A história ilustrada do cristianismo 5

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UMA

HISTORIA

ILUSTRADA

DO CRISTIANISMO

VOL. 5

A ERA DOS SONHOS FRUSTRADOS JUSTO L. GONZALEZ


E atĂŠ aos confins da terra: uma histĂłria ilustrado do cristianismo

A era dos sonhos frustrados volume 5


Justo L. González

E até aos confins da Terra: Uma história ilustrada do Cristianismo VOLUME 5

A era dos sonhos frustrados


c 1994 de Justo L. González Título do original: Y hasta lo último de la tierra: Una Historia Ilustrada del Cristianismo Tomo 5 - La Era de los Sueiios Frustrados 1~edição: 1981 Reimpressões: 1986, 1989, 1993, 1997, 1999,2000, 2001 Publicado no Brasil com a devida autorização e com todos os direitos reservados por SOCIEDADE RELIGIOSA EDIÇÕES VIDA NOVA,

Caixa Postal 21486, São Paulo-SP 04602-970 Proibida a reprodução por quaisquer meios (mecânicos, eletrônicos, xerográficos, fotográficos, gravação, estocagem em banco de dados, etc.), a não ser em citações breves com indicação de fonte. Capa: O triunfo da morte, quadro de Brughel, cortesia do Museu do Prado, Madri, Espanha Printed in Brazil / Impresso no Brasil Dados internacionais de catalogação na publicação (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

(CIP)

González, Justo L. E até aos confins da Terra: uma história ilustrada do Cristianismo / Justo L. González; I Hans Udo Fuchs]. São Paulo: Vida Nova, 1995. Título original: Y hasta lo último de la tierra: una história ilustrada dei cristianismo. Conteúdo: v. I. A era dos mártires - v. 2. A era dos gigantes - v. 3. A era das trevas - v. 4. A era dos altos ideais - v. 5. A era dos sonhos frustrados - v. 6. A era dos reformadores - v. 7. A era dos conquistadores - v. 8. A era dos dogmas e das dúvidas - v. 9. A era dos novos horizontesv. lO. A era inconclusa. tSBN85-275-0215-1 (obra completa) I. Igreja - História 1. Título 95-2793

CDD-270

Índices para catálogo sistemático I. Cristianismo:

História da Igreja

270


Dedicatória Ao meu tio José Maria González, incansável caçador dos crimes contra o bom falar, em gratidão por ter feito dos meus manuscritos o seu campo de caça.


-Indice I.

II.

III. VI.

V.

Lista de ilustrações. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. IX Prefácio 1 Cronologia .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 3 As novas cond ições . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 A peste e suas conseqüências 11 A aliança entre a burguesia e a coroa 18 O nacionalismo 19 A guerra dos cem anos .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 20 O papado sob a sombra da França 35 Bonifácio VIII e Filipe, o Belo 35 O papado em Avignon 44 Santa Catarina de Siena 50 A vida eclesiástica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 54 O Grande Cisma do Ocidente 57 A reforma conciliar 65 A teoria conciliar 66 O concflio de Pisa 68 Os três papas 71 O concflio de Constança 74 O triunfo do papado. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 76 João Wycliff 81 Vida e obra de Wycliff 82 Suas doutrinas 85 Os lolardos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 89


VIII / A era dos sonhos frustrados

VI.

João Huss 93 Vida e obra de João Huss 95 Huss diante do concílio 99 Os hussitas ... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 102 VII. Os movimentos populares " 109 Beguinas e begardos " . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 114 Os flagelantes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 116 Os taboritas 118 Hans Bõhrn " 119 VIII. A alternativa m (stica 123 IX. A teologia acadêmica 129 X. O renascimento e o humanismo 135 A Itália nos séculos XIV e XV 136 O despertar das letras clássicas .. . . . . . . . . . . . .. 138 A nova visão da realidade. . . . . . . . . . . . . . . . . .. 144 Os papas do renascimento 147 A reforma humanista: Erasmo de Roterdã 152 XI. Jerônimo Savonarola 157 XII. O fim do Império Bizantino 167


Lista de ilustracões . 1-2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. 22. 23. 24.

Peregrinos 13-14 Relicário do século XV . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 15 Dança macabra ',' . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 16 No leito de morte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 16 Os dois caminhos da vida . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 17 Jesus Cristo, juiz supremo 18 Quadro: A sucessãoao trono da França 21 Mapa: A França durante a guerra dos cem anos 22 Joana d' Arc 29 A coroação de Reims 31 O papado de Avignon 49 Santa Catarina de Siena 51 Bodas m (sticas de Santa Catarina . . . . . . . . . . . . .. 52 O concflio de João XXIII em Roma , 73 A cidade de Constança . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 75 João Wycliff , 82 A igreja paroquial de Lutterworth 84 Wycliff envia os lolardos 88 A perseguição dos lolardos ,.. 90 Praga no século XV 94 A morte de João Huss 103 A comunidade do Monte Tabor 104 A devolução do cálice aos leigos 106


x / A era dos sonhos frustrados. 25. 26. 27. 28. 29. 30. 31. 32. 33. 34. 35. 36. 37. 38. 39. 40. 41. 42. 43.

João Am6s Come no , 107 A fortaleza da fé . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 112 Beguinage de Bruxelas 115 Flagelantes 117 O anticristo 119 Manuscrito grego do evangelho de Lucas 138 A imprensa 139 Bfblia de Gutenberg , 140 Biblioteca da universidade de Leyden , 141 Encadernadores 143 "Davi", de Miguelângelo " 145 Leonardo da Vinci 147 Basflica de São Pedro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 152 Erasmo de Roterdã. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 154 Savonarola em seu escritório 159 Savonarola pregando 161 Visão de Savonarola , 163 Guerreiro otomano , 169 Maomé II entra em Constantinopla 171


Prefácio

Este livro conta sua própria história, e por isto há pouco a dizer à guisa de apresentação. Basta assinalar que o período narrado aqui inclui os anos imediatamente anteriores à Reforma protestante, e que por isto seu conhecimento é importante para compreender completamente esta reforma. Além disto gostar(amos de advertir o leitor que, por razões de ordem lógica, nem sempre apresentamos os acontecimentos em sua ordem estritamente cronológica. Por exemplo: no primeiro capftulo, quando falamos da guerra dos cem anos, cobrimos quase todo o per(odo, para logo depois voltar atrás e narrar outros acontecimentos. Da mesma forma a discussão da reforma conciliar que seguiu ao Grande Cisma nos obrigou a estudar Wycliff e Huss depois de terminar a história dos concflios. Por isto convidamos o leitor a fazer uso constante da cronologia que aparece no infcio deste volume. Desta maneira ele poderá ver a relação e a ordem no tempo de diversos acontecimentos que no texto são narrados separadamente. Por último convidamo-lo a que, ao ler as páginas que seguem, o faça no mesmo esp írito com que foram escritas: com


2 / A era dos sonhos frustrados

a prece de que o Senhor da histĂłria nos fale atravĂŠs dela, e nos chame a ocupar nosso lugar nela. J. L. G. 15 de agosto de 1978


Cronologia

Advertências preliminares:

1. Como assinalamos no Prefácio, neste volume nos vimos obrigados a deixar de lado a ordem cronológica mais que nos anteriores. Por isto sugerimos ao leitor que, no processo de sua leitura, acuda repetidamente à presente cronologia. 2. Na lista de papas pusemos, sem outro comentário, os que os papas posteriores consideraram legítimos. Os "antipapas" de Avignon estão assinalados com a abreviatura Av., e os de Pisa com P. 3. Dadas as novas circunstâncias pol íticas, em vez de oferecer listas dos imperadores do Oriente e do Ocidente, como nos volumes anteriores, preferimos dar uma relação dos reis da França e da Inglaterra.


4 / A era dos sonhos frustrados

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I As novas condições E melhor evitar os pecados que fugir da morte. Se hoje não estás pronto, como estarás amanhã? O amanhã é incerto; como sabes que viverás até lá? De que serve viver muitos dias, se nossa vida não melhora? Kempis No século XIII, como vimos no volume anterior, pareciam estar se cumprindo os mais elevados ideais da cristandade medieval. Na pessoa de Inocêncio" I o papado chegou à plenituce do seu poder, enquanto as ordens mendicantes se empenhavam em conquistar o resto do mundo para Cristo, e nas universidades eram construídas grandes catedrais do pensamento teológico. Pelo menos em teoria, a Europa estava unida sob um cabeça espiritual, o papa, e outro temporal, o imperador. Durante boa parte deste século, enquanto os cruzados ocidentais reinaram em Constantinopla, aparentemente as igrejas latina e grega finalmente se tinham reunificado. rv!as em meio a todos estes elementos de unidade, à primeira vista inquebrantáveis, existiam tensões e pontos fracos, que mais tarde derrubariam o grande edifício que a cristandade medieval tinha constru íco com seus ideais elevados. /\ união com a igreja greya era somente aparente, pois sol; a superfície fervia o ressentimento de um povo que se sentia oprimido por invasores estrangeiros. Por isto assim que os bizantinos cunseguiram reconquistar sua capital eles cancelaram todos


10 / A era dos sonhos frustrados

os acordos que os patriarcas latinos de Constantinopla tinham feito com a igreja ocidental. A unidade pol (tica da Europa era mais fictfcia que real, pois os imperadores fora da Alemanha tinham uma autoridade somente nominal, e mesmo em seu próprio pafs se viam obrigados a lutar quase constantemente contra os nobres rebeldes. Os grandes sistemas escolásticos do século XIII também traziam dentro de si os germes da sua própria destruição, como veremos mais adiante no presente volume. A arquitetura gótica, feito supremo da civilização medieval, logo se dedicou à ornamentação excessiva que é caracterfstica de qualquer arte em decadência. O papado não estava isento das mesmas forças de destruição. Através de toda a "era dos ideais elevados" tinha existido uma tensão quase constante entre o papado e o império, pois os limites da autoridade de cada um dos poderes não podiam ser fixados com exatidão. Na própria cidade de Roma, onde os papas supostamente reinavam como soberanos, o papado foi joguete freqüente das ambições dos poderosos, ou dos caprichos do povo. O esp(rito republicano, que se fortalecera no norte da Itália, se fizera sentir em Roma. Dadas todas estas circunstâncias, foram muitas as ocasiões em que os papas se viram obrigados a ir ao ex ílio, ou a se refugiar em algum dos castelos fora da cidade, ou a apelar para o imperador contra os republicanos, ou ao povo contra os nobres, ou para os normandos para contrabalançar as ameaças do Império. Mas apesar de tudo isto, durante o século XIII o papado teve o respeito da Europa. Quando cara em circunstâncias tristes a cristandade ficava comovida, e por isto os que o oprimiam se viam obrigados a agir com moderação. Como aprenderam por experiência própria os nobres italianos, os imperadores e os republicanos romanos, um papa cativo ainda era um inimigo tem (vel. No per(odo que estudamos agora estas circunstâncias mudaram. A triste história da decadência do papado, que ocupa boa parte do presente volume, teve por conseqüência que a cristandade ocidental perdeu o respeito pelo papa. O grande sonho de Inocêncio III de um povo cristão unido sob um só pastor tinha sido frustrado muitos anos antes de Lutero começar a reforma protestante.


As novas condições / 11

Contra a corrupção do papado e da igreja em geral surgiram diversos movimentos de reforma. Alguns deles se ocupavam quase que exclusivamente da prática da vida cristã, enquanto outros atacavam as doutrinas que se tinham desenvolvido durante os séculos anteriores. Alguns eram dirigidos por eruditos e pregadores, outros tinham raízes mais populares. Estes movimentos de reforma também ocuparão boa parte da nossa atenção. Mas antes de passar a narrar toda esta história convém que nos detenhamos para descrever um pouco o pano de fundo de todos estes acontecimentos. A peste e suas conseqüências A economia européia, que antes estivera em expansão, estancou em princfpios do século XIV, e em meados deste século começou a declinar. Isto era causado pela instabilidade pol ítica, o fim das cruzadas e a decadência da agricultura. IVlas a causa principal foi a epidemia de peste bubónica que açoitou repeticamente a Europa ocidental a partir de 1347. t.... peste bubónica é propagada principalmente por pulgas que, depois de picar ratos infeccionados, a transmitem aos seres humanos. Perto do fim do século XIII, quando os genoveses conseguiram derrotar os marroquinos e abrir o estreito de Gibraltar à navegação, o contato entre o norte da Europa e as costas do Mediterrâneo foi se estreitando cada vez mais. A navegação tinha sido muito melhorada neste mesmo século, e por isto, mesmo no inverno, constantemente havia barcos procedentes do Mediterrâneo nos portos do Atlântico. Isto contribuiu para difundir a população de ratos negros, que são os por.tadores da terrível enfermidade. Além disto a prosperidade econômica do século XIII tinha levado a um grande aumento da população, de modo que restavam poucos lugares isolados na Europa ocidental. Quando a praga apareceu nas costas do Mar Negro e no sul da Itália, encontrou condições ótimas para sua propagação. Em três anos ela varreu o continente europeu, e calcula-se que uma terça parte da população morreu. Depois desta terrível mortandade a epidemia amainou, embora voltando repetidamente, com menos virulência,


12 / A era dos sonhos frustrados

a cada dez ou doze anos. Em cada uma destas novas irrupções e enfermidade atacava principalmente a geração mais jovem, que não ficara imunizada pela epidemia anterior, e por isto a Europa levou dois séculos para voltar a estabelecer um equiIíbrio demográfico. As conseqüências da praga foram enormes, tanto no aspecto econômico quanto no aspecto religioso. No econômico a epidemia afetou diversas regiões de diferentes maneiras. Em alguns lugares a falta de mão de obra aumentou o preço dos produtos manufaturados. Em outros a falta de compradores produziu um excesso de produção, com desemprego como conseqüência. Mas no final das contas o que surgiu foi um desequil (brio econômico que se manifestou numa instabilidade pol ítica nunca vista. Nos arredores de Paris, na Inglaterra e em Flandres houve revoltas populares. Em alguns casos, como em Flandres, estas revoltas conseguiram firmar pé, e foi necessário a intervenção de todo o poderio Ga coroa francesa para sufocá-Ias, depois de civersos anos de lutas. Nas principais cidades manufatoras, por causa da retração do mercado, os mestres artesãos tentaram evitar que os aprendizes chegassem a ser mestres, e competissem com eles. O resultado foi uma tensão cada vez maior entre mestres e aprendizes ou jornaleiros, que levou os dois grupos a se organizarem para proteger seus interesses. As greves ficaram cada vez mais freqüentes. Em termos gerais a produção diminuiu, e aumentaram os preços e as exigências feitas aos trabalhadores. No aspecto religioso a peste também teve profundas conseqüências. Por causa do caráter da enfermidade, que freqüentemente parecia atacar de repente pessoas perfeitamente sãs e matá-Ias em poucas horas, começou-se a duvidar do universo racional e ordenado que os escolásticos tinham concebido. Entre os intelectuais alastrou-se a opinião que no fim das contas o universo não é racional, e eles começaram a duvidar cada vez mais da capacidade da mente humana de penetrar nos mistérios da existência. Entre o povo menos culto aumentou a superstição, que sempre tinha existido. Como dissemos anteriormente, vários "gigantes" do século IV se tinham oposto ao auge que as peregrinações alcançaram em sua época. Agora, mil anos mais tarde, estas peregrinações eram uma das mani-


As novas condições

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festações religiosas mais populares. Os ricos partiam para os lugares tradicionais de peregrinação: Terra Santa, Roma e Compostela. Os pobres acudiam a santuários mais próximos, cuja eficácia era considerada grande, mesmo que não igual à dos três lu~ares mencionados. Da mesma forma aumentou o culto às rei íquias, que fora abrindo caminho através de toda a Idade Média. Logo, as superstições contra as quais protestaram os reformadores do século XVI, se bem que tinham raízes que em muitos casos remontavam a mais de mil anos atrás, tinham se tornado exageradas e especialmente comuns a partir de meados do século XIV. Outra conseqüência da praga foi uma grande preocupação com o tema da morte. Como até mesmo os mais jovens - e particularmente eles nas epidemias posteriores - podiam morrer


14 / A era dos sonhos frustrados

Os qU6 possutern menos meios acorriam a santUlÍrios mais próximos, cuja eficácia, mesmo nio sendo igUBI li de Jerusalém ou Compostela, era conslaerea« grande.

inesperadamente, toda a vida era vista à luz desta possibilidade. A morte era o acompanhante secreto e constante de todo ser humano, disposta a reclamá-lo a qualquer momento e a levá-lo, ou à pátria celestial, ou ao castigo eterno. Quando um enfermo agonizava, anjos e demônios disputavam a alma do moribundo, e a função da igreja e dos seus ministros consistia em facilitar a vitória dos anjos. A morte, pois, e seu triunfo aparentemente universal, passaram a ser temas constantes na literatura e na arte, onde freqüentemente era representada festejando sua vitória. Pelas mesmas razões, e estreitamente unida com este interesse na morte, começou a surgir a idéia de que Jesus Cristo era mais juiz do que redentor. A ira de Deus, aparentemente


As novas condições / 15

Em luxuosos relicários como este, do século XV, erem conser .•• dBs e .•• neredes as rel'-quias dos santos, 8utlnticos ou nêo.


16 / A era dos sonhos frustrados

A dança meceor«, um dos temas mais comuns na arte da époCtl, nio era somente ume referêncie li inevitebilídede de morte, mes tsmbem a ume

Enquanto o moribundo jaz em seu leito e a morte bate na porta, os demônios tentam arrebatar sua alma e estorvar os ministros da igreja, e os anjos velam também pela alma do moribundo.


As novas condições / 17

A morte

é o mestre implsClÍV81 qUB mostre eo jOV8m os dois caminhos que

ele pode trither

ne vids.

presente nesta vida na epidemia e na fome, seria manifestada de maneira especial no ju ízo final, quando Jesus Cristo, sentado sobre o arco-íris, julgaria toda a humanidade. E neste ju ízo não haveria nenhuma palavra de perdão, a não ser para os que nesta vida o mereceram por causa das suas boas obras e de seu uso dos meios da graça. Por último convém assinalar que a peste contribuiu para aumentar a inimizade entre cristãos e judeus. Entre os cristãos pensava-se que as bruxas eram em parte culpadas pela peste, enfermando seus inimigos com suas maldades. Com este argumento perseguiram mulheres inocentes, a quem davam este tftulo. Perseguiram também os gatos, que diziam ser amigos das bruxas. Por causa disto aumentou a população dos ratos. Já que tudo isto não acontecia entre os judeus, os casos de peste


18 / A era dos sonhos frustrados

Começou-se a pensar em Jesus Cristo mais como juiz que corno redentor.

eram menos freqüentes entre eles. A conseqüência foi que eles foram acusados de envenenar os poços onde os cristãos bebiam, e em represália a isto houve terríveis matanças.

A aliança entre a burguesia e a coroa

Além da peste bubónica outros fatores contribu (rarn para as condições sociais e pol íticas dos séculos que estamos estudando, o XIV e o XV. O principal destes provavelmente foi a aliança entre a alta burguesia e a coroa. Nos dois séculos anteriores a economia manufatureira e mercantil apresentara um progresso considerável. Para mantê-lo difundiram-se os sistemas de crédito, e como conseqüência as casas bancárias se enriqueceram. Como a indústria manufatureira, o comércio e os bancos estavam em mãos da alta burguesia, esta nova classe, que surgira com o desenvolvimento das cidades, era a mais beneficiada com estas atividades. Seus interesses se opunham aos dos grandes senhores do sistema feudal. As pequenas


As novas condições / 19

guerras entre senhores vizinhos, os impostos que cada nobre impunha sobre os produtos que passavam por seus territórios, e o sonho dos grandes barões de criar unidades autosuficientes, atuavam em preju (zo do comércio. Do ponto de vista da alta burguesia um governo centralizado e forte, que protegesse o comércio, erradicasse o banditismo, regulamentasse a moeda e evitasse as constantes guerras entre pequenos vizinhos era altamente desejável. Por isto esta classe deu apoio decidido aos esforços por parte dos reis de limitar o poder da nobreza. Os reis também recebiam benefícios com esta aliança. O único meio eficaz de fazer valer a sua autoridade era ter um exército permanente, sob as ordens da coroa, que pudesse agir de maneira rápida e eficiente contra qualquer rebelde. Isto custava dinheiro. A maior parte das terras estava nas mãos dos nobres, que usavam este recurso para levantar exércitos próprios, de acordo com a necessidade do momento. Mas a coroa não podia exigir destes nobres que mantivessem um exército permanente. Pelo menos não podia fazê-lo enquanto a autoridade da coroa sobre a nobreza não estivesse firmemente estabelecida. Nestas circunstâncias, os reis tinham de recorrer à burguesia, cujo apoio econômico lhes permitia manter os exércitos de que precisassem.

o nacionalismo Este processo deu origem aos estados modernos. A França e a Inglaterra, junto com os países escandinavos, foram os primeiros que se uniram sob monarquias relativamente fortes. A Espanha só chegou a este ponto no fim do período que estamos estudando, pois a unidade nacional só foi alcançada com o casamento de Isabel e Fernando. Portugal era uma monarquia no início deste período, mas através de todo ele a coroa foi aumentando seu poder em relação aos nobres. A Alemanha e a Itália chegaram à unidade nacional somente muito tempo depois. Isto, por sua vez, deu origem a um crescente sentimento nacionalista. Nos séculos anteriores a maior parte do povo europeu se sentia cidadã de algum pequeno condado ou burgo.


20 / A era dos sonhos frustrados

IVias agora começava-se a falar de uma nação francesa, por exemplo, e os habitantes desta nação começaram a evidenciar que estavam pcssu ídos de certo espírito nacional. Isto sucedeu também em países que não se encontravam unidos sob uma monarquia florescente. Em fins do século XIII várias municipalicades alpinas se rebelaram e fundaram a Confederação Helvética, que foi crescendo através de todo o século XIV, derrotandc repetidamente os exércitos que os imperadores alemães enviavam para sufocar a rebelião. Por fim, em 1499, o imperador Maximiliano I se viu obrigado a reconhecer a independência da Suíça. Na Alemanha, mesmo não havendo um movimento de insurreição semelhante ao da Suíça, houve todo tipo de indícios de que os habitantes dos diversos eleitorados, ducados, cidades livres, etc., começavam a se sentir alemães, e a invejar a ingerência de outros países nos assuntos nacionais cuja unidade lhes dava maior poder. Estes sentimentos nacional istas, cada vez mais comuns na Europa nos séculos XIV e XV, militavam contra a relativa unidade conseguida em épocas anteriores. Se o papado aparentemente se inclinava para os interesses franceses, como o fez durante sua residência em Avignon, os ingleses não vacilavam em se opor a ele. Se, no entanto, ele se negava a ser um instrumento dócil nas mãos da coroa francesa, esta apoiava o outro papa, como aconteceu durante o Grande Cisma. Mesmo se nos séculos anteriores houve situações semelhantes, neste período do fim da Idade lvlédia estas situações passaram a ser a regra, e não mais a excessão. O mesmo aconteceu com respeito ao Império, principalmente nas regiões fronteiriças da Su íça e da Boêmia. À rebelião su íça fizemos referência mais acima. O sentimento nacionalista boêrnio nos interessará quando falarmos de João Huss e dos seus.

