegou a reconhecer a supremacia de Roma. P rém o fato é que o imperador Focas, 'que deu este título a Honi f{ICio,era um usurpador, e que a única razão de ele honrar assim o papa era que ele estava aborrecido com o patriar éJ d· onstanti-
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nopla, que por algum tempo tinha se chamado de "bispo universal". Em todo caso o papado de Bonifácio III não durou um ano, e quando o imperador Focas morreu o patriarca de Constantinopla voltou a usar o cobiçado t(tulo.
Com base no testemunho de Pedro, o Diácono, a iconografia cristã representa Gregório com o Espírito Santo falando ao seu ouvido.
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De 607 a 625 houve uma sucessão de três papas que conseguiram restaurar parte da glória que o papado tinha perdido: Bonifácio IV, Deodato e Bonifácio V. Estes pontífices voltaram à vida austera que Gregório tinha levado, e em meio às vicissitudes da época puderam fazer algumas reformas na disciplina eclesiástica e organizar a igreja inglesa de acordo com os padrões romanos. Durante o próximo papado, entretanto, começaram a aparecer as conseqüências funestas da relação estreita que existia entre Roma e Constantinopla. Como' vimos no volume anterior, desde o tempo de João Crisóstomo os imperadores de Constantinopla tinham se acostumado a ter a última palavra em questões eclesiásticas. No Ocidente a situação era bem diferente, pois freqüentemente não houvera um poder civil efetivo. No século VII, já que não havia imperador no Ocidente, e a Itália estava na esfera de influência de Constantinopla, os imperadores orientais quiseram impôr sua vontade sobre os papas assim como o tinham feito com os patriarcas de Constantinopla. O papa Honório, sucessor de Bonifácio V, teve de enfrentar a questão do monotelismo, doutrina que discutiremos no próximo capítulo, e que o imperador Heráclio apoiava. Pressionado pelo imperador, o papa se declarou monotelista. Quando depois de muitas controvérsias a questão foi resolvida no concflio de Constantinopla, em 680, o papa Honório, que tinha morrido quarenta anos antes, foi declarado herege. Enquanto isto os sucessores de Honório tinham se mostrado mais firmes diante da doutrina monotelista e das pretensões imperiais. Só que tiveram de pagar um preço alto por esta firmeza. Durante o papado de Severino, em 640, o exarca de Ravena, que era o principal representante imperial na Itália, tomou Roma e se apossou dos tesouros da igreja. Uma parte da presa foi enviada para Constantinopla, e os clérigos que protestaram foram exilados. Pouco depois o papa Martim sofreu conseqüências semelhantes. Na época em Constantinopla reinava Constante II, que quis encerrar o assunto e simplesmente proibiu qualquer debate sobre ele. Ao papa isto pareceu ser uma usurpação de pod r por parte do imperador, e ele convocou um concflio quo SI
80/ A era das trevas reuniu em Latrão e condenou o monotelismo, em franca desobediência ao mandato imperial. O resultado foi que as tropas do exarcado de Ravena seqüestraram o papa, que foi levado para Constantinopla, e dali para o exílio, onde morreu. O monge Máximo, que tinha apoiado o papa decididamente, foi enviado ao exflio, depois de serem cortadas a I íngua e a mão direita dele, para que não pudesse difundir as suas supostas heresias. Depois desta mostra do poder imperial os sucessores de Martim obedeceram às ordens de Constante, e guardaram silêncio em relação ao monotelismo. Quando afinal o concílio de Constantinopla se reuniu em 680, isto foi possível porque as circunstâncias polfticas tinham mudado, e o novo imperador queria chegar a um acordo mais aceitável para a igreja ocidental. A isto seguiu um perfodo de paz entre Roma e Constantinopla, durante o qual a primeira se submeteu à segunda, ao que parece sem nenhum protesto. O confl ito entre o I mpério oriental e a igreja do Ocidente surgiu de novo quando do concíl io que o imperador Justiniano II convocou em fins do século VII, que é conhecido como concílio "em Trulho", por ter se reunido num dos salões do palácio imperial que recebia neste nome. Entre outras coisas tratou-se ali do casamento dos clérigos. Na época tinha se estabelecido o costume, tanto no Oriente como no Ocidente, de os clérigos serem proibidos de casar depois de sua ordenação. Porém enquanto no Oriente os homens casados tinham permissão de continuar a vida matrimonial depois da ordenação, no Ocidente em tais casos eles eram proibidos de qualquer ato sexual. O concflio em Trulha rejeitou o costume ocidental, declarando que não há base na Escritura para proibir aos clérigos casados que continuem tendo relações sexuais com suas esposas. O papa Sérgio se negou a aceitar as decisões do conc ílio, e insistiu em que todos os clérigos deveriam ser celibatários. Justiniano tentou tratá-lo assim como seu antecessor tinha tratado Martim; porém o povo romano se rebelou, e os oficiais imperiais teriam ficado em maus lençóis se o papa não tivesse intervindo junto ao povo, pedindo-lhe moderação. Justiniano se preparava para se vingar deste insulto quando foi deposto. Quando afinal conseguiu voltar ao trono, ele começou uma vingança sistemática contra todos que se tinham
() pepeda /81
oposto a ele no per íodo anterior. Como o papa ~rgio tinha morrido, e o imperador não podia se vingar dele, este insistiu em que o novo papa, Constantino, aceitasse os decretos do concüio em Trulho. Com este propósito em mente ele chamou o papa a Constantinopla. Dando provas de uma coragem fora do comum Constantino aceitou o convite do imperador. Não sabemos no que consistiram as conversações entre o imperador e o papa. O fato é que este último, apesar de ter de se humilhar diante do primeiro, voltou a Roma com o favor imperial, e não se viu obrigado a aceitar os decretos do discutido concílio. Pouco depois o imperador foi deposto e decapitado. Quando sua cabeça foi enviada a Roma, o povo a arrastou pelas ruas. O sucessor do papa Constantino,' Gregório II, também entrou em choque com a corte de Constantinopla. A causa das novas desavenças foi a questão das imagens, de que trataremos no próximo cap(tulo, que foi principalmente uma controvérsia dentro da igreja oriental. Uma vez mais, o papa recebia ordens do imperador, que lhe ditava o curso que deveria seguirem assuntos ao ,que parece puramente religiosos. Neste caso Ó imperador ordenou que nas igrejas as imagens dos santos não fossem majs veneradas. As razões pelas quais a corte bizantina se opunha às imagens serão discutidas mais adiante. Em todo caso o. que importa aqui é que houve de novo uma ruptura entre Roma e Constantinopla, pois o papa e seus seguidores se negaram a obedecer ao mandato imperial. Tanto Gregório II quanto seu sucessor, Gregório III, convocaram con-· cflios que se reuniram em Roma e que condenaram os "iconoclastas" (como eram chamados os que se opunham às imagens). O imperador, enfurecido, enviou uma grande esquadra contra Roma. Porém esta foi envolvida por uma grande tempestade, e boa parte da frota imperial naufragou. Pouco antes, os muçulmanos (de cujas conquistas falaremos em outro cap(tulo) tinham tornado várias das provfncias mais ricas do Império, e se apossado também de toda a costa sul do Mediterrâneo. Todos estes desastres marcaram o fim da influência de Constantinopla sobre o Mediterrâneo ocidental. Quanto ao que se refere ao papado, esta mudança de circunstâncias podemo" ver no fato de que, até Gregório" I, a eleição de um novo ll"lld
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não era considerada válida enquanto não ratificada pelo imperador ou por seu representante em Ravena. Depois de Gregório ninguém mais buscou esta ratificação. Esta nova situação fez necessária uma mudança radical na polf'tica internacional dos papas. Depois da destruição da frota bizantina, ao mesmo tempo que o papa se sentiu aliviado, pois a ameaça desaparecera, viu-se também assediado pelo crescente poder dos lombardos, que durante várias gerações vinham tentando transformar-se em donos absolutos da Itália. As tropas imperiais tinham sido o principal obstáculo às ambições dos lombardos. Agora que estas tropas tinham ido ernbo. ra, o que o papa podia fazer para impedir que seus antigos inimigos se apossassem de Roma? A resposta era clara. Além dos Alpes os francos tinham se transformado em uma grande potência. Pouco antes, seu chefe, Carlos Martel, tinha detido o avanço dos muçulmanos ao derrotá-los na batalha de Tours ou Poitiers. Então, por que não pedir a quem tinha salvo a Europa do islã que salvasse agora Roma dos lombardos? Este foi o pedido que Carlos Martel recebeu do papa, junto com a promessa de ser nomeado "cônsul dos romanos". Mesmo sendo impossfvel saber se Gregório se apercebeu da magnitude do passo que estava dando, fato é que naquela carta do papa ao mordomo do palácio dos francos vários precedentes estavam sendo criados. O papa estava se dirigindo a Carlos Martel e lhe oferecendo honras que tradicionalmente só o imperador ou o senado romano podiam outorgar, e o fazia sem consultar· Constantinopla. Gregório estava agindo mais como estadista autônomo do que como súdito do Império ou como Ifder espiritual. Por outro lado, com estas gestões entre Gregório e Carlos Martel estavam sendo dados os primeiros passos para o surgimento de uma Europa ocidental unida (pelo menos em teoria) sob um papa e um imperador. Nisto estavam as coisas quando morreram Gregório e Carlos Martel. Luitprando, o rei dos lombardos, tinha desistido de atacar os territórios romanos, talvez porque sabia das negociações empreendidas com os francos, e não queria provocar a inimizade de vizinhos tão poderosos. Porém quando Carlos Marte] morreu, seu poder foi dividido entre seus dois filhos, e Luiprando começou novamente a avançar contra Roma e Ravena.
o popedo
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o
novo papa, Zacarias, não tinha outro recurso que o prest(gio do seu cargo. Assim como Leão se pôs diante do avanço de Atila, Zacarias dispôs-se a enfrentar Luitprando face a face. A entrevista teve lugar na igreja de São Valentim, em Terni, e Luitprando devolveu ao papa todos os territórios recentemente conquistados, além de várias cidades que os lombardos já dominavam havia três décadas. Zacarias regressou a Roma em meio às aclamações do povo, que fez uma procissão de ação de graças até a basílica de São Pedro. Quando Luitprando atacou Ravena, Zacarias foi novamente falar com ele, e outra vez conseguiu uma paz vantajosa. Depois da morte de Luitprando, entretanto, seus sucessores estavam menos dispostos a se dobrarem diante da autoridade ou das súplicas do papa, e foi então que Zacarias concordou com a deposição do rei franco Childerico III, "0 estúpido", e com a coroação de Pepino, o filho de Carlos Martel (veja pg. 23). Deste modo continuava a pol ítica estabelecida por Gregório III, de se aliar com os francos diante da ameaça dos lombardos. Zacarias morreu no mesmo ano da coroação de Pepino (752), porém seu sucessor, Estêvão II, logo teve oportunidade para cobrar a d ívida de gratidão que o novo rei franco tinha contraído com Roma. Ameaçado pelos lombardos, Estêvão viajou até a França, onde ungiu de novo o rei e seus filhos, ao mesmo tempo que lhes suplicou ajuda contra os lombardos. Duas vezes Pepino invadiu a Itália para defender o papa, e na segunda vez lhe doou não só Roma e arredores, mas também Ravena e outras cidades que os lombardos tinham conquistado, e que tradicionalmente tinham sido governadas por Constantinopla. Apesar dos protestos do imperador, o papa e o rei dos francos não lhe deram ouvidos. O império Bizantino já não era uma potência digna de ser levada em conta no Mediterrâneo ocidental. E o papa agora era soberano temporal de boa parte da Itália. Isto era possível, pelo menos na teoria, porque o imperador que reinava em Constantinopla se tinha declarado contrário às imagens, e por isso não era necessário obedecer-lhe. Quando Estêvão morreu, seu irmão, Paulo, foi seu sucessor, e" ocupou a sede pontiHcia por dez anos, sempre sob a pro-
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teção de Pepino. Porém quando este papa morreu, um duque vizinho poderoso se apoderou à força da cidade e nomeou seu irmão Constantino papa. Este é um dos primeiros exemplos de uma situação que se repetirá através de toda a Idade Média. Já que agora o papado era uma possessão territorial, e além disto gozava de grande prestígio e autoridade em outras regiões da Europa, muitos o cobiçavam não por razões religiosas, mas puramente pol íticas. Como não havia um sistema de eleição rigorosamente estabelecido, não faltaram nobres das proximidades, ou famílias poderosas de Roma mesmo, que se apossaram do papado e o utilizaram para seus próprios fins. Neste caso, todavia, Constantino não pôde manter-se no poder, pois alguns romanos apelaram aos lombardos, que intervieram com as armas, depuseram o usurpador, e procederam a uma nova eleição. O papa eleito foi Estêvão III, que empreendeu uma vingança terrfvel contra os que tinham apoiado a usurpação, vazando-lhes os olhos, mutilando-os e encarcerando-os. Pouco depois morreu Pepino, o rei dos francos, e seus filhos Carlos (Carlos Magno) e Carlomão lhe sucederam, dividindo o reino. Quando Carlomão morreu em 771, Carlos Magno se apossou dos territórios do seu irmão, deserdando a seus sobrinhos. Isto não era totalmente irregular, pois entre os francos a coroa não era estritamente hereditária, mas eletiva. Apesar de o costume de herdar os territórios ter surgido através das gerações, quando da morte de Carlomão os nobres do seu reino deveriam pelo menos ter a chance de eleger seu sucessor ou sucessores. Carlos Magno fez isto, sabendo que os nobres do reino do seu falecido irmão preferiam a ele por rei aos fracos e inexperientes filhos de Carlomão. Estes se refugiaram na corte de Desidério, rei dos lombardos, que se fez defensor de sua causa. O resultado de tudo isto foi uma aliança ainda mais estreita entre o papa, na época Adriano, e Carlos Magno. Desidério decidiu aproveitar uma oportunidade em que Carlos Magno estava envolvido em outras guerras fronteiriças para atacar alguns dos estados pontifícios. Porém Carlos Magno atravessou inesperadamente os Alpes e infligiu tais derrotas aos lombardos que a força destes ficou seriamente abalada. m um ato solene Carlos Magno confirmou a doação de terri-
o papado
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tórios que seu pai Pepino tinha feito ao papa. Isto ocorreu no ano 774. A partir de então, Carlos Magno visitou por diversas vezes a cidade papal. Uma destas visitas teve lugar em fins de 800. O sucessor de Adriano, Leão III, tinha sido atacado fisicamente por uma das farn ílias poderosas de Roma, que desejava o papado para um dos seus membros. Leão atravessou os Alpes e pediu socorro a Carlos Magno, que voltou novamente a Roma, escutou os argumentos de ambas as partes, e se decidiu a favor do papa. No dia de Natal, Leão presidiu o culto solene, estando presentes Carlos Magno, toda sua corte e seus principais oficiais, bem como uma enorme multidão do povo romano. No fim do culto o papa tomou uma coroa, andou até. onde estava o rei, coroou-o, e proclamou: "Deus dê vida e vitória
ao grande e pacífico
imperador!"
Ao ouvir estas palavras todos os presentes irromperam em vivas e aclamações, enquanto o papa ungia o novo imperador. Era um ato sem precedentes. Até poucas gerações antes a eleição de cada novo papa não era válida enquanto não fosse confirmada pelo imperador de Constantinopla. Agora um papa se atrevia a coroar um rei com o tftulo de imperador. E o fazia sem consulta prévia ao Império Oriental. ~ impossível saber com certeza quais eram os propósitos especfficos de Leão ao outorgar a Carlos Magno a dignidade imperial. Uma coisa, porém, estava clara. Desde o tempo de Rômulo Augústulo não houvera imperador no Ocidente. Em teoria o imperador de Constantinopla o era de todo o I mpério Romano. Porém na verdade o governo imperial fora efetivo no Ocidente somente em algumas regiões da África e da Itália. E também nestas sua autoridade foi ignorada freqüentemente. Em tempos mais recentes os muçulmanos tinham conquistado os territórios imperiais da África, e por diversas razões a autoridade do imperador na Itália tinha sido limitada ao extremo sul da península. Agora, em virtude da acão de Leão, havia um imperador no Ocidente, e o papado se colocava definitivamente fora da jurisdição do Império do Oriente. Tinha nascido a cristandade ocidental.
IV A igreja oriental Quando não tenho livros, e quando meus pensamentos, que me torturam como espinhos, me impedem de desfrutar da leitura, vou à igreja, onde existe remédio para todas as enfermidades da- alma. As cores das imagens atraem meus olhos, cativám meus olhares ... e, sem eu sentir, levam minha alma a louvar a Deus.
.
