A história ilustrada do cristianismo 4

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E atĂŠ aos confins da Terra: Uma histĂłria ilustrada do Cristianismo

A era dos altos ideais


Justo L. González

E até aos confins da Terra: Uma história ilustrada do Cristianismo VOLUME 4

A era dos altos ideais


Copyright © 1978 Justo L. González Título do original em castelhano: Y hasta lo último de la tierra: Una Historia Ilustrada deI Cristianismo Tomo 4 - La Era de los Altos Ideales 1". edição: 1981 2". edição: 1986 Reimpressões: 1989, 1993, 2000,

2001

Publicado no Brasil com a devida autorização e com todos os direitos reservados por SOCIEDADE RELIGIOSA EDiÇÕESVIDANOVA, Caixa Postal 21486, São Paulo-SP 04602-970 Proibida a reprodução por quaisquer meios (mecânicos, eletrônicos, xerográficos, fotográficos, gravação, estocagem em banco de dados, etc.), a não ser em citações breves com indicação de fonte. ISBN 85-275-0045-0 Impresso

Capa.

no Brasil / Printed in Brazil

Tradução. HANS UDO Fucus CATEDRALDEBURGOS.FOTODOAUTOR


Dedicatória Aos meus colegas e discfpulos do Seminário Evangélico de Porto Rico


Indice

I.

II.

III.

IV.

V.

Lista de i lustrações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Cronologia A reforma monástica A reforma cluniacense A reforma cisterciense A reforma papal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Leão IX Os sucessores de Leão. . . . . . . . . . . . . . . . . . Gregório VII O conflito entre o pontificado e o Império Gregório VIII e Henrique IV Urbano II e Henrique IV Pascoal II e os dois Henriques O acordo de Worms As cruzadas Pano de fundo das cruzadas: as peregrinações Pano de fundo das cruzadas: a guerra santa A primeira cruzada H istória posterior das cruzadas . . . . . . . . . . . As ordens militares. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Outras conseqüências das cruzadas. . . . . . . . A reconquista espanhola Os primeiros séculos

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VIII / A era dos altos ideais

A reconquista depois da morte de Almançor ..... Almorávidas e almoadas . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. O impacto da Espanha na teologia cristã VI. As ordens mendicantes O precursor: Pedro Valdo São Francisco e a ordem dos irmãos menores . . .. São Domingos e a ordem dos pregadores O curso posterior das ordens mendicantes VII. A atividade teológica Anselmo de Canterbury . . . . . . . . . . . . . . .. Pedro Abelardo Os vitorianos e Pedro Lombardo As universidades O desafio de Aristóteles " São Boaventu ra São Tomás de Aquino VII I. Testemunhos de pedra A arquitetura românica A arquitetura gótica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. IX. O ápice do papado O papado sob a influência de São Bernardo . . . .. Sob a sombra de Frederico Barbaroxa Inocêncio III Os sucessoresde Inocêncio. . . . . . . . . . . . . . . . ..

94 100 105 109 110 112 117 119 127 128 133 136 138 141 142 144 151 153 156 171 171 175 178 184


Lista de ilustracões . 1. 2. 3-4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. 22. 23. 24. 25. 26.

Abadia de Cluny Visão de São Bernardo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. Farmácia de São Domingos de Silos , Batalha de Hastings Henrique IV em Canossa Gregório VII Deus o quer! Godofredo de Bulhões Mapa: A primeira cruzada Os cruzados atacam Antioquia Entrada em Jerusalém Coroação de Baldu (no I Cruzada de crianças São Bernardo envia Conrado III à cruzada Os I (deres da terceira cruzada Os bizantinos atacam a esquadra veneziana São Lu (s desembarca no Egito . . . . . . . . .. Igreja do Santo Sepulcro 180 albigenses na fogueira Carcasona , , Estátua de EI Cid, em Sevilha Mapa: a Espanha no século IX Mesquita de Córdoba . . . . . . . . . . . . . . . .. Juramento de Pelágio , Carlos Magno em peregrinação a Santiago

10 14 16 29 36 38 52 54 56 59 64 66 68 69 71 75 77 78 81 82 84 86 87 89 90


x / A era dos altos ideais 27. 28. 29. 30. 31. 32. 33. 34. 35. 36. 37. 38. 39. 40. 41. 42. 43. 44. 45. 46. 47. 48. 49. 50-51. 52. 53. 54. 55. 56. 57. 58. 59. 60. 61. 62. 63. 64. 65. 66.

São Tiago Matamouros Muralhas de Avila Sepulcro de Fernando González Mapa: a reconquista no século XI Mapa: a reconquista no século XII Mapa: a reconquista no século XIII Estátua de EI Cid, em Vivar Santa Gadea de Burgos Rendição de Toledo Soldados espanhóis de fins do século XI Sacro Convento de Calatrava Averróis São Francisco diante de Inocêncio . . . . . . . . . . .. Morte de São Francisco São Francisco e São Domingos Debate sobre a pobreza Morte de Becket . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. Abelardo e Elofsa Aula da universidade de Salamanca Disputa de São Tomás com os hereges Milagre eucarfstico Arco de meio ponto. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. Igreja de São Pedro, Avila Catedral de Pisa Capitel, igreja de Santo Estêvão, Avila Abside, igreja de São Pedro, Avila Arco ogival . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. Abadia de São Dionfsio Ventanal, catedral de Chartres Ventanal, catedral de Colônia Arbotantes, catedral de Sevilha Estrutu ra gótica . . . . . . . . . . . . . . . . .. Catedral de Colônia Gárgula, São João dos Reis, Toledo Portal, catedral de Reims Fachada, catedral de Chartres . . . . . . . . . . . . . . .. Catedral de Milão Catedral de Burgos, vista lateral Assinatura de Carta Magna

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I A reforma monástica A história de Marta e Maria no Evangelho mostra que devemos preferir a vida contemplativa. Maria escolheu a melhor parte .... Mas se nos coube a parte de /I.-1arta, devemos carregá-Ia com paciência. Bernardo de Claraval

Durante toda a "era das trevas" a faísca dos ideais evangélicos sempre esteve acesa. Os nobres que guerreavam entre si, os membros dos diversos partidos que disputavam o papado, e os servos que no fim das contas proviam o sustento da Europa, todos eram cristãos. Chamá-los "cristãos nominais" não seria correto, pois sua fé, apesar de talvez errada ou infrutífera, e sem dúvida por demais ignorante dos desígnios de Deus para a história humana, era sincera. Tratava-se antes de pessoas para as quais a fé era a maneira de ganhar o céu, que lhes parecia tão real como a terra em que viviam. Para elas a salvação da alma era o propósito último da vida humana, e por isto as maiores atrocidades eram desculpadas com base na justificação eterna. A época, porém, era obscura e turbulenta. Em meio aos roubos dos nobres, aos sofrimentos dos oprimidos, à ambição dos prelados, às invasões dos húngaros, normandos e sarracenos, as almas pareciam estar perigando. O pecado abundou, e a igreja viu-se obrigada a oferecer meios de graça para sua expiação. Assim se desenvolveu o sistema penitencial, que mais tarde deu


8 / A era dos altos ideais

origem ao conflito entre protestantes e católicos, no século XV I. O nobre que matasse seu parente no campo de batalha, ou o prelado cuja ambição se excedia, podiam encontrar remédio nos sacramentos da igreja, e assim subsistir em meio à era tenebrosa em que lhes coube viver. Havia outro caminho para o cristão daquela época. Já que a vida do povo comum estava cheia de desassossego, violência e tentações de todo tipo, por que não se separar dela e seguir a senda do monasticismo? Durante toda a "era das trevas" a vida monástica exerceu uma fascinação constante sobre os espíritos mais religiosos. Esta senda, no entanto, estreita, tinha se tornado quase intransitável. Muitos mosteiros foram saqueados e destru ídos pelos invasores normandos e húngaros. Os que estavam em lugares mais protegidos se transformaram em joguete das ambições de abades e prelados. Os nobres ou bispos que eram seus supostos protetores os utilizavam para seus próprios fins. Assim como o papado e os bispados, as abadias foram objeto de cobiça, e houve quem chegasse a elas mediante a simonia ou ainda o homicídio, e logo elas foram usadas para gozar uma vida acomodada e muito distante do ideal beneditino. Os monges de vocação sincera se viam violentados pelas circunstâncias da época. A Regra de São Benedito apenas era cumprida. E quando algum monge devoto fundava um novo mosteiro, mais tarde este também se transformava em presa dos ricos e poderosos.

A reforma cluniacense

Em meio a tudo isto o duque Guilherme III da Aquitânia fundou um pequeno mosteiro, em 909. O fato em si não era nada novo, pois durante toda a "era das trevas" os senhores feudais tinham fundado casas monásticas. Porém várias decisões sábias e circunstâncias providenciais fizeram daquele pequeno mosteiro o centro de uma grande reforma. Guilherme trouxe para suas terras, para dirigir sua fundação, Bernom, que tinha se distinguido por sua firmeza na aplicação da Regra, e por seus próprios esforços em prol de Guilherme uma reforma em outros mosteiros. Bernom pediu

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A reforma monástica /9

que lhe concedesse, para sediar a fundação, um lugar chamado Cluny, que era a região de caça preferida do duque. Este atendeu ao pedido, e concedeu ao novo mosteiro as terras da aldeia necessária para o seu sustento. O caráter desta cessão foi de suma importância, pois Guilherme, em vez de reter o título e os direitos de patrono do mosteiro, doou as terras aos "santos Pedro e Paulo", e colocou a nova comunidade sob a proteção direta da Santa Sé. Como na época o papado passava por suas piores épocas, esta suposta proteção não tinha outro propósito que proibir a ingerência dos senhores feudais ou bispos das proximidades. Além disto, para evitar que o papado, corrupto como estava, utilizasse Cluny para seus próprios fins partidaristas, Guilherme proibiu explicitamente que o papa invadisse ou de qualquer outro modo tomasse posse do que pertencia aos dois santos apóstolos. Bernom governou Cluny até 926. Poucos dados da sua época são conservados, pois Cluny não passou de mais um mosteiro dos muitos que Bernom reformou. Quando ele morreu sucederam-lhe uma série de abades de grande habilidade e ideais elevados, que fizeram de Cluny o centro de uma grande reforma monástica: Odo (926-940), Aimardo (940-965), Mayeul (965994), Odilo (994-1049) e Hugo (1049-1109). Seis abades extraordinariamente capazes e de longa vida regeram os destinos de Cluny por duzentos anos. Sob sua direção os ideais da reforma monástica alcançaram alturas cada vez mais elevadas. Apesar de o sétimo abade, Pôncio (1109-1122), não ter sido digno dos seus antecessores, seu sucessor, Pedro, o Venerável (1122-1157) devolveu a Cluny parte do brilho que tinha perdido. No princfpio o propósito dos cluniacenses era somente ter um lugar onde pudessem praticar cabalmente a Regra de São Benedito. Este ideal não tardou a ampliar seus horizontes, e os abades de Cluny, seguindo o exemplo de Bernom, começaram a reformar outros mosteiros. Assim surgiu toda uma rede de "segundos Clunys", que dependiam diretamente do abade do mosteiro principal. Não tratava de uma "ordem" no sentido estrito, mas de mosteiros supostamente independentes, mesmo assim sob a supervisão do abade de Cluny, que em geral nomeava o prior de cada mosteiro. A


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reforma cluniacense se estendeu também a varros conventos de monjas, o primeiro dos quais, Marcigny, foi fundado em meados do século XI, quando Hugo era abade de Cluny. A principal ocupação destes monges, como o estipulava a Regra, era o offcio divino. A ele os cluniacenses dedicavam toda a sua atenção, até que no apogeu da sua observância cantavam cento e trinta e oito salmos, e por isso os monges de Cluny chegaram a se dedicar quase exclusivamente ao culto, deixando de lado o trabalho manual que era tão importante na tradição beneditina. Tudo isto era justificado com a alegação

A abadia de Cluny chegou 8 ser um dos templos mais suntuosos da época. Hoje resta somente uma torre, rodeada de ru ínas. Foto JM.


A reforma monástica / 11

de que a função dos monges era orar e louvar a Deus, e para que pudessem fazê-lo com toda a pureza não deveriam se enlamear com os trabalhos do campo. Em seu ápice o zelo reformador de Cluny não tinha limites. Depois de regulamentar a vida de centenas de casas monásticas, os cluniacenses começaram a sonhar em reformar a igreja. Era a época mais obscura do papado, quando os pontífices sucediam uns aos outros com rapidez vertiginosa, e tanto os papas como os bispos não passavam de meros senhores feudais, emaranhados nas intrigas do momento. Nestas circunstâncias o ideal monástico, como praticado em Cluny, oferecia um raio de esperança. Ao sonho de uma reforma geral de acordo com o modelo monástico se somaram outros que, sem serem todos cluniacenses, participavam dos mesmos ideais. Em contraste com a corrupção que existia em quase toda a igreja no século X e no princ ípio do XI, o movimento cluniacense, e outros que seguiram o mesmo padrão, pareciam ser um milagre, um novo amanhecer em meio às trevas. Por isto a reforma eclesiástica da segunda metade do século XI foi concebida em termos monásticos, mesmo pelos que não eram monges. Quando Bruno de Tula estava peregrinando para Roma, onde receberia a tiara e o título de Leão X, tanto ele como seus acompanhantes estavam imbu ídos do ideal de reformar a igreja de acordo com o padrão monástico estabelecido por Cluny. Assim como este mosteiro tinha podido levar a cabo sua obra por causa da sua independência de qualquer poder civil ou eclesiástico, o sonho daqueles reformadores era uma igreja em que os bispos estivessem livres de qualquer dívida para com o poder civil. A simonia (compra e venda de cargos eclesiásticos) era, por isto, um dos principais males que tinha de ser erradicado. A nomeação e investidura de bispos e abades por reis e imperadores, apesar de não ser estritamente simonia, se aproximava desta, e devia ser proibida, principalmente nos países onde os soberanos não tinham consciência reformadora. O outro grande inimigo da reforma eclesiástica concebida em termos monásticos era o matrimônio dos clérigos. Durante séculos o celibato tinha tentado se impor; mas nunca tinha sido regra universal. Agora, inspirados pelo exemplo monástico,


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os reformadores fizeram do celibato um dos elementos principais do seu programa. Mais tarde o que fora exigência somente para os monges valia também para todos os clérigos. A obediência, outro dos pilares do monasticismo, o seria também da reforma do século XI. Assim como os monges deviam obediência aos seus superiores, toda a igreja (na verdade toda a cristandade) devia estar subordinada ao papa, que encabeçaria uma grande renovação, como os abades de Cluny a tinham feito dentro do âmbito monástico. Por último, em relação à pobreza, tanto o monasticismo beneditino como a reforma que foi inspirada nele sustentavam uma posição ambivalente. O bom monge não devia possuir coisa alguma, e sua vida devia ser extremamente simples. O mosteiro, por sua vez, podia ter terras e possessões sem limite. Estas aumentavam constantemente qracas aos donativos e heranças que recebia. A longo prazo tornava-se diffcil para o monge, mesmo sendo pessoalmente pobre, levar a vida simples que a Regra ditava. Já dissemos que os cluniacenses chegaram a se negar a cultivar a terra, sob o pretexto da sua dedicação exclusiva ao culto divino, mas na realidade baseados nas muitas riquezas que sua comunidade tinha. De igual modo os reformadores se queixavam da vida de luxo que os bispos levavam, porém ao mesmo tempo insistiam no direito da igreja de ter grandes posses, supostamente não para o uso dos prelados, mas para a glória de Deus e o bem-estar dos pobres. Mais tarde estas posses dificultavam a obra reformadora, pois convidavam à simonia, e o poder que os prelados tinham como senhores feudais os envolvia constantemente nas intrigas pol íticas da época. Uma das principais causas da decadência do movimento cluniacense foi a riqueza que não tardou a acumular. Inspirados pela santidade daqueles monges, muitos nobres lhes fizeram donativos. Em pouco tempo a abadia de Cluny se transformou num dos mais suntuosos templos da Europa. Outras casas seguiram o mesmo caminho. Com o correr dos anos perdeu-se a simplicidade de vida que era o ideal monástico, e outros movimentos mais pobres e mais recentes tomaram o seu lugar. Igualmente uma das mais principais causas dos fracassos por que passou a reforma do século XI foi a riqueza da igreja,


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que lhe dificultava o distanciamento das intrigas entre os poderosos, para tomar o partido dos oprimidos.

A reforma cisterciense

O movimento de Cluny ainda estava em seu apogeu quando, em parte devido à sua inspiração, outros se lançaram a empreendimentos semelhantes. Em diversos lugares a vida solitária foi renovada, ou por outros meios tentou-se destacar o rigor da Regra. Assim, por exemplo, Pedro Oamiano se contentava com o princípio de "suficiência" enunciado por São Benedito para evitar a vida acomodada, e insistia na "penúria extremail. A este espírito rigorista se somava certo descontentamento com o monasticismo cluniacense, que se tornara rico, e tinha elaborado seus rituais a tal ponto que o trabalho manual ficava negligenciado. Estes sentimentos deram lugar a vários novos movimentos monásticos, dos quais o mais importante foi o dos cistercienses. A reforma eclesiástica de que trataremos nos próximos capítulos estava em seu auge quando Roberto de Molesme decidiu abandonar o mosteiro deste nome e fundar um novo em Citeaux, de cujo nome latino, Cistertium, se deriva o termo "cisterciense". Pouco depois, por ordem papal, Roberto teve de regressar a Molesrne. Porém em Citeaux ficou um pequeno grupo de monges, decidido a continuar a obra começada. O próximo abade, Alberico, conseguiu que o papa Pascoal, em 1110, colocasse o novo mosteiro sob a proteção da Santa Sé, assim como o de Cluny. Sob Estêvão Harding, o sucessor de Alberico, a comunidade continuou crescendo, e foi necessário fazer uma nova fundação em La Ferté. Porém a grande expansão da nova ordem teve lugar depois da entrada nela de Bernardo de Claraval. Este tinha vinte e três anos quando se apresentou em Citeaux, e solicitou admissão na comunidade com vários de seus parentes e amigos. Pouco antes ele tinha decidido que sua vocação era se unir a este mosteiro, e se empenhara em convencer seus irmãos e demais achegados que o seguissem. O fato de que ele pôde se apresentar em Citeaux com um bom grupo de recrutas era uma das primeiras provas do seu poder de persuasão. Poucos anos depois o


14 / A era dos altos ideais número de monges em Citeaux era tão grande que Bernardo recebeu instruções de fundar uma nova comunidade em ClaravaI. Este novo mosteiro logo se transformou num dos principais centros para onde se dirigia a atenção de toda a cristandade ocidental. Bernardo chegou a ser o mais famoso pregador de toda a Europa, que lhe deu o apelido de "Doutor Melffluo", porque as palavras de devoção brotavam da sua boca como o mel dos favos. A fama da sua santidade era tal que o movimento cisterciense se viu invadido por multidões que queriam seguir o mesmo caminho. Bernardo era antes de tudo monge. Na citação que iniciava o presente capítulo vemo-lo afirmando o que ele sempre creu e o Senhor tinha declarado: que a parte de Maria era melhor que a de Marta. Seu desejo era passar todo seu tempo meditando

A Virgem aparece a São Bernardo. Este quadro, de Filippino' tra-se na igreja da Badia, em Florença.

Lippi, encon-


A reforma monástica / 15

sobre o amor de Deus, em particular em sua revelação na humanidade de Cristo. Esta humanidade era o tema principal da sua contemplação. Isto chegava a tal ponto que em certa ocasião, quando um dos seus acompanhantes comentou em sua presença algo acerca de um lago junto ao qual tinham andado todo um dia, Bernardo perguntou: "Que lago?" Como monge, Bernardo insistia na vida simples que tinha sido o ideal do monasticismo primitivo. Nesta vida o trabalho ffsico, particularmente na agricultura, era importante. Enquanto os monges de Cluny se subtraíam a este trabalho, sob a alegação de não sujar as vestimentas com que adoravam a Deus, os cistercienses pensavam que qualquer cuidado especial com suas vestimentas era um luxo supérfluo, e por esta razão eles ficaram conhecidos como "os monges brancos". Em sua organização o movimento cisterciense devia ser simples. Mas era necessário evitar a excessiva centralização de Cluny, onde tudo dependia do abade. Por isto os mosteiros cistercienses eram relativamente independentes, e mantinhamse unidos através de conferências anuais em que todos os abades se encontravam. Os abades das principais casas também tinham certa autoridade sobre os outros. Porém, fora isto, cada mosteiro era independente. Apesar de Bernardo estar convicto que Maria tinha escolhido a parte melhor, ele logo teve de assumir o papel de Marta. E mesmo sendo seu propósito expl (cito dedicar-se a uma vida solitária, ele teve de intervir como árbitro em várias disputas pol Iticas e eclesiásticas. Sua personalidade dominou de tal modo a sua época que nos encontraremos repetidamente com ele neste volume, seja como o grande místico da devoção à humanidade de Cristo, seja como o poder por trás e por cima do papado, seja como o campeão da reforma eclesiástica, seja como pregador da segunda cruzada, ou ainda como o inimigo implacável de novas correntes teológicas. Esta breve narração dos principais movimentos de reforma monástica dos séculos X a XII nos obrigou a avançar um pouco na ordem cronológica da nossa história. Por isto, voltemos até onde estávamos no fim do volume anterior, ou seja, ao ano 1048, no tempo do abade ado de Cluny, e meio século antes da fundação de Citeaux.


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Uma das principais contrtbuições dos mosteiros para a vida medieVB/ foi o desenvolvimento da medicina e da farmácia, como podemos ver ainda hoje no mosteiro de São Domingos de Si/os.


II A reforma papal o que teriam feito os bispos de antigamente, se tivessem de sofrer tudo isto? ... Cada dia um banquete. Cada dia um desfile. Na mesa, todo tipo de manjares, não para os pobres, mas para hóspedes sensuais, enquanto os pobres, a quem eles na realidade pertencem, não recebem licença para entrar, e morrem de fome. São Pedro Damiano Quando terminamos o volume anterior um pequeno grupo de peregrinos marchava para Roma. Liderava-o o bispo Bruno de Tula, a quem o imperador tinha oferecido o papado. Bruno tinha se negado a aceitá-lo das mãos do imperador, e tinha insistido em ir a Roma como peregrino. Se lá o povo e o clero o elegessem bispo, então ele aceitaria a tiara papal. Esta atitude de Bruno refletia uma das principais preocupações dos que queriam reformar a igreja. Para estas pessoas, um dos piores males de que a igreja padecia era a simonia, ou seja, a compra e venda de cargos eclesiásticos. Somente a nomeação por autoridades civis, mesmo sem envolver qualquer transação monetária, parecia a Bruno e a seus acompanhantes estar muito próximo da simonia. Um papado reformador deveria surgir puro já da raiz. Como o monge Hildebrando tinha dito a Bruno, aceitar o papado das mãos do imperador seria ir para Roma, "não como apóstolo, mas como apóstata".


18 / A era dos altos ideais Outro membro da comitiva de Bruno era o monge Humberto, que, em seu mosteiro em Lotarfngia, tinha se dedicado ao estudo, e a escrever a favor da reforma eclesiástica. Sua preocupação principal era a simonia, e sua obra Contra os simoníacos foi um dos mais duros ataques contra este costume. Humberto era um homem de espírito fogoso, que chegou a afirmar que as ordenações feitas por um bispo simon íaco não tinham valor. Isto era uma posição extrema, pois queria dizer que muitíssimos fiéis, mesmo sem o saberem, estavam recebendo sacramentos que nada valiam. Mais tarde Leão XI o fez cardeal, e foi ele quem, como vimos no volume anterior, depositou sobre o altar de Santa Sofia a sentença de excomunhão contra o patriarca Miguel Cerulário, que marca o in ício oficial do cisma entre as igrejas do Oriente e do Ocidente. Talvez o membro mais notável daquela comitiva era o jovem monge H ildebrando, que conhecia bem a cidade de Roma, seus ideais elevados e suas intrigas baixas. Ele nasceu por volta de 1020 em uma farnfl ia humilde de carpinteiros, na Toscana, e ingressou ainda menino no mosteiro de Santa Maria do Aventino, em Roma. Ali ele tinha se dedicado ao estudo e à devoção, e chegou à conclusão de que era necessário reformar a vida eclesiástica. Ali ele conheceu João Gracião, que veio a ser papa com o nome de Gregório VI. Como dissemos antes, Gregório VI tentou reformar a igreja. Com este propósito em mente ele convocou Hildebrando para ser seu auxiliar. Mas a reforma de Gregório VI fracassou, pois logo depois três pessoas diferentes diziam ser papas, e Gregório abdicou em prol da paz e da unidade da igreja. Hildebrando o acompanhou para o exílio, e diz-se que foi ele quem lhe fechou os olhos, quando morreu. Dois anos depois Bruno de Tula, a caminho de Roma, por sua vez convocou Hildebrando, para que o ajudasse a empreender novamente a reforma que Gregório VI tentara fazer. Alguns historiadores quiseram ver em Hildebrando o verdadeiro poder que esteve por trás do trono pontifício através de vários papados, mas a verdade é que os documentos existentes não dão base para esta interpretação dos fatos. H ildebrando parece mais ter sido um homem humilde, cujo sincero desejo era reformar a igreja, razão pela qual ele deu seu apoio


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a vários papas reformadores. Ele foi ficando cada vez mais poderoso, por causa deste apoio que dava, até que por fim foi eleito papa, e tomou o nome de Gregório VII. leão IX Por enquanto, o proxrrno papa seria Bruno de Tula, que se dirigia a Roma, não como o novo pontífice nomeado pelo imperador, mas como um peregrino descalço que visitava a cidade papal em um ato de humilde devoção. Em seu caminho em direção a Roma, atravessando a Itália, as multidões o ovacionavam, e depois começou-se a falar dos milagres que aconteceram naquela peregrinação. Depois de entrar em Roma descalço, e de ser aclamado pelo povo e pelo clero, Bruno aceitou a tiara papal, e tomou o nome de Leão IX. Assim que se viu na posse legítima da cátedra de São Pedro, Leão começou a sua obra reformadora. Para isto ele se cercou de vários homens que tinham dado mostras da sua dedicação a esta causa. Além de Humberto e Hildebrando mandou vir Pedro Damiano, um monge austero que tinha merecido o respeito de todos que na Europa lamentavam a situação em que se encontrava a igreja. Diferente de Humberto, Pedro Damiano não se deixava levar por seu zelo reformador; ele buscava uma reforma que desse mostras do espírito de caridade que domina todo o Evangelho. Assim, por exemplo, ele compôs um tratado em que, ao mesmo tempo em que condenava a simonia, declarava que os sacramentos que os fiéis recebiam dos simoníacos eram válidos. Mais tarde, quando Leão IX empunhou as armas contra os normandos, Pedro Damiano condenou a atitude guerreira do pontífice. Com a ajuda de Hildebrando, Humberto, Damiano e outros, Leão IX empreendeu a reforma da igreja. Para todos estes homens esta reforma deveria consistir, em particular, em abolir a simonia e generalizar o celibato eclesiástico. Estes pontos principais, entretanto, traziam consigo uma série de conseqüências importantes. Em meio à sociedade feudal, a igreja era uma das poucas instituições em que ainda existia certa mobilidade social. Tanto Hildebrando como Pedro Damiano


20 I A era dos altos ideais

eram de origem humilde, e mais tarde o primeiro seria papa, e o segundo santo e doutor da igreja. Esta mobilidade social estava ameaçada pela prática da simonia, que punha os cargos eclesiásticos mais altos não ao alcance dos mais aptos ou mais devotos, mas dos mais ricos. Se isto se unia ao matrimônio eclesiástico, corria-se o risco que os grandes prelados providenciassem uma herança para seus filhos, e que assim o alto clero se transformasse em uma casta feudal, como as outras que existiam naquela época. Logo, a oposição dos reformadores ao matrimônio eclesiástico, além dos motivos expl feitos de destacar o valor da vida solteira, tinha outros motivos mais profundos, talvez nem conhecidos totalmente pelo que a defendiam. Em todo caso não há dúvidas de que a classe popular logo se colocou do lado dos reformadores, principalmente porque o costume da simonia colocava o poder eclesiástico nas mãos dos ricos. Depois de tomar uma série de medidas reformadoras na Itália, Leão se dispôs a estender a reforma a lugares mais distantes. Com este propósito ele viajou para a Alemanha, onde o imperador Henrique III e seus antecessores tinham feito algo contra a simonia, mas onde Leão IX sentia a necessidade de reafirmar a autoridade papal. Ali se excomungou a Godofredo de Lorena, que se tinha rebelado contra Henrique, e obrigou o insurreto e se submeter. Em seguida o papa intercedeu em seu favor diante do imperador, que lhe perdoou a vida. Deste modo Leão confirmava mais uma vez a autoridade papal acima dos senhores feudais. Na França, o costume da simonia estava generalizado, e por esta razão o papa decidiu visitar também este país. O rei da França e muitos dos grandes prelados fizeram-lhe entender de diversas maneiras que não desejavam uma visita papal, mas apesar disto Leão, quase se fazendo de surdo, foi para a França, onde convocou um condlio que se reuniu em Reims. Ali vários prelados culpados de simonia foram depostos, e foi dada ordem para que os sacerdotes e bispos casados deixassem suas mulheres. Mesmo que esta última ordem não foi cumprida por muitos, o prestígio do papa aumentou consideravelmente, e o hábito da simonia diminuiu.


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Este papa reformador, porém, não deixou de cometer seus erros. Destes o mais grave provavelmente foi tomar pessoalmente das armas contra os normandos. Estes tinham se estabelecido no sul da Itália e na Sic ílla, e dali ameaçavam as possessões papais. Da Alemanha, Leão não conseguiu mais ajuda que quinhentos cavaleiros, à frente dos quais marchou contra os normandos, enquanto aumentava seu exército com tropas de mercenários. Pedro Damiano o repreendeu, mostrando-lhe o contraste entre o que Leão se propunha fazer e os ensinos evanyélicos. Porém apesar disto Leão marchou contra os normandos, que enfrentou perto de Civitá-al-mare. Ali as tropas papais foram derrotadas, e o próprio papa foi aprisionado pelos normandos, que o mantiveram preso até poucos meses antes da sua morte.

o outro erro de Leão consistiu em enviar a Constantinopla uma embaixada composta de clérigos inflexíveis, do calibre de Humberto, cuja atitude diante de Miguel Cerulário e dos costumes da igreja oriental foi uma das principais causas do cisma. Os sucessores de Leão

Quando Leão morreu retornou o risco de que o papado se transformasse em motivo de contenda entre as diversas farn ílias e partidos italianos. O único poder capaz de evitar isto era o imperador Henrique III. Mas pedir a Henrique que nomeasse o novo papa seria colocar novamente o papado sob a sombra dos interesses pol fticos. E assim tudo que Leão conseguira estaria perdido. Nestas circunstâncias Hildebrando iniciou uma serre de gestões cujo resultado foi que o imperador concordou com a eleição do novo papa pelos romanos, desde que este papa fosse alemão. Assim ficava garantido que o papado não cairia nas mãos de uma das famflias italianas que o disputavam. Existia ainda, todavia, o perigo de o sucessor de Leão, por ser alemão, ser um joguete nas mãos do imperador. Por esta razão o partido renovador, que na época tinha o poder em Roma, fez recair a eleição sobre Gebhard de Eichstadt.


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Gebhard era um dos mais hábeis conselheiros de Henrique. Mas também era um homem de convicções religiosas, que não se dobraria diante da autoridade imperial. Como prova disto, antes de aceitar a tiara papal ele disse ao imperador que somente a aceitaria se Henrique prometesse "devolver a São Pedro o que lhe pertencia". O sentido desta frase não é bem claro. Mas sem dúvida se refere em parte às terras que os normandos tinham tomado, e em parte à autoridade papal, que os imperadores e outros governantes sempre estavam tentando arrebatar para si. Com o nome de Vítor II Gebhard subiu à cátedra de São Pedro em 1055, depois de uma série de negociações que demoraram um ano todo. Sua polftica religiosa foi continuação da de Leão IX, pois estava dirigida principalmente contra a simonia e o casamento dos clérigos. Na Alemanha, Godofredo de Lorena se sublevou novamente contra o imperador, que solicitou a presença de seu antigo conselheiro Gebhard. Pouco depois de o papa chegar até seu antigo soberano este morreu, e deixou seu pequeno filho Henrique IV aos cuidados de Vítor. Como conseqüência este último teve por algum tempo em suas mãos as rédeas da igreja e do Império. Com tais poderes sua pol (tica reformadora fez rápidos e grandes progressos. Hildebrando foi enviado para a França, onde deu um novo impulso à reforma da igreja, depôs vários prelados culpados de simonia, e limitou o poder dos senhores feudais sobre os bispos. Na Itál ia, Vítor seguiu uma pol (tica parecida. Porém quando seus excessivos poderes o levaram a cometer injustiças contra alguns dos seus antigos rivais, Pedro Oamiano levantou novamente sua voz em protesto. O papa parece não lhe ter prestado atenção, e se preparava para ir para a Alemanha para fazer valer ali a sua autoridade, quando morreu repentinamente. Um dos últimos atos de Vítor tinha sido nomear Frederico de Lorena abade de Montecassino. Este Frederico era irmão de Godofredo de Lorena, o mesmo que tinha se rebelado duas vezes contra Henrique III, a quem os papas tinham condenado. Por isto esta nomeação assinalava uma mudança de pol (tica. Em todo caso, à morte de Vítor foi Frederico de Lorena quem lhe sucedeu, com o nome de Estêvão IX. Seu papado foi breve. Mas nele o movimento reformador alcançou alturas tão elevadas


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que causou a insurreição dos "parares". gente do povo que assaltava as casas dos clérigos e maltratava suas esposas e concubinas. Estêvão interveio para evitar os excessos. Mas este episódio nos mostra que eram as classes populares que insistiam 110 celibato eclesiástico e em condenar a simonia. Poucos meses depois de ser feito papa Estêvão morreu, e JS velhas fam (lias nobres se apossaram mais uma vez do papado, fazendo eleger Benedito X. Mas o partido reformador não estava disposto a deixar-se tirar o papado com tanta facilidade. Os cardeais e outros prelados romanos que tinham sido nomeados pelos papas reformadores estavam descontentes. Hildebrando, que por outras causas na época se encontrava na corte da imperatriz regente Inês, a convenceu de que era necessário depor Benedito. Com seu apoio, e com o de outras casas poderosas, Hildebrando e Pedro Oamiano reuniram os cardeais em Roma, e todos juntos declararam Benedito deposto, elegendo Gerhard de Borgonha, que tomou o nome de Nicolau II. Em vista do sucedido era necessário estabelecer um método para a eleição de um papa, que não estivesse sujeito às vicissitudes do momento. Com este propósito Nicolau II reuniu o segundo concflio de Latrão, em 1059. Foi ali que pela primeira vez foi decretado que os futuros papas deveriam ser eleitos pelos cardeais. O cardinalato é uma instituição de origens obscuras. No começo dava-se o tf'tulo de "bispos cardeais" de Roma aos bispos das sete igrejas vizinhas, que presidiam o culto na basflica de Latrão junto com o papa. No século Vi II apareceram pela primeira vez os tftulos de "presb ítero cardeal" e "diácono cardeal". Em todo caso, na época de Nicolau II o cardinalato já era uma institu ição antiga, e os seus detentores eram em sua maior parte pessoas dedicadas à reforma. Por esta razão o conctlio decidiu que a eleição de cada novo papa ficasse entregue aos bispos cardeais, que deviam buscar a aprovação dos demais cardeais e, depois, do povo romano. Quanto aos antigos direitos que os imperadores tinham tido, de serem consultados antes da consagração do novo papa, o concflio se expressou de maneira amb(gua, dando a entender que nem o imperador tinha o direito de vetar a eleição feita pelos cardeais e pelo povo. Além disto foi decretado que os papas futuros fossem


24 / A era dos altos ideais eleitos de entre o clero romano, e que os cardeais recorreriam a outras pessoas somente quando não houvesse neste clero uma pessoa capacitada. Ainda que, em teoria, o concílio contasse com o povo na eleição pontiffcia, na realidade limitou muito o seu poder, pois determinou que no caso de tumultos ou motins públicos os cardeais poderiam se transferir para outra cidade, e ali eleger o papa. O decreto do segundo concflio de Latrão estabeleceu o método de eleição que prevalece até os nossos dias, com algumas modificações. Ao mesmo tempo que tomava medidas para regulamentar sua sucessão, Nicolau iniciou uma nova política de aliança com os normandos do sul da Itália. Até então estes invasores tinham sido inimigos do papado, que mais de uma vez teve de acudir às forças imperiais, solicitando seu apoio. A partir de Nicolau o papado pôde seguir uma pol ítica muito mais inde-. pendente do Império, pois contava com o apoio dos normandos, cujos chefes receberam o título de duques, e mais tarde de reis. Quando Nicolau morreu as antigas famílias romanas tentaram apossar-se uma vez mais do papado. Com o apoio da imperatriz regente Inês elegeram seu próprio papa, a quem deram o nome de Honório II. Mas os cardeais, inspirados e dirigidos por Hildebrando, declararam que esta eleição não valia, por contrariar o disposto pelo condlio de Latrão, e elegeram Alexandre II. Este pôde resisti r à oposição da imperatriz graças ao apoio dos normandos, até que a imperatriz caiu e o próximo regente retirou seu apoio a Honório, que regressou ao seu antigo bispado de Parma três anos depois de ser eleito. O pontificado de Alexandre II foi relativamente longo (1061-73), e colocou a reforma papal sobre bases firmes. Em diversas regiões da Europa foram tomadas medidas contra a simonia. Muitos prelados que tinham comprado seus cargos foram depostos. Mu itos outros se viram obrigados a jurar que não eram simon (acos. O celibato eclesiástico ficou sendo algo cada vez mais popular. Para aqueles reformadores, e para o povo que os seguia, não havia diferença alguma entre o matrimônio dos clérigos e o concubinato. As esposas dos sacerdotes eram chamadas de "prostitutas", e tratadas como tais. O movimento dos "patares" cobrou novas forças.