A guerra dos cem anos

O surgimento das grandes nações modernas, e o uso da artilharia no campo de batalha, deram lugar a guerras muito mais sangrentas e longas que as dos séculos anteriores. Destas a de mais destaque foi a guerra dos cem anos, que envolveu de tal maneira não só a França e a Inglaterra, mas também o restante


As novas condições /21 Filipe III (+ 1285)

Filipe IV (+ 1314)

Carlos de Valois

I Luís X (+ 1316)

Filipe V (+ 1323)

Carlos IV (+ 1328)

Isabel

I

Filipe VI

Eduardo III da Inglaterra

A sucsssíio ao trono da França ela Europa, que alguns historiadores têm dito ser chamada de "primeira guerra européia".

que ela deveria

p\ causa inicial das hostilidades foi a questão da sucessão C rei da França, Filipe I V, o Belo, tinha deixado três filhos homens; mas um após outro reinaram e morreram, sem deixar descendência masculina. Quando o último, Carlos IV, morreu, surgiu a questão da sucessão. Na França, Filipe de Valois, sobrinho de Filipe IV, foi coroado rei. ~.~asna Inglaterra o parlamento inglês declarou que seu rei, Eduardo III, era o legítimo herdeiro da coroa, e enviou uma delegação à França para reclamá-Ia. A alegação inglesa se baseava no fato de Eduardo ser filho da irmã dos três últimos reis, e neto do pai deles, Filipe IV. O novo rei da França, Filipe VI de Valeis. respondeu dizendo que, assim como as mulheres não podiam herdar o trono, dever-sé-ia preferir a descendência por linha rnasculina à por linha feminina. Como rei da França Filipe VI era senhor, entre outros territórios, do ducado de Guyenne. Como Eduardo III era duque de Guyenne, cabia-lhe prestar homenagem ao novo rei da França. Depois de vacilar por algum tempo Eduardo consentiu com esta cerimônia, se bem que se retratou depois dela, dizendo que tinha participado ainda menor de idade, e seguindo os conselhos de conselheiros incapazes. Tudo isto contribuiu para aumentar a inimizade entre os dois monarcas, até que os assuntos da Escócia os levaram à guerra. Durante várias gerações a França tinha sido o principal

à coroa francesa.


22 / A era dos sonhos frustrados

A França durante a guerra dos cem anos.

aliado da Escócia contra as intensões de conquista que os ingleses abrigavam em relação a este território ao norte do seu país. Quando, por causa da política imperialista da Inglaterra, o rei Davi da Escócia se viu obrigado a abandonar o país, a França o asilou, e apoiou seus partidários que continuavam lutando contra as tropas de Eduardo III. Este protestou, e se preparou para atacar a França.


As novas condições /23 Mas Eduardo, envolvido em uma guerra com a Escócia, não podia querer derrotar Filipe sozinho, e por isso passou a tecer uma extensa rede de alianças contra seu inimigo. Seu principal aliado era o imperador Lu ís da Baviera, que lhe deu o título de "vicário imperial". Além disto ele contava com o apoio de diversos duques e outros nobres de menor categoria, e com o das cidades de Flandres, que se rebelaram contra seus senhores. O Iíder da rebelião, o cervejeiro Jacobo Von Artaveldt, temia com razão que os nobres que os rebeldes tinham expulso buscassem ajuda na coroa francesa, e por isto ele buscou a de Eduardo. Filipe, por sua vez, organizou outra rede de alianças, da qual faziam parte os reis de Navarra e Boêmia, bem como os duques de Bretanha, Áustria e Lorena, e vários nobres alemães que se opunham à pol [tica do imperador. As primeiras campanhas da guerra forarn desvantajosas para os ingleses. Em 1338 Eduardo se apresentou diante das fronteiras da França, e começou a devastar a região. Mas Filipe sabia que seu rival estava esgotando o tesouro da Inglaterra, e que não podia manter seu exército em pé de guerra durante muito tempo. Por isto se negou a enfrentá-lo numa batalha, e mais tarde Eduardo teve de voltar para a Inglaterra, empobrecido e decepcionado. Em 1340 os franceses, junto com os normandos e os genoveses, reuniram uma frota enorme para apertar os ingleses, mas estes, com a ajuda dos flamengos, os derrotaram decisivamente. Quase toda a esquadra francesa foi destru ída, e milhares de soldados morreram afogados depois de se lançarem ao mar, fugindo do inimigo. Conta-se que ninguém se atrevia a dar a Filipe a notícia da terrível derrota, até que seu bobo-da-corte lhe disse que parecia que os franceses eram mais valentes que os ingleses, porque se atreviam a saltar no mar. Mas também desta vez Eduardo não pôde tirar vantagem dos seus triunfos iniciais, pois seu grande exército se desfez quando os fundos começaram a escassear. Exasperado, o rei da Inglaterra convidou o da França para um encontro no campo da honra. Mas Filipe sabia que o tempo agia a seu favor, e por fim Eduardo se viu obrigado a aceitar um armistício e voltar para a Inglaterra, onde tinha de enfrentar as enormes dívidas que tinha contraído para financiar sua campanha.


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A próxima expedição inglesa, em 1346, teve resultados melhores. Eduardo surpreendeu os franceses desembarcando inesperadamente na l\Jormandia, onde passou a devastar a região. Depois de uma longa e complicada série de marchas e contramarchas os dois exércitos se chocaram finalmente na batalha de Crécy, onde os arqueiros ingleses derrotaram decisivamente o exército francês. Eduardo aproveitou então a vitória para sitiar Calais, que se rendeu no ano seguinte e desde então foi uma das mais importantes possessões inglesas no continente. Pouco depois da capitulação de Calais a peste bubônica varreu toda a Europa, forçando os dois contendentes a abandonar as hostilidades. Quando estas foram reiniciadas vários anos mais tarde, Filipe VI tinha morrido, e foi seu filho e sucessor João II quem enfrentou os invasores ingleses, que marchavam sob o comando de Eduardo, príncipe de Gales e filho de Eduardo III. Por causa da cor da sua armadura este grande príncipe recebeu o nome de "Prfncipe Negro", pelo qual a posteridade o conhece. Sua estratégia consistiu em desolar os campos da França, destruindo assim a base econômica do seu oponente. João respondeu reunindo um grande exército que surpreendeu os ingleses perto de Poitiers. Mas uma vez mais a disciplina melhor do exército inglês, e a destreza dos seus arqueiros, se impuseram no campo de batalha. Contra todas as previsões o Príncipe Negro e suas tropas derrotaram em Poitiers um exercíto muitíssimo mais poderoso, e coroaram seu triunfo capturando o rei João. Este foi levado prisioneiro para a Inglaterra, onde permaneceu até que o tratado de Bretigny, em 1360, lhe devolveu a liberdade. Neste tratado Eduarrlo III renunciava a todas as pretensões à coroa da França, enquanto João se comprometia a lhe pagar uma indenização de três milhões de escudos, e a reconhecer sua soberania sobre Calais e sobre boa parte da Aquitânia. Mas a guerra, que se tornara endêmica, agora se passou para a Espanha. Em diversas regiões da França havia bandos de mercenários, as chamadas "companhias brancas", que ficaram desempregadas com o acordo de paz, e não tinham outro meio de subsistência que o roubo e a violência. Para livrar-se deles Carlos V, sucessor de João II, decidiu enviá-los


As novas condições /25

a Castela, onde Pedro, o Cruel, tinha matado ou mandado matar diversos nobres, e enviado ao exílio outros tantos. Entre estes últimos estava seu irmão bastardo Henrique de Trastâmara, cuja mãe tinha sido assassinada por ordem de Pedro. Os desmandos do cruel rei de Castela enraiveceram os franceses quando receberam a notícia de que sua esposa Blanca de Bourbon, princesa francesa que Pedro tinha humilhado repetidamente, tinha morrido em circunstâncias misteriosas. Logo surgiu o boato de que ela tinha sido envenenada, e não faltaram cavaleiros franceses que se dispusessem a vingar a morte da sua princesa. Sob o comando de Henrique de Trastâmara, e com dinheiro proveniente da coroa francesa e do papa, um grande exército de cavaleiros franceses e de "companhias brancas" cruzou os Pirineus, atravessou Aragão e penetrou em Castela. Quando seus nobres se negaram a defendê-lo, Pedro, o Cruel, fugiu para Portugal, e depois para Bayonne. O território onde Pedro, o Cruel, se tinha refugiado, estava sob o governo do Príncipe Negro, que lhe ofereceu seu apoio contra o "usurpador" Henrique. Ao que parece, uma das principais razões que levaram o chefe inglês a seguir esta pol (tica foi o desejo de se opor às intenções do rei da França, sem romper abertamente com o que o tratado de Bretigny estipulara. À frente do seu exército o Príncipe Negro cruzou os Pirineus em Roncesvales, conseguiu que o rei de Navarra alimentasse suas tropas em Pamplona, e penetrou em Castela. Ali ele derrotou decisivamente Henrique de Trastâmara, e recolocou Pedro no trono. Este tinha o propósito de matar os dois mil prisioneiros feitos no campo de batalha, mas seu aliado inglês o impediu, persuadindo-o a perdoar-lhes a vida e aceitá-los como súditos. Pouco depois, quando o restaurado rei de Castela começou a fechar os ouvidos para os pedidos do seu aliado, que precisava de provisões para o seu exército, este voltou para a Aquitânia, e entregou Pedro à sua própria sorte. Enquanto isto Henrique de Trastâmara voltou a apelar à França, e com a ajuda que dela recebeu se apresentou novamente em Castela, onde derrotou seu rival. Pouco depois, em circunstâncias que a história não conseguiu esclarecer, os dois irmãos rivais se encontraram frente a frente perto de Montiel, onde Pedro pereceu no combate mortal. A partir de então Henrique reinou


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em Castela, e a França pôde contar ccm um aliado além dos Pirineus. Esta aliança provou sua firmeza quando um irmão do Pr íncipe Negro, o duque de Lancaster, reclamou para si a coroa de Castela por ter se casado com a herdeira de Pedro. A aliança entre Castela e França mudou o curso que a guerra vinha tomando. Com a ajuda da esquadra castelhana os franceses tomaram a ofensiva. Em 1372 os castelhanos destru frarn toda a frota inglesa na batalha de La Rochelle. Dois anos mais tarde os ingleses não tinham mais nenhuma possessão no continente além de Calais, Bordeaux, Bayonne e outros lugares de menos importância. Por fim, em 1375, Eduardo se viu obrigado a aceitar uma trégua, que durou até 1415. Eduardo morreu em 1377. Como pouco antes falecera o Príncipe Negro, o novo rei foi o filho deste, Ricardo II. Durante todo o seu reinado e o do seu sucessor, Henrique IV, a Inglaterra esteve em guerra com a Escócia, e enfrentando rebel iões e movimentos populares que a impediram de continuar com a pol (tica belicosa em relação à F rança. Um destes movimentos foi o de Wycliff e dos "Iolardos". Foi o filho de Henrique IV, o quinto rei com o mesmo nome, que, depois de destruir a rebelião dos lolardos, se dispôs a empreender novamente as hostilidades contra a França. Assim que se sentiu seguro em seu trono ele reclamou a coroa francesa. Pouco depois ele desembarcou na foz do Sena, tomou a fortaleza de Harfleur, e adentrou a França. Esta invasão foi facilitada pelas lutas internas do país, por causa da loucura de Carlos VI. Dois partidos, o dos "borgonhões" e o dos "armagnacs", disputavam a regência. Por isto as tropas francesas evitaram o combate por algum tempo, mas por fim, confiadas em sua superioridade numérica, tentaram deter o invasor, sendo vencidas na batalha de Agincourt (1415). Mais uma vez, no entanto, os ingleses se viram impossibilitados de continuar a campanha, pois as reservas financeiras estavam no fim e o exército tinha sofrido pesadas baixas durante a sua estadia na França. Henrique, então, se contentou em declarar que a vitória de Agincourt mostrava que Deus favorecia a sua causa, e que aos olhos de Deus a coroa francesa lhe pertencia. Depois desta declaração ele regressou à Inglaterra, onde foi recebido em triunfo.


As novas condições /27 Ali o VISitou O imperador Sigismundo, que anteriormente estivera na corte francesa, tentando mediar entre as duas partes. Henrique se mostrou disposto a renunciar ao trono da França, desde que o tratado de Bretigny fosse cumprido. Como este tratado concedia ao rei da Inglaterra boa parte do território francês, as esperanças de chegar a uma reconciliação por este caminho eram escassas, e os ingleses' continuaram se preparando para a guerra. Quando os franceses tentaram reconquistar Harfleur, Henrique estava preparado, e um contingente enviado da Inglaterra pôs fim ao sftio desta fortaleza. Em Paris, estava no poder o partido dos armagnacs. Por isto o I(der dos borgonhões, Carlos, o duque de Borgonha, se negou a enviar tropas contra os ingleses, e corriam rumores de que ele tinha feito um pacto secreto com Henrique. Seja isto verdade ou não, quando o rei da Inglaterra desembarcou novamente em território francês, na região da Normandia, os franceses não pucieram lhe oferecer grande resistência, pois os exércitos borgonhões se encontravam diante de Paris. Enquanto os borgonhões tomavam a capital e matavam os principais lfderes dos armagnacs, os ingleses se apossaram de boa parte da Normandia. Fugindo dos borgonhões o delfim Carlos, herdeiro da coroa francesa, escapou de Paris e estabeleceu seu governo em Poitiers, declarando-se regente de seu pai débil mental. Havia, portanto, um rei louco, e dois partidos que disputavam a regência; os borgonhões em Paris e os armagnacs em Pcitiers. Diante da ameaça inglesa estes dois partidos começaram a negociar a paz entre si. Mas quando o duque da Borgonha foi assassinado durante uma entrevista com o delfim, e em presença deste, os borgonhões decidiram que não lhes restava outra alternativa que se aliar a Henrique, e com este propósito lhe prometeram a mão da princesa Catarina, filha do rei demente, a regência do reino, e a sucessão ao trono depois da morte do rei. Em troca disto Henrique respeitaria os antigos privilégios da nobreza francesa diante da coroa, devolveria ao reino os territórios que tinha tomado na Normandia, e conquistaria as terras que estavam sob o dorn ínio do delfim. A esta empresa o rei inglês estava entregue quando adoeceu e morreu, deixando como herdeiro do trono inglês o pequeno filho que tivera de


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Catarina pouco tempo antes. O novo rei da Inglaterra, Henrique VI (1422-1471), tinha somente alguns meses de idade quando morreu também Carlos VI, que assim o deixara de posse das coroas da Inglaterra e da França. Mas o delfim ainda tinha seguidores e territórios no centro e no sudeste do país, e se fez proclamar herdeiro do seu falecido pai, com o trtulo de Carlos VII. Além disto, quando o rei louco morreu, muitos franceses começaram a se inclinar para o delfim, que no fim das contas era o herdeiro legítimo. p, guerra, pois, continuou, já não entre franceses e ingleses, mas entre os partidos na França, um apoiado pelos ingleses, e o outro pelos escoceses. Durante cinco anos a guerra seguiu sem maiores acontecimentos. Mas perto do fim deste período os ingleses e seus aliados ganharam importantes batalhas, cruzaram o rio Loire e sitiaram Orleans. A situação do delfim era cada dia mais desesperadora, quando vieram notícias de uma donzela, natural da pequena aldeia de Domremi, que dizia ter tido visões em que as santas Catarina e Margarida, além do arcanjo Miguel, lhe tinham ordenado que dirigisse as tropas do delfim para romper o cerco de Orleans. e que em seguida o conduzisse para ser coroado em Reims, tradicional lugar de coroação dos reis da França, e para onde Carlos ainda não pudera ir porque esta cidade estava em território inimigo. Conta-se que Carlos VII mandou buscar a jovem Joana d' Arc (este era o nome da donzela) e que, pouco antes de ela lhe ser apresentada, se disfarçou e se misturou com seus nobres, colocando outro em seu lugar. Não está claro se ele fez isto para zombar dela ou para prová-Ia. Mas a jovem, ao entrar no salão onde estava o rei, se dirigiu diretamente para ele, sem prestar a mínima atenção ao que se fazia passar por rei. Surpreendido, Carlos foi com ela para um lugar separado, e ao voltar para a reunião declarou comovido que Joana sabia segredos de sua vida que mortal algum poderia conhecer. Pouco depois donzela", como seus contemporâneos a chamavam, estava entre as tropas vestida de armadura, e se mostrou hábil no manejo da sua cavalgadura e da lança. À medida que sua fama se espalhava, o entusiasmo entre os soldados do delfim aumentava, bem como o temor entre seus inimigos. lia


As novas condições /29

Carlos reunira em 810is provisões que esperava poder levar para os que estavam sitiados em Orleans, e Joana se

A humilde

aldeã de Domremi

chegou a ser a hera/n« nacional da FranÇ/l.


30 I A era dos sonhos frustrados

ofereceu para comandar a expedição. Graças a uma sene de circunstâncias ao que parece inexplicáveis tanto a donzela como as provisões conseguiram atravessar o cerco, sem encontrar os sitiantes. Na cidade ela foi recebida com aclamações, e imediatamente começou a dirigir ataques contra as posições dos ingleses. Cada dia saía uma coluna de Orleans, comandada por Joana d' Arc, e cada dia caía um bastião inimigo. Mais tarde os ingleses decidiram levantar 'J sítio, e a heroína, desde então conhecida cemo "a donzela de Orleans", proibiu que fossem perseguidos, lembrando que era domingo, dia de orações e não de batalhas. Depois disto as vitórias seguiram uma à outra, e Carlos pôde invadir o território inimigo e marchar para Reims, para ser coroado: Em sua passagem as cidades que durante anos estiveram dominadas por ingleses e borgonhões o recebiam com entusiasmo, ou pelo menos lhe enviavam provisões, quando não se atreviam a se declarar publicamente a seu favor. A cidade de Reims, ao receber notícias de que o rei e a donzela estavam a caminho, expulsou a guarnição dos borgenhões, e recebeu Carlos com festejos. Na catedral o delfim foi coroado, enquanto Joana, de pé diante do altar, via seus sonhos se tornarem realidade. Depois de cumprir sua missão dupla de romper o cerco de Orleans e fazer com que o rei fosse coroado em Reims, a jovem visionária estava disposta a regressar à sua vida anterior, como aldeã de Domremi, repetidamente solicitando de Carlos permissão para isto. Mas o monarca não atendeu aos seus pedidos, e Joana continuou lutando até que foi capturada em uma escaramuça, e vendida aos ingleses. Seus antigos aliados, ocupados em aproveitar as vantagens obtidas nos últimos meses, não se preocuparam mais com ela. Pelo que sabemos, o rei nem sequer se ofereceu para pagar seu resgate, como era costume naquela época fazer com os prisioneiros de vulto. muito provável que seus conselheiros lhe tenham dito que não permanecesse à sombra de uma mulher plebéia. Os ingleses, por sua vez, a venderam por dez mil francos ao bispo de Beauvais, que queria julgá-Ia como herege e feiticeira. O juízo teve lugar em Rouen, e Joana foi acusada como herege, entre outras coisas, por ter dito que recebera ordens

t:


As novas condições /31

o delfim

foi coroado na catedral de Reims, enquanto Joana d'Arc, em pé

diante do altar, via seus sonhos se tornerem realidade.

diretamente do céu sem intervenção da igreja, por dizer que seus santos falavam com ela em francês, e por se vestir de homem. Quando, depois de vários meses na prisão, seus ju ízes lhe declararam que ela seria entregue ao "braço secular" para


32 / A era dos sonhos frustrados

ser executada, ela concordou em assinar um documento abjurando, "sempre que agrade a Nosso Senhor". Em troca disto em vez de ser queimada viva ela foi condenada à prisão perpétua. r/ias poucos dias depois ela declarou que as santas Catarina e Margarida novamente se tinham apresentado a ela, repreendendo-a por causa da sua traição. Então ela foi levada à praça do I\:]ercado Velho, em Rouen, e queimada. Suas últimas instruções, dadas ao sacerdote que a acompanhou até a pira, foram no sentido de que ele levantasse o crucifixo bem alto, e repetisse com voz bem alta as palavras da salvação, para que ela as pudesse ouvir acima do rugir das chamas. Era o dia 30 de maio de 1431. Quase vinte anos mais tarde, ao entrar vitorioso em Rouen, Carlos VII ordenou uma nova investigação que, como era de se esperar, a exonerou. Em 1920 o papa Benedito XV a declarou santa. ~,1as já séculos antes ela se transformara na heroína nacional da França. A partir do episódio de Joana d'Arc as vitórias de Carlos VII se seguiram quase sem interrupção. Em 1435 ele conseguiu separar o duque de Borgonha (filho do que tinha sido assassinado) do partido inglês, assinando com ele a paz de Arras. Dois anos mais tarde suas tropas ocuparam Paris. Quando, em 1449, os reis da Inglaterra e da França acordaram uma trégua, os ingleses tinham sido expulsos de toda a França, a não ser de Calais e de alguns territórios na Guyenne e na Normandia. Carlos VII aproveitou os cinco anos de trégua para consolidar seu poder e organizar sua administração e seu exército. Isto teve resultados tão bons que quando as hostilidades foram reiniciadas os ingleses foram expulsos do território francês em somente quatro anos. I'Jo fim deste período restava-lhes na França somente Calais, que continuou sob seu domínio até 1558. Por isto, a partir de 1453 a guerra dos cem anos se limitou a pequenas escaramuças, até que por fim foi firmada a paz de Picquigny, em 1475. Esta longa guerra teve conseqüências importantes para a vida da igreja, como veremos em diversos capítulos deste volume. O fato de que durante boa parte dela o papado esteve em Avignon, onde existia à sombra do trono francês, contribuiu para aumentar a inimizade entre os ingleses e o papado. Mais tarde, durante o grande cisma em que a Europa se dividiu em


As novas condições /33

sua obediência a dois papas, as alianças estabelecidas durante a guerra dos cem anos foram um dos fatores que decidiam por qual papa cada país se decidia. Além disto a própria guerra dificultou a tarefa de sanar o cisma. Por último, tanto na França como na Inglaterra, Escócia e outros estados bel igerantes, a guerra fortaleceu o crescente sentimento nacionalista, e assim contribuiu para debilitar qualquer pretensão que o papado pudesse ter em termos de uma autoridade universal.