João de Damasco
Durante os primeiros cap(tulos deste volume nossa atenção se dirigiu quase exclusivamente para o Ocidente, a região do Império Romano que falava principalmente O latim. Isto é justo, pois deste cristianismo ocidental é que quase todos nós, tanto católicos como protestantes, somos herdeiros. Por isso a maior parte da nossa narração tratará dele. Porém não devemos esquecer que, enquanto sucediam os acontecimentos a que temos nos referido, ainda existia uma igreja pujante na porção oriental do velho Império Romano. Foi nesta parte do Império, na Palestina, onde o cristianismo teve sua origem. Em Antioquia os seguidores do "caminho" foram chamados "cristãos" pela primeira vez. Em Alexandria se formou boa parte da teologia cristã antiga. A cidade de Constantinopla foi fundada para ser uma nova Roma cristã. Portanto, fadamos mal se esquecêssemos a história desta parte tão importante da igreja cristã. Como veremos neste cap ítulo, e através de toda nossa história, o cristianismo oriental logo desenvolveu caracter(sticas muito distintas das do Ocidente. Já que o Império continuou existindo no Oriente por mais mil anos depois que os bárbar s
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destru(ram O Império do Ocidente, não houve ali o vazio de poder que papas como Gregório, o Grande, preencheram no Ocidente. Isto, por sua vez, quer dizer que o estado teve quase sempre um dom (nio efetivo sobre a igreja. No volume anterior vimos a trágica história de João Crisóstomo, em seus conflitos com a coroa. Esta história é um exemplo das relações entre igreja e estado que prevaleceram durante séculos no Império Bizantino. O imperador tinha a última palavra, não só em assuntos civis e administrativos, como também em questões de doutrina. A conseqüência imediata disto foi que os debates doutrinários, que sempre tinham sido mais ativos no Oriente que no Ocidente, ficaram cheios de intrigas. O partido que ganhava conseguia que seus opositores fossem depostos e exilados. Para triunfar no debate o importante não era tanto ter razão, como ter o apoio do imperador e dos seus ministros. Não faltaram casos em que os contendores fizeram uso direto da violência. E as questões que eram debatidas se tornaram cada vez mais detalhadas e abstratas. Tudo isto, entretanto, não nos deve fazer pensar que o que acontecia no Oriente não tinha importância. Durante o perfodo que estamos estudando, a igreja ainda era unida, e mesmo que aos historiadores possa parecer que já existiam diferenças marcantes entre Oriente e Ocidente, aos que coube viver naqueles tempos parecia que o mais importante era a unidade da igreja, apesar destas diferenças, Por isso, os debates teológicos que estudaremos neste cap(tulo, se bem que tiveram lugar principalmente no Oriente, nunca sacudindo verdadeiramente a igreja ocidental, foram de grande importância para toda a igreja, e podemos sentir seu impacto até os nossos dias. Mais tarde tanto a igreja ocidental como a oriental aceitavam o resultado final destas controvérsias. Esboço dos sete primeiros concilios Em termos gerais podemos dizer que estes debates teológicos tiveram por pontos culminantes os sete primeiros conc ílios ecumênicos. No volume anterior tratamos dos dois primeiros. Porém em todo caso, como esboço do que já dissemos e do que segue, trazemos aqui a seguinte lista daqueles primeiros concflios, com suas respectivas datas:
A igruju (}/ /,,, (II
1) Nicéia 2) Constantinopla 3) !:feso 4) Calcedônia 5) II Constantinopla 6) III Constantinopla 7) II Nicéia
119
325
381 431 451 553
680-681 787
Como vemos, a narração dos debates que tiveram lugar ao redor destes concf'lios nos levará aproximadamente à mesma data em que deixamos nosso relato no. Ocidente, ou seja, a coroação de Carlos Magno como imperador no ano 800. Os dois primeiros concílios, de Nicéia e Constantinopla, trataram principalmente da controvérsia ariana, que discutimos no volume anterior. O leitor se lembrará que esta controvérsia se referia à relação entre o Pai e o Filho ou Verbo (e, em suas etapas finais, o Espírito Santo). O resultado deste debate foi a promulgação da doutrina trinitária pelos concílios de Nicéia e Constantinopla. O tema que a partir de então ocupará a atenção dos teólogos, e que irá definir todos os concüios, até o sexto, se relaciona estreitamente com o anterior, e consiste no modo com que a humanidade e a divindade se relacionam em Jesus Cristo. Em outras palavras, enquanto que na controvérsia ariana o debate era principalmente trinitário, neste novo pedodo o debate será cristológico. Por último, o sétimo concílio ecumênico tratará das imagens. Passemos, então, a discutir a progressão das controvérsias cristológicas. Apolinário e o concílio de Constantinopla
As controvérsias cristológicas tinham profundas raízes nas diferentes maneiras de encarar a fé cristã e a tarefa da teologia. Já no primeiro volume desta história vimos que desde épocas muito antigas começaram a surgir diferentes tipos de teologia em diferentes regiões do Império. No Oriente podemos descrever estas duas posições referindo-nos a duas grandes cidades que desde tempos antigos tinham sido principais centros da
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atividade teológica: Antioquia e Alexandria. Isto não quer dizer, naturalmente, que em cada uma destas cidades todos pensavam igual. Por exemplo: sempre houve em Antioquia os que se aproximavam mais da perspectiva alexandrina que da antiocana. Porém em termos gerais, para esclarecer a situação, a distinção entre a teologia de Antioquia e a de Alexandria é válida. Em Alexandria, pelo menos desde tempos de Clemente até fins do século segundo, os teólogos cristãos tinham interpretado sua fé à luz da tradição platônica. Para eles o importante era descobrir as verdades eternas, assim como Platão tinha tentado conhecer o mundo das idéias imutáveis. O cristianismo era acima de" tudo a verdadeira filosofia, superior ao platonismo, não porque fosse diferente deste, mas porque o superava. A B(blia era um conjunto de alegorias em que o leitor instru ído poderia descobrir as verdades eternas. Deste ponto de vista, ao tratar da pessoa de Jesus Cristo, o que importava aos teólogos alexandrinos era sua função como mestre das verdades eternas, como revelação do Pai inefável. Sua humanidade não passava de instrumento através do qual o Verbo divino se comunicava com os seres humanos. Por isso, os teólogos alexandrinos davam ênfase especial à divindade de Jesus Cristo. Em Antioquia o cristianismo era visto de outro modo. Antioquia ficava perto da Palestina, e tanto na cidade como em suas vizinhanças havia muitos judeus que constantemente serviam de advertência aos cristãos, lembrando-os do sentido literal e histórico das Escrituras. As terras em que Jesus tinha vivido e caminhado estavam próximas, e por isso não era poss(vel prescindir do Jesus histórico ou relegá-lo a segundo plano. Além disso desde tempos antiqüíssimos os intérpretes antiocanos tinham encarado a Bíblia não como conjunto de alegorias, mas como uma narração que contava as relações de Deus com seu povo e sua criação. Para eles isto era mais importante que as verdades eternas. Jesus não viera tanto para nos revelar princfpios antes desconhecidos, quanto iniciar uma era nova, com uma humanidade nova: a igreja. Séculos antes Irineu tinha dito que desde o in ício da criação Deus tivera o propósito de se unir à humanidade, e que agora o fizera em Jesus Cristo,
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para que todos os seus seguidores, nós, pudéssemos nos unir com Deus. Desta perspectiva, ao falar da pessoa de Jesus Cristo, o importante não era sua função como mestre de verdades eternas, ou como revelação do Pai inefável, mas sua realidade histórica, sua humanidade, que era como a nossa. A mensagem cristã consistia precisamente em que agora, em Jesus Cristo, Deus tinha se unido à humanidade. Por isso os teólogos antiocanos se sentiam obrigados a rejeitar toda interpretação da pessoa de Cristo que, de um ou outro modo, negasse ou ocultasse a realidade da sua humanidade. Por outro lado, muito antes de começarem as controvérsias que vamos estudar agora, a igreja tinha rejeitado qualquer posição extrema que negasse ou a humanidade ou a divindade de Cristo. O docetismo, por exemplo, dizia que o Salvador era um mensageiro vindo do alto, cuja carne humana era pura aparência. E através de todo o século segundo os escritores cristãos se esforçaram por rejeitar esta interpretação da pessoa de Jesus Cristo, que fazia dele um ser divino, sem humanidade. No outro extremo havia os que negavam a divindade do Salvador, dizendo que ele era "puro homem". Um destes teólogos, Paulo de Samosata, que foi bispo de Antioquia na segunda metade do século terceiro, foi condenado e deposto precisamente por dizer que Jesus Cristo era "puro homem", e que nele não habitava o próprio Deus, mas o "poder" impessoal de Deus. Portanto quando estas controvérsias começaram havia certos limites traçados de antemão. Todos concordavam que Jesus era tanto divino como humano. Quem negasse um destes elementos simplesmente seria declarado herege, e não provocaria nenhum debate. As controvérsias não tratavam da questão se Jesus era ou não divino, nem com o assunto de se ele era humano ou não, mas com a questão de como ou em que sentido Jesus era tanto humano como divino. As controvérsias cristológicas começaram quando ainda se debatia a questão ariana. O concílio de Nicéia tinha condenado o arianismo, porém este tinha conseguido sobreviver, e os melhores teólogos se esforçavam em refutá-lo. Um destes teólogos era o bispo Apolinário de Laodicéia, amigo de Atanásio' e, ao que parece, também de Basflio de Cesaréia. Apolinário
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começou refutando um dos argumentos dos arianos, que diziam que se o Verbo era verdadeiramente Deus eterno e imutável não se explicava como ele podia se unir à humanidade em Jesus Cristo. Ap6'linário respondeu que em Jesus Cristo o Verbo divino tinha tomado o lugar da alma racional. Expliquemos isto. Nesta época todos concordavam que em qualquer ser humano existia além do corpo e da "alma animal" (isto é, o princípio que dá vida ao corpo), a "alma racional". Esta é a sede do intelecto e da personalidade, que pensa, lembra e toma decisões. Sobre esta base Apolinário disse que, enquanto Jesus tinha um corpo verdadeiramente humano, movido pelos impulsos que movem _a qualquer corpo humano (a "alma animai"), sua mente era puramente divina. Nele o Verbo ocupava o lugar que nos demais seres humanos tem a alma racional. Apesar de esta explicação, à primeira vista, parecer ser satisfatória, logo houve quem percebesse seus perigos. Um corpo humano com mente e personalidade puramente divinas não é verdadeiramente um ser humano. Além disso os teólogos antiocanos não viam como tal pessoa poderia ser o Salvador que eles proclamavam. Do ponto de vista alexandrino esta explicação era aceitável, pois o Jesus de Apolinário poderia ser pefeitamente um mestre divino que utilizava seu corpo humano para trazer uma mensagem ao mundo. Porém do ponto de vista antiocano a situação era muito diferente. Se a salvação se baseia no fato de Deus, em Cristo, ter tomado a nossa humanidade, para assim nos salvar, como pode nos salvar um Jesus em quem Deus assumiu somente o corpo humano, e não a alma racional? Não é na alma que estão os piores pecados humanos? ~ o corpo ou a alma que odeia, cobiça e deseja o mal? Para salvar o ser humano em sua totalidade o Verbo deve se unir a um ser humano completo. Isto, Gregório de Nazianzo (o mesmo de que falamos no volume anterior) expressou, quando disse: Se alguém crê nele (Jesus Cristo) como ser humano sem razão humana, este é quem não tem razão, e não é digno da salvação. Porque ele não salvou o que não assumiu. O que ele salvou é o que também uniu à sua divindade. Se somente a metade de Adão caiu, então é possfvel que o que Cristo assumiu e salvou seja somente a metade.
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Porém se toda a natureza caiu, é necessário que toda ela seja unida à totalidade do Verbo, a fim de ser salva como um todo (Epístola 101). A controvérsia durou alguns anos, porém os argumentos dos antiocanos eram tão fortes que no fim Apolinário e seus seguidores seriam condenados. Em Roma o bispo Damásio e outros bispos do Ocidente condenaram as doutrinas de Apolinário, concordando com os antiocanos em que esta explicação destruiria a doutrina cristã da salvação. O cronista Epifânio nos conta de um sínodo reunido em 374, no qual foi adotado um credo muito semelhante ao de Nicéia, porém que dizia o seguinte, com referência à encarnação: "Foi feito homem, ou seja, homem perfeito, com alma, corpo e intelecto, e com tudo que faz parte de um ser humano". Por fim o concflio de Constantinopla do ano 381 (o mesmo que terminou com a controvérsia ariana) condenou o apolinarismo. A igreja tinha-decldido que a cristologia alexandrina em sua forma extrema não era aceitável.
Nestor e o concílio de Éfeso O próximo episódio das controvérsias cristológicas teve lugar ao redor da pessoa de Nestor, que finalmente foi condenado no terceiro condlio ecumênico, que se reuniu em ~fp.so em 431. Nestor era um partidário da escola de Antioquia, e tinha sido feito patriarca de Constantinopla em 428. Politicamente sua situação era diffcil, pois o patriarcado de Constantinopla tinha se transformado em motivo de discórdias entre os patriarcas de Alexandria e Antioquia. O concílio de Constantinopla tinha declarado que esta cidade teria no Oriente uma precedência semelhante à que a velha Roma gozava no Ocidente. Isto era nada mais que o reconhecimento da realidade pol (tica, pois Constantinopla era a capital do Império Oriental. Porém os patriarcas de Alexandria não se contentaram com esta postergação, principalmente porque tradicionalmente Constantinopla tinha estado mais perto de Antioquia em suas posições teológicas, razão pela qual muitos dos patriarcas de Constantinopla eram aliados dos de Antioquia. Por isso
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quando Nestor ascendeu ao patriarcado de Constantinopla, era de se esperar que contaria com a oposição dos alexandrinos. O motivo imediato da controvérsia foi o termo theotokos, que era usado para a Virgem Maria. Theotokos, geralmente traduzido por "mãe de Deus", literalmente quer dizer "genitora de Deus". Como a nós protestantes muitas vezes parece que se trata aqui de um dos temas que estamos acostumados a discutir com os católicos rom-anos, convém que nos detenhamos para esclarecer o que era discutido. A controvérsia não era de caráter mariológico, mas cristológico. Não estava em jogo quem era a Virgem Maria, ou que honras lhe eram devidas, mas quem era o que tinha nascido de Maria, e como dever-se-ia falar dele. Os antiocanos temiam que, se se falasse de uma união muito estreita entre a humanidade e a divindade de Jesus Cristo, esta última chegaria a eclipsar a primeira, de modo que ficaria perdido o sentido da verdadeira e total humanidade do Salvador. Por isso Nestor cria que havia certas coisas que deviam ser ditas sobre a humanidade de Jesus Cristo, e outras sobre sua divindade, e que estas coisas não deveriam ser confundidas. Por essa razão, quando seu capelão Anastácio atacou o uso do termo theotokos, dizendo que quem nascera de Maria não fora Deus, mas a humanidade de Jesus, Nestor o apoiou. O que Anastácio e Nestor estavam atacando não era uma idéia demasiado elevada de Maria, mas a confusão entre divindade e humanidade que parecia seguir ao termo theotokos. Ao explicar sua oposição a este termo Nestor dizia que em Jesus Cristo Deus tinha se unido a um ser humano. Como Deus é uma pessoa, e o ser humano é outra, em Cristo devem estar presentes não só duas naturezas, mas também duas pessoas. O que nasceu de Maria foi a pessoa e natureza humana, e não a divina. Por isso a Virgem é Christotokos (genitora de Cristo), e não theotokos (genitora de Deus). A união que existe entre estas duas pessoas não é uma confusão, mas uma conjugação, um acordo ou uma "união moral". Foram mu itos os que reagiram negativamente diante desta doutrina. Se em Jesus Cristo não há mais que um acordo ou uma conjugação entre Deus e o ser humano, que importância a encarnação tem para a salvação? Se não podemos dizer que Deus nasceu de Maria, podemos dizer que Deus habitou entre
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nós? Podemos dizer que Deus falou em Jesus Cristo? Podemos dizer que Deus sofreu por nós? Quando levada à suas últimas conclusões a cristologia de Nestor parecia estar negando os próprios fundamentos da fé cristã.
Cirilo, que na época ocupava o patriarcado hábil que Nestor.
de Alexandria, era
IIIII/tO
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Como era de se esperar o centro da oposição a Nestor foi Alexandria. Cirilo, que na época ocupava o patriarcado desta cidade, era muito mais hábil que Nestor, tanto política quanto teologicamente. Depois de se assegurar que contava com o apoio do papa, para quem a doutrina das duas pessoas em Cristo era anátema, Cirilo se lançou ao ataque. Depois de uma série de cartas e de outras gestões, a controvérsia chegou a tal ponto que os imperadores Valentiniano III e Teodósio II decidiram convocar um conc ílio ecumênico, chamando os bispos à cidade de Éfeso no dia 7 de junho de 431. O debate prometia ser acalorado, pois o papa e o patriarca de Alexandria tinham se declarado contrários a Nestor, enquanto que o patriarca de Antioquia, João, o defendia. Quando chegou o dia em que o condlio deveria se reunir, Cirilo tinha chegado, acompanhado de diversos bispos egípcios, e de monges decididos a defender a todo custo a doutrina alexandrina. Porém João de Antioquia não chegou a tempo, e os enviados do papa também estavam atrasados. Por fim, após esperar até 22 de junho, Cirilo decidiu começar as sessões do condlio, apesar da oposição do legado papal e de outros setenta e oito bispos. O concílio tratou rapidamente do caso de Nestor, e, sem lhe dar oportunidade para se defender, o condenou como herege e o declarou deposto. Poucos dias depois chegaram João de Antioquia e os seus, que, ao saber do que tinha sucedido, simplesmente se constituíram em um concílio à parte e condenaram a Cirilo, enquanto absolviam Nestor. Quando chegaram os enviados do papa o concüio de Cirilo (que em todo caso contava com a maioria dos bispos presentes) se reuniu de novo e condenou não só a Nestor, mas também a João e a todos que tinham participado do seu concílio. Diante de tais resultados, Teodósio II interveio no debate e encarcerou tanto a Cirilo quanto a João. A isto seguiu uma longa e complicada série de negociações, até que por fim, no ano 433, João e Cirilo entraram em acordo, com uma "fórmula de união". Enquanto isso Nestor foi deposto e enviado a um mosteiro de Antioquia. Mais tarde ele foi transferido para distante cidade de Petra, e por fim para um oásis no deserto da Ubia, onde passou o resto de seus dias.
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Como resultado destas negociações o concílio de Cirilo foi declarado válido, e por isso o título de tbeotokos, aplicado a Maria, tornou-se parte da doutrina da igreja e sinal de ortodoxia, tanto no Oriente quanto no Ccidente. Antes de passar para o próximo episódio nesta série de controvérsias, devemos observar que a maioria dos refor madores protestantes do século XVI, ao mesmo tempo que lamentava o excessivo culto a Maria na igreja que queriam reformar, aceitava como válido o terceiro concílio ecumênico, estando, portanto, disposta a chamar Maria de "mãe de Deus". Isto os reformadores faziam porque perceberam que o que foi descutido no século quinto não era que lugar a devoção a Maria deveria ter na vida cristã, mas a relação entre a humanidade e a divindade de Jesus Cristo.
Êutico e o concílio de Calcedônia O segundo episódio na longa série de controvérsias cristológicas tinha terminado com uma grande vitória de Alexandria, pois o antiocano Nestor tinha sido condenado como herege e enviado para o exílio. Porém quando em 444 Dióscoro sucedeu a Cirilo no patriarcado, de Antioquia a querela estava prestes a explodir de novo. Dióscoro era um homem ambicioso que queria se assegurar do triunfo definitivo e esmagador de Alexandria sobre suas rivais Antioquia e Constantinopla, e que quase conseguiu o que queria. Desta vez o conflito se centralizava na pessoa de ~utico, um monge de fortes convicções alexandrinas que morava em Constantinopla. O novo patriarca desta capital era Flaviano, diante de quem Êutico foi acusado de heresia por se negar a aceitar, e até atacar abertarnente. certas frases da fórmula de união de 433. O que ~utico negava era que Jesus existia "em duas naturezas depois da encarnação", e que fora, por causa da sua humanidade, "consubstancial conosco". Ao que 'parece Êutico se atrevia a atacar abertamente a fórmula de união porque contava com o apoio de Dióscoro e do grande capelão Crisápio. Esta último era quem na verdade regia os destinos do I mpério, pois Teodósio II não se ocupava dos assuntos do governo, deixando-os nas mãos do seu grande capelão. Sabendo que os que o apoiavam eram poderosos, Êutico se apre-
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sentou com arrogância diante do sínodo que tinha sido convocado por Flaviano para tratar das acusações que eram feitas contra ele. O que Éutico não sabia era que na verdade Dióscoro queria que o sínodo o condenasse, para ter assim uma causa que defender contra Flaviano. Portanto, enquanto Éutico cria que as autoridades imperiais estavam a seu favor, estas tinham instruções de garantir que o s(nodo o condenasse. Assim foi, e então Dióscoro saiu em sua defesa, dizendo que Flaviano tinha agido injustamente. Logo o caso de l:utico se transformou em motivo de discórdia em toda a igreja. Tanto ele quanto Flaviano escreveram a Leão, o Grande, que na época era papa, um para apelar contra a decisão do s(nodo que tinha condenado, e outro para lhe dar not(cias deste sfnodo e das doutrinas de l:utico. Ao mesmo tempo Dióscoro acusava de heresia todos os que safam em defesa de Flaviano. Parece que passou ouro alexandrino das mãos de Dióscoro para as de Crisápio. Em todo caso, o imperador por fim convocou um novo conc ílio, que deveria se reunir em ~feso em 449. Desde seu ínfcio podia-se ver que o concflio estava em mãos de Dióscoro. Dois dias antes de começarem as sessões, o imperador, instalado por Crisápio, nomeou Dióscoro presidente destas, e lhe deu autoridade para fazer calar a qualquer um 'que ousasse falar contra a fé da igreja. O resultado foi o que o papa Leão chamou, com toda a razão, de "latrocínio". Dióscoro não deu permissão de falar a ninguém que se opunha à doutrinas de ~utico. Quando os enviados de Leão quiseram ler uma carta que o papa tinha escrito, dando a conhecer seus apoio à condenação de Éutico, Dióscoro não o permitiu. Flaviano quis se defender, mas os partidários de Dióscoro bateram e pisaram nele com tal violência que morreu poucos dias depois. A doutrina de acordo com a qual havia "duas naturezas" em Cristo foi condenada, e todos os principais expositores da teologia antiocana foram declarados hereges e depostos. Por último, para ter certeza de que sua vitória seria definitiva, Dióscoro e os seus decretaram que dali em diante não podiam ser ordenados os que apoiassem as heresias de Nestor e Flaviano (que para Dióscoro eram a mesma coisa). Ao ficar sabendo dos decretos do concílio de Éfeso o papa
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Leão se negou a aceitá-los. Na sua opinião o suposto condlio não passava de um "conciliábulo de ladrões". Porém todas as suas gestões foram em vão. Teodósio II e Crisápio davam a questão por encerrada, e estavam perfeitamente contentes com o resultado do concílio. Assim estavam as coisas quando aconteceu o inesperado. O imperador, que era um excelente cavaleiro, sofreu um acidente eqüestre e morreu. A ele sucedeu sua irmã Pulquéria, que se casou com o militar Marciano, e governou com ele. Pulquéria era uma mulher forte, que tinha dado tais mostras de habilidade no manejo dos assuntos imperiais que muitos estavam convictos que ela poderia governar com firmeza e justiça. Pouco antes de morrer, Teódosio a tinha expulsado da corte, provavelmente porque ela se opunha às maquinações de Crisápio. Durante o per(odo imediatamente depois do "latrocfnio" de Éfeso ela foi uma das principais defensoras da posição de Leão. Agora que coube a ela governar, ela se dedicou, junto com seu esposo, a desfazer o que Teódosio, Crisápio e Dióscoro tinham feito. Os bispos depostos foram novamente instalados em suas dioceses, os restos de Flaviano foram colocados na basflica dos Apóstolos" com uma grande cerimônia. Muitos dos bispos que antes tinham seguido as diretrizes de Dióscoro viram que agora sopravam ventos novos, e mudaram de posição teológica. Pulquéria e Marciano acabaram por convocar um grande condlio que deveria se reunir em Nicéia em 451, porém, por uma série de circunstâncias, st!' reuniu em Calcedônia. Este é o concílio que geralmente recebe o título de quarto condlio ecumênico. Para este vieram 520 bispos, número maior que o de qualquer concílio anterior. O novo conctlio logo condenou a ~utico e Dióscoro, enquanto perdoava os demais participantes do "Iatrodnio" de ~feso. A carta que Leão tinha escrito a Flaviano, e que Dióscoro não deixara que fosse lida em Éfeso, foi lida, e muitos dos presentes declararam que nesta carta sua própria fé estava exposta. O que Leão dizia nela era em essência o mesmo que Tertuliano tinha dito séculos antes: em Cristo há duas naturezas, a humana e a divina, unidas em uma só pessoa. A partir de então a carta de Leão, a Epístola dogmática, gozou de grande autori-
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dade em quase toda a igreja cristã, e ele foi considerado como expositor fiel da cristologia ortodoxa. Depois de vários obstáculos de caráter legal, os bispos reunidos em Calcedônia redigiram afinal a Definição de fé, que provavelmente é o ponto culminante de toda esta série de acontecimentos, e que é aceita até o dia de hoje pela maioria das igrejas. Esta Definição, que à primeira vista parece excessivamente complicada e até contraditória, somente pode ser compreendida se a lermos à luz da história que narramos, pois nela aparece uma série de frases cujo propósito é reafirmar a condenação das diversas heresias que até este momento tinham sido rejeitadas. Diz assim: "Seguindo, pois, os santos Pais, ensinamos todos a uma voz que deve ser confessado um e o mesmo Filho, nosso Senhor jesus Cristo, o qual é perfeito em divindade e perfeito em humanidade; verdadeiro Deus e verdadeiro homem, de alma racional e corpo; consubstancial com o Pai de acordo com a divindade, e assim mesmo consubstanciai conosco, de acordo com a humanidade; semelhante a nós em tudo, porém sem pecado; gerado pelo Pai antes dos séculos de acordo com a divindade, e nos últimos dias, por nós e nossa salvação, da Virgem Maria, mãe de Deus (theotokos), segundo a humanidade; um e o mesmo Cristo Filho e Senhor Unigênito, em duas naturezas, sem confusão, sem mutação, sem divisão, sem separação, e sem que desapareça a diferença das naturezas por causa da união, mas mantendo as propriedades de cada natureza, e unindo-as em uma pessoa e hipóstasis; não dividido ou partido em duas pessoas, mas um e o mesmo Filho Unigênito, Deus Verbo e Senhor jesus Cristo, como foi dito acerca dele pelo profetas de antigamente e o próprio jesus Cristo nos ensinou, e o Credo dos Pais nos transmitiu. A leitura desta Definição mostra claramente que seu propósito não é resolver a questão de como se unem em Jesus Cristo a divindade e a humanidade, mas evitar que a igreja volte a cair em alguns erros em que outros já tinham caído. Por isto o termo "definição" cabe muito bem. Não se trata de uma explicação do mistério da encarnação, mas de uma
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definição, isto é, de uma série de limites que são estabelecidos, dentro dos quais pode haver diversas posições ortodoxas. E
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Alguns monges participaram ativamente das controvérsias teológicas. Um dos mais famosos foi Simeão, o escriba, que do alto da sua coluna defendia a doutrina ortodoxa diante de seus milhares de visitantes.