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Um exemplo de como o fervor popular abraçou a causa reforma temos no caso de Pedro, bispo de Florença. Nesta cidade o costume de os sacerdotes serem casados ainda era h.istante generalizado, e o povo e os monges tomaram o propósito de aboli-lo. O bispo Pedro, que era um homem modeIddo, tentou acalmar os ânimos, e por isto foi acusado de <irnon (aco pelos monges. O I(der dos monges era João Gualhorto de Valumbrosa, famoso em todo o distrito por sua ausicridade. e por muitos considerado santo. João Gualberto marchou pelas ruas de Florença, acusando Pedro de simon faco. De Roma, Pedro Damiano, preocupado com o zelo excessivo destes reformadores, declarou que Pedro era inocente. Mas Ilildebrando tomou o partido de João Gualberto. Em Florença o povo se negava a aceitar os sacramentos de Pedro e dos sacerdotes casados. Pedro insistia em sua inocência. Por fim alguém teve a idéia de recorrer à prova de fogo. Fora da cidade, perto de um mosteiro favorável a João Gualberto, foi preparado o cenário para a grande prova. Mais de cinco mil pessoas se reuniram. Diante das chamas o monge que iria passar por elas celebrou a comunhão, e o povo, comovido, chorou. Depois, em meio a dramáticas cerimônias, o monge marchou através das chamas. Ao vê-lo sair do outro lado o povo começou a gritar, declarou que se tratava de um milagre, e que por isto estava provado que Pedro era simon faco. O malfadado bispo teve de abandonar a cidade, enquanto continuavam os abusos contra os clérigos casados e suas esposas. ti"

Gregório VII

Quando da morte de Alexandre ressurgiu o problema da sucessão. O decreto do concílio de Latrão estabelecia um processo para a eleição de um novo papa. Mas as antigas famflias romanas tinham dado provas de que este decreto não lhes infundia grande respeito. Também era possível que o Império tentasse impor um prelado alemão, com a esperança de que o papado voltasse a ser um instrumento dos interesses imperiais. Por outro lado o povo romano, imbu ído das idéias de reforma que tinham sido pregadas na cidade desde o tempo


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de Leão IX, não estava disposto a permitir que o papado outra vez se transformasse em joguete dos interesses pol íticos de um ou outro bando. Por esta razão, em meio aos funerais de Alexandre o povo começou a gritar: Hildebrando bispo! Hildebrando bispo!" Em seguida os cardeais se reuniram e elegeram papa a quem por tantos anos dera mostras de zelo reformador e de habilidade pol (tica e administrativa. Hildebrando era um homem de ideais elevados, forjado em meio às trevas da primeira metade do século. Seu sonho era uma igreja universal, unida sob a autoridade suprema do papa. Para que este sonho se tornasse realidade era necessário tanto reformar a igreja em lugares onde o papa tinha autoridade, pelo menos nominal, como estender esta autoridade à igreja oriental, e às regiões que estavam sob o dom ínio dos muçulmanos. Seu ideal era a realização da cidade de Deus na terra, de tal modo que toda a sociedade humana estivesse unida como um só rebanho sob um só pastor. Com este ideal em mente Hildebrando tinha trabalhado muitos anos, sempre nos bastidores, deixando que outros ocupassem o centro do cenário. Agora o povo exigia a sua eleição. Não havia outro candidato capaz de salvar o papado dos que queriam se apossar dele. O povo o aclamou, os cardeais o elegeram, e hildebrando chorou. Não seria mais possível trabalhar na penumbra, e apoiar os esforços reformadores de outros papas. Agora era ele que deveria tomar o estandarte e dirigir a reforma por que tanto tinha ansiado. Quando ascendeu ao papado Hildebrando tomou o nome de Gregório VII, e imediatamente tomou as primeiras medidas visando a realização dos seus ideais. De Constantinopla vieram petições para que ele auxiliasse a igreja do Oriente, assediada pelos turcos seljúcidas. Gregório viu nisto uma oportunidade de estreitar os vínculos com os cristãos orientais, e talvez estender a autoridade romana para o Oriente. Em sua correspondência da época podemos ver que ele sonhava com um grande empreendimento militar, no estilo das cruzadas que começariam pouco tempo depois, com o propósito de derrotar os turcos e conquistar a gratidão de Constantinopla. Porém na Europa ninguém respondeu ao seu chamado, mesmo quando o papa, como recurso extremo, se ofereceu para comandar as


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u opas pessoalmente. Em pouco tempo Gregório teve de abandonar o projeto. Na Espanha a situação era parecida. Como veremos mais uliante, era a época da reconquista das terras que por quase quatro séculos estiveram dominadas pelos mouros. Na França huvia nobres que olhavam com cobiça para as terras ibéricas, Il que queriam participar da reconquista para se apossar delas. Com o propósito de dar apoio legal à sua empresa alguns destes nobres argumentavam que a Espanha pertencia a São Pedro, 1° que, por isto, era em nome do papado, e com vassalos seus, que empreendiam a reconquista. Gregório incentivou estas pretensões, mas o resultado foi nenhum, pois por diversas razões .IS intenções francesas na Espanha não foram concretizadas. Frustrado em seus projetas tanto no Oriente como na fspanha, Hildebrando dedicou todos seus esforços à reforma da igreja. Para ele, como para os papas que o tinham precedido, esta reforma deveria começar pelo clero, e seus dois objetivos Iniciais eram abolir a simonia e instituir o celibato eclesiástico. Na quaresma de 1074 um concflio reunido em Roma voltou (.J condenar a compra e venda de cargos eclesiásticos e o casarnento dos clérigos. Isto não era novidade, pois desde o tempo de Leão IX os decretos contra a simonia e o casamento tinham se sucedido quase ininterruptamente. Gregório, porém, adotou rnedidas novas, com que queria conseguir que seus decretos fossem obedecidos. A primeira foi proibir ao povo assistir aos sacramentos administrados por simon íacos. A segunda consistiu em nomear legados papais que viajaram por diversos territórios da Europa, convocando sínodos e procurando de diversas maneiras fazer com que os decretos papais fossem cumpridos ao pé da letra. Ao proibir o povo de receber os sacramentos administrados por simoníacos Gregório esperava que ele se aliasse à causa da reforma, do modo que os altos prelados e os sacerdotes que não se humilhassem diante das ordens papais fossem humilhados pelo menos pela ausência do povo. Mas este decreto era difícil de ser cumprido, pois nas regiões onde a simonia era praticada mais abertamente não' era fácil encontrar sacerdotes que não estivessem manchados por ela de um ou outro modo. De forma que o povo se via diante da alternativa de não rece-


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ber os sacramentos em obediência ao papa, ou recebê-los e assim apoiar os simoníacos. Além disto logo houve quem começou a acusar Gregório de heresia, dizendo que o papa tinha declarado que os sacramentos administrados por pessoas indignas não eram válidos, e que esta opinião, sustentada séculos antes pelos donatistas, tinha sido condenada pela igreja. Na verdade o que Gregório tinha dito não era que os sacramentos administrados por sacerdotes indignos não eram válidos, mas somente que os fiéis deveriam abster-se deles, para promover a reforma eclesiástica. Em todo caso a acusação de heresia contribuiu para limitar o impacto dos decretos reformadores. O êxito dos legados papais não foi muito maior. Na França o rei Felipe I tinha vários motivos para ser inimigo do papa, razão por que os legados não foram recebidos cordialmente. Com o apoio do rei o clero se negou a aceitar os decretos romanos. Enquanto o alto clero se opunha sobretudo aos editos referentes à simonia, muitos do baixo clero resistiam às novas leis com respeito ao matrimônio. Com efeito, havia um bom número de clérigos casados, pessoas relativamente dignas dos cargos que ocupavam, que não estavam dispostos a abandonar suas esposas e fam (Iias simplesmente porque o ideal monástico tomara conta do papado. Por isto estes clérigos se viram obrigados a se unirem aos simoníacos em sua oposição à reforma que os papas propugnavam. Gregório e seus companheiros, todos sa ídos da vida e dos ideais monásticos, estavam convictos que o monasticismo era o padrão que todos os clérigos deviam imitar, e nesta convicção, ao mesmo tempo que prejudicaram sua própria causa criando aliados para os simon íacos, causaram sofrimentos indiz(veis entre o clero casado e suas farnflias. Na Alemanha, Henrique IV foi um pouco mais cordial com os legados papais. Mas isto não porque estivesse de acordo com sua missão, mas simplesmente porque esperava que o papa o coroasse imperador, e por isto não queria merecer sua inimizade. Com a concordância real os legados tentaram impor os decretos romanos. Quanto à simonia tiveram certo êxito, mas a oposição aos editos referentes ao matrimônio eclesiástico foi grande, e estes editos foram cumpridos somente em parte. Na Inglaterra e na Normandia, Gregório gozava de certa autoridade, pois anos antes, quando ainda era conselheiro de


A reforma papal /29

Mediante a vitória de Hestinçs Guilherme, o Conquistador,

se apossou da

Inglaterra, que a partir de entio ficou nas mios dos normandos.

Alexandre II, ele tinha prestado seu apoio a Guilherme da Normandia, "o Conquistador", que depois da batalha de Hastings se transformara em dono da Inglaterra. Agora os legados papais aproveitaram esta dívida de gratidão para fazer valer os mandatos reformadores. Posto que tanto Guilherme como sua esposa Matilde apoiavam a reforma, os legados foram bem recebidos, e a simonia foi condenada. Guilherme, todavia, insistiu no direito de nomear os bispos em seus territórios. E entre o baixo clero a oposição ao celibato eclesiástico foi grande. Todos estes acontecimentos convenceram Gregório que era necessário continuar o processo de centralização eclesiástica que seus predecessores tinham começado. Até então os bispos metropolitanos tinham tido certa independência, e a autoridade papal tinha sido mais nominal que real. Tendo em vista a oposição geral aos decretos de reforma, Hildebrando chegou à conclusão que era necessário aumentar a autoridade papal, a fim de que suas ordens fossem obedecidas. Em conseqüência, sob seu pontificado as pretensões da sede romana chegaram


30/ A era dos altos ideais

a um nível sem precedentes. Se bem que Gregório nunca chegou a promulgar todas as suas opiniões com respeito ao papado, estas estão registradas em um documento de 1075. Nele Gregório afirma não só que a igreja romana foi fundada pelo Senhor, e que seu bispo é o único que pode receber o título de "universal", mas também que o papa tem autoridade para julgar e depor os bispos; que o Império lhe pertence, de tal modo que é ele quem tem o direito de outorgar as insígnias imperiais, assim como de depor o imperador; que a igreja de Roma nunca errou nem pode errar; que o papa pode declarar nulos os juramentos de fidelidade feitos por vassalos a seus senhores; e que qualquer papa legítimo, somente pelo fato de ocupar a cátedra de São Pedro, e em virtude dos méritos deste apóstolo, é santo. Tudo isto, entretanto, nada mais era que teoria enquanto os reis, imperadores e demais senhores leigos tivessem autoridade para nomear os bispos e abades. Se os dirigentes eclesiásticos recebessem seus cargos dos leigos, seria a eles que deveriam fidelidade e obediência, e não ao papa. Isto parece ter ficado provado pela maneira como os legados papais foram recebidos em sua missão de reformar a igreja nos diversos reinos. Por esta razão Gregório, em 1075, e depois em 1078 e 1080, proibiu a todos os clérigos e monges receber bispados, igrejas ou abadias de mãos leigas, sob pena de excomunhão. Em 1080 foi acrescentado também que seriam excomungados os senhores leigos que investissem alguém nestes cargos. Com estes decretos ficava montada a cena para JS ~randes conflitos entre o pontificado e o Império.


III O conflito entre o pontificado e o Império Proibimos a todos os clérigos receber das mãos do imperador, do rei ou de qualquer leigo, seja varão ou mulher, a investidura de um bispado, de uma abadia ou de uma igreja. Gregório VII

Os decretos de Gregório VII quanto à investidura leiga eram conseqüência natural dos seus intentos reformadores e da sua concepção de papado. Mas havia fortes razões para os reis e imperadores verem nestes decretos uma séria ameaça ao seu poder. À parte de qualquer conflito com o papado, os soberanos da época viam também seus direitos de investidura religiosa como um dos mais valiosos instrumentos contra o excessivo poder dos nobres. A nobreza hereditária tinha a tendência de afirmar sua independência frente aos reis. As terras que à disposição estavam em mãos destes nobres não estavam do rei, para que ele as outorgasse aos que lhe fossem fiéis. As terras e demais riquezas eclesiásticas, por sua vez, precisamente por não serem hereditárias, frqüentemente estavam à disposição do soberano, que então podia ter certeza que, oposta aos grandes senhores leigos, freqüentemente rebeldes, se erguia uma igreja rica, poderosa, e fiel ao rei. Além disto, se o poder da investidura caísse nas mãos do papado, os reis


32/ A era dos altos ideais

tinham medo que isto poderia ser usado contra eles, por motivos puramente pol íticos. Tudo isto estava em jogo quando Gregório proibiu as investiduras leigas. Mesmo se o papa, ao que parece, deu este passo simplesmente para garantir que todo o clero tivesse um espírito reformador, o fato é que este passo poderia ter enormes conseqüências pol íticas. Isto criou conflitos entre o poder leigo e o eclesiástico, em todos os níveis. Na Inglaterra e na Normandia, Gregório não mandou aplicar seus decretos porque estava certo de que Guilherme e Matilde nomeariam bispos reformadores. O principal conflito foi com o imperador. Gregório VII e Henrique IV

Apesar dos seus decretos contra a investidura leiga o papa não parecia estar disposto a aplicá-los universalmente. Enquanto os diversos senhores leigos nomeassem pessoas dignas, e sua investidura ocorresse sem nenhuma suspeita de simonia, Gregório não insistiria em seus decretos. O caso de Henrique IV da Alemanha, entretanto, era mais diffcil, pois várias nomeações feitas por ele, sem prestar atenção nenhuma aos editos papais, eram questionáveis. Apesar disto o papa se limitou em comunicar-lhe seu descontentamento. A faísca que provocou o incêndio foi a questão do episcopado de Milão. A sede desta cidade estivera em disputa por algum tempo, dificuldade que parecia por fim estar resolvida quando ocorreram tumultos na cidade. O bispo que conseguira ser reconhecido como legítimo estava tentando impor o celibato eclesiástico. Talvez com sua permissão os patares se lançaram novamente às ruas, insultaram os clérigos casados e suas esposas, e destru íram suas propriedades. Alguns destes fugiram para a Alemanha, onde pediram socorro a Henrique. Este, sem consultar o papa, declarou deposto o bispo de Milão, e nomeou outro em seu lugar. A resposta de Gregório não se fez esperar. Apelando à autoridade que dizia ter para julgar reis e imperadores, ele ordenou a Henrique que se apresentasse em Roma, onde seus graves delitos seriam julgados. Se não viesse até o dia 22 de


o conflito

entre o pontificado

e o Império /33

fevereiro (de 1076) ele seria deposto, e sua alma condenada ao inferno. Ao receber a missiva do papa o imperador aparentemente estava no ápice do seu poder. Pouco antes ele tinha sufocado uma sublevação dos seus súditos saxões. Sua popularidade na Alemanha era grande; os I íderes da igreja em seus dom ínios pareciam dispostos a apoiá-lo. A situação de Gregório era parecida. Pouco antes, no dia de véspera de Natal de 1075, um tal Cêncio, comandando um grupo de soldados, tinha irrompido na igreja em que o papa celebrava a missa e este, ferido e maltratado, fora feito prisioneiro. Quando o povo soube disto lançou-se às ruas, sitiou, tomou e arrasou a torre em que Hildebrando estava cativo, e só deixou escapar Cêncio porque o pontífice lhe perdoou a vida, sob a condição de que peregrinasse até Jerusalém. Por isto ambos contendentes, enquanto tinham recebido provas recentes do apoio com que contavam, também tinham sido sinais da oposição que existia contra eles, mesmo entre seus próprios súditos. O imperador não podia ir a Roma para ser julgado como um criminoso qualquer. Logo, sua saída era convencer os demais que o papa que o declarasse deposto e excomungado não era legítimo, e que por isto suas sentenças careciam de valor. Com este propósito ele reuniu um sínodo em Worms no dia 24 de janeiro. Ali o cardeal Hugo, "o Branco", que em outros tempos tinha exaltado a Hildebrando, declarou que se tratava de um tirano cruel e adúltero, além disto dado à magia. Em seguida, sem pedir mais provas, os bispos se submeteram à vontade imperial, e declararam Gregório deposto. Somente dois prelados se atreveram a protestar, mas também assinaram o documento quando lhes foi dito que deixar de fazê-lo seria considerado traição contra o imperador. Então, em nome do concílio, Henrique comunicou estas decisões "a Hildebrando, já não papa, mas monge falso". Um mês depois, no dia 21 de fevereiro, Hildebrando presidia o concílio ao qual tinha chamado Henrique, quando o sacerdote Rolando de Parma irrompeu no recinto, gritando em nome do imperador que Hildebrando já não era papa, e que o soberano ordenava a todos ali reunidos que fossem


34 I A era dos altos ideais à sua presença no dia de pentecostes, t(fice seria nomeado.

quando

um novo pon-

A esperança de Henrique era que alguns dos rr.embros daquele concílio se atemorizassem, tirando assim um pouco do apoio de Hildebrando. Mas sucedeu o contrário. Alguns dos presentes se puseram a castigar fisicamente o mensageiro, e somente a intervenção do papa conseguiu evitar isto. Depois de restabelecer a ordem, Gregório dirigiu-se à assembléia dizendo que estavam presenciando os grandes males que, de acordo com as Escrituras, haveriam de vir nos dias do Anticristo. O concílio, então, entrou em recesso até o dia seguinte, dando tempo ao papa de redigir contra o imperador "uma sentença esmagadora, que sirva de lição às gerações vindouras". No outro dia de manhã, 22 de fevereiro, o papa condenou e declarou depostos e excomungados os bispos alemães que tinham participado da tramóia de Henrique. Quanto a este último, o papa declarou: Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, pelo poder e a autoridade de São Pedro, e em defesa e honra da igreja, ponho em interdito o rei Henrique, filho do imperador Henrique, que com orgulho sem igual se levantou contra a igreja, proibindo-lhe que governe em todos os reinos da Alemanha e da Itália. Além disto liberto dos seus juramentos os que tenham jurado ou puderam jurar fidelidade a ele. E proíbo que ele seja obedecido como rei. Quando recebeu a sentença papal Henrique resolveu responder da mesma maneira, e reuniu um grupo de bispos que declarou Gregório excomungado. Em diversos lugares os seguidores mais fiéis do imperador seguiram seu exemplo, e o cisma parecia inevitável. Mas o poder de Henrique não era tão firme como parecia. lViuitos dos seus seguidores sabiam que as acusações que eram feitas contra Gregório eram falsas, e temiam pela salvação das suas almas. Logo houve bispos que escreveram ao papa, pedindo perdão por terem colaborado com o imperador. Guilherme de Utrecht, um dos principais acusadores de Hildebrando, morreu de repente, e o pânico se alastrou pelas fileiras


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e

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Império /35

imperiais. Os saxões ameaçavam se rebelar de novo. Vários nobres poderosos, seja por motivos de consciência ou pol íticos, começaram a negar sua obediência ao imperador. Em sua própria corte correu o rumor que os que se contaminassem com o contato com ele fariam perigar suas almas. O papa convocou uma dieta do Império, que deveria se reunir em fevereiro do próximo ano, para julgar o rei, depô-lo e eleger seu sucessor. Nestas circunstâncias não restava outro recurso a Henrique senão apelar à misericórdia do papa. Para isto ele tinha de se entrevistar com Gregório, pedir sua absolvição, antes que a dieta se reunisse em Augsburgo. Então ele ajuntou ao seu redor os poucos fiéis servidores que lhe restavam, e empreendeu a viagem até a Itália. Seus inimigos lhe fecharam o caminho mais rápido, e ele teve de dar uma volta pela Burgúndia. Quando afinal chegou até os Alpes, a neve era tanta que era quase impossível atravessar a cordilheira. Por fim, com a ajuda dos naturais do lugar, e depois de mil peripécias, ele conseguiu atravessar os Alpes e entrar na Itália. Ali o esperava uma surpresa. Os nobres e muitos clérigos do norte da Itália tinham grande ódio por Hildebrando e seu excessivo rigor, e por isto foram muitos os que, ao saberem que Henrique IV estava no país, acorreram para ele. Logo o imperador estava à testa de um exército imponente, composto de pessoas que criam que ele tinha vindo para a Itália depor o papa. Gregório, por seu lado, não sabia quais eram as verdadeiras intenções de Henrique. Temendo um ataque militar, decidiu deter sua marcha até a Alemanha, onde quisera presidir a dieta do Império, e fixou residência em Canossa, cujas fortificações o protegeriam se o imperador viesse com intenções hostis. Mas Henrique não estava disposto a arriscar o trono da Alemanha, continuando sua pol ítica de oposição ao papa. Seu propósito era submeter-se ao pontífice. E isto não diante da dieta do Império, na presença dos seus súditos, mas na relativa intimidade da corte papal. Repetidamente ele pediu ao papa que o recebesse; porém este rejeitou todas as petições. Várias das pessoas mais achegadas a Gregório intercederam em favor do soberano excomungado. Por fim este lhe permitiu


36 / A era dos altos ideais

Durante três dias o imperador

e

SLIB

tanl/lla

se viram obrigados a Implorar

permissão pere entrar no castelo da Cenosse, Assim o retrata esta gravura do século XVI, cujo autor tenta dltamar Gregório VII dando a entender (na janela da direita) que este estava com uma mulher. No alto do muro os rnançes e bispos zombam do imperador.

entrar em Canossa. Mas as portas do castelo permaneceram fechadas, e Henrique se viu obrigado a pedir admissão durante três dias, vestido de penitente, exposto às intempéries, em meio à neve profunda que quase o encobria de todo. Ao que parece Gregório temia que o arrependimento do seu inimigo não fosse sincero, razão pela qual preferira prosseguir seus planos de depô-lo e nomear seu sucessor. Mas como podia alguém que dizia ser o principal dos seguidores de Cristo negar o perdão a quem de tal maneira o pedia? Mais tarde as portas se abriram, e o imperador, descalço e vestido de penitente, foi conduzido até o papa, que exigiu dele uma longa lista de condições, e completou sua humilhação negandose a aceitar seu juramento sem garantia de outros nobres e prelados que se comprometessem a obrigar o rei a cumprir o que prometera.


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o

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Ao sair de Canossa Henrique era um homem derrotado. Os italianos que tinham se unido à sua causa, ao ver que ele tinha se humilhado diante de Gregório, deram amplas mostras de seu desprezo. Acompanhado de um pequeno séquito o rei se refugiou na cidade de Reggio. Ali se juntaram a eles os muitos prelados que, depois de se humi Iharem diante de Gregório, tinham obtido a absolvição. Mas Henrique tinha conseguido uma grande vantagem. A sentença de excomunhão tinha sido revogada. Enquanto ele não desse motivos ao papa, este não poderia excomungá-lo novamente, nem insistir em sua deposição. Enquanto isto, os príncipes e os bispos que na Alemanha tinham se sublevado contra sua autoridade se viam obrigados a seguir o rumo que tinham traçado para si, e elegeram um novo imperador. Só que depois da entrevista em Canossa eles tinham perdido o principal argumento que justificava sua rebelião. Henrique já não estava mais excomungado, já não era mais pecado lhe obedecer. Apesar da sua humilhação e quebrantamento, ele ainda era o soberano legftimo do pafs. Gregório deixou que os acontecimentos corressem seu curso. Os rebeldes se reuniram e elegeram seu próprio imperador, de nome Rodolfo. Os legados papais, presentes na eleição, trataram de lavar suas mãos. Mas de algum modo sua presença dava a entender que o papa aprovava o que estava sendo feito. A postura papal ambígua levou à guerra civil. Henrique regressou à Alemanha, onde logo reuniu um grande exército. Numerosas cidades se negaram a abrir suas portas a Rodolfo. As tropas do imperador legítimo ganhavam uma batalha após outra, A prudência deveria ter ditado outros conselhos a Gregório. Mas ele estava tão convicto da justiça da sua causa, e do poder da excomunhão, que decidiu intervir mais uma vez e excomungou Henrique, e até se atreveu a profetizar que em breve o imperador seria deposto ou morto. Só que desta vez os resultados não foram os mesmos. A sentença de excomunhão foi recebida com desprezo pelos seguidores do imperador. A guerra continuou, enquanto os prelados da Alemanha, e depois os da Lombardia, se reuniam para declarar deposto Gregório e eleger seu sucessor, que tomou o nome de Clemente II'.


38 / A era dos a/tos ideais

No campo de batalha as tropas de Henrique sofreram um revés sério perto do rio Elster. I'vlas na mesma batalha o pretendente Rodolfo perdeu a vida. O partido rebelde ficou sem líder, e a profecia papal foi desmentida, pois quem morreu não foi Henrique, mas seu rival. A guerra civil ainda continuou por algum tempo, mas já não havia dúvidas sobre quem seria o vencedor. Assim que a neve se derreteu nos passos dos Alpes, na primavera de 1081, Henrique marchou contra Roma. Hildebrando estava praticamente sozinho, pois os normandos, que tinham sido os melhores aliados dos seus antecessores contra as pretensões do Império, também tinham sido excomungados por ele. Os defensores do papa que tentaram cortar a marcha do imperador foram derrotados. Com toda pressa Gregório fez as pazes com os normandos. Mas estes, em vez de defender Roma, atacaram as possessões italianas do Império Bizantino.

Este desenho, tirado de uni manuscrito de ecoce , representa Greçorio VII com uma ..e/a na mio, dizendo: "como eu apago esta vela, assim Henrique se extinguirá".


o conflito

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'omente a cidade de Roma restava ao papa que pouco antes linha visto o imperador se humilhar diante dele. Os romanos defenderam sua cidade e seu papa com valor mcrfvel. Três vezes Henrique sitiou a cidade, e outras tantas se viu obrigado a levantar o sítio sem a ter tomado. Os romanos rogavam ao papa que fizesse as pazes com o imperador, evitando-lhes assim tantos sofrimentos. Mas Gregório permaneceu rnflex ível, e insistia na excomunhão de Henrique. Por fim (J resistência, a paciência e a fidel idade dos romanos se esgotaram, e eles abriram as portas da cidade às tropas imperiais, enquanto Gregório se refugiava no castelo de Santo Angelo. De Santo Ângelo ele viu como Henrique entrava em triunfo na cidade papal, e como se reuniam os prelados que vinham' para confirmar a eleição do antipapa Clemente III. Este, por sua vez, coroou o imperador. Enquanto isto, sem ceder em suas convicções, o velho Hildebrando praticamente era um prisioneiro dentro cios muros de Santo Ângelo. Todos esperavam que o imperador tomaria aquele último reduto da autoridade de Gregório VII quando chegou a not ícia de que um forte exército normando marchava contra a cidade. Vendo que os normandos eram em maior número que os seus soldados, Henrique abandonou Roma, depois de destru ir vários trechos das muralhas. Os normandos entraram triunfantes na cidade papal, e imediatamente se puseram a cometer todo tipo de desmandos. Em poucos dias os cidadãos não suportavam mais sua crueldade, e se rebelaram. Entrincheirados em suas casas, e conhecendo bem o lugar, os romanos pareciam estar levando vantagem quando os normandos decidiram incendiar a cidade. As pessoas que saíam correndo para as ruas eram mortas sem misericórdia pelos invasores, dispostos a vingar as baixas que tinham sofrido. Quando a sublevação por fim terminou, os normandos aprisionaram milhares de romanos, e os venderam como escravos. Dizem que o estrago causado por estes supostos aliados da igreja foi muito maior que o que os godos él vândalos fizeram no século V. Em meio a tudo isto Gregório permaneceu mudo. Os normandos eram seus aliados, e fora ele quem os fizera vir à cidade. Mas ele sabia também que já não podia contar com


40 / A era dos altos ideais o apoio dos romanos, aos quais sua obstinação trouxera grandes preju ízos. Por isto ele se retirou para Montecassino, e mais tarde para a fortaleza normanda de Salerno. Dali ele continuou trovejando contra Henrique e o antipapa Clemente III, que finalmente conseguira fixar residência em Roma. Pouco antes de morrer ele perdoou a todos os seus inimigos, exceto a estes dois, que condenou ao tormento eterno. Conta-se que na hora da sua morte ele disse: "Amei a justiça e odiei a iniquidade. Por isto estou morrendo no exílio". Assim este paladino incansável dos altos ideais terminou seus dias. Graças a ele a reforma preconizada pelos papas tinha avançado notavelmente em diversas regiões da Europa. A simonia fora reduzida; e nos lugares onde era ainda praticada ela era considerada um vício indesculpável. O celibato eclesiástico agora era o ideal não só dos monges e dos papas reformadores, mas também de boa parte do povo. O papado tinha visto uma das suas horas mais brilhantes quando Henrique IV se humilhou diante de Hildebrando, em Canossa. Mas tudo isto custou um preço enorme. Centenas de fam ílias de clérigos foram desfeitas. As mulheres honestas que tinham vivido em matrimônio Iícito com homens ordenados foram tratadas como concubinas ou como prostitutas, e arrancadas dos seus lares. A Alemanha e a !tália se viram afundadas em cruentas guerras civis. Roma foi destru ída, e muitos dos seus habitantes vendidos como escravos. Gregório amou sinceramente a justiça e odiou a iniquidade. Mas a "justiça" que amou foi tão eclesiocêntrica, sua pol ítica tão dedicada à exaltação do papado, seus ideais reformadores tão rigidamente tomados da vida monástica, que muitos dos seus resultados foram iníquos. Seu exílio foi uma desventura a mais entre as muitas que sua reforma trouxe.

Urbano II e Henrique IV

seu Este que ção

Pouco antes de morrer Hildebrando tinha declarado. que sucessor deveria ser Desidério, o abade de Montecassino. era um homem de idade avançada, sem outra ambição continuar para o restante dos seus dias na vida de devoque levava em seu mosteiro. Ele foi feito papa à força,


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e

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com o nome de Vftor III. Quatro dias depois da sua eleição ele fugiu de Roma e retornou para Montecassino. As súpl icas dos partidários da reforma o tiraram novamente dali. Mas durante um ano Clemente III, que o imperador reconhecia como o papa legítimo, ocupou a cidade de Roma sem nenhuma oposição. Quando Vítor regressou à sua sede ele o fez apoiado pela força militar dos seus aliados, que tomaram parte da cidade. Mas pouco depois ele adoeceu, e, sentindo a morte se uproxirnar, regressou a Montecassino, onde morreu depois de um pontificado brevíssimo. Seu sucessor foi Ode de Chatillon, bispo de Ostia, que tomou o nome de Urbano II. Assim como Hildebrando, Urbano era um homem de convicções monásticas profundas, formado à sombra de Bruno, o fundador dos cartuxos. Pouco depois da sua eleição o vai-vém da pol (tica fez com que ele tornasse dono de toda Roma, de onde o antipapa foi expulso. Urbano é conhecido principalmente porque deu impulso à primeira cruzada (veja o cap ítulo IV). Mas além disto ele continuou a pol (tica reformadora de H ildebrando, e sua luta contra o imperador. Em seu zelo reformador ele rompeu com o rei Felipe I da França, que excomungou por ter abandonado sua esposa e tomado outra. Na I nglaterra, graças à intervenção de Anselmo de Canterbury (de quem falaremos mais adiante), ele conseguiu que o rei se declarasse a seu favor, contra o papa do imperador. Na Espanha ele apoiou a reconquista, que estava em uma das suas épocas mais gloriosas. O acontecimento mais notável do pontificado de Urbano, entretanto, no que se refere ao seu relacionamento com o imperador, foi a rebelião de Conrado, o filho de Henrique IV, que se declarou rei da Itália, e foi proclamado como tal pelo partido papal, em troca de que renunciaria a qualquer direito de investidura eclesiástica. Pouco depois, em um concílio reunido em Piacenza, a imperatriz Adelaide, esposa do imperador, o acusou de crimes graves contra sua pessoa. Henrique foi excomungado mais uma vez, apesar de a sentença de excomunhão anterior não ter sido revogada.