II O papado sob a sombra da Franca • É absolutamente

necessário para a salvação que todas as criaturas humanas estejam sob o pontífice romano. Bonifácio

VIII

Durante a "era dos altos ideais", como já vimos, houve conflitos constantes entre papas e imperadores. Os dois reclamavam para si uma autoridade universal e, mesmo existindo uma distinção teórica entre o poder temporal e o espiritual, o choque era inevitável. No perfodo que estamos narrando conflitos semelhantes continuaram existindo. A principal diferença era que estes não envolviam tanto os imperadores, mas alguns dos monarcas cujo crescente poder eclipsava o do I mpério. Particularmente as relações entre o papado e a monarquia francesa foram um dos principais fatores na história da igreja nos séculos XIV e XV.

Bonifácio VIII e Filipe, o Belo No fim do volume anterior dissemos que o papa Celestino V, um homem de profundas convicções franciscanas, renunciou ao seu posto, sendo eleito em seu lugar Bonifácio VIII. Benedetto Gaetani - era este o nome original do novo papa - era


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um homem de caráter oposto ao de Celestino. Enquanto este mostrara ser um fracasso por causa da sua extrema simplicidade, que não lhe permitia reconhecer as motivações obscuras que o coração humano abriga, Gaetani tinha vasta experiência diplomática como legado pontifício, e tinha tratado com reis e poderosos em diversos países da Europa. Nesta atividade ele tinha desenvolvido um conhecimento profundo das intrigas que eram tramadas nas cortes européias. E, enquanto a humildade extrema levou Celestino a renunciar à tiara, a origem aristocrática de Bonifácio, e as idéias ambiciosas que tinha sobre as prerrogativas papais, fizeram dele um dos papas mais altivos que a história conheceu. A sua eleição já é um exemplo da sua maneira de proceder. O conclave cardinal ício tinha se reunido em Nápolest à sombra do rei Carlos, e não conseguia chegar a um acordo sobre quem seria o novo papa. As poderosas fam (Iias dos Colonna e dos Orsini disputavam o papado; nenhuma estava disposta e eleger um membro do grupo oposto. Durante os dez dias que durou o conclave Bonifácio foi trabalhando para ser eleito, e conta-se que ele o conseguiu persuadindo os dois grupos que o deixassem apresentar um candidato imparcial. Depois de conseguir de ambos a promessa de que aceitariam o seu candidato, Bonifácio apresentou a si mesmo. Restava ainda a questão se Carlos aceitaria este novo papa, pois o rei tinha dado mostras de querer um instrumento dócil ocupando a Santa Sé, e todos sabiam que Benedetto Gaetani tinha um temperamento altaneiro e independente. Bonifácio, todavia, como diplomata hábil, convenceu Carlos que não lhe convinha ter em Roma um títere, mas um papa poderoso que fosse seu aliado. Além disto parece que Bonifácio ofereceu apoio a Carlos na sua luta para se apossar da Sidlia, que estava nas mãos da casa de Aragão. A eleição de Bonifácio não agradou a todos. O ideal franciscano, com seus profundos elementos bíblicos, exercia uma forte atração sobre os corações da época. Entre as classes pobres a eleição de Celestino V parecera ser a promessa de que por fim a igreja deixaria de servir aos interesses dos poderosos e ricos. Entre os monges mais entusiastas chegou-se a pensar que com aquela eleição começara a " Era do Espírito"


o papado sob a sombra da França /37 profetizada por Joaquim de Fiore. Mesmo se, ao que tudo indica, a renúncia de Celestino foi totalmente voluntária, provocada por sua profunda humildade e simplicidade franciscanas, logo surgiram rumores de que Bonifácio o obrigara a renunciar, para poder tomar posse do trono papal. Além disto, mesmo que sua renúncia tivesse sido voluntária, alguns dos seus partidários argumentavam que abdicar não fazia parte das prerrogativas papais - a atitude não tivera precedentes em toda a história da igreja - e por isto a renúncia de Celestino não era válida, e o monge franciscano, mesmo contra a sua vontade, continuava sendo o papa legítimo. Este movimento "celestinista" logo se misturou com o dos franciscanos extremistas, ou "fraticelli", e convenceu a muitos de que Bonifácio era um usurpador, um homem indigno de ocupar o trono de São Pedro. Quando, pouco tempo depois, Celestino morreu, a oposição perdeu o argumento de que havia outro papa legítimo, mas não deixou de fazer circular notícias, provavelmente falsas ou pelo menos exageradas, no sentido de que a morte de Celestino fora causada pelos maus tratos que sofrera por ordem de Bonifácio. Apesar desta oposição, os primeiros anos do pontificado de Bonifácio contribu fram para reforçar seu conceito de autoridade do papa. O novo pontffice cria firmemente que o papa era superior a todos os soberanos da terra, e entre as suastarefas estava a de estabelecer a paz entre estessoberanos. Ele mesmo disse mais tarde ao rei da França que se o imperador Teodósio se hu milhou diante de Ambrósio, o arcebispo de Milão, quanto mais um rei qualquer, que é menos que um imperador, deve se humilhar diante do papa, que é muito mais que um arcebispo. Por estas razões Bonifácio achava que cabia a ele pacificar a Itália, constantemente sacudida por guerras internas. Sua pol Itica ital iana fracassou somente no seu intento de cumpri r a promessa de colocar o rei de Nápoles sobre o trono da Sicília. No demais, os principais inimigos do novo papa na Itália foram afastados. Os Colonna, inimigos irreconciliáveis de Bonifácio desde a sua eleição, perderam quase todas as suas possessões,e se viram obrigados a partir para o exílio. Bonifácio conseguiu isto convocando uma cruzada que, com os recursos dos Orsini, tomou todos os castelos e lugares fortificados dos Colonna.


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Apesar dos ressentimentos que isto provocou em muitos, quase toda a Itália parecia acatar as instruções do papa. Também no Império, Bonifácio fez valer sua autoridade, quando o inepto imperador Adolfo de Nassau foi deposto por um grupo de nobres, que elegeram em seu lugar Alberto da Áustria. Pouco depois, perto de Worms, os dois rivais se encontraram no campo de batalha, e Adolfo de Nassau foi morto. Bonifácio considerou todos estes acontecimentos um crime duplo de rebelião e regicfdio, e se negou a ratificar a eleição de .A.lberto, ou a coroá-lo imperador. Durante os primeiros anos do pontificado de Bonifácio, Alberto pôde fazer pouco contra ele, e se viu obrigado a procurar a reconciliação com um inimigo aparentemente poderosíssimo. !'v:as Bonifácio se mostrava inflexível no que dizia ser a causa da justiça. A principal preocupação pol ítica do novo papa foi a reconcil iação entre França e Inglaterra. Seus esforços neste sentido se viram a princípio coroados com seu maior triunfo; mas mais tarde foram a causa da sua queda. Quando Bonifácio foi eleito em 1294 (bem antes da guerra dos cem anos que narramos no cap ítulo anterior), França e Inglaterra estavam a ponto de mutuamente se declararem guerra. Através de um subterfúgio o rei da França, Filipe IV, o Belo, tinha se apoderado da Guyenne, propriedade hereditária de Eduardo I da Inglaterra. Em resposta este último, que em suas possessões francesas era vassalo de Filipe, se declarou em rebeldia e apoiou economicamente Adolfo de Nassau e o conde de Flandres, inimigos de Filipe. O rei da França por, seu lado, prestou ajuda à resistência que os escoceses opunham a Eduardo. Nestas circunstâncias Bonifácio enviou seus legados à corte da Inglaterra, objetivando obrigar Eduardo a abrir negociações com Filipe. Quando Eduardo opôs objeções, o papa simplesmente ordenou aos dois soberanos que fizessem uma trégua, primeiro de um ano, e depois de mais três. A Adolfo de Nassau, que ainda reinava e era aliado de Eduardo, Bonifácio enviou ordens semelhantes. I'v':as tanto Eduardo como Filipe continuaram seus preparativos para a guerra, sem dar muita atenção ao mandado papal. Vendo o pouco caso que os monarcas faziam dele, Bonifácio decidiu levantar obstáculos aos seus intentos. Tanto Edu-


o papado

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ardo como Filipe necessitavam de muito dinheiro para cobrir seus gastos militares, e para comprar o apoio dos aliados. Nos dois reinos existia a regra de que as propriedades eclesiásticas estavam isentas de impostos. Mas tanto na Inglaterra como na França a coroa tinha descoberto meios de burlar esta norma, geralmente exigindo contribuições "voluntárias" do clero. Estas contribuições eram ainda mais necessárias diante da ameaça da guerra. E ao mesmo tempo provocavam a ira do clero, que se via despojado de um dos seus privilégios mais apreciados. Portanto, na tentativa de proteger as propriedades da igreja, ganhar a simpatia do clero, e opor obstáculos à política bélica de Eduardo e Filipe, Bonifácio promulgou em 1296 a bula Clericis laicos, que transcrevemos a seguir: Os tempos antigos mostram que os leigos foram sempre inimigos do clero; e a experiência dos tempos presentes o confirma, pois os leigos, insatisfeitos com suas limitações, querem conseguir o que lhes está proibido, e abertamente procuram obter o que ilicitamente cobiçam. Prudentemente eles não admitem que qualquer domínio sobre o clero lhes é negado, bem como sobre qualquer pessoa eclesiástica e suas propriedades, impondo pesadas cargas aos prelados, às igrejas, e às pessoas eclesiásticas ... E, dói-nos dizê-lo, certos prelados e pessoas eclesiásticas, ... temendo mais a soberania temporal que a eclesiástica, ... admitem estes abusos Por isto, para pôr um fim nestas práticas in íquas declaramos que qualquer prelado ou pessoa ecfesiástica ... que pague ou prometa pagar qualquer quantia ... a qualquer imperador, rei, príncipe '" ou alguma outra pessoa, não importa sua posiçao, que o exija, requeira ou receba este pagamento está automaticamente, por sua própria ação, sob a sentença de excomunhão. A resposta dos reis não se fez por esperar. Eduardo declarou que, já que o clero estava isento de toda contribuição ao estado, estava fora do alcance protetor da lei, e sem direito LI acesso aos tribunais de justiça. Em seguida ordenou que fossem tirados dos clérigos seus melhores cavalos, e que suas queixas não fossem aceitas pelos tribunais. Naturalmente


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isto nada mais era que um indício da situação diffcil em que o clero se encontrava, e estava claro que Eduardo tomaria medidas extremas se não obtivesse os fundos de que necessitava. Sem demora todo o clero, com a exceção notável do arcebispo de Canterbury, decidiu transferir para o rei a quantia exigida, recorrendo ao subterfúgio de não entregá-Ia diretamente, mas de colocá-Ia em um fundo que ficava à disposição da coroa "para casos de emergência", e estipulando que o rei tinha autoridade para determinar quando uma situação qualquer se caracterizava como emergência. A resposta de Filipe foi mais direta e extrema. Um edito real proibiu qualquer transferência de dinheiro para o exterior, bem como de metais preciosos, cavalos, armas ou qualquer outro objeto de valor, sem a autorização expressa do rei. Outro proibiu que bancos e instituições de crédito exportassem qualquer riqueza. A intenção clara destes dois editos era privar o papa de toda receita procedente da França. Mas o rei tomou o cuidado de ditar medidas aparentemente gerais, que colocavam em suas mãos a decisão a respeito de qualquer exportação, e que portanto podiam ser aplicadas ou não, de acordo com a conveniência do momento. Nisto ele seguia os conselhos de dois de seus conselheiros, que estavam entre os juristas mais famosos da época, Pedro Flotte e Guilherme de Nogaret. O resultado foi uma longa e complexa correspondência entre as duas partes, em que tanto o rei como o papa, enquanto se ameaçavam mutuamente em termos gerais, em termos concretos se expressavam de maneira ambfgua. Os dois sabiam que tinham inimigos poderosos, e não queriam chegar a uma ruptura aberta e definitiva. Enquanto isto a guerra prosseguia, sem vantagens decisivas para qualquer dos lados, e tanto Eduardo como Filipe estavam com poucos recursos para continuá-Ia. Foi esta realidade que mais tarde os levou a aceitarem a mediação de Bonifácio, cuja trégua ambos tinham violado. Então, Filipe mesmo insistiu em aceitar a mediação particular de Benedetto Gaetani, e não do papa. Apesar disto Bonifácio obteve um grande triunfo quando os dois reis, obrigados pelas circunstâncias, concordararn com as condições de paz ditadas por ele, e os oficiais


o papado do papa ficaram provisoriamente que continuavam em disputa.

sob a sombra da França /41

de posse dos territórios

Enquanto tudo isto acontecia Bonifácio ainda teve satisfação de ver a Escócia se declarar feudo seu. Por causa da invasão dos ingleses os escoceses não tiveram outro recurso que apelar às suas próprias armas e à proteção do papado. Como base para solicitar esta proteção eles declararam que a Escócia desde tempos antiqu (ssimos sempre fora feudatária da Santa Sé. Bonifácio respondeu ordenando a Eduardo que desistisse do seu intento de se apoderar da Escócia, pois este pafs pertencia ao papado. Apesar de Eduardo não dar muita atenção à ordem pontiffcia, Bonifácio viu na atitude dos escoceses mais uma prova da elevada dignidade do papado. Aproximava-se o ano 1300, e Bonifácio proclamou um grande jubileu eclesiástico, prometendo indulgência plenária aos que visitassem o sepulcro de São Pedro. Roma se viu inundada por peregrinos que acorriam para render homenagem não s6 a São Pedro, mas também a seu sucessor, e parecia ser a pessoa mais poderosa da Europa. Mas o entusiasmo do jubileu não durou muito tempo, e o grande papa logo viu seu poder se desvanecer. Suas relações com Filipe, o Belo, ficavam cada vez mais tensas. O rei da França tomou posse de diversos territórios eclesiásticos, deixou Sciarra Colonna, o mais temível membro desta farnflia inimiga do papa, se refugiar em sua corte, e ofereceu a mão de Suo irmã ao imperador Alberto da Austria, que Bonifácio tinha declarado usurpador e regicida. Pedro Flotte, enviado como embaixador francês a Roma, pareceu ofensivo ao papa. A mésma impressão Filipe teve do legado papal, que mais tarde mandou prender através de uma manobra legal. As cartas e bulas dos dois poderosos ficaram cada vez mais ácidas, até que, em prindpios de 1302, uma bula papal foi queimada na presença do rei. No mesmo ano Filipe convocou os estados gerais - o parlamento francês - onde pela primeira vez esteve representado, ao lado dos "estados", tradicionais que eram cI nobreza e o clero, o "terceiro estado", a burguesia. Estes estados gerais enviaram diversos comunicados para Roma, em defesa do rei. A resposta de Bonifácio foi a famosa bula Unam


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sanctam, que citamos

brevemente no fim do volume anterior, em que ele expunha a autoridade papal em termos sem precedentes. Bonifácio pôs em ação seu conceito elevado de autoridade pontlffcia ordenando a todos os prelados franceses que viessem a Roma em prindpios de novembro, para tratar ali do caso de Filipe. Este retribuiu proibindo que qualquer bispo ou abade abandonasse o reino, sob pena de confisco de todos os seus bens. Além disto se apressou em fazer as pazes com Eduardo. O papa, por seu lado, se esqueceu de que, na sua opinião, Alberto da Austria era um rebelde regicida, e fez um acordo com ele, enquanto ordenava a todos os príncipes alemães que aceitassem o senhorio de Alberto. Em mais uma sessão dos estados gerais franceses, Nogaret acusou Bonifácio de ser um papa falso, herege, sodomita e criminoso, e a assembléia pediu a Filipe que ele, como guardião da fé, convocasse um concílio universal para julgar o papa usurpador. Para cobrir sua retaguarda e assegurar o apoio do clero Filipe promulgou as "ordenanças da reforma", em que confirmava os antigos privilégios do clero francês. Ao papa só restava a última arma que seus predecessores tinham utilizado contra os monarcas recalcitrantes, a excomunhão. Reunido com seus conselheiros em sua cidade natal de Anagni, ele redigiu a bula de excomunhão, que deveria ser promulgada no dia 8 de setembro. Sciarra Colonna e Guilherme de I'Jogaret, porém, sabendo que a confrontação estava chegando ao seu ponto culminante, viajaram para a Itália, com a autorização de Filipe de obter crédito ilimitado dos banqueiros italianos. Com este dinheiro, e o apoio dos muitos inimigos que Bonifácio fizera durante sua carreira, eles organizaram um pequeno grupo armado. No dia 7 de setembro de 1303, um dia antes da planejada excomunhão de Filipe, .Sciarra Colonna e Guilherme de Nogaret invadiram Anagni, e não tiveram problemas para se apossar da pessoa do papa, enquanto o povo saqueava sua casa e as dos seus parentes. O propósito dos franceses era obrigar o papa a abdicar. Mas o velho papa ficou firme, respondendo simplesmente que não abdicaria e que, se quisessem matá-lo, "aqui está meu pescoço; aqui minha cabeça". Nogaret o esbo-


o papado feteou, e depois o humilharam tas em um cavalo não muito

sob a sombra da França /43

obrigando-o a montar de cosmanso, conduzindo-o pela ci-

dade. Somente dois cardeais, Pedro da Espanha e Nícolau Boccasini, ficaram firmes no meio do tumulto. I\/,ais tarde Boccasini conseguiu comover o povo, que se sublevou, libertou o papa e expulsou os franceses e seus partidários. Mas o mal estava feito. Voltando para Roma, Bonifácio não conseguiu inspirar mais nem uma sombra do respeito que tivera antes. Mais ou menos um mês depois ele morreu. E ainda depois da sua morte seus inimigos o perserguiram, espalhando boatos de que ele tinha se suicidado, quando tudo indica que ele morreu serenamente, rodeado dos seus seguidores mais fiéis. O momento era difícil para o papado, e os cardeais elegeram sem demora Boccasini papa, o mesmo que conseguira libertar Bonifácio. Este papa, que tomou o nome de Benedito XI, era um homem de origem humilde e hábitos irrepreensíveis, membro da ordem dos empregadores de São Domingos. Tendo em vista o poder de Filipe, o Belo, o mais sábio parecia ser seguir uma pol ítica de reconciliação, e foi isto que o novo papa tentou fazer. Restituiu as Colonna as terras que Bonifácio VIII tirara deles, começou a tentar fazer as pazes com Filipe, o Belo, e perdoou a todos os inimigos de Bonifácio, menos Sciarra Colonna e Nogaret. I'vias suas gestões não tiveram bom êxito. Os partidários de Bonifácio se queixavam do que aos seus olho eram concessões excessivas aos que tinham cometido crimes graves contra o papado. O grupo contrário não se considerava satisfeito com as medidas conciliatórias do pontífice. lrnpelico por Nogaret e outros, Filipe, o Belo, insistia em que fosse convocado um concílio para julgar o papa falecido. Benedito não queria dar este passo, que seria um rude golpe para a autoridade e o prestígio dos papas. O sucessor de Bonifácio, portanto, estava em dificuldades sérias, acossado por membros dos dois partidos, quando morreu. Logo se espalhou o boato de que ele tinha sido envenenado com uns figos que alguém lhe enviou, e cada grupo acusava seus opositores de ter cometido a ação nefanda. Mas nunca foi provado se Benedito XI foi mesmo envenenado.


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o papado

em Avignon

Cs cardeais não conseguiram logo chegar a um acordo sobre quem seria o sucessor de Benedito. Por um lado os partidários da boa memória de Bonifácio, sob a direção do cardeal I\lateo Rosso Orsini, insistiam em que fosse eleito alguém que seguisse a política do pontífice ultrajado. Contra estes, outro grupo encabeçado por Napoleão Orsini, sobrinho do anterior, dócil aos manejos do rei da França, procurava um meio de eleger um papa também dócil. Depois de muitos meses de discussões os cardeais conseguiram chegar a uma conclusão, graças a uma artimanha de Napoleão Orsini e dos seus. Um dos candidatos que o partido dos outros Orsini tinha sugerido, no princfpio das negociações, era Bertrand de Got, arcebispo de Bordeaux. Ele tinha sido nomeado por Bonifácio, e além disto Bordeaux pertencia naquela época à coroa inglesa. Por estas razões o tio Orsini supunha que Bertrand se oporia aos des(gnios do rei da França. Mas durante o conclave o sobrinho enviou agentes para Bordeaux, e conseguiu a adesão do candidato originalmente proposto por seu tio. Então, enquanto os defensores da memória de Bonifácio acreditavam que seus opositores, vencidos pela resistência, concordavam com a eleição de um dos seus candidatos, o que na verdade estava sucedendo era que este candidato secretamente mudara de lado. Um papa eleito nestas circunstâncias não podia ser um modelo de firmeza e retidão. De fato, o pontificado de Clemente V - assim Bertrand de Got se chamou depois de aceitar a tiara papal - foi funesto para a igreja romana. Durante todo o seu reinado este papa não esteve em Roma nem uma vez. Parece que isto não foi causado por alguma decisão sua, mas simplesmente por seu caráter indeciso. Como interessava ao rei da França ter o papa perto de si, seus agentes faziam todo o possfvel para adiar a partida do pont(fice para a Itália. Mês após mês, ano após ano, Clemente viajou pela França e regiões vizinhas, sem dar ouvidos às petições que os romanos lhe faziam, rogando-lhe que fosse à sua cidade. Um dos lugares em que ele passou boa parte do seu pontificado foi Avignon, cidade perto da fronteira com a França que era propriedade papal, e onde seus sucessores fixaram residência depois por muitos anos.


o papado

sob a sombra da França /45

A política de Clemente ficou clara na primeira nomeação de cardeais, porque nove dos dez nomeados eram franceses. Em seu pontificado ele nomeou ao todo vinte e quatro cardeais, e vinte e três eram franceses. Além disto vários eram seus sobrinhos ou parentes, e com isto Clemente fez chegar ao auge o nepotismo, que seria uma das grandes manchas da igreja até o século XVI. Mas foi principalmente no que refere à memória de Bonifácio e à supressão dos templários que Clemente se mostrou instrumento dócil aos des(gnios franceses. A questão da memória de Bonifácio era uma arma poderosa nas mãos dos franceses, que sabiam que o novo papa não poderia permitir que fosse convocado um condlio para julgar seu antecessor. Por isto, sempre ameaçando Clemente com a possível convocação deste condlio, os franceses obtiveram dele tudo o que desejavam em termos de anulação das decisões de Bonifácio. As bulas C/ericis laicos e Unam- sanctam foram revogadas, ou pelo menos reinterpretadas de modo que não dissessem o que Bonifácio intentara. Os Colonna tiveram toda a sua dignidade restaurada. Nogaret foi perdoado, sob a condição de que em futuro não determinado fosse em peregrinação até a Terra Santa. Por fim, em uma bula de 1311, Clemente declarava que, no que referia às ações contra Bonifácio, Filipe tinha agido com um "zelo elogiável". Todas estas concessões. foram arrancadas do papa que tinha sido feito arcebispo pelo próprio Bonifácio. E lhe foram arrancadas de' uma maneira tal, que sempre parecia que os franceses, mesmo tendo o direito de pedir mais, estavam dispostos a ceder em alguma das suas exigências mais extremas, e que por isto o papa deveria estar agradecido. O caso dos templários foi ainda mais vergonhoso. No fim das cruzadas a antiga ordem tinha perdido a razão da sua existência. Mas, pelo menos em teoria, os papas continuaram pregando o ideal da cruzada para reconquistar a Terra Santa. Portanto, mesmo se em certo sentido a ordem sem dúvida estava destinada a desaparecer, também não restam dúvidas de que o momento e a maneira com que desapareceu eram devidos à avareza de Filipe, o Belo, e à debilidade de Clemente. Através dos séculos os templários tinham acumulado grandes riquezas e extensões de terra. Para uma monarquia pujante co-