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assim quase toda a igreja cristã a aceitou e utilizou durante os séculos. Por outro lado é válido perguntar se esta Definição não está muito distante do tom simples dos evangelhos. A resposta a esta pergunta tem de ser afirmativa, mesmo que também tenhamos de concordar que isto não foi culpa dos bispos reunidos em Calcedônia, mas mais o resultado do modo com que fora iniciado o problema cristológico. Como dissemos anteriormente, desde tempos relativamente antigos a igreja começou a fazer uso do que os filósofos tinham dito sobre o Ser Supremo para entender a doutrina de Deus. O problema está em que esta idéia filosófica do Ser Supremo consiste exatamente na negação de tudo que é humano, Assim chegou-se a conceber a divindade como algo radicalmente oposto à humanidade. Como, porém, a principal doutrina cristã era precisamente que Deus se fez homem em Jesus Cristo, isto levou os teólogos a se perguntarem como poderia a divindade se unir à humanidade, ambas concebidas em termos de oposição mútua. Se a igreja tivesse seguido não a doutrina dos filósofos, mas o modo de encarar a Deus de pessoas como Irineu, talvez o curso do desenvolvimento cristológico tivesse sido outro. Em todo caso, dadas as circunstâncias, temos de dizer que a Definição de Calcedônia era o melhor modo possível de afirmar a mensagem cristã da presença de Deus em Cristo. Depois do concüio de Calcedônia houve muitos que não estiveram satisfeitos com seus resultados. Estas pessoas receberam o nome de "monofisitas", derivado de duas raízes gregas que querem dizer "uma só natureza". Receberam este nome porque se negavam a aceitar a doutrina das duas naturezas em Cristo. Já que os concflios supostamente "ecumênicos" na verdade não representavam o que sentiam igrejas que existiam fora das fronteiras do Império, logo houve algumas destas igrejas que se negaram a aceitar o cc-rc ílio de Calcedônia, e que por isso receberam o nome de "monofisitas". Outras, que se negaram a aceitar o terceiro concílio ecumênico (Éfeso, 431), foram chamadas de "nestorianas". Destas igrejas falaremos no próximo capf tulo, que é todo ele dedicado ao cristianismo fora ti. 1'. f, on tciras do Império.
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Os três capítulos e o segundo concílio de Constantinopla A Definição de Calcedônia não pôs fim aos debates sobre a pessoa de Jesus Cristo. A causa disto em parte é que houve muitas pessoas, mesmo dentro dos limites do Império, que não a aceitavam. No Egito, Dióscoro logo foi considerado mártir, e sua doutrina, a única ortodoxa. Também na Síria o monofisismo ficou cada vez mais popular. Os historiadores ainda debatem as razões pelas quais o concílio de Calcedônia não obteve o apoio destas regiões, mas parece provável que ao menos uma das razões foi que muitas pessoas, tanto na Sfria como no Egito, se consideravam alheias aos interesses do Império, e que sua posição à pol (tica oficial tomou a forma de oposição à teologia oficial do governo de Constantinopla. Em todo caso, os imperadores logo se viram na necessidade de atrair de novo esta gente que não via com bons olhos as decisões do concflio de Calcedônia. Egito e Sfria eram das províncias mais ricas do Império, e era necessário acalmar a inquietação religiosa que fervia ali. Por éstas razões foram vários os imperadores que tentaram ganhar o apoio dos monofisitas. Repetidamente esta pol Itica acabou sendo desastrosa, porque os descontentes da Sfria e do Egito o eram por causas sociais, pol (tícas e econômicas, e sua lealdade não podia ser conquistada com fórmulas teológicas, enquanto as causas da intranqülidade não fossem eliminadas. Ao mesmo tempo a pol (tica imperial alienou muitos súditos fiéis, a maioria dos quais aceitava e defendia as decisões de Calcedônia. O primeiro imperador que interveio diretamente no debate foi Basilisco, que tinha destronado seu predecessor Zenom. Em 476, ou seja, vinte e cinco anos depois do concüio de Calcedônia, Basilisco publicou um edito em que convocava um novo concflio, anulando as decisões do de Calcedônia. O 'conc(lio convocado por Basilico nunca teve lugar, pois pouco depois de seu edito Zenom recuperou o trono. O '--próprio Zenom tentou conquistar a boa vontade dos monofisitas mais moderados, ao publicar em 482 em "edito de união", o Heniticom. Para isto ele contava com o apoio do patriarca Acácio de Constantinopla, que tinha merecido o respeito dos defensores de Calcedônia por opor-se ao edito
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de Basilisco. A solução de Zenom consistia em chamar todos os cristãos à antiga fé em que todos concordavam, assim como esta tinha sido proclamada nos primeiros concüios ecumênicos. Este edito de Zenom, entretanto, em lugar de promover a unidade de toda a igreja, a dividiu ainda mais. Entre os opositores a Calcedônia, que, como vimos, recebiam em conjunto o nome de "monofisitas", havia alguns que insistiam mesmo na natureza única do Salvador, que, em virtude da encarnação, a humanidade de Cristo estava absorvida pela divindade, de tal modo que era errado falar da humanidade de Cristo como tal. Porém havia outros cuja fé se aproximava muito da Calcedônia, e que se opunham às decisões deste conctlio porque, na sua opinião, este deixava as portas abertas para as doutrinas de N~stor. O edito de Zenom, que rejeitava claramente o nestorianismo, agradou a estes últimos, que o aceitaram, enquanto que os verdadeiros monofisitas, que não se podiam dar por satisfeitos enquanto a doutrina das "duas naturezas" não fosse condenada, o rejeitaram. O edito de Zenom, portanto, dividiu os monofisitas entre si. Muito mais sério, porém, foi o cisma que este edito ocasionou na igreja do Ocidente. O papa Félix III se opôs ao edito imperial por duas razões. Em primeiro lugar, ele não mencionava a doutrina das duas naturezas de Cristo, o que tinha sido o ensino da igreja ocidental desde tempos antigos, e que era o cerne da Epístola dogmática de Leão. Em segundo lugar, o papa insistia em-que o imperador não tinha autoridade para julgar matéria doutrinária. O resultado foi que Félix excomungou o patriarca Acácio, com quem tinha conflitos por outros motivos. Este é o chamado "cisma de Acácio", que manteve as igrejas do Oriente e do Ocidente separadas até o ano 519, quando o imperador Justino e o papa Hormisdas chegaram a um acordo que confirmou a autoridade do concüio da Calcedônia e da Epístola Dogmática de Leão. Além disto todos os bispos que tinham sidos depostos por se negarem a aceitar o edito de Zenom foram restaurados. Quando Justino morreu em 527 sucedeu-lhe seu sobrinho Justiniano. Este acabou sendo um dos imperadores bizantinos mais hábeis de toda a Idade Média. Seu grande sonho era restaurar o Império Romano à sua unidade e grandeza perdidas.
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o império
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de Justiniano
Durante seu reinado os generais Belisário, Narses e outros empreenderam campanhas que devolveram ao Império Romano as costas da África e da Espanha, bem como os territórios que os godos tinham ocupado na Itália. Mais uma vez o Mediterrâneo se transformou em um lago romano {apesar de os governantes que se chamavam de "romanos" viverem em Constantinopla, a maioria deles falando melhor o grego que o latim). Como parte de seu plano de restaurar a glória perdida do velho Império, Justiniano mandou reconstruir a catedral de Santa Sofia, constru fda por Constantino, que estava em rufnas. Ele, porém, não queria simplesmente construir de novo o mesmo ediffcio, mas criar um templo sem igual em todo o mundo. Diz-se que, quando Justiniano por fim viu a obra conclufda, ele exclamou: "Salomão, superei-te!" Do mesmo modo Justiniano decidiu que era necessário organizar o complexo sistema legal que o Império tinha desenvolvido através dos séculos. Esta tarefa foi entregue a Triboniano, um dos seus servidores mais capazes,e em anos Justiniano- tinha conseguido produzir o que os historiadores da juris-
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prudência consideram um monumento de proporções semelhantes às da catedral de Santa Sofia na história da arquitetura .. Porém Justiniano não podia realizar todos os seus sonhos sem conseguir reunificar uma igreja dividida pela questão ~ristológica. No Egito e na Seria havia muitas pessoasque se consideravam desleais ao imperador e a todo o governo de Constantinopla, que acusavam de heresia. Justiniano achava que o concflio de Calcedônia tinha se pronunciado corretamente com. respeito às naturezas de Cristo, mas ao mesmo tempo percebia que os monofisitas mais moderados tinham razão ao apontar para os perigos que esta doutrina poderia trazer consigo. A esposade Justiniano, Teodora, tinha simpatias pelo monofisismo moderado. E Teodora tinha muito poder na corte bizantina. Sua origem era muito humilde, e ela tinha sido até atriz antes de conhecer a Justiniano, e, de acordo com os
"Salomão, superei-te!" Justiniano disse isso quando viu concluída a catede Santa Sofia. Os minaretes foram acrescentados mais tarde pelos
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Justiniano e sua corte, de acordo com um mosaico da ĂŠpoca.
Teodora e sua corte.
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seus inimigos, prostituta. Porém quando se casou com Justiniano ela demonstrou ser uma grande imperatriz, que em momentos diffceis, quando o populacho se rebelou em Constantinopla, salvou o trono para seu marido. Justiniano tinha certeza que as diferenças entre os calcedonenses e os monofisitas mais moderados eram na maior parte verbais, e que estas diferenças poderiam ser sanadas com uma série de negociações. No século XX muitos historiadores concordam com a opinião de Justiniano sobre o caráter verbal da controvérsia, apesar de ao mesmo tempo apontarem que havia outras questões, pol (ticas, étnicas, culturais e econômicas, que dificultavam qualquer aproximação,. de que o imperador parece não ter se apercebido. Em todo caso Justiniano começou a tratar os monofisitas com mais moderação que seu tio e predecessor Justino. Muitos dos bispos que tinham sido exilados foram convidados a regressar às suas sedes. Outros receberam convites para visitar o imperador e a imperatriz no palácio, onde foram recebidos cortês e amistosamente. Em 532, por instância do imperador, reuniu-se em Constantinopla um grupo de teólogos dos dois lados. Justiniano tinha grandes esperanças no resultado desta conferência. Leôncio de Bizâncio, o teólogo calcedonense mais distinto da época, estava presente. Na conferência um dos seis bispos monofisitas presentes declarou que tinha ficado convencido, e que estava disposto a aceitar a fórmula de Calcedônia. O próprio Justiniano, que tinha presidido algumas sessões, parece ter pensado que seria relativamente fácil conseguir aproximação entre os calcedonenses e a maioria dos monofisitas. No ano seguinte o próprio imperador publicou sua confissão de fé, em que, sem usar a frase "em duas naturezas", mostrava ser ortodoxo. Seu propósito era atrair os monofisitas moderados. Porém desta conferência em que o imperador depositava tantas esperanças surgiria uma nova controvérsia que dividiria a igreja mais uma vez. Esta controvérsia é chamada de "os Três Capítulos". Durante a conferência de Constantinopla, e através das suas muitas conversas com os I(deres monofisitas, Justiniano percebeu que estes não se opunham tanto ao concílio de Calcedônia quanto aos ensinos de alguns teólogos antiocanos que pareciam formar o pano de fundo deste conc(-
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lio. Estes teólogos eram principalmente três: Teodoro de Mopsuéstia, Teodoreto de Ciro e Ibas de Edessa. Todos eles tinham morrido muito antes, e seus ensinos não eram doutrina oficial da igreja. Porém o concflio de Calcedônia parece ter emprestado deles algumas das principais frases da Definição de fé. O que preocupava os monofisitas, também os mais moderados, era que as obras destes três teólogos continham afirmações que estavam próximas demais do nestorianismo. Todos eram teólogos antiocanos, razão pela qual tinham a tendência de ressaltar a humanidade do Salvador, e de fazer distinção entre esta e sua divindade, de uma maneira que aos monofisitas parecia perigosa. Esta situação ditou ao imperador o curso que deveria seguir. Por que não condenar as obras destes teólogos, para garantir assim aos monofisitas moderados que o concílio de Calcedônia, ao afirmar as "duas naturezas", não deveria ser interpretado no sentido nestoriano? Foi precisamente isto que Justiniano fez, mediante dois editos promulgados em 544 e 551. A parti r de então a obra (e às vezes a pessoa) destes três teólogos condenados recebeu o nome de "os Três Capítulos". Os principais bispos orientais aceitaram estes editos, se bem que parece que vários o fizeram sob pressão inperial. No Ocidente a reação foi muito diferente, pois vários dos principais bispos temiam que a condenação dos Três Capítulos era o passo inicial para a condenação do concfllo de Calcedônia. O papa Vigílio, todavia, era protegido da imperatriz, e por isto não tinha força moral para se opor aos éditos imperiais. Quando o imperador percebeu que seu primeiro edito não fora bem recebido no Ocidente, chamou Vigflio para Constantinopla, onde o papa acabou cedendo à pressão imperial. A capitulação do papa, entretanto, teve resultados contraproducentes. A reação dos bispos ocidentais foi tão forte e firme que vários bispos orientais que tinham antes apoiado o imperador mudaram de pol [tica. Vendo o estrago que causara, o próprio papa mudou de opinião, e retirou sua condenação dos Três Capítulos. Foi então que Justiniano promulgou o seu segundo edito (em 551), reiterando a condenacã dos Três Capítulos.
110/ A era das trevas Tudo isto provocou tamanha inquietação que o imperador por fim decidiu convocar um concílio geral. Esta assembléia, que recebe o nome de quinto concflio ecumênico, se reuniu em Constantinopla em 553. Na época o papa também se encontrava na cidade, pois Justiniano não lhe permitira voltar para Roma. VigClio enviou um comunicado ao concüio. em que, enquanto condenava algumas frases que se encontravam nos Três Capítulos, negava-se a condenar os autores em questão. Apesar disto a assembléia, que representava os interesses do imperador, condenou os Três Capítulos. Diante de tal decisão Vigílio insistiu em sua posição por mais alguns meses, porém afinal capitulou, cedendo aos desejos de Justiniano. Apesar de esta atitude vacilante do papa ter produzido vários cismas no Ocidente, depois de algum tempo toda a igreja ocidental aceitou o concftio de Constantinopla no ano 553 como o quinto con-
cflio ecumênico.
o monoteismo
e o terceiro concílio de Constantinopla
A última tentativa do governo bizantino de atrair a si os monofisitas foi feita na época do imperador Heráclio, em princfpios do século VII. O patriarca Sérgio de Constantinopla, depois de tentar sem sucesso várias maneiras de se aproximar dos monofisitas, propôs a doutrina que depois foi chamada de "monotelismo". Esta palavra vem das raízes gregas mono, que quer dizer "um", e the/ema, que quer dizer "vontade". O que Sérgio propunha é que em Cristo, ao mesmo tempo que havia duas naturezas, a divina e a humana, como o concülo de Calcedônia o tinha declarado, havia uma só vontade. Passando disto a doutrina de Sérgio não é clara, pois a sua posição e as dos seus seguidores variaram tanto, e ficaram confusas a tal ponto que o monotelismo recebeu o nome de "heresia camaleão". Ao que parece o que Sérgio queria dizer era que em Cristo não havia outra vontade além da divina. Quando perguntaram ao papa Honório o que ele pensava da fórmula de Sérgio, o papa a aprovou. Porém a oposição em várias regiões do Império não demorou. O teólogo que mais se distinguiu neste sentido foi Máximo de Crisópolis, que é conhecido por Máximo, "o Confessor". Mais tarde, em 648, a oposição ao monotelismo chegou a tal ponto que o imperador
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Constante II proibiu qualquer havia uma ou duas vontades.
discussão sobre se em Cristo
Quando o imperador promulgou esta proibição, o Império tinha perdido o interesse de se aproximar dos monofisitas. Síria e Egito, as regiões do Império onde o monofisismo tinha a maior parte dos seus adptos, tinham sido conquistadas pouco antes pelos árabes. Isto queria dizer que a partir de então a corte de Constantinopla,. em vez de se preocupar com a boa vontade dos monofisitas de Egito e Síria, tinha de melhorar as suas relações com os cristãos calcedonenses que eram a maioria, tanto nos territórios que ainda pertenciam ao Império, como no Ocidente. Em conseqüência, o sexto concílio ecumênico que se reuniu em Constantinopla em 680 e 681 condenou o monotelismo e reafirmou a Definição de fé de Calcedônia. Entre os monotelitas condenados especificamente pelo concílio estava o papa Honório. Este caso de um papa condenado nominalmente como herege por um concílio ecumênico foi uma das dificuldades que os católicos tiveram de enfrentar quando no século XIX conseguiram que o concílio Vaticano I promulgasse a infalibilidade papal.