42 / A era dos altos ideais Pascoal II e os dois Henriques Quando Urbano II morreu Henrique I V estava começando a se recuperar do golpe que foi a traição de Conrado. No princ(pio ele se deixara abater pela notícia terrível de que seu filho predileto tinha se rebelado contra ele. Porém mais tarde ele invadiu a Itália, e conseguiu recobrar parte do seu poder nesta região. O sucessor de Urbano II foi Pascoal II, que teve esperanças de ver o cisma terminado quando o antipapa Clemente morreu. Mas o imperador fez eleger em rápida seqüência outros três, e o cisma continuou. Voltando para a Alemanha, Henrique desfrutou um novo despertar da sua antiga popularidade. A rebelião de Conrado despertou a simpatia dos seus súditos, e o velho rei gozou vários anos de renovado vigor. Durante este período ele obteve da dieta do Império que Conrado fosse deserdado, e que Henrique, o segundo filho do imperador, fosse declarado herdeiro da coroa. Além disto ele proclamou a "paz do I mpério", que consistia em uma proibição de guerrear durante quatro anos. Com suas novas forças Henrique conseguiu impor esta paz aos seus nobres, e o comércio prosperou. Isto conquistou para ele a afeição do povo, que gozou dos benefícios da paz; e o ódio dos nobres, que perderam os da guerra. Ninguém, todavia, se preocupava com sua excomunhão, apesar de Pascoal a ter repetido. O golpe fatal e inesperado veio em fins de 1104, quando Henrique, seu segundo filho, seguiu o exemplo do seu irmão Conrado e se rebelou, dizendo que lhe era impossível obedecer a um soberano excomungado. Pai e filho se declararam guerra, e ao redor de cada um deles se reuniu um exército. O filho dizia que assim que seu pai se submetesse à autoridade papal e a excomunhão fosse revogada sua rebelião terminaria. Várias vezes os dois contendentes se entrevistaram, e por fim o rebelde, através de uma artimanha, se apossou da pessoa de seu pai, e o fez prisioneiro. A dieta do I mpério se reuniu, elegeu Henrique V rei, e enviou uma embaixada a Roma para conversar com o papa sobre o fim das hostilidades. Mas Henrique IV escapou, e logo contou com numerosos seguidores. Os dois exércitos se preparavam para a batalha quando o velho impe-


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rador morreu, depois de quase meio século de turbulento reinado. A morte de Henrique IV, porém, não pôs fim à contenda entre o papado e o Império. A questão das investiduras não era tão fácil de resolver, pois nela entravam em conflito os Interesses dos imperadores com os ideais dos reformadores. O jovem Henrique não tardou em nomear bispos com a mesma liberdade com que seu pai o tinha feito. Pascoal reuniu um sfnodo em que, por um lado, lamentava os conflitos do reinado passado, e aceitava como válidas as nomeações que tinham sido feitas até então com investidura leiga, sempre e quando não houvesse mancha de simonia; mas por outro lado o mesmo '(nodo declarou que a partir daquele momento investiduras leigas não seriam aceitas, e que quem desobedecesse este decreto seria excomungado. Por diversas circunstâncias Henrique demorou três anos até poder enfrentar o desafio que o papa lhe lançava. Mas 110 fim deste prazo ele invadiu a Itália, e o papa se viu forçado u chegar a um acordo com o imperador, pois nenhum dos seus aliados militares acudiu em sua ajuda. Neste caso, o que Ilenrique propunha era simplesmente que, se o papa e a igreja estivessem dispostos a renunciar a todos os privilégios feudais que os prelados tinham, o imperador abandonaria toda pretensão ao direito de investidura, que ficaria exclusivamente em mãos eclesiásticas. Pressionado pela situação difícil, Pascoal concordou, com a única salvaguarda que o "patrimônio de São Pedro" ficaria nas mãos da igreja romana. I>.lém disto o papa coroaria Henrique imperador. Como era de se esperar este acordo provocou uma reação violenta entre os prelados, que se viam despojados de todo seu poder temporal. Não faltou quem lançasse no rosto do papa a liberalidade com que tinha disposto dos privilégios dos outros, enquanto conservava os seus. Entre os nobres da Alemanha este acordo também causou receios, pois os grandes magnatas temiam que o imperador, depois de aumentar enormemente seu poder com as possessões eclesiásticas, se apossasse das suas. Para cúmulo dos males o povo de Roma, ao ver que o papa estava sofrendo violência, se sublevou, e Henrique abandonou a cidade levando Pascoal e vários cardeais e bispos pri-


44 / A era dos a/tos ideais sioneiros. O pontffice, então, tentou resistir ao imperador, mas poucos meses depois se rendeu, e declarou que, para salvar a igreja de mais humilhações, ele estava disposto a fazer o que não faria para salvar sua própria vida. Henrique, então, levou o papa de volta para Roma, onde ele foi coroado na igreja de São Pedro, a portas fechadas, por medo do povo romano. lVas assim que o imperador regressou à Alemanha ele começou a enfrentar novas dificuldades. I\'iuitos dos nobres e do alto clero, sem outra alternativa, se rebelaram. Enquanto o papa permanecia calado, muitos prelados excomungaram o. imperador. p, eles se somaram mais tarde alguns sínodos regionais. Com certa vacilação Pascoal parecia apoiar a excomunhão de Henrique. Quando este protestou que o acordo feito estava sendo violado, o papa contestou, sugerindo que fosse convocado um concílio universal que dirimisse a questão. Isto era algo que o imperador não poderia permitir, pois ele sabia que quase todos os bispos estavam contra sua causa. Então Henrique apelou novamente à força. Assim que a situação na Alemanha lho permitiu ele marchou contra Roma, e Pascoal se viu obrigado a abandonar a cidade e se refugiar no castelo de Santo Ângelo, onde morreu.

o acordo

de Worms

Logo depois da morte de Pascoal os cardeais se apressaram para eleger seu sucessor, para evitar a intervenção do imperador. novo papa, Gelásio II, teve um pontificado breve e cheio de incidentes. Um magnata romano, pertencente ao partido imperial, o aprisionou e torturou. Quando o povo se rebelou ele lhe devolveu a liberdade. Pouco depois o imperador voltou para Roma, e Gelásio teve de fugir para Gaeta, em meio a circunstâncias novelescas. Quando ele regressava o mesmo magnata tentou novamente se apossar da sua pessoa, e o papa teve de fugir da igreja e se esconder em um campo, onde foi encontrado, seminu e quase sem forças, por um grupo de mulheres. Então ele decidiu se refugiar na França, onde morreu pouco depois na abadia de Cluny.

a

A decisão de Gelásio de se refugiar na França era sinal de que o papado se via empurrado para uma pol ítica diferen-


o conflito

entre o pontificado e o Império /45

te. O Império parecia ser seu inimigo mortal, e a aliança com os normandos não tinha dado resultados esperados; portanto, os papas começaram a encarar a França como um aliado capaz de sustentar sua posição diante das pretensões dos imperadores alemães. O próximo papa, Calixto II, era de origem francesa, descendente dos antigos reis da Burgúndia, e parente do imperador. Este estava cansado da contenda interminável, principalmente porque ainda não podia confiar no apoio dos nobres. Quando vários dos seus prelados mais importantes se declararam favoráveis a Calixto e contra o antipapa Gregório VIII, que Henrique fizera nomear, o soberano decidiu que tinha chegado a hora de fazer as pazes definitivamente com o papado reformador. As negociações se estenderam por muito tempo, e não faltavam novas campanhas militares, receios e ameaças. 1\1as no fim as duas partes chegaram ao acordo de Worms. Nele ficava determinado que os prelados seriam nomeados através de uma eleição livre, de acordo com os costumes antigos, se bem que na presença do imperador ou de seus representantes. A investidura, com a entrega do anel e do cajado pastoral, ficaria entregue às autoridades eclesiásticas, mas seria o poder civil que concederia aos bispos e abades, com o cetro, todos seus direitos, privilégios e possessões feudais. O imperador se comprometia também a devolver à igreja todas as propriedades eclesiásticas que estavam em seu poder, e fazer todo o poss(vel para que os diversos senhores feudais fizessem o mesmo. Assim terminava este longo período de lutas entre o pontificado e o Império. Em várias ocasiões posteriores, e por diversas razões, o poder civil voltaria a se chocar com o eclesiástico. I'vlas no caso de que estamos tratando o que havia era um conflito entre o papado reformador e um poder civil que tinha se acostumado a tratar com uma igreja anterior à reforma. Mais tarde a chegou a se impor. eclesiástico passou Por algum tempo a

reforma que aqueles papas impulsionaram A lei (e muitas vezes a prática) do celibato a ser universal em toda a igreja ocidental. simonia foi quase totalmente erradicada. O


46/ A era dos altos ideais poder do papado aumentava cada vez mais, até chegar ao seu ápice no século XIII. No entanto, a querela das investiduras mostra que aqueles papas reformadores, ao mesmo tempo que levavam tão a sério o ideal monástico do celibato, e faziam o que era possível para transformá-lo em regra universal para o clero, não faziam o mesmo com o outro ideal monástico, a pobreza. A questão das investiduras era importante para o poder civil porque a igreja ficara extremamente rica e poderosa, e este poder não podia permitir que estes recursos estivessem nas mãos de pessoas que lhe não fossem afeiçoadas. Henrique V pôs o dedo na ferida ao sugerir que a investidura estivesse em mãos eclesiásticas, sempre e quando os prelados assim investidos precisassem dos poderes e privilégios dos grandes senhores feudais. Para os papas reformadores as possessões da igreja pertenciam a Cristo e aos pobres, e por isto entregá-Ias ao poder civil era quase apostas ia. Mas o fato é que estas possessões eram utilizadas para lucro pessoal, e para promover a ambição dos prelados que na teoria não passavam de zeladores. A igreja, enquanto insistia em sua independência nos assuntos espirituais, não estava disposta a renunciar à ingerência nos assuntos temporais. E esta ingerência já não favorecia os pobres e oprimidos, como em tempos anteriores, mas era feita com motivação de ambição pessoal e de dinastia.


IV As cruzadas

Eu o digo aos presentes. E ordeno que seja dito aos ausentes. Cristo está mandando. Todos que forem e lá perderem a vida, seja no caminho por terra ou no mar, ou na luta contra os pagãos, terão perdão imediato dos seus pecados. Isto eu concedo a todos que marcharem, em virtude do grande dom que Deus me tem dado. Urbano /I De todos os ideais elevados que cativaram o espírito da época, nenhum foi tão avassalador, tão dramático, nem tão contraditório como o das cruzadas. Durante vários séculos a Europa ocidental derramou seu fervor e seu sangue em uma série de expedições cujos resultados foram, nos melhores casos, de pouca duração; e nos piores casos, trágicos. O objetivo era derrotar os muçulmanos que ameaçavam Constantinopla, salvar o Império do Oriente, unir de novo a cristandade, reconquistar a Terra Santa, e em tudo isto ganhar o céu. Se este último propósito foi alcançado ou não, cabe ao Juiz Supremo decidir. Todos os outros foram concretizados, de uma ou outra forma. Mas nenhum deles de maneira permanente. Os muçulmanos, derrotados no começo por estarem divididos entre si, mais tarde se uniram e expulsaram os cruzados. Constantinopla, e a sombra do seu Império, puderam continuar existindo até o século XV, mas a longo prazo caíram sob o


48 / A era dos altos ideais

ímpeto dos turcos otomanos. As igrejas latina e grega se uniram por pouco tempo, pela força, em conseqüência da quarta cruzada; mas o verdadeiro resultado desta união forçada foi que o ódio dos gregos pelos latinos se acentuou. A Terra Santa esteve em poder dos cristãos mais ou menos um século, e depois caiu novamente em mãos de muçulmanos. Pano de fundo das cruzadas: as peregrinações

Desde o século IV as peregrinações até a Terra Santa tinham ficado cada vez mais populares. Já antes surgira o costume de visitar os túmulos dos mártires no aniversário da sua morte. Agora o Império era cristão, e era poss ível fazer peregrinações mais longas, até a Terra Santa ou Roma, onde descansavam os restos mortais de São Pedro e São Paulo. A mãe de Constantino, Helena, creu ter descoberto em Jerusalém os restos da "vera cruz". Esta descoberta, e as bas ílicas que ela e vários imperadores mandaram construir, aumentaram a fascinação dos cristãos pela Terra Santa. Ao mesmo tempo vários dos "gigantes" a que dedicamos nosso segundo volume atacaram as peregrinações, dizendo que se tratava de superstição, e que em todo caso havia mais mérito em ficar em casa e fazer o bem do que marchar até algum distante lugar por motivos religiosos. Apesar desta oposição, durante a "era das trevas" as peregrinações ficaram cada vez mais populares. Não demorou e elas foram consideradas como uma forma de penitência adequada para certos pecados. Em alguns documentos do século VII vemo-Ias inclu ídas entre as penitências que é Iícito impor a um pecador. r","iesmo havendo outros lugares de peregrinação, o de maior prestígio, tanto pela distância como por sua importância histórica, naturalmente era a Terra Santa. Quando os árabes tomaram os lugares sagrados do cristianismo, algumas pessoas temeram que as peregrinações à Terra Santa seriam dificultadas sobremaneira. Mas os governantes árabes em sua maioria se mostraram extremamente benevolentes para com os peregrinos cristãos, que continuaram afluindo para Jerusalém e os lugares santos. Como muitas vezes os mares não eram seguros, por causa da pirataria, a rota mais comum dos


As cruzadas /49 peregrinos do Ccidente os levava primeiro até Constantinopla, c dali por terra, através da Anatólia e da Síria, até Jerusalém. A reforma do século XI deu grande importância às peregrinações, que nesta época ficaram mais fáceis e comuns porque a pirataria tinha sido quase totalmente erradicada do I\~editerrâneo. Mas no fim deste século as circunstâncias políticas mudaram no Oriente Próximo. Até então a grande potência da região tinha sido o califado abássida, com capital em Bagdá. Se bem que as suas relações com o Império Bizantino não eram cordiais, este último tinha naquele um forte baluarte contra as herdas da Ásia central. No século XI, no entanto, o poderio abássida se desfez, e os turcos seljúcidas invadiram o califado, e depois o Império. Constantinopla viu-se ameaçada, e por esta razão repetidamente pediu ajuda ao Ocidente. Os turcos tomaram primeiro os santos lugares. Depois a dinastia árabe dos fatimidas, tendo como sede do seu poder o Egito, começou a tomar as terras conquistadas pelos turcos. Estes se dividiram em diversos grupos. Para os peregrinos isto tudo fazia sua viagem ser confusa e perigosa. Os que regressavam à Europa diziam que cada cidade parecia ter seu próprio governo, e que por todos os lados havia fortes bandos de ladrões, contra os quais era necessário se armar. Nestas novas circunstâncias, aliadas ao fato de que muitos peregrinos não voltavam para sua cidade natal, as pessoas começaram a pensar na Terra Santa como o lugar da última peregrinação. Muitos documentos da época nos falam de peregrinos que esperavam morrer em Jerusalém ou a caminho. Alguns chegam a se mostrar decepcionados por ter podido regressar. Para os espíritos mais exaltados a morte em peregrinação à Terra Santa veio a ser a suprema eleição divina, como a morte nas mãos do Império o tinha sido para os mártires de antigamente. Por outro lado, a situação provocou a existência de peregrinos armados. Estes peregrinos não iam conquistar a Terra Santa, mas queriam estar prontos para se defenderem se deparassem com algum bandido, ou se um grupo de soldados pretendesse matá-los ou aprisioná-los. Desta forma houve peregrina-


50/ A era dos altos ideais

ções que pareciam ser pequenos exércitos. E nelas encontramos algumas ra(zes das cruzadas.

Pano de fundo das cruzadas: a guerra santa

A tradição da guerra santa se fundiu com a das peregrinações para criar o ideal das cruzadas. Como todos sabem, a igreja antiga tinha sérias dúvidas sobre se alguém podia ser soldado e cristão ao mesmo tempo. Na época de Constantino estas dúvidas tinham sido desfeitas, e por isto os cristãos parecem ter sido relativamente numerosos nas legiões romanas. Eusébio relata as guerras de Constantino contra Magêncio e Lic ínio como se fossem empreendimentos ordenados por Deus. Para isto ele contava com muitos precedentes no Antigo Testamento, e ele não deixou de fazer uso deles. Pouco depois Agostinho desenvolveu a teoria da guerra justa, e assinalou as condições necessárias para que este nome pudesse ser dado a uma ação bélica qualquer. Na "era das trevas" houve muitos bispos cristãos que de um ou outro modo apoiaram algum exército que saía para o campo de batalha. As conquistas de Carlos I'vlagno receberam sanção papal. Na época que estamos estudando o papa Leão IX deu o exemplo, ao marchar à frente das tropas com que esperava derrotar os normandos. Ao mesmo tempo, como veremos no próximo capítulo, os cristãos tentavam expulsar os mouros da Espanha. Neste esforço contavam com o apoio da igreja e a bênção do papa, que às vezes cheqou a reclamar os territórios conquistados como propriedade de São Pedro. Além disto Gregório VII, a figura predominante da reforma do século XI, tentara enviar soldados ocidentais para socorrer o Império Bizantino, só que suas convocações só encontraram ouvidos surdos. A primeira cruzada

Foi no tempo de Urbano II que todas as circunstâncias necessárias para o grande empreendimento coincidiram. O imperador de Bizâncio, Aleixo Comneno, tinha enviado emissários para Roma, para pedir socorro contra os turcos. As auto-


As cruzadas /51 ridades eclesiásticas estavam tentando freiar o espírito guerreiro dos nobres, declarando a Trégua de Deus e a Paz de Deus. A primeira estabelecia certos períodos durante os quais era proibido fazer guerra, normalmente abrangendo as principais festas da igreja, os domingos, do Advento até Epifânia, e de quarta-feira de cinzas até a oitava semana depois da Ressurreição. A segunda estabelecia que certos lugares, propriedades e pessoas estariam desobrigados de todas as impl icações da guerra. Isto tudo, porém não bastava, e muitas vezes não era cumprido. Por isto os papas reformadores, Urbano em particular, procuravam outros métodos para pôr fim às intermináveis escaramuças entre os nobres. Por outro lado os últimos anos do século XI foram tristes na maior parte da Europa ocidental. Houve vários anos seguidos de colheitas fracas. Em algumas regiões a fome foi atroz. A. ela se juntaram as epidemias. A peste fez grandes estragos. Mas a enfermidade mais temida, por não ser conhecida antes, foi a dos "ardentes". Os enfermos sofriam de febre altíssima, e seus pés e mãos gangrenavam, apodreciam e caíam aos pedaços. Os poucos enfermos que conseguiam sobreviver ficavam mutilados, e condenados a uma existência miserável. Em meio a estas circunstâncias não devemos surpreendernos com a acolhida que o chamado do papa Urbano teve no concílio de Clermont, na França, onde ele fez sua famosa convocação à primeira cruzada. Como Urbano era francês, é de se supor que seu discurso, dirigido a todos os presentes, foi proferido no idioma do povo. Depois de se referir aos perigos que os cristãos elo Oriente enfrentavam na ameaça turca, o papa passou a descrever em detalhes os horrores que os peregrinos sofriam, a profanação dos lugares sagrados, e a necessidade imperiosa de que se acudisse em socorro aos irmãos gregos. Antes de ele terminar seu discurso a multidão já dava mostras da sua aprovação. O papa ofereceu indulgência plena a todos que morressem no empreendimento. Isto queria dizer que qualquer pecado, por mais grave que fosse, seria perdoado, e eles iriam eliretamente para o paraíso. A multidão continuou expressando seu entusiasmo, e quando o discurso chegou ao fim começou a gritar: "Deus o quer! Deus o quer! Deus o quer!"


52 / A era dos altos ideais

Deus o quer) Deus o quer!

G resultado da convocação ultrapassou de muito as esperanças do papa. O que parece que ele desejava era que começassem os preparativos para uma grande expedição militar, de acordo com os padrões tradicionais, dirigida pelos nobres. Mas o resultado imediato foi uma febre de entusiasmo que parecia ser tão contagiosa como a praga. Logo surgiram numerosos


As cruzadas

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pregadores do grande empreendimento. Todos os sonhos apocal Ipticos que durante muitos séculos estiveram reprimidos nas classes baixas começaram a reluzir. Houve quem tivesse visões da Jerusalém celestial, que descia do céu, e ficava suspensa no Oriente. Outros viram grandes bandos de aves, de peixes, ou de borboletas que se dirigiam para o leste, como que indicando aos cruzados o caminho a seguir. Alguns diziam ter recebido sobre o ombro a marca da cruz, que os declarava eleitos para a peregrinação militar. E não faltavam os que mostravam orgulhosos tal sinal da graça divina. O mais famoso destes pregadores populares foi Pedro, o Ermitão, cujo manto de lã grosseira as multidões tentavam beijar. Sua pregação estimulante, seu fervor contagioso, e sua pobreza austera o transformaram no principal Iíder das multidões que sonhavam com a Terra Prometida. Conta-se que muitas pessoas arrancavam os cabelos da sua mula, para guardá-los como rei íquia. Pedro, o Ermitão, atravessou toda a França, anunciando a cruzada e levando atrás de si uma multidão cada vez maior de seguidores entusiasmados. Enquanto os nobres e os cavaleiros preparavam cuidadosamente sua expedição, esta gente, oprimida por suas circunstâncias do momento, simplesmente decidia seguir a Pedro ou a algum outro pregador semelhante. E não iam tanto como soldados, mas como peregrinos e colonizadores. Muitos ferraram seus bois para a longa marcha, puseram-nos à frente de uma carreta, e sobre esta levaram sua fam íIia e suas escassas posses. Pedro e seus seguidores então passaram para a Alemanha, para recrutar mais adeptos, e seguiram para o território dos húngaros, onde esperavam ser bem recebidos. Mas os cruzados não levavam provisões, e por isto tinham de se sustentar com o que tomavam do país. Não tardou para eles terem de lutar contra cristãos que tentavam defender seus bens; primeiro os húngaros, depois os búlgaros. Nestas peripécias Pedro perdeu boa parte da sua autoridade, e o "exército" começou a se desfazer. Chegaram, afinal, às fronteiras do Império Bizantino, e Aleixo Comneno fez todo o possível para apressar sua passagem através dele, para evitar incidentes como os ocorridos na Hungria. Com ajuda imperial os cruzados atravessaram o Bós-


54 / A era dos altos ideais

foro e entraram na Anatólia. Ali eles tiveram seus primeiros encontros com os turcos, que foram desastrosos. Mais tarde, seguindo os conselhos do imperador, eles decidiram aguardar o exército dos nobres antes de tentar tomar a cidade de Nicéia.

Godofredo

de Buthões, duque da Baixa Lorena, pertiu

contingente de cruzados, mas meis tarde acabou sendo empreendimento.

comandando

o

um

líder de todo

o


As cruzadas

/55

Enquanto isto outros grupos de cruzados tinham partido da França e de outras regiões da Europa. Muitas destas partidas estavam pior organizadas que a de Pedro, o Ermitão, e nem sequer esperaram até sair da Alemanha para se entregarem d pilhagem. Isto é compreensível, pois se tratavam de pessoas que nada tinham, que se consideravam enviadas em uma missão divina, e para as quais, por isto, a riqueza dos territórios que atravessavam parecia um sacrilégio. Mas o resultado foi que muitos destes bandos foram aniquilados pelos habitantes do pafs, e que alguns sobreviventes foram submetidos a condições de penúria ainda maior do que a que tinham sofrido em sua terra natal. Além disto boa parte destes "soldados de Cristo" se dedicou a matar judeus. Já que iam a terras distantes para lutar contra os infiéis, por que não começar esta luta imediatamente, matando os judeus que encontravam a caminho? Em Praga, Metz, Ratisbona e Mogúncia milhares de judeus foram mortos pelos cruzados. Quando Henrique IV regressou ao país de uma viagem à Itália, os abusos contra os judeus foram afinal proibidos. Mas o mal já estava feito. Enquanto estes bandos desorganizados se dirigiam para o Oriente os nobres preparavam uma expedição militar elaborada. O papa tinha nomeado Ademar de Monteil, bispo de Puy, seu legado, e com isto chefe do empreendimento. Mas ocorreu que os cruzados partiram da Europa para Constantinopla por diversos caminhos. O comandante dos soldados procedentes da região do Reno, tanto alemães como franceses, era Godofredo de Bulhões, duque da Baixa Lorena. Os franceses do sul estavam sob o comando direto de Raimundo de Saint-Gilles, conde de Toulouse, acompanhado de Ademar, I(der espiritual da cruzada. Outros franceses seguiam Hugo de Vermandois, irmão do rei Felipe I. E os normandos do sul da Itália seguiram Boemundo e Tancredo, dois nobres da região. Contingentes menores, procedentes de outros países (Galfcia, Inglaterra, Escandinávia, etc) se uniram a estes exércitos principais. Cada uma por seu próprio caminho, as colunas de cruzados foram chegando em Constantinopla. Ali o imperador Aleixo os recebeu com cortesia e todo tipo de festejos e donativos.


56 / A era dos altos ideais

!'vias ao mesmo tempo se mostrou firme, obrigando-os a lhe jurar lealdade, e que qualquer cidade bizantina que fosse tirada dos turcos voltaria a integrar o Império. Quando os exércitos partiram da cidade Aleixo lhes consignou uma escolta militar, não só para lhes servir de guia, mas também para evitar que os cruzados se dedicassem a saquear o território que tinham de atravessar. Por todos os lados viam-se os esqueletos das primeiras vagas de cruzados, que os turcos tinham batido facilmente. Pedro, o Ermitão, e os demais sobreviventes juntaram-se ao exército dos nobres. A primeira ação militar contra os turcos foi o sítio de Nicéia, onde o sultão seljúcida, Kirlik Arslan, tinha sua capital. Os turcos aparentemente não deram grande atenção às hostes invasoras, talvez porque esperavam que elas fossem tão fáceis de venc.er como tinham sido as hostes de Pedro, o Ermitão. Quando descobriram seu erro a cidade de Nicéia estava sitiada. Um exército turco que acudiu em seu auxílio foi derrotado pelas tropas de Raimundo de Toulouse, que ordenou que as cabeças dos inimigos mortos fossem lançadas por sobre as muralhas de Nicéia, para semear o pânico entre os defensores.

A prlmolro

crUZ8d8


As cruzadas /57 Nicéia, entretanto, estava constru (da à margem de um grande lago, e os cruzados, sem forças navais, não podiam evitar que os sitiados recebessem recursos por este caminho. A pedido dos cruzados o imperador enviou uma flotilha para fechar o cerco. A queda de Nicéia, a cidade que tinha sido sede do primeiro condlio ecumênico, era inevitável. Porém Aleixo temia a cobiça dos cruzados. A maior parte da população de Nicéia era cristã, e se a cidade fosse tomada sem maiores danos ela poderia facilmente ser incorporada ao Império Bizantino. Por isto o imperador começou negociações secretas com os sitiados, que lhe abriram as portas que davam para o lago, enquanto os cruzados atacavam as muralhas por terra. Antes que as muralhas cedessem os atacantes viram ondear dentro da cidade o pendão imperial. Aleixo tomou posse da cidade, e não permitiu aos cruzados tomar nenhuma presa; somente distribuiu entre eles comida abundante, além de ouro e pedras preciosas tiradas do tesouro do sultão. De Nicéia os cruzados partiram para Antioquia. Para esta marcha eles se dividiram em duas colunas, que marchavam com um dia de distância entre si. Esta divisão acabou sendo a salvação do exército, pois o sultão Kirlik tinha conseguido reunir todas as suas tropas e preparar uma armadilha na plarucie de Doriléia. Ali o primeiro exército foi surpreendido e cercado. Não havia nenhuma maneira de escapar ao massacre, e a única coisa que sustentava os cristãos era a certeza de que se se rendessem esperava-os uma sorte pior que a morte. Desde a madrugada até o meio-dia defenderam-se sob uma chuva constante de flechas, sem esperança de vitória. Mas então chegou Raimundo de Toulouse à frente do segundo exército. Antes de atacar, esta outra força se dividiu. Enquanto Raimundo se lançou ao combate, outro contingente, sob o comando do bispo Ademar, rodeou o campo às escondidas, atrás de uma elevação do terreno. O ataque de Raimundo surpreendeu os turcos, que romperam o cerco ao redor do primeiro exército. Este recobrou sua coragem, de modo que as tropas cristãs se uniram para fazer uma frente comum contra o inimigo. Este começava a se reorganizar quando de repente Ademar e os seus atacaram a sua retaguarda. A resis-


58 / A era dos altos ideais

tência dos turcos desmoronou diante de tantas surpresas, e eles fugiram espavoridos. O massacre foi enorme, e os cruzados ficaram de posse do campo de batalha e do acampamento do sultão, com todas suas tendas e tesouros. C caminho até a Terra Santa estava aberto. I\/ias os soldados europeus não contavam com as dificuldades do terreno na Anatólia. Durante seis semanas, até que chegaram a Icônio, sofreram sede e todo tipo de privações. rvluitos animais de carga morreram, e o glorioso exército da cruz se viu obrigado a colocar seus fardos sobre cabras e porcos. Esta experiência, no entanto, consolidou a unidade entre as tropas procedentes de diversas regiões, que mal se compreendiam entre si. Depois de dois dias de descanso em Icônio o exército marchou até Heracléia, onde novamente derrotou os turcos. Depois se dividiram de novo, pois alguns decidiram tomar o caminho mais curto e perigoso até Antioquia, enquanto outros preferiram dar uma grande volta através da região da Armênia, onde esperavam receber o apoio e provisões da população cristã. Quando por fim os dois grupos se reuniram perto de Antioquia ambos tinham más notícias para repartir. Os que tinham rumado para a Armênia tinham sido bem recebidos pelos habitantes do lugar. Mas nos passos das montanhas tinham perdido muitas vidas, animais, armas e provisões. Os que tinham seguido o outro caminho tiveram melhor sorte, mas as desavenças entre eles se tornaram insuportáveis. Diante dos muros de Tarso, Tancredo e Baldu (no, o irmão de Godofredo de Bulhões, combateram entre si. Por fim Baldu íno decidiu abandonar o empreendimento comum e aceitar a oportunidade que os armênios lhe ofereciam de estabelecer um condado independente em Edessa. O chefe turco de Antioquia tinha se preparado para o ataque dos cruzados fazendo vir provisões de toda a região, e pedindo reforços aos outros chefes turcos. Os atacantes tiveram a sorte de capturar um grande envio de provisões destinadas a Antioquia, e com elas restaurar sua força e moral. O cerco prometia ser longo, pois Antioquia ainda era uma grande cidade, protegida por uma muralha de quatrocentas torres. Mas os cruzados tinham v(veres, e estavam dispostos a esperar


As cruzadas /59

As muralhas de Antioquia

davam grandes vantagens aos turcos, que defen-

deram a cidade com todas as forças.

a rendição da cidade. Pouco depois chegaram vários navios genoveses, carregados de reforços e de provisões. De Chipre o patriarca exilado de Jerusalém, Simeão, lhes enviava quanto podia. Mas tudo isto não bastava. Em fins de 1097 não havia o que comer no acampamento dos cristãos, enquanto os sitiados permaneciam firmes e suas provisões não se esgotavam. O exército cristão estava em perigo de se desfazer. As deser-


60 / A era dos altos ideais

ções eram cada vez mais numerosas. Uma noite Pedro, o Ermitão, fogoso e volúvel como o apóstolo do mesmo nome, abandonou o acampamento. Felizmente Tancredo conseguiu capturá-lo antes que os outros seguissem seu exemplo, e o trouxe de volta para o exército. Outro desertor encontrou Aleixo Comneno, que vinha com reforços, e o convenceu de que o empreendimento tinha fracassado, e que as tropas bizantinas não tinham chances de sobreviver. Enquanto Aleixo seguia os conselhos dos desertores e marchava de volta para Constantinopla a situação em Antioquia mudava completamente. Um armênio que morava na cidade abriu as portas aos francos, que entraram em Antioquia aos gritos de "Deus o quer!" Os turcos, tomados de surpresa, se refugiaram na cidadela fortificada que se encontrava no meio da povoação. Os cristãos, tanto cruzados como residentes de Antioquia, se lançaram às ruas e mataram todos os turcos que não se tinham refugiado na cidadela com rapidez suficiente. O entusiasmo da vitória durou somente quatro dias. No dia sete de junho um novo exército turco, sob o comando de Kerbogat, cercou Antioquia. Os cristãos estavam assim entre as forças inimigas: o novo exército que os sitiava e os antigos sitiados, que ainda dominavam a cidadela. A situação era desesperadora; a fome, insuportável. O longo sítio e o enorme massacre tinham provocado epidemias terríveis. Foi então que um humilde camponês provençal, chamado Pedro Bartolomeu, foi ver os chefes da cruzada para lhes contar as visões que tivera. Nestas, Santo André e o próprio Jesus Cristo lhe tinham aparecido, e lhe tinham dito que a lança que ferira o Senhor estava enterrada sob a igreja de São Pedro, ali mesmo, em Antioquia. A princípio os I(deres não lhe deram atenção. Naquele exército abundavam as visões. Mas depois o sacerdote Estêvão teve outras revelações que pareciam confirmar o que Pedro Bartolomeu tinha dito. Por fim os comandantes decidiram ir buscar a Santa Lança. Durante todo o dia cavaram onde Pedro Bartolomeu indicara. Estavam dispostos a abandonar a busca quando o visionário se lançou ao solo e beijou algo que mal se via, no fundo. Com ânimo redobrado


As cruzadas /61

os que cavavam desenterraram o que o vidente lhes mostrava, e descobriram que era uma lança! Um frenesi se apossou do exército. Em outra visão Pedro Bartolomeu recebeu a ordem de que os cruzados jejuassem por cinco dias, para depois atacar os que os cercavam. Quando, depois do per(odo de jejum, aquele exército quase delirante se lançou sobre os turcos, com a Santa Lança como estandarte, as tropas de Kerbogat fugiram apavoradas. Em meio à desordem morreram milhares de turcos, enquanto os seus inimigos os perseguiam sem trégua. O exército turco foi desbaratado. Por fim os cruzados regressaram ao acampamento do inimigo, para tomar a presa de guerra. Ali encontraram muitas mulheres que os turcos tinham trazido consigo, e um cronista nos conta que o fervor daqueles soldados cristãos era tal que "não lhes fizemos nenhum mal, somente as matamos a lançadas". A conquista de Antioquia não facilitou a tarefa dos cruzados. Boemundo queria a cidade para si, assim como Baldu íno antes tomara Edessa. Raimundo de Toulouse insistia no juramento feito ao imperador bizantino. Estas dissensões demoravam a marcha para Jerusalém. Por fim o exército, que sentia que estavam freiando seu entusiasmo, ameaçou os nobres, dizendo-lhes que já que Antioquia parecia estar causando tais contendas era melhor destruir suas muralhas, para que ninguém se deixasse levar pela ambição. Diante destas ameaças, os nobres fizeram uma paz forçada. Boemundo ficou em Antioquia, enquanto Raimundo e o grosso do exército prosseguia até Jerusalém. Mas antes de sair Raimundo ordenou a destruição das defesas, e incendiou a cidade. Ademar de Puy, o único que poderia manter unidos aqueles nobres de ambições discordantes, tinha morrido de febre em Antioquia. Já não havia outros Iíderes religiosos reconhecidos, além de visionários no estilo de Pedro Bartolomeu. Quanto mais se aproximavam do final da sua longa peregrinação, mais o povo insistia em que a marcha fosse apressada. Os nobres, entretanto, acostumados a guerrear por presa e terras, queriam se deter a cada passo para assediar uma cidade ou tomar uma fortaleza. Quando chegaram a Trfpoli o emir desta cidade os recebeu cortesmente e Ihes prometeu pagar


62 / A era dos altos ideais

forte tributo. Mas Raimundo pensou que talvez conseguisse um pagamento mais elevado se antes de fazer um acordo tomasse a fortaleza da Arca. O exército pára contra mais esta demora. Godofredo de Bulhões, que tinha saído para uma expedição breve, voltou a se reunir ao grosso das tropas, e tomou o partido do povo. Era necessário continuar imediatamente a marcha para Jerusalém. Pedro Bartolomeu, o visionário que levara ao descobrimento da Santa Lança, teve uma nova revelação, em que lhe foi dito que a expedição não deveria mais se demorar pelo caminho. Se fossem tomar a Arca, isto deveria ser feito imediatamente, com um ataque frontal, e depois continuar imediatamente até a Cidade Santa. Raimundo e os seus não lhe prestaram atenção. O vidente se mostrou disposto a provar sua visão por meio do fogo. Na sexta-feira santa, no começo da tarde, quarenta mil testemunhas se reuniram para presenciar o espetáculo. Duas piras foram acendidas. Entre as duas havia uma rampa estreita, de uns quatro metros de largura, por onde deveria andar o presumido prefeta. Este, depois de pedir a ajuda do céu, tomou a Santa Lança, e com passo firme e decidido entrou nas chamas. Ali quarenta mil testemunhas o viram andar lentamente, até que saiu do outro lado. Os cronistas diferem sobre o que aconteceu então. Há quem diz que o falso prefeta caiu sem forças do outro lado, e que à noite morreu em conseqüência das queimaduras. Mas a versão difundida entre os cruzados era que, ao vê-lo sair ileso das chamas, 6 povo se lançou sobre ele, para tentar tocá-lo, ou obter um pedaço de suas roupas como relfquia, e o tumulto foi tal que seus próprios seguidores lhe quebraram vários ossos, em conseqüência do que ele morreu na mesma noite. Em todo caso a maioria dos cruzados não estava disposta a continuar o s(tio da Arca, que logo foi levantado. Com os dentes cerrados Raimundo seguiu o impulso incont(vel que parecia arrastar aquele exército até Jerusalém. O resultado da sua ambição foi que ele perdeu o apoio com que antes contara entre os soldados. Seu lugar foi tomado por Godofredo de Bulhões, que naquele momento prop(cio tinha insistido na necessidade de continuar a marcha até Jerusalém.