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mo a francesa, os bens e o poder dos templários eram um obstáculo para sua pol [tlca centralizadora. Em outras regiões da Europa outros monarcas davam mostras de sentimentos semelhantes. Pouco a pouco, em parte graças ao apoio da burguesia, os reis iam enfraquecendo o poder de que os grandes senhores feudais tinham gozado até então. Mas o caso dos templários era diferente, pois, por ser uma ordem monástica, não podia ser submetida diretamente ao poder temporal. Por isto recorreu-se ao subterfúgio de acusá-lo de heresia e imoralidade, e forçar o débil Clemente V a suprimir a ordem e a dispor dos seus bens em proveito da monarquia. De repente, e de maneira totalmente ilegal, os templários que se encontravam na França foram presos. Através de torturas eles foram obrigados a confessar os crimes mais vergonhosos. Se bem que muitos se negaram a trair seus companheiros e suportaram valentemente os tormentos mais cruéis, mais tarde foram reunidas declarações suficientes para justificar o ato ilegal do rei. Alguns confessaram que a ordem dos templários na verdade era uma fraternidade oposta à fé cristã. Os neófitos eram obrigados a praticar a idolatria, cuspir na cruz e maldizer a Cristo. Outros declararam sob torturas que havia a prática da sodomia na ordem, que era incentivada de diversas maneiras. Entre os que se renderam diante dos suplfcios estava Jacques de Molay, o grão-mestre da ordem, que até enviou uma carta aos seus companheiros, pedindo-lhes que confessassem o que soubessem. Alguns pensam que Molay fez isto porque estava certo de que as acusações eram tão absurdas que ninguém lhes daria crédito, e que o escândalo seria tamanho que o rei se veria obrigado a pôr em liberdade os cativos. Outros acham que ele o fez simplesmente porque fraquejou sob as torturas. Quando o papa recebeu not(cias do acontecido, e de como as confissões tinham sido arrancadas aos torturados, era de se esperar que ele acorresse em defesa dos membros de uma ordem que estava sob sua proteção, e cujos direitos o rei tinha violado. Mas aconteceu algo muito diferente. Clemente ordenou que em todos os países os templários fossem presos, impedindo desta maneira qualquer atitude que o restante da ordem pudesse tomar contra Filipe. Quando ficou sabendo que muitas


o papado sob a sombra da França /47 confissões tinham sido obtidas à força, tentou evitar estes abusos declarando que, por causa da importância do caso, ele mesmo serviria de juiz, e que por isto as autoridades locais não tinham jurisdição para continuar as torturas. I'vlasisto foi tudo que o débil papa fez em defesa dos que lhe tinham jurado obediência e confiavam em sua proteção. Enquanto esperavam o dia do julgamento os templários continuaram encarcerados. No ano seguinte o rei e o papa deveriam se reunir em Poitiers. Chegando nesta cidade, Clemente constatou que ele era acusado de instigar as supostas práticas dos templários. Nas sessões públicas, a instâncias de Nogaret, ele foi insultado e ameaçado. Além disto, para acalmar sua consciência, foram apresentados a ele alguns dos templários mais dóceis, que repetiram em sua presença as confissões que o medo da dor lhes tinha arrancado anteriormente. Por fim o papa concordou em deixar o assunto nas mãos de um concflio que se reuniria na cidade francesa de Viena. No dia primeiro de outubro de 1311, quase quatro anos depois do encarceramento dos templários, reuniu-se o concflio. As esperanças de Filipe, de que a assembléia, dominada por franceses, chegasse logo à condenação da ordem, mostraram ser infundadas. A comissão que o concílio nomeou para analisar o assunto dos templários insistia em que era preciso ouvir a defesa dos acusados. O rei trovejou e ameaçou; mas os prelados, talvez envergonhados com a fraqueza do seu I(der, permaneceram firmes. Por fim, enquanto a assembléia se demorava com assuntos de menos importância, o rei e o papa chegaram a um acordo. A ordem dos templários seria suprimida, não através do julgamento, mas por decisão administrativa do papa. Ao concflio não restou outra alternativa que concordar. Depois de outra série de negociações decidiu-se cumprir os desejos do rei da França, e transferir os bens dos templários para os hospitalários. Esta transferência, entretanto, foi inexpressiva, pois demorou diversos anos, durante os quais o rei fez chegar ao papa uma conta dos gastos do julgamento dos templários, a ser cobrada dos bens da ordem suprimida antes da transferência para os hospitalários, conta esta que quase alcançava a totalidade destes bens.


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Quanto aos acusados, muitos foram condenados à prisão perpétua. Quando Jacques de Molay e um dos seus principais assessores foram levados para a catedral de Nossa Senhora de Paris para confessar publicamente os seus crimes, se retrataram. Foram queimados vivos no mesmo dia. Clemente V morreu em 1314. Seu pontificado foi um sinal das condições sob as quais o papado existiria durante diversas décadas. ~ verdade que nem todos os papas deste perfodo quiseram transformar a igreja em um instrumento da pol ftica francesa. Mas é verdade também que, às vezes com pesar, se viram obrigados a apoiar esta pol ítica. Não podemos narrar aqui os detalhes dos pontificados que sucederam a Clemente. Basta assinalar alguns dos acontecimentos mais importantes, e por último destacar as principais caracterfsticas do papado naqueles dias aziagos. João XXII foi eleito passados mais de dois anos da morte de Clemente, pois os cardeais não conseguiram chegar a um acordo. Já que o novo papa tinha setenta e dois anos de idade ao ser eleito, é de se supor que o conclave decidiu nomeá-lo na esperança de que durante seu breve pontificado surgisse outro candidato. Mas o papa ancião foi inesperadamente longevo e ativo. Sua preocupação principal durante seu longo pontificado (1316-1334) foi tentar restaurar a autoridade papal na Itália. Sua polftica neste sentido consistiu em intervir em uma série de guerras que dividiram a região, em que os interesses papais se confundiam cada vez mais com os da França. Para poder sustentar esta pol ítica, que foi um fracasso total, João XXII se viu obrigado a procurar aumentar as receitas do papado. Deve-se a ele em grande parte o complexo sistema de impostos eclesiásticos cujo propósito era fazer fluir para as arcas pontifícias os recursos necessários para os desígnios políticos e os sonhos arquitetônicos do papado. Como era de se esperar, em muitos casos este sistema de impostos eclesiásticos redundou em prejuízo da vida religiosa. Benedito XII (1334-1342), ao mesmo tempo que prometia aos romanos regressar em breve à sede de São Pedro, começou a construção de um grande palácio em Aviqnon, que a partir de então seria a residência papal. Além disto, dando a entender com isto que Roma não era a residência habitual


o papado

sob a sombra da França

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dos papas, ele fez buscar de lá os arquivos papais. Mesmo usando os distúrbios que havia na Itália como desculpa para não ir a Roma, a verdade era que muitos destes distúrbios eram causados pela pol ítica do papa, e que sua ausência contribu (a para aumentá-los. Durante seu pontificado ficou claro que o papado estava nas mãos da coroa francesa, pois era a época da guerra dos cem anos, e tanto os recursos econômicos como a rede de informações dos pontífices foram colocados à disposição dos franceses. Tudo isto alienou cada vez mais o papado da Inglaterra e do seu principal ai iado, o Império. O próx imo papa, C lemente V I (1342-1352), continuou apoiando o esforço bélico francês. r,,'lesmo servindo às vezes cie mediador entre os adversários, ele sempre o foi em beneHcio e conveniência da França. Além disto foi ele quem levou ao seu ponto culminante duas das piores características do papado de Avignon: o nepotismo e o excessivo desperd (cio da sua corte, que não podia ser diferenciada da de qualquer outro senhor poderoso. Quando a peste bubônica irrompeu durante

o

grande palácio de Avignon, que Benedito XII u partir de então 8 residlncia dos papas.

começou

(I

construir,

foi


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o seu pontificado, não faltaram os que viram nela um castigo do céu por causa do nível a que descera a vida eclesiástica. Inocêncio IV foi um papa relativamente bom, principalmente se comparado com seu predecessor imediato. Ele sempre sonhou em voltar para Roma, e com este propósito enviou para Itália como legado o cardeal Gil Alvarez de Albornoz. Este conseguiu restaurar em grande parte o poder e o prestígio do papa na Itália. Mas tanto o papa como seu legado morreram antes de conseguir levar o papado de volta para a cidade eterna. Urbano V (1362-1370) era um homem de profundas convicções e rígida disciplina monástica. Sua principal tarefa foi simplificar a vida da cúria. Vários cortesãos papais de gostos mais ostentosos foram despedidos. O próprio papa deu o exemplo, negando-se a deixar seu hábito monástico e usar as roupas vistosas dos seus antecessores. Ele também incentivou o estudo e tentou reformar a vida eclesiástica. Por fim, em 1365, graças à obra tenaz e sábia que o cardeal Albornoz realizara, Urbano V pôde se transferir para Roma, que o recebeu com grande júbilo. Mas o santo papa não tinha a sabedoria necessária para enfrentar as complicações pol íticas da época. Por razões desconhecidas, e com certeza escusas, ele desfez a pol ítica de Albornoz e se lançou em novos empreendimentos fracassados. O resultado foi tal que em 1370 ele decidiu abandonar Roma e regressar para Avignon. Gregório XI (1370-1378) fora nomeado cardeal por seu tio Clemente VI com somente dezessete anos de idade. Mesmo sentindo a necessidade de voltar para Roma, o fracasso de Urbano V o assustava. Foi então que ocorreu a intervenção de Santa Catarina de Siena.

Santa Catarina de Siena

Em 1347 nasceu em uma famflia numerosa no bairro dos curtidores em Siena a que depois seria chamada de "Santa Catarina de Siena". Já muito jovem ela demonstrou uma inclinação singular para a vida religiosa, e com dezessete anos de idade se juntou às "irmãs da penitência de São Domingos". Esta organização era muito flexível, e seus membros continuavam vivendo em suas próprias casas, dedicando-se ali à penitência


o papado sob a sombra da França /57

Santa Catar/na da sten«, quadro anónimo aspsnhol, do tas/a do MBSdows Musaum, DaI/as, Taxas.

SBCU/O

XVII.

Cor-

e à contemplação. Para que a jovem Catarina pudesse levar este tipo de vida seu pai separou para ela um pequeno quarto, onde passou diversos anos da sua vida contemplativa. Esta contemplação ia além de exerdcios mentais e pensamentos piedosos. As visões e experiências de êxtase foram sendo cada vez mais freqüentes na vida da jovem m(stica. Finalmente, em 1366, com dezenove anos de idade, ela teve a principal visão deste primeiro perfodo da sua vida. Nesta


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era dos

sonhos frustrados

visão lhe apareceu Jesus Cristo, contraindo com ela núpcias m(sticas. Depois desta experiência das "bodas místicas com Jesus" o teor da vida religiosa de Catarina mudou. Até então ela tinha se ocupado quase exclusivamente da sua própria vida espiritual. Mas agora, seguindo o exemplo do seu esposo rnfstico, ela iniciou um ministério em prol da humanidade. Parte deste ministério consistiu em servir aos pobres e enfermos. Muitos diziam ter sido curados por sua intercessão, e quase

Bodas mtstices de Santa Catar/no. 6180 de Francisco tesia do MeBdows Museum, DIlI/os, Toxss.

de Zurbaram.

Cor-


o papado

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lodos afirmavam que somente a sua presença já trazia consigo uma profunda paz espiritual. A outra parte notável do seu ministério foi o ensino. Ao redor dela se formou um círculo de mulheres e homens que escutavam avidamente seus ensinos sobre a vida espiritual. Muitos destes discípulos eram sacerdotes, monges e nobres que a excediam tanto em idade como em posição social. Ao mesmo tempo de alguns destes discípulos - principalmente os dominicanos - Catarina aprendeu boa parte da teologia da igreja, evitando assim o perigo de tantos outros m ísticos, de desconhecer o pensamento religioso do restante da igreja, e em conseqüência serem acusados de hereges. Sua tama já era grande quando em 1370 ela teve outra experiência, que iniciou a terceira e última etapa da sua vida religiosa. Durante quatro horas seu corpo esteve tão imóvel que os que estavam junto dela pensavam que ela tinha morrido. Ao despertar declarou que na verdade estivera com o Senhor, e que lhe rogara que lhe permitisse ficar com ele. r·llas Jesus tinha retrucado: "Muitas almas, para serem salvas, exigem que tu voltes .... A partir de agora, e para o bem das almas, sairás da tua cidade. Eu sempre estarei contigo, e te guiarei, e te trarei de volta." Daquele momento em diante Catarina se dedicou à árdua tarefa de levar o papado de volta para Roma. Para isto era necessário restaurar a paz na Itália, e convencer o papa de que era necessário voltar. Com este propósito ela viajou de cidade em cidade. Onde ela chegava as multidões acorriam para vê-Ia. Dizia-se que aconteciam milagres em sua passagem. Ao papa ela escreveu diversas vezes dizendo-lhe que o Senhor lhe tinha revelado que era da sua vontade que o papado voltasse à sede romana. Estas cartas mostram ao mesmo tempo um profundo amor e respeito, e uma firmeza inquebrantável. Enquanto o estado da igreja a entristece, ela chama o papa de "nosso doce pai". E em suas missivas mais respeitosas ela se queixa, sem com isto se deixar levar pelo ódio ou pela amargura, de "ver Deus assim ultrajado". Não é possível saber até que ponto tudo isto teve influência sobre Gregório XI. 1\1as é fato que por fim, no dia 17 de janeiro de 1377, somente três anos antes da morte de Catarina


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aos trinta anos de idade, Gregório XI entrou em Roma, em meio ao júbilo generalizado. Tinha terminado o perfodo do papado em Avignon, que foi chamado, com certa razão, de "cativeiro babilônico da igreja". Catarina, como temos dito, morreu três anos depois de ver realizado o seu anseio. Pouco menos de um século mais tarde ela foi declarada santa pela igreja romana. E em 1970 Paulo VI lhe conferiu o título de "doutor ela igreja". Ela e Santa Teresa de Jesus são as únicas mulheres que receberam este honroso título do papado, até então reservado para uns poucos teólogos homens. A vida eclesiástica

As conseqüências do papado em Avignon foram funestas para o cristianismo de fala latina - ou seja, de toda a cristandade ocidental. As guerras constantes na Itália, e o luxo das suas cortes requeriam dos papas de Avignon amplos recursos econômicos. Como as diversas facções na Itália se apossaram dos territórios que antes tinham constitu ído o "patrimônio de São Pedro", o único recurso que restava aos papas era obter fundos provenientes dos demais países da Europa ocidental. Os fiéis nestas regiões não estavam dispostos a contribuir voluntariamente para tuco o que o papado queria gastar, e por isto os pontífices de Avignon, particularmente João XXII, elaboraram todo um sistema de impostos eclesiásticos. Estes impostos resultavam em prejuízo para a vida religiosa. Assim, por exemplo, quando um prelado era nomeado para ocupar uma nova sede, as receitas recolhidas ali durante o primeiro ano, chamadas de "anata", pertenciam ao papa. Por isto o papado tinha interesse em freqüentes transferências de prelados. Se uma diocese rica ficava vaga o papa podia demorar para preencher o cargo vacante, recolhendo para si as receitas da sede em questão. Estes hábitos, que pelo menos tinham aparência legal, faziam companhia à simonia - nome derivado do episódio em que Simão, o mágico, foi o primeiro a querer praticá-Ia - que consistia em comprar e vender cargos eclesiásticos. O que o papa fazia com os prelados estes faziam com seus subordinados. Se tinham comprado sua diocese, eles


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precisavam se ressarcir dos gastos vendendo cargos inferiores, e exigindo que as contribuições do povo, que tinham força de lei, fossem cada vez mais elevadas. Portanto boa parte da vida eclesiástica nada mais era que um sistema de exploração dos escassos recursos do povo, arqueado debaixo de encargos cada vez mais onerosos. À simonia e à exploração se juntaram males relacionados, como o nepotismo, o absentismo e o pluralismo. Como cargos eclesiásticos eram ricas prendas, os papas de Avignon deram rédeas soltas ao nepotismo, que consiste em nomear pessoas para ocupar cargos não com base em sua habilidade, mas em seu parentesco com quem é responsável pela nomeação. E o que os papas faziam os bispos e arcebispos imitavam. O absentismo, isto é, ocupar um cargo e residir em outro lugar, era cada vez mais comum entre pessoas que não tinham nenhuma vocação. E muitos ocupavam ao mesmo tempo diversos cargos eclesiásticos, sem cumprir as obrigações de nenhum deles - pluralismo. A aliança estreita entre o papado e os interesses franceses, unida a um crescente sentimento nacionalista, contribuiu para aumentar a inimizade que boa parte da Europa tinha pelos papas. Estava em andamento a guerra dos cem anos, e a I nglaterra e os imperadores alemães se separaram cada vez mais do papado, que parecia servir aos interesses de seus inimigos, França e Escócia. Em conseqüência obtinha cada vez mais adeptos a teoria de que o estado tinha uma autoridade independente da do papa. Na Alemanha, por exemplo, o imperador Lu Is da Baviera tentou fortalecer 'sua posição contra João XXII apoiando Nlardlio de Pádua e Guilherme de Occam, dois pensadores que se dedicavam a defender esta teoria. Assim como Dante poucos anos antes, eles diziam que a autoridade secular vinha diretamente de Deus, e não através do papa. Mardlio ensinava, além disto, que assim como Cristo e os apóstolos foram pobres e se submeteram à autoridade secular, assim também os prelados deveriam ser pobres, sem receber mais que o estado decidia lhes dar, e deveriam se submeter ao estado. Occam, por sua vez, declarava que o papado não era necessário para a igreja, que consistia no conjunto dos fiéis, e por isto poderia ser dirigida de outra maneira.


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Tudo isto, bem como o modo com que foi acolhida a pregação de Catarina de Siena e de muitos outros iguais a ela, nos dá a entender que havia um profundo sentimento de insatisfação com a igreja e seus I(deres. Através de todo o período que estudamos veremos que, enquanto a estrutura eclesiástica parece fundir-se cada vez mais, surgem numerosos movimentos reformadores. Uns tentavam reformar a igreja a partir do papado. Outros tinham interesses mais locais. Alguns concentravam sua atenção na vida privada e na experiência mística. Uns queriam reformar tanto os costumes como a teologia da época, enquanto outros se contentavam com conclamar as pessoas para uma dedicação nova. Foi uma época em que a triste realidade deu lugar a muitos e muito nobres sonhos. Mas também foi uma época em que quase todos estes sonhos acabaram frustrados.


III O Grande Cisma do Ocidente Por causa do perigo e das ameaças do povo ele foi entronizado e coroado, e chamado papa e apostólico. Mas de acordo com os santos pais e a lei eclesiástica deveria ser chamado apóstata, anátema, anticristo, e perversor e destruidor da fé. Conclave rebelde contra Urbano VI

o sonho de Catarina de Siena parecia ter se cumprido quando Gregório XI levou o papado de volta para Roma. Mas as condições pol íticas que tinham causado o "cativeiro babilônico da igreja" não tinham desaparecido. Em pouco tempo as dificuldades eram tão grandes que Gregório chegou a considerar a possibilidade de regressar a Avignon, e provavelmente o teria feito se a morte não o tivesse surpreendido. E então o sonho de Catarina se transformou em um pesadelo ainda pior que o papado de Avignon. Com a sede pontiffcia vaga, o povo romano receou que o novo papa quisesse voltar para Avignon, ou ao menos fosse um joguete nas mãos dos interesses franceses, como tantos dos seus predecessores mais recentes o tinham sido. Estes receios não eram infundados, pois os cardeais franceses eram mais numerosos que os italianos, e vários deles tinham dado


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mostras que preferiam Avignon a Roma. O que o povo temia era que os cardeais fugissem, e, uma vez a salvo, se reunissem em outro lugar, possivelmente dominados pela ala simpática ao rei da França, e elegessem um papa francês que decidisse residir em Avignon. Por esta razão o povo romano se amotinou e impediu a fuga dos cardeais. O lugar onde o conclave deveria se reunir foi invadido por multidões armadas, que somente concordaram em sair depois de receberem permissão para vigiar o ediffcio, para ter certeza de que os cardeais não escapariam. Enquanto tudo isto acontecia o povo gritava, exigindo que fosse nomeado um papa romano, ou pelo menos italiano. Nestas circunstâncias o conclave teve muitas dificuldades para deliberar. Os cardeais franceses, que de outro modo teriam podido dominar a eleição, estavam divididos, pois o nepotismo dos papas anteriores resultara na nomeação de um bom número de cardeais procedentes da diocese de Limoges. Estes estavam decididos a fazer eleger um dentre eles, e o restante dos franceses estava decidido a evitá-lo. Entre os italianos o mais poderoso era Jacobo Orsini, que ambicionava a tiara papal, e possivelmente instigava o levantamento do povo. I\;ais tarde, enquanto o povo gritava no primeiro andar do ediffcio, os cardeais, reunidos no andar de cima, decidiram eleger Bartolomeu Prignano, arcebispo de Bari. Mesmo não sendo romano, ele pelo menos era italiano, e com isto o povo se acalmou. No domingo da ressurreição Prignano foi coroado com a participação de todos os cardeais que o tinham eleito, com grande pompa, e tomou o título de Urbano VI. Em meio àquela- igreja corrupta a eleição de Prignano pareceu ser um ato da providência. De origem humilde e hábitos austeros, não havia dúvidas de que o novo papa se dedicaria à reforma que a igreja tanto precisava. Nisto era inevitável que ele se chocasse com os cardeais, que estavam acostumados a levar uma vida ostentosa, sendo que muitos consideravam seu cargo como uma maneira de enriquecer a si e seus familiares. Por isso, mesmo que Urbano fosse um homem cuidadoso e prudente, sua posição sempre seria difícil. Mas Urbano não era nem cuidadoso nem prudente. seu afã de erradicar o absentismo, ele chamou os bispos

No que


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formavam sua corte, e que por causa disto não estavam em sua diocese, de traidores e perjuros. Do púlpito ele trovejou contra o luxo dos cardeais, e depois declarou que qualquer prelado que recebesse qualquer privilégio com isto já era culpado de simonia, e merecia ser excomungado. Em seus esforços para livrar o papado da sombra da França, ele decidiu nomear um número tão grande de cardeais italianos que os franceses acabaram perdendo seu poder. Só que antes de dar este passo ele cometeu a indiscrição de anunciar seus projetos aos franceses. Tudo isto constitu ía a tão ansiada reforma por que anelavam os fiéis de toda a cristandade. Mas, provocando a inimizade dos cardeais, Urbano em pouco tempo começou a ser chamado de louco por eles. E suas atitudes em reação a estes rumores até pareciam confirmá-los. Além disto, ao mesmo tempo em que se proclamava I[der da reforma de toda a igreja, ele começou a colocar seus parentes em posições de destaque, tanto eclesiásticas como temporais. Com isto seus opositores podiam dizer que o que o motivava não era o zelo reformador, mas a sede pelo poder. Com o tempo os cardeais o foram abandonando. Primeiro os franceses, depois os italianos, fugiram para Anagni, e ali declararam, no manifesto que citamos no começo deste cap ftulo, que Urbano tinha sido eleito sem que o conclave tivesse liberdade de ação, e que esta eleição sob pressão n5 tinhu validade. Os que fizeram esta declaração estavam se esquecendo de que quase todos eles tinham estado presentes não só na eloi cão, mas também na proclamação e coroação de Urbano, sem que sequer um levantasse sua voz em protesto. E também esqueciam que durante diversos meses eles tinham formado a corte de Urbano, considerando-o papa verdadeiro, sem pôr em dúvida a validade da eleição. A resposta de Urbano foi simplesmente nomear vinte e seis novos cardeais de entre os seus adeptos. Se os outros cardeais não o aceitassem como o papa legftimo, eles perderiam seu poder. Por isto não lhes restava outra alternativa que declarar que, já que a eleição de Urbano não era válida, a nomeação dos novos cardeais também não o era, e proceder à eleição de um novo papa.