A questão das imagens e o segundo concilio de Nicéia A última grande controvérsia que abalou a igreja durante o período que estamos estudando (isto é, os anos anteriores a 800) surgiu ao redor da questão de usar-se ou não imagens no culto público. Na antiga igreja cristã parece não ter havido nenhuma oposição à decoração das igrejas com imagens, geralmente alusivas a algum episódio bfblico. Estas imagens podem ser encontradas tanto nas catacumbas romanas como na igr jn de Dura-Europos, a mais antiga ainda conservada. Porém à m dida que mais pessoas convertidas do paganismo entrav m n I igreja, houve cada vez mais pastores que temiam que as im IIJ' 11 na igreja poderiam levar alguns à idolatria. Por isto, algum tI III po depois da conversão de Constantino, começamos a nconu II nos sermões cristãos admoestações contra o uso ind v do cI I imagens. Ao mesmo tempo, entretanto, insistia-s n v dll III imagem como "Iivro dos incultos". Em um 1111(' I UIII 'III I
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havia poucos que sabiam ler, e menos que possuíam livros, as imagens serviam para comunicar aos fiéis alguns dos episódios bíblicos mais importantes. A controvérsia surgiu quando o imperador Leão III (que não deve ser confundido com o papa do mesmo nome) mandou derrubar uma estátua de Cristo que era muito venerada em Constantinopla. A partir de então, e com toda uma série de decretos imperiais, a campanha contra as imagens tomou cada vez mais impulso. Em 754 o filho de Leão, Constantino V, convocou um conctlio que proibiu o uso das imagens no culto, e condenou todos os que as tinham defendido, especialmente o patriarca Germano de Constantinopla e o famoso teólogo João de Damasco. Surgiram assim dois partidos, que receberam o nome de "iconoclastas" (destruidores de imagens) e "iconodulos" (adoradores de imagens). Os argumentos dos iconoclastas se baseavam nas passagens bíblicas que proíbem a idolatria, particularmente Êxodo 20:4,5. Porém além disto os historiadores não concordam acerca das razões que levaram os imperadores a lançar sua campanha iconoclasta. Não há dúvida que Leão III era um homem de fé sincera. Porém é bem possível que ele promulgou tantos decretos para desmentir os muçulmanos, que acusavam os cristãos de idolatria. Diante desta posição os defensores das imagens começaram a relacionar o que era discutido no momento com as controvérsias cristológicas de séculos anteriores. A razão pela qual é poss(vel representar os mistérios divinos através de imagens é que, em Cristo o próprio Deus nos deu sua imagem. Não deixar representar a Cristo, equivaleria a negar a sua humanidade. Se Cristo foi homem, deve ser possível representá-lo, assim como qualquer outro homem pode ser representado. Além disto, o primeiro criador das imagens foi o próprio Deus, ao criar a humanidade à sua imagem. Encontramos estes argumentos claramente expostos nas seguintes linhas de João de Damasco: Já que alguns nos culpam por reverenciarmos e honrarmos imagens do Salvador e de nossa Senhora, e as rei íquias e imagens dos santos e servos de Cristo, lembrem-se que desde o princípio Deus fez o ser humano à sua imagem.
As igrejlls dissidentes / 113
Por que nos reverenciamos uns aos outros, se não é por termos sido feitos à imagem de Deus? '" Por outro lado, quem pode fazer uma cópia de Deus que é invisível, sem corpo, indescritível e sem figura? Dar figura a Deus seria o máximo da loucura e do ateísmo .... Porém como Deus, por sua profunda misericórdia e para nossa salvação, se fez verdadeiramente homem ... e viveu entre os homens, fez milagres, sofreu a paixão da cruz, ressuscitou e foi levado ao céu, e como todas estas coisas sucederam e foram vistas por homens ... os Pais, vendo que nem todos sabem ler nem têm tempo para fazê-lo, aprovaram a descrição destes acontecimentos por imagens, para que servissem de breves comentários. A controvérsia durou vários anos. Mesmo que, teoricamente, os editos imperiais eram válidos em todo o antigo Império Romano, a verdade é que o Ocidente nunca os aplicou, enquanto que no Oriente a igreja se dividiu. Por fim, quando o governo caiu sobre os ombros da imperatriz Irene, esta mudou a pol ítica imperial com respeito às imagens, e ela, o patriarca Tarásio de Constantinopla e o papa Adriano convocaram um concílio. Esta assembléia se reuniu em Nicéia em 787, e recebe o nome de sétimo concílio ecumênico. Este concílio restaurou o uso das imagens nas igrejas, ao mesmo tempo que estabeleceu que elas não eram dignas da adoração, devida só a Deus (em grego, latria), mas somente de uma adoração ou veneração inferior (em grego, dulia). No século IX os iconoclastas voltaram ao poder por algum tempo, mas em 842 as imagens foram afinal restauradas, e até o dia de hoje todas as igrejas de origem bizantina celebram esta ocasião na "Festa da Ortodoxia". No Ocidente, apesar de não ter havido um movimento iconoclasta, os reis carol íngios se negaram a aceitar as conclusões do sétimo concílio ecumênico, não porque se opusessem às ima gens, mas porque em latim só havia um termo para tradu zir as palavras gregas "latria" e "dulia", e os francos rcc '~IV"fll que o concílio tinha dito que as imagens devem S(~f "cloj" das. Mais tarde esta dificuldade foi esclarecida, c ,I IllUIOI p.u te da cristandade aceitou a autoridade do condi iu di: N l(;éi<1 do ano 787.
114/ A era das trevas
Os primeiros sete concílios ecurnerucos discutiram questões bastante complexas e quase sempre confusas. Porém mesmo assim sua importância no transcorrer da teologia cristã tem sido imesa. Através de toda a Idade I\lédia quase todos os cristãos, tanto orientais como ocidentais, aceitaram a sua àutoridade, e trataram de formar seu conceito dentro dos limites traçados por eles. Somente os cristãos que viviam fora dos limites do Império Romano antigo, aos quais dedicaremos o próximo cap (tu lo, rejeitaram a autoridade de alguns destes condlios. Na época da Reforma a maior parte dos reformadores aceitou pelo menos os primeiros quatro, e por isso são muitos os protestantes que ainda aceitam a sua autoridade. Algumas igrejas que surgiram da Reforma aceitam os primeiros sete condlios ecumênicos. Depois destes sete. a maioria dos concílios supostamente "ecurnênicos" não contaram com representantes das igrejas orientais, que por isso não os aprovam.
V As igrejas dissidentes Nada poderá nos separar desta fé. . . . Faze o que quiseres. Se decides nos permitir o livre exercício da nossa fé, nós não te deixaremos por nenhum outro senhor terreno; porém tampouco aceitaremos outro Senhor celestial além de Jesus Cristo, que é o único Deus. Os bispos da Armênia ao rei da Pérsia Nos capítulos anteriores seguimos o curso das diversas controvérsias teológicas como se cada uma tivesse terminado com a decisão de um grande concflio ecumênico. Até certo ponto isto é verdade, dentro dos confins do Império Romano. Porém desde tempos muitos antigos o cristianismo tinha ultrapassado estes confins, e tinha se estendido até regiões relativamente remotas, até onde a autoridade imperial não alcançava, e onde, então, surgiram igrejas que logo começaram a diferir do restante do cristianismo. Um destes casos do qual falamos no volume anterior e no primeiro capítulo deste, foi o da conversão dos godos e dos demais bárbaros fora das fronteiras do Império. Como esta conversão começou quando o arianismo estava em seu apogeu, os godos e seus vizinhos passaram a ser arianos. Mais tarde, como já vimos, estes povos invadiram o Império do Ocidente, assim o arianismo apareceu em lugares onde nunca antes tivera seguidores. Neste caso a fé diferente dos bárbaros não sobreviveu, e foi desaparecendo à medida que os bárbaros Iorarn se amoldando aos costumes e à fé dos conquistados.
116/ A era das trevas
Porém houve outros casos em que os que não aceitaram a autoridade de um ou outro concílio conseguiram subsistir através dos séculos, e por isso atualmente ainda há igrejas que procedem de origens assim. As igrejas que rejeitaram o concüio de Éfeso foram chamadas de "nestorianas", as que rejeitaram o de Calcedônia de "monofisitas", apesar de elas mesmas não se darem estes títulos, com que o restante dos cristãos os chama pejorativàmente. Feita esta ressalva, e mais por razões de espaço que de exatidão, utilizaremos estes dois nomes para nos referimos a estas igrejas.
o nestorianismo
na Pérsia
Da Palestina, o cristianismo, não só se estendeu para o oeste, mas também para o leste. Na primeira direção estava o Império Romano, do qual a Terra Santa era parte, e onde o cristianismo obteve alguns dos seus maiores triunfos. Por isto a maior parte da nossa história, até aqui, tratou do curso da fé cristã dentro dos limites do Império Romano. Porém, como dissemos, o cristianismo se estendeu também para o leste, em direção ao Império Persa e em todo ele.
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AI i[frejas dissiden tes
As igrejas dissidentes / 117
o fato de este Império não ter se tornado cristão mais tarde é a principal razão pela qual não foram conservados dados sobre o curso da fé cristã nele. Se tivéssemos estes dados, sem dúvida teríamos tantas histórias inspiradoras como as que ouvimos dos márti res que ofertaram suas vidas no Império Romano. Nesta expansão para o leste, o cristianismo utilizou não o grego ou o latim, mas o sir íaco. Esta era a Iíngua usada pelos viajantes e comerciantes que iam da Síria até lugares mais distantes do Império Persa. Primeiro em Antioquia, depois em Edessa, foi sendo produzido todo um corpo de literatura cristã em siríaco, e este corpo foi usado para a propagação da fé dentro dos territórios persas. Edessa, que era uma cidade independente, parece ter sido o primeiro estado a se tornar cristão. Já antes de Constantino, o rei de Edessa tinha se convertido, e pouco depois surgiu uma lenda de acordo com a qual o rei Abgar IV teria mantido correspondência com Jesus Cristo. A suposta carta de Jesus a Abgar era usada por muitos como amuleto, e quase toda a população parece ter sido cristã em meados do século IV. Daii a nova fé se estende até a Pérsia, onde encontrou numerosos adeptos, principalmente entre os habitantes de IIngua siríaca. Deste modo o nome de Cristo chegou a ser venerado em regiões tão remotas como o Turquestão. Tudo isto não foi possível sem sangue e sacrifícios. A dinastia dos sassânidas, que na época governava a Pérsia, perseguiu encarniçadamente o cristianismo, principalmente depois que o Império Romano se tornou cristão e as autoridades persas começaram a temer que os cristãos na verdade fossem agitadores, ou pelo menos simpatizantes dos romanos. Por esta razão os cristãos persas fizeram todo o possível para mostrar às autoridades que não faziam parte de uma grande organização que tinha seu centro em Constantinopla. Em 410 eles se constitu íram em uma igreja autônoma, dando ao bispo de Ctesifom o título de patriarca. Do mesmo modo, quando o conctlio de Éfeso condenou Nestor em 431, muitos dos cristãos persas parecem ter recebido com certo ai {vio O fato de que, do seu ponto de vista, a igreja dentro do Império Romano tinha se tornado herege.
118/ A era das trevas
Por causa das suas origens a igreja persa sempre teve contatos estreitos com Antioquia, razão pela qual sua cristologia era do tipo antiocano. Além disso, depois da condenação de Nestor, vários teólogos antiocanos se refugiaram em território persa. Alguns deles foram até a cidade de Nisibis, de onde se dedicaram a instruir as futuras gerações de teólogos persas. Deste modo a igreja persa rompeu definitivamente com o restante do cristianismo. A partir da Pérsia o cristianismo nestoriano se estendeu até a Ásia Central, [ndia e Arábia. Depois da invasão árabe os nestorianos não se submeteram tranqüilamente ao regime muçulmano, mas produziram grande quantidade de literatura polêmica, tentando mostrar a superioridade do cristianismo sobre o islã. Esta literatura, espalhada pelas bibliotecas de velhos mosteiros, ainda não foi suficientemente estudada. Porém talvez ela seja de tanto valor e importância como a dos apologistas cristãos que a partir do século segundo empreenderam a tarefa de defender sua fé contra a cultura e as leis grecoromanas. Além disso aqueles cristãos nestorianos continuaram proclamando sua fé em lugares distantes, de tal modo que, graças à obra do missionário Alopem chegou a haver cristãos nestorianos na China, e as Escrituras foram traduzidas pela primeira vez à I(nqua deste país. Depois desta história gloriosa é triste verificar que este ramo do cristianismo quase desapareceu. Na China uma mudança de dinastia destruiu completamente sua missão. Na [ndia restam uns poucos nestorianos. Seu núcleo principal atualmente está no Iraque, Irã e Síria. Porém no princípio do presente século eles foram cruelmente perseguidos nessa região, de tal modo que seu número foi reduzido de uns cem mil a menos da metade. Muitos deles imigraram para a América do Norte, onde organizaram algumas igrejas nestorianas. Os monofisitas da Armênia
Poucas páginas na história do cristianismo são tão inspiradoras como as que narram o curso do cristianismo na Armênia. E apesar disto elas geralmente são desconhecidas para os cristãos ocidentais.
As
Bispo nestoriana do século XIX
igreílJs
dlssidentes /119
120/ A era das trevas
o reino da Armênia ficava no extremo norte da fronteira entre o Império Persa e o Império Romano. Por isso sua história dependeu sempre do curso dos acontecimentos nestas duas
Gregório, o Iluminador, apóstolo da Arménia, era parente do rei Tiridates.
As igrejas dissidentes /121
potências. Geralmente, quando os persas se consideravam suficientemente fortes eles tentavam anexar o reino vizinho. Os romanos, por seu lado, seguiam uma pol ítica diferente, pois não desejavam conquistar a Armênia, mas defender sua autonomia para ter um estado aliado que protegesse suas fronteiras com os persas. Dadas estas circunstâncias os armênios simpatizavam mais com os romanos que com os persas. No século III os persas se apoderaram da .A.rmênia. Para isto deram ordens para que seus agentes no reino vizinho assassinassem o rei Cosroés, e logo em seguida invadiram o país. O herdeiro do trono armênio, Tirídates, ainda criança, fugiu com alguns dos seus nobres, e se refugiou entre os romanos. O imperador Valeriano acudiu em socorro dos seus aliados armênios, porém os persas o derrotaram e aprisionaram. A Armênia, então, ficou dominada pelos persas. Alguns anos depois, aproveitando um período de crises por que passava o Império Persa, e com a ajuda do imperador Licínio (o mesmo que Constantino depôs mais tarde), TirIdates conseguiu retornar ao trono armênio, onde foi recebido com júbilo por seus compatriotas, cansados do jugo estrangeiro. Porém a crise no Império Persa foi de pouca duração, e o rei Narses, depois de acabar com uma guerra civil que tinha irrompido em seus domínios, voltou a invadir a Armênia, obrigando Tirídates a novamente pedir asilo em território romano. Na Síria, Asia Menor e Constantinopla os refugiados armênios conheceram o cristianismo, e alguns deles se converteram. Entre estes estava um parente de Tirídates, que a história conhece como "Gregório, o Iluminador". Uma vez mais as legiões romanas marcharam ao campo de batalha contra os persas, cuja invasão da Armênia ameaçava os territórios romanos. Desta vez eles tiveram melhor êxito do que na campanha anterior, e os persas se viram obrigados a firmar um tratado de paz, mediante o qual o Império Romano anexou diversas províncias que anteriormente tinham pertencido à Pérsia, e Tirídates recuperou seu trono. Junto com Tirídates regressaram à Armênia os nobres que tinham se exilado em território romano. Entre eles estava n gório, o Iluminador, que imediatamente começou o pn J II sua nova fé entre seus compatriotas. Isto não foi d J Jr IIln dn
122/ A era das trevas
Tirídates I II, rei da Armênia, foi batizado no dia 6 de janeiro de 303.
rei, que aparentemente temia que o povo armênio cresse que a corte tinha se romanizado durante seu exílio. Por isto Tirídates encarcerou seu parente por quinze anos. Porém mais tarde o próprio rei se converteu, e muitos dos nobres o seguiram à fonte batismal. Logo surgiu um movimento de conversão em massa, durante o qual boa parte do povo abraçou a fé cristã. Este movimento chegou a tal ponto que muitos sacerdotes pagãos, ou seus filhos, também se converteram. Estes sacerdotes logo receberam as ordens cristãs, e assim surgiu na Armênia o fenômeno de que o sacerdócio cristão se tornou hereditário, como o pagão tinha sido. A mesma coisa se deu com a liderança da igreja, que passou de Gregório para seus descendOIlIOS. O batismo de Tirfdates foi no dia em que era celebrada
As igrojas d/ss/(//Jlltes /123
Sajak, Mesrop e seus discípulos
prepararam
todo
um corpo
de litera-
tura cristã em arménio.
a Epifania e o batismo de Jesus Cristo (6 de janeiro) do ano 303, ou seja, dez anos antes do Edito de Milão. Naturalmente, no princípio, esta conversão em massadeixou muito a desejar. Porém pouco a pouco a fé cristã foi se arraigando nas massas. No século V o patriarca Sajak pediu ao erudito Mesrop que traduzisse a B (blia para o armênio. Isto era muito difícil, pois o armênio não era uma Hngua escrita. Por isso a primeira coisa que Mesrop teve de fazer foi elaborar um método para escrever seu idioma. Depois, com a ajuda de Sajak e de vários discípulos, traduziu a Bfblia, primeiro do siríaco e depois do grego. Além disto Mesrop e seus discípulos se puseram a produzir todo um corpo de literatura. Esta literatura foi um dos elementos que mais contribuiu para o desenvolvimento do espírito nacional dos armênios, até então divididos em diversos clãs rivais. No ano 450 a nova igreja se viu fortemente ameaçada. rei da Pérsia quis impor sua religião à Armênia, o mazdofnmo. Os Ifderes da nação armênia se reuniram em Artachat I " III veram enviar uma mensagem ao rei da Pérsia, as ln u lu p' It I
124 / A era das trevas
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dos Evangelhos, em armênio.
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As igrejas dissidentes / 125
bispos do país: "Nada poderá nos separar desta fé .... Faze o que quiseres." Quando os armênios enviaram esta mensagem ao rei da Pérsia eles contavam com o apoio do imperador Teodósio II e do Crisápio (os mesmos que convocaram o "latrocínio de tfeso", de que falamos no capítulo anterior). Pouco depois, no entanto, morreu Teodósio, e seus sucessores, Pulquéria e Marciano, mudaram sua pol ítica em relação à Pérsia, e retiraram seu apoio aos armênios. Em 451, o mesmo ano em que se reuniu o concílio de Calcedônia, as tropas persas invadiram a Armênia, e os armênios se viram obrigados a se defenderem por conta própria. Um dos seus principais chefes militares, Vardão, "0 bravo", defendeu um dos passos entre as montanhas com somente 1.036 soldados, e todos morreram depois de uma longa batalha. Os persas conquistaram o país, e a Armênia perdeu sua independência. Em vista destes acontecimentos não devemos estranhar que os armênios se negassem a aceitar o concílio de Calcedônia. Como eles viam as coisas, os romanos, que deveriam tê-los defendido como aliados e irmãos em Cristo, os abandonaram no momento decisivo. Em conseqüência, a igreja armênia rompeu relações com a que existia dentro do Império Romano, e se declarou "monofisita", ao mesmo tempo que acusava os demais cristãos não só de traidores, mas também de hereges. A Armênia continuou dominada pelos persas. Porém a resistência foi tamanha que pouco depois o rei da Pérsia decidiu conceder ao país liberdade religiosa e certo grau de autonomia. Com este propósito ele nomeou governador da Armênia o patriota Vajan, que tinha conseguido organizar uma resistência de guerrilhas contra os persas. A partir de então, e até as conquistas turcas, a igreja da Armênia gozou de relativa paz. Quando os árabes conquistaram tanto o Império Persa como os territórios orientais do Império Romano, a Armênia caiu sob seu governo. Conta-se que quando o califa Osmar II concedeu uma entrevista ao patriarca João Otzun, este se apresentou com as luxuosas vestimentas que eram símbolo do II cargo. O califa perguntou ao patriarca se seu Mestre nã IIu tinha ensinado que seus discípulos deviam se vestir c 11 1111111 I dade. O patriarca pediu ao califa que o acornpanhus-u I 1111111
126/ A era das trevas
moradia particular, e ali lhe mostrou a túnica de pele de cabra que usava debaixo das suas roupas luxuosas. "O Senhor também rios ensinou que não devemos fazer alarde de nossa virtude", ele disse ao califa. Este último, convicto que só Alá podia dar a um ser humano a força para se vestir de tal modo, prometeu ao patriarca que os cristãos não seriam perseguidos. Durante vários séculos que durou o regime árabe, os cristãos armênios viveram sem maiores dificuldades. Apesar de existirem editos que limitavam suas atividades, e em algumas ocasiões ter havido perseguições, em termos gerais os árabes respeitaram a religião e a cultura dos armênios.