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Por fim, no dia 7 de junho de 1099, da colina que recebeu o nome de Montjoie (isto é, Monte da Alegria), os cruzados avistaram as muralhas da Cidade Santa. Mas estas muralhas, até então tema dos seus sonhos, não tardaram em se transformar em pesadelo. Os que ocupavam Jerusalém não eram turcos, mas árabes, procedentes em sua maior parte do Egito. No princfpio os governantes fatímida do Egito tinham visto com bons olhos as vitórias dos cruzados sobre os turcos. Mas agora, aproveitando estas vitórias, decidiram empreender a conquista dos territórios que os turcos tinham ocupado, e que anteriormente tinham estado em mãos árabes. Atacado ao mesmo tempo pelos cruzados e pelos fatímida, o poderio dos turcos seljúcidas desapareceu. Mas isto, por sua vez, deixou os cruzados confrontados diretamente com os fatímida. Os defensores de Jerusalém tinham tomado boas medidas para sua proteção. Seus armazéns e cisternas estavam cheios. Todos os cristãos foram expulsos da cidade, tanto para evitar que traíssem os defensores como para se assegurar que as provisões durariam mais tempo. Os comandantes árabes também mandaram envenenar todos os poços das proximidades, destru (rarn as colheitas e arrasaram tudo que poderia oferecer o mínimo abrigo aos cruzados. Quando estes chegaram ao término da sua viagem tiveram de enfrentar as novas dificuldades que os árabes tinham lhes preparado. O único lugar perto da cidade onde havia água era o tanque de Siloé. Mas também ali a água era tão pouca que os animais e as pessoas se pisoteavam para chegar a ela, e logo ela estava fétida por causa dos cadáveres. A não ser ali, a água mais próxima estava a milhas de distância, e foi necessário que boa parte dos cruzados se dedicassem a buscá-Ia para aqueles que cercavam a cidade. Além disto não havia madeira para construir torres e demais artefatos necessários para o assédio. Um contingente foi enviado até perto de Samaria, de onde trouxeram os troncos necessários. Pouco depois uma frota genovesa chegou a um porto próximo com reforços e provisões. Apesar de a pequena frota ser surpreendida pelos árabes no porto, e destru (da, somente os navios foram perdidos. Os reforços, junto com os marinheiros e as


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provisões, aliviaram a condição dos cruzados. Muitos dos marinheiros também eram bons carpinteiros, e a construção de instrumentos de assédio foi acelerada. Em princípios de julho chegaram not(cias de que um exército árabe se aproximava da cidade. Se o sítio durasse mais tempo os cruzados estariam esmagados entre as muralhas e este novo exército. Então alguém teve uma visão. O falecido bispo Ademar de Puy lhe apareceu e disse que, para tomar a cidade, o exército deveria fazer penitência, marchar descalço ao redor dela e jejuar, e depois atacá-Ia com todas as forças. Na manhã do dia 8 de julho os árabes que guardavam as muralhas zombaram com gosto daqueles soldados, supostamente' valentes, que marchavam descalços ao redor da cidade atrás de bispos e do restante do clero, lamentando-se e entoando hinos de penitência. Mas no dia 12 as torres estavam prontas para o assalto. Contra elas os defensores reforçaram as muralhas. Naquela noite, ocultos na escuridão, os cruzados desmontaram as torres, e as transportaram de maneira que fica-

/\ entrada dos cruzados em Jer usslen, não foi con.o o pintor Palo v a epresente aqui. Pelo contrario, os cruzados se dedicaram e ti rapina.

ti

K8r/ von matança


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ram diante das partes mais fracas das muralhas. Na madrugada do dia 13 o ataque começou. Durante todo este dia e no seguinte a batalha continuou, sem que os atacantes conseguissem abrir uma brecha entre os defensores. As baixas eram enormes em ambos os exércitos. As forças fraquejavam. Por fim, na manhã do dia 15, o cavaleiro Leotoldo, do exército de Godofredo de Bulhões, conseguiu saltar o parapeito e se apossar de uma pequeníssima parte da muralha. Logo Godofredo, Tancredo e outros o seguiram. Por aquela brecha o exército cruzado foi abrindo o caminho. A resistência se desfez. O pânico se espalhou entre os defensores. Em outros lugares foram abertas novas brechas. Jerusalém estava novamente em poder de cristãos! Então aqueles soldados de Cristo se dedicaram à vingança. Todos os soldados sarracenos foram mortos, e a população civil não sofreu melhor sorte. Muitas mulheres foram violentadas. De outras as crianças foram arrancadas do peito, para serem jogadas contra a parede. Os judeus tinham fugido para a sinagoga. Os cruzados atearam fogo ao prédio, e mataram todos. Uma testemunha ocular conta que a matança foi tal que no Pórtico de Salomão o sangue chegava até os joelhos dos cavalos. Quando o massacre afinal acabou, e foi decidido enterrar os cadáveres, os sobreviventes entre os sarracenos eram tão poucos que foi necessário pagar aos cristãos mais pobres para que se ocupassem da tétrica tarefa. História posterior das cruzadas

Depois do banho de sangue os cruzados começaram a organizar suas conquistas. Se poucos meses antes o I(der natural parecia ser Raimundo de Toulouse, agora Godofredo de Bulhões o era, e ele foi eleito rei de Jerusalém. Alguns cronistas antigos contam que Godofredo se negou a tomar o tftulo real na cidade onde o Rei dos Reis tinha morrido, razão pela qual ele era chamado somente de "protetor do Santo Sepulcro". Em todo caso, quando seu irmão Baldu íno lhe sucedeu pouco depois (em 1100), este tomou o título de rei. Assim ficou estabelecido o Reino de Jerusalém, organizado de acordo com os padrões feudais franceses, e cujos principais


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Em 1100 Baldu/no I foi coroado rei de Jerusalém. Pintura de Vassalacchi, no palácio do Doç«, em Florença.

vassalos eram o Pr(ncipe de Antioquia (Boemundo) e os condes de Edessa (Baldu íno) e de Tr(poli (Raimundo de Toulouse). Muitos dos que tinham marchado naquela primeira cruzada, no entanto, não tinham a intenção de permanecer no Oriente. Assim que Jerusalém foi conquistada eles condu (ram que sua tarefa estava encerrada, e se puseram a cumprir os ritos prescritos para os peregrinos, para depois partir. A duras penas Godofredo pôde reter suficientes cavaleiros para enfrentar o


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exército sarraceno que marchava contra Jerusalém. Este foi derrotado em Ascalom. Mas a partida de muitos cavaleiros deixava o Reino de Jerusalém em situação precária. O resultado disto foi um chamado constante à Europa para que fossem enviados reforços. Assim as cruzadas se transformaram em uma instituição militar e religiosa. Continuamente partiam para a Terra Santa contingentes em que se mesclavam motivações de aventura com espírito de penitência. Por isto, quando os historiadores se referem à segunda cruzada, à terceira cruzada, etc, os acontecimentos que narram são somente pontos culminantes de um movimento ininterrupto que cativou a imaginação da cristandade ocidental durante vários séculos. Além disto estas cruzadas, por assim dizer "oficiais", têm sido objeto de atenção especial porque foram dirigidas pelos reis e poderosos. Mas sempre existiu o fluxo popular, representado na primeira cruzada por Pedro, o Ermitão, e pelos vários bandos de cruzados pobres que o seguiram, bem como a outros pregadores semelhantes. Entre as massas o espírito apocalíptico e messiânico das cruzadas perdurou por várias gerações. De algum modo estas massas escutaram ecos da predileção das Escrituras pelos pobres (tema que não era pregado naquela época), e freqüentemente se convenceram de que eram elas que deviam trazer o reino de Deus. Um tema semelhante podemos ver nas repetidas cruzadas de crianças. Como a inocência era o melhor meio de merecer o favor divino, pensava-se que estava reservado a crianças inocentes vencer os infiéis, através da intervenção milagrosa do céu. De modo que cada vez que o fervor popular se incendiava grandes colunas de crianças marchavam até a Terra Santa, sem conseguir outro resultado que morrer no caminho ou ser feito escravo pelos senhores por cujos territórios tinham de passar. Toda esta história de religiosidade popular, de esperanças de redenção e de visões apocalípticas, fica eclipsada quando os historiadores se ocupam somente das cruzadas "oficiais". Feita esta salvaguarda, faremos um esboço breve dos acontecimentos posteriores, considerando as cruzadas que os historiadores enumeram. A sequnda ocorreu em resposta à queda de Edessa, que foi tomada pelo sultão de Alepo em 1144. Geralmente diz-se que o grande pregador desta cruzada


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As cruzadas ae criençes torem dos mais tristes episodtos dequet« epoce,

foi Bernardo de Claraval (o mesmo de quem falamos no primeiro cap ítulo deste volume). Mas a verdade é que quando Bernardo começou sua pregação já havia outros dedicados à mesma tarefa, se bem que com uma perspectiva bem diferente. Destes o mais famoso era o frei Rodolfo, um personagem muito parecido com Pedro, o Ermitão. A pregação de Rodolfo era eminentemente popular e escatológica. O Anticristo estava


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prestes a vir. Os pobres, sem esperar a ordem dos nobres, deveriam partir imediatamente para a Terra Santa, onde o grande conflito final teria lugar. A caminho era necessário destruir os judeus, povo rebelde rejeitado por Deus. Com esta mensagem Rodolfo ia de região em região. Dizia-se que ele tinha o dom pentecostal, pois em todos os lugares as pessoas o entendiam. Onde quer que Rodolfo pregasse os espíritos se inflamavam, as pessoas abandonavam os campos para marchar para a Terra Santa, e as vidas dos judeus estavam em perigo. A pregação de Bernardo era bem diferente. Na verdade o monge de Claraval parece ter dedicado tanta atenção a refutar Rodolfo como à própria cruzada. Na sua opinião a pregação não deveria alterar a vida ordenada das massas, e somente

São Bernardo oonseguiu qo« Conrado III d6 Alemanha a perttr em UmII no VBcruzada.

se comprometesse


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deveria ocorrer com o consentimento das autoridades eclesiásticas. Rodolfo se equivocava em suas expectações apocalípticas e em seu ódio contra os judeus. Mas estes não eram seus erros fundamentais. Seu erro fundamental consistia em romper a disciplina da igreja e da sociedade. Por seu lado Bernardo se dedicou a pregar aos poderosos. Pouco antes, o rei da França, Lu fs VII, tinha prometido marchar em peregrinação armada até a Terra Santa, para cumprir o voto que seu falecido irmão Felipe não pudera guardar. Agora Bernardo se dedicou a recrutar cavaleiros que seguissem o rei na guerra santa. Viajou também para a Alemanha, onde afinal conseguiu persuadir o imperador, Conrado III, a se unir ao empreendimento. Quando por fim os exércitos partiram, sob as ordens do imperador e do rei, contavam com quase 200.000 homens, dos quais mais da quarta parte eram incapazes de portar armas. Depois de passar por Constantinopla, os alemães seguiram por terra até Doriléia, onde os turcos lhes infligiram uma derrota esmagadora. Com parte das suas tropas o imperador regressou a Constantinopla, de onde embarcou para São João de Acre. O restante do seu exército, sob o comando de seu irmão ato, foi destroçado perto de Laodicéia. Enquanto isto os franceses também tinham sido derrotados pelos turcos, e Luís VII embarcou para Antioquia com parte das suas tropas. Os demais, entre eles os pobres que tinham participado do empreendimento, simplesmente ficaram à mercê dos turcos, que reduziram à escravidão aos que não mataram. O príncipe de Antioquia, Raimundo de Aquitânia, era tio de Leonor, esposa de Luís. Ali os franceses foram bem recebidos, até que o rei começou a desconfiar das relações entre sua esposa e o príncipe. Quando Leonor pediu a anulação do seu matrimônio, Lu Is decidiu viajar para Jerusalém, forçando sua esposa a segui-lo. O rei Baldu Ino III de Jerusalém persuad iu Lu ís e Con rado, que também tinha chegado à Cidade Santa, para que empreendessem a conquista de Damasco, que nunca tinha sido conquistada pelos cristãos. Para lá partiram os cruzados. Mas quando viram que o sítio seria prolongado e penoso desistiram da idéia. O imperador decidiu que era tempo de voltar para a Europa. Pouco depois o rei Luís fez o mesmo. A segunda cruzada tinha terminado.


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Por breve tempo parecia que o reino de Jerusalém tinha seu futuro assegurado. Os muçulmanos não conseguiram chegar a um acordo entre si, e o rei de Jerusalém, Amalarico I, estendeu seu poderio até o Cairo. Mas estas conquistas foram efêmeras. O novo sultão do Egito, Saladino, consolidou sob seu poder as forças muçulmanas, e em 1187 tomou Jerusalém. A notfcia comoveu a cristandade, e o papa Gregório VIII convocou uma nova cruzada. Esta terceira cruzada foi dirigida

Os l/deres da terceire cruzada foram Ricardo Coração de Leão, Frederico Bsrbero xe e Felípe II Augusto.


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por três soberanos: o imperador Frederico Barbaroxa, o rei da Inglaterra, Ricardo Coração de Leão, e o rei da França, Felipe II Augusto. Tratava-se cada vez mais de um empreendimento aristocrático. Nesta ocasião, com base nas lições aprendidas em episódios anteriores, proibiu-se que qualquer pessoa que não pudesse cobrir todos os seus gastos durante dois anos de campanha marchasse com os cruzados. Mas apesar disto milhares de pobres se puseram a caminho. Ao mesmo tempo estabeleceu-se o d (zimo para a Terra Santa, que era um imposto adicional que todos, pobres como ricos, deviam pagar. Logo surgiram queixas no sentido de que os pobres pagavam os gastos de guerra dos poderosos, e mesmo assim não tinham permissão de marchar com o exército, nem receber os bens espirituais prometidos para a marcha. A terceira cruzada foi outro fracasso. Frederico Barbaroxa se afogou, e seu exército se desfez. Muitos regressaram à Alemanha, outros se uniram aos demais cruzados diante de São João de Acre, e muitos morreram às mãos dos muçulmanos. Os pobres que marchavam por conta própria se uniram aos cristãos da palestina e aos restos do exército alemão, e sitiaram São João de Acre. Algum tempo depois Ricardo Coração de Leão e Felipe Augusto se reuniram a eles. Diz-se que chegou a haver mais de meio milhão de sitiantes. Por fim, depois de dois anos de assédio, a cidade se rendeu. Felipe Augusto logo inventou desculpas para regressar à França, onde esperava se aproveitar da ausência de Ricardo para se apossar das possessões inglesas no continente. Ricardo Coração de Leão, por seu lado, permaneceu algum tempo na Terra Santa, onde passou a ser uma figura legendária. Mas seu único feito militar foi obrigar Saladino a levantar o sítio de Jafa. Por fim, por causa das notícias alarmantes que chegavam da França e da Inglaterra, ele decidiu regressar ao seu reino. Antes ele fez um acordo com Saladino, em que este se comprometia a respeitar os peregrinos cristãos que viessem com intenções pacfficas. E deixou a ilha de Chipre, que tinha conquistado, ao deposto rei de Jerusalém, Guido de Lusignan. O regresso de Ricardo Coração de Leão às suas terras foi cheio de incidentes. Para evitar passar pelos territórios de Felipe Augusto ele tomou um caminho que o levou através


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da Austria. Ali ele foi aprisionado, e o imperador não o deixou presseguir antes que se declarasse seu vassalo e lhe prometesse um resgate enorme. Se bem que as duas cruzadas anteriores não tiveram grandes resultados positivos, a próxima teve negativos. A quarta cruzada foi convocada por Inocêncio III, em quem, como veremos mais adiante, o poder do papado chegou ao seu apogeu. Neste caso a intenção não era atingir a Terra Santa, mas atacar os muçulmanos no centro do seu poder, o Egito. Esperava-se que desta maneira a reconquista de Jerusalém fosse mais fácil e duradoura. E em vez de deixar o empreendimento em mãos de príncipes o papa se declarou seu único chefe legítimo, mostrando como na terceira cruzada os interesses temporais dos reis tinham levado ao desastre. Como na primeira cruzada os soldados de Cristo marchariam sob as ordens diretas dos legados papais. O mais famoso pregador desta nova aventura foi Foulques de Neuilly, homem de origem humilde que nos lembra Pedro, o Ermitão. Apesar de sua vestimenta ser mais moderada que a de Pedro, pois ele evitava usar as roupas sujas e grosseiras que tinham feito o Ermitão famoso, em sua pregação Foulques foi muito mais radical. Seu grande tema era a usura. Naquela época o desenvolvimento da economia monetária tinha dado lugar ao sistema, tão comum para nós, em que o dinheiro, além de ser um meio de trocas, era objeto de comércio. Os ricos utilizavam seu dinheiro para ficarem mais ricos, enquanto os que se viam obrigados a tomar emprestado ficavam empenhados para o resto das suas vidas. Contra este crescente costume desumano Foulques arremeteu com valentia. A riqueza mal obtida, conseguida através da exploração dos fracos, deve ser devolvida e repartida entre os pobres, que são os eleitos de Deus. Aquela pregação inflamada poderia ter causado a condenação do pregador em qualquer outro tempo. Mas uma das características mais notáveis de Inocêncio III era saber reter no seio da igreja, e utilizar para seus propósitos hierárquicos, os elementos aparentemente mais anarquistas. Como veremos mais adiante, foi isto que ele fez com São Francisco de Assis. No caso de Foulques o papa lhe pediu que pregasse a nova cruzada.


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Isto era do agrado de Foulques, que imediatamente se dedicou a anunciar um grande empreendimento em que os pobres, por causa da eleição divina, eram os únicos que poderiam derrotar os infiéis. Para sustentá-los Foulques arrecadou o "tesouro da cruzada". E assim qualquer guerreiro hábil, por mais pobre que fosse, poderia participar diretamente daquele projeto. E os que não pudessem ir pessoalmente poderiam oferecer seu apoio econômico, mesmo se fosse tão pequeno como a oferta da viúva. Assim ele reuniu um grande exército, tanto de pobres como de nobres, disposto a marchar sob a direção do papa. Para providenciar transporte foi negociado com a República de Veneza, cuja frota deveria levá-los para o Egito. Como pagamento por este serviço os venezianos pediam que, a caminho do Egito, os cruzados se detivessem em uma cidade que os húngaros lhes tinham tirado, e a devolvessem a Veneza. A princfpio Inocêncio se opôs ao uso dos soldados de Cristo contra os húngaros, que também eram cristãos. Mas mais tarde, temeroso que o exército se desfizesse antes de embarcar, ele concordou. Os cruzados reconquistaram a cidade, devolveram-na aos venezianos, e se preparavam para prosseguir em seu caminho. Enquanto isto, porém, outras negociações secretas estavam tendo lugar. O trono de Constantinopla estava em disputa, e um dos pretendentes tinha pedido a Inocêncio que o ajudasse, prometendo-lhe que assim que cingisse a coroa colocaria a igreja grega sob a autoridade papal. Inocêncio lhe prometeu ajuda, mas rejeitou seu plano de que os cruzados, antes de ir para o Egito, passassem por Constantinopla e pusessem no trono o protegido do papa. Apesar da negativa do pontífice as negociações continuaram com os cruzados. O pretendente, que se chamava Aleixo, prometeu participar com eles da cruzada, e manter na Terra Santa um destacamento de pelo menos quinhentos cavaleiros. Além disto parece que boa quantidade de ouro bizantino passou às mãos dos vários chefes da cruzada. O fato é que es~a, em vez de se dirigir diretamente para o Egito, foi para Constantinopla, onde fez coroar Aleixo IV. Só que este não foi capaz de se manter no poder, nem de cumprir as promessas feitas. Depois de poucos meses ele foi


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Quando viram que os cruzados os ataCtivam os bizantinos tentaram aestridr a esquadra venezten«. Mas sua tentetiw trecessou, e os cruzados se vingaram cruelmente. deposto por Aleixo V. Os cruzados aproveitaram esta conjuntura para tomar a cidade de uma vez, depor o novo imperador, dedicar-se ao saque, e por fim eleger outro imperador. Este soberano, eleito por um colégio de seis venezianos e seis franceses, era Baldu íno de Flandres. Assim foi fundado o Império Latino de Constantinopla, que pretendia ser a continuação do Império Bizantino. Imediatamente foi nomeado também um patriarca latino, e deste modo, pelo menos em teoria, as igrejas do Ocidente e do Oriente ficaram unidas sob a obediência ao papa. A princípio este não recebeu com agrado as notícias do que os cruzados tinham feito. Mas mais tarde aceitou os fatos consumados, e chegou a pensar que a divina providência, em sua inescrutável sabedoria, tinha usado este meio para reunir a igreja sob um só cabeça. Mas os bizantinos não aceitaram aquela surpresa como um fato consumado. Baldu (no e seus seguidores puderam exercer sua autoridade somente na parte européia do Império. E tarn-


76/ A era dos altos ideais bém ali o Epiro se fez independente sob o "déspota" - entenda-se "soberano" - Miguel I. Seu sucessor, Teodoro, tomou Tessalônica em 1224 e ali se fez coroar imperador. Este Império Bizantino de Tessalônica durou até 1246. Enquanto isto os bizantinos da Asia Menor, sob a direção de Teodoro Láscaris, fundaram o I mpério Bizantino de N icéia. Apesar de ter de lutar contra os turcos do sultanato de Icônio a leste e contra os latinos a oeste, este império perdurou e a longo prazo se impôs. Em 1246 ele se apossou de Tessalônica e em 1261 de Constantinopla. A aventura latina em Constantinopla tinha terminado. Mas seu preço foi altíssimo, pois a partir de então os bizantinos encaravam com muito receio os ocidentais. Além disto seu poder foi quebrantado, o que facilitou a conquista de Constantinopla pelos turcos otomanos em 1453. A quinta cruzada foi dirigida pelo "rei de Jerusalém" João de Brienne. Os cristãos tinham perdido Jerusalém já muitos anos antes, mas este título ainda era conservado. Com o propósito de recuperar sua suposta capital, João comandou esta cruzada, que atacou primeiro o Egito. Sua única conquista foi a fortificação de Damieta, em 1220. A sexta cruzada foi dirigida por um imperador excomungado, e apesar disto deu melhores resultados que quase todas as anteriores. O imperador Frederico II tinha feito o voto de partir em uma cruzada. Sua demora e outros motivos de tensão levaram Gregório IX a excomungá-lo e a declarar que qualquer expedição dirigida por ele estaria desobedecendo o papa. A resposta do imperador foi empreender então o que por tanto tempo tinha sido postergado. Na Terra Santa fez com o sultão um tratado mediante o qual o imperador recebia Jerusalém, Belém, Nazaré e os caminhos que uniam estas cidades com São João de Acre. Em troca disto Frederico se comprometeu a respeitar a vida e os bens dos muçulmanos, e evitar que os cristãos enviassem novas expedições contra o Egito. Depois o imperador entrou na Cidade Santa e, por não encontrar ninguém que se dispusesse a fazê-lo, ele mesmo se coroou rei de Jerusalém. Quando recebeu notícias do que tinha acontecido Gregório se enfureceu, e protestou contra o que para ele era uma conspiração satânica entre um soberano cristão e um infiel. Mas as massas da Europa


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Desembarque de São Luts no Eflito.

viram em Frederico o "libertador de Jerusalém", e o receberam como tal. A sétima cruzada foi empreendida por Luís IX da França (São Lu (s) e era dirigida contra o Egito. Seu único resultado foi a reconquista de Damieta, que tinha sido perdida. Ivias em IVlansura o rei e boa parte do seu exército foram feitos prisioneiros, e obrigados a pagar um alto resgate. A oitava cruzada, dirigida também por São Lu ís, terminou quando este morreu de peste em Túnis, em 1270. Em resumo, as cruzadas foram um grande movimento em que o fervor popular se mesclou com as ambições dos grandes. Julgadas à luz dos seus próprios objetivos, podemos dizer que, exceto a primeira e a sexta, todas fracassaram. Poucos anos depois o único vestígio da passagem dos cruzados pela Terra Santa era algum castelo ou templo em ruínas. Mas apesar disto as cruzadas tiveram grandes conseqüências.


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Um dos poucos vestiçios da passagem dos cruzados pela Terra Santa é a Igreja do Santo Sepulcro, cuja construção foi iniciada em 1103.

As ordens militares

Uma das conseqüências mais notáveis das cruzadas foi a formação das ordens militares. Estas eram ordens monásticas, com os votos tradicionais de pobreza, obediência e castidade. Mas sua característica peculiar era que, seguindo o espírito das cruzadas, dedicavam-se à guerra. Vemos; portanto, neste fenômeno mais um exemplo da incrível flexibilidade do monas-


As cruzadas /79 ti cismo. O antigo movimento dos ascetas do Egito tomou funções muito variadas em diversos tempos. As vezes se transformou no braço missionário da igreja; outras, seu cérebro; mas neste caso se transformou no braço que tomou a espada para defender os peregrinos. A ordem de São João de Jerusalém começou quando um grupo de monges que estava encarregado de um hospital decidiu se dedicar também à proteção dos peregrinos que viajavam de Jafa para a Cidade Santa. São conhecidos também como "hospitalários" e como "cavaleiros de Malta", porque depois que caiu a última fortaleza cristã na Terra Santa, em 1291, eles se transferiram para Rodes e dali para Malta. Sobre o talar monástico, cortado de maneira que facilitasse cavalgar, levavam a cruz que é conhecida como "cruz de Malta". A ordem dos templários e a dos cavaleiros teutônicos seguiram um padrão semelhante. Em fins do século XII os cavaleiros teutônicos se transferiram para a Alemanha, e desta base se dedicaram a forçar a conversão dos eslavos e de outros povos vizinhos. Cada uma destas ordens tinha um "grão-mestre", que era ao mesmo tempo ministro geral da ordem monástica e general em chefe dos seus exércitos. Depois de terminadas as cruzadas muitàs destas ordens militares passaram a fazer intrigas pol íticas na Europa. Por esta razão, e porque tinham muitas riquezas, vários reis as suprimiram em seus países, e confiscaram seus bens.

Outras conseqüências das cruzadas

As cruzadas tiveram conseqüências importantes para a vida da igreja e da Europa. A primeira destas conseqüências foi a crescente inimizade entre o cristianismo latino e o orientaI. Em seus inícios as cruzadas surgiram, pelo menos em parte, elo desejo de acudir em auxílio do Império Bizantino, ameaçado pelos turcos. Mais tarde ficou provado que os latinos também eram uma ameaça séria para este Império. Esta inimizade não se limitou ao plano pol ítico. Os cristãos gregos, vendo os abusos cometidos centra eles por seus supostos irmãos do Gcidente, ficaram convencidos ele que não queriam união algu-


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ma com este tipo de gente. Até então muitos gregos tinham suspeitado que o cristianismo ocidental tinha alguma coisa de herético. A partir das cruzadas eles não tinham mais a menor dúvida. As cruzadas também serviram para prejudicar a vida dos cristãos que viviam em terras de muçulmanos. Quase todos os governantes islâmicos se tinham mostrado relativamente tolerantes para com os cristãos e os judeus. Mas durante as cruzadas muitos cristãos atraiçoaram seus governantes muçulmanos, e ainda mais se uniram aos cruzados nas matanças de turcos e árabes nas cidades conquistadas. Em conseqüência, quando o poder islâmico ficou restaurado, e as cruzadas perderam seu (mpeto, os seguidores do Profeta se mostraram muito menos tolerantes do que antes. Em vários lugares houve matanças de cristãos, e em todo o Oriente Próximo as leis que os colocavam em desvantagem em relação aos muçulmanos foram apl icadas com maior rigidez. A longo prazo o resultado de tudo isto foi que as antigas igrejas da região perderam muito do seu contato com o restante da cristandade, e se transformaram em pequenos núcleos cuja preocupação principal era sobreviver e conservar suas tradições. Na Europa ocidental as cruzadas contribu íram para aumentar ainda mais o poder do papa. Como, pelo menos teoricamente, estes grandes empreendimentos militares estavam sob o comando do papa, que as convocava e cujos Iíderes deveriam ser seus representantes, o papado se converteu cada vez mais em uma autoridade internacional, capaz de julgar entre os soberanos das diversas nações. Quando Urbano II convocou a primeira cruzada sua autoridade estava sendo posta em dúvida, principalmente na Alemanha, onde continuavam os conflitos entre o papado e o Império. Quando a quarta cruzada tomou Constantinopla Inocêncio III, que na época ocupava o trono de São Pedro, gozava de um poder nunca antes alcançado por papa algum. No que se refere à devoção, as cruzadas também tiveram grandes conseqüências para a cristandade ocidental. As viagens constantes para a Terra Santa, e as histórias cheias de prodígios que de lá vinham, despertaram no povo o desejo de saber mais sobre a realidade ffsica de Jesus, dos profetas, e dos grande heróis do Antigo Testamento. Não é por pura coincidência


As cruzadas

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que Bernardo de Claraval, o pregador da segunda cruzada, foi também um grande místico dedicado à contemplação da humanidade de Cristo. A partir de então boa parte da devoção voltou-se para esta contemplação. Foram escritas meditações, poemas e sermões em que cada um dos episódios da paixão era narrado com todos os detalhes. Pela mesma razão o culto de relíquias, que tinha raízes antigas, aumentou. Da Terra Santa vinham supostos pedaços da Santa Cruz, ossos dos patriarcas, dentes de João Batista, leite da Virgem, etc. Também a vida intelectual sofreu o impacto das cruzadas. Do Oriente chegaram novas idéias. Algumas delas consistiam em velhas heresias que de alguma maneira tinham sobrevivido no Oriente, e contra as quais a igreja ocidental teve de lutar. Destas a mais notável foi a dos albigenses. Durante séculos existira na Bulgária um forte grupo de hereges cujas doutrinas

Em 7270 cento fi oitenta elbiçenses foram queimados villOs. Esta foi só uma das muitas croeldedes cometides contra os seguidores desta heresia.


82 / A era dos altos ideais

eram semelhantes às dos antigos maniqueus, e que recebiam o nome de "bogomiles". Estes eram dualistas, crendo que o espírito era bom e a matéria má, razão pela qual rejeitavam tanto o Antigo Testamento como a encarnação de Deus em Jesus Cristo. Para eles Jesus era um mensageiro celestial que, sem ter carne humana, tinha vindo para trazer a mensagem da salvação. Na Bulgária os bogomiles tinham seus próprios bispos, cultos e ordenações. Através do contato que os cruzados estabeleceram entre eles e a Europa Ocidental o bogomilismo afluiu para esta. Ali seus principais centros foram o norte da Itália e o sul da França. Como a cidade de Albi foi o mais famoso destes centros, os bogomiles foram chamados de "albigenses", além de "cátaros", que quer dizer "puros". Os albigenses aparentemente apelaram ao entusiasmo religioso popular da época. Muito do ímpeto que antes levara

A cidade de Cercesone, no sul da Frenes, sofreu horrivelmente durante a cruzada contra os albil}enses. Mais tarde ela perdeu sua independência e foi incorporada li coroa trencese. Foto JM.


As cruzadas /83 os "patares" em sua oposrçao ao matrimônio eclesiástico agora se derramou a favor do catarismo, principalmente porque os cátaros, por causa da sua aversão à matéria, rejeitavam o matrimônio. Entre as classes baixas do sul da França, exacerbadas pelos ideais da reforma gregoriana, porém ao mesmo tempo exclu ídas de qualquer participação ativa na vida da igreja, o movimento avançou com passos gigantescos. O conde Raimundo IV de Toulouse saiu em sua defesa. A reação contra os albigenses não se fez esperar. Esta reação se apresentou principalmente sob três formas. As duas primeiras são de tal importância que temos de tratar delas separadamente em outras seções desta história. Trata-se da Inquisição e das ordens mendicantes. t\ terceira, dado o espírito da época, era de se esperar. Esta consistiu na grande cruzada que Inocêncio III promulgou. Em 1209 os ambiciosos nobres do norte da França, sob o pretexto de suprimir a heresia, se lançaram sobre o sul do país. A matança, tanto de albigenses como de cristãos ortodoxos, foi enorme. Várias cidades foram totalmente destru ídas. A partir de então o catarismo perdeu seu impulso inicial, se bem que continuaram existindo albigenses dispersos por diversas regiões da Europa ocidental, pelo menos até o século XV. O impacto intelectual das cruzadas não se limitou à introdução da heresia. Também chegaram à Europa idéias filosóficas, princípios arquitetônicos ou matemáticos, costumes e gostos de origem muçulmana. Mas neste sentido o impacto islâmico se fez sentir mais através da Espanha que como conse qüências das cruzadas. Sobre isto falaremos no próximo cap (tulo. Por último, as cruzadas têm relações complexas com uma série de mudanças econômicas e demográficas que ocorreram na Europa ao mesmo tempo. As cruzadas contribu íram para elas, mas houve muitos outros fatores, e os historiadores não concordam sobre a importância relativa de cada um. Em todo caso a época das cruzadas também é o do crescimento das cidades e da economia mercantil. Até então a única fonte importante de riqueza era a terra, e por isto os nobres e prelados que a possu íam eram os únicos donos do poder econômico. O desenvolvimento da economia mercantil, no entanto, deu


84 / A era dos altos ideais

lugar a novas fontes de riqueza: a manufatura e o comércio. Isto, por sua vez, contribuiu para o crescimento das cidades, onde apareceu a nova classe dos "burgueses", ou seja, os habitantes dos burgos. Estes em sua maioria eram comerciantes cujo poder econômico e pol (tico os foi fazendo cada vez mais capazes de enfrentar a nobreza e, em certa medida, a igreja. Séculos depois, através da Revolução Francesa e de outros acontecimentos, a burguesia acabou triunfando sobre a nobreza. Por enquanto, as cruzadas foram mais uma expressão dos altos ideais que dominaram a vida da igreja durante os sécu los X I, X II e X III. E a maioria dos seus contemporâneos não encarou seu fracasso como um revés destes ideais, mas como o resultado inevitável da sua própria falta de fé e fidelidade. No seu parecer a culpa dos reveses não era que os altos ideais estavam errados, mas a baixeza dos seres humanos a quem cabia pô-los em prática.

Figura de destaque dos primeiros tempos da reconquista, E/ Cid veio a ser o símbolo da Espanha.


V A reconquista espanhola o rei ia tão fraco, Nada mais já sentia; la tão tinto de sangue Que uma brasa parecia. "Ontem eu era rei da Espanha, Hoje nem de uma vila". Ontem, vilas e castelos; Hoje, nada possuis. Romance de Dom Rodrigo

Em 711 as hostes muçulmanas cruzaram o estreito de Gibraltar e se puseram a conquistar o reino visigodo. Em poucos anos se apossaram de toda a península ibérica, exceto dos rincões mais remotos da Gal ícia e das Astúrias, que não foram conquistados não porque os muçulmanos não podiam fazê-lo ou porque houvesse neles fortes núcleos de resistência, mas porque o reino dos francos, além dos Pirineus, era mais apetecível. Quando os invasores foram derrotados por Carlos Martel em 732, seu primeiro ímpeto conquistador tinha passado, e por isto os pequenos centros cristãos do norte do país puderam conservar sua independência. Foi daqueles núcleos que partiu a reconquista do setor ocidental da península, enquanto que a das regiões orientais teve lugar com o apoio dos francos.


86 / A era dos altos ideais Os primeiros séculos

A lenda posterior faz com que os oito séculos que transcorreram entre a queda do reino visigodo e a tomada de Granada pareçam ser uma guerra santa constante contra os mouros, mas a realidade histórica é outra. Boa parte da reconquista não passou de expansão da crescente população cristã para regiões quase totalmente despovoadas. Os conflitos armados entre cristãos e muçulmanos raras vezes parecem ter tido razões religiosas. Houve com freqüência alianças entre governantes mouros e cristãos; e em muitos casos estas alianças eram seladas com casamentos. Só ocasionalmente estes casamentos requeriam a conversão de uma das partes. Além disto sempre houve nas terras dos mouros bom número de cristãos, que eram chamados de "moçárabes". E da mesma forma, à medida que a reconquista avançava, houve muçulmanos que permaneciam em suas antigas terras. Estes muçulmanos que viviam em territórios cristãos receberam o nome de "mudejares". 'os primeiros anos de dom [nio árabe na Espanha foram turbulentos. P. maior parte das tropas que tinham invadido

Barcelona

Emirado de C6rdoba

A Esp8nha no século IX.