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Reunidos em conclave, os mesmos cardeais - exceto um que tinham eleito Urbano, e que por algum tempo tinham servido a ele, elegeram um novo pondfice. Os cardeais italianos que estavam presentes se abstiveram de votar, mas não protestaram. Surgiu assim um fenômeno sem precedentes na história do cristianismo. Diversas vezes houvera pessoas que declaravam que o papa era ileg(timo. Mas pela primeira vez havia dois papas eleitos pelo mesmo colégio de cardeais. Um deles, Urbano VI, fora repudiado pelos que o tinham eleito, e criara seu próprio colégio de cardeais. O outro, que tomou o tftulo de Clemente VII, tinha o apoio dos cardeais que representavam a continuidade com o passado. E toda a cristandade ocidental se viu obrigada a se decidir por um ou outro pretendente. A decisão não era fácil. Urbano VI tinha sido eleito legitimamente, apesar dos protestos atrasados dos que o tinham eleito. Seu rival, só pelo fato de tomar o nome de Clemente, se mostrava disposto a seguir a tradição do papado de Avignon. Mas também era verdade que Urbano apresentava cada vez mais evidências de estar louco, ou pelo menos embriagado com seu poder, e que Clemente era um diplomata hábil e moderado - se bem que a diplomacia não bastava para recomendar este pretendente ao papado, pois anteriormente ele estivera envolvido em episódios sangrentos, e nem mesmo seus partidários defendiam sua piedade e devoção. Assim que se viu eleito, Clemente tentou se apoderar de Roma, onde se entrincheirou no castelo de Santo Angelo. Mais tarde, porém, ele foi derrotado pelas tropas de Urbano, e se viu obrigado a sair da Itália e estabelecer sua residência em Aviqnon. O resultado foi que a partir de então houve dois papas, um em Roma e outro em Avignon. Os dois imediatamente enviaram legados por toda a Europa, tentando garantir para si o apoio dos soberanos. Como era de se esperar a França optou pelo papa de Avignon, sendo acompanhada nesta decisão pela Escócia, sua antiga aliada na guerra contra a Inglaterra. Este último país seguiu o caminho oposto, pois o papado de Avignon era contrário aos seus interesses nacionais. Também a Escandinávia, Flandres, Hungria e Polônia se declararam a favor de Urbano.


o grande Cisma do Ocidente /61 Na Alemanha o imperador fez o mesmo, pois era aliado da Inglaterra contra a França. Muitos dos seus nobres e bispos independentes, no entanto, se opuseram a esta decisão, ou estavam indecisos entre os dois pretendentes. Na península ibérica, Portugal mudou de parecer diversas vezes; Castela e Aragão, que a princfpio se inclinavam para o lado de Urbano, mais tarde optaram pelo grupo de Avignon, graças à hábil pol ítica do cardeal Pedro de Luna. t\a Itália cada príncipe ou cidade seguiu seu próprio caminho, e o reino de Nápoles mudou de partido diversas vezes. Catarina de Siena dedicou os poucos anos de vida que lhe restavam para defender a causa de Urbano. Mas esta causa era diffcil de ser defêndida, pois o papa de Roma decidiu colocar seu sobrinho Butillo Prignano sobre o principado de Cápua, especialmente criado para ele. Esta atitude o levou a guerras injustificáveis, que fizeram com que ele perdesse parte do apoio que tinha na Itália. E quando alguns dos seus próprios cardeais tentaram aconselhá-lo a seguir uma pol ítica diferente Urbano os mandou encarcerar e torturar. Até hoje não se sabe como morreram diversos deles. Clemente VII, por seu lado, adotou uma pol ítica bem mais cautelosa, e, mesmo não conseguindo fazer valer sua autoridade no resto da Europa, pelo menos se fez respeitar nos países que o reconheciam como papa, dando assim certo prestígio ao papado avinhonês. Como o cisma não se baseava somente na existência de dois papas, mas também na de dois partidos formados ao redor deles, a morte de um deles não seria suficiente para subsaná-lo. Assim que Urbano faleceu, em 1389, seus cardeais nomearam Bonifácio IX. Mais uma vez o nome adotado pelo novo papa indicava que ele seguiria a política de Bonifácio VIII, cujo grande inimigo tinha sido a coroa francesa. Este novo Bonifácio se esqueceu totalmente da reforma, e seu governo foi caracterizado pelo auge a que chegou a simonia. O cisma em si estimulava a simonia. Os dois rivais tentavam vencer seu adversário, e para isto precisavam de dinheiro. Por esta razão a igreja se transformou em um sistema de impostos e exploração, mais terrível que os piores tempos do "cativeiro babilõnico".


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Em meio a estas circunstâncias os teólogos da universidade de Paris começaram a pensar em um meio de unir novamente a cristandade ocidental. Em 1394 eles apresentaram ao rei três alternativas para acabar com o cisma: a primeira era que os dois pretendentes renunciassem, e fosse eleito um novo papa; a segunda previa a negociação entre os dois partidos, sujeita a arbitragem; e a terceira, um condlio universal. Destas três alternativas a universidade preferia a primeira, pois para poder aplicar as outras duas era necessário resolver as difíceis questões de quem seriam os árbitros, ou quem convocaria o concílio. O rei seguiu os conselhos da universidade, e por isto, assim que soube da morte de Clemente VII, pediu aos cardeais de Avignon que não elegessem outro papa, na esperança de poder obrigar o pretendente romano a abdicar. Mas os cardeais temiam que se ficassem sem papa sua causa perderia sua força, e por isto se apressaram em eleger o cardeal Pedro de Luna, que tomou o título de Benedito XIII. Se depois disto o rei quisesse insistir na recomendação da universidade, teria de enfrentar os dois partidos, cada um com seu próprio papa, e não um partido acéfalo. Carlos VI, o rei da França, insistiu no caminho que tinha traçado. Seus embaixadores tentaram persuadir Benedito a renunciar, enquanto outros se empenhavam em conseguir o apoio da Inglaterra e do Império, para que estas duas potências obrigassem o papa romano a fazer o mesmo. O papa avinhonês, todavia, que agora era o espanhol Pedro de Luna, se negou a abdicar. Então a igreja da França, reunida em concílio solene, lhe retirou a obediência, e pouco depois as tropas de Carlos VI sitiaram Avignon, no propósito de fazê-lo renunciar pela força. Pedro de Luna, entretanto, ficou firme. I\.lesmo abandonado pelos seus cardeais, ele reforçou a defesa de .L\vignon e resistiu ao cerco francês, até que conseguiu fugir disfarçado. Sua obstinação rendeu frutos, pois pouco tempo depois as circunstâncias pol (ticas mudaram, e a F rança voltou a se declarar a seu favor. Todos estes acontecimentos, porém, mostravam claramente que a cristandade estava cansada do cisma, e que se os dois papas não dessem sinal de estarem dispostos a resolver a questão, haveria outras pessoas que a resolveriam em seu lugar. Isto levou Benedito XIII a iniciar conversações com seu


o grande

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rival de Roma. Seu propósito não era nem ceder nem renunciar, mas ganhar tempo enquanto se preparava para vencer seu adversário, e então obrigar a Europa a aceitar um fato consumado. Seus embaixadores se entrevistaram com Bonifácio IX, e depois com o sucessor deste, Inocêncio VII. Com a morte de Inocêncio, entretanto, o partido romano tomou a iniciativa. O novo papa, Gregório XII, declarou ao ser eleito que estava disposto a abdicar se Benedito fizesse o mesmo. Isto forçou o papa avinhonês a agir, pois se não o fizesse ele seria culpado por continuar o cisma, perdendo assim o apoio da França e de outros países. Os dois papas marcaram um encontro em Savona, para setembro de 1407. Mas logo surgiram dificuldades, e Gregório não foi ao encontro. Graças a uma longa série de negociações encetadas por cardeais dos dois partidos os dois rivais foram se aproximando até restarem poucos quilômetros de distância entre eles. Mas em maio de 1408 a entrevista ainda não tivera lugar, e Gregório se negava a ir até onde Benedito o esperava. Diante desta negativa categórica os cardeais do partido romano abandonaram seu I (der, e iniciaram por conta própria conversações com o partido avinhonês. Ao mesmo tempo a França retirou seu apoio a Benedito, e assim os dois papas estavam desamparados, enquanto o restante da cristandade procurava por seus próprios meios resolver o cisma. O movi mento conciliar, que estivera em formação já há muito tcmp , via chegar a sua hora.


IV A reforma conciliar Um concílio pode retirar os privilégios dos papas, e não há apelação possível contra ele. Pode também eleger, rebaixar ou depor o papa. Pode fazer novas leis, e anular as antigas. Dietrich de Niem

Durante a "era dos gigantes", quando a igreja ameaçava se dividir por causa da controvérsia ariana, Constantino decidiu convocar uma assembléia a que viessem bispos de todo o Império. A partir daquele concílio de Nicéia, e durante vários séculos, cada vez que a igreja se encontrava em situação semelhante apelava-se ao recurso de convocar um concílio universal ou "ecumênico". Durante a "era dos altos ideais" o poder do papa era tão grande que os concílios estavam subordinados aos papas. Exemplo disto foi, como vimos, o IV ConcfIio de Latrão, convocado por Inocêncio '" para aprovar uma série de medidas que ele e sua cúria tinham determinado de antemão. Mas agora, com as experiências tristes do "cativeiro babilônico" e do Grande Cisma do Ocidente, começou a predominar a idéia de um concílio que não somente julgasse as ações dos papas, mas reformasse a igreja, resolvendo os problemas que os papas tinham criado com suas ambições, disputas e corrupção.


66 / A era dos sonhos frustrados A teoria conciliar

Se bem que os papas e cardeais parecessem estar surdos durante muito tempo, na verdade toda a cristandade ocidental estava cansada dos desmandos dos potentados eclesiásticos, e anelava por uma reforma moral da igreja. Durante o período do "cativeiro babilônico" as vozes de protesto vinharr, principalmente dos países que estavam em guerra com a França. Mas o Grande Cisma criou um clima universal de impaciência com as maquinações dos papas. Como eram os eruditos que constantemente punham na forma escrita seu inconformismo, vemo-nos obrigados a dirigir nossa atenção principalmente para estes testemunhos. Mas ao fazermos isto não devemos esquecer que para as massas não se tratava somente do escândalo que era a existência de dois papas, mas também e sobretudo da exploração econômica que a ostentação e as necessidades políticas e militares dos contendentes acarretavam. p\ simonia, o absentismo e o pluralismo, que incendiavam a ambição dos poderosos, resultavam em impostos cada vez mais elevados para as massas. Assim a igreja, que em seus primeiros séculos e mesmo depois em seus melhores momentos fora defensora dos pobres, se converteu em mais um peso que oprimia as classes já oneradas. Enquanto isto, principalmente nas universidades, o descontentamento ia assumindo formas teológicas. Os estudiosos sabiam que o bispo de Roma nem sempre tivera as prerrogativas que agora exigia, e de que gozara nos séculos anteriores. A este conhecimento se unia o antigo espírito do franciscanismo, que não morrera, e para o qual a pobreza voluntária era uma das virtudes mais recomendáveis. Por isto muitos dos que se opunham à demasiada autoridade do papa e advogavam um concílio que reformasse a vida e os hábitos da igreja eram eruditos, franciscanos, ou as duas coisas. A teoria conciliar tinha velhas raízes históricas. Para nossos efeitos podemos dizer que o grande mestre dos principais expoentes do conciliarismo foi Guilherme de Occam, ao qual já fizemos referência quando falamos do "cativeiro babilônico" do papado, e que ocupará boa parte da nossa atenção, quando, no próximo capítulo, tentaremos resumir a teologia da época.


A reforma conciliar /67

A maior parte dos teólogos medievais de antes do século XIV estivera convicta de que as idéias universais eram anteriores às coisas concretas incluídas nestas idéias. Assim, por exemplo, a idéia de "cavalo" era anterior aos cavalos individuais, e tem uma realidade própria, à parte destes. Esta posição, que veio a ser clássica, é chamada de "realismo", porque afirmava que as idéias universais eram reais. Occam e boa parte da sua geração teológica, pelo contrário, criam que real é antes de tudo o indivíduo concreto, e que as idéias universais são nomes ou conceitos que existem somente na mente. Por isto são chamados de "nominalistas". Aplicando isto à igreja, a conclusão a que chegavam Occam e seus seguidores era que a igreja não era uma realidade celestial ou ideal, representada na terra pelo papa e a hierarquia derivada dele, mas era o conjunto dos fiéis. Os fiéis constituem a igreja, e não vice-versa, Se isto é verdade, conclui-se que a autoridade eclesiástica não está arraigada intrinsecamente no papa, mas nos fiéis, de quem o pontífice deriva sua posição. Em conseqüência, um concílio universal que representasse os fiéis de toda a cristandade deveria ter mais autoridade que o papa. Isto não quer dizer que o concílio seria necessariamente infalfvel, pois, como veremos mais adiante, Occam não crê que haja instituição que não erre, e insiste na Iiberdade de Deus para se revelar de acordo com sua vontade soberana. Mas significa que, em um caso em que a igreja claramente pro cisa de uma reforma, e o papa se nega a dirigi-Ia, um concílio universal tem a autoridade necessária para reformar a igreja, mesmo contra a vontade do papa. Occam desenvolveu estas teorias enquanto o papado estava em Avignon. Depois, com o Grande Cisma, quando ficou claro que os dois contendentes estavam mais interessados em seu próprio poder que no bem-estar da igreja, as teorias conciliaristas receberam um novo ímpeto. Para seus principais expoentes a idéia de um concílio universal não somente seria uma maneira de pôr fim ao cisma, mas também o melhor instrumento para reformar a igreja. Os graves males da época eram então atribu ídos à excessiva central ização do poder eclesiástico. P. função do concílio, portanto, não poderia ser


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limitada à escolha entre os dois papas existentes, ou à nomeação de outro em seu lugar, mas o concflio teria de se ocupar diretamente da reforma da igreja, e parte desta reforma era a descentralização do poder. Como muitos diziam, "sem concflio não há reforma". Durante muito tempo todas estas idéias foram discutidas nas universidades, e nas principais cortes da Europa. Mas sempre existia a dificuldade de que os conciliaristas não concordavam entre si quanto a quem deveria convocar o tão ansiado concílio. Durante os últimos séculos os papas tinham convocado os condi ios. Mas agora havia dois papas, e por isto a convocação por um deles faria perigar a imparcialidade da assembléia. Como os primeiros concflios foram convocados pelos imperadores, alguns argumentavam que esta tarefa cabia ao imperador, ou pelo menos a soberanos temporais. Todos estes soberanos, no entanto, simpatizavam com um ou outro dos pretendentes, e por isto um concílio reunido por iniciativa deles também não poderia ser o melhor caminho para reformar a igreja. As coisas estavam nisto quando os avanços e retrocessos de Benedito XIII e Gregório XII levaram os cardeais a intervir diretamente na questão, abandonando seus respectivos papas e fazendo uma convocação conjunta para um grande concílio universal, que deveria se reunir em Pisa no ano seguinte (1409).

o concílio

de Pisa

Enquanto os cardeais reunidos em Pisa acusavam seus ex-I íderes dos crimes mais baixos, estes apressadamente fugiram para se esconder, Benedito XIII em Perpinhão, que então fazia parte de Araqão, e Gregório XII em Veneza, sua cidade de erigem. Assim que se viram a salvo os dois tentaram se adiantar aos cardeais, convocando cada qual um concílio universal. O concílio de Benedito XIII teve certo êxito inicial, pois um respeitável número de prelados atendeu ao seu convite. I\:as não tardaram a surgir discórdias entre os presentes, e pouco a pouco todos foram abandonando o lugar, até que a assembléia se dissolveu. Benedito então se retirou para a fortaleza de Penhíscola, onde viveu mais quinze anos, sempre insistindo em que ele era o legítimo sucessor de São Pedro.


A reforma conciliar /69

Quanto a Gregório, sua situação era ainda mais precária, pois não tinha um reino que o protegesse, como Benedito tinha Aragão. Seu pretenso concflio nunca passou de um punhado de partidários de quem ninguém fez caso. Por fim ele se retirou para R(mini. Enquanto isto chegara o dia marcado para o concílio de Pisa. Na catedral desta cidade se reuniu uma multidão que inclu (a, além dos cardeais dos dois colégios, um grande número de arcebispos, bispos, abades e ministros gerais de ordens, bem como várias centenas de doutores em direito canõnico e em teologia. Como todos os presentes sabiam que a legalidade do concílio teria de ser inapelável, as sessões foram extremamente bem dirigidas. Quando chegou o momento de julgar o caso dos dois papas, foi seguido com todo o cuidado o processo formal. Por três dias consecutivos, na porta da catedral, eles foram chamados pelo nome (isto é, seus nomes antes de serem papas, Pedro de Luna e Angelo Correr), e solicitados a se apresentarem, ou a enviarem representantes. Quando, como era de se esperar, esta convocação não teve resultados, procedeu-se a um julgamento formal. Depois de muitos dias de testemunhos contra os dois papas, eles foram depostos, e o papado declarado vago:

o

santo concílio ecurneruco, que representa a católica Igreja de Deus, e a quem corresponde julgar este assunto, reunido pela graça do Esp(rito Santo na catedral de Pisa, e depois de ter escutado os que querem a extirpação do cisma abominável e profundo, e a união e restauração da nossa santa mãe igreja, contra Pedro de Luna e Angelo Correr (que alguns chamam de Benedito XIII e Gregório X II), declara que os crimes e abusos destes dois, como foi demonstrado diante do sacro condi ia, são verdadeiros e conhecidos. Os dois pretendentes, Pedro de Luna e Angelo Correr, foram e continuam sendo cismáticos manifestos, partidaristas obstinados, que aprovam, defendem e promovem o cisma. São evidentemente hereges que se apartaram da fé. Cometeram perjúrio, e suas promessas nada valem. Sua disputa manifesta e repetida escandaliza


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a igreja. Seus enormes abusos e iniquidades os fazem indignos de toda honra e dignidade, e em particular do pontificado supremo. E mesmo se os cânones da igreja já mostram que eles são automaticamente rejeitados por Deus e separados da igreja, nós, através desta sentença definitiva, os depomos, rejeitamos e expulsamos, e proibimos aos dois que continuem se chamando de pontffices supremos, ao mesmo tempo que declaramos que o papado está vago. Notemos que este decreto não declara que a eleição deste ou daquele papa tenha sido nula. Se a questão fosse levantada desta maneira, o concílio se teria dividido, pois nele estavam presentes cardeais que tinham votado neste ou naquele pretendente. Portanto, em vez de tentar resolver a questão, como tinha sido feito até então, com base em que os dois pretendentes não tinham sido eleitos legalmente, ela foi resolvida deixando este problema de lado, e o concílio os depôs por causa de sua conduta indigna. Era impossível determinar qual dos dois era o papa legftimo, mas era de se supor que um dos dois o fosse. Por isto o concílio declarou indiretamente que um papa, mesmo sendo eleito de maneira correta, poderia ser julgado e deposto por uma assembléia que representasse toda a igreja. Com o papado vago, era necessário eleger um novo papa. Com a presença dos cardeais dos dois partidos esta eleição podia ser realizada imediatamente. Mas a assembléia tinha outro propósito fundamental em sua agenda. Não bastava eliminar o cisma. Era necessário dar pelo menos os primeiros passos em direção à reforma que todos queriam. E para muitos dos presentes uma das causas principais dos males que afligiam a igreja era a excessiva centralização do poder. Por isto, antes de um novo papa ser eleito e a reunião dissolvida, era necessário garantir que o pont(fice eleito reconheceria a necessidade do concflio, e estaria disposto a acatar sua autoridade. Por esta razão todos juraram: Todos e cada um de nós, bispos, sacerdotes e diáconos da santa igreja romana, reunidos na cidade de Pisa para terminar o cisma e restaurar a unidade da igreja, empe-


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nhamos nossa palavra de honra e prometemos ... que, se um de nós for eleito papa, ele continuará o presente concílio, sem dissolvê-lo nem permitir, até onde estiver ao seu alcance, que seja dissolvido, até que tenha ocorrido a reforma adequada, razoável e suficiente da igreja universal, tanto em seu cabeça como em seus membros. Pouco depois o conclave se reuniu e elegeu Pedro Filareto, o arcebispo de Milão, que tomou o nome de Alexandre V. Depois desta eleição o concflio decretou diversas medidas em favor da reforma eclesiástica, e se declarou dissolvido, congratulando-se por ter terminado o cisma e dado os primeiros passos em direção a uma reforma que eliminaria males tais como a simonia e o absentismo.