Em princípios do século XX houve grandes matanças de armênios na , urouis,
As ígrujns Cllll.\/I/
ntes / 127
No século XI os turcos seljúcidas se apoderaram do pa(s. Estes turcos eram muçulmanos, como os árabes, mas mostraram ser muito mais fanáticos. Ao que parece os turcos tomaram por propósito destruir a igreja de Armênia, mesmo se fosse necessário exterminar a população. Sob estas circunstâncias muitos armênios emigraram para a Asia Menor, onde por algum tempo se estabeleceu o reino independente da Pequena Armênia. Durante o perfodo das cruzadas estes armênios se aliaram aos cruzados, e houve certa aproximação com Roma. Porém mais tarde os turcos se apossaram de toda a região, e continuaram oprimindo os armênios. Em princípios do século XX esta opressão chegou ao ponto de que dezenas de milhares de armênios fossem mortos. Aldeias inteiras desapareceram, e os sobreviventes foram espalhados por todo o mundo. Muitos deles se dirigiram para o hemisfério ocidental, onde fundaram comunidades nos Estados Unidos e no Brasil. Outros armênios, que viviam na porção da antiga Armênia que tinha ficado sob o dom (nio da Rússia conseguiram continuar algumas das suas antigas tradições em sua terra natal. Os monofisitas da Etiópia
Conta-se que no século IV dois irmãos cristãos, Frumêncio e Edésio, naufragaram nas costas do Mar Vermelho. Ali foram capturados e feitos escravos pelos habitantes do reino de Axum, na África. Depois de um longo per(odo de escravidão, sua sabedoria fez com que eles recebessem a liberdade, e chegaram a ser conselheiros do rei. Edésio decidiu, por fim, regressar a Tiro, sua cidade natal. Porém Frumêncio foi até Alexandria, onde Atanásio (um dos "gigantes" cuja vida estudamos no volume anterior) o consagrou bispo, e o enviou de volta como missionário ao reino de Axum. A obra missionária foi dif ícil, e por volta do ano 450, uns cem anos depois do começo da obra de Frumêncio, o rei Exana se converteu ao cristianismo. Como em tantos outros casos, logo os grandes personagens do reino e boa parte do povo o seguiram à fonte batisrnal, e o reino se tornou cristão. Aquele reino de Axum foi crescendo, através de uma série de conquistas, e mais tarde foi o núcleo ao redor do qual
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se formou a nação etíope. Deste modo apareceu um grande reino cristão ao sul do Egito, além das fronteiras do Império Romano. A igreja da Etiópia sempre manteve relações estreitas com a do Egito, e por isso, quando o concflio de Calcedônia condenou o patriarca de Alexandria, Dióscoro, os etíopes seguiram o exemplo da maior parte dos cristãos egípcios e se negaram a aceitar as decisões deste concílio. Por essa razão os demais cristãos lhes dão o tf'tulo de "monofisitas". Através dos séculos a Etiópia foi mantendo sua independência, e provavelmente é a ela que as lendas que circulavam na Europa medieval se referiam, falando de um reino cristão de grandes riquezas, que existia além dos territórios dominados pelos muçulmanos. Outra lenda interessante relacionada com a história da Etiópia é a que afirma que os imperadores deste país, que se mantiveram no poder até a segunda metade do século XX, eram descendentes de Salomão e da rainha de Sabá. De acordo com esta lenda, quando a rainha de Sabá (que se supunha ser a Etiópia) se preparava para partir de Jerusalém, Salomão a convidou para passar a última noite em seu palácio. A rainha disse que temia por sua virtude, e o rei lhe respondeu que, desde que ela não tomasse nada de seu palácio, ele a respeitaria. A rainha concordou em dormir no palácio de Salomão sob estes termos. Porém durante a noite ela ficou com sede, e se levantou e bebeu de um cântaro que havia em sua câmara. Então Salomão saiu do seu esconderijo entre as cortinas, disse-lhe que ela tinha tomado algo do seu palácio, e se uniu a ela. De manhã ela lhe deu um anel, dizendo-lhe que se daquela união nascesse um filho ela deveria enviá-lo para ele com o anel, para que pudesse reconhecê-lo. Alguns anos depois o jovem Menelik se apresentou com o anel na corte de Salomão, que lhe ensinou sua sabedoria. Depois de voltar à Etiópia Menelik chegou a ser rei, e fundou assim a dinastia dos salomônidas. Tudo isto não passa de lenda. Mas mostra que o cristianismo etrope, diferente de boa parte da cristandade suposta111 mie mais ortodoxa, conservou através dos séculos um senso c 1.110 das raízes judaicas do cristianismo.
As conquistas árabes / 129 Os monofisitas
do Egito e Síria
Como dissemos no capítulo anterior, dentro do Império Romano, nas regiões do Egito e da Síria, havia grandes massas que se negavam a aceitar as decisões do condlio de Calcedônia. Os diversos decretos de Basilisco, Zenom, Justiniano e outros que discutimos acima eram outras tantas tentativas de conquistar a simpatia destas pessoas. Por isso a história do monofisismo dentro do Império Romano, pelo menos em seus primeiros anos, tem sido narrada dentro deste contexto. Aqui somente precisamos acrescentar algo sobre as igrejas que surgiram desta história complicada, ou seja, a igreja copta e a igreja jacobita. O copta era o antigo idioma dos egípcios, que estes tinham falado antes deste país ser conquistado por Roma. Enquanto as pessoas cultas, principalmente em Alexandria, falavam grego, e muitos também o latim, os camponeses e demais pessoas pobres, descendentes dos antigos habitantes do país, falavam copta. Foi entre estes que o monasticismo primitivo encontrou a maioria dos seus adeptos. E foi também entre estes que a oposição ao condlio de Calcedônia ficou cada vez mais forte. Quando os árabes conquistaram o país o cristianismo de fala grega, cuja força estava principalmente nas cidades, continuou aceitando as doutrinas de Calcedônia, e continuou em comunhão com' o patriarca de Constantlnopla., Estes cristãos receberam o nome de "melquitas", que quer dizer "do imperador". Porém a maioria dos cristãos egípcios continuou em sua oposição às decisões de Calcedônia, e rompeu com Constantinopla. Estes cristãos recebem o nome de "coptas", e até o dia de hoje constituem a igreja mais numerosa do Egito. Enquanto isto na Síria e circunvizinhanças sucedeu algo parecido. Justiniano tentou extirpar o monofisismo da região, mas Teodora se opôs a esta pol Itica, e protegeu alguns dos prin, cipais opositores ao condlio de Calcedônia. Um destes foi Jacobo Baradeo, um evangelista fervoroso de vida austera, que se dedicou a viagens missionárias nas quais converteu muitas pessoas, consagrou pelo menos 27 bispos, e ordenou milhares de sacerdotes. Suas viagens o levaram por toda Síria, c até o Egito, Pérsia, Asia Menor e Constantinopla. Seu trabalho foi tão frutífero que depois de pouco tempo a igreja monofisita
130 / A era das trevas
da região começou a ser chamada de "igreja jacobita", e assim é chamada até hoje. Quando os árabes conquistaram a maior parte dos antigos territórios em que Jacobo Baradeo tinha trabalhado, a igreja jacobita reafirmou sua independência do Império Bizantino, e sua rejeição do concílio de Calcedônia. Porém apesar disto não conseguiu ser tão numerosa na Sfrla como o eram os ortodoxos. Em meados do século XX o número de seus membros se aproximava de cem mil. Em resumo, as principais igrejas dissidentes que surgiram das controvérsias cristológicas e que perduram até nossos dias são cinco. Em oposição ao condlio de Éfeso surgiu a igreja nestoriana. E contra o de Calcedônia se declararam as igrejas armênia, et(ope, copta e jacobita, que os demais cristãos chamam de "monofisitas".
VI As conquistas árabes Ainda que antes tivessem pedido ajuda contra os incrédulos, quando receberam de Deus um livro, que confirmava as Escrituras, não quiseram crer. Por isso, os infiéis receberão a maldição de Deus. Corão
Quando iniciou o século VII parecia que, por fim, a Europa começara a sair do caos em que as invasões dos bárbaros a tinham lançado. Todos os invasores arianos tinham se tornado católicos. Os francos, que desde o começo tinham se convertido à fé nicena, começavam a estabelecer sua hegemonia sobre as Gálias. Nas Ilhas Britânicas os resultados da missão de Agostinho começavam a aparecer. Na Itália, em meio às dificuldades causados pelos lombardos, Gregório, o Grande, ocupava o trono pontiffcio. O Império Bizantino ainda desfrutava dos resultados das conquistas de Justiniano, especialmente no norte da Africa, onde o reino dos vândalos tinha desaparecido. Então sucedeu o inesperado. De um obscuro canto do mundo, ao qual tanto o Império Romano como s n I!, fll ,',,($ tinham prestado pouqu íssima atenção, surqiu lllll<l .rv.rt.incho que, impulsionada pela pregação do Corão, p ln cln dostlnuda a conquistar o mundo.
132 / A era das trevas
Maomé
O fundador do islã, Maomé, era membro de uma fam{lia respeitada na cidade de Meca, na Arábia. Seu pai tinha morrido pouco antes de ele nascer, e sua mãe morreu quando ele tinha seis anos. Seu tio foi quem o criou a partir de então. Porém os negócios da famüia sofreram sérios reveses, e Maomé passou boa parte da sua juventude como pastor. Depois ele começou a participar do comércio das caravanas, e seu êxito foi tal que a viúva rica Cadia o pôs à frente dos seus negócios. Depois de algum tempo Cad ia e Maomé casaram. Enquanto viveu, Cadia foi a conselheira e auxiliar mais {ntima com que Maomé contou. Porém durante mu ito tempo o futuro profeta do islã se dedicou simplesmente ao comércio, e sua vida não parecia ser diferente da dos seus muitos colegas. Por volta de ano 610, quando tinha mais ou menos quarenta anos, começou a carreira religiosa do Profeta. Este tinha se acostumado a se retirar de vez em quando a um lugar solitário, para orar e meditar. Por esta época ele já tivera amplos contatos com o judaísmo e o cristianismo, pois na Arábia existia um bom número de judeus, e também cristãos de diversas seitas. Algumas destas seitas tinham perdido todo o contato com o restante da igreja séculos antes, e por isto suas doutrinas tinham se desenvolvido para direções às vezes estranhas. Em todo caso, de acordo com a lenda muçulmana, Maomé se encontrava em uma montanha perto de Meca quando lhe apareceu o anjo Gabriel e lhe ordenou que proclamasse a mensagem do único Deus verdade iro. No começo Maomé foi um pouco tfrnido em sua pregação. Ele tinha dúvidas em relação à sua missão, e por algum tempo não recebeu outra revelação. Porém mais tarde ele se convenceu de que tinha uma missão profética, e se dedicou a cumprIla. Começou a proclamar a mensagem do Deus único, justo e misericordioso, que governa todas as coisas e exige obediência dos seres humanos. Sua mensagem, no estilo dos profetas do Antigo Testamento, freqüentemente era apresentada em forma r ítrnica. Maomé d·izia que o que ele pregava não era uma nova religião, mas a continuação da revelação que Deus tinha dado através dos profetas do Antigo Testamento e de Jesus. Este,
As conquistas árabes / 133
para ele, não era divino. Era, isto sim, um grande profeta, que devia ser obedecido. Os I(deres árabes em Meca se opuseram à pregação de Maomé. Meca era um centro de peregrinações da religião politeísta
Em 630 Maomé e os seus entraram triun fantos
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134 / A era das trevas
da Arábia, e boa parte dos seus rendimentos estava relacionada com o culto. Por isto os comerciantes da cidade, muitos
1\ Im:[lação do Corão foi a força propulsora
das conquistas árabes.
As conquistas árabes / 135 dos quais tinham sido colegas de Maomé, agora se voltaram contra ele e seus seguidores. Em 622 Maomé se refugiou em um oásis das proximidades, onde ficava o povoado que depois recebeu o nome de Medina. ~ a partir desta data que os muçulmanos contam os anos. Foi ali que pela primeira vez foi estabelecida uma comunidade muçulmana, onde o culto e a vida civil e pol ítica seguiam as normas traçadas pelo Profeta. Depois de uma série de campanhas militares, negociações e pactos, Maomé e os seus tomaram Meca em 630. Com grande sabedoria e moderação o Profeta proibiu qualquer vingança contra seus antigos inimigos, e se limitou a derrubar os ídolos do templo e a instaurar o culto monoteísta. A partir de então Maomé gozou de cada vez mais prestígio e poder entre os árabes, e quando da sua morte, em 632, boa parte da península da Arábia tinha se tornado muçulmana.
As conquistas dos califas Depois da morte de Maomé a direção da comunidade muçulmana caiu sobre os califas (do árabe califat, que quer dizer "sucessor"). O primeiro califa foi Abu Bequer, que tinha sido um dos principais acompanhantes de Maomé. Sob Abu Bequer o islã consolidou seu dom ínio na Arábia ocidental, e teve seus primeiros conflitos com os exércitos bizantinos, que foram derrotados em 634. Abu Bequer morreu no mês seguinte, e seu sucessor Omar, que governou por dez anos, continuou suas conquistas. O general Calid, sob cujo comando estavam as tropas que tinham derrotado os romanos, invadiu a região da Síria, e em 635 tomou Damasco. Depois de alguns pequenos reveses os árabes derrotaram um outro exército que o Império Romano enviara contra eles, e em 638 o califa em pessoa tomou posse de Jerusalém. Dois anos depois, com a capitulação de Cesaréia e Gaza, toda a região caiu em poder dos árabes. No começo os muçulmanos não perseguiram cristãos nem judeus, pois os consideravam "povos do livro" (isto é, do Corão), monoteístas como os muçulmanos. Assim, por exemplo, o califa Omar, ao entrar em Jerusalém, decretou que os cristãos " ... tivessem garantidos os seus bens, suas igrejas e suas cru-
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Entrada
do Califa Osmar em Jerusalém.
zes.... Em assuntos religiosos, não haverá pressão nem coação. Os judeus podem morar em Jerusalém junto com os cristãos, e os que residem na cidade pagarão o mesmo tributo que os habitantes de outras cidades". Em termos gerais foi esta a pol (tica religiosa que os primeiros califas seguiram nas terras conquistadas. Somente o politeísmo e a idolatria eram proibidos. Os cristãos e judeus podiam continuar no livre exercício dos seus cultos, desde que respeitassem o Profeta e o Corão. Depois foi proibida a conversão dos muçulmanos ao cristianismo ou ao judaísmo. Porém além disto, e de certas limitações na expressão pública do culto, a única carga imposta aos judeus e cristãos foi a obrigação de pagar um tributo mediante o qual o estado se sustentava. Os que se convertiam ao islã não precisavam pagar este imposto. Por isto, ao mesmo tempo em que os muçulmanos tinham interesse especial em fomentar as conversões à sua religião, muitos cristãos de convicções mais flexíveis acabaram por aceitar a fé do Profeta. Ao mesmo tempo em que enfrentavam os bizantinos na Sfr ia, os árabes invadiram a outra grande potência vizinha,
As conquistas árabes /137
As conquistas árabes o I mpério Persa. Esta frente dupla, que em teoria poderia ter sido desastrosa, produziu resultados surpreendentes. Em 657, depois de derrotar repetidamente os persas, os árabes tomaram sua capital, Ctesifom. Então continuaram sua expansão inexorável para o leste, enquanto os persas se retiravam para as montanhas. Finalmente, em 651 (portanto já no tempo do próximo califa) o último rei persa foi morto, e no ano seguinte os muçulmanos eram donos de todo o antigo Império Persa. Enquanto isto, em 639, outro contingente árabe invadiu o Egito, e rapidamente conquistou a maior parte do país. Em 640 os árabes fundaram a cidade que mais tarde seria o Cair . E em 642, quando Alexandria se rendeu, todo o país ostuv 1 em seu poder. Dali para o oeste as hostes muçulmanas COIlIir iu.: ram marchando vitoriosas, e em 647 capitulou ti cid,lIl" dI' Tr(poli. Sob o próximo califa, Otoman, as conquist I', IIldlClld'dll1 mais lentamente. No norte da África os I rIH'I'''' '.(I 0llllllllcllll aos seus avanços, e o Império Bizantino, cu] I:, Iroll!1 Ir I:' t inhum
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sido empurradas até a Asia Menor, conseguiu finalmente deter o avanço do islã nesta direção. Além disso houve lutas internas entre os próprios mçulmanos, até que" Otoman foi atacado-e morto por um dos filhos de Abu Bequer. Apesar disto Otoman tinha dado os primeiros passos para criar uma esquadra árabe, e com ela conseguiu conquistar a ilha d,e Chipre, que até então tinha sido parte do Império Romano. A morte de Otoman não pôs muçulmanos. Seu sucessor, Ali, não quando ele morreu sucederam-lhe princfpio se dedicaram a consolidar sua capital em Damasco.
fim à guerra civil entre os pôde manter-se no poder, e os califas omfadas, que a seu poder, e estabeleceram
Por essas razões, durante a segunda metade do século VII as conquistas árabes foram mais lentas. Apesar de repetidamente atacarem Constantinopla e outras regiões vizinhas, suas forças eram rechaçadas. Sua principal conquista, o norte da África, exiqiu uma luta longa e dispendiosa, pois tanto os bizantinos como os berberes lhes resistiram passo a passo. Apesar disto Cartago capitulou em 695, e no fim do século muitos dos berberes tinham aceito o islã. Em 711 um exército muçulmano composto de mouros, berberes e árabes, sob o comando de Tarik, cruzou o estreito de Gibraltar (cujo nome se deriva do de Tarik) e derrotou o último rei godo, Rodrigo, perto de Jerez. Em pouco tempo toda a Espanha, com exceção da Astúria e da Gasconha ao norte, estava sob o domfnio muçulmano. Da Espanha as hostes vitoriosas passaram à França, onde se apossaram de boa parte da costa sul. Em 721 marcharam sobre Toulouse, e em 732 estavam perto de Poitiers quando foram derrotados pelos francos, sob o comando de Carlos Martel. Anteriormente, em 718, outro exército islâmico, apoiado pela esquadra, tinha atacado Constantinopla. O imperador Leão III tinha defendido valorosamente a cidade, e os muçulmanos tinham perdido quase toda sua esquadra e boa parte do seu exército. Outra expedição, dirigida contra a Sicflia em 720, também tinha fracassado. A primeira maré do avanço islâmico 111111 • começado a abaixar.
As conquistas árabes / 139
Na batalha de Tours (ou de Poitiers) os francos, sob o comando de CsrIas Martel, detiveram o avanço dos muçulmanos.
Conseqüências das conquistas Cem anos estavam entre a morte de Maomé e a batalha de Poitiers. Cem anos que mudaram a face do Mediterrâneo, e que teriam profundas implicações para o futuro da região e da igreja. Até então, apesar das invasões dos bárbaros, o Mediterrâneo tinha sido um lago romano. verdade que durante algum tempo os vândalos dominaram a navegação na parte a oeste da Itália. Porém este domínio foi breve, e nunca chegou a interromper a navegação entre o Egito e a Síria, de um lado, e Constantinopla e a Itália, por outro. Agora os muçulmanos tinham se apossado de toda a costa do Mediterrâneo, desde Antioquia, perto da Asia Menor, até Narbonne, no sul da França, e por isto o comércio cristão ficou limitado à porção nordeste do Mediterrâneo (os mares Egeu e Adriático), e o Mar Negro. Durante a idade de ouro do Império Romano, c ainda depois das invasões dos bárbaros, tinha existido um abundante comércio que levava ao Ocidente produtos procedentes do Egito, e mesmo do Extremo Oriente. De Alexandria era impor-
!:
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tado O papiro, tão necessário para copiar manuscritos antigos e produzir novas obras. Do Oriente provinham, através do Mar Vermelho, seda e especiarias. Depois das conquistas dos árabes este comércio cessou. Isto quis dizer, por um lado, que escasseou o papiro, e que os manuscritos tiveram de ser copiados em pergaminho. Mas quis dizer também que a Europa Ocidental ficou relativamente isolada das mais antigas civilizações do Egito, Síria e Extremo Oriente. Isto, por sua vez, obrigou-a depender dos próprios recursos, e a desenvolver a sua própria civilização. Por outro lado, as conquistas muçulmanas arrebataram à cristandade vários dos seus mais antigos centros de difusão e pensamento: Jerusalém, Antioquia, Alexandria e Cartago. Em conseqüência, só restaram duas cidades que poderiam disputar a hegemonia sobre o mundo cristão: Roma e Constantinopla. Ao redor de cada uma delas o cristianismo foi tomando formas próprias, até que houve a ruptura definitiva, como veremos, em 1054. Talvez o papa Leão III tivesse em mente algumas destas novas circunstâncias naquele dia de Natal de 800, quando cingiu a testa de Carlos Magno com a coroa imperial. Em todo caso, não há dúvidas de que estas circunstâncias foram fatores determinantes dos resultados do seu ato. O imperador de Constantinopla, quase sempre acossado por seus vizinhos muçulmanos, não tinha os recursos necessários para intervir decisivamente no Ocidente. Roma, por seu lado, se distanciava cada vez mais de uma igreja bizantina que parecia estar debaixo da tutela do poder imperial. Se a partir de então o mapa do cristianismo era traçado acima do eixo horizontal do Mediterrâneo, desde as consquistas árabes e a coroação de Carlos Magno ele seria traçado sobre um eixo vertical que ia de Roma até as Ilhas Britânicas, passando pelos territórios dos francos. O cristianismo bizantino cada vez mais estaria à margem deste mapa.