A reconquista espanhola /87

A mesquita de Córdoba é um dos principais monumentos da Espanha.

erquitetânicos


88 / A era dos altos ideais

o país compunha-se de soldados marroquinos. Por esta razão na Espanha o termo "mouro" veio a ser sinônimo de "muçulmano". Mas acima destes soldados estava a antiga aristocracia islâmica, formada por árabes, sírios e eg ípcios. Entre estes diversos grupos havia tensões cujo resultado foi a instabilidade pol ítica. De Damasco os califas se esforçavam por manter a ordem. rV:as a distância e outras circunstâncias condenavam seus esforços ao fracasso. A conseqüência da desordem, e da escassez econômica, foi que muitos mouros regressaram para a Africa. A situação era esta quando houve uma grande revolução no mundo islâmico. A velha dinastia dos om fadas foi derrotada pelos abássidas, que mataram quase todos os omíadas e estabeleceram sua capital em Bagdá. Um sobrevivente da família deposta, Abderraman, conseguiu escapar da Síria e, depois de peripécias novelescas, chegou à Espanha. Ali ele se aproveitou da confusão reinante, e da sua estirpe ilustre, para se apossar do poder e assim fundar o Emirado de Córdoba, independente do Califado de Bagdá. Foi ele quem começou a construção da grande mesquita de Córdoba, que ainda hoje é um dos grandes monumentos arquitetônicos da Espanha. Em 929 um dos seus sucessores, Abderraman III, tomou o título de califa, fundando assim o Califado de Córdoba. Enquanto isto os cristãos tinham consolidado seu poder em uma faixa de território ao norte da península. O extremo ocidental desta faixa constituía o reino das Astúrias, fundado em 718 pelo nobre visigodo Pelágio. Foi sob o reinado de Pelágio que teve lugar o que a tradição chama de "batalha" de Covadonga, que aparentemente para os muçulmanos não passou de escaramuça fronteiriça. Em todo o caso, a partir de então o reino das Astúrias foi se expandindo para o sul e o leste. As fronteiras estavam mal definidas, e repetidamente os mouros penetraram em território asturiano, chegando a tomar e destruir as cidades de Oviedo e Leão. Durante o reinado de Afonso I, neto de Pelágio, teve lugar um acontecimento de grande importância para a história da Espanha: o "descobrimento" do sepulcro de São Tiago. Pelo menos é isto que cronistas posteriores dão a entender, pois foi mais tarde, no século IX, que as peregrinações ao sepulcro


A reconquista espanhola /89 de São Tiago começaram a aumentar. Através de todo o resto da Idade IViédia somente Roma e Jerusalém podiam rivalizar com Santiago de Compostela como centros de peregrinação.

De acordo com a tradição, Pelafiio jurou respeiter e defender os direitos e contradições do povo que o elegeu rei.


90 / A era dos altos ideais

o

prestiçto

das peregrinaçi5es a Santiago foi tal que logo surgiram boatos

que Carlos Magno tinha ido s Compostela como peregrino. Neste manuscrito da época está representada uma peregrinsçBo de Aíx-le-Ghapel para Santiago.

Isto teve importância enorme para aquele pequeno reino das Astúrias, pois a suposta presença nele dos restos do apóstolo Tiago lhe dava certa independência eclesiástica em relação a Toledo, que na época estava em poder dos muçulmanos. Sob o regime visigodo, Toledo tinha sido a sede primaz da Espanha. Seus arcebispos exerciam autoridade sobre todo o país. Só que agora a cidade era dominada pelos muçulmanos, e os asturianos não queriam se submeter a um arcebispo que por sua vez estava sob o regime islâmico. Em parte devido ao suposto sepulcro de São Tiago, as Astúrias chegaram a ter seu próprio arcebispado. REIS DAS ASTÚRIAS 718-37 737-39

Mauregato Bermudo

Fruela

739-57 757-68

Afonso II Ramiro I

Aurélio Silo

768-74 774-83

Ordonho I Afonso III

Pelágio Favila Afonso I

783-88 788-91 791-842 842-50 850-66 866-911


A reconquista espanhola /91

Além disto as peregrinações a Santiago voltaram a unir a Espanha com o restante da Europa. O constante fluxo de peregrinos trouxe à pen ínsula a arquitetura, as letras, a teologia e as ordens monásticas dos países que ficavam além dos Pirineus. O caminho para Santiago, conhecido às vezes simplesmente como "o Caminho", foi a artéria que manteve vivos os pequenos reinos cristãos, que de outro modo teriam ficado ilhados do restante da cristandade. A lenda posterior está convicta que a Reconquista pôde ser levada a bom termo graças à intervenção milagrosa de São Tiago. Símbolo disto é a suposta batalha de Clavijo, onde se diz que o apóstolo desceu do céu montado em um brioso corcel, e dirigiu os cristãos em uma grande vitória sobre os mouros. Daí vem o nome de "São Tiago r'vlatamouros". Tudo isto não passa de uma fábula religiosa. I\:ias o que é certo é que as peregrinações para Compostela, para onde acudiam devotos dos cantos mais remotos da Europa, foram um dos principais fatores que deram origem à Espanha de hoje.

São

TiélEJU

Meten.ouros


92 / A era dos altos ideais

A expansão do reino das Astúrias foi tal que Garcia I, filho e sucessor de Afonso III, se transferiu para Leão. A partir de então o que hoje é Galícia, Astúrias, Leão e parte de Castela pertenceu a este novo reino de Leão, cujos soberanos logo tomaram o título de "imperadores" em oposição ao título igualmente universal de "califas" tomado por Abderraman III e seus sucessores. A região de Castela recebeu este nome por causa dos muitos castelos que foi necessário construir nela. Tratava-se de uma região fronteiriça escassamente povoada. Para assegurar sua posse, os reis de Leão facilitaram a construção de castelos ali, e estimularam a migração para lá, outorgando "forros" ou direitos especiais aos que ali se estabelecessem. O resultado foi que os castelhanos logo começaram a evidenciar um espírito insubmisso. Sob Fernando González, personagem histórico a quem a lenda atribui toda sorte de feitos, o condado de Castela proclamou sua independência. Mesmo não havendo dúvida de que Fernando Gonzáles foi um grande personagem, e o fundador da posterior grandeza de Castela, suas principais

Ainda hoje as muralhas de Á vila dão testemunho da rnenetre com qU6 os cristãos se apossavam de terras relativamente despovoadas e se preparavam para defendê-Ias.


A reconquista espanhola /93 lutas não foram contra os mouros, mas contra os soberanos de Leão e Navarra. Uma vez mais, o processo de reconquista não se baseou sobre um grande sentimento de que o grande inimigo era o poderio islâmico, mas sobre a força expansiva do condado de Castela. REIS DE LEÃO Garcia I 911-14 914-24 Ordonho II 924-25 Fruela II Afonso Fróilaz 925 Afonso IV 925-31 Ramiro II 931-51 Ordonho III 951-56 956-58 Sancho I 958-60 Ordonho IV 960-66 Sancho I (o mesmo) Ramiro III 966-84 Bermuda II 984-99 Afonso V 999-1028 Bermuda III 1028-37 Fernando I 1037-65 (reis de Castela desde 1035)

CONDES DE CASTELA Fernando Gonzáles Garcia Fernandez Sancho Garcia Garcia Sanchez Maior Fernando I, rei de Castela

930-70 970-95 995-1017 1017-29 1029-35 1035-65

Enquanto tudo isto acontecia nas Astúrias, Leão e Castela, outro reino cristão tinha aparecido mais a leste, o de Navarra. No princípio ali não houve mais que outro foco de resistência contra o invasor muçulmano, e por isto a história daqueles primeiros anos é incerta. Mas em princípios do século X, com Sancho I, o reino de Navarra aparece na história da Espanha como uma região que, sem conseguir conquistar grandes faixas de terra dos mouros, mesmo assim se transforma em uma potência, devido a toca uma complexa série de enlaces matrimoniais, o contato com os francos, e a suas armas, que se impõem sobre outros territórios cristãos. I\:o ano 1000 subiu ao trono de Navarra Sancho III, o 1\1aior, que conseguiu reunir sob seu governo também Castela, Aragão e vários outros territórios que antes tinham pertencido aos francos. Quando ele morreu Navarra, Castela e Aragão foram divididos entre seus três


94 / A era dos altos ideais

Sepulcro

de Fernenao

González,

em Co verrúoie«.

filhos, recebendo cada um o título de rei. Foi assim que os condados de Aragão e Castela passaram a ser reinos. Fernando, o rei de Castela, logo se apossou também de Leão (1037), e depois declarou guerra a seu irmão Garcia, que governava em Navarra. Este morreu no campo de batalha, e seu reino se declarou vassalo de Fernando. Portanto pela primeira vez os territórios cristãos desde a Gal (cia até os Pirineus estavam unidos sob um só governo. Mas a leste, em Aragão, reinava o irmão de Fernando, Ramiro. E ainda mais a leste, ao longo da costa do Mediterrâneo, havia vários condados de origem franca, dos quais o mais importante era o de Barcelona. Foi então que a reconquista recobrou novas forças.

A reconquista depois da morte de Almançor

De 711 até 1002 os muçulmanos constituíram o principal poder na pen ínsula ibérica. Unidos sob a direção de Abderraman I, eles tinham conseguido se estabelecer nos melhores territórios do país, e ali tinham desenvolvido uma civilização e uma economia florescentes. rvlesmo que as lutas dinásticas


A reconquista espanhola

/95

sempre continuaram, estas não debilitaram o califado a ponto de os cristãos poderem se apoderar dos territórios. As aparentes conquistas até princípios do século XI na maior parte eram terras escassamente povoadas, às quais os mouros não davam a menor importância. Em outros lugares, como na região da Catalunha, foi o poderio franco, e não os descendentes dos antigos visigodos, que obrigou os mouros a se retirarem. Em fins do século X a situação começou a mudar. As dificu Idades dinásticas entre os mouros aumentavam, enquanto os cristãos começavam a se unir sob o comando de reis como Sancho III de Navarra e seu filho Fernando I de Leão e Castela. Por algum tempo o ministro Almançor, sem tomar o título de califa, regeu os destinos do califado, e dirigiu várias campanhas que causaram grande inquietação entre os cristãos. Em 997, por exemplo, seus exércitos saquearam Santiago de Compostela. E suas tropas participaram das diversas guerras que os cristãos encetavam uns contra os outros. Depois da morte de Almançor, em 1002, a situação mudou radicalmente. O califado se desintegrou. Os mouros, cansados

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A reconquista no século XI.

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96 / A era dos altos ideais

A reconquista no sĂŠculo XII.

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A reconquista no sĂŠculo X II I.


A reconquista espanhola /97 da dominação árabe, dividiram seus territórios em um grande número de estados independentes, os chamados "reinos de taifas" (de uma palavra árabe que quer dizer "grupo" ou "facção"). Ao mesmo tempo, primeiro sob Sancho III de ~Ja-

Monutuen

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Cid, eru sue pequene

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viver,


98 / A era dos altos ideais

varra e depois sob seu filho Fernando I de Leão e Castela, os cristãos puderam apresentar uma frente relativamente unida. O resultacJo foi uma nova etapa na reconquista. Os reinos de taifas, apesar da sua divisão e da conseqüente debilidade, eram na maior parte centros de riqueza e cultura. A civilização muçulmana da época estava muito mais desenvolvida que a cristã, e nos reinos de taifas eram produzidas grandes obras de arte, assim como mercadorias de alto valor. Por isto, aproveitando sua superioridade pol ítica, os soberanos cristãos impuseram tributos aos seus vizinhos do sul. Em vez de conquistar suas terras, obrigavam-nos a pagar grandes somas anuais. Suas guerras e conquistas se limitavam ao necessário para garantir o pagamento deste tributo. Fernando I, por exemplo, conquistou algumas pequenas áreas dos mouros. lvlas seu interesse principal era obrigar os reis de taifas a pagar tributo, como o fez com os de Toledo, Saragoça e Sevilha. As novas riquezas que os cristãos espanhóis conseguiram desta forma lhes serviu para travar relações mais estreitas com o restante da Europa. No campo eclesiástico, foi introduzida na região a reforma monástica de Cluny, para seguir em termos gerais o caminho de Santiago. O mesmo sucedeu com a arquitetura, que sofreu ao mesmo tempo a influência da Europa cristã e a dos muitos artistas e artesãos mudejares que se puseram a serviço dos senhores cristãos. Assim foi criada uma arte tipicamente espanhola, diferente tanto da puramente européia quanto da muçulmana. Fernando dividiu seus territórios entre seus três filhos, Sancho, Afonso e Garcia. Logo ressurgiram as lutas fratricidas, pois Sancho destronou seus irmãos, que se refugiaram entre os mouros. Enquanto Sancho sitiava a cidade de Samora, que era fiel a Afonso, foi assassinado, e seu irmão passou a ocupar o trono de Castela e o título de Afonso VI. Era a época de Rui Dias de Vivar, mais conhecido como EI Cid, cuja história ilustra as condições reinantes. Se tentamos separar a verdade da lenda, encontramos em Rui Dias um personagem caracterfstico da época. Soldado valente e hábil, seus inimigos, tanto mouros como cristãos, o temeram e respeitaram. Seu sentimento de lealdade fica manifesto no episódio


A reconquista espanhola /99

"Em Santa Gadea de Burgos juram os fidalgos ... " Nesta igreja EI Cid fez o rei jurar, antes de aceitá-lo como seu soberano.

de Santa Gadea de Burgos, onde ele obrigou o rei Afonso VI a jurar que era inocente do fratricídio de que era acusado. i\1as o mesmo episódio também mostra o alto grau de independência que os grandes senhores tinham, com um poderio militar tal que se podiam negar a aceitar a autoridade do rei. O nome "Cid" é de origem árabe, e quer dizer "senhor". Este nome assinala outro fato da vida de El Cid: apesar de ser um dos grandes heróis do período da reconquista, ele passou boa parte da sua carreira a serviço dos mouros, e não faltaram ocasiões em que lutou contra os cristãos. O que hoje para nós, com uma perspectiva de séculos, nos parece ter sido um grande empreendimento de reconquista, estava oculto às pessoas daquele tempo


100 / A era dos altos ideais

Em 1085 Toledo se rendeu às armas de Castela.

em meio a intermináveis contendas, alianças e questões dinásticas. Na época de Afonso VI teve lugar a primeira grande conquista de um reino de taifa. Em 1085 os castelhanos tomaram a cidade de Toledo. A notícia comoveu os mouros, pois Toledo, a antiga capital dos visigodos, ainda era uma cidade de relativa importância. E ainda mais, Afonso ao entrar em Toledo declarou que era capaz de conquistar qualquer reino de taifa, e imediatamente exigiu tributo aos de Sevilha, Saragoça e Granada. Nestas circunstâncias, ao ver perigar a pouca independência que lhes restava, alguns dos chefes mouros apelaram aos almorávidas. Almorávidas e almoadas

Enquanto os territórios muçulmanos na Espanha tinham estado sob o domínio dos pequenos reinos de taifas, tinha surgido no norte da Ãfrica o movimento dos almorávidas. Estes, de origem berbere, tinham conseguido impor sua autoridade sobre Marrocos, Tunísia e boa parte da Ãfrica central,


A reconquista

espanhola / 101

Soldados espanhóis do fim do seculo XI, de acordo com um manuscrito da epOC8.

até o Senegal. Seu islamismo era mais fanático e intolerante que o dcs regimes anteriores, e para eles suas conquistas tinham o caráter de guerra santa. O rei mouro de Sevilha apelou ao chefe destes alrnorávidas, Iusuf, para que viesse à Espanha para conter o avanço


102/ A era dos a/tos ideais

das tropas de Afonso VI. lusuf cruzou o estreito de Gibraltar em 1086 e derrotou os cristãos na batalha de Salaca. Já dois anos depois os reis mouros se viram obrigados a pedir novamente sua ajuda. Então Iusuf regressou à Espanha e se dedicou não só a conter o avanço cristão, mas também a conquistar os diversos reinos de taifas em c;ue o país estava dividido. Em 1090 ele tornou Granada, e no ano seguinte Córdoba se entregou. Depois seguiram Sevilha, Badajoz, Valência (onde EI Cid tinha morrido três anos antes), Saragoça e outras cidades menores. Apesar de todas estas conquistas os almorávidas nunca chegaram a conquistar Toledo, cuja queda tinha sido o sinal de alarma que lhes abriu o caminho para a Espanha. Os cristãos reorganizaram seus exércitos, e estabeleceram alianças entre si. E também apelaram ao restante da Europa. O resultado de tudo isto foi que a guerra assumiu um caráter religioso. Como dissemos anteriormente, até este momento a expansão dos reinos cristãos em geral não tinha se baseado em um espírito de reconquista religiosa. Mas agora, diante do fanatismo dos almorávidas, os cristãos começaram a desenvolver um fanatismo semelhante. De outras regiões da Europa vieram cavaleiros dispostos a lutar no que parecia ser uma cruzada ocidental. O espírito de uma "reconquista" consciente se apossou da Espanha cristã, e por seu lado o conflito também assumiu o caráter de guerra santa que tinha para os almorávidas. Esta situação teve outro resultado interessante para a vida da igreja espanhola. Na guerra de reconquista os espanhóis precisavam do apoio do restante da Europa cristã. Por isto estreitaram os laços com a França e com Roma, e tomaram medidas para que a igreja espanhola se adaptasse totalmente à cristandade ocidental. Uma destas medidas foi a influência crescente da reforma monástica de Cluny. Depois de pouco tempo a maioria dos bispos seguiu a inspiração cluniacense. A outra medida importante foi a supressão crescente da "liturgia moçárabe". Esta era na realidade a antiga liturgia ou ordem de culto que a igreja espanhola tinha seguido desde antes das conquistas muçulmanas. Depois destas conquistas os cristãos submetidos ao regime islâmico continuaram utilizando a mesma


A reconquista espanhola / 103

liturgia. Já que estes cristãos eram chamados de "moçárabes", esta ordem de culto logo recebeu o nome de "liturgia Moçárabe". Nas terras reconquistadas pelos cristãos este ritual continuara a ser utilizado, pois ele estava profundamente arraigado entre o povo. Agora, com relações cada vez mais chegadas com Roma, a tendência foi de suprimir esta ordem de culto, e impor a romana. Além do ressentimento que isto causou houve outra conseqüência menos imediata, mas não menos notável. A liturgia moçárabe fazia muito mais uso do Antigo Testamento do que a latina. Por isto sua supressão teve a tendência de cortar cada vez mais o contato dos cristãos com o Antigo Testamento, e pode ter sido uma das razões por que mais tarde prevaleceram na Espanha as mesmas atitudes contra os judeus que tinham existido muito tempo antes em outras regiões da Europa. O regime almorávida não durou muito. Em 1118 o rei de Aragão, Afonso I, o Batalhador, conquistou Saragoça. Pouco depois Afonso VII de Castela começou novamente a empurrar as fronteiras para o sul. Tudo isto era possível porque dentro do mundo muçulmano, na Ãfrica, um novo grupo tinha se levantado, que tentava tirar o poder dos almorávidas. Tratava-se dos alrnoadas, tão fanáticos como os anteriores. Já em 1145 os almoadas fizeram sentir sua presença na Espanha, e em 1170 expulsaram definitivamente os almorávidas. Os almoadas não conseguiram unificar os diversos partidos maometanos que existiam na Espanha, e por isto logo apareceram pequenos reinos no estilo dos do período dos taifas. A.pesar disto eles conseguiram derrotar Afonso VIII de Castela em Alarcos, e os cristãos se viram fortemente pressionados em diversas frentes. Mas o fato de que a guerra passara a ser uma questão religiosa uniu os soberanos de Leão, Castela, Navarra e Aragão, que na batalha de Navas de Tolosa, em 1212, derrotaram definitivamente os almoadas. A partir de então a reconquista fez rápidos progressos. Em 1230 os reinos de Leão e Castela se uniram definitivamente sob Fernando III. Este rei, conhecido como São Fernando, tomou Córdoba em 1236 e Sevilha em 1248. Pouco antes, entre 1160 e 1180, tinham sido fundadas as grandes ordens militares de Calatrava, Alcântara e Santiago, no estilo


104 / A era dos altos

o

Sacro

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das ordens semelhantes que já vimos quando tratamos das cruzadas. Algumas destas ordens chegaram a ser poderosíssimas, e a possuir grandes extensões de terreno. A partir de 1248 o único estado islâmico que restava na Espanha era o reino de Granada. Este talvez poderia ter sido conquistado então; mas os reis de Castela se limitaram a lhe exigir tributo. Os territórios recém-conquistados eram muito extensos, e o processo de sua assimilação demasiado complexo para que eles se pudessem lançar imediatamente à conquista de Granada. Quase completa, a reconquista se deteve, para ser empreendida novamente, quase dois séculos e meio depois, por Isabel de Castela. Neste per(odo intermediário os cristãos guerreavam entre si, permitindo aos mouros que se fortificassem em Granada. É nesta época que se queixa o poeta Pedro López de Ayala: Esqueceram-se das guerras contra os mouros por fazer, Aqui em outras terras planas se puseram a comer. Alguns já são capitães; fazem os outros correr. Sobre os pobres sem culpa se acostumaram a se manter.


A reconquista espanhola / 105 Os cristãos têm as guerras, os mouros estão folgados; Em todos os seus reinos já têm reis dobrados. E tudo isto vem por causa de nossos pecados; Nós somos contra Deus, em todas as coisas errados.

o impacto

da Espanha na teologia cristã

Enquanto todos estes acontecimentos estavam tendo lugar, e enquanto alguns cristãos diziam que os mouros não passavam de infiéis ignorantes, a verdade é que em muitos sentidos a civilização muçulmana do sul da Espanha estava mais adiantada que a do restante da Europa. Havia lá grandes médicos, arquitetos e matemáticos, dos quais os cristãos tinham muito a aprender. Mas principalmente, para o que nos interessa aqui, havia filósofos notabil íssimos, cujo impacto se faria sentir em toda a teologia cristã ocidental. Entre estes os mais importantes foram o muçulmano Averróis e o judeu Maimônides, os dois de Córdoba. Averróis nasceu em Córdoba em 1126. Apesar de ter estudado medicina, jurisprudência e teologia, foi no campo da filosofia que ele mais se destacou. Dedicou-se a estudar e comentar as obras de Aristóteles, e teve tanto êxito que a posteridade o conheceu como "o Comentarista". Para ele o conhecimento filosófico estava acima do religioso, pois o primeiro se baseava na razão, e o segundo na fé. Isto queria dizer que quem quisesse compreender o Corão adequadamente teria de fazê-lo "filosoficamente". O que ele queria dizer com isto nunca ficou bem claro, pois Averróis sempre tentou aplacar a ira das autoridades muçulmanas. Em todo caso ele aparentemente quis dar a entender que a fé era o meio de conhecimento dos ignorantes ou de escassa capacidade intelectual, enquanto os mais privilegiados deveriam preferir a razão. Outra área em que Averróis se chocou com os Iíderes religiosos do seu tempo era a doutrina da cternidade do mundo. Os muçulmanos, assim como os cristãos. acreditavam que Deus tinha feito o mundo do nada. Avorróis. .orn base nos seus estudos de Aristóteles, chegou à c nclusão de que a matéria era eterna.


106 / A era dos altos ideais

A verrois foi tetvee o maior filósofo

da sua época.

Também no que se refere à vida depois da morte, Averróis diferia da ortodoxia maometana. Para ele, também com base em Aristóteles, todas as almas humanas (que ele chama de "intelecto ativo") não passam de manifestações de uma única alma universal. Por isto, c;uando o indivíduo morre, sua alma se reintegra neste grande oceano que é a alma universal. Maimônides era contemporâneo de Averróis, se bem que alguns poucos anos mais jovem. Quando os almoadas se apossaram de Córdoba e trouxeram consigo uma atitude intolerante em relação aos judeus, Maimônides e sua famflia partiram da Espanha. Mas apesar disto suas obras foram muito lidas no país. Na sua opinião não há um verdadeiro conflito entre a


A reconquista espanhola / 107 fé e a razão. O que acontece é que há certos temas que a razão não consegue investigar adequadamente. Assim, por exemplo, no que refere à eternidade do mundo ou da matéria, a razão não pode thegar a uma conclusão segura. Mas com base na fé sabemos que o mundo foi feito do nada. As obras destes filósofos, e de muitos outros de menor importância, passaram da Espanha para o restante da Europa. Contribuiu para isto uma grande escola de tradutores fundada em Toledo. Ali as obras dos grandes filósofos da antiguidade grega, e de seus comentaristas e rivais muçulmanos e judeus, foram traduzidas para o latim. Mais adiante veremos o grande impacto que estas obras tiveram sobre a Europa, onde boa parte da discussão teológica do século XIII girou ao redor delas.


VI As ordens mendicantes que injustamente nos causam tribulações, insultos, desonra, angústias, dores, tormentos, mart/rio e morte são nossos amigos, e devemos amá-los muito, porque graças a eles temos vida eterna. Os

São Francisco de Assis

No capítulo anterior dissemos que as novas correntes filosóficas provenientes do mundo muçulmano causaram grande impacto na teologia cristã ocidental. No próximo capítulo veremos algo deste impacto. Mas antes de continuar com este tema temos de nos deter para narrar as origens de um fenômeno sem o qual não é possível entender o curso que seguiram a igreja e a teologia ocidentais. Trata-se das ordens mendicantes. Como já dissemos antes, no tempo em que as cruzadas chegavam ao seu fim estavam ocorrendo profundas mudanças na vida pol ítica e econômica da Europa ocidental. O crescimento das cidades e do comércio tinha originado uma nova classe, a burguesia, que estava florescendo cada vez mais. O comércio e o artesanato com içarurn a substituir a terra como fonte de riqueza. Isto, por sua vu r , estimulou a economia monetária, de modo que clinl oiro circulava mais livremente, e a simples troca passava a s 'r n1 '110$ comum.


110/ A era dos altos ideais Só que a economia monetária, ao mesmo tempo que tem a vantagem de permitir a especialização da produção e aumentar a riqueza coletiva, tem as desvantagens de fazer com que o comércio seja menos direto e humano, e de produzir diferenças crescentes entre ricos e pobres. Para cada comerciante rico cujo nome conhecemos havia centenas de pobres cuja condição ficava mais dif ícil com as mudanças que estavam ocorrendo na economia. Por isto não devemos estranhar que nos séculos XII e XIII a questão dos méritos da riqueza e da pobreza surja novamente.

o precursor:

Pedro Valdo

O impacto da nova situação pode ser visto no caso de Pedro Valdo (ou Valdês) e do movimento que ele iniciou. Apesar de muitos documentos que se referem a ele serem relativamente recentes, e por isto duvidosos em questões de detalhes, o essencial da história confirma o que dissemos sobre a importância das novas condições econômicas para entendermos o auge a que chegou o ideal da pobreza no século XIII. De fato, Pedro Valdo aparece como precursor de São Francisco, com a grande diferença que em sua época a igreja ainda não estava pronta para aceitar os novos ideais, como estaria uma geração mais tarde, quando surgiu o santo de Assis. Pedro Valdo aparentemente era um comerciante de relativo êxito em Lyon, quando ouviu falar da lenda de São Aleixo. De acordo com esta. lenda o jovem Aleixo tinha abandonado seu povoado para se dedicar à vida ascética, e o fez com tal dedicação que alguns anos depois regressou sem ser reconhecido, e passou o resto dos seus dias pedindo esmolas diante da porta da sua própria casa. Somente quando ele morreu, e com ele foram encontrados documentos que o identificavam, foi que a fam (I ia veio a saber de q uem se tratava. Comovido com a história, Valdo decidiu se dedicar à pobreza e à pregação. O arcebispo de Lyon não lho permitiu, e então ele apelou a Roma. Ali teve lugar um diálogo interessante, narrado por um dos protagonistas. Este era o teólogo rlilap,


As ordens mendicantes / 111 nomeado pelo papa para examinar a ortodoxia de Valdo e dos seus seguidores: "Primeiro lhes propus algumas perguntas muito simples, que ninguém tem o direito de ignorar, sabendo que o asno que come um tipo de capim não come outro: - Credes vós em Deus Pai? - Cremos - responderam. - E no Filho? - Cremos. - E no Espírito Santo? - Cremos. - E na mãe de Cristo? - Cremos. A esta altura todos gritaram zombando, e os valdenses se reti raram confusos, e com razão." A zombaria era porque Map tinha envolvido Valdo e seus seguidores em um subterfúgio, levando-os a declarar que Maria era "mãe de Cristo" e não "mãe de Deus", como o terceiro concflio ecumênico o tinha promulgado. O que sucedia era simplesmente que I\/:ap e os seus estavam se vangloriando dos seus conhecimentos teológicos, e zombavam dos que, na falta destes conhecimentos, podiam cair em uma armadilha. Baseado nisto eles foram proibidos de pregar, a menos que seu bispo o permitisse. Como este já tinha dado mostras da sua antipatia por Vai do e seus seguidores, esta permissão era algo imprevis (vel. Regressando a Lyon, Valdo e seus discípulos se negaram a aceitar a decisão do seu bispo, e continuaram pregando. Em 1184 um concflio reunido em Verona os condenou. Mas apesar disto os valdenses persistiram em sua pobreza e pregação. Durante algum tempo se espalharam por diversas cidades. Mas mais tarde a perseguição foi total que se viram obrigados a procurar refúgio nos vales mais retirados dos Alpes. Ali se reuniram a eles pouco depois os restos do movimento dos "pobres lornbardos", muito semelhante ao dos valdenses, e também perseguido pela hierarquia eclesiástica. Por causa da sua história os que s refugiaram naqueles esconderijos não sentiam nenhum apr iço por Roma e a hierarquia eclesiástica. Quando no óCLlI XVI houve a reforma


112 / A era dos altos ideais

protestante alguns pregadores reformados estabeleceram contato com os valdenses, que aceitaram sua doutrina e assim se tornaram protestantes.

São Francisco e a ordem dos irmãos menores

O movimento franciscano foi muito semelhante ao dos valdenses, quanto à origem. O próprio Francisco pertencia, como Valdo, a uma fam ília de comerciantes. Seu pai, Pedro Bernardone, pertencia à nova classe que tinha surgido pouco antes, graças ao comércio. E, como Valdo, Francisco passou os primeiros anos da sua vida nos interesses e ocupações comuns dos jovens da sua classe social. Seu verdadeiro nome era João (Giovanni). Mas sua mãe era francesa, e os interesses comerciais do seu pai o levaram a estabelecer relações estreitas com a França. Giovanni tinha a alma de um trovador, e por isto aprendeu a Iíngua do sul da França, cujos trovadores eram famosos. rJ:ais tarde ele ficou conhecido em Assis pelo apelido de "Francisco", ou seja, o pequeno francês. Por este apel ido seus seguidores o conheceram, e depois o mundo todo. Francisco tinha mais de vinte anos quando houve uma mudança total em sua vida. Pouco antes ele tinha regressado de uma expedição militar no sul da Itália. Então, depois de ter passado por várias enfermidades que quase lhe custaram a vida, ele apreciava retirar-se a uma gruta, onde passava longas horas meditando e lutando consigo mesmo. Certo dia seus antigos companheiros de jogo o viram extremamente feliz, como há muito tempo não o viam. - Por que estás alegre? - perguntaram-lhe. - Porque me casei. - Com quem? - Com a senhora Pobreza! Acontecera que, depois de uma longa luta, o jovem Francisco tinha decidido seguir a caminho que antes tinham tomado Pedro Valdo e os muitos eremitas e ascetas que tinham renunciado às comodidades e honras do mundo. Quando seu pai lhe dava dinheiro ele imediatamente procurava algum pobre a quem pudesse presentear. Suas vestimentas não eram mais


As ordens mendicantes

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que alguns velhos trapos. Se sua farrulia lhe dava roupas novas, estas seguiam o mesmo caminho que antes tinha tomado o dinheiro. Em lugar de se ocupar dos negócios têxteis do seu pai, Francisco passava o dia louvando as virtudes da pobreza para qualquer pessoa que quisesse ouvi-lo, ou reconstruindo uma capela abandonada, ou desfrutando da beleza e da harmonia da natureza. Seu pai, exasperado, o prendeu em um sótão e apelou às autoridades. Estas levaram o caso ao bispo, que por fim decidiu que, se Francisco não estava disposto a usar melhor os bens da sua fam ília, deveria renunciar a eles. Isto era precisamente o que nosso jovem queria. Renunciando à sua herança, ele disse: - Escutem-me, todos. De agora em diante não quero me referir a mais ninguém que a "nosso Pai que está no céu". Em seguida, para mostrar como sua decisão era absoluta, tirou as roupas que usava, devolveu-as a seu pai, e partiu nu. Depois de deixar sua família Francisco foi para o bosque próximo. Ali ele foi assaltado por um bando de ladrões, que, ao vê-lo somente vestido com. uma túnica que um ajudante do bispo lhe tinha dado para se cobrir, lhe perguntaram quem ele era. - Sou o arauto do Grande Rei - ele afirmou. E eles, rindo e zombando, bateram nele e o deixaram estirado na neve. Por algum tempo Francisco se dedicou a levar a vida t(pica de um eremita. Sua única companhia eram os leprosos a quem servia, e as criaturas do bosque, com quem, dizem, ele gostava de falar. Também se dedicou à reconstrução da velha igreja chamada de "a Porciúncula". Em fins de fevereiro de 1209 a leitura do Evangelho daquele dia sacudiu todo seu ser: flÀ medida que seguirdes, pregai que está próximo o reino dos céus. Curai enfermos, ressuscitai mortos, purificai leprosos, expeli demônios; de graça recebestes, de graça dai. Não vos provereis de ouro, nem de prata, nem de cobre nos vossos cintos; nem de alforje para o caminho, nem de duas túnicas, nem de sandálias, nem de bordão; porque digno é o trabalhador do seu alimento" (Mateus 10:7-10).


114/ A era dos altos ideais

Aquelas palavras lhe deram um novo sentido de rrussao. Até então a preocupação principal do monasticismo tinha sido a própria salvação, e os monges fugiam de qualquer contato com pessoas que pudessem afastá-los da contemplação religiosa. O movimento que Francisco fundou foi exatamente o contrário. Ele e seus seguidores iam precisamente em busca das ovelhas perdidas. Sua ação não estava restrita a mosteiros afastados do movimento do mundo, mas se espalhava pelas cidades cuja população aumentava rapidamente, entre os enfermos, os pobres e os desprezados. Para ele era necessário ser pobre. E sê-lo com toda a alegria da confiança de que Deus cuida de nós. A primeira coisa que Francisco fez foi abandonar seu lugar retirado e regressar a Assis, onde começou a pregar. Não faltaram zombaria e insultos. Mas pouco a pouco ele foi reunindo ao seu redor um pequeno núcleo de seguidores cativados por sua fé, seu entusiasmo, sua alegria e sua simplicidade. Por fim, acompanhado de uma dezena de seguidores, decidiu ir a Roma para solicitar que o papa, na época Inocêncio III, o autorizasse a fundar uma nova ordem. O encontro entre Francisco e Inocêncio deve ter sido dramático. Inocêncio era o papa mais poderoso que a história tinha conhecido. Como veremos mais adiante, à sua disposição estavam as coroas dos reis e os destinos das nações. Diante dele o pobrezinho de Assis, que pouco se importava com as intrigas da época, e cuja única razão para querer conhecer o imperador era para lhe pedir que promulgasse uma lei proibindo a caça de "minhas irmãs, as avezinhas". Um altivo; o outro esfarrapado. O papa confiante em seu poder; o santo, no poder do seu Senhor. Conta-se que o pontífice recebeu o pobrezinho com impaciência. - Vestido como estás, mais pareces porco que ser humano - lhe disse. - Vai viver com teus irmãos. Francisco se inclinou e. saiu em busca de uma pocilga. Ali passou algum tempo en1re os porcos, revirando-se no lodo. Depois regressou para onde estava o papa, e com toda humildade se inclinou novamente e lhe disse: - Senhor, fiz o que me mandaste. Agora te rogo que faças o que te peço.