Os três papas

Mas o concílio de Pisa, longe de resolver o cisma, o complicou, pois agora havia três papas, e cada um se considerava legCtimo sucessor de São Pedro e cabeça da igreja. Se bem que a maior parte dos países da Europa ocidental aceitava tanto o concílio de Pisa como o papa nele eleito, Benedito ainda era considerado papa legCtimo por toda a pen fnsula ibérica e pela Escócia. Gregório, por seu lado, contava com o apoio vacilante de Nápoles e Veneza, e com a ajuda decidida dos r"lulu testa, que eram donos da cidade de R (mini. Portanto, m 'SIlIU sendo o papa pisano sem dúvida o que gozava do reconheci mento mais geral, os outros dois ainda eram capazes de continuar mantendo suas cortes e pretensões. Em vez de atacar imediatamente seus dois rivais, Alexandre V se dedicou a consolidar sua posição confirmando quase todos os cargos e honras que tinham sido conferidos pelos dois papas que o concílio tinha declarado depostos. Mas isto queria dizer que, mesmo sendo ele um franciscano de vida austera e leal defensor da reforma, esta foi relegada a segundo plano, pois os privilégios confirmados por ele eram precisamente o pior dos males que deveriam ser erradicados. No momento sua principal tentativa de reforma consistiu em dar mais direitos e ingerência nos assuntos eclesiásticos aos seus companheiros de ordem.


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Como os franciscanos tinham feito votos de pobreza, e muitos deles ainda levavam estes votos muito a sério, Alexandre parece ter esperado que sua ordem pudesse ser seu braço direito quando chegasse a hora de se dedicar totalmente à reforma da igreja. Mas a única coisa que Alexandre conseguiu obter foi a inimizade do restante do clero, para quem os mendicantes eram um estorvo, e que estava insatisfeito porque nada tinha sido feito contra os males que afligiam a igreja quando o papa morreu, pouco mais de dez meses depois de ser eleito. Alexandre morreu em Bologna, e ali mesmo os cardeais se reuniram para eleger seu sucessor, que acabou sendo o menos digno deles, Baltasar Cossa, que tinha começado sua carreira como pirata e na época era dono - mais que dono, tirano de Bologna. Há diversas versões sobre o que aconteceu no conclave, mas não resta dúvida de que o fato de estarem reunidos em Bologna pesou sobre a decisão dos cardeais, e conta-se até que Cassa rejeitou altaneiramente todos os candidatos propostos, e que por fim tomou a estola papal, colocou-a sobre os seus ombros, e declarou: "Eu sou o papa". Seja qual for o modo com que o novo papa foi eleito, o fato é que ele tomou o nome de João XXIII, e que logo tentou encher suas arcas através de uma guerra contra Ladislau de Nápoles, onde esperava obter rica presa. Mas as coisas não saíram como João esperava, e ele logo se viu só e ameaçado pelos napolitanos, que quase tomaram sua cidade. Em meio a estas dificuldades João XXIII pensou que a melhor maneira de garantir a segurança de Roma era convocar um concflio que se reunisse na cidade. Ladislau não se atreveria a agir militarmente contra a sede de uma tão augusta assembléia. Mas o pretenso concflio acabou sendo uma piada. Bem poucos prelados se atreveram a ir para uma cidade tão em perigo. Quando a pequen (ssima assembléia por fim se reuniu, os cronistas nos contam que, quando durante a celebração da missa foi implorada a descida do Esp(rito Santo, apareceu um corvo dando gritos. O incidente se transformou em comédia quando alguém comentou: "Que forma rara assumiu o Espfrito Santo!" No dia seguinte novamente foi necessário interromper as sessões para expulsar o corvo do recinto com varas e pedradas.


A reforma conciliar /73 Enquanto sucedia tudo isto os outros dois papas, Benedito XIII e Gregório XII, insistiam em suas pretensões. E, depois de uma breve trégua, Ladislau voltou a ameaçar Roma. Ao papa João não restou outro remédio que fugir da Itália e se refugiar sob a ala do imperador da Alemanha, Sigismundo. Foi isto que levou ao concílio de Constança e ao fim do cisma. Antes de narrar estes acontecimentos precisamos nos deter para esclarecer uma dúvida que pode ter surgido na mente do leitor. Como é que o papa de que estamos falando se chamava João XXIII, se houve no século XX outro famosíssimo papa com o mesmo nome e número? Sucede que a igreja romana reconhece como papas legítimos durante o cisma somente Urbano VI e seus sucessores. Tanto Benedito XIII e seu predecessor Clemente VII como os papas pisanos, Alexandre V e João XXIII, são considerados antipapas. Isto é necessário para a igreja romana, ainda que na verdade Alexandre e João tenham gozado de um reconhecimento muito mais amplo que Gregório X II, porque de outro modo essa igreja teria de concordar que o concflio de Pisa depôs Gregório legalmente, e que assim os papas estão sujeitos aos concílios e não vice-versa.

A 8ssembléi8 foi interrompias

ttreae

pelo surçirnento

de um livro protestante do século XVI.

de um corvo. lIustr8çBo


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o concílio

de Constança

Sigismundo, o imperador da Alemanha sob cuja proteção João se colocou, era na época o soberano mais poderoso da Europa. Durante muito tempo a coroa alemã estivera em disputa. r~'ias agora estava firmemente colocada na cabeça de Sigismundo, que tomou o título imperial com toda a seriedade, e se dedicou a imitar Carlos Magno. As demais potências européias eram mais fracas que ele. A França, a única que em outras circunstâncias poderia ter-lhe feito sombra, estava debilitada pela guerra dos cem anos e pela disputa entre armagnacs e borgonhões. Nestas circunstâncias Sigismundo sonhou em ser aquele que pusesse fim ao cisma, iniciando a tão ansiada reforma eclesiástica. Por isto, quando João XXIII recorreu a ele, o imperador concordou em protegê-lo, sob a condição de que convocasse um concílio universal, que deveria se reunir na cidade imperial de Constança. Quando o concílio iniciou suas sessões, em fins de 1414, João XXIII tinha motivos para ter esperanças, pois tanto o imperador como a grande maioria dos presentes o tinham recebido com amplas mostras de respeito, dando a entender que o consideravam o papa legítimo. Mas ao mesmo tempo havia sinais de perigo. Em um sermão, o cardeal Pedro de Ailly, um dos homens mais eruditos e respeitados da época, declarou que o concílio tinha poder sobre o papado, e que somente era digno de ocupar esta alta dignidade quem levasse uma vida exemplar. Pouco depois correram comentários no sentido de que João era um papa indigno. Muitos dos presentes tinham dúvidas sobre se seria possível levar a cabo as reformas necessárias enquanto ele fosse papa. Quando chegaram os embaixadores de Gregório XII, declarando que ele estava disposto a renunciar se os outros dois papas fizessem o mesmo, a situação de João ficou desesperadora. Para cúmulo dos males o concflio decidiu que as votações seriam por nações. Toda a assembléia foi organizada em quatro "nações": os ingleses, os franceses, os italianos, e os "alemães", para os quais eram contados também os escandinavos, os poloneses e os húngaros - mais tarde, quando chegaram os delegados ibéricos, foi acrescentada a quinta nação, dos espanhóis. Esta maneira de organizar o sufrágio


A reforma conciliar /75

A cidade de Constança, onde se reuniu

o

concilia,

de acordo com uma

gravura quase contemporânea.

significava que os italianos, em cujo grande número João confiava, tinham somente um voto. Mals tarde o concílio exigiu a renúncia de João XXIII. Este deu a impressão de que cederia, mas assim que surgiu a oportunidade ele se disfarçou de lacaio e fugiu de Constança. Durante mais de dois meses o antes poderoso papa vagou fugitivo. Sua situação ficava cada vez mais difícil, pois seu principal protetor entre os nobres, o duque da Áustria, foi vencido pelo imperador, e a partir de então era-lhe quase impossível encontrar asilo. Quando por fim foi aprisionado e levado de volta a Constança ele estava abatido e disposto a renunciar. Sem mais demora o concflio aceitou sua renúncia, e o condenou a passar o restante de seus dias prisioneiro, com medo de que voltasse a reclamar a tiara papal. Ainda restavam dois papas. A 4 de julho, pouco depois da abdicação de João XXIII, Gregório XII seguiu seu exemplo. Quanto a Benedito XIII, seus seguidores ficaram reduzidos a um punhado quando o imperador Sigismundo, mediante uma série de negociações com os estados ibéricos, conseguiu que


76 / A era dos sonhos frustrados

todos lhe retirassem sua obediência. De sua fortaleza em Penh íscola o velho cardeal Pedro de Luna continuou proclamando que ele era o único papa legítimo, com o título de Benedito XIII, mas ninguém já lhe prestava atenção. Na falta de um papa, o concílio passou a ser o poder supremo, e se dedicou à reforma da igreja. Pouco antes, como veremos em outro capítulo, João Huss tinha sido condenado, e muitos dos presentes acreditavam que esta decisão era um passo necessário para a tarefa de livrar a igreja de qualquer mancha de heresia ou corrupção. Mas ainda faltava dar passos concretos para erradicar males como a simonia, o pluralismo e o absentismo. O concílio, então, se dedicou a esta tarefa, e logo descobriu que, além de uma série de decretos de caráter geral, pouco podia ser feito de imediato. Por isto a assembléia se contentou com promulgar uma série de medidas contra os abusos da época, e se dedicou a outras duas tarefas que ainda estavam pendentes. A primeira era a eleição de um novo papa. A segunda, muito mais importante do ponto de vista dos conciliaristas, era garantir que houvesse concílios periódicos que controlariam os papas, para que eles fizessem as reformas necessárias. Cansados de um concílio que tinha durado três anos, os membros da assembléia decidiram que, em vez de insistir de imediato na reforma, eles simplesmente garantiriam que o movimento conciliar pudesse continuar, e depois elegeriam um novo papa. Asseguraram a continuação do movimento conciliar mediante o decreto Frequens, que ordenava que haveria novas assembléias conciliares em 1423, 1430, e a partir de então a cada dez anos. Feito isto, entre os cardeais presentes e uma comissão do concílio, foi eleito um novo papa, que tomou o nome de r"lartim V. O Grande Cisma do Ocidente tinha terminado. O movimento conciliar, entretanto, que por causa do cisma chegara ao seu auge, não tardou a decair.

o triunfo

do papado

Os próximos anos foram um período de tensão constante entre a doutrina conciliarista e a da monarquia papal. Martim V, que era um diplomata hábil, tomou cuidado em não contra-


A reforma conciliar /77 dizer os decretos do concílio de Constança. IVias tampouco confirmou os que estavam dirigidos contra seu poder. Em obediência ao ordenado no decreto Frequens do condlio de Constança, o papa convocou uma nova assembléia, que se reuniu em Pávia e depois se transferiu para Siena, fugindo da peste. Mas este condlio, agora que o cisma tinha terminado, teve pouca assistência, e no ano seguinte Martim o declarou conclu ído, sem que ele tivesse aprovado mais que alguns decretos de menor importância. Quando se aproximou a data em que deveria se reunir o próximo condlio (1430), o papa deu mostras de querer ignorar o que fora decretado em Constança. I\:las percebeu que as idéias conciliares ainda tinham muita força, e acabou convocando o concfl io, que se reuniu em Basiléia. Martim V morreu pouco depois de convocado o concílio, e seu sucessor, Eugênio IV, cometeu o grave erre de tentar dissolver a assembléia. A reação foi imediata. O cardeal Cesarini, que rviartim V nomeara presidente da assembléia, se negou a obedecer ao decreto de dissolução. Isto imediatamente concentrou a atenção da Europa no condlio, que até então não tinha causado muito impacto. Em Basiléia o conciliarismo mais extremado se apossou da reunião. O prestigioso erudito Nicolau de Cusa dizia que somente o cencílio era infal ível, e que por isto os ali congregados não tinham obrigação de obedecer ao papa, mas sim, de julgar se ele agia de maneira correta. Os cardeais Cesarini e Enéias Sílvio Piccolomini (que depois seria Pio II) defendiam teses semelhantes. O imperador Sigismundo se negou a reconhecer o decreto de dissolução, e pressionou o papa para que o retirasse. Por fim, vendo-se sozinho e desamparado, Eugênio IV se rendeu, e declarou que o concíl io de Basiléia estava devidamente

constitu ído.

Esta capitulação de Eugênio I V parecia indicar para o triunfo final das doutrinas conciliaristas. A partir de então o concf'llo de Basiléia deu mostras de pretender continuar se reunido indefinidamente, e governar a igreja diretamente. Uma série de medidas foram limitando o poder do papa, e cortando seus recursos econômicos. Enquanto isto, na Itália, a situação política de Eugênio era cada vez mais precária.


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Um acontecimento inesperado, no entanto, veio fortalecer o prestígio papal. Constantinopla estava fortemente assediada pelos turcos. Do antigo Império Bizantino restava somente uma sombra, e esta sombra também desapareceria se o Ocidente não acudisse em socorro dos seus irmãos orientais. Isto não era fácil de conseguir, pois as igrejas do Oriente e do Ocidente tinham estado separadas por séculos, e se acusavam mutuamente de heresia. Em seu desespero o imperador de Constantinopla e o patriarca desta cidade decidiram que era necessário acabar com o cisma que já durava quase quatro séculos. Com este propósito eles recorreram ao papa, e se mostraram dispostos a participar do concüio, se este se reunisse em uma cidade mais acess(vel, a partir de Constantinopla. O concfllo de Basiléia negou-se 'a se transferir, e o papa proclamou um decreto transferindo-o para Ferrara. A maior parte da assembléia fez caso omisso da ordem pontiHcia e permaneceu em Basiléia. Mas outros, vendo a oportunidade de reunir as igrejas do Oriente e do Ocidente, acudiram para Ferrara. Resultava, assim, que o movimento conciliar, que chegara ao ápice do seu poder em reação ao Grande Cisma do Ocidente, quando havia dois papas, por sua vez caía no cisma, pois agora havia um papa e dois concflios. O concfllo de Ferrara, que depois foi transferido para Florença, contava com poucos prelados, e o restante da cristandade lhe teria dado pouca atenção se em julho de 1439 não tivesse sido proclamada solenemente a reunião das igrejas bizantina e ocidental. Para conseguir esta união tanto o imperador como o patriarca de Constantinopla aceitaram a supremacia papal. Enquanto isto, não restava ao Concílio de Basiléia, outra alternativa senão tomar medidas cada vez mais extremas contra o papa. Enéias Sflvio Piccolomini e Nicolau de Cusa abandonaram a idéia conciliar e passaram para o partido do papa. Um a um os diversos reinos e senhorios da Europa foram retirando seu apoio à assembléia de Basiléia, cujos membros se reduziam cada vez mais. O que restava do longo concílio, por sua vez, iniciou um processo contra Eugênio IV, declarando-o deposto. Em seu lugar foi nomeado Félix V. Assim, não só havia dois concfllos, mas o movimento conciliar ressuscitara o cisma


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papal. Mas já quase ninguém fazia caso daquele sfnodo, que pouco depois se transferiu para Lausanne, e acabou se dissolvendo. Quando Félix V por fim renunciou, em 1449, o papado romano saíra indiscutivelmente vencedor sobre as idéias conciliares. Estas idéias continuaram circulando por muito tempo, a ponto de, como veremos no próximo volume, Lutero chegar a pensar que um concllio universal seria a melhor maneira para defender sua causa reformadora. A partir da dissolução do concflio de Basiléia, todavia, não houve outra assembléia semelhante que não servisse aos interesses do papado, ou estivesse sob seu dom{nio.


V João Wycliff

Fui acusado de esconder, sob uma máscara de santidade, a hipocrisia, o ódio e o rancor. Temo, e com dor confesso, que isto me tenha acontecido com muita freqüência. João Wycliff

o curso ininterrupto da nossa narrativa levou-nos a conti nuar a história do papado e do movimento conciliar até princfpios do século XV. Nesta narrativa nos referimos repetidamente às tentativas de reforma que caracterizaram o movimento conciliar. Vimos que esta reforma não era dirigida contra questões de doutrina, mas mais contra a vida religiosa na prática, em particular contra abusos como a simonia, o absentismo, etc. Mas ao mesm tempo que ocorriam os acontecimentos que acabamos d nurrur havia outro movimento de reforma muito mais radi til, qiu nllo se contentava com atacar as questões referente ) vklr: ( I S costumes, mas que queria corrigir também as d ut ln is ti I JI( j.t medieval, ajustando-as mais à mensagem bfbli I. I)()' mu lo:. que seguiram este caminho os que mais se dosi J • II 1111 101 1111 .lo/'í Wycliff e João Huss. Wycliff viveu durante ri {pOI' I do "r: II v 'iro babilônico" do papado, e do in ício do ii 111111 CI 11'1 IIIISS, a quem dedicaremos o próximo capftulo, 1'"11' 111111 r.1I I carreira no concüio de Constança.


82 / A era dos sonhos frustrados Vida e obra de Wycliff

Wycliff foi um destes autores cujos livros dão a entender muito pouco sobre eles mesmos. A citação que encabeça este cap ítulo é uma das poucas janelas que Wycliff abre para as profundezas do seu coração. E também ela nos diz somente o que poderíamos adivinhar facilmente: que seus sinceros esforços reformadores não estiveram isentos totalmente de pecado. Por isto sabemos muito pouco da sua juventude. E mesmo se soubéssemos mais, este conhecimento talvez não fosse tão interessante, pois o pouco que sabemos parece indicar para uma infância tfpica em uma pequena aldeia da Inglaterra, e para uma juventude dedicada quase exclusivamente ao estudo. A maior parte da sua vida transcorreu na universidade de Oxford, onde ele chegou a ser famoso por sua lógica e erudição. Revelou-se como homem dotado de uma mente privilegiada, disposto a se ater aos seus argumentos até as últimas consequencias, e carente de humor. Um dos seus seguidores nos fala disto, contando que anos depois o arcebispo de Can-

lfobannes rclcleff

João VVyclíff, de ecordo

com UnJ8 (/ra vure do século XV.


João Wycliff /83

terbury lhe disse que na sua oprruao Wycliff era "um grande erudito, e muitos o consideravam um trgado perfeito". Wycliff saiu da universidade em 1371, para se colocar a serviço da coroa. Na época, como dissemos no nosso primeiro cap ítulo, havia tensões entre o trono inglês e o pontificado romano, particularmente com referência aos impostos que uma ou outra parte tentavam impor ao clero. V.,.'ycliff saiu em defesa da coroa, atacando a teoria que dizia que o poder temporal se deriva do espiritual. Dentro deste contexto ele começou a desenvolver suas teorias do "senhorio", que abordaremos mais adiante. Ele participou também de uma embaixada que discutiu com os legados pontiffcios os pontos em questão. Parece que sua lógica inflex(vel e sua falta de senso da realidade pol ítlca o faziam pouco apto para a diplomacia, e por isto ele não voltou a ser enviado em missões semelhantes. A partir de então ele foi usado principalmente como o polemista demolidor que o poder secular empregava contra seus inimigos eclesiásticos. Esta polêmica, porém, o rigor da sua lógica, seus estudos bfblicos. e o escândalo do Grande Cisma, que começou em 1378, o conduziram a posições cada vez mais atrevidas. I\~uitas das suas doutrinas sobre o "senhorio", à medida que iam se desenvolvendo, atacavam não só o papa e os poderosos senhores da igreja, mas também o estado. Assim como o poder espiritual tinha seus limites, o temporal também os tinha. Por causa disto os nobres que antes o apoiavam foram se separando dele, deixando-o cada vez mais só. Wycliff então se contentou com voltar para sua querida Oxford, onde tinha muitos seguidores e admiradores. Mas também ali o cerco se fechava. Suas doutrinas sobre a santa ceia se opunham aos ensinos oficiais da igreja. Seus ataques contra os frades, que tinham começado anos antes, lhe valeram muitos inimigos. Em 1380 o reitor da universidade convocou uma assembléia para discutir os ensinos de Wycliff sobre a ceia, e esta asscmlil "k, o condenou por estreita margem. Mesmo assim muit S ur n Oxford ainda o defendiam, e as autoridades não se [lI n '/i 1111 LI tornar atitudes contra ele. Durante vários meses oh (!;I( VII plI $0 cm sua casa, privado da Iiberdade, mas com porrnls« io p.1I ti continuar escrevendo seus livros, cada vez mais foqu ,o'"


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Por fim, em 1381, ele se retirou para sua paróquia de Lutterworth. O fato de Wycliff ter tido uma paróquia mostra até onde chegavam os excessos da época. Ele mesmo, que tanto os atacava, participava deles, se bem que não no grau extremo como muitos outros. Durante muitos anos, em sua mocidade, ele tinha custeado sua estadia em Oxford com o que recebia

A igreja peroauiet de t.utterworui


Joã'o Wycliff /85

de um cargo eclesiástico. E mais tarde, quando se viu em dificuldades econômicas, ele trocou este cargo por outro menos lucrativo, recebendo certa quantia como compensação. ~ dif ícil ver a diferença entre isto e a simonia que os grandes prelados praticavam, a não ser em termos de quantidade. Quanto à paróquia de Lutterworth, esta lhe tinha sido concedida pela coroa em gratidão pelos serviços prestados. Nesta época este tipo de corrupção tinha chegado a tal ponto que quem não participasse dela, pelo menos em pequena medida, dificilmente poderia ocu par cargos eclesiásticos. Em 1382, enquanto estava em Lutterworth, Wycliff teve sua primeira embolia. Apesar disto ele continuou escrevendo até sua morte, em 1384, em conseqüência de outra embolia. Já que faleceu estando em comunhão com a igreja, ele foi enterrado em terra consagrada. Anos depois, porém, quando o concílio de Constança o condenou, seus restos foram exumados e queimados, e suas cinzas lançadas no rio Swift.