VII Sob o regime dos carolíngios Os poderosos que se cuidem ... para que não tomem para sua própria condenação as coisas da igreja, nem oprimam ... as igrejas de Deus, nem os lugares santos, sabendo que as propriedades da igreja são as promessas dos fiéis, o patrimônio dos pobres, o preço dos pecados. Hincmaro
de Reims
Quando deixamos o Ocidente, vários capítulos atrás, para narrar algo do que estava sucedendo no Oriente, o papa Leão III acabara de coroar Carlos Magno imperador. Apesar de- termos dito algo sobre o alcance desta decisão, devemos voltar novamente para o Ocidente, para estudar o curso dos acontecimentos sob Carlos Magno e seus sucessores. Carlos Magno Quando Carlos IVlagno foi coroado imperador pelo papa, quase toda a cristandade Ocidental fazia parte do seu Império, exceto somente as Ilhas Britânicas e as regiões remotas da Espanha onde os cristãos tinham se refugiado das invasões muçulmanas. Por isto o rumo que os acontecimentos tomariam em seu império teria amplas conseqüências para a história futura do cristianismo, e de toda a Europa. Carlos Magno, porém, não se limitou a estender seus ter ritórios entre seus vizinhos cristãos. I\'iais que isto, I, s . lunc u a uma grande campanha de conquista dos saxõ s . d S rr (sios, que habitavam além das fronteiras do seu irnpéri a nordeste, t
142/ A era das trevas
A coroação de Carlos Magno como imperador do Ocidente marcou uma nova época na história da Europa.
e contra os muçulmanos, seus vizinhos a sudoeste. As campanhas contra os saxões e fr ísios foram longas e sangrentas. Estes povos, que nunca tinham sido romanizados, atravessavam periodicamente as fronteiras dos francos, saqueavam as aldeias, igrejas e mosteiros, e regressavam com sua presa aos seus bosques, onde era muito diffcil persegui-los. Por isto, em 772, Carlos Magno invadiu seus territórios e penetrou até Irminsul, onde destruiu um grande tronco que era o (dolo principal dos saxões. Ao que parece, o propósito do rei franco era facilitar a conversão dos saxões ao cristianismo, e enfraquecer sua resistência destruindo sua religião. Depois de aceitar a rendição dos saxões, Carlos 1\1agno enviou missionários para sua região, que lhes ensinassem a fé cristã. Poucos anos depois, no entanto, quando o rei dos francos se viu obrigado a marchar para a Itália em sua campanha contra os lombardos, os lombardos se sublevaram, e mataram todos os
Sob o regime dos carollngios
Em 772 Carlos Magno destruiu
o
grande tronco
que era
o
/143
ídolo prin-
cipal dos saxões.
missionários. Então Carlos Magno invadiu de novo a região, sufocou a rebelião, e convocou uma assembléia nacional em Paderborn, onde os saxões, aparentemente pacificados, viram seu país ser organizado eclesiasticamente, com diversas dioceses e abadias, que deveriam se ocupar da sua cristianização. Carlos Magno estava ainda em Paderborn quando se lhe apresentou a oportunidade de invadir a Espanha. Um dos
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l íderes muçulmanos deste país lhe pediu ajuda em sua rebelião contra Abderraman I, que governava o país, com sede em Córdoba. O rei franco abandonou apressadamente a Saxônia, atravessou seus próprios territórios, e dividiu seu exército
1\ I ll/lfl/llil1('/u
do paz entre Carlos Magno e Vídequíndo.
Sob o regime dos carolíngios / 145
em duas metades, que cruzaram os Pirineus em dois lugares diferentes. Depois de tomar Barcelona, Hesca e Gerona, os dois exércitos se encontraram em Saragoça, cidade que supunha-se ser o centro da rebelião contra Abderraman. Saragoça, porém, se negou a abrir-lhes suas portas, e os francos começaram a temer que a suposta rebelião era uma farsa, e que tinham sido traídos. As coisas estavam assim quando chegaram notícias de que os saxões novamente tinham se rebelado, sob o comando do chefe Videquindo. Carlos Magno regressou às pressas à França, e nesta ocasião sua retaguarda, sob o comando de Rolando, foi aniquilada pelos bascos no passo de Roncesvales. Porém o rei continuou a sua marcha através dos seus próprios dom (nios, se apresentou inesperadamente na Saxônia, e sufocou a rebelião.
o batismo
de Videquindo
146/ A era das trevas
Quando, em 782, a rebelião irrompeu de novo, Carlos Magno decidiu afogá-Ia em sangue. Até então suas medidas depois de cada revolta tinham sido relativamente benignas. Porém desta vez, quando suas tropas dominavam novamente a região, e Videquindo tinha fugido para a Escandinávia, o rei dos francos ordenou que os saxões sofressem um castigo exemplar, e mais de quatro mil deles foram mortos em Verden.
I iopoís dos I[deres saxões quase todo o povo recebeu o batismo.
Sob o regime dos carolíngios /147
Esta matança exasperou os saxões, que se lançaram contra Carlos Magno em número maior do que antes. Tanto os saxões como os francos sabiam que esta era a última rebelião, e que por isto a luta deveria prosseguir até o final. Em 784 os frfsios, até então aliados dos saxões, se renderam aos francos, aceitaram o batismo, e se distanciaram da luta. Um ano depois Videquindo e seus principais chefes se renderam definitivamente e aceitaram o cristianismo. Seu batismo marcou o fim das revoltas dos saxões. Nesta história nos temos referido repetidamente ao batismo, tanto dos frfsios como dos saxões, como se este rito estivesse de alguma maneira relacionado com a rebelião e sua supressão. Na verdade existia uma relação estreita. Carlos Magno estava convicto de que se os saxões aceitassem o cristianismo eles perderiam seu caráter guerreiro e aceitariam boa parte da cultura dos francos. Assim os saxões deixariam de ser uma ameaça. Além disso, qualquer que tenha sido a intenção que o motivara nas primeiras campanhas, mais tarde Carlos Magno decidiu incorporar a Saxônia aos seus domínios, Como ele se considerava rei (e depois imperador) pela graça de Deus, parte da sua missão, na sua própria opinião, consistia em garantir que seus súditos fossem cristãos. Por outro lado, o batismo tinha certo poder imediato na pacificação dos saxões. Ao que parece, muitos deles criam que se aceitassem o batismo estariam abandonando os seus deuses, que, por sua vez, também os abandonariam. Logo, uma vez batizados, eles não tinham outra alternativa que ser cristãos. pois do contrário ficariam sem deus algum, para os proteger. Apesar de muitos dos que tinham sido batizados depois de uma campanha logo se juntavam à próxima, também houve muitos que se negaram a se rebelar novamente, baseando sua decisão no fato de terem sido batizados. Por seu lado Carlos Magno seguiu uma polrtica de pacificação que conseguiu em pouco tempo assimilar a Saxônia ao reino dos francos. Vários milhares de saxões foram transportados para outras regiões do império. E em sua própria terra o imperador deu o t ítulo de conde a alguns dos chefes que evidenciaram lealdade ao seu governo. Pouco depois seriam os saxões que aplicariam em seus vizinhos os mesmos métodos que Carlos Magno tinha empregado com eles.
148/ A era das trevas
o Império
de Carlos Magno
Enquanto tudo isto sucedia Carlos Magno não abandonou totalmente seu interesse na Espanha. Sob o comando do seu filho Ludovico, o Pio, e o duque Guilherme da Aquitânia, os francos conquistaram uma larga faixa de terreno que se estendia até o Ebro. Ao mesmo tempo Carlos Magno parece ter posto alguns recursos à disposição do rei Afonso II, o Casto, rei das Astúrias, que começava o longo processo de reconquista da pen(nsula ibérica. Dentro dos seus próprios territórios Carlos Magno também se dedicou a organizar e supervisionar a vida da igreja. Parece que o imperador tinha a convicção de ser chamado para governar seu povo, não só em assuntos civis mas também nos eclesiáticos. Ainda mais, Carlos Magno parece não ter feito nenhuma distinção entre estesdois campos. Os bispos eram nomeados pelo rei assim como os condes, e assim desapareceu o antigo costume de os bispos serem eleitos pelo clero ou pelo povo. Como sob Carlos Magno cada bispo era diretamente responsável diante do rei, a função dos arcebispos era mais de honra que de autoridade. Sob Ludovico, o Pio, o próximo rei, os
anúbio
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mirado de Córdoba
Sob o regime dos carolíngios / 149 arcebispos começaram a ter mais poder, e mais tarde passaram a ser poderosos senhores feudais. Além de nomear os bispos, Carlos Magno também legislou acerca da vida da igreja. Esta legislação incluiu o descanso dominical obrigatório, a imposição do dizimo como se fosse um imposto, e a ordem de pregar de maneira simples e na I íngua do povo. Sob os governos anteriores o monasticismo tinha perdido sua inspiração inicial, pois as abadias tinham se transformado em ricas prendas, cobiçadas e freqüentemente obtidas por pessoas que não tinham o menor interesse na vida rnonástica, e que somente queriam ficar ricos e poderosos. Carlos Magno empreendeu uma reforma dos mosteiros, confiada a Benedito de Aniano (que não deve ser confundido com Benedito de Núrsia, o autor da Regra). Benedito de Aniano tinha abandonado a corte real para se dedicar à vida monástica, e sua sabedoria, austeridade e obediência à Regra logo lhe conquistaram o respeito do rei, que o incumbiu da tarefa de reformar e supervisionar a vida monástica. Isto nosso monge fez aplicando em todo o país a Regra de São Benedito, que assim foi mais difundida. Ao mesmo tempo, Carlos Magno também se preocupou com a educação dos seus súditos e com o cultivo das letras. Com este propósito ele reformulou a escola paladina, que existia desde o tempo dos merovingios (a dinastia anterior). Freqüentaram esta escola não só os filhos dos nobres da corte, mas também o próprio rei, desejoso de aumentar os seus conhecimentos. Carlos Magno mandou vir para ela o diácono AIquino de York, que tinha conhecido na Itália, e que levou ao reino dos francos a erudição que se tinha conservado nos mosteiros britânicos. Da Espanha veio Teodulfo, que o rei nomeou bispo de Orleans. Ali este sábio bispo ordenou que em todas as igrejas da sua diocese houvesse uma escola, e proibiu que seus sacerdotes se negassem a ensinar os pobres, ou que exigissem pagamento pelo ensino. Depois destes grandes mestres vieram muitos outros, bem como poetas e historiadores, cujos nomes não é necessário relacionar aqui, porém que contribu iram para um reflorescimento das letras sob o regime de Carlos Magno e de seus sucessores.
150/ A era das trevas
Os sucessores de Carlos Magno Normalmente, de acordo com os antigos costumes dos francos, os territórios de Carlos Magno deveriam ter sido divididos entre seus filhos. Porém quando o velho rei decidiu que tinha chegado a hora de nomear seu sucessor, só um dos seus filhos leg(timos ainda estava vivo: Luís, ou Ludovico, que recebeu o apelido "o Pio" por causa das suas inclinações religiosas. Apesar de ele ter dado mostras de habilidade administrativa e militar enquanto gozou do tftulo de rei da Aquitânia sob seu pai Carlos Magno, a verdade é que ele preferia ser monge que imperador, e que somente a mão forte do seu pai e os conselhos de vários eclesiásticos que ele admirava o impediram de tomar a tonsura monástica. Os primeiros anos de governo de Ludovico, o Pio, sem dúvida foram os melhores. Na primeira dieta (ou assembléia do Império) foram adotadas uma série de medidas que mostravam o caminho que Ludovico se propunha seguir. Destas a mais notável foi que enviou por todo I mpério enviados imperiais que deveriam investigar qualquer caso de opressão ou usu rpação de poder q ue tivesse ocorrido. Animada pelo mesmo espírito reformador do imperador a dieta de 817 ordenou que todos os mosteiros se submetessem a Benedito de Aniano, e que a eleição dos bispos recaísse novamente sobre o clero e o povo. Com este último passo Ludovico se desfazia de um dos mais poderosos instrumentos que seu pai tivera em mãos, pois a partir daquele momento o alto clero não lhe devia a lealdade absoluta que devera a Carlos Magno. Esta mesma dieta proibiu também a todos os clérigos qualquer ostentação de luxo, como cinturões com pedras preciosas e esporas de ouro. As propriedades eclesiásticas ficariam fora da jurisdição dos nobres. O d (zimo, ainda obrigatório, seria dividido em três partes, das quais uma pertenceria ao clero e as outras duas aos pobres. Em todas estas leis pode-se ver o fio central da pol ítica eclesiástica de Ludovico, que consistia em reformar a igreja ao mesmo tempo que lhe dava maior autonomia. O grande perigo desta pol ftica é que era possível (e assim sucedeu) que os dirigentes eclesiásticos usassem sua nova autonomia contra as intenções reformadoras do imperador, e contra o próprio imperador.
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Os conflitos começaram quando morreu a imperatriz Hermengarda, e o imperador tomou por esposa a bela e inteligente Judite. Não tardou a nascer um filho desta união, e os três filhos de Hermengarda, que Ludovico tinha nomeado seus sucessores, começaram a temer que seu meio-irmão os deporia. O resultado foi uma longa e complicada guerra civil. Durante o conflito, Ludovico se deixou levar repetidamente por suas inclinações religiosas, perdoando os rebeldes, enquanto estes aproveitavam todas as oportunidades que surgiam para humilhá-lo, e até chegaram a depô-lo. Depois de voltar ao trono Ludovico perdoou mais uma vez seus filhos rebeldes e seus pertidários. Quando ele morreu seus domínios foram divididos entre três de seus filhos, pois um dos que tivera de Hermengarda morrera. Lotário, o mais velho, guerreou contra seus irmãos até que, por fim, no tratado de Verdun de 843, os territórios que tinham pertencido a Carlos Magno e a Ludovico, o Pio, foram divididas desta forma: Lotário recebeu o tftulo de imperador, a Itália e uma faixa de terras entre a Alemanha e a França; Lu (s, o outro filho de Hermengarda, recebeu a Alemanha; e França coube a Carlos, "o Calvo", filho de Judite. A partir de então o velho império carol (ngio sofreu uma decadência quase sem interrupção. Geralmente o tftulo imperial, de que os papas diziam dispor, recaía sobre quem governava a Itália. Porém os que reinavam em outras regiões não pareciam lhe prestar a menor obediência. Além disto os muçulmanos tinham se apossado de Palermo, na Sicflia, e dali passaram para o sul da Itália. Em 846 eles chegaram a atacar Roma e a saquear as basflicas de São Pedro e de São Paulo, que ficavam fora dos muros da cidade. Em tais circunstâncias, os impedores que reinavam na Itália dificilmente podiam fazer valer a sua autoridade na França e na Alemanha. Sob Carlos, o Gordo, por uma série de circunstâncias, a maior parte dos territórios do Império ficou novamente debaixo de um só soberano. Esta unidade, porém, foi efêmera, e quando Carlos morreu, em 887, podemos dizer que se extinguiu o último brilho da glória carol (ngia. Durante todo este período de lutas fratricidas, guerras civis, disputa de heranças, deposição e reposição de reis, etc., o papado se encontrava em situação muito estranho. -rn virtude
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do ato de Leão III, de coroar Carlos Magno, os papas pareciam gozar da autoridade para coroar os imperadores. Por esta razão seu prest(gio era grande além dos Alpes, onde cada partido queria assegurar o seu apoio. Porém em Roma o caos era tal que muitos papas se viram ameaçados, ou pelo povo, ou por alguma das facções que disputavam o poder na cidade. Para se manter no comando, os papas repetidamente se viram necessitados de apelar para o poder secular. Desta forma, os que pareciam ter poder para dispor do Império não podiam dispor da própria cidade de Roma. Isto, por sua vez, fez do papado uma presa fácil e cobiçava, e no próximo século o levou ao caos e à corrupção.
o sistema
feudal
Como dissemos anteriormente, pouco antes de Carlos Magno ascender ao trono dos francos tinha havido uma grande mudança pol (tica na margem do Mediterrâneo. As conquistas árabes tinham posto um fim no domínio cristão sobre este mar, que tinha sido um lago romano peste tempos do imperador Augusto. O resultado disto foi que a Europa ocidental teve de recorrer aos seus próprios recursos, pois o comércio com o Oriente foi reduzido drasticamente. Alguns historiadores demonstraram que na época de Carlos Magno tinha cessado o grande comércio, não só com o exterior, mas também dentro dos seus próprios domínios. Apesar de ainda existir alguma navegação comercial no Adriático e perto dos Pafses Baixos, isto não era suficiente para produzir um comércio abundante. Em conseqüência disto o dinheiro deixou de circular, até o ponto de desaparecerem quase por completo as moedas de ouro. Cada região tinha de sobreviver por si, produzindo tudo que fosse necessário para alimento e vestuário. Em tais circunstâncias a terra, e não o dinheiro, veio a ser a principal fonte de riqueza. O propósito de todo grande proprietário era aumentar as suas terras, e os proprietários pequenos tentavam de todas as maneiras evitar que suas terras lhes fossem tiradas. Além disto, na falta do comércio, um dos principais meios que os reis tinham para recompensar o sorviço e a lealdade de algum súdito era conceder-lhe terras.
Sob o regime dos carol íngios / 153
A hierarquia feudal pode ser vista nesta gravura da "árvore das batalhas", tirada de um manuscrito medieval. Observe que nela lutam anjos contra anjos, reis contra reis, bispos contra bispos, etc., porém ninguém luta contra seu superior.
154 / A era das trevas
Assim surgiu o sistema feudal. Esse sistema consistia em toda uma hierarquia, baseada na posse da terra, em que cada senhor feudal, enquanto recebia homenagens de seus vas-
() regime feudal, freqĂźentemente idealizado em livros e filmes, se baseava suor dos servos, duramente explorados e oprimidos.