As ordens mendicantes / 115

"Pareces mais porco que ser humano. Vai viver com teus irmãos". Se se tratasse de outro papa, a entrevista teria terminado ali mesmo. Mas parte do gênio de Inocêncio consistia exatamente em saber medir o valor das pessoas, e unir os elementos mais opostos sob sua direção. Naquele momento o franciscano nascente esteve na balança, como uma geração antes estivera o movimento dos valdenses. Mas Inocêncio foi mais sábio que seu antecessor, e a partir de então a igreja contou com um dos seus mais poderosos instrumentos. De regresso para Assis com a sanção do papa Francisco continuou sua pregação. 1\1as o movimento não ficaria nisto. Não tardou para muitas pessoas pedirem ingresso na ordem. Por todas as partes da Itália c da França, e depois em toda a Europa, os "irrnãos menores" assim se chamavam os frades


116

IA

era dos altos ideais

de Francisco - se deram a conhecer. Através da sua irmã espiritual Santa Clara, Francisco fundou uma ordem de mulheres, geralmente conhecida como "as clarissas". Aqueles primeiros franciscanos estavam imbu (dos do esp írito do seu fundador. Iam por todas as regiões cantando, recebendo repreensões, alegres, pregando e mostrando sua simplicidade de vida admirável. Francisco temia que o êxito do seu movimento fosse a sua ru ína. Os franciscanos eram respeitados, e existia sempre a tendência de colocá-los em posições que enfraquecessem sua humildade. Por isto o fundador fez todo o possível para inculcar em seus seguidores o espírito de pobreza e de santidade. Conta-se que quando um noviço lhe perguntou se não era lícito possuir um saltério, o santo lhe respondeu: - Quando tiveres um saltério, quererás também ter um breviário. E quando tiveres um breviário te ostentarás no púlpito como um prelado. Em outra ocasião um dos irmãos regressou cheio de alegria, e mostrou a Francisco uma moeda de ouro que alguém lhe tinha dado. O santo o obrigou a tomar a moeda entre

Morte de São Francisco. Quadro de Giotto. "Cumpri meu dever. Agora, que Cristo IItIS dê Ben vinda, irmã morte I"

8

conhecer

o

IIOSS0.


As ordens mendicantes / 117

os dentes, e a enterrá-Ia em um monte de esterco, dizendolhe que este era o lugar que cabia ao ouro. Preocupado com as tentações que o êxito trazia para sua ordem, Francisco fez um testamento em que proibia a seus seguidores possuir coisa alguma, e também lhes proibia qualquer ai (vio da Regra, ainda que fosse do papa. No capítulo geral da ordem de 1220 ele deu uma prova final de humildade, renunciando à direção da ordem, e submetendo-se em obediência ao seu sucessor. Por fim, em 3 de outubro de 1226, ele morreu em sua amada igreja de Porciúncula. Diz-se que suas últimas palavras foram: "Cumpri meu dever. Agora, que Cristo vos dê a conhecer o vosso. Benvinda, irmã morte!"

São Domingos e a ordem dos pregadores

São Domingos era uns doze anos mais velho que São Francisco. Mas como sua atividade como fundador de uma ordem foi posterior, decidimos relatar sua história depois da do santo de Assis. Foi na pequena aldeia de Caleruega, perto de Burgos, no centro de Castela, onde Domingos nasceu. Ele era filho da ilustre famflia dos Gusmão, cuja torre ainda hoje se eleva no centro do povoado. Sua mãe, Joana, era uma mulher de grande fé, da qual ainda hoje se contam milagres em Caleruega. Em todo caso, desde muito jovem Domingos e seus irmãos cresceram em um ambiente cristão. Depois de uns dez anos de estudo em Palência ele se uniu ao capítulo da catedral de Osma, como um dos seus cônegos. Quatro anos depois, quando Domingos tinha a idade de vinte e nove anos, o cap ítulo adotou a regra monástica dos cônegos de Santo Agostinho. De acordo com esta regra os membros do capítulo catedralício viviam em comunidade monástica, mas sem se retirar do mundo nem abandonar seu ministério para com os fiéis. Recordemos que, como vimos no capítulo anterior, era a época em que a Espanha estava se incorporando ao restante da cristandade ocidental. É muito possível que este tenha sido um dos fatores que levaram o capítulo a adotar a regra de Santo Agostinho.


118/ A era dos altos ideais

Em 1203, Domingos e seu bispo Diego de Osma passaram pelo sul da França, onde nosso cônego se comoveu ao ver o auge a que chegara a heresia dos cátaros ou albigenses (veja o capítulo IV), e como tentava-se convertê-los à força. Apercebeuse também que o principal argumento que os albigenses tinham em o ascetismo dos seus I(deres, que contrastava com a vida acomodada e desregrada de muitos prelados e sacerdotes ortodoxos. Convicto de que não era o melhor meio de combater a heresia, Domingos dedicou-se a pregar a ortodoxia, uniu sua pregação a uma vida de disciplina rigorosa, e fez uso dos melhores recursos intelectuais que estavam ao seu alcance. Nas encostas dos Pirineus ele fundou uma escola para as mulheres nobres que abandonavam o catarismo. Reuniu também ao seu redor um número crescente de converses e de outros pregadores dispostos a seguir seu exemplo. Seu êxito foi tal que o arcebispo de Toulouse lhes deu uma igreja onde pudessem pregar, e uma casa onde viver em comunidade. Pouco depois, com o apoio do arcebispo, Domingos foi a Roma, onde na época se reunia o quarto concílio de Latrão (veja o capítulo IX), para solicitar a Inocêncio III a aprovação da sua regra. O papa se negou, pois se preocupava com a confusão que surgiria com a existência de demasiadas regras monásticas. Mas lhes deu licença para continuar o trabalho começado, desde que enquadrados em uma regra monástica já aprovada. De regresso a Toulouse, Domingos e os seus adotaram a regra dos cônegos de Santo Agostinho, e depois, mediante uma série de constituições, adaptaram esta regra às suas próprias necessidades. Talvez levados pelo impacto do franciscanismo nascente, os dominicanos também adotaram o princípio da pobreza total, para se sustentar somente através de esmolas. Por esta razão estas duas ordens (e outras que depois seguiram seu exemplo) são conhecidas como "ordens mendicantes". Desde seu início a ordem de pregadores (assim era chamada a que São Domingos fundara) teve o estudo em alta estima. Nisto diferia o santo espanhol do de Assis, que, como dissemos, não queria que seus frades tivessem nem sequer um saltério, e que em várias ocasiões se mostrou desconfiado do estudo e das letras. Os dominicanos, em sua tarefa de refutar a heresia, necessitavam armar-se intelectualmente, e por isto seus recru-


As ordens mendicantes /

119

São Francisco e São Domingos foram as duas figuras de mais destaque do monasticísmo mendicante. Nesta escultura, que se encontra no mosteiro de São Domingos, em Á vila, os dois são representados se abraçando, em um encontro que possivelmente nunca teve lugar.

tas recebiam um adestramento intelectual esmerado. Em conseqüência a ordem de pregadores deu à Igreja Católica alguns dos seus teólogos mais distintos; se bem que, como veremos mais adiante, os franciscanos não ficaram muito atrás deles.

o curso posterior nores

das ordens mendicantes

Tanto a ordem dos pregadores como a dos i rrnã s me cresceram rapidamente em quase toda a ur ptl. Mus


120 / A era dos altos ideais a fundada acidentada

por São Domingos teve uma história que a de São Francisco.

muito

menos

Desde o princípio os dominicanos se tinham dedicado ao estudo e à pregação, particularmente entre os hereges. Para eles a pobreza não passava de um instrumento que facilitava e fortalecia seu testemunho. Por isto eles não tiveram maiores dificuldades para se adaptar às novas circunstâncias quando o crescimento da ordem requereu que esta tivesse propriedades, e que o ideal de pobreza fosse de certo modo abrandado. Além disto eles logo se instalaram em universidades, pois isto provinha da sua inspiração inicial. Nesta época os dois centros principais de estudos teológicos eram as nascentes universidades de Paris e Oxford. Nas duas cidades os dominicanos fundaram casas, e logo tinham professores nas universidades. Em Oxford isto sucedeu quando Roberto Bacon, que já era professor, decidiu tornar-se dominicano, e continuou ensinando. Em Paris o processo foi mais turbulento, pois em 1229 houve uma greve universitária e os dominicanos se negaram a participar dela, continuando as aulas em seu convento. Quando a universidade abriu suas portas de novo, o mestre dominicano que estivera ensinando no convento continuou como professor universitário. Outro campo em que os dominicanos se distinguiram foi a pregação para muçulmanos e judeus. Entre os seguidores do Profeta o pregador mais famoso foi Guilherme de Trípoli. E entre os filhos de Abraão, São Vicente Ferrer . Ambos tiveram muito sucesso, se bem que nos dois casos parte do resultado da sua pregação fora produzida pela força: os cruzados contra os muçulmanos em Trípoli, e os cristãos contra os judeus na Espanha, onde São Vicente pregou. Como os dominicanos, os franciscanos se distinguiram tanto por sua atividade missionária como por sua presença nas universidades. As missões sempre tinham sido uma das paixões de São Francisco, que várias vezes tentou partir para a terra dos infiéis, e que por fim conseguiu pregar ao sultão do Egito. Seguindo seu exemplo, os franciscanos empreenderam um trabalho missionário de alcance incrível. De fato, foram eles que, depois de séculos de esquecimento, voltaram a tomar a


As ordens mendicantes / 121 sério o mandado de Jesus de serem testemunhas "até os confins da terra". Como exemplo deste trabalho podemos tomar João de Montecorvino, que, depois de ser legado papal na Pérsia e na Etiópia, e depois de um breve período missionário na lndia, dirigiu-se para a China. Pouco antes este país tinha sido conquistado pelos mongóis, que tinham estabelecido sua capital em Cambaluc (hoje Pequim). Depois das suas enormes conquistas, e do caos que produziram, os mongóis se mostravam interessados em estabelecer relações cordiais com o restante do mundo, e em estimular o comércio. Como assinalamos anteriormente, nesta área já havia alguns cristãos nestorianos. Agora, corn os novos contatos com o Ocidente, começaram a chegar ao país cristãos procedentes da Itália e de outras regiões européias. Primeiro chegaram os comerciantes, dos quais o mais famoso, mesmo não sendo o primeiro, foi Marco Polo. Pouco depois foram enviados os primeiros missionários, entre os quais estavam alguns dominicanos, e muitos franciscanos. Guilherme de Trípoli, o famoso pregador dominicano, partiu para a China com outro frade e com Marco Polo, que regressava para o Oriente. Mas as dificuldades da viagem o fizeram desistir dos planos. Em 1278 outros cinco missionários franciscanos foram enviados para a China; mas seu destino nos é desconhecido. Por fim o franciscano João de ~v'iontecorvino chegou a Cambaluc com uma carta do papa, e começou o trabalho missionário nesta capital. Seu êxito foi tal que depois de poucos anos havia milhares de convertidos. Ao receber notícias destes resultados o papa o nomeou arcebispo de Cambaluc, e enviou outros sete franciscanos que o ajudassem como bispos de outras sedes. Daqueles sete somente três chegaram ao seu destino, o que é ind ício dos perigos que a viagem apresentava. Mesmo sendo o Extremo Oriente o campo em que os missionários conseguiram resultados mais notáveis, foi entre os muçulmanos que trabalhou o maior número deles. Este tinha sido o interesse do próprio S50 Francisco, e através dos séculos sua ordem o manteve aceso, a ponto de os franciscanos perderem milhares de vidas neste campc missionário. Seguindo o exemplo dos dominicanos os franciscanos se instalaram nas universidades, onde che!.)iJr'lm a ter professores


122 / A era dos altos ideais

Em um debate presidido pelo papa J1Jexandre I Vos mendicantes defenderam sua postção, São Tomás de Aquino estava sentado no chão, de costas. À sua direita, também de costas, está São Boeventur«, Em frente a eles, vestido de branco, está Alberto,

o Grande.

de grande renome. Até certo ponto isto representava uma mudança na pol ítica traçada pelo fundador, que sempre desconfiou dos estudos e dos livros. Em 1236 um professor da universidade de Paris, Alexandre de Hales, decidiu se unir à ordem, e assim os franciscanos passaram a contar com sua primeira cátedra universitária. Poucos anos depois havia mestres franciscanos em todas as principais universidades da Europa ocidental. Tudo isto não foi possível sem grandes lutas, tanto internas, dentro do franciscanismo, como externas, contra alguns membros das universidades, que se opunham à presença nela dos mendicantes. Particularmente em Paris o franciscano Boaventura e o dominicano Tomás de Aquino tiveram de enfrentar a oposição de mestres seculares como Guilherme de Santo Amor. Em seus atritos com os mendicantes os seculares chegaram a atacar não só seu direito de tomar parte nas universidades, mas também a validade dos seus votos de pobreza. Deste modo a questão da pobreza passou a ser debatida nas universidades, e professores como Boaventura mantiveram "disputas" acadêmicas acerca dela.


As ordens mendicantes / 123 A principal mudança na pol ítica traçada por São Francisco, no entanto, teve lugar com respeito à pobreza. Como dissemos, o fundador sabia que o que exigia dos seus seguidores era duro, e por isto fez todo o possível para garantir que depois da sua morte os franciscanos não tentariam suavizar a regra da pobreza. Mas, como dizem que Inocêncio III disse ao santo, os ideais elevados de Francisco somente poderiam ser cumpridos por seres sobrehumanos. Com o crescimento da ordem, o espírito simples do seu fundador foi se perdendo, ao mesmo tempo que se fazia necessário organizar o movimento. Isto, por sua vez, requeria propriedades, e não faltaram os que as doaram aos franciscanos. A Regra de 1223 proibia que os franciscanos tivessem qualquer propriedade, e esta pobreza não deveria ser somente individual, mas também coletiva. O que Francisco queria era evitar o enriquecimento da sua ordem, como tinha sucedido com o movimento cluniacense. Para garantir que o princípio da pobreza absoluta seria cumprido cabalmente ele insistiu em seu testamento nisto, e proibiu explicitamente que fosse pedido ao papa qualquer abrandamento da Regra. Pouco tempo depois da morte do santo apareceram dois partidos dentro da ordem. Os rigoristas insistiam na pobreza absoluta, em obediência às instruções de São Francisco. Os moderados argumentavam que, dadas as novas circunstâncias, era necessário interpretar a Regra menos literalmente, para que a ordem pudesse levar a cabo seu ministério fazendo uso das propriedades que lhe eram doadas. Em 1230 o papa Gregono IX declarou que o testamento de São Francisco não tinha valor de lei para os franciscanos, que por isto podiam pedir a Roma que modificasse a lei da pobreza. Em 1245 Inocêncio IV acudiu ao subterfúgio de declarar que todas as propriedades em questão pertenciam à Santa Sé, enquanto os franciscanos desfrutavam delas. I\Jlais tarde também esta ficção foi abandonada, e a ordem do pobrezinho de Assis começou a ter vastas propriedades. Enquanto isto o partido dos rigoristas adotou posrcoes cada vez mais extremas. Para eles estava ocorrendo uma grande traição. Não demorou para alguns deles adotarem as idéias de Joaquim de Fiore, aplicando-as à sua situação.


124 / A era dos altos ideais

Joaquim de Fiare, um monge cisterciense da geração anterior à de São Francisco, tinha proposto um esquema da história que, de acordo com ele, se baseava na Bíblia. Este esquema consistia em três etapas sucessivas: a do Pai, a do Filho e a do Espírito Santo. A era do Pai, que ia desde Adão até Cristo, durou quarenta e duas gerações. Logo, já que Deus ama a ordem e a simetria, a idade do Filho também deveria durar quarenta e duas gerações. E, como no Novo Testamento a obra de Deus é aperfeiçoada, estas gerações seriam todas iguais. Contando trinta anos para cada geração, Joaquim chegou à data de 1260 como o momento em que terminaria a era do Filho e seria inaugurada a do Esp(rito. Nesta nova era a vida religiosa chegaria ao seu ponto culminante. Bem, em cada era Deus tinha levantado arautos da era por vir. Na era de Cristo os que apontavam para a era do Esp(rito Santo eram os monges, cuja pobreza e castidade lhes davam um nível de vida mais espiritual que o da gente comum, ou até dos dirigentes eclesiásticos. Alguns franciscanos rigoristas abraçaram estas idéias. O ano 1260 estava se aproximando. Os altos ideais franciscanos pareciam estar sendo negados a cada momento, tanto pelos franciscanos moderados como pelo papa e o restante da hierarquia eclesiástica. Portanto, para manter acesos os ideais, os rigoristas adotaram o esquema de Joaquim, que lhes dava a esperança de estar vivendo nos últimos tempos de dificuldades, pouco antes da alvorada de um novo dia, quando seus ideais seriam reafirmados. Com o nome de "espirituais", aqueles franciscanos começaram a pregar as doutrinas de Joaquim de Fiare. Isto implicava em que o papa, o restante da igreja, e inclusive os demais franciscanos eram crentes de um nível inferior, que permaneciam na "era de Cristo", enquanto eles, os espirituais, eram a "igreja do Espírito Santo". Um dos que mais difundiram estas idéias era o ministro geral da ordem, João de Parma, e por algum tempo pareceu que os franciscanos seguiriam o caminho dos valdenses, rompendo toda comunhão com o restante da igreja. Mas o próximo ministro geral da ordem, São Boaventura, conseguiu combinar um espírito místico semelhante ao de São Francisco com a mais estrita ortodoxia, e deste


As ordens mendicantes / 125

modo a maior parte dos franciscanos se reconciliou com a hierarquia eclesiástica. João de Parma e seus principais seguidores foram recolhidos a conventos, mas fora isto eles não foram perseguidos enquanto Boaventura viveu. Depois da sua morte houve um ressurgimento do movimento dos "espirituais", que foram então perseguidos até que desapareceram. Um dos ideais mais elevados da época que estamos estudando foi o de uma pobreza absoluta, imitando o Senhor, que não tinha "onde reclinar a cabeça". Ninguém encarnou este ideal como o fez São Francisco. ~/~asmais tarde os seguidores do pobrezinho de Assis chegaram a se combater por causa das suas riquezas; os discípulos do santo que amava a "irmã água" e o "irmão lobo" acabaram insultando, atacando e perseguindo seus irmãos de religião. Como Inocêncio tinha percebido tão bem, os ideais do pobrezinho eram elevados demais para a realidade humana.


VII A atividade teológica Não pretendo, Senhor, penetrar em tua profundidade, porque meu intelecto não pode ser comparado com ela. O que desejo é entender nem que seja de maneira imperfeita, a tua verdade. Esta é a verdade que meu coração ama e crê. Não tento compreender para crer, mas creio, e por isto posso vir a compreender. Anselmo de Canterbury

Os grandes ideais dos séculos XI a XIII não se limitaram às reformas monásticas dos cluniacenses, cistercienSes e mendicantes, nem às reformas de papas como Hildebrando, ou aos sonhos da Nova Jerusalém de Pedro, o Ermitão e seus seguidores. Também houve aqueles que, em mosteiros, escolas catedral (cias e universidades, sonhavam em entender melhor a verdade cristã. Eram tempos de profundas mudanças na sociedade européia, e estas mudanças se refletiram na teologia da época. Podemos ver isto no fato de que o primeiro teólogo que estudaremos neste capítulo produziu a maior parte da sua obra literária no mosteiro. Depois falaremos de outros que foram mestres em escolas catedral ícias. E por último nos ocuparemos de professores universitários. Este movimento, que vai dos mosteiros às escolas catedral ícias, e por último até as universidades, é sinal do auge a que estavam chegando as cidades. Os mosteiros geralmente estavam situados longe


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dos centros de população. As catedrais, pelo contrário, estavam no próprio coração das cidades, e as escolas que nelas floresceram devem isto ao processo de urbanização a que nos referimos repetidamente. Por último, as universidades são o ponto culminante desta evolução, pois surgiram quando nas cidades se concentraram tantos estudantes e professores que as escolas catedral (cias acabaram sendo insuficientes. Além disto, em casos como o da universidade de Paris, sua própria existência é um indício do crescente poder do rei, de cujo esforço centraIizador com relação à nobreza, parte consistia em fazer de sua capital um centro de estudos. Anselmo de Canterbury

O primeiro dos grandes pensadores que esta época produziu foi Anselmo de Canterbury. Natural do Piemonte, na Itália, Anselmo descendia de uma farnflia nobre, e seu pai se opôs à sua carreira monástica. Mas o jovem insistiu em sua vocação, e em 1060 ingressou no mosteiro de Bec, na Normandia. Se bem que este mosteiro ficava longe da sua pátria, Anselmo foi para lá por causa da fama de seu abade, Lanfranco. Ali ele se dedicou ao estudo da teologia, e produziu várias obras, das quais a mais importante é Pras/ágio. Em 1078 ele foi eleito abade de Bec, pois Lanfranco tinha deixado o mosteiro para ser consagrado arcebispo de Canterbury. Pouco antes Guilherme, o Conquistador, tinha partido da Normandia e conqu istado a Inglaterra, onde derrotou os saxões em 1066 na batalha de Hastings. Agora Guilherme e seus sucessores tinham-se estabelecido na Grã-Bretanha, que pouco a pouco se foi tornando o centro dos seus territórios. Mesmo assim durante várias gerações pessoas de origem normanda continuavam sendo levadas para a Inglaterra para ocupar posições importantes. Foi isto que sucedeu com Lanfranco e, em 1093, com Ansel mo. f'~este ano ele foi feito arcebispo de Canterbury pelo rei Guilherme II, que tinha sucedido o Conquistador. Anselmo tentou eximir-se desta responsabilidade, em parte porque preferia a calma do mosteiro, e em parte porque desconfiava de Guilherme, que depois da morte de Lanfranco deixara a


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sede vaga, para se apossar das suas rendas e de boa parte das suas propriedades. Mas mais tarde ele aceitou, e começou assim uma carreira cheia de incidentes, boa parte da qual no exflio, por causa dos conflitos primeiro com Guilherme e depois com o sucessor deste, Henrique I. Sem entrar em detalhes, podemos dizer que estes conflitos refletiam, em menor escala, os que já vimos quando tratamos das lutas entre o papado e o Império. A questão era de jurisdição, tendo por ponto central as investiduras, mas ainda com outras dimensões. O que estava em jogo no fim das contas era se a igreja seria independente ou não do poder civil. E a resposta não era fácil, pois a igreja tinha um grande poder pol ítico e econômico. Sete décadas mais tarde um dos sucessores de Anselmo, Tomás à Becket, haveria de morrer assassinado junto ao altar da catedral, por causa do mesmo conflito. Durante seus repetidos exílios Anselmo escreveu muito mais que enquanto estava encarregado das responsabilidades do seu arcebispado. A principal obra deste período é Por que Deus se fez homem. Ele morreu em Canterbury em 1109,

Sete décadas depois de Anselmo um dos seus sucessores, Becket, morreu assassinado junto ao altar da catedral.


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três anos depois de ter feito as pazes com o rei e de ter regressado de seu último exflio, A importância teológica de Anselmo está em que foi ele quem primeiro, depois de séculos de trevas, voltou a aplicar a razão às questões da fé de maneira sistemática. Cada uma das suas obras trata de um tema específico, como a existência de Deus, a obra de Cristo, a relação entre a predestinação e o livre arbítrio, etc. E na maior parte dos casos Anselmo tenta provar a doutrina da igreja sem recorrer às Escrituras ou a qualquer outra autoridade. Isto não quer dizer, entretanto, que Anselmo tenha sido um racionalista, disposto a crer somente no que podia ser demonstrado pela razão. Pelo contrário, como podemos ver na citação que inicia este capítulo, seu ponto de partida era a fé. Anselmo crê primeiro, e depois faz suas perguntas à razão. Seu propósito não é provar alguma coisa depois crer nela, mas demonstrar que o que ele de antemão aceita pela fé é eminentemente racional. Isto podemos ver tanto em seu Pros/ógio como em Por que Deus se fez homem. O Pros/ógio trata da existência de Deus. Anselmo não duvida nem por um instante que Deus existe. De fato, a obra está escrita em forma de uma oração dirigida a Deus. Mas, mesmo sabendo que Deus existe, nosso teólogo quer demonstrá-lo, para assim compreender melhor a racionalidade desta doutrina, e alegrar-se nela. Como ponto de partida Anselmo toma a frase do Salmo 14: 1: "Diz o insensato em seu coração: Não há Deus". Por que é necessário negar a existência de Deus? Evidentemente porque esta existência deve ser uma verdade racional, de modo que negá-Ia seria uma insensatez. É, então, possível provar a existência de Deus como tal? Sem dúvida, há mu itos argumentos que provam sua existência. Mas todos eles se baseiam na contemplação do mundo que nos rodeia, argumentando que este mundo tem de ter um criador. Isto é, todos os argumentos partem das informações dos sentidos. E os filósofos sempre souberam que os sentidos não bastam para nos dar a conhecer as realidades últimas. Será possível, então, encontrar outro modo de provar a existência de Deus, um modo que não


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dependa das informações dos sentidos, mas unicamente da razão? O raciocínio que Anselmo emprega foi chamado mais tarde de "argumento ontológico para provar a existência de Deus". Em poucas palavras, o que Anselmo diz é que quando perguntamos se Deus existe, a resposta está impl ícita na pergunta. Perguntar se Deus existe equivale a perguntar se o Ser Supremo existe. Mas a própria idéia de "Ser Supremo", que inclui todas as perfeições, inclui também a existência. De outro modo este "Ser Supremo" seria inferior a qualquer ser que exista. Um Ser Supremo inexistente seria uma contradição semelhante a um triângulo de quatro lados. Por definição, a idéia de "triângulo" implica em três lados. Da mesma forma a idéia de "Ser Supremo" inclui a existência. E por isto quem nega a existência de Deus é um insensato, como o salmista diz tão bem. Este "argumento ontológico" tem sido discutido, reinterpretado, refutado e definido pelos filósofos e teólogos através dos séculos. Mas não cabe aqui seguir o curso do debate. É suficiente assinalar que o próprio argumento é um exemplo claro do método teológico de Anselmo, que não consiste em esperar até demonstrar uma doutrina para crer nela, mas que parte da própria doutrina, e da sua fé nela, para mostrar sua racionalidade. Em Por que Deus se fez homem Anselmo se ocupa da questão do propósito da encarnação. Sua resposta se espalhou de tal modo que, com ligeiras variações, veio a ser a opinião da maioria dos cristãos ocidentais, até o século XX. Seu argumento se baseia no princípio legal da época, de acordo com o qual "a importância da ofensa depende do ofendido, e a de uma honra depende de quem honra". Se, por exemplo, alguém ofende o rei, a importância desta ação não é medida com base em quem a cometeu, mas com base na dignidade do ofendido. Mas se alguém honrar um outra pessoa, a importância desta ação não será medida com base no nível de quem recebe a honra, mas de quem está honrando. Se, então, aplicamos este prindpio às relações entre Deus e os seres humanos, hC!Jümos conclusão, primeiro, que o pecado humano é in fini la, pois foi cometido contra Deus; segundo, que qualqu r p~!!.J'Jm .nto ou satisfação que o à


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ser humano possa oferecer a Deus é limitado pois sua importância será medida com base em nossa dignidade, que é infinitamente inferior à de Deus. Além disto, a verdade é que não temos meio algum para pagar a Deus o que lhe devemos, pois qualquer bem que possamos fazer não é mais que nosso dever, e por isto a dívida passada nunca será cancelada. Em conseqüência, para remediar nossa situação é necessário oferecer a Deus um pagamento infinito. E ao mesmo tempo este pagamento tem de ser feito por um ser humano, pois fomos nós que pecamos. Logo, deve haver um ser humano infinito, o que equivale a dizer divino. E é por isto que Deus se fez homem em Jesus Cristo, que ofereceu em nome da humanidade uma satisfação infinita por nosso pecado. Esta maneira de encarar a obra de Cristo, mesmo sendo difundida até o nosso século, na igreja antiga não era a única nem a mais comum. Na antiguidade, Cristo era tido antes de tudo como vencedor do demônio e dos seus poderes. Sua obra consistia antes de tudo em libertar a humanidade do jugo da escravidão a que estava submetida. E por isto o culto na igreja antiga estava centralizado na ressurreição. Na Idade I\.::édia, principalmente na "era das trevas", a ênfase foi mudando, e chegou-se a pensar em Jesus mais como o pagamento pelos pecados humanos. Sua tarefa consistia em aplacar a honra de um Deus ofendido. No culto, a ênfase recaiu sobre a crucificação mais que sobre a ressurreição. E Jesus Cristo, em vez de conquistador do demênio, passou a ser a vítima de Deus. Em Por que Deus se fez homem Anselmo formulou de modo claro e preciso o que passara a ser fé comum de sua época. Em certo sentido Anselmo foi um dos fundadores da "escolástica". Este é o nome que se dá a um período e uma maneira de fazer teologia. Suas raízes estão em Anselmo e em outros teólogos do século XII que estudaremos na seqüência. Seu ponto culminante veio no século XIII. E este continuou sendo o método característico de fazer teologia através do restante da Idade ~,·1édia.Seu nome surgiu porque ela foi produzida principalmente nas escolas. Anselmo foi monge, e quase todo seu trabalho teológico foi feito no mosteiro. Nisto ele não diferia da teologia dos séculos anteriores, que não tinha desenvol-


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vido em escolas, mas em púlpitos e mosteiros. 1\ partir do século XII, no entanto, os centros do trabalho teológico seriam as escolas catedral ícias e as universidades. Em termos gerais, a grande contribuição de Anselmo consistiu no uso que ele fez da razão, não como uma maneira de comprovar ou negar a fé, mas de elucidá-Ia. Em seus melhores momentos este foi o ideal da escolástica.

Pedro Abelardo

Outro dos principais precursores da escolástica foi Pedro Abelardo, que ficou famoso por causa dos seus amores com Elofsa, e do que sobre eles foi dito e escrito. Abelardo nasceu na Bretanha em 1079, e dedicou boa parte da sua juventuce a estudar sob os mais ilustres mestres do seu tempo. Ele nos conta suas peripécias daqueles tempos em sua História das calamidades, que ele mesmo compôs perto do fim dos seus dias. Nela descobrimos um jovem, sem dúvida, dotado de uma inteligência superior, mas que se orgulha desta inteligência de tal maneira que acaba tendo inimigos por onde ele passa. E o mais notável é que, ainda anos mais tarde, Abelardo pode relatar sua história sem se dar conta até que ponto ele mesmo foi um dos principais causadores das suas próprias calamidades. Ele foi de escola em escola, dando a entender a todos os mestres que eles não passavam de charlatães ignorantes, e em alguns casos roubando seus discípulos. Por fim ele chegou a Paris, onde um cônego da catedral, Fulberto, lhe confiou a instrução da sua sobrinha Eloísa. Esta era uma jovem de dotes intelectuais extraordinários, e sem demora o mestre e sua discípula se apaixonaram. Daqueles amores nasceu um filho que seus pais, em honra a um dos cientistas mais adiantados do seu tempo, chamaram de p.strolábio. Fulberto estava enfurecido, e exigia que Abelardo e Eloísa se casassem. Abelardo estava disposto a fazê-lo, mas Eloísa se opunha por duas razões. Em primeiro luqar, era a época em que o celibato eclesiástico se impunha em todos os luçares, e a jovem apaixonada temia que o rnatr imônio fosse um obstáculo na carreira de seu amante. Em sequnclo IUyélr, ela temia que no matrimônio seu amor perdesse urro pouco do seu calor. Neste


134/ A era dos a/tos ideais

Abe/ardo

e Etois«

tempo começava a ficar popular e conceito romântico do amor. Por toda a França passavam os trovadores, e cantavam seus versos de amores distantes e impossíveis. Refletindo este espírito, Elofsa dizia a Abelardo: "Prefiro existir para ti que ser tua". Mais tarde eles decidiram casar em segredo. Mas isto não satisfez Fulberto, que via sua honra manchada, e temia que Abelardo tentasse obter uma anulação do matrimônio. Uma noite, enquanto o infeliz amante dormia, alguns homens contratados por Fulberto entraram em seu quarto e lhe cortaram os órgãos genitais. Depois destes acontecimentos Eloísa se tornou monja, e seu amante ingressou no mosteiro de São Dionísio, fora dos muros de Paris. Em São Dionísio, todavia, ele não teve melhor sorte. Sem demora ele escandalizou seus companheiros de hábito


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dizendo, com razão, que eles se equivocavam quando pensavam que seu mosteiro tinha sido fundado pelo mesmo Dionísio que tinha sido discípulo de Paulo em Atenas. Pouco depois um concílio reunido em Soissons condenou suas doutrinas sobre a Trindade, e o obrigou a queimar seus escritos sobre este tema. Por fim, enfastiado da companhia dos seus semelhantes, ele se retirou para um lugar deserto. Logo, entretanto, se reuniu ao redor dele um número de discípulos que tinha ouvido da sua habilidade intelectual, e que queria aprender dele. Então ele fundou uma escola que chamou de Parakletos. Mas Bernardo de Claraval, o monge cisterciense devoto da humanidade de Cristo e pregador da segunda cruzada, o perseguiu até seu retiro. Bernardo não podia tolerar as Iiberdades que Abelardo tomava para apl icar a razão aos mais profundos mistérios da fé. Na opinião do monge cisterciense este uso da razão nada mais era que falta de fé. Graças aos manejos de Bernardo, Abelardo foi condenado como herege em 1141. Quando tentou apelar a Roma, descobriu que o papado estava disposto a acatar a vontade de seu incansável inimigo. Então ele não teve outro remédio que desistir de ensinar e retirar-se para o mosteiro de Cluny, cujo abade, Pedro, o Venerável, o recebeu com verdadeira hospitalidade cristã e o ajudou a reivindicar o seu bom nome. Durante quase todo este tempo Abelardo manteve correspondência com Eloísa, que tinha fundado um convento perto do Parakletos. Quando seu antigo amante e esposo morreu, em 1142, aos sessenta e três anos de idade, Elofsa conseguiu que seus restos fossem transladados para o Parakletos. A obra teológica de Abelardo foi extensa. Ele é conhecido sobretudo por sua doutrina da expiação, segundo a qual o que Jesus Cristo fez por nós não foi vencer o demônio, nem pagar nossos pecados, mas nos dar um exemplo e um estímulo, para que pudéssemos cumprir a vontade de Deus. Sua doutrina ética também foi importante, que dava importância especial à intenção de uma ação, e não tanto à ação em si. Mas em certo sentido o que faz de Abelardo um dos precursores da escolástica é sua obra Sim e não. Nela ele levanta 158 questões teológicas, mostrando logo que certas autoridades, tanto bíblicas como patrfsticas, respondiam afirmativamente,


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enquanto outras respondiam em sendido contrário. O propósito de Abelardo não era diminuir a autoridade da Bíblia ou dos antigos escritores cristãos. Seu propósito era antes mostrar que não era suficiente citar um texto antigo para resolver um problema. Os dois lados da questão precisavam ser analisados, para então ser aplicada a razão, e ver como era possível fazer concordar textos aparentemente contraditórios. Na verdade Abelardo se limitou à primeira parte desta tarefa, simplesmente citando autoridades aparentemente contraditórias, sem tentar oferecer soluções, o que acarretou para ele a má vontade de muitas pessoas. Mas o método que ele propôs nesta obra foi seguido, com certas variações, por todos os principais escolásticos a partir do século XIII. Em termos gerais este método consiste em levantar uma questão, citar depois uma série de autoridades que parecem oferecer uma solução, e uma série de autoridades que parecem dizer o contrário, para então chegar a uma conclusão. Nesta conclusão o teólogo escolástico oferece primeiro a sua resposta, e logo explica por que as diversas autoridades citadas em sentido contrário não se opõem a ela. Mais tarde, mesmo entre os que o consideravam herege, Abelardo faria sentir o peso da sua obra. Os vitorianos e Pedro Lombardo

Um dos mestres de Abelardo, Guilherme de Champeaux, tinha sido professor da escola catedral ícia de Paris, até que decidiu se retirar para fora da cidade, à abadia de São Vítor. Há quem diga que esta decisão foi influenciada, em parte, porque Abelardo o ridicularizara em um debate público. Em todo caso, em São Vítor, Guilherme fundou uma grande escola teológica que esteve sob sua direção até que partiu para ser bispo de Châlons-sur-l\.t1arne. O sucessor de Guilherme, Hugo, foi o mais célebre mestre da escola de São Vítor. Ele e seu sucessor, Ricardo, combinaram uma profunda piedade com uma investigação teológica cuidadosa. Desta maneira a escola de São Vítor foi um dos lugares onde foi transposta a velha divisão entre pensadores do estilo de Abelardo e místicos como Bernardo. Se esta divisão tivesse


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continuado a escolástica nunca teria chegado onde chegou, pois uma das características dos grandes mestres escolásticos foi precisamente sua devoção sincera, unida à disciplina intelectual. Pedro Lombardo, o pensador do século XII que mais influência teve sobre o XIII, pode ter sido discípulo ou mestre da escola de São Vítor. Em todo caso não há dúvida de que ele teve relações estreitas com esta escola, e que boa parte da sua teologia é derivada dela. Natural da Lombardia, no norte da Itália, Pedro passou a maior parte da sua vida adulta em Paris. Ali ele estudou teologia, e depois chegou a ser professor da escola catedral ícia. Em 1159 ele foi feito bispo de Paris, morrendo no ano seguinte. . A importância de Pedro Lombardo deriva principalmente da sua obra Quatro livros de sentenças, comumente chamada de Sentenças. O que ele fez foi simplesmente copiar, como Pedro Abelardo o tinha feito antes, as sentenças de diversos autores sobre uma longa série de questões teológicas. Pedro Lombardo, no entanto, não deixou as dúvidas para serem resolvidas por seus leitores, mas fez um esforço para responder as dificuldades levantadas por sentenças aparentemente contraditórias. Em tudo isto a obra de Lombardo não fazia mais que seguir um modelo utilizado antes por outras pessoas. Mas o valor das Sentenças de Pedro Lombardo logo as colocou acima de qualquer outra obra semelhante. Parte deste valor estava em que, no estilo de Hugo e Fticardo de São Vítor, Pedro Lombardo fazia uso dos melhores métodos lógicos sem com isto abandonar a devoção. Além disto em muitos casos suas soluções às dificuldades levantadas davam mostras do seu gênio. Mas em nenhum caso ele utilizava este gênio para contradizer ou pôr em dúvida as doutrinas da igreja. Em alguns, nosso autor simplesmente se confessava incapaz de responder definitivamente uma questão acerca da qual a igreja não tinha se pronunciado. Por todas estas razões as Sentenças, ao mesmo tempo que estimulavam o pensamento teológico, diziam pouca coisa capaz de despertar a suspicácia dos elementos mais conservadores. Se bem que houve dúvidas sobre alguns detalhes das suas doutrinas, mais tarde as Sentenças foram aceitas como um excelente resumo da teologia cristã.