Suas doutrinas

Wycliff começou sua carreira teológica como teólogo conservador. Em uma época em que, como veremos mais adiante, os teólogos mais modernos começavam a duvidar da síntese medieval da fé e da razão, Wycliff era, e continuou sendo durante toda a sua vida, um adepto firme desta síntese. Na sua opinião tanto a razão como a revelação nos dão a conhecer a verdade de Deus, sem que haja tensão entre as duas. E a razão é capaz de demonstrar a doutrina da Trindade e a necessidade da encarnação. A medida que suas opiniões iam ficando mais radicais, Wycliff foi reafirmando cada vez mais esta relação entre as duas maneiras de adquirir conhecimento, e por isto sua oposição às doutrinas geralmente aceitas se baseava tanto em que se opunham à Bíblia como em argumentos racionais. Durante os primeiros anos de controvérsias, já que ele estava envolvido com a questão da autoridade do papa para impor tributos ao clero inglês, seu principal tema teológico foi a questão do "senhorio". Em que consiste o senhorio legCtimo? Quais são suas origens? Como é reconhecido? Em resposta a estas perguntas Vv'ycliff declara que não há outro


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senhorio além do de Deus. Qualquer pessoa tem domínio ou senhorio sobre outra somente porque Deus lho concede. Mas existe também um senhorio falso e ilegal, puramente humano. Este é uma usurpação, em vez de ser senhorio verdadeiro. A Bíblia nos fornece um critério claro para distinguirmos entre os dois: Jesus Cristo, a quem pertence todo domínio, não veio para ser servido, mas para servir. Da mesma forma somente é legítimo o senhorio humano que se dedica a servir, e não a ser servido. Aquele que procura o seu próprio bem e não servir aos seus governados é tirania e usurpação. As autoridades eclesiásticas, portanto, o papado em particular, se se empenham em impor impostos para proveito próprio, e não para servir aos que lhes estão subordinados, são ilegítimas. Também é usurpação exigir poder sobre uma esfera mais ampla do que a que Deus nos conferiu. Por isto, se o papa quer extender sua autoridade além dos limites do espiritual, e aplicála em questões temporais, esta pretensão já faz dele um tirano e usurpador. Naturalmente estas doutrinas foram recebidas com aprovação pelo poder temporal, que estava às voltas com uma amarga polêmica com o papa. Mas assim que os poderosos compreenderam as últimas conseqüências dos ensinos de Wycliff, eles começaram a abandoná-lo. E de fato os argumentos de Wycliff contra o papado também podiam ser aplicados ao poder temporal. Também este deveria ser medido pelo grau em que servia aos seus súditos. E também este se conteria em usurpador se tentasse extender sua autoridade para o campo espiritual. Por isto não devemos nos admirar de que no fim da sua vida Wycliff estava totalmente abandonado pelos poderosos que antes tinham se alegrado com seus argumentos. A desculpa que eles deram foi que Wycliff se tornara herege. E não há dúvidas de que o mestre de Oxford se opunha a algumas doutrinas comumente aceitas na época. Mas também não há dúvidas de que os nobres receberam com ai (vio a oportunidade que Wycliff lhes dava de desculparem sua infidelidade. Isto ficou claramente visível depois da revolta dos camponeses que ocorreu em 1381. Apesar de Wycliff não ter tomado parte da revolta, nem sequer a incentivando, não faltaram os que viram


João Wycliff /87

nas exiqências dos camponeses a relação com muitas coisas que ele tinha dito. Com o passar dos anos, Wycliff foi dando cada vez mais ênfase na autoridade das Escrituras, em detrimento da do papa e da tradição eclesiástica. Ele concordava com o que Tertuliano tinha escrito, de que as Escrituras pertencem à igreja, e por isto devem ser interpretadas dentro dela e por ela. Mas não concordava que a igreja era a hierarquia eclesiástica. Acompanhando Agostinho, e se baseando em textos do apóstolo Paulo, ele chegou à conclusão de que a igreja era o conjunto de predestinados. A verdadeira igreja é invisível, pois na visível e institucional há perdidos ao lado dos que foram predestinados para a salvação. Isto está claro, porque apesar de ser impossível saber com certeza absoluta quem pertence a cada grupo, há indícios que podemos seguir, como a obediência à vontade de Deus. Com base nestes ind ícios podemos dizer com certeza que há muitos perdidos na hierarquia da igreja, que não fazem parte da verdadeira igreja, e a quem, portanto, as Escrituras não pertencem. Até o fim de seus dias Wycliff afirmou que o papa era um destes perdidos, e chegou a chamá-lo de anticristo. Se a verdadeira igreja é composta de predestinados, e não de poderosos eclesiásticos, e se as Escrituras pertencem a esta igreja, conclui-se que é necessário traduzir a Bíblia ao vernáculo, à l ínqua comum do povo, devolvendo-a assim a este. Foi por inspiração de Wycliff que a Bíblia foi traduzida para o inglês, depois de sua morte. E foi também pela mesma inspiração que em pouco tempo o país se viu invadido pelos "pregadores pobres", ou lolardos, de quem falaremos na próxima secção. O ponto em que os ensinos de Wycliff deram a seus inimigos a oportunidade de declará-lo herege, porém, foi sua doutrina sobre a presença de Deus na comunhão. Como já falamos, através dos séculos a ceia tinha sido o culto cristão por excelência, desde o início. Pouco a pouco ela foi adquirindo um sentido mágico, que no começo não tinha. No sentimento religioso popular surgiu a idéia de que o pão e o vinho se transformavam literalmente no corpo e no sangue de Cristo. Falamos desta controvérsia no volume III, quando tratamos da época carol íngia. Naquela época as superstições populares


88 / A era dos sonhos frustrados

Niio há provas

conclusivas de qUt1 Wycliff

tenhs envisdo pessos/mente

os "pregadores pobres", como está representado dúvidas de que eles foram ínspírsdos por e/e.

squi,

mas não restam

foram refutadas pelos melhores eruditos. Mas apesar disto elas continuaram se espalhando, e no século XIII o quarto concflio de Latrão promulgou a doutrina da transubstanciação, de acordo com o qual desaparece a substância do pão, quando é celebrada a ceia, e o corpo de Cristo ocupa seu lugar, apesar de continuar com a aparência de pão - tamanho, cor, sabor, etc. A mesma coisa era dita do vinho e do sangue do Senhor. Wycliff rejeitou esta doutrina, não porque quisesse diminuir a importância da ceia, nem porque não cresse que houvesse nela um verdadeiro milagre, mas porque ela lhe pareceu contradizer a doutrina cristã da encarnação. Quando o Verbo se encarnou, ele se uniu a um homem. Esta união não destruiu a humanidade de Jesus Cristo. Afirmar o contrário seria cair em docetismo. De igual modo ocorre na ceia que o corpo de Cristo se une ao pão, sem que este deixe de ser o que era anteriormente. O corpo de Cristo está verdadeiramente pre-


João Wyc/ iff /89

sente, de um modo "sacramental" e "misterioso"; mas o pão também está presente. Sobre se o corpo do Senhor está também presente para os que participam da ceia sem ter fé, ou se, pelo contrário, esta presença depende da fé, Wycliff não se pronunciou com clareza. Como veremos mais adiante, no que se refere à maneira com que Cristo está presente na comunhão, as opiniões de Wycliff se assemelham muito às que manteria mais tarde Martinho Lutero.

Os lolardos

As doutrinas de Wycliff tiveram sua expressão no movimento dos "Iolardos" - termo pejorativo que seus inimigos aplicavam para eles, e que se deriva de uma palavra holandesa que quer dizer "murmuradores". Não há provas conclusivas de que o próprio Wycliff os tenha encaminhado à pregação. Mas de qualquer forma vários dos seus discípulos se dedicaram a divulgar suas doutrinas entre o povo, ainda em vida do mestre de Oxford. No começo, os principais lolardos eram pessoas que tinham estudado em Oxford, com Wycliff. Por causa disto sua pregação naturalmente estaria dirigida mais para a aristocracia do que para as classes populares. Parte da obra destes primeiros lolardos consistiu em traduzir as Escrituras para o inglês, como \fIJycliff tinha recomendado, e em percorrer o país, pregando. Mas em 1382 o arcebispo Guilherme Courtenay conseguiu que a universidade de Oxford condenasse o lolardismo, e a partir de então diversos dos primeiros membros do movimento o abandonaram. Alguns deles chegaram a persegui-lo. O resultado foi que o lolardismo, em suas origens um movimento acadêmico, se tornou cada vez mais popular. Apesar de contar ainda com adeptos entre a nobreza e o clero, a maior parte dos seus seguidores pertencia às classes menos letradas. As doutrinas do lolardismo eram claras, taxativas e revolucionárias. A B (blia deveria s I colocada à disposição do povo no vernáculo. As distincõcs - nrn o cloro e os leigos, com base no rito de ordenação, (r lIil c(JlII.t1l i;_ISàs Escrituras. A principal função dos minis u o-, de I)e II!: deveria ser pregar, e eles deveriam estar proibiclo., do ()('IIi' II Cdruos públicos, pois "nin-


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guém pode servir a dois senhores". Além disto o celibato de sacerdotes, monges e monjas era uma abominação que produzia imoralidade, aberrações sexuais, abortos e infanticídios. O culto às imagens, as peregrinações, as orações em favor dos mortos e a doutrina da transubstanciação eram pura magia e superstição. Mais tarde, à medida que o movimento se distanciava das suas raízes acadêmicas, e havia nele menos pessoas capazes de orientá-lo através de estudos bíblicos e teológicos, começaram a surgir dentro dele grupos cujas teorias eram cada vez mais estranhas. A perseguição não tardou. Os lolardos que ainda havia entre os nobres tentaram fazer com que o Parlamento mudasse as leis com respeito à heresia, mas não o conseguiram, e a maioria deles mais tarde se retratou e voltou ao seio da igreja oficial. Poucos ficaram firmes, e em 1413 e 1414 Sir John Oldcastle dirigiu um movimento rebelde fracassado. Três anos depois Oldcastle foi capturado e executado. A partir de então o lolardismo desapareceu quase completamente entre as classes letra-

Muitos toterdos morreram

COnJO

marttres.


João Wycliff /91

das, mas continuou se espalhando entre os simples. Isto o tornou ainda mais radical. Quando em 1431 foi descoberta uma nova conspiração lolarda, seu propósito não era somente reformar a igreja, mas também derrubar o governo. Apesar de serem perseguidos constantemente, os lolardos nunca foram totalmente extintos. Em princípios do século XVI o movimento recobrou forças, e o número de mártires executados por defender suas doutrinas aumentou consideravelmente. Mais tarde, o remanescente lolardo, que deve ter sido considerável, se misturou com os primeiros protestantes. Por isto, apesar de os sonhos de Wycliff e de seus primeiros seguidores serem temporariamente frustrados, a longo prazo eles se concretizaram na grande Reforma que comoveu a Inglaterra e toda a Europa no século XVI. Mas bem antes da Reforma, os ensinos de Wycliff tiveram um eco na distante Boêmia.


VI João Huss

Por isto, nem o papa é a cabeça, nem são os cardeais o corpo da igreja santa, católica e universal. Porque somente Cristo é a cabeça, e seus predestinados o corpo, e cada um membro deste corpo. João Huss

Enquanto Wycliff enfrentava as autoridades eclesiásticas na Inglaterra, na distante Boêmia estava se formando um movimento reformador muito semelhante ao que ele propunha. A Boêmia, parte do que atualmente é a Checoslováquia, estava estreitamente ligada ao Império Alemão. Em 1346 o imperador Carlos IV tinha herdado o trono da Boêmia, e a partir de então as relações entre os dois pa(ses tinham sido muito estreitas. Na Boêmia, assim como no restante da Europa, uma reforma eclesiástica era muito necessária, lois a simonia, a pompa dos prelados e a corrupção moral eram comuns. Calcula-se que aproximadamente a metade do terri tório nacional estava em poder da igreja, enquanto (J corou possu (a u.ma sexta parte. Por isto não devemos nos surpu I tldl r que muitos reis boêmios tentaram limitar o pod r ti" Itll I u(I'Ii:1 eclesiástica, e por isto apoiaram o rnovirnent n IUil1' '.111. IVldS também é certo que muitos destes reis f rrml II '()ItII,I(I\),()~; sinceros, cujas ações foram motivadas por um 111111(tlU II! ',I 10 ele corrigir os abusos que existiam na igreja.


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o

movimento reformador boêmio parece ter iniciado na época de Carlos IV, e por iniciativa sua, pois o primeiro grande pregador do movimento foi Conrado de Waldhausen, que o próprio rei trouxera ao pafs, Conrado logo teve um número considerável de discfpulos, e é possível traçar uma linha de sucessão ininterrupta entre ele e o mais famoso dos reformadores boêmios, João Huss. Por esta razão, apesar de ser verdade que as idéias de Wycliff encontraram eco nas de Huss, isto não deve ser exagerado a ponto de fazer do reformador boêmio um mero discípulo do inglês. A situação pol (tica também era importante para compreendermos as origens da reforma hussita. Em 1363 Venceslau IV tinha sido coroado rei da Boêmia, ainda em vida de seu pai Carlos IV. Em 1378, quando este morreu, ele o sucedeu também no trono como imperador da Alemanha. No princípio seu governo nos dois pafses foi eficiente. l\I!aspaulatinamente ele foi deixando de se interessar pelo Império, que finalmente se rebelou em 1400, e o depôs. Onze anos mais tarde Sigismundo, irmão de Venceslau, foi feito imperador pelos alemães

A ciaede da Prafla no século XV, da acordo com a Crónica da Nurambarfl.


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rebeldes. Como Venceslau ainda se considerava o único imperador legrtimo, as relações entre os dois irmãos não eram boas. lVlasfato é que também na Boêmia Venceslau tinha se retirado dos assuntos pol (ticos, deixando o governo nas mãos dos seus favoritos, e se dedicando demais ao vinho, de forma que em princípios do século XV o pafs parecia estar à beira da anarquia. Outro fator pol rtico importante era a tensão entre os boêmios ou checos e os alemães. Estes últimos, apesar de serem uma minoria relativamente pequena, tinham muito poder. Na universidade de Praga, por exemplo, sem serem a maioria, eles tinham três votos, e os checos somente um. O sentimento nacionalista boêmio aumentava cada vez mais, e foi um dos fatores importantes no curso posterior da reforma hussita. Dentro deste contexto de corrupção eclesiástica, mau governo e nacionalismo apareceu a figura notável de João Huss.

Vida e obra de João Huss

João Huss nasceu por volta de 1370 de uma famflia camponesa que vivia na pequena aldeia de Hussinek, e ingressou na universidade de Praga quando tinha uns dezessete anos. A partir de então toda sua vida transcorreu na capital de seu pafs, excetuados seus dois anos de ex fiio e encarceramento em Constança. Em 1402 ele foi nomeado reitor e pregador da capela de Belém. Ali ele pregou com dedicação a reforma que tantos outros checos propugnavam desde tempos de Carlos IV. Sua eloqüência e fervor eram tamanhos que aquela capela em pouco tempo se transformou no centro do movimento reformador. Venceslau e sua esposa Sofia o escolheram por seu confessor, e lhe deram seu apoio. Alguns dos membros mais destacados da hierarquia começaram a encará-lo com receio, Mas boa parte do povo e da nobreza parecia segui-lo, e o apoio dos reis ainda era suficientemente importante para que os prelados não se atrevessem a tomar medidas contra o pregador entusiasmado. No mesmo n [uc passou a ocupar o púlpito de Belém, Huss foi feito reitor du universidade, de modo que se encontrava em ótima posiçf para impulsionar a reforma.


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Ao mesmo tempo que pregava contra os abusos que havia na igreja Huss continuava sustentando as doutrinas geralmente aceitas, e nem mesmo seus piores inimigos se atreviam a censurar sua vida ou sua ortodoxia. Diferente de Wycliff, João Huss era um homem extremamente gentil, e contava com grande apoio popular. O conflito surgiu nos círculos universitários. Pouco antes tinham começado a chegar a Praga as obras de Wycliff. Um disdpulo de João Huss, Jerônimo de Praga, passou algum tempo na Inglaterra, e trouxe consigo algumas das obras mais radicais do reformador inglês. Huss parece ter lido estas obras com interesse e entusiasmo, pois se tratava de alguém cujas preocupações eram muito semelhantes às dele. Mas Huss nunca se tornou um adepto de Wycliff. Os interesses do inglês não eram os mesmos do boêmio, que não se preocupava tanto com as questões doutrinárias como com uma reforma prática da igreja. Ele particularmente nunca esteve de acordo com o que Wycliff tinha dito sobre a presença de Cristo na ceia, e até o fim continuou defendendo uma posição muito semelhante à que era comum em seu tempo - a transubstanciação. Na universidade, entretanto, as obras de V\iycliff eram discutidas. Os alemães se opunham a elas por uma longa série de razões, mas principalmente no que referiam à questão das idéias universais, que já discutimos anteriormente; Wycliff era "realista", e os alemães seguiam as correntes "nominalistas" do momento. Os alemães tratavam os checos corno um punhado de bárbaros antiquados, que não estavam em dia em questões filosóficas e teológicas" e por isto não adotavam o nominalismo que estava na moda. P.gora as obras de V\iycliff vinham em socorro dos boêrnios, mostrando que na muito prestigiosa universidade de Oxford um famoso mestre tinha defendido o realismo, e isto em data relativamente recente. Por isto, em sua origem, a disputa teve um caráter altamente técnico e filosófico. Mas os alemães, em seu intento de ganhar a batalha, tentaram dirigir o debate para as doutrinas mais controvertidas de Wycliff, no propósito de provar que ele era herege, e que por isto suas obras deveriam ser proibidas. João Huss e seus companheiros boêmios se deixaram levar por esta pol (tica, e logo se viram na difícil situação de ter de defen-


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der as obras de um autor com cujas idéias eles não estavam completamente de acordo. Repetidamente os checos declararam que não estavam defendendo as doutrinas de Wycliff, mas seu direito de ler as obras do mestre inglês. I',ias apesar disto os alemães começaram a chamar seus adversários de "wyclifitas". Sem demora, diversos integrantes da hierarquia que eram alvo dos ataques de Huss e de seus seguidores, e que viam nos ensinos de Wycliff uma ameaça séria à sua posição, se reuniram ao grupo dos alemães. Era a época em que, em resultado do concílio de Pisa, havia três papas. Venceslau apoiava o papa pisano, enquanto o arcebispo de Praga e os alemães da universidade apoiavam Gregório XII. Venceslau necessitava do apoio da universidade para sua pol (tica, e já que os checos estavam em maioria nela, o rei simplesmente mudou o sistema de votação, dando três votos aos checos e um aos alemães. Estes, então, abandonaram a cidade e foram para Leipzig, onde fundaram uma universidade rival, declarando que a de Praga se entregara à heresia" Se bem que isto constituiu um grande trunfo para o movimento hussita, também contribuiu para propagar a idéia de que este movimento não passava de outra versão do wyclifismo, sendo, portanto, herege. Mais tarde o arcebispo se submeteu à vontade do rei, e reconheceu o papa pisano. lvlas se vingou de Huss e dos seus solicitando deste papa, Alexandre V, que proibisse a posse das obras de Wycliff. O papa concordou, e proibiu também as pregações fora das catedrais, dos mosteiros ou das igrejas paroquiais. Como o púlpito de Huss, na capela de Belém, não se enquadrava nestas determinações, o golpe estava claramente dirigido contra ele. A univcrsiclacíc de Praga protestou. I'v~as João Huss tinha agora de f,v'r diHcil escolha entre desobedecer o papa e deixar do pI f:!Jdf. Com o passar do tempo sua consciência se irru ôs. r 1(: 'lll)lu ,JÜ púlpito e continuou pregando a tão ansiada r '101111 I. I :,11: loi seu primeiro ato de desobediência, e a ele 'UUi'dlll '111,11(1',outros. pois quando em 1410 foi convocado para 11011111,1'11111 d.1t conta das suas ações, ele se negou a ir, e em ' "',( III' 'li II () ('drd 'ai Colonna o excomungou em 1411, em rlOrlle chi pIpi, ptlr não ter acedido à

,I


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convocação papal. Mas apesar disto Huss continuou pregando em Belém e participando da vida eclesiástica, pois contava com o apoio dos reis e de boa parte do pa(s. Assim Huss chegou a um dos pontos mais revolucionários da sua doutrina. Um papa indigno, que se opunha ao bem-estar da igreja, não deve ser obedecido. Huss não estava dizendo que o papa não era leg(timo, pois continuava favorável ao papa pisano. Mas mesmo assim o papa não merecia ser obedecido. Até aqui Huss não estava dizendo mais que os lfderes do movimento conciliar, na mesma época. A diferença estava em que estes se ocupavam principalmente da questão jur(dica de como decidir entre vários papas rivais, e buscavam a solução deste problema nas leis e nas tradições da igreja, enquanto Huss acabara por seguir Wycliff até este ponto, declarando que a autoridade final é a Bfblia, e que um papa que não se conforme a ela não deve ser obedecido. Mas mesmo assim isto era, com poucas diferenças, o que Guilherme de Occam tinha dito, ao declarar que nem o papa nem o concílio, mas somente as Escrituras eram infal(veis. Outro incidente turbou a questão ainda mais. João XXIII, o papa pisano, estava em guerra com Ladislau de Nápoles. Nesta contenda sua única esperança de vitória estava em obter o apoio, tanto militar como econômico, do restante da cristandade latina. Para tanto ele declarou que a guerra com Ladislau era uma cruzada, e promulgou a venda de indulgências para custeá-Ia. Os vendedores chegaram à Boêmia, usando de todo tipo de métodos para vender sua mercadoria. Huss, que vinte anos antes tinha comprado uma indulgência, mas que agora mudara de opinião, protestou contra este novo abuso. Em primeiro lugar uma guerra entre cristãos dificilmente poderia receber o tftulo de cruzada. E em segundo, somente Deus pode conceder indulgência, e ninguém pode querer vender o que vem unicamente de Deus. rei, entretanto, tinha interesse em manter boas relações com João XXIII. Entre outras razões para isto, a questão de se ele ou seu irmão Sigismundo era o imperador leg(timo ainda não fora decidida, e era possfvel que, se a autoridade de João XXIII viesse a se impor, 'Seriaele quem teria de decidir a questão. Por isto o rei proibiu que a venda de indulgências

a


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continuasse sendo criticada. Sua proibição, todavia, veio tarde demais. A opinião de João Huss e de seus companheiros já era conhecida de todos, a ponto de terem surgido passeatas do povo, em protesto contra esta nova maneira de explorar o povo checo. Enquanto isto João XXIII e Ladislau fizeram as pazes, e a pretensa cruzada foi revogada. Huss, no entanto, para Roma ficou sendo o I íder de uma grande heresia, e até chegou-se a dizer que todos os boêmios eram hereges. Em 1412 Huss foi excomungado de novo, por não ter comparecido diante da corte papal, e foi fixado um prazo curto, para ele se apresentar. Se não o fizesse, Praga ou qualquer outro lugar que lhe desse acolhida estaria sob interdito. Desta forma a suposta heresia de Huss resultaria em preju ízo da cidade. Por esta razão o reformador checo decidiu abandonar a cidade onde tinha passado a maior parte da sua vida, e se refugiar no sul da Boêmia, onde continuou sua atividade reformadora dedicando-se à literatura. Ali ele recebeu a notícia de que finalmente se reuniria um grande concflio em Constança, e que ele estava convidado para lá comparecer e se defender pessoalmente. Para isto o imperador Sigismundo lhe oferecia um salvoconduto, que lhe garantia sua segurança pessoal.

Huss diante do concílio O concílio de Constança prometia ser a aurora de um novo dia na vida da igreja. Tinham comparecido a ele os mais distintos defensores da reforma através de um concílio, João Gerson e Pedro de Ailly. Nele seria decidido de' uma vez por todas quem era o papa legítimo, e seriam tomadas medidas contra a simonia, o pluralismo e tantos outros males. E João Huss estava convidado, para apresentar seu caso. Aquela assembléia poderia ser o grande púlpito que ele usaria para pregar a reforma. Por isto Huss não poderia deixar de ir. Mas por outro lado já o fato de ter sido necessário um salvo-conduto era um indfcio dos perigos que poderiam estar esperando por ele. Huss sabia que os alemães que tinham se transferido para Leipzig tinham continuado espalhando o rumor de que ele era herege. sabia também que não podia contar com nenhuma simpatia da parte de João XXIII e da sua cúria.