III}
Sob o regime dos carol íngios / 155
salos, devia uma homenagem semelhante a outro senhor que estava por cima dele. As terras que o vassalo recebia de seus senhor eram os "feudos", de onde vem o nome "sistema feudal". Esta "homenagem" era o rito através do qual eram seladas as relações entre o vassalo e seu senhor. Nele o primeiro jurava fidelidade ao segundo, enquanto colocava suas mãos entre as deste, que respondia então outorgando ao vassalo o "beneHcio", simbolizado por um punhado de terra quando se tratava simplesmente de terra, ou por um cajado e um anel quando se tratava de um bispado, ou por outros objetos, de acordo com o caso. A relação entre o vassalo e seu senhor a princfpio não era hereditária. Quando uma das partes morria, o contrato expirava, e era necessário fazer um novo ato de homenagem. Além disto o vassalo ficava livre de suas obrigações para com seu senhor se este faltava de algum modo com as suas (se, por exemplo, ele se negava a vir socorrê-lo, podendo fazê-lo). E, da mesma fora, o senhor não tinha nenhum compromisso com um vassalo desleal. Não demorou, todavia, para os feudos se tornarem hereditários. Apesar de durante longo tempo ser mantido o costume de vir render nova homenagem ao novo senhor quando morria o anterior, esta homenagem veio a ser quase automática, e os feudos eram herdados como qualquer outra propriedade. Como as farnílias se uniam freqüentemente, passou a ser comum o caso de vassalos que deviam homenagem a vários senhores, e que se desculpavam da obediência que deviam a um deles com base na obediência devida a outros. O resultado foi a fragmentação pol ítica e econômica da Europa ocidental, e a decadência das diversas monarquias, que dificilmente podiam exercer sua autoridade. Isto afetou também a vida da igreja, pois os bispados e suas terras anexas eram também feudos cujos possuidores deviam obediência a algum senhor, e que também tinham vassalos. Como já nesta época os bispos não podiam ser casados, seus feudos não passavam a seus filhos, como no caso dos outros senhores feudais. O mesmo valia para abades e abadessa', que chegaram a possuir enormes extensões de tem) e milh.u os
156 / A era das trevas
Quando surgiam questões entre iguais, apelava-se às vezes ao "juízo de Deus", que consistia em um duelo em que a vitória era prova do favor de Deus, e por isto também da justiça da causa do vencedor.
de vassalos. Em conseqüência, o assunto da sucessão a estes cargos eclesiásticos se tornou um assunto de grande importância polftica, e no próximo volume veremos as dificuldades que isto causou, tanto para a igreja como para os governantes seculares. A atividade teológica Já que durante o efêmero governo carol (ngio houve um despertar do estudo das letras, era de se esperar que houvesse
Sob o reçimo
(}Ú
f.'lurJiíngios /157
também certa atividade teológica. A não ser a bra de João Escoto Erigena, esta atividade se limitou a uma série de controvérsias, cujos temas nos indicam quais eram as principais inquietações teológicas da época. O único pensador sistemático, que tentou incluir em sua obra a totalidade do universo, foi João Escoto Erigena. Seu nome nos dá a entender-que ele era oriundo da Irlanda, que através dos séculos tinha conservado em seus mosteiros boa parte dos conhecimentos da antiguidade, esquecidos pelo restante da Europa ocidental. Em meados do século IX Erigena se estabeleceu na corte de Carlos, o Calvo (o filho de Ludovico, o Pio, e Judite), onde chegou a gozar de grande prestígio, por causa da sua erudição. Foi ele quem traduziu do grego as obras do falso "Dion [sio, o Aeropagita". No século V alguém tinha composto estas obras, fazendo-se passar por Dion fsio, o discípulo de Paulo no Aerópago. Quando elas foram trazidas à Europa na época de Carlos, o Calvo, ninguém duvidava da sua autenticidade, e foi Erigena quem as traduziu do grego para o latim. A partir de então o falso Dionísio gozou de grande prestfgio, pois era considerado sucessor imediato de Paulo. Através dele o misticismo neoplatônico teve um grande impacto na igreja de fala latina, que chegou a confund f-lo com os ensinos de Paulo. Além de traduzir as obras do falso Dion fsio, Erigena escreveu um grande tratado, Da divisão da natureza, cujos ensinos são mais neoplatônicos que cristãos. Mas em todo caso seu tom era tão erudito e suas especulações tão abstratas que foram poucos os que o leram, menos os que o entenderam, e parece que ninguém o aceitou ou seguiu. Muito mais importantes para a vida da igreja foram as controvérsias teológicas que tiveram lugar no período carol fngio. Destas, a mais importante, por causa das suas conseqüências que perduram até os nossos dias, foi a que se referia ao Filioque. A palavra Filioque quer dizer "e do Filho", e algumas igrejas ocidentais a tinham interpolado no Credo Niceno, de modo que onde a igreja oriental dizia "e no Espfrito Santo, que procede do Pai", algumas igrejas ocidentais começaram a dizer "no Espírito Santo, que procede do .Pai e do Filho", Ao que parece a palavra Filioque foi acrescentada pela prin u i, I
158 / A era das tre vas
vez na Espanha, e dali passou para o reino dos francos. Em todo caso, na capela real de Aix-Ie-Chapel, a capital de Carlos Magno, costumava-se incluir esta palavra no Credo. Quando alguns monges procedentes do reino franco se apresentaram em Jerusalém e repitiram o Credo com esta estranha interpolação, causaram um escândalo na igreja oriental, que se perguntava quem tinha dado autoridade aos francos para mudar o antigo Credo, aceito pelos concflios e por todos os cristãos ortodoxos. Parte do que estava em jogo eram duas maneiras um pouco diferentes de entender a doutrina da Trindade. Mas a controvérsia ficou muito mais amarga porque existiam fortes rivalidades entre as igrejas do Oriente e do Ocidente. Quando Carlos Magno recebeu do papa o título de imperador o governo de Constantinopla declarou que isto era uma usurpação de poder, e que o rei dos francos não era verdadeiramente imperador. Os francos afirmaram que a negação do Fi/ioque era heresia, e os bizantinos, por seu lado, responderam que hereges eram os que ousavam mudar o Credo. Até o dia de hoje esta continua sendo uma das questões que separam as igrejas orientais das ocidentais. Por outro lado, esta controvérsia teve outra conseqüência, que se faz sentir até o dia de hoje no culto público de muitas das nossas igrejas. Nesta época o credo mais comum utilizado por todas as igrejas era o Niceno. Porém agora o papa se via na dif ícil situação de ter de tomar partido entre os francos e os bizantinos cada vez que tinha de dizer o Credo. Sua solução consistiu em começar a usar o velho Símbolo Romano, que tinha caído em desuso séculos antes, e que a partir de então passou a ser chamado de "Credo dos apóstolos". Deste modo o papa evitava ter de decidir entre os francos e os bizantinos. A partir de Roma o credo dos apóstolos foi se difundindo por todo o restante da Europa ocidental, e por esta razão atualmente ele é o mais usado nas igrejas ocidentais, tanto católicas como protestantes. Outra controvérsia teológica do período carol íngio girou ao redor das doutrinas de Elipando de Toledo e Félix de Urgel, ambos espanhóis. Na Espanha existiam muitos cristãos que não tinham fugido para o norte durante as invasões islâmicas, e que viviam agora sob o regime muçulmano. Estes cristãos, os
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"moçárabes", conservavam suas antigas tradições de tempos pré-islâmicos, inclusive sua ordem de culto, conhecida como a "liturgia moçárabe". Enquanto Carlos Magno começava a reconquistar algumas das terras perdidas para o islã na Espanha; estes moçárabes se mostraram zelosos das suas antigas tradições, que os francos queriam substituir pelos costumes de Roma e da França. Desta forma havia razões de tensão entre os moçárabes e os francos, ainda antes de estalar a controvérsia. O conflito começou quando o arcebispo Elipando de Toledo, baseando-se em algumas frases da liturgia moçárabe, disse que, quanto à sua divindade, Cristo era Filho eterno do Pai, porém quanto à sua humanidade ele era filho "somente por adoção". Por causa desta frase a posição de Elipando tem sido chamado "adocionismo". Este nome, porém, não é exato, pois os verdadeiros adocionistas da igreja antiga diziam que Jesus- tinha sido um homem comum e vulgar, que Deus adotara por filho. Elipando não dizia isto. Na sua opinião sempre fora divino. Porém ele achava necessário insistir na distinção entre a divindade e a humanidade do Salvador, e por isto falava de duas maneiras de ser "filho", uma eterna e a outra por adoção. Portanto, não estamos diante de um verdadeiro adocionismo, mas de uma distinção enfática entre as duas naturezas do Salvador, que séculos antes caracterizou a escola de Antioquia, e cuja conseqüência extrema foi condenada no concflio de Éfeso, quando Nestor foi declarado herege. Contra estes ensinos de Elipando, que logo encontraram eco no bispo Félix de Urgel, outros insistiam na união estreita das duas naturezas do Salvador. Assim, por exemplo, Beato de Liébana dizia: ... os incrédulos não podiam ver naquele que crucificavam outra coisa que um homem. E como homem o crucificaram. Crucificaram o Filho de Deus. Crucificaram a Deus. Meu Deus sofreu por mim. Meu Deus foi crucificado por mim. Os ensinos de Elipando e Félix foram logo condenados pelos teólogos francos e pelos papas. Elipando, que estava fora do seu alcance por viver em terras de mouros, continuou afir mando suas doutrinas. Porém Félix foi obrigado a retratar SI,
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e mais tarde não recebeu perrmssao para retornar a Urgel, onde a influência dos moçárabes era grande, e teve de passar o restante dos seus dias entre os francos. Depois que Elipando e Félix morreram a controvérsia ficou relegada a segundo plano. Enquanto isto, todavia, outras controvérsias tinham aparecido dentro do próprio reino franco. De todas estas, as que mais nos interessam são as que se referem à predestinação e à presença de Cristo na comunhão. A controvérsia acerca da predestinação girou ao redor do monge Gotescalco, que tinha sido colocado no mosteiro de Fulda quando ainda criança. Gotescalco se dedicou ao estudo das obras de Santo Agostinho, e chegou à conclusão, historicamente correta, de que a igreja do seu tempo tinha se distanciado dos ensinos do bispo de Hipona no que referia à predestinação. Por diversas razões Gotescalco tinha provocado a inimizade dos seus superiores, e por isto, quando ele fez públicas as suas opiniões sobre a predestinação, não faltaram os que aproveitaram esta ocasião para atacá-lo. Um destes inimigos de Gotescalco era Rabão Mauro, abade de Fulda, e outro era o poderoso arcebispo Hincmaro, de Reims. Depois de uma série de debates Gotescalco foi declarado herege e encerrado em um mosteiro, onde diz-se que ele perdeu a razão pouco antes de morrer. Apesar de alguns dos pensadores mais eruditos do seu tempo terem-no defendido em alguns pontos, estava claro que a igreja não estava disposta a aceitar as doutrinas de Santo Agostinho sobre a graça e a predestinação, ao mesmo tempo que fazia de conta que era exatamente sobre o Santo de Hipona que ela baseava os seus ensinos. A outra controvérsia importante tinha a ver com a presença de Cristo na Eucaristia. O motivo desta controvérsia foi uma obra do monge Radberto, Do corpo e do sangue do Senhor. Nesta obra Radberto dizia que quando o pão e o vinho eram consagrados, eles se transformavam no corpo e no sangue do Senhor. Já não eram pão e vinho, mas o próprio corpo que nasceu da virgem Maria e que se levantou do sepulcro, e o mesmo sangue que correu no Gólqota. Na opinião de Radberto, apesar de esta transformação ser algo envolto em mistério, que os sentidos normalmente não podem perceber, há casos
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extraordinários em que o crente pode ver o corpo e o sangue do Senhor, em lugar de pão e vinho. Quando Carlos, o Calvo, leu o tratado de Radberto, não entendeu bem o que nele se dizia, e pediu esclarecimentos ao monge Ratramno de Corbie. Este lhe afirmou que, apesar de o corpo de Cristo estar verdadeiramente presente na comunhão, esta presença não é a mesma de qualquer outro corpo, e que em todo caso o corpo eucarístico não é o corpo histórico de Jesus, que se encontra nos céus, à direita do Pai. Esta controvérsia nos mostra que foi durante o período obscuro que seguiu às invasões dos bárbaros que começou a tomar forma a doutrina segundo a qual o pão e o vinho se transformam em corpo e sangue do Salvador, e deixam de ser pão e vinho. No período carol íngio, se bem que esta opinião tenha-se generalizado, os mais estudiosos sabiam que se tratava somente de um exagero popular. Pouco depois começarão a falar em "mudança de substância", e por fim, no século XIII, o quarto condlio de Latrão (1215) promulgou a doutrina da transu bstanciação. Estas são somente algumas das muitas controvérsias que apareceram no período carol (nqio. À primeira vista poderíamos pensar que se trata de uma série de discussões sem sentido, que não levaram a nenhuma conclusão. Porém quando vemos o que estava ocorrendo no contexto dos séculos anteriores, notaremos por que alguns historiadores se referem ao "renascimento carol (nqio". Em meio à escuridão e do caos que pareciam reinar amplamente durante os primeiros séculos da Idade Média, o período carol [nqio pareceu ser um novo começo. O renascimento carol ínqio foi relativamente efêmero. Um século depois da coroação de Carlos Magno em Roma suas possessões estavam divididas entre vários poderosos, e o título imperial se transformara em uma honra quase vazia. Porém o próprio fato de que o Império Romano do Ocidente voltara a ser recriado anunciava o dia em que este Império, junto com o papado e o monasticismo, seria um dos fatores determinantes no curso da Europa e da igreja medievais.
VIII A igreja do Oriente depois das conquistas árabes Muitos cristãos têm chegado até nós, alguns deles italianos, outros gregos e outros alemães, e cada qual nos tem falado a seu modo. Porém nós, eslavo, somos gente simples, e não temos quem nos ensine a verdade ... Por isto rogamos que nos envies alguém que seja capaz de nos ensinar toda a verdade. Ratislau da Morávia a Miguel de Constantinopla No caprtulo IV seguimos o curso da igreja bizantina até que terminou a querela acerca das imagens. Pouco depois vimos que na época destas disputas o Império Bizantino tinha perdido todas as suas possessões na Africa e na Asia, exceto a Asia Menor. Ao mesmo tempo o Ocidente se fazia cada vez mais independente da tutela de Constantinopla, até que chegou a coroar o seu próprio imperador, na pessoa de Carlos Magno. Dadas estas circunstâncias, poder íamos supor que a igreja orientai entraria em um perfodo de decadência. De certa forma, foi isto que aconteceu. Porém aquela igreja, cercada a sul a leste pelos muçulmanos, encetou um ativo programa missionário no norte e no noroeste, ao mesmo tempo que aprofundava suas diferenças com o cristianismo ocidental. Portanto, estes dois aspectos da vida da igreja bizantina, suas missões e suas relações com Roma, ocuparão nossa atenção no presente cap (tu lo. A expansão
do cristianismo
bizantino
Depois dos germanos outros povos tinham se e tobr II cld na Europa central. Destes o mais numeroso era osluvo, I;llllll.
164/ A era das trevas
As missões bizantinas
diversas ramificações ocupavam o que hoje é Polônia, os pa(ses bálticos, e parte da Rússia, Checoslováquia, Iugoslávia e Grécia. Os que tinham cruzado o Danúbio estavam, pelo menos de nome, sob o governo de Constantinopla. Os demais estavam divididos em diversas tribos e reinos. Pouco depois os búlgaros
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tinham se apossado de boa parte das margens do Danúbio, onde governavam sobre uma população formada por eslavos e por antigos súditos de Bizâncio. Isto significava que o governo de Constantinopla tinha de cuidar das suas fronteiras, não só contra os muçulmanos a sul e leste, mas também contra os búlgaros ao norte. Nestas circunstâncias a carta do rei Ratislau da Morávia que citamos no princfpio deste cap(tulo foi recebida em Constantinopla como uma bênção do céu. Os morávios eram um povo eslavo cujos territórios ficavam ao norte dos búlgaros. Logo, se Constantinopla conseguisse estabelecer uma aliança com eles, o perigo búlgaro estaria reduzido. Ratislau também tinha suas razões para buscar contatos mais (ntimos com Constantinopla. Durante algum tempo seus vizinhos germanos do oeste, que integravam o Império do Ocidente, estiveram tentando convertê-lo. Porém esta conversão era claramente um meio de conquista, pois a internção era aplicar com os morávios os mesmos métodos que Carlos Magno tinha empregado no caso dos saxões. Para os morávios sua conversão ao cristianismo ocidental equivaleria a perder a sua independência. Por isto Ratislau tinha razões pol íticas par~ estabelecer contatos mais (ntimos com Constantinopla, que nlo tentaria usar sua conversão ao cristianismo como meio de dominar diretamente sobre o pa(s. Para responder à petição de Ratislau, Miguel decidiu enviar dois irmãos, Cirilo (também conhecido por Constantino) e Metódio, até a Morávia. Estes dois missionários tinham crescido nos Balcãs, onde havia muitos eslavos, e por isto conheciam seu idioma. Além disso eles tinham demonstrado sua habilidade em outro empreendimento missionário algum tempo antes na península da Criméia. Na Morávia, Cirilo e' Metódio se dedicaram ao ensino, à pregação e à organização da igreja. Porém o aspecto mais importante da sua obra foi a tarefa de colocar o idioma eslavo em forma escrita, desenhar um alfabeto para este propósito, e depois traduzir para o eslavo tanto a Bfblia como a liturgia da igreja, e outros livros. O alfabeto cirflico (que se chama assim em honra ao seu criador) era uma adaptação do grego, e até o dia de hoje é usado em diversos idiomas de origem eslava.
166/ A era das trevas
Os germanos, no entanto, não estavam dispostos a permitir que os territórios moravos, para onde tinham dirigidos seu olhar cobiçoso, escapassem das suas mãos. Não tardou para os missionários germanos começarem a fazer intrigas contra Cirilo e Metódio, ainda mais porque parecia que o país estava caminhando para uma conversão em massa. Por isto acusaram os dois irmãos de heresia por celebrar a missa no idioma do povo, dizendo com isto que somente era Iícito celebrar os sagrados mistérios em hebraico, grego ou latim. A acusação chegou a Roma, e para lá se dirigiram nossos dois missionários, desejosos de defender sua causa. Com este passo começavam uma pol ftica diffcil, pois Roma e Constantinopla disputavam o domfnio eclesiástico da região da Morávia e arredores. Em todo caso os papas Adriano II e João VII tomaram partido contra os germanos, que aos seus olhos estavam se tornando poderosos demais. Depois da morte de Cirilo em 869 João VII con-
1111 'III!,
(J,\
IlIíllgaros
invadiram
a região e destruirem
o
reino dos morávios.
A igreja do Oriente depois das conquistas árabes / 167
sagrou Metódio arcebispo de Sirmio, com jurisdição sobre toda a área disputada. Isto colocou o missionário sob a proteção de Roma, porém o distanciou tanto de Constantinopla como dos germanos. Esta inimizada chegou a tal ponto que quando Metódio se dirigia para sua diocese ele foi capturado e encarcerado por longo tempo, por ordem do arcebispo de Salzburgo. Por fim foi posto em liberdade e regressou à Morávia, onde continuou trabalhando até sua morte em 885. Depois da morte de Cirilo e Metódio o trabalho missionário entre os eslavos foi dividido entre os ocidentais e os bizantinos. A igreja que eles tinham fundado na Morávia não demorou a desaparecer, pois em 906 os húngaros invadiram a região, e o reino morávio se desfez. Alguns dos convertidos fugiram de lá para o território dos búlgaros, que tinham se convertido pouco antes. Outros continuaram praticando sua religião sob os húngaros. Quanto aos demais povos eslavos, alguns se uniram à cristandade ocidental, e outros seguiram a inspiração de Bizâncio. Por isto os atuais países Polônia, Estônia, Lituânia e Letônia são tradicionalmente católicos romanos, enquanto a Rússia se juntou à tradição oriental, pouco mais de um século depois da obra de Cirilo e Metódio. Para seguir uma ordem cronológica antes de tratar da conversão da Rússia devemos nos ocupar dos acontecimentos que ocorreram entre os búlgaros. Também entre eles estiveram tanto missionários latinos como bizantinos. De fato, como veremos na próxima seção deste cap(tulo, a questão de se os búlgaros estavam debaixo da jurisdição eclesiástica de Roma ou de Constantinopla foi um dos fatores que contribu íram para aumentar as tensões entre o cristianismo oriental e o ocidental. Em 865 o rei dos búlgaros, Bóris, decidiu abraçar a fé cristã, pois em seus territórios havia numerosos missionários, tanto latinos como bizantinos. Depois de receber o batismo o rei quis que a igreja em seu país contasse com um arcebispo e pediu um a Fócio, o patriarca de Constantinopla. Como Fócio lhe pedisse mais detalhes e impusesse condições, o rei se dirigiu ao papa Nicolau, que se contentou em lhe enviar dois bispos, e em lhe comunicar a opinião dos ocidentais sobre diversas questões de fé e costumes. Um destes dois bispos, Formoso de Oporto, conseguiu conquistar a simpatia do rei, que pediu
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ao papa que nomeasse Formoso arcebispo dos búlgaros. Porém Nicolau lhe respondeu que Formoso já era bispo de Oporto, e que era proibido transferir um bispo de uma sede para outra. Magoado com a resposta do papa Bóris se voltou novamente para Constantinopla, onde o novo patriarca, Inácio, consagrou um arcebispo e vários bispos para dirigir e organizar a vida da igreja na Bulgária. A impaciência de Bóris com Roma e Constantinopla não deve ser interpretada como um capricho de um rei mal-educado. Pelo contrário, Bóris parece ter sido um cristão convicto, que queria mesmo que seu pa(s conhecesse o evangelho, e que por esta razão perdia a paciência diante das sutilezas e exigências do papa e do patriarca. Depois de muitos anos de reinado Bóris decidiu se retirar para a vida monástica, e abdicou em favor de seu filho Vladimir. a novo rei, porém, encabeçou logo uma reação pagã, e seu pai saiu do mosteiro, depôs o filho, e colocou sobre o trono Simeão, irmão menor de Vladimir. Sob Simeão o cristianismo progrediu rapidamente na Bulgária. a rei, que antes de ser coroado tinha sido monge, trouxe a seu país vários discípulos de Cirilo e Metódio, que se ocuparam do trabalho missionário entre seus súditos eslavos. Além disto ele mandou traduzir as Escrituras para o búlgaro, bem como outros livros cristãos. A igreja deste país seguiu a partir de então as tradições orientais, se bem que ao mesmo tempo afirmava sua independência de Constantinopla. Em 917 o rei tomou o tftulo de "czar", isto é, César ou imperador, e em 927 seu arcebispo tomou o dtulo de "patriarca". Apesar de no princfpio as autoridades de Constantinopla considerarem estes tftulos uma usurpação, mais tarde o reconheceram. a outro país onde as missões bizantinas tiveram um êxito notável e duradouro foi a Rússia. Apesar de a maioria da população ser eslava, esta se encontrava submetida a um governo escandinavo, que tinham invadido o país, vindos do norte. Como veremos no próximo cap ítulo, durante esta época os povos escandinavos começaram uma série de ataques e invasões por toda a Europa. Suas conquistas na Europa oriental os transformaram em donos da Rússia, onde estabeleceram um reino .uja capital foi primeiro Novgorod, e depois Kiev.