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A outra caracterfstica que contribuiu para o êxito desta obra foi sua ordem sistemática. O primeiro livro trata de Deus, tanto em sua unidade como em sua Trindade. O segundo vai desde a criação até o pecado. Isto quer dizer que nele está inclu (do a angelologia, a antropologia ou doutrina do ser humano, a graça e o pecado. O terceiro se ocupa da "reparação", ou seja, da solução que Deus oferece para o pecado. Por isto ele começa estudando a cristologia da redenção, para depois passar para a doutrina do Espírito Santo, seus dons e virtudes, e terminar discutindo os mandamentos. Por último, o quarto livro se dedica aos sacramentos e à escatologia. Em linhas gerais, esta ordem foi seguida pela maioria dos teólogos sistemáticos, desde o tempo de Pedro Lombardo. Tudo isto não quer dizer que as Sentenças fossem aceitas em todo lugar sem nenhuma oposição. Houve muitos teólogos que as criticaram por diversas razões. Além disto em princípios do século XIII houve um movimento que tentou obter sua condenação. r\~as esta oposição surgiu por causa da grande popularidade que a obra estava conseguindo. Na universidade de Paris, um dos seguidores de Pedro Lombardo, Pedro de Poitiers, começou a ditar cursos em Que se comentava as Sentenças, e estes cursos foram se espalhando por toda a França, e depois pelo restante da Europa ocidental. Logo, comentar as Sentenças se converteu num dos diversos exercícios que cada jovem professor deveria cumprir antes de receber seu doutorado. Por isto todos os grandes escolásticos a partir do século XIII compuseram comentários sobre as Sentenças que continuaram sendo o principal texto para o estudo da teologia católica até fins do século XVI.

As universidades

Já dissemos repetidamente que o período que estamos estucando se caracteriza, entre outras coisas, pelo auge da importância das cidades. Por esta razão os estudos teológicos logo se concentravam nos centros urbanos, e não mais nos mosteiros, como antigamente. Nestes centros surgiram primeiro as escolas catedral ícias, a cargo do bispo e do capítulo da catedral. ~,'ias logo foram surgindo outras escolas, que mais


A atividade teológica /

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tarde se unificaram em cada cidade no que foi chamado de "estudo geral". Destes estudos gerais surgiram as principais universidades da Europa. Ao falarmos de universidades, entretanto, devemos esclarecer que no princípio não se tratava de instituições como as que hoje em dia recebem este nome. Naquela época os artesãos dedicados a certas ocupações se organizavam em corporações cujo propósito era tanto defender os direitos dos seus membros como garantir que a qualidade do seu trabalho fosse uniforme. Assim, por exemplo, se em uma cidade era iniciada a construção de uma grande catedral, e vinham pedreiros cie diversas regiões, a corporação garantia que cada um recebesse responsabilidades e salários de acordo com sua habilidade e experiência. Da mesma forma, as universidades em seu in ício não eram instituições de ensino superior, mas corporações de professores e alunos, cuja função era tanto defender os interesses comuns a todos eles como garantir o grau de preparo que cada um alcançava. Por isto uma das características principais destas universidades era que seus mestres gozavam do jus ubique docendi: o direito de ensinar em qualquer lugar. As universidades mais antigas remontam a fins do século XII, quando as escolas de cidades como Paris, Oxford e Salerno chegaram a um ponto culminante. lvlas foi o século XIII que viu o crescimento pleno das universidades. Se bem que em todas elas eram estucados os conhecimentos básicos da época, logo algumas ficavam famosas em alguma área particular de estudo. Quem queria estudar medicina fazia todo o possível para ir a lViontpelier ou a Salerno, enquanto Ravena, Pavia e Bolonha eram famosas por suas faculdades de direito, e Paris e Oxford por seus estudos de teologia. Na Espanha, a universidade mais famosa foi a de Salamanca, fundada no século XIII por Afonso X, o Sábio. Os que queriam se dedicar ao estudo da teologia tinham primeiro de ingressar na faculdade de artes, onde passavam diversos anos estudando filosofia e letras. Depois ingressavam na faculdade ele teologia, onde começavam como "ouvintes", e progressivamente podiam chegar a ser "bacharéis bíblicos", "bacharéis sentenciá rios", "bacharéis formados", "mestres licenciados" e "doutores". No século XI V este processo chegou


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Em Salamanca ainda está conservada a sala de aula de estilo medieval em que

o frade

Lufs de Leão ensinou no século XVI.

a ser tão complicado que para completá-lo eram necessanos dezesseis anos de estudo, depois da graduação na faculdade de artes. A maior parte dos exercícios acadêmicos consistia em comentários sobre a B(blia ou as Sentenças, sermões e disputas. Estas últimas eram o exerc ício escolástico por excelência.


A atividade teológica / 141 Havia dois tipos: ordinárias e quolibéticas. A diferença estava no processo pelo qual se escolhia o tema a ser discutido. Mas à parte disto as duas seguiam o mesmo método. Este consistia em levantar uma questão que podia ser debatida, e dar oportunidade aos presentes de expressar razões por que a resposta deveria ser em um sentido ou em outro. Assim era compilada uma lista de opiniões e fontes autoritárias aparentemente contraditórias, no estilo de Sim e não de Abelardo. Então dava-se tempo ao mestre de preparar a sua resposta, pois na próxima sessão ele teria de expor a sua própria opinião, e mostrar que as diversas razões citadas em sentido oposto não a contradiziam. Este método era tão usado que os comentários sobre as Sentenças tomaram a mesma forma, e São Tomás de Aquino o adotou em suas principais obras de teologia sistemática, a

Suma contra gentios e a Suma teológica.

o desafio

de Aristóteles

Já dissemos anteriormente que no tempo em que a Europa cristã tentava sair da "era das trevas" a Espanha muçulmana gozava de uma civil ização florescente. Os cristãos sedentos de conhecimentos foram beber ali em campos tão diversos como a medicina, a matemática, a astronomia e a filosofia. Além disto as cruzadas, estabelecendo contatos mais diretos com o Império Bizantino, também fizeram com que chegasse à Europa ocidental parte dos conhecimentos da antiguidade que tinha sido conservada em Constantinopla. De todos estes conhecimentos os que produziram o abalo mais forte na teologia cristã foram os que se referiam à filosofia aristotélica. Desde meados do século II, na obra de Justino I\/,ártir, a teologia cristã tinha estabelecido uma aliança com a filosofia platônica. Particularmente na igreja de fala latina as obras de outros filósofos da antiguidade foram esquecidas, e pensou-se que a verdadeira filosofia era a de Platão e dos seus seguidores, e que esta filosofia provia o melhor meio intelectual de entencJer a fé cristã. Isto era devido em grande parte à obra de Santo Agostinho, que, como já dissemos, encontrou na filosofia neoplatônica a resposta para muitas dúvidas que tivera com respeito a algumas doutrinas cristãs.


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Mas agora a Europa ocidental começava a descobrir uma filosofia que diferia da platônica em alguns pontos fundamentais. Isto era devido, em parte, às diferenças que sempre existiram entre o platonismo e o aristotelismo, e em parte ao modo com que Averróis interpretava Aristóteles. Em todo caso, logo houve um bom número de filósofos, especialmente na faculdade de artes de Paris, que diziam que a filosofia de Aristóteles era indubitavelmente superior, e ensinavam esta filosofia em lugar da platônica. ~ de supor que isto criava dificuldades para os teólogos, acostumados que estavam a pensar em outros termos. Em Paris o partido aristotél ico chegou a sustentar posições totalmente inaceitáveis para a igreja. Estas posições descrevemos no fim do capítulo V, quando expomos as doutrinas de Averróis: a independência da filosofia em relação à teologia, a eternidade do mundo, e a unidade de todas as almas. Os que sustentavam estas posições receberam o nome ce "averroístas latinos", e causaram uma confusão tal que o estudo de Aristóteles logo foi proibido, apesar de esta proibição nunca ter sido aplicada com todo o rigor. Qual deveria ser a atitude dos cristãos em relação à nova filosofia? Esta foi a principal questão debatida no século XIII. A maioria dos teólogos respondeu ou rejeitando de antemão tuco o que Aristóteles pudesse ensinar, ou aceitando somente alquns elementos secundários da sua doutrina. Alguns poucos reconheceram os valores positivos do aristotelismo, e se dedicaram a aplicá-los à teologia cristã, mesmo sem abandonar a doutrina da igreja. Como representante da posição relativamente conservadora, estudaremos brevemente a vida e obra de São Boaventura, e depois passaremos a expor os princípios fundamentais da outra posição, assim como tomaram forma em São Tomás de Aquino.

São Boaventura

João de Fidanza era o seu nome, e rea, Itália em 1221. Diz-se que quando adoeceu gravemente, e sua mãe prometeu tinha morrido pouco tempo antes) que

ele nasceu em Bagnoainda era menino ele a São Francisco (que seu filho seria fran-


A atividade teológica / 143

ciscano se ele o salvasse. Quando a criança sarou, a mãe disse: "Oh, boa ventura!" E deste incidente é derivado o nome com que a posteridade o conhece. Boaventura fez seus estudos universitários em Paris, e foi também ali que ele tomou o hábito franciscano. Em 1253, depois de passar vários anos dando conferências e comentando as Escrituras e as Sentenças ele obteve o doutorado. Quatro anos depois os franciscanos o elegeram ministro Geral, cargo que ocupou com grande distinção até 1274. Era a época da luta contra os franciscanos "espirituais", e a firmeza e moderação de Boaventura lhe valeram o título de "segundo fundador da ordem". Em 1274 ele foi feito cardeal, e por isto renunciou ao seu cargo como ministro geral. Conta-se que, quando o avisaram da honra que acabara de lhe ser conferida, ele estava ocupado na cozinha do convento, e disse ao mensageiro: "Obrigado, mas estou ocupado. Por favor, coloque o chapéu no arbusto que está aí no pátio". Por esta razão um dos símbolos de Boaventura é um chapéu cardinal ício colocado em um arbusto. Poucos meses depois de receber esta hon ra, Boaventura morreu, enquanto participava do concílio de Lyon. Boaventura, que também já foi chamado de "Doutor Seráfico", era antes de tudo um homem profundamente piedoso. Quem lê suas obras de teologia sistemática sem ler as que tratam dos sofrimentos de Cristo está perdendo o melhor delas. E quem lê seus escritos sistemáticos e conhece a profundidade da sua devoção vê neles dimensões que de outro modo passariam despercebidas. Este é o sentido de uma das muitas lendas que se conta dele, de acordo com a qual, quando seu amigo São Tomás de Aquino lhe pediu que o levasse à biblioteca de onde tirava tanta sabedoria, Boaventura lhe mostrou um crucifixo e lhe disse: Aqui está a soma de toda minha sabedoria" . II

A teologia do Doutor Seráfico é tipicamente franciscana, e por isto é sobretudo uma "teologia prática". Isto não quer dizer que se trate de uma teologia utilitarista, que só se interessa pelo que tem aplicação imediata, mas que seu propósito principal é levar à bern-aventurenca, à comunhão com Deus.


144/ A era dos a/tos ideais

Os primeiros mestres franciscanos, seguindo nisto o fundador da ordem, não tinham muita paciência para a especulação ociosa. Para eles o propósito da vida humana era a comunhão com Deus, e a teologia nada era senão um instrumento para chegar a este fim. Além disto, seguindo a tradição que predominava na época, Boaventura era agostiniano. O santo de Hipona era seu principal mentor teológico. Isto podemos ver particularmente na maneira com que o Doutor Seráfico entende o conhecimento humano. Este não pode ser obtido mediante os sentidos ou a experiência, mas somente através da iluminação direta pelo Verbo divino, em quem estão as idéias exemplares de todas as coisas. Por estas razões Boaventura não se mostrou muito disposto a acolher as novas idéias filosóficas, com sua inspiração aristotélica e o que parecia ser sua inclinação racionalista. Como Anselmo tinha dito muito tempo antes, Boaventura estava convicto que para compreender era necessário crer, e não vice-versa. Assim, por exemplo, a doutrina da criação nos diz como devemos entender o mundo, e guia nossa razão nesta compreensão. Precisamente por não conhecer esta doutrina é que J\ristóteles afirmou que o mundo era eterno. Dito de outra maneira, Cristo o Verbo, é o único mestre, em quem se encontra toda a sabedoria, e por isto cada intenção de conhecer alguma coisa à parte de Cristo equivale a negar o próprio centro do conhecimento que se pretende ter. Nisto tudo Boaventura não era muito original. Este também não era seu propósito. O que ele pretendia fazer, e que fez com grande habilidade, era mostrar que a teologia tradicional, com seus fundamentos agostinianos, ainda era válida, e que não era necessário capitular diante da nova filosofia, como o faziam os averroístas latinos". São Tomás de Aquino

Restava, entretanto, outra alternativa, que não era nem a dos "averroístas" nem a dos agostinianos tradicionais. Esta alternativa consistia em explorar as possibilidades que a nova filosofia oferecia, para chegar a uma compreensão melhor


A atívídade teológica / 145

da fé cristã. Este caminho seguiram Alberto, o Grande, e seu discípulo Tomás de Aquino. Alberto, que logo recebeu o título de "o Grande", passou a maior parte da sua carreira nas universidades de Paris e Colônia, se bem que esta carreira viu-se interrompida repetidamente pelos muitos cargos que ocupou na igreja, e as diversas tarefas que lhe conferiram. No campo da teologia, Alberto teve a ousadia de se dedicar a estudar o sistema filosófico que a maioria dos teólogos do seu tempo considerava incompatível com o cristianismo. Sua obra não chegou a se cristalizar em urna síntese coerente, mas serviu para abrir o caminho a Tomás, seu discípulo. Já vimos que uma das questões debatidas pelos filósofos na faculdade de artes de Paris era a relação entre a fé e a razão, ou entre a teologia e a filosofia. Enquanto os "averroístas" diziam que a razão era completamente independente da fé, os teólogos tradicionais diziam que a razão não podia proceder à investigação filosófica sem o auxílio da fé. Diante destas posições Alberto estabeleceu uma distinção clara entre a filosofia e a teologia. A filosofia parte de princípios autônomos, que podem ser reconhecidos à parte da revelação, e com base nestes princípios tenta descobrir a verdade, através de um método estritamente racional. O vercadeiro filósofo não pretende provar o que sua mente não consegue compreender, mesmo se se trata de uma verdade de fé. O teólogo, por seu lado, parte de verdades reveladas, e que não podem ser descobertas somente usando a razão. Isto não quer dizer que as doutrinas teológicas sejam menos seguras que as filosóficas, mas o contrário, porque as informações da revelação são mais seguras que as da razão, que pode errar. Significa também que o filósofo, sempre e quando permanecer no âmbito do que a razão pode alcançar, terá Iiberciade para prosseguir sua investigação, sem ter de acatar a cada passo as ordens da teologia. Podemos ver isto na maneira com que Alberto aborda a questão da eternidade do mundo. Corno filósofo ele confessa que não pode demonstrar que o mundo foi criado no tempo. O máximo que pode oferecer são argumentos de probabilidade. lvias como teólogo ele sabe que o mundo foi feito do


146/ A era dos altos ideais

nada, e que não é eterno. Trata-se, então, de um caso em que a razão por si só não pode chegar à verdade. E tanto o filósofo que tenta provar a eternidade do mundo como aquele que tenta provar sua criação do nada são maus filósofos, pois desconhecem os limites da razão. Antes que passemos a estudar a vida e obra de São Tomás de Aquino convém que assinalemos outra informação interessante com respeito a Alberto. Seus estudos de zoologia, botânica e astronomia foram muitíssimo extensos, e não conheciam um precedente verdadeiro na Idade Média. Isto não foi pura coincidência, mas era devido à inspiração aristotélica da sua filosofia. Se, como dizia Aristóteles, todo conhecimento começa pelos sentidos, fica importante estudar o mundo que nos rodeia, e aplicar nele nossas habilidades de percepção mais agudas. Alberto, o Grande, era dominicano, e seu discípulo mais famoso, São Tomás de Aquino, também o foi. Este nasceu por volta de 1224 nos arredores de Nápoles, e era de famflla nobre. Todos os seus irmãos e irmãs chegaram a ocupar altas posições na sociedade italiana da época. Para Tomás, o mais jovem, os pais tinham escolhido a carreira eclesiástica, esperando que ele um dia ocupasse algum cargo de poder e prestígio, como o de abade de Montecassino. Ele tinha cinco anos de idade quando foi colocado neste mosteiro, mesmo nunca tomando o hábito dos beneditinos. Aos catorze ele foi estudar na universidade de Nápoles, onde pela primeira vez conheceu a filosofia aristotélica. Tudo isto era parte da carreira que seus pais e familiares tinham projetado para ele. ~,ias em 1244 ele decidiu se tornar dominicano. A nova ordem ainda estava nos seus primeiros anos, e seus frades mendicantes eram mal vistos pela gente abastada. Por isto sua mãe (seu pai tinha morrido pouco antes) e seus irmãos fizeram todo o poss(vel para obrigá-lo a abandonar sua decisão, Vendo que a persuasão não tinha sucesso, seqüestraram-no e o encarceraram em um antigo castelo da família. Ali ele esteve recolhido por mais de um ano, enquanto seus irmãos o ameaçavam e tentavam dissuadi-lo com todo tipo de tentações. Por fim ele conseguiu fugir, terminou seu noviciado entre os dominicanos, e foi estudar em Colônia, onde Alberto, o Grande estava ensinando. Quem o conhecia antes não poderia


A atividade teológica /147

adivinhar o gênio que estava adormecido nele. Ele era grande, grosseiro e tão carrancudo que seus companheiros zombavam dele chamando-o de "0 boi mudo". Mas pouco a pouco sua inteligência brilhou através do seu silêncio, e a ordem dos dominicanos se dedicou a cultivá-Ia. Com este propósito ele passou a maior parte da sua vida em cfrculos universitários, particularmente em Paris, onde foi feito mestre em 1256. Sua produção literária foi muitíssimo extensa. Suas duas obras mais conhecidas são a Suma contra gentios e a Suma teológica. Mas além disto ele produziu um comentário sobre as Sentenças, vários sobre as Escrituras e sobre diversas obras de Aristóteles, um bom número de tratados filosóficos, as conhecidas "questões disputadas", e um sem-número de outros escritos. Ele morreu em 1274, quando contava apenas cinqüenta anos de idade, e seu mestre Alberto ainda vivia. Não podemos abordar aqui toda a filosofia e teologia "tomista" (dá-se este nome à escola que ele fundou). Basta tratar da relação entre fé e razão, das suas provas de existência de Deus, e da importância da sua obra em séculos posteriores. Quanto à relação entre fé e razão, Tomás segue a diretriz traçada por Alberto, mas define sua posição com mais clareza. Na sua opinião há verdades que estão ao alcance da razão, e outras que estão acima dela. A filosofia se ocupa somente das primeiras. Mas a teologia não se ocupa somente das últimas. Isto porque há verdades que a razão pode demonstrar, mas que são necessárias para a salvação. Já que Deus não limita a salvação a pessoas que têm dotes intelectuais elevados, estas verdades necessárias para a salvação, mesmo quando a razão pode demonstrá-Ias, têm sido reveladas. Portanto estas verdades podem ser estudadas tanto pela filosofia como pela teologia. Tomemos como exemplo a existência de Deus. Sem crer que Deus existe não é possível se salvar. Por isto Deus revelou sua própria existência. A autoridade da igreja é suficiente para fazer crer na existência de Deus. ~inguém pode se desculpar e dizer que esta verdade requer yrande capacidade intelectual para sua demonstração. A existência de Deus é um artigo de fé, e a pessoa mais ignorante pode aceitá-Ia simplesmente baseado nisto. Mas isto não quer dizer que esta existência está acima da razão. A razão pode demonstrar o que a fé aceita.


148/ A era dos altos ideais

Portanto, a existência de Deus é tema tanto da teologia como da filosofia, mesmo que cada uma delas chegue a ela por seu próprio caminho. E ainda mais, a investigação racional nos ajuda a compreender mais completamente o que aceitamos pela fé. Esta é a função das famosas cinco vias que São Tomás segue para provar a existência de Deus. Todas estas vias são paralelas, e não é necessário seguir a todas. Basta dizer que elas começam com o mundo que conhecemos através dos sentidos, e dali levam à existência de Deus. A primeira via, por exemplo, é a do movimento, e diz simplesmente que o movimento do mundo deve ter uma causa inicial, que é Deus. a interessante é comparar estas provas da existência de Deus com a de Anselmo que expomos no começo deste capítulo. O argumento de Anselmo desconfia dos sentidos, e por isto parte da idéia de Ser Supremo. Os de Tomás seguem um caminho totalmente diferente, pois partem das informações dos sentidos, e delas levam à idéia de Deus. Isto é conseqüência característica da inspiração platônica de Anselmo contra a aristotélica de Tomás. O primeiro crê que o verdadeiro conhecimento está exclusivamente no campo das idéias. O segundo crê que este conhecimento parte dos sentidos. A importância de São Tomás para o curso posterior da teologia foi enorme, em parte devido à estrutura do seu pensamento, mas sobretudo à maneira com que soube unir a doutrina tradicional da igreja com a nova filosofia. Quanto ao primeiro, a Suma teológica tem sido comparada com uma enorme catedral gótica. Como veremos no próximo capítulo, as catedrais góticas chegaram a ser imponentes edifícios em que cada elemento da criação, desde o inferno até o céu, tinha seu lugar, e onde todos os elementos existiam em perfeito equil (brio. Da mesma forma a Suma Teológica é uma imponente construção intelectual. Mesmo quem não concorda com o que Tomás diz nela não poderá negar sua beleza arquitetônica, sua simetria onde tudo parece se encaixar no lugar certo. Mas a importância de Tomás deve-se sobretudo à maneira com que soube fazer uso de uma filosofia que outros encaravam como uma ameaça séria à fé, e que ele converteu em ins-


A atividade teológica / 149

trumento nas mãos da mesma fé. Durante séculos a orientação platônica tinha dominado a teologia da igreja ocidental, em conseqüência de um longo processo que estivemos narrando no curso da nossa história. Mas em todo caso, depois que a teologia de Agostinho se impôs no Ocidente, junto com ele se impôs a filosofia platônica. Esta filosofia tinha grandes valores para o cristianismo, principalmente em suas primeiras lutas contra os pagãos. Nela falava-se de um Ser Supremo único e invisível. Nela falava-se de outro mundo, superior a este que nossos sentidos percebem. E nela falava-se, em fim, de uma alma imortal, que o fogo e as feras não podiam destruir. O platonismo, entretanto, encerrava dentro de si também graves perigos. O mais sério destes era a possibilidade de os

Disputa de São Tomás com os hereges, uor Fttlppino

l.ippt, Se bem que

o debate aqui representado nunca ocorreu, este quadro descreve adequadamente o esptrito da teotoçie de São To nuis , que enfrentou teotâçicos e filosóficos de todo tipo.

desafios


150 / A era dos altos ideais

cristãos se afastarem cada vez mais do presente mundo, que de acordo com o testemunho bíblico é criação de Deus. Também existia o perigo de a encarnação, a presença de Deus em um ser humano de carne e osso, ficar relegada a segundo plano, pois a perspectiva platônica levava os que a seguiam a se interessar não por realidades temporais, que podem ser colocadas em momentos particulares da história humana, mas por verdades imutáveis. Como personagem histórico Jesus Cristo, então, estava fadado a desaparecer, enquanto a atenção dos teólogos se concentrava no Verbo eterno de Deus. a advento da nova filosofia ameaçava, então, boa parte do ediffcio que a teologia tradicional tinha construído, com a ajuda do platonismo. Por isto foram muitos os que reagiram violentamente contra Aristóteles, proibindo que seus livros fossem lidos ou suas doutrinas ensinadas. Esta reação era normal por parte dos que viam perigar sua maneira de entender a fé. E, todavia, a teologia que Tomás propôs, mesmo em meio à oposição de quase toda a igreja do seu tempo, mais tarde foi reconhecida como a melhor expressão da doutrina cristã.


VIII Testemunhos de pedra Sempre estive convicto que o que há de mais precioso e sublime deve ser dedicado sobretudo à administração da santa eucaristia. . .. Se por algum milagre fôssemos transformados em serafins e querubins, ainda assim não poderíamos oferecer serviço digno e suficiente para uma Vítima tão grande e inefável. São Dionísio Os séculos que expressaram seus ideais elevados em movimentos de reforma monástica e papal, no empreendimento das cruzadas, e na teologia escolástica, expressaram-nos também nos ediffcios que dedicaram ao serviço de Deus. Assim como a "era dos mártires" nos legou seu testemunho escrito em sangue, a "era dos altos ideais" nos deixou o seu escrito em pedra. Em uma época utilitarista como a nossa, em que o valor das coisas é medido pelo proveito imediato que podem proporcionar, aquelas igrejas constru ídas por nossos antepassados na fé nos lembram que há outras maneiras de encarar a vida e seus valores. Olhadas da nossa perspectiva, aquela era e as pessoas que nela viveram deixam muito a desejar; mas olhadas à luz daquelas igrejas e do seu testemunho, também nossa era e nossa dedicação deixam muito a desejar. As igrejas da Idade rv.édia tinham dois propósitos principais, um de didática e o outro de culto. O propósito didático


152 / A era dos altos ideais

compreendemos recordando que era uma época em que os livros eram escassos, bem como os que sabiam lê-los. Nesta situação as igrejas se transformaram nos Iivros dos analfabetos. Nelas tentava-se apresentar toda a história b íbl ica, a vida dos grandes mártires da igreja, os vícios e virtudes, as lendas piedosas, e tudo que pudesse ser útil à vida religiosa dos fiéis. Se nós ficamos confusos com muitas destas igrejas antigas, isto em parte é porque não sabemos ler seu simbolismo. Mas os que viveram naquela época conheciam os mínimos detalhes da sua igreja, onde seus pais e avôs lhes tinham explicado e contado desde criança as histórias maravilhosas dos Evangelhos, dos santos e das virtudes, que eles por sua vez tinham ouvido de gerações anteriores. O propósito de culto destas mesmas igrejas está expresso na citação que inicia este capítulo. Através da "era das trevas"

o

alto conceito em que se tinha a eucaristia deu lugar a lendas como a que é representada nesta gravura. Conte-se que acendo um grupo de incrédulos marchaVB atrás da procissão do sacramento, zombando dele, uma ponte desabou debaixo deles, e todos morreram afogados.


Testemunhos

de pedra / 153

tinha se desenvolvido um conceito de comunhão que a relacionava mais com a crucificação que com a ressurreição, ao mesmo tempo em que predominava o pensamento que no ato da consagração o pão deixava de ser pão e o vinho deixava de ser vinho, convertendo-se em corpo e sangue de Cristo. Em sua forma explícita esta maneira de encarar a comunhão é a chamada doutrina da "transubstanciação", que foi oficialmente promulgada somente no IV concílio de Latrão, em 1215. Mas muito tempo antes da sua declaração oficial esta doutrina já era a opinião comum do povo e do clero. Chegou-se inclusive a pensar que a celebração da comunhão era em certo sentido uma repetição do sacrifício de Cristo, que não sofria nele, mas cujos méritos eram aplicados diretamente aos presentes e às pessoas cujo nome era citado na missa. Tudo isto implicava em que a igreja em que era celebrado um ato tão prodigioso deveria ser digna dele. A igreja não era simplesmente um lugar de reunião, nem um lugar onde os fiéis adoravam a Deus. A igreja era um lugar onde o Grande Milaqre acontecia, e onde era guardado o corpo de Cristo (a hóstia consagrada) mesmo quando os fiéis não estavam presentes. Portanto, o que uma cidade ou aldeia tinha em mente ao construir uma igreja era edificar um estojo para guardar e honrar sua jóia mais preciosa. A arquitetura românica

No início da "era dos altos ideais", e durante boa parte dela, a arquitetura mais comum era a que os historiadores chamam de "românica". Neste estilo a planta das igrejas geralmente era a mesma das bas ílicas que discutimos anteriormente. Consistiam de uma grande nave, freqüentemente com outras naves paralelas, e duas alas transversais, que davam à planta a forma de uma cruz. Por último, bem do lado oposto à porta principal, o abside semicircular rodeava o altar. A modificação mais importante que o estilo românico introduziu nesta planta foi prolongar esta extremidade da igreja onde ficava o abside. Isto porque, a partir do século VI, estava se concretizando uma distinção cada vez mais exagerada entre o clero e o povo, enquanto a participação deste no culto se tornava cada vez mais


154 /

A era dos altos ideais

passiva, e os coros de monges ou cônegos ocupavam seu lugar. A reforma de Cluny, por exemplo, enquanto tornava mais austera a vida nos mosteiros, complicou a liturgia a tal ponto que somente os monges que se dedicavam exclusivamente a ela podiam segui-Ia e cantar todos os salmos e hinos. Lembremo-nos também que era impossível que todos os presentes tivessem hinários ou ordens de culto. Portanto, quando havia mais hinos do que uma pessoa média podia memorizar, os únicos que podiam cantar eram os monges ou cônegos que formavam o coro. Diante destes estava o facistol, um grande atril ou estante em que eram colocados os livros litúrgicos, escritos em letras de tamanho suficiente para serem Iidos de certa distância. As antigas basílicas tinham tetos de madeira, e a arte românica colocou em seu lugar tetos de pedra. A maneira caractedstica de sustentar estes tetos era a "abóboda de cano". Esta nada mais era que um arco de meio ponto repetido tantas vezes quantas fosse necessário para formar uma abóboda. O arco de meio ponto é um semicírculo de pedra, constru ído de maneira que o peso das pedras de cima é transferido mais por um ernpuxo lateral que vertical (veja a figura). Portanto, para

Arco de meio ponto


Testemunhos de pedra / 155

sustentar este arco, ou uma abóboda edificada do mesmo modo, é necessário ter certeza que as paredes não vão se abrir. Esta é a razão das grossas paredes que caracterizam a arquitetura românica. Por causa da necessidade de reforçar as paredes laterais a luz interior era escassa. Parte disto freqüentemente era remediado abrindo janelas na fachada e no abside. Em muitos casos a principal fonte de luz era um grande vitral em forma de roseta, colocado diretamente acima da porta principal. As janelas nas paredes laterais tinham de ser pequenas para não enfraquecer a estrutura, que muitas vezes era reforçada com contrafortes (grossos muros exteriores, perpendiculares às paredes, que absorviam a pressão das abóbodas). O arco de meio ponto era muito usado na arquitetura românica. Em muitos casos uma série decrescente de arcos circundava a porta, o que produzia um efeito sumamente artístico, como podemos ver, por exemplo, na igreja de São Pedro, em Avila. Em outros casos utilizava-se o arco de meio ponto para adornar o exterior da igreja, como na catedral de Pisa. Quando os arcos se apoiavam em colunas, os capitéis, em vez de seguir os estilos clássicos da Grécia e de Roma, eram grandes pedras em que eram esculpidos animais, figuras mitológicas, cenas religiosas, e outros temas. Para evitar a monotonia da pedra estas esculturas' eram pintadas com diversas cores. Em contraste com as antigas basflicas, as igrejas românicas tinham uma torre ou campanário. No princfpio esta torre era uma construção à parte, como a famosa torre inclinada de Pisa. Mas logo se começou a incluí-Ia no edificio principal. A impressão geral que o estilo românico causa, principalmente em suas formas menos elaboradas, é de uma grande solidez. A ornamentação é sombria. A espessura das paredes, os pesados contrafortes, as janelas pequenas e a pequena altura do ediffcio em proporção à planta parecem servir muito bem como comparação com o esp frito pesado e áspero de personagens da época, como EI Cid, Hildebrando e Pedro, o Venerável.


156 / A era dos altos ideais

A arquitetura gótica Em meados do século XII surgiu um tetânico, que recebeu o nome de "gótico". em uma época em que a Idade 1\1édia era mais que um período de barbárie, e por

novo estilo arquiO nome foi cJado considerada nada isto seu principal


Testemunhos de pedra / 157

A catedral de Pisa, com sua famosa torre inclinada, é um ma{ln/fico exemplo de erouiteturs românica, com bastante repetição dos arcos de meio

i.onto,

Igreja de São Pedro, em Ávila. Ooser ve os arcos de meio ponto, em série decrescente, que formam o portal. Acima dele uma grande roseta, também cercada de arcos de meio ponto. Observe também os contrafortes que sustentam a parede lateral.

feito artfstico foi chamado "gótico", ou seja, procedente dos godos. Quando os historiadores mudaram sua opinião sobre a Idade 1\1éclia, este nome já estava tão qeneralizado que continuou sendo usado, se bem que não mais em sentido pejorativo. Apesar das muitas diferenças entre os dois estilos, o gótico deve boa parte da sua origem ao românico. A planta das


158 / A era dos altos ideais

Os capitéis eram adornados com figuras de animais ou de monstros, B pintados com a/verses cores.

igrejas góticas geralmente é igual à das rornarucas, apesar de se ter tornado mais complexa com o passar dos anos. Seus tetas também são abóbadas de pedra, se bem que constru ídas de acordo com um prindpio diferente do das abóbadas de cano. Já foi discutido muito sobre as origens do gótico, se se trata de resultado de novas técnicas, ou de ideais diferentes em termos de beleza arquitetônica. O certo, aparentemente, é que na criação e desenvolvimento do gótico foi conjugado um novo gosto com a possibilidade de expressá-lo em pedra. Esta possibilidade surgiu principalmente com as abóbadas de arestas, que mais tarde deu seu lugar à de ogivas. A abóbada de arestas em suas origens era uma variante da abóbada de cano. Mas em vez de consistir de uma série de arcos de meio ponto


Testemunhos de pedra /159

em sequencia, que formavam uma grande abóboda de forma cilíndrica, nela duas séries de arcos se entrecruzavam perpendicularmente. Desta maneira o peso não recaía sobre as grossas paredes laterais, mas sobre as quatro colunas das esquinas. Repetindo-se este processo várias vezes, era possível construir uma longa nave cujo teto não se apoiava sobre as paredes, mas sobre a série de colunas. Naturalmente o em puxo lateral sobre as colunas era grande, pois toda a força antes concentrada sobre as paredes agora se concentrava nelas. Para contrabalançar esta pressão eram necessários contrafortes ainda maiores que os primeiros. lvtas o gótico também se caracterizou por um arco diferente do românico. Enquanto este se baseava no arco de meio ponto, o gótico se baseou no ogival, onde dois arcos se entrecruzavam terminando em uma ponta, como o olho humano. Com base neste arco foi produzida a abóboda de ogivas, semelhante à de arestas anterior, mas que podia ser muito mais alta sem aumentar o empuxo lateral sobre as colunas. Colocando estas abóbodas em sene era possível construir longas naves com tetos elevados, apoiados somente sobre colunas relativa-

o

abside de São Pedro, em Ávila, mostra as ja/){ilas com arcos de meio ponto. Observe o campanário, de pequena altura, que faz parte do eaittcio,


160 / A era dos altos ideais

mente delgadas. As arestas destas abóbodas ficavam ressaltadas na pedra, inclusive ao longo da coluna até o solo,' dando assim a todo o edifício uma impressão de grande verticalidade. Com este mesmo propósito as colunas eram feitas muito mais altas que as românicas, e por isto os capitéis, longe do alcance da vista, perderam a importância decorativa que tinham antes. Já que todo o edifício descansava sobre as colunas, as paredes já não eram mais necessárias como elementos de suporte, e foi possível transformá-Ias em grandes vitrais, formados com pedaços de vidro colorido. O período românico já tinha

Arco ogival.