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Por volta de 950 a rainha Olga, que tinha estado em contato com missionários de origem germânica, se converteu para o cristianismo, e tentou converter todos os seus súditos. Porém seus esforços não foram permanentes, e foi o rei Vladimir, neto de Olga, que conseguiu que o cristianismo lançasse raízes profundas em todo o país. Por razões não de todo claras Vladimir mandou vir missionários, não do Ocidente, mas do Império Bizantino. As fontes também não concordam se ele usou a força para converter os seus súditos, como o fizeram outros reis escandinavos. Mas está claro que milhares, por uma razão ou outra, o seguiram à fonte batisrnal. O filho de Vladimir, laroslau, continuou a sua obra, e estabeleceu laços cada vez mais (ntimos com Constantinopla, enquanto se distanciava de Roma e do cristianismo ocidental. Esta conversão em massa, no começo sem dúvida superficial, mesmo assim lançou profundas rafzes, Quando, em 1240, os mongóis invadiram o pa(s, e o dominaram por mais de dois séculos, foi a fé cristã o vfnculo nacional que permitiu aos russos sobreviver como nação, e por fim se livrar do jugo mongol. No século XVI, depois de os turcos conquistarem Constantinopla, os russos declararam que Moscou era a "terceira Roma", e seu rei tomou o t ítulo imperial de "czar", enquanto o metropolita de Moscou começou a se chamar de "patriarca". Em resumo, apesar de suas fronteiras constantemente estarem ameaçados pelos muçulmanos, búlgaros e outros, o cristianismo bizantino conseguiu deixar sua marca tanto na Bulgária como na Rússia, e esta marca não se desfez até os nossos dias. As relações com Roma
Depois da querela com as imagens, as relações entre Roma e Constantinopla foram ficando cada vez mais tensas. Roma já não precisava do apoio do imperador de Constantinopla, pois tinha procurado seus próprios imperadores em Carlos Magno e seus sucessores. Além disto a prolongada controvérsia por causa das imag ns tinha convencido os oci I n tais que o cristianismo oriental estava de tal modo sub reli nado aos caprichos imperiais que facilmente se doixurin Il v Ir
170/ A era das trevas para a heresia. Os orientais, por seu lado, não gostavam da maneira com que os papas começaram a se referir a si mesmos como se gozassem de autoridade universal, e não mais como patriarcas do ocidente. Todas estas razões levaram, por fim, ao cisma entre o patriarca Fócio e o papa Nicolau I. Fócio devia sua posição a um golpe no palácio, cujos l íderes tinham deposto o patriarca Inácio e o colocado em seu lugar. Ele era um homem estudioso, devotado e sincero, mas não gozava do apoio do povo, aos olhos de quem Inácio era quase um mártir. Como os dois partidos pediam o apoio do papa, Nicolau interveio no assunto, e se declarou a favor de Inácio, na sua opinião deposto injustamente. Fócio, por seu lado, declarou com os seus que o papa e todos os ocidentais eram hereges, pois tinham acrescentado ao Credo a palavra Filioque. Além disto era a época em que Bóris, o rei da Bulgária, se mostrava disposto a aceitar o cristianismo, e Fócio insistia em que este país estava sob sua jurisdição, enquanto o papa o reclamava para si. O cisma acabou sendo superado. Os ventos pol íticos mudaram em Constantinopla, e I nácio foi recolocado em sua sede. Algum tempo depois foi obtido um acordo com o qual Fócio sucederia ao ancião I nácio quando este morresse. Deste modo o problema ficou resolvido, em Constantinopla. Mas ainda era necessário resolver a questão das relações rompidas com Roma. Mais tarde foi obtido um acordo em que Roma reconhecia Fócio como patriarca de Constantinopla, e este concordava com as pretensões romanas sobre a Bulgária. Quando fizeram este acordo, Fócio e o novo papa, João VIII, não contavam com Bóris, que, apesar do acordo, decidiu continuar suas relações com Constantinopla, em vez de Roma. Porém em todo caso estas negociações puseram um fim ao cisma. As causas do conflito, entretanto, eram muito mais profundas. Desde tempos antiqü íssimos as tradições cristãs do Oriente tinham sido diferentes das do Ocidente. A isto se somavam barreiras culturais e pol íticas, E o papado reclamava para si prerrogativas cada vez maiores, contra os costumes antigos a que o Oriente estava acostumado. Por causa de tudo isto o cisma de Fócio, apesar de ter sido resolvido, foi o prelúdio da fllplura definitiva.
A igreja do Oriente depois das conquistas árabes /171
Esta veio por motivos aparentemente insignificantes. Em meados do século XI o arcebispo búlgaro Leão de Acrida escreveu uma carta onde atacava os cristãos latinos por usarem pão sem fermento no comunhão, e por fazer do celibato eclesiástico uma lei universal. Estas questões, ao que parece de importância secundária, sem demora provocaram tal disputa que o papa Leão IX decidiu enviar uma embaixada a Constantinopla. I nfelizmente o l íder desta embaixada era o cardeal Umberto, zeloso reformador da igreja, como veremos em outro lugar desta história. A reforma que Umberto defendia no ocidente estava dirigida principalmente contra as violações do celibato (o "nicola(smo"), e a compra e venda de cargos na igreja (a "simonia"). Por isto o fogoso cardeal, que para cúmulo dos males não sabia grego, via nas práticas orientais os mesmos inimigos contra que lutava no Ocidente. O matrimônio dos clérigos aos seus olhos não era muito melhor que o concubinato dos nicolaítas. E a autoridade que os imperadores tinham sobre a igreja para ele não passava de outra forma de simonia. O debate ficou cada vez mais inflamado. Umberto e o patriarca Miguel Cerulário trocaram insultos. Por fim, no dia 16 de julho de 1054, quando o patriarca se preparava para celebrar a comunhão, o cardeal se apresentou na catedral de Santa Sofia, e colocou sobre o altar-mor um documento em que, em nome do papa (que na verdade tinha morrido pouco antes), declarava Miguel Cerulário herege, rompia a comunhão com ele, e extendia esta excomunhão a todos que o seguissem. Mesmo que depois desta data houve períodos em que, por diversas circunstâncias, as igrejas de Roma e Constantinopla voltaram a estabelecer a comunhão entre si, podemos dizer que a partir dali ficou consumado o cisma que estava se preparando durante séculos.
172 / A tiro dos trevas
11./
I/I//.!
tios normandos, livra-nos, Senhor"
IX Antes do alvorecer, a noite escura
A furare normannorum, libera nos Domine: da fúria dos normandos, livra-nos, Senhor. Verso latino do século X
Por algum tempo parecia que Carlos Magno tinha arrancado a Europa ocidental das trevas e do caos em que tinha afundado desde as invasões dos germanos nos séculos IV e V. Porém a verdade era que as invasões germânicas ainda não tinham terminado, e que eles aproveitariam a decadência do império carol (n9io para se reintensificarem. Os normandos ou vikings
Durante vários séculos os territórios que hoje abrangem Dinarmarca, Suécia e Noruega tinham estado ocupados por diversos povos chamados de "escandinavos". Durante o século VIII, no entanto, estes povos, até então relativamente sedentários, desenvolveram a arte da navegação a tal ponto que não demorou para eles se fazerem donos dos mares próximos. Seus navios, de mais de vinte metros de comprimento, e impul sionados tanto por uma vela quadrada como por mais de um.r dezena de remos, podiam levar tripulações de oitenta hOIl1l'1I:" Neles os escandinavos logo empreenderam incursões fiO tl;:.lo da Europa, onde foram chamados de "normandos", ou seja,
174 / A era das trevas 0f4iM
Os normandos criam que os soldados mortos pelas formosas "velou Ărias".
I
na batalha eram levados
homens do norte. Sua ferocidade era tanto maior porquanto se baseava em sua religiĂŁo, que assegurava aos soldados mortos
Antes do alvorecer, a noite escura / 175
em batalha que eles seriam levados pelas formosas "valqu (rias" ao para íso, o "valhala". Além disto, por causa da desintegração do poderio carol (ngio, as ricas costas do norte da França ficaram relativamente indefesas, e os normandos descobriram que poderiam desembarcar impunemente em uma região, saquear suas igrejas, mosteiros e palácios, capturar escravos, e regressar às suas terras com uma presa enorme. Como eles atacavam freqüentemente os mosteiros, eles eram tidos por gente irreligiosa, e seu nome semeou o pânico em toda a Europa. No princípio os normandos limitavam seus ataques a regiões mais próximas, nas Ilhas Britânicas e no norte da França.
As ricas costas do norte ela Fr 1//(.'11 Ilc 1111/11 saqueavam aldeias, cidades, Igroj IS o rnostoh os.
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176 / A era das trevas
Porém logo se tornaram mais ousados, ampliaram sua área de ação e se estabeleceram como conquistadores em diversos lugares. Na Inglaterra o rei de Wessex, Alfredo, o Grande (871-899) foi o único que conseguiu resistir à sua investida. Porém em princfpios do século XI o rei da Dinamarca, Canuto, era dono de toda a Inglaterra. Na França os normandos tomaram e saquearam cidades como Bordeaux, Nantes e Paris, onde chegaram subindo o Sena, em 845. Na Espanha saquearam lugares cristãos como Santiago de Compostela, e lugares rnu-
Em 845, subindo
o Sena, os normandos
chegaram até Paris e a saquearam.
Antes do alvorecer,
8
noite oscure / 177
çulmanos como Sevilha. Depois passaram pelo estreito de Gibraltar, e começaram a atacar as costas de Mediterrâneo. Mais tarde se estabeleceram no sul da Itália e na Sicflia, de onde expulsaram os muçulmanos e fundaram um reino normando. Todas estas conquistas não faziam outra coisa que semear o pânico e os caos na Europa ocidental. A efêmera unidade conseguida sob Carlos Magno e Ludovico, o Pio, tinha se rompido, e não restava nenhuma autoridade capaz de se opor aos abusos dos escandinavos. Ao mesmo tempo estes abusos contribu Cam para o caos, e faziam ainda mais ditrcil a restauração das glórias carol Cngias. Por estas razões um famoso historiador se referiu aos séculos X como "um século escuro, de ferro e de chumbo". Do ponto de vista pol Itico o Império conseguiu manter certo brilho até a segunda metade do século, sob Oto, o Grande, e seus sucessores imediatos. Mas mesmo este Império restaurado teve de ser um império de ferro e chumbo. Do ponto de vista religioso o papado desceu ao n{vel mais baixo da sua história. Quanto aos normandos, mais tarde todos se tornaram cristãos. Alguns se estabeleceram em territórios antes cristãos, como a zona do norte da França que desde então é chamada de "Normandia", e aceitaram a fé dos povos conquistados. Outros simplesmente esperaram que, por diversas razões, seus reis se tornassem cristãos, e então seguiram seu exemplo (ou sua ordem, de acordo com o caso). Na primeira metade do século XI, sob o rei Canuto, que chegou o governar toda a Inglaterra, Dinamarca, Suécia e Noruega, quase todos os escandinavos já eram cristãos, pelo menos de nome.
Os magiares
ou húngaros
Ao mesmo tempo que os normandos invadiam a crist.u: dade ocidental vindos do norte, outro povo o fazia do I' ,", Tratava-se dos magiares, a quem o mundo latino deu () 11(111111 de "húngaros", porque pareciam se comportar como U', 11111111 de séculos antes. Depois de se estabelecerem no que 11010,',111111 gria, os húngaros invadiram a Alemanha rcpcti<l,IIl1"lIt" fi "III mais de uma ocasião atravessaram o Reno. I\. dl:.1.11I1111111JlII II I II tremeu sob os cascos dos seus cavalos, e III (),)( II' '.I ii
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178/ A era das trevas da Itália suas hostes marcharam vitoriosas e destruidoras. Arrasavam tudo onde passavam, e cidades inteiras foram incendiadas. Por fim, em 936, Henrique I, o falconeiro, os derrotou decisivamente, e desde então os ataques dos húngaros, apesar de freqüentes, foram menos tem íveis. Pouco a pouco os húngaros assimilaram a cultura dos alemães, seus vizinhos, e dos eslavos sobre quem dominavam. Chegaram missionários à Hungria, tanto da Alemanha como do Império Bizantino. Em fins do século X o rei Gueisa recebeu o batismo, bem como sua corte e seu herdeiro, Vaik. Em 997 Vaik, que tinha mudado seu nome para Estêvão, herdou a coroa, e imediatamente ordenou aos seus súditos que se tornassem cristãos. Pela força o pa ís se converteu. Depois da morte de Estêvão, em 1038, o povo o teve por santo, e por isto ele é conhecido como Santo Estêvão da Hungria.
A decadência do papado O ocaso do papado não foi tão rápido como o dos caroI (ngios. Pelo contrário, quando faltou a unidade imperial, por um breve tempo os papas foram a única fonte de autoridade universal na Europa ocidental. Por esta razão Nicolau I, que reinou de 858 a 867, foi o papa mais notável desde o tempo de Gregório, o Grande. O poder de Nicolau se viu aumentado por uma coleção de documentos supostamente antigos, os Falsos Decretos, que davam enorme poder aos papas. Os historiadores modernos provaram que os decretos falsificados não foram escritos pelo papa, mas por certos membros da baixa hierarquia alemã, que queriam aumentar o poder do papado como um freio contra seus superiores diretos. Em todo caso, o fato é que Nicolau cria, junto com toda a Europa, que os Decretos eram genu (nos, e com base neles ele agiu com uma energia sem precedentes. Boa parte de sua atuação foi em prol da paz, que na sua opinião os poderosos rompiam por razões triviais, enquanto o povo sofria os abusos da guerra. Além disto tentou intervir no caso do rei Lotário II, que tinha abandonado sua esposa para se casar com aquela que fora sua conbubina desde sua juventude. O sucessor de Nicolau, Adriano II, seguiu a mesma pol í-
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tica. Quando Lotário e sua corte se apresentaram em Montecassino à comunhão queo papa oficiava, este o desafiou: Se te declaras inocente do crime de adultério, pelo que o papa Nicolau te excomungou, e prometes nunca mais ter relações ii(citas com a malafamada Waldrada, então te aproxima com fé, e toma este sacramento para remissão dos teus pecados. Porém se estás pensando em voltar a te revolveres no pecado de adultério, não o recebas, para que não provoques o terr(vel ju (zo de Deus. a rei e todos os presentes tremeram, sobretudo porque o papa admoestou os demais com palavras semelhantes. Porém no fim das contas todos tomaram a comunhão. Pouco depois quem tremeu foi toda a Europa, ao ficar sabendo que uma praga terdvel tinha irrompido na corte do rei, e que ele e todos os que comungaram com ele naquele dia tinham morrido. a próximo papa, João VII, teve um reino muito menos glorioso. as sarracenos ameaçavam a Itál ia, e o papa apelou a Carlos, o Gordo, a quem fez rei da Itália. Porém depois de receber as honras devidas o novo rei marchou para a França, onde as invasões dos normandos o preocupavam, e o papa teve de pedir auxílio à corte bizantina. Este foi um dos papas que teve a ver com o caso de Fócio, que discutimos no capftulo anterior, e a necessidade em que se encontrava o obrigou a fazer concessões aos bizantinos que de outro modo não teria feito. Por fim ele morreu assassinado em seu próprio palácio, onde o auxiliar que o envenenou, ao ver que ele demorava para morrer, lhe acertou um golpe de machado no crânio. A partir de então os papas se sucedem uns aos outros com rapidez vertiginosa. Sua história fica tão complicada e tão cheia de intrigas que aqui podemos mencionar somente alguns acontecimentos que são típicos daqueles tempos. a papado se transformou em pomo de discórdia entre diferentes partidos romanos e transalpinos. Não faltaram papas que foram estrangulados, ou que morreram de fome nos calabouços em que seus sucessores os tinham colocado. Às vezes houve mais de um papa, e até três. Vejamos alguns exemplos. Em 897 Estêvão VI presidiu sobre o assim chamado "concílio cadavérico". Seu antecessor Formoso, o mesmo que antes
180 I A era das trevas tinha sido missionário entre os búlgaros, e que depois tinha sido papa, foi desenterrado. Vestiram-no com a indumentária papal e o arrastaram pelas ruas. Depois o julgaram, declararam-no culpado de vários crimes, cortaram-lhe os dedos com que tinha abençoado o povo, e lançaram o resto do seu corpo ao Tigre. Em 904 Sérgio III mandou encarcerar e matar seus dois rivais, Leão V e Cristóvão I. Este mesmo papa chegou ao poder com a ajuda de uma das farnflias mais poderosas e ambiciosas da Itália. À testa desta famflia estava o patrício Teofilato e sua esposa Teodora. O próprio Sérgio III era amante da filha de Teofilato e Teodora, Marósia. O filho desta união subiu mais tarde ao trono papal com o nome de João XI. Pouco depois da morte de Sérgio, Marósia e seu marido Guido, marquês de Túscia, se apossaram do palácio de Latrão e aprisionaram o papa João X, que depois mataram cobrindo-lhe o rosto com um travesseiro. Depois dos papados breves de Leão VI e Estêvão VII, Marósia colocou na sede pontifícia João XI, e o filho que tinha tido, anos antes, de Sérgio III. Trinta anos depois da morte de João XI, um neto de Marósia ocupava o papado, com o nome de João XII. João XIII era filho de Teodora, a jovem, irmã de Marósia, Seu sucessor, Benedito VI, foi deposto e estrangulado por Crescêncio, irmão de João X III. João X I V morreu de fome ou envenenado no calabouço onde fora colocado por Bonifácio VII, que, por sua vez, também foi envenenado. Durante um breve per íodo o imperador ato III interveio e fez nomear dois papas, primeiro a seu sobrinho de vinte e três anos, que tomou o nome de Gregório V, e depois ao célebre erudito Gerberto de Aurillac, que com o nome de Silvestre II fez tudo que esteve ao seu alcance para reformar a igreja, mas com pouco êxito. I Depois da morte de ato, no entanto, a família de Crescêncio se apossou novamente do papado, até que os condes de Túsculum impuseram sua vontade e fizeram nomear, sucessivamente, a Benedito VIII, João XIX e Benedito IX. Este último tinha quinze anos quando cingiu a tiara papal. Doze anos depois ele abdicou em troca de que seu padrinho, que lhe sucedeu com
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o nome de Gregório VI, lhe concedesse certos rendimentos eclesiásticosprocedentes da Inglaterra. Gregório VI tentou reformar a igreja, mas não tardou em se encontrar em situação diffcil, porque I enedito IX, depois de abdicar, voltou a reclamar o papado. Além disto a famílla de Crescêncio, descontente por ter perdido seu antigo poder, tinha seu próprio papa, que se dava o nome de Silvestre III. Em meio deste caos. Henrique III di. Alemanha decidiu intervir. Depois de se avistar com Gregório VI reuniu um s(nodo em Sutri, em 1046. Este s(nodo, seguind a orientação real, declarou depostos os três papas e nomeou 1 Clemente II. Além disto promulgou uma série de decretos contra a corrupção eclesiástica, particularmente a compra e venda de cargos. Clemente II morreu depois de um breve pontificado, e então Henrique III, que Clemente tinha coroado imperador, decidiu oferecer o trono papal ao bispo de Tula, Bruno, conhecido por seu zelo reformador, que se negou a aceitar o pontificado antes de o próprio povo de Roma o eleger. Com este propósito Bruno partiu para Roma. Em sua pequena comitiva iam dois monges, Hildebrando e Humberto. Depois de séculos de trevas, a cristandade ocidental clamava por uma nova luz, e aqueles três homens se preparavam para oferecê-Ia.