Testemunhos de pedra / 161

As arestas das abóbadas eram projetadas em pedra, continuando ao longo da coluna até o chio, dando assim a todo o edii/cio uma impressão de verticalidade. Foto JM.

usado o vidro, mas sem poder fazer muito uso dele por causa do pequeno tamanho das janelas. O gótico, com suas novas possibilidades, deu rédea solta a esta arte, que logo produziu obras primas. Milhares de pedaços de vidro de matizes varia-


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Os vitrais coloridos da vsn. aos edit icios uma iluminação clara e ténue. Foto JM.

ao mesmo tempo

Vitral da catedral de Colônia, em que está representada n eços.

a adoração dos


Testemunhos de pedra / 163 dos eram unidos mediante um esqueleto de cobre, produzindo cenas em que apareciam os grandes personagens de ambos os testamentos, os mártires da igreja, os mestres ilustres, os vícios, as virtudes e um sem número de símbolos cristãos. Além do seu efeito direto os vitrais góticos davam ao edifício uma iluminação clara e ao mesmo tempo surpreendente. Hestava ainda o problema do enorme empuxo lateral que as altas abóbodas exerciam sobre as colunas. No estilo românico este problema tinha sido resolvido com contrafortes exteriores, que sustentavam as paredes. O gótico, no seu afã de destacar a verticalidade do edifício, separou os contrafortes da parede, unindo-os a ela por meio de arcos que apoiavam precisamente o ponto onde o em puxo lateral era maior. Estes arcos de apoio são outra caracterfstica essencial do gótico. Todo o conjunto foi, então, decorado com uma série de outros elementos que destacavam as Iinhas verticais, ou serviam para lhe dar o aspecto frágil de um encaixe. I\s fachadas eram decoradas com torres altas em que também predominava a forma ogival, e que terminavam em pontas que tenColunas de apoio da cetedrs! de Sevilha.


164 / A era dos altos ideais

Estrutura gรณtica. D) Contraforte.

A) Abรณbada.

B) Nervo de pedra. C) Arcos de apoio.


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tavam alcançar o céu. No centro do edifício freqüentemente era acrescentada outra torre ou "flecha", com a mesma aparência e intençâc. Os arcos de apoio eram adornados com "gárgu las", figu ras de an imais ou de monstros por cuja boca desaguavam os tetas. As portas também eram decoradas com

Cetedrel

de Cotânie , viste lateral,

i

nrserw a tte ct:« no centro

Gárgula, São João dos Reis, Toledo.

do eait icio


166 / A era dos altos ideais

Portal da catedral de Reims,


Testemunhos de pedra / 167

arcos ogivais em série decrescente, como tinha sido feito antes com os arcos de meio ponto, no estilo românico. O resultado final era, e ainda o é hoje em dia, imponente. A pedra parecia adquirir uma leveza inusitada, elevando-se ao céu. Todo o edifício, tanto em seu interior como no exterior, era um livro enorme, onde estavam refletidos todos os mistérios da fé e dos seres da criação. O ambiente interior, com suas naves longas e esbeltas, colunas que pareciam se perder nas alturas, vitrais policrômicos, e seu jogo de luzes, parecia ser o pano de fundo adequado para o grande mistério eucarístico que ali ocorria. Nas catedrais góticas os ideais elevados da época foram modelados em pedra, e deixaram seu testemunho para os séculos vindouros. Houve casos como o da catedral de Beauvais, cuja abóboda ruiu quando o ideal da verticalidade levou os arquitetos a tentar elevá-Ia além dos Iimites das leis físicas. E talvez este esforço fracassado foi símbolo aos tempos em que os ideais de Hildebrando, Francisco e outros tropeçaram na resistência da natureza humana.


168/ A era dos altos ideais

Catedrais got/ces de três ps tses : 1) Chertres, Itália,· 3) Burgos, na Espanha.

na França; 2) Milão, na


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IX O ápice do papado Tu és tanto o herdeiro como a herança do mundo. . .. Mas eu creio que o que tens recebido não é tua possessão, mas tua administração. . .. Por isto, o que eu mais temo que possa te suceder não é o veneno ou a espada, mas os desejos de dominar. Bernardo de C/arava/ a Eugênio ///

No capítulo III seguimos a história do papado em seus conflitos com o poder imperial, até o momento em que Calixto II e Henrique V chegaram ao acordo de Worms. Calixto morreu em 1124, e Henrique em 1125. Podemos dizer que a partir de então o papado irá aumentando seu poder, enquanto o I mpério está lentamente decaindo. Este processo, todavia, não era cont(nuo, mas tinha flutuações nos dois partidos, até que o papado chegou ao ápice cio seu poder com I nocêncio I I I.

o papado

sob a influência de São Bernardo

Quando Calixto morreu, duas poderosas famílias romanas, os Frangipani e os Pierleoni, disputaram o poder. Cada uma elegeu seu próprio papa, rr.as felizmente o candidato dos Pierleoni renunciou para evitar o cisma. C papa restante, Honório I I, garantiu a autenticidade da sua eleição também renunciando, para ser eleito novamente pelos carc'cais, Pouco depois, quando da morte de Henrique V, o trono imperial ficou vago, e sua


172 / A era dos altos ideais sucessão em disputa. Honório apoiou Lotário da Saxônia, que prometeu respeitar o acordo de Worms. Quando mais tarde foi restaurada a paz no Império o papado ficou em boa posição, pois o imperador devia a Honório boa parte do seu êxito. ~,i1asa morte de Honório provocou novo cisma. Um grupo de cardeais elegeu I nocêncio II, enquanto outro (ao que parece, a maioria) nomeou Anacleto II. Este último contava com o apoio dos Pierleoni e do duque da Sicíl ia. I nocêncio, por seu lado, era o papa dos Franyipani e do irnperacor. Cs dois partidos se apressaram em obter o reconhecimento dos demais países. Na França o rei Carlos, o Gordo, conVOCGU um concílio que se reuniu em Etampes, e que logo requereu a presença cio famoso abade de Claraval, Bernardo. Este acudiu em obediência ao mandado do rei e dos prelados, que então lhe declararam que tinha decidido unanimemente confiar a ele a decisão quanto a quem era o papa legítimo. Sobre o monge que desejara se dedicar à vida contemplativa de 1\1aria recaíam agora as responsabilidades mais graves de Iv.arta. Bernardo decidiu a favor de I nocêncio, e toco o reino aceitou sua' decisão. Fugindo de Roma, onde o poder dos Pierleoni era uma ameaça constante, I nocêncio foi para a França, onde foi recebido com toda a pompa pelo rei. Aquele exílio do papa na França era um dos primeiros augúrios do que sucederia séculos depois, quando o papado ficaria subordinado aos interesses franceses. r..·;as naquele momento o que aconteceu foi que I nocêncio começou uma marcha triunfal que mais tarde destruiria seu rival. Henrique I da Inglaterra não tinha ainda decidido de que lado ficar. Seus prelados o aconselharam a apoiar Anacleto. em parte porque o rei da França apoiava Inocêncio, e os dois países viviam em constante tensão. Mas Bernardo foi se entrevistar com Henrique, e lhe fez ver que estas considerações não eram válidas quando se tratava de questões espirituais, e acrescentou que, se o que o preocupava era o possível pecado de apoiar o papa errado, "ocupe-se com seus outros pecados, e deixe este cair sobre minha cabeça". Contra o que pareciam ser seus melhores interesses, o rei da I nglaterra se declarou a favor de Inocêncio.


o ápice

do papado / 173

Da Alemanha esperava-se que o imperador apoiasse Inocêncio, e a confirmação chegou enquanto ele estava na França, em companhia de Bernardo. Depois de coroar em Reims o rei da França e seu filho, Inocêncio partiu para a Alemanha. No seu caminho todas as grandes cidades lhe abriram as portas, rendendo-lhe homenagem. Junto a ele, companheiro inseparável, andava Bernardo. Chegando à Alemanha Lotário os recebeu com todo tipo de honras. Seu propósito era aproveitar a difícil situação em que Inocêncio estava para desfazer o acordo de \t':orrr1s, e voltar a reclamar o direito de investidura. Parece que o papa vacilou, ao se ver nas mãos do imperador. r\i;as Bernardo enfrentou o soberano, e somente com a autoridade da sua pessoa e seu prestígio ele o obrigou a desistir do seu propósito. O único lugar onde Inocêncio não foi recebido com granc'e pompa e alvoroço foi a abad ia de Claraval. AI i não ressoaram campainhas, os monges não vestiram seus melhores trajes, nem o ouro brilhou. Pelo contrário, tudo seguiu seu curso normal, e conta-se que muitos monges nem sequer levantaram os olhos do chão para ver o papa. A pompa era necessária para impressionar os senhores do mundo. Mas os monges de Claraval não precisavam dela para honrar o sucessor de um pescador galileu, o representante do carpinteiro que entrou em Jerusalém montado em um jumento. Por fim, em 1133, com o apoio das tropas imperiais, Inocêncio pôde regressar a Roma por uns poucos meses. Ali ele coroou Lotário em Latrão. Mas quando este e a maior parte dos seus exércitos voltaram para a /vlernanha Inocêncio se reti rou para Pisa, onde passou mais de três anos. Mesmo não residindo em Roma, quase toda a Europa o reconhecia papa legítimo, e somente Roma e o sul da Itália reconheciam Anacleto. Em 1137, com a ajuda do imperador, Inocêncio pôde voltar para Roma. [\;0 castelo de Santo Angelo, Anacleto ainda resistia, mas estava cada vez mais ilhado. Quando da sua morte em 1138 os Frangipani elegeram seu sucessor Vítor VI, cujas pretensões papais não duraram muito, pois não restava dúvida de que os partidários de Inocêncio tinham vencido. Lotário morrera em fins d(' 113/, e a Alemanha estava dividida entre o partido d s Ilolluflslilulen e a casa da Baviera.


174/ A era dos altos ideais

Por diversas razões o grupo dos Hohenstaufen recebeu o nome de "gibelinos", e o grupo oposto de "guelfos". Esta divisão imediatamente teve implicações na Itália, onde os guelfos eram o partido papal. Quando Conrado III Hohenstaufen finalmente conseguiu se apossar do trono os guelfos italianos, com o apoio de I nocêncio, continuaram tentando minar o poder imperial no norte da Itália. Com este propósito o papa apoiou o movimento republicano, inspirado nos ensinos de Arnaldo de Bréscia, que estava sendo difundido pela região. Com grande alvoroço dos guelfos várias cidades imperiais se rebelaram, e se proclamaram repúblicas. Mais tarde esta pol ítica redundou em preju ízo para o papa, pois as idéias de Arnaldo foram penetrando no sul da Itália, onde estavam os estados pontifícios. Um destes, a cidade de Tívoli, se declarou independente do poder papal, e se organizou no estilo republicano. Os romanos, sob o comando de I nocêncio, atacaram e tomaram Tívoli, mas quando o papa se negou a deixá-los saquear a cidade o povo de Roma se reuniu no capitólio e se constituiu em república, sob um senado eleito pelo povo. Ao mesmo tempo que reconheciam a autoridade espiritual do papa, negavam-lhe o poder temporal. E apelaram ao Imperador para que regressasse a Roma e restaurasse o verdadeiro Império Romano, com sua capital na Cidade Eterna e o papado submetido a ele. I nocêncio morreu antes de poder responder ao desafio dos republicanos, e seu sucessor foi Celestino II, de quem, por ser amigo de Arnaldo de Bréscia, se esperava que pudesse chegar a um acordo com os republicanos. Mas ele morreu poucos meses depois. C próximo papa, Lúcio II, procurou ajuda com Rogério da Sicília, que desejava que o papa o coroasse rei. Os republicanos, por sua vez, se aliaram à farnrlia dos Pierleoni, dando o título de "patrício" a um de seus membros, e negando-se a conceder ao papa qualquer autoridade temporal. Lúcio morreu de uma pedrada, quando suas tropas atacavam o Capitólio. Seu sucessor, Eugênio III, surpreendeu o mundo. Na época em que ele foi eleito ninguém queria ser papa, por causa daquela situação turbulenta; Eugênio, um velho abade cisterciense, amigo de Bernardo, não parecia ter a força nem a firmeza


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necessarras para enfrentar os republicanos. Além dos Alpes, Bernardo recebeu com desgosto a notícia da eleição de seu amigo para o pontificado. Mas apesar disto lhe enviou um longo tratado em que lhe dava conselhos sobre como deveria conduzir seu cargo. Eugênio, por seu lado, reuniu as tropas de diversas cidades próximas e derrotou os romanos, em cujo auxílio tinha acudido o próprio Arnaldo de Bréscia com um contingente su íço. Eugênio entrou em Roma, cujos cidadãos se declararam dispostos a obedecer-lhe, desde que ele traísse seus antigos aliados. Antes de fazer isto Eugênio se retirou da cidade, primeiro para Viterbo e depois para Siena, de onde continuou dirigindo a vida da igreja na Europa, sempre com a ajuda de Bernardo, que na época estava pregando a segunda cruzada, servindo de árbitro entre reis e arcebispos, e comovendo a Europa com sua palavra inflamada. r,:as o grande feito de Eugênio foi solapar a popularidade de Arnaldo e da república. Por causa da grande revolução que tinha tido lugar, Roma não gozava do prestígio e das vantagens econômicas de ser o centro religioso da Europa, e muitos romanos começaram a evidenciar seu ressentimento para com os Iíderes republicanos. Enquanto isto, Eugênio conquistava as simpatias do povo. Já que a república não lhe negava o título de bispo da cidade, mas somente o poder temporal, o papa visitou Roma em duas ocasiões, ganhando cada vez mais apoio popular com sua humildade, retidão e paciência. Quando ele morreu em 1153 a república já encontrava muitas dificuldades para se manter.

Sob a sombra de Frederico Barbaroxa Pouco antes da morte de Eugênio, faleceu também o imperador Conrado III, e sucedeu-lhe Frederico I Barbaroxa, o maior imperador que a Europa conheceu desde o tempo de Carlos Magno. Enquanto Frederico ocupou o trono o papado viveu à sombra deste grande monarca, cuja ambição parecia não ter limites. Depois do breve pontificado de Anastácio I V ocupou a cátedra de São Pedro, Adriano IV, o único inglês que alcançou esta dignidade. Quando um dos cardeais foi morto em um


176 / A era dos altos ideais tumulto em Roma, Adriano interditou a cidade. Privada de qualquer serviço eclesiástico a velha capital da igreja não tardou em capitular. Além disto ela começava a se cansar de Arnaldo e seus seguidores, dos quais muitos eram estrangeiros. Mais tarde a república foi abolida, Arnaldo partiu para o exílio, e Adriano entrou triunfalmente na cidade. Pouco depois Arnaldo foi raptado e trazido de volta para Roma onde, temendo uma rebelião popular, o papa e os seus o mataram e lançaram suas cinzas ao Tibre. Enquanto isto Frederico Barbaroxa tinha cruzado os Alpes à testa de um grande exército para reclamar o título de rei da Itália. Todas as cidades republicanas do norte se submeteram, e os republicanos de Roma lhe enviaram uma petição de apoio contra Adriano. Este pedido foi um erro, pois Frederico de forma alguma simpatizava com a causa republicana, e despediu encolerizado os delegados. Depois marchou contra Roma, onde foi coroado por Adriano. Mas os romanos resistiam à autoridade imperial, e no conflito resultante várias centenas deles foram mortos. Quando Frederico decidiu voltar para a Alemanha, Adriano viu-se obrigado a deixar Roma, para nunca mais voltar. Mesmo que a Europa, tentando contrabalançar o crescente poder de Frederico, acatava sua autoridade pontifícia, a entrada em Roma lhe estava vedada. Começou assim uma luta surda entre o papa e o imperador, em que cada um dos contendentes incentivava o movimento republicano nos territórios do outro. Enquanto Adriano apoiava o movimento republicano na região da Lombardia, onde as cidades tentavam declarar sua independência do Império, o imperador favorecia sentimentos semelhantes entre o povo romano. Alexandre III, o sucessor de Adriano, teve de enfrentar um antipapa eleito pelos partidários do imperador. Este convocou um grande concílio em que seria decidido quem seria o verdadeiro papa. Alexandre se negou a assisti-lo, e declarou que o imperador não tinha autoridade para tanto. Seu rival, que tinha tomado o nome de Vítor IV, cedeu aos desejos imperiais, e por isto o concílio depôs Alexandre e declarou que Vítor era o papa leqítimo. Só que o restante da Europa não


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fez caso do concílio imperial. Somente o Império e onde este fazia sentir seu poder (Hungria, Boêmia, Noruega e Suécia) tomaram o partido de V ítor, enquanto o restante da Europa, bem como o Império Bizantino e o Reino de Jerusalém, se declararam favoráveis a Alexandre. Na Itália o conflito era geral, e as cidades se declaravam a favor de um ou de outro papa de acordo com a proximidade das tropas imperiais. Por causa do caos que reinava na Itália, Alexandre partiu para a Franca, onde recebeu homenagem do rei deste país e do da Inglaterra. Quando Vítor IV morreu, os que o tinham apoiado elegeram outro antipapa, que tomou o nome de Pascoal III; a este sucedeu Calixto III depois da sua morte. Quando por fim Alexandre decidiu voltar para Roma o clero e o povo o receberam alvoroçados. Pouco tempo depois Frederico atravessou os Alpes e atacou a cidade, e o papa teve de fugir disfarçado. O triunfo do imperador e do seu partido parecia definitivo quando irrompeu uma epidemia terrível entre seus soldados, que morriam aos milhares. As cidades' da Lombardia aproveitaram a ocasião para se rebelar. Os restos do exército imperial cons.eguiram atravessar os Alpes a duras penas para se refugiar na Alemanha, enquanto seu Iíder, como pouco antes o papa o fizera, fugia disfarçado. Quando, três anos mais tarde, Frederico voltou para a Itália com um novo exército, a Liga Lombarda era tão poderosa que o derrotou na batalha de Legnano. Nestas circunstâncias não restou outra coisa a Frederico que fazer as pazes com Alexandre. O antipapa Calixto III, sem qualquer apoio, abdicou. Com benevolência exemplar Alexandre o perdoou, e logo lhe confiou cargos de importância. O povo romano, por sua vez, pediu ao papa que fixasse novamente sua residência em Roma. Durante toda esta luta a velha cidade tinha perdido boa parte do seu prestígio e dos seus rendimentos, que dependiam de existir nela o cabeça da cristandade ocidental. Alexandre entrou novamente em Roma em meio a grandes cerimônias e festejos. Uma vez dono do poder eclesiástico ele convocou um concílio que promulgou uma série de editos,


178 / A era dos altos ideais para desta forma continuar a antiga reforma de Hildebrando, que ficara interrompida por tanto tempo. Alexandre morreu em 1181, e os próximos cinco papas foram pessoas que pouco se distinguiram. Lúcio III teve de fugir de Roma, que se rebelara novamente. Urbano III, o Turbulento, foi ao mesmo tempo papa e arcebispo de ~.1ilão, onde se dedicou a fomentar a causa republicana. Enquanto isto o imperador Frederico deu um golpe diplomático de grande importância, casando seu filho Henrique com a herdeira do trono da Sicília. Até então a Sicília tinha sido o último recurso dos papas contra pretensões dos imperadores. Mas agora a casa dos Hohenstaufen possu ía também este reino. O próximo papa, Gregório VIII, reinou somente dois meses, e o fato mais notável do seu pontificado foi a notícia da queda de Jerusalém, que poucos dias antes tinha sido tomada por Saladino. A. ele sucedeu Clemente III, que pôde regressar a Goma, cuja população uma vez mais tinha se cansado do governo republicano. Durante seu pontificado Frederico Barbaroxa morreu afogado, como já vimos, ao falarmos da terceira cruzada. Celestino III, o quinto desta rápida sucessão de papas, coroou Henrique VI imperador (filho de Frederico e rei da Sicília). Henrique era um homem cruel e ambicioso, que sonhava em restaurar o velho Império Romano e destruir o que ele chamava de "papado gregoriano". Apesar de se encontrar quase totalmente cercado de territórios imperiais, Celestino teve a coragem de excomungar Henrique. A luta aberta parecia inevitável, e somente foi adiada porque o imperador tinha outros interesses mais urgentes, e morreu antes de poder responder ao desafio lançado pelo papa. Ele deixou como herdeiro uma criança de peito, Frederico. Três meses depois Celestino morreu. Inocêncio III Como o Império estava desorganizado por causa da morte inesperada de Henrique, os cardeais romanos puderam eleger um novo papa sem intervenção secular, e sem que houvesse um cisma. O novo papa, que na época tinha trinta e sete anos de idade, tomou o nome de I nocêncio III, e foi o pontífice mais poderoso que jamais ocupou a cátedra de São Pedro.


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A vruva de Henrique, Constância, temia que as diversas facções que logo surgiram na Alemanha tentassem destruir seu filho Frederico, herdeiro da coroa da Sicília. Para evitar isto ela colocou seu filho e seu reino sob a proteção de I nocêncio, e transformou a Sicília em um feudo do papa. Deste modo desaparecia a ameaça que este reino tinha representado para o papado no tempo de Henrique VI.

A corca

imperial, que também pertencera ao falecido Henrique, não era hereditária, razão pela qual logo surgiu a discórdia na Alemanha. O filho de Henrique, Frederico, era muito jovem para ser imperador. Por isto os partidários de casa dos Hohenstaufen elegeram Felipe, irmão de Henrique. r.,,;as seus opositores nomearam Oto, que logo contou com o apoio de Inocêncio. A verdade indubitável era que Felipe tinha mais direito ao trono, e que sua eleição tinha sido legal. 1\.1asapesar disto o papa se opôs a ele, declarando que, de acordo com a B (blia, Deus visita o pecado dos pais nos filhos, e que Felipe procedia da casa corrompida e repetidamente excomungada dos Hohenstaufen. Além disto, dizia Inocêncio, o papa tem autoridade sobre o imperador. Assim como Deus, o criador do universo, estabeleceu dois grandes luminares no firmamento, o maior para presidir sobre o dia e o menor para presidir sobre a noite, assim ele também estabeleceu dois luminares no firmamento da Igreja universal. ... O maior para que presida sobre as almas como dias, e o menor para que presida sabre os corpos como noites. Estas são a autoridade pontif fcia e o poder real. Por outro lado, assim como a lua recebe a luz do sol, ... assim também o poder real recebe da autoridade pontfficia o brilho da sua digninidade. Com base nisto I nocêncio pretendia ter autoridade para determinar quem deveria ser imperador, e por isto declarou que Oto era o pretendente legítimo. O resultado foi uma cruenta guerra civil que durou dez anos, e em que Felipe parecia prevalecer quando foi assassinado. Oto ficou dono da Alemanha, e a guerra parecia ter terminado. Mas o novo imperador não demorou ern romper com o papa que durante tanto tempo o tinha apoiado. Uma vez


180 / A era dos altos ideais

mais a causa da ruptura foi a questão da soberania sobre as cidades italianas, em que o imperador queria fazer valer a sua autoridade. Pouco depois da sua coroação em Roma suas relações com Inocêncio começaram a ficar cada vez mais tensas. O imperador decidiu se apoderar de Nápoles e da Sicflia, que teoricamente pertencia ao papa, pois o rei Frederico, como dissemos, era seu vassalo. Ao mesmo tempo ele começou a alentar o antigo partido republicano em Roma. Em resposta, Inocêncio excomungou o imperador, o depôs, e declarou que o legítimo herdeiro de Henrique VI era o jovem Frederico. Com o apoio do papa, Frederico atravessou os Alpes, apresentou-se na Alemanha, e arrebatou a coroa do seu tio, que quisera lhe tirar a da Sic ília, O resultado de tudo isto foi uma vitória estranha para o papado. Enquanto Inocêncio acabara por apoiar a restauração dos Hohenstaufen, inimigos tradicionais do papa, o novo rebento desta casa recebera a coroa com base na autoridade do papa de depor reis e imperadores. Portanto, apesar de Inocêncio reconhecer Frederico, este, o que era muito mais importante, com sua atuação reconhecia que Inocêncio tinha agido legitimamente depondo ato. Na França, Inocêncio interveio na vida matrimonial do rei Felipe Augusto. Este tinhá enviuvado, e em segundas núpcias se casou com a princesa dinamarquesa Ingeborg. Pouco depois ele a repudiou e tomou por esposa Agnes de Meran. Inocêncio repreendeu o rei, e quando isto não bastou ele interditou todo o país. Felipe Augusto convocou então um parlamento em que estavam presentes tanto os nobres como os bispos do reino. Quando este parlamento concordou com o parecer do papa, Felipe Augusto repudiou Agnes, e aceitou novamente Ingeborg, nas formas legais. A rainha deposta morreu pouco depois, em meio à mais intensa melancolia, enquanto a que tinha sido restaurada passou o restante dos seus dias se queixando que sua suposta restauração na realidade era um tormento. Mas em todo caso o papa fez valer sua autoridade sobre um dos reis mais poderosos da época. Na Inçlaterra reinava naquele tempo João Sem Terra, o irmão e herdeiro de Ricardo Coração de Leão. Se bem que as desordens matrimoniais de João tenham sido muito maiores


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que as de Felipe Augusto, I nocêncio não se atreveu a intervir, pois estas desordens ocorreram quando o papa precisava do apoio de João Sem Terra em seus esforços para colocar Oto no trono imperial. Pouco depois, quando esta questão ficou resolvida, o papa e o rei da I nglaterra entraram em choque por causa da questão de quem era o legítimo arcebispo de Canterbury. Quando ocorreu o cisma nesta sede, com dois arcebispos rivais, ambos apelaram a Roma. O papa simplesmente declarou que nenhum dos pretendentes era o leg(timo primaz da I nglaterra, e nomeou em seu lugar Estêvão Langton. João se negou a aceitar a decisão do papa, que primeiro o excomungou e depois o declarou deposto, convocando uma cruzada contra ele. Esta cruzada foi confiada a Felipe Augusto, o velho inimigo da Inglaterra, que rapidamente se dispôs a pôr em prática o decreto papal. Nestas circunstâncias, e temeroso de que muitos dos seus súditos não lhe eram leais, João Sem Terra se apressou em fazer pazes com o papa, submetendo-se às suas ordens e fazendo do seu reino um feudo do papado, como Constância tinha feito antes com o reino da Sicília. I nocêncio

que

Felipe

aceitou

preparava.

Os nobres inçleses

a submissão

e a partir

obrigaram

de João, deteve a cruzada

de então

defendeu

João Sem Terra a firmar

seu novo

a Carta Maflna.


182/ A era dos altos ideais aliado. Isto passou a ser particularmente necessarro porque os nobres ingleses, com o apoio de Estêvão Langton, obrigaram João a firmar a Carta Magna, que limitava o poder real em relação à nobreza. Inocêncio declarou que se tratava de uma usu rpação de poder. r.las todas as suas medidas não foram suficientes para obrigar os nobres a desistir da sua atitude. Na Espanha, Inocêncio interveio repetidamente através do seu legado Rainero. Pedro II, o Católico, rei de Aragão, tentou se casar com a irmã de Sancho VII de Navarra. Inocêncio se opôs a isto, pois ele tinha certo grau de parentesco com as duas fam ílias. Pouco depois Pedro, o Católico, foi coroado em Roma, na igreja de São Pancrácio, com a condição de que imediatamente se dirigisse para a igreja de São Pedro e ali se declarasse vassalo do papa, transformando o reino de Aragão em feudo papal. Isto causou muito ressentimento em Araqão, mas foi um grande triunfo para Inocêncio, que dizia que todos os territórios conquistados dos infiéis pertenciam ao papado. Uma das ironias desta história é que o rei de Aragão, conhecido como "o Católico", morreu na cruzada contra os albigenses, lutando do lado dos hereges contra as tropas do papa. Quando Afonso IX de Elão tentou selar sua amizade com Castela se casando com Berengária, a filha de seu primoirmão Afonso VIII de Castela, Inocêncio ameaçou interditar os dois reinos. Castela se livrou desta ameaça quando seu rei se declarou disposto a receber Berengária de volta. Mas o de Leão insistiu em seu casamento, do qual teve cinco filhos. Quando os bispos de Castela e Leão convenceram o papa que a pol ítica de interditar Leão servia para fortalecer a causa muçulmana Inocêncio retrocedeu em seu intento, mas excomungou o rei de Leão, proibindo que fossem celebrados os sacramentos em qualquer cidade onde o rei estivesse presente. Depois de longos anos de tensão entre Leão e Roma Berengária se retirou para Castela. Os filhos nascidos daquele matrimônio condenado pela igreja foram declarados leqítimos. E outra das ironias da história é que um deles, Fernando III de Castela e Leão, mais tarde recebeu o título de santo. Os casos que citamos são somente alguns poucos exemplos da pol ítica internacional de Inocêncio. Sua autoridade .se fez sentir em Portugal, Boêmia, Hungria, Dinamarca, Islândia,


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do papado / 183

e até Bulgária e Armênia. Quando, se bem que contra as ordens do papa, a quarta cruzada tomou Constantinopla e instaurou ali uma igreja e um império latinos, a autoridade de Inocêncio se extendeu também a esta cidade. Mas isto não foi tudo. Sob seu pontificado foram fundadas as grandes ordens dos franciscanos e dos dominicanos, teve lugar a grande batalha de Navas de Tolosa, que foi o ponto culminante da reconquista espanhola, e foi empreendida a cruzada contra os albigenses. O ponto culminante de toda esta obra foi o IV concílio de Latrão, que se reuniu em 1215. Este concílio promulgou pela primeira vez a doutrina da transubstanciação, de acordo com a qual no ato de consagração o pão e o vinho da comunhão se transformam substancialmente em corpo e sangue de Cristo. Além disto foram condenados os valdenses, os albigenses e as doutrinas de Joaquim de Fiore. Foi decretada a inquisição episcopal, que ordenava a cada bispo investigar as heresias que poderia haver em sua ciocese, e extirpá-Ias. Foi proibido iniciar novas ordens religiosas com novas regras monásticas. Ordenou-se que fossem criadas escolas nas catedrais, e que nelas fosse dado educação aos pobres. Foi proibido que os clérigos participassem de teatro, de jogos, de caça e de outros passatempos semelhantes. Foi requerida a confissão de pecados por parte de todos os fiéis, que deveria ter lugar pelo menos uma vez por ano. Foi proscrita a introdução de novas rei íquias sem aprovação papal. Ficou estabelecido que os judeus e muçulmanos deveriam usar roupas especiais, para se distinguirem dos cristãos. Foi proibido aos sacerdotes cobrar pela administração dos sacramentos. E muitas outras medidas semelhantes foram tomadas. Se tivermos em conta que o concílio fez tudo isto em três sessões de um dia cada, fica muito claro que quem tomou estas medidas não foi a assembléia, mas Inocêncio, que utilizou o concflio para referendar as medidas que ele decidira tomar. Por tudo isto, não resta dúvida de que com Inocêncio o ideal de uma cristandade unida sob um só pastor, o papa, se aproximou da sua realização. Por isto não devemos nos surpreender se este papa chegou a dizer, no que muitos dos seus contemporâneos creram, que o papa "está entre Deus e o ser humano; debaixo do primeiro e acima do segundo.


184/ A era dos a/tos ideais

É menos que Deus, e mais que o homem. mas ninguém o julga".

Ele julga

a todos,

Os sucessores de Inocêncio Durante quase um século, os sucessores de Inocêncio gozaram do prestígio que o grande papa tinha conquistado. Seus sucessores imediatos, Honório III, Gregório IX e Inocêncio IV tiveram de enfrentar as ambições de Frederico II, que, como vimos, Inocêncio fizera imperador. rv:as Frederico faleceu em 1250, e quatro anos mais tarde, com a morte de seu filho Conrado IV, desapareceu a dinastia dos Hohenstaufen. De 1254 até 1273 houve uma longa anarquia na Alemanha, e o papado pôde continuar sua pol ítica sem se preocupar com algurr.a intervenção do Império. Este interregno terminou quando o papa Gregório X pensou que a anarquia alemã redundava em preju ízo para a igreja, e apoiou a eleição de Rodolfo de HabslJurgo. Pouco depois, quando r~icolau III era papa, este imperador declarou que o papado e seus territórios eram independentes do I mpério. Durante todo este período o poder da França ia aumentando, e os papas se apoiaram repetidamente nele. Também as ordens mendicantes, no princípio perseguidas por alguns soberanos, ficaram cada vez mais fortes. O primeiro papa dominicano foi I nocêncio V, que reinou poucos dias em 1276. O primeiro franciscano foi Nicolau IV, cujo pontificado durou de 1288 até 1292. Quando Nicolau I V morreu os cardeais vacilaram na eleição. O ideal franciscano tinha penetrado em suas fileiras, e alguns pensavam que o novo papa deveria encarnar estes ideais, enquanto outros insistiam na necessidade de o papa ser uma pessoa conhecedora das intrigas e ambições do mundo. Por fim foi eleito Celestino V, um franciscano do grupo dos "espirituais". Quando este se apresentou em Ãquila, descalço e montado em um jumento, muitos pensaram que as profecias de Joaquim de Fiore estavam sendo cumpridas. Começava a nova era do Espírito, em que a igreja seria dirigida pelo ideal monástico. !\ias Celestino, depois de um pontificado breve, decidiu abdicar. Apresentou-se diante dos cardeais, despojou-se das insfgnias papais, sentou no chão e declarou que ninguém seria capaz de fazê-lo mudar de idéia.


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do papado / 185

Seu sucessor, Bonifácio VIII, começou a reinar no século XIII, e morreu no XIV (1294-1303). Em sua bula Unam Sanctem o ideal do papado onipotente chegou à sua expressão máxima: Uma espada deve estar sob a outra, e a autoridade temporal deve estar sujeita à potestade espiritual. ... Por isto, se a potestade terrena se aparta do caminho reto será julgada pela espiritual. ... I\t.as se ela se aparta da suprema autoridade espiritual, então somente pode ser julgada por Deus, e não pelos humanos. . .. Por outro lado, declaramos, dizemos e definimos que é absolutamente necessário para a salvação de todas as criaturas humanas que estejam sob o pontífice romano. 1\1as apesar destas palavras de tão alto som, foi precisamente durante o reinado de Bonifácio que ficou patente que a decadência do papado começara. A "era dos altos ideais" tinha terminado, e começava a dos "sonhos frustrados".



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