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Por isto antes de partir ele deixou um documento que deveria ser lido no caso de sua morte. Para medirmos o caráter deste homem, observemos de passagem que este documento era uma confissão em que declarava que um dos seus grandes pecados era - que gostava demais de jogar xadrez! Os perigos que o esperavam em Constança eram grandes. Mas sua consciência o obrigava a ir. E assim partiu o reformador checo, confiado no salvo-conduto imperial e na justiça da sua causa. João XX III o recebeu com cortesia, mas poucos dias depois o chamou para o consistório papal. Huss foi, mesmo insistindo em que tinha vindo para expor sua fé diante do concílio, e não do consistório. Ali ele foi formalmente acusado de herege, e ele respondeu que preferia morrer que ser herege, e que o convencessem de que o era, ele se retrataria. A questão ficou suspensa, mas a partir de então Huss foi tratado como um prisioneiro, primeiro em sua casa, depois no palácio do bispo, e por último em uma série de conventos que lhe serviam de prisão. Quando o imperador, que ainda não tinha chegado em Constança, soube o que tinha acontecido, ficou extremamente irado, e prometeu fazer respeitar seu salvo-conduto. Mas depois começou a dar menos ênfase nisto, pois não lhe convinha aparecer como protetor de hereges. Em vão foram os protestos do próprio Huss, como o foram os que chegaram de muitos nobres boêmios. Huss possu(a inclusive um certificado do Grande I nqu isidor da Boêmia, declarando que ele era inocente de qualquer heresia. Só que para os italianos, alemães e franceses, que eram a imensa maioria no concflio. os boêmios não passavam de bárbaros que sabiam pouco de teologia, e cujos pronunciamentos não deveriam ser levados a sério. No dia 5 de junho de 1415 Huss compareceu diante do concflio, Poucos dias antes João XXIII tinha sido aprisionado e trazido de volta para Constança, como narramos no cap(tulo I V. Já que isto significava que o papa pisano tinha perdido todo o poder, e já que Huss tivera seus piores conflitos com ele, era de se supor que a situação do reformador melhoraria. Mas sucedeu o contrário. Quando Huss foi levado para a assembléia ele estava acorrentado, como se tivesse tentado fugir ou se já tivesse sido julgado. Foi acusado formalmente de ser herege,


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e de seguir as doutrinas de Wycliff. Huss tentou expor suas opiniões, mas a algazarra foi tamanha que ele não se podia fazer ouvir. Por fim foi decidido adiar a questão para o dia 7 do mesmo mês. O processo de Huss durou mais três dias. Repetidamente ele foi acusado de herege. Mas quando foram relacionadas as doutrinas concretas de que supostamente consistia sua heresia, Huss demonstrou que era perfeitamente ortodoxo. Pedro de Ailly assumiu a liderança do julgamento, exigindo que Huss se retratasse das suas heresias. Huss insistia em que nunca tinha crido nas doutrinas de que exigiam que ele se retratasse, e que por isto não podia fazer o que de Ailly requeria dele. Não havia maneira de resolver o conflito. De Ailly queria que Huss se submetesse ao concüio, cuja autoridade não podia ficar em dúvida. Huss lhe mostrava que o papa que o tinha acusado de desobediência era o mesmo que o concflio acabara de depor. Mostrar suas contradições a um homem supostamente sábio, tido como homem mais ilustre da época, e isto diante de uma grande assembléia, nem sempre é uma atitude sábia. O rancor do seu juiz aumentava cada vez mais. Outros I(deres do concflio, entre eles João Gerson, diziam que estava desperdiçando o tempo que deveriam dedicar a questões mais importantes, e que de qualquer forma os hereges não merecem tanta atenção. O imperador se deixou convencer de que ele não precisa guardar sua palavra para com os que não têm fé, e retirou seu salvo-conduto. Quando Huss acabou dizendo que era verdade que ele tinha dito que se não quisesse ter vindo para Constança, nem o imperador nem o rei teriam podido obrigá-lo, seus acusadores viram nisto a prova de que ele era um herege obstinado e orgulhoso - apesar de o nobre boêmio João de Clum, que o defendeu valentemente até o final, ter declarado que o que Huss dissera era verdadeiro, e que tanto ele como muitos outros mais poderosos do que ele teriam protegido Huss se este tivesse decidido não ir ao condlio. O concflio pedia unicamente que Huss se submetesse a ele, retratando-se das suas doutrinas. Mas não estava disposto a escutar nem crer no acusado, quanto a quais eram as doutrinas que tinham crido e ensinado nu verdade. Uma simples retratação teria bastado. O cardeal ebarolla preparou um


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documento em que exigia de Huss que se retratasse se seus erros, e aceitasse a autoridade do concflio. O documento estava cuidadosamente redigido, porque seus ju (zes queriam lhe dar todas as oportunidades para que se retratasse, e assim ganhar a disputa, mas o reformador checo sabia que se se retratasse, com isto estaria condenando todos os seus seguidores, pois se declarasse que suas doutrinas eram aquelas que seus inimigos tinham apresentado, estaria nisto impl (cito que seus companheiros criam nas mesmas coisas, e que portanto eram hereges. A resposta de Huss foi firme: - Apelo a Jesus Cristo, o único juiz todo-poderoso e totalmente justo. Em suas mãos eu deponho a minha causa, pois Ele há de julgar cada um não com base em testemunhos falsos e concflios errados, mas na verdade e na justiça. Por vários dias o deixaram encarcerado, na esperança de que fraquejasse e se retratasse. Muitos foram lhe pedir que o fizesse, talvez sabendo que sua condenação seria uma mancha indelével para o concflio de Constança. Mas João Huss continuou firme. Por fim, no dia 6 de julho, ele foi levado para a catedral de Constança. Ali, depois de um sermão sobre a teimosia dos hereges, ele foi vestido de sacerdote e recebeu o cálice, somente para logo em seguida lhe arrebatarem ambos, em sinal de que estava perdendo suas ordens sacerdotais. Depois lhe cortaram o cabelo para estragar a tonsura, fazendo-lhe uma cruz na cabeça. Por último lhe colocaram na cabeça uma coroa de papel decorada com diabinhos, e o enviaram para a fogueira. A caminho do suplfcio, ele teve de passar por uma pira onde ardiam seus livros. Mais uma vez lhe pediram que se retratasse, e mais uma vez ele negou com firmeza. Por fim orou, dizendo: "Senhor Jesus, por Ti sofro com paciência esta morte cruel. Rogo-Te que tenhas misericórdia dos meus inimigos." Morreu cantando os salmos. Os hussitas

Os verdugos recolheram todas as cinzas e as lançaram no lago, para que não restasse nada do suposto heresiarca.


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A morte de Joio Huss, de acordo com um mertiriotoçto do século XVI.

Mas seus discípulos recolheram a terra em que foi queimado, e a levaram para a Boêmia. Pouco depois Jerônimo de Praga, que tinha decidido se unir a João Huss em Constança, sofreu a mesma sorte que seu mestre. A indignação da Boêmia não teve limites. Tanto os nobres como a universidade, a cidade de Praga e o povo se negaram a reconhecer a autoridade do concflio de Constança. Os nobres tomaram a iniciativa, e protestaram contra o que fora feito em Constança, reunidos em uma assembléia onde estavam 452 deles, e declararam que não estavam dispostos a obedecer a um papa indigno. A resposta do concílio foi uma firme insistência de que Huss era herege, ao mesmo tempo que acusava os nobres e Venceslau e sua esposa de serem patrocinadores da heresia. Em seguida o concílio promulgou uma série de decretos a que ninguém obedeceu: a universidade de Praga era fechada, os nobres que tinham protestado deveriam comparecer em Constança, e todos os boêmios eram proibidos de ordenar sacerdotes que seguissem as doutrinas de Huss. Na própria Boêmia havia interesses conflitantes entre si, enquanto concordavam em sua oposição ao concílio de


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Constança. Além dos nobres havia os professores da universidade, e alguns pregadores de Praga, que eram os verdadeiros seguidores de Huss. E longe da capital existiam movimentos populares de origens obscuras, que se opunham à igreja estabelecida. Destes o principal era o do Monte Tabor. Cs taboritas eram revolucionários apocal (pticos que criam que o fim estava proxrrno, e que estavam dispostos a contribuir para sua vinda usando da espada. Suas doutrinas eram muito mais radicais que as dos verdadeiros hussitas. Outra comunidade ou fraternidade semelhante à dos taboritas, mas menos apocal íptica, era a do Monte Horebe. Os taboritas insistiam em que tudo o que não estivesse na Bíblia deveria ser rejeitado. Contra eles os hussitas de Praga diziam que somente deveria ser rejeitado o que contradissesse os ensinos claros das Escrituras. Por isto os hussitas mantiam boa parte das cerimônias tradicionais, as vestimentas eclesiásticas e os ornamentos nas igrejas. Os taboritas rejeitavam tudo isto. Na realidade, como acontece tão freqüentemente neste tipo de confronto, tratava-se de um conflito social. Os taboritas

A comunidade do Monte Tabor.


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eram em sua maior parte pessoas de classe baixa, desprovidas de todo bem-estar ffsico, para as quais os ornamentos e as cerimônias eclesiásticas eram um luxo abominável. Os hussitas na maioria eram nobres e burgueses cujos gostos e formação estavam mais dirigidos para a arte, as letras, a tradição e os ornamentos. Estes diversos grupos lutaram entre si sempre que era poss(vel. Mas diante da ameaça externa eles foram obrigados a esquecer as diferenças e se unir contra um inimigo comum. Isto os levou a um acordo de quatro artigos, que a partir de então seria a base do movimento rebelde boêmio. O primeiro era que fosse pregado livremente por todo o reino da Boêmia a Palavra de Deus. O segundo, que a ceia fosse administrada "nas duas espécies", ou seja, que o cálice fosse devolvido aos leigos. A esta conclusão Huss tinha chegado nos últimos dias da sua vida, e que depois passou a ser tema característico dos hussitas. O terceiro, que o clero fosse privado ele suas riquezas, e vivesse em pobreza apostólica. E o quarto, que os pecados públicos e maiores fossem castigados, particularmente o pecado da simonia. Estes quatro artigos foram apresentados a Sigismundo em um momento diffcil para a Boêmia. Venceslau acabara de falecer, e o herdeiro da coroa era nada menos que seu irmão Sigismundo, o imperador que em Constança tinha trafdo Huss. O pa(s estava dividido, e não estava pronto para se opor à sucessão leg(tima do trono. Mas também não estava disposto a capitular e se entregar nas mãos de Sigismundo sem impor condições. Estas condições, acrescentadas aos quatro artigos, consistiam em que os alemães não recebessem mais cargos públicos, e que haveria liberdade de culto. Sigismundo não podia aceitar estes artigos sem rejeitar o concflio que ele mesmo tinha patrocinado, e sem deixar claro que a condenação de Huss tinha sido injusta. Por isto, em vez de ceder às condições dos boêrnios, ele decidiu tomar o trono pela força. Para isto ele conseguiu que o papa proclamasse uma grande cruzada contra os hereges hussitas. As tropas de Sigismundo chegaram até Pra!J(J, mas foram ali derrotadas por um contingente constitu fdo pr mcqialrnente por taboritas, sob o comando de João Zizku. ( sl(: Na membro da nobreza


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A devoluçBo do cálice aos leigos foi um dos temes centrais do mo virrento husslts.

inferior, que, decepcionado com os hussitas de Praga, se tinha unido aos taboritas, e os tinha organizado militarmente. Sua principal arma de guerra eram os carros dos camponeses, que Zizka transformou em fortalezas sobre rodas. Convictos de que o Senhor estava do seu lado, os taboritas cafram sobre os exércitos imperiais e os obrigaram a se retirar. Mais tarde, em outra batalha, acabaram por destruir as forças da suposta cruzada. Estes triunfos aconteceram em 1420. Repetidamente o papa e o imperador tentaram conquistar a região. Em 1421 um exército de cem mil cruzados fugiu das tropas de Zizka, que perdeu o único olho que tinha (era caolho desde sua mocidade), mas apesar disto não abandonou as tarefas militares. No ano seguinte a terceira cruzada contra os boêmios se desfez antes de encontrar o inimigo. Pouco depois Zizka se separou dos taboritas e se uniu à fraternidade do Monte Horebe, pois lhe parecia que os taboritas estavam ficando m (sticos e visionários demais. Entre os horebitas ele viveu até sua morte, em


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consequencia da praga, em 1424. Mas apesar de terem perdido seu grande general os hussitas continuaram triunfando no campo de batalha. As novas cruzadas de 1427 e 1431 não tiveram melhor êxito que as anteriores.

J. A. Comento foi um dos mais famosos herdeiros da tradição bussite. Em

meio li persefluiçio ele esperallfJque em algum I~ar ttceri« um remanescente, que alflum dia voltaria a brotar.


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A última campanha mencionada teve lugar enquanto os hussitas negociavam com o ccncflio de Basiléia. Por fim convencidos de que tinham cometido um grave erro ao condenar João Huss, os conciliaristas convidaram os I(deres hussitas a participar do novo concílio, para ali aplainarem suas diferenças. Mas os boêmios, vacinados pela experiência de João Huss, exigiam garantias impossíveis de atender. Desesperados, os católicos tentaram uma nova cruzada, e foram derrotados uma vez mais. Isto os levou a negociar um acordo com os hussitas. A igreja da Boêmia regressou à comunhão romana, apesar de receber permissão para a ceia nas duas espécies, e foram garantidos à Boêmia certos elementos contidos nos quatro artigos. Muitos hussitas concordaram com isto, particularmente os nobres. Foi firmado um acordo, e por fim Sigismundo pôde ocupar o trono da Boêmia - até que morreu, dezesseis meses depois. Nem todos os boêmios, todavia, estavam de acordo com este arranjo. Muitos abandonaram a igreja estabelecida, e mais tarde fundaram a Uni tas Fratrum - unidade dos irmãos. Esta organização chegou a ser numerosíssima, não somente na Boêmia, mas também na Morávia. Durante a reforma do século XVI eles estabeleceram estreitas relações com o protestantismo, e por algum tempo pensou-se que eles se juntariam aos luteranos. Pouco depois os imperadores da casa da Austria, que davam todo seu apoio ao catolicismo, começaram a persegui-los. A organização foi praticamente destru (da. Mas o bispo João Amós Comênio, do exílio, continuava animando-os e intercedendo por eles. Nesta atividade ele alcançou fama de ser um homem santo, sábio e grande reformador da educação. O sonho de Comênio era que algum dia, depois da perseguição, surgisse em algum lugar um rebento da planta que a violência tinha cortado. E seu sonho não foi frustrado; mais adiante nesta história voltaremos a nos encontrar com o remanescente da Unitas Fratrum, com o nome de "morávios".


VII Os movimentos populares Os bispos, príncipes, condes e cavaleiros deveriam ter permissão para possuir somente tanto quanto o povo em geral. Virá o dia em que também eles terão de ganhar a vida trabalhando.

Hans Bôhm

Nos últimos três capítulos, e em diversos dos que seguirão e este, dedicamos nossa atenção a movimentos reformadores cuja origem foi principalmente acadêmica. Os conciliaristas na universidade de Paris, Wycliff na de Oxford, e Huss na de Praga, foram todos respeitados em sua época por seus conhecimentos. Mesmo sendo acusados de hereges e sediciosos, ninguém se atrevia a dizer que seus erros provinham da ignorância. Ao lermos os anais da época, no entanto, nos assalta a suspeita de que estes movimentos reformadores entre pessoas eruditas eram somente uma parte muito pequena do bulir religioso, que fervia principalmente no povo pobre e iletrado. Não devemos esquecer, por exemplo, que tanto o movimento de Wycliff como o de Huss mais tarde não tiveram sua expressão mais permanente nas universidades, mas entre o povo. Sem os lolardos ou os taboritas, os dois movimentos teriam ficado esquecidos em documentos antigos. E também é muito improvável que Wycliff e os seus pudr ssorn convencer os que seguiram suas idéias entre as classes b IÍx IS, s neste povo já não existisse


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antes um fervor que encontrou sua expressão nas doutrinas que vinham de Oxford. O mesmo podemos dizer, talvez com mais justeza, dos taboritas da Boêmia, que vieram a ser os defensores mais decididos do movimento hussita, mas provavelmente não derivavam a maior parte das suas doutrinas do reformador de Praga, mas de idéias que circulavam entre o povo. Por quê, então, os livros de história dão tanta atenção ao movimento conciliar, a Wycliff e a Huss, e tão pouca a estes outros movimentos populares? Simplesmente porque as informações sobre estes últimos são muit(ssimo escassas, e pouco confiáveis. Sobre o movimento conciliar, por exemplo, temos as obras dos seus principais I(deres, bem como as atas dos concílios e as crônicas da época. Apesar de muitas destas fontes terem coloração partidária, sua abundância permite que as comparemos, para assim tentar equilibrar nosso julgamento. Mas no caso dos movimentos populares a situação é bem diferente. Seus segu idores eram quase totalmente pessoas sem instrução, que ou não sabiam escrever, ou não sentiam o desejo de deixar registros para a posteridade. Muitos destes movimentos eram de caráter apocal (ptico, e os que deles faziam parte criam que o fim estava próximo, e por isto não viam razão alguma para narrar sua história, ou para pôr seus ensinos no papel. ~ bem possfvel que, se tivessem a intenção de fazê-lo não o teriam conseguido, pois tratava-se de correntes de entusiasmo, que apareciam de repente em algum lugar, para logo depois desaparecer, continuar correndo sob a superf(cie, e irromper novamente em outra época e outro lugar. Os próprios integrantes dos movimentos desconheciam sua história. Quanto aos testemunhos dos seus inimigos, sua veracidade é muito duvidosa. Nesta época fazia-se uma série de acusações contra qualquer movimento que parecesse ser sedicioso ou herético. Dizia-se que os I(deres destes movimentos eram pessoas que utilizavam o entusiasmo religioso para soltar as rédeas da imoralidade e do roubo, odiavam os sacerdotes e toda a hierarquia da igreja, profanavam o sacramento do altar, criam que o fim do mundo estava próximo, diziam ter recebido uma nova revelação de Deus, ou que o Espfrito Santo se tinha encarnado nelas, etc. ~ bem possfvel, e até provável, que em


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alguns casos parte disto tenha sido verdadeiro. Mas o fato de as mesmas acusações terem sido feitas contra movimentos claramente diferentes nos faz suspeitar que freqüentemente eram falsas. Por estas razões a história dos movimentos religiosos populares do fim da Idade Média ainda está por ser escrita. Não é possfvel saber com exatidão como este grupo se relacionava com aquele, nem a origem dos seus nomes, nem sequer o que muitos destes nomes significavam. Por isto não podemos narrar aqui a história destes movimentos. Podemos, isto sim, assinalar suas caracterfstlcas comuns, e o que significavam para a história do cristianismo. Desde os tempos de Constantino o problema dos bens e da pobreza tinha sido uma preocupação quase que constante dos cristãos. Quando o Império Romano se tornou cristão, e a igreja ficou cheia de luxo e pompa, o monaquismo surgiu como movimento de protesto. Quando, nos séculos XII e XIII, a economia monetária começou a mudar a paz social da Europa, houve novos sinais de inconformismo. O mais notável foi o franciscanismo, cujo fervor varreu toda a Europa ocidental. Mas tanto na época de Constantino como no século XIII a igreja soube assimilar estes movimentos, dar-lhes um lugar na estrutura eclesiástica, e mais tarde transformá-los em instrumentos dóceis nas mãos da hierarquia . .Na época que estamos estudando, a igreja tinha perdido esta flexibilidade. Já no século XLII houve quem temesse que surgissem mais movimentos como o franciscanismo, prevendo que a igreja não poderia controlá-los. Por isto em 1215 o quarto concflio de Latrão proibiu a fundação de novas ordens. Agora, nos séculos XIV e XV, a tendência que se manifestara em 1215 chegou ao seu ponto culminante. A hierarquia sentia seu poder ameaçado pelo fervor dos novos movimentos de pobreza. A pobreza franciscana tinha sido reinterpretada de modo, que não requeria a pobreza da ordem em si, mas somente dos seus membros como indiv(duos. Como ordens, tanto a de São Francisco como a de São Domingos se tornaram ricas e poderosas. Os prelados, agora senhores poderosos, e os frades, cujo espfrito de crítica profética tinha sido esquecido, viam nos novos movimentos que exaltavam a pobreza uma censura


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A igreja e a fé eram representadas como uma grande fortaleza, protegida pelos prelados e por alguns frades eruditos, enqoento o povo Ignorante e fBmitico tentallB miná-la.

a eles. Por isto tinham a tendência de rotulá-los de heréticos e corruptos. A questão da pobreza tinha duas origens. De um lado estavam pessoas relativamente conscienciosas, que abraçavam uma pobreza voluntária, por motivos de renúncia. Este tinha sido o caso, no século XIII, de São Francisco de Assis. Durante os séculos que estamos estudando - o XIV e o XV - continua-


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ram existindo pessoas da mesma origem social, que se sentiam impelidas por motivos semelhantes. Mas já que o franciscanismo e outras ordens parecidas tinham abandonado seu espírito inicial, estas pessoas se viam obrigadas a procurar maneiras próprias de expressar e viver o que pensavam ser sua vocação de pobreza voluntária, e por isto criavam grupos ou movimentos que não eram bem vistos pela hierarquia da igreja. Outras se juntavam a movimentos que existiam entre as classes humildes, porque parecia-lhes que ali seria mais fácil cumprir o ideal evangélico da pobreza que São Francisco e tantos outros antes dele tinham pregado. Bem - e agora chegamos à outra origem da questão - se a pobreza voluntária é uma virtude, a involuntária, que é resultado não de uma decisão própria, mas das condições sociais, também não o seria? Nas Escrituras há numerosas indicações de que Deus julga a favor dos pobres e contra os ricos que os oprimem. Por diversos meios esta idéia central da Bíblia chegava aos marginalizados. Um destes meios provavelmente eram pessoas de posição social melhor, que voluntariamente compartilhavam da sorte dos pobres, mas cujo nível de instrução lhes permitia apelar para as Escrituras para defender o valor da pobreza, e cujos argumentos e ensinos os marginalizados escutavam. Outro meio eram as muitas histórias de mártires e milagres que circulavam entre o povo. Nestas freqüentemente havia um confronto entre um senhor poderoso e uma pessoa oprimida, e não havia dúvida de que Deus estava do lado desta última. Por todas estas razões, e porque os tempos economicamente eram maus, surgiu rapidamente uma multidão de movimentos que se confundiam entre si. Alguns procuravam somente uma oportunidade para praticar a pobreza voluntária. Outros viam nos males da época um sinal dos tempos apocal (pticos. O anticristo viria em breve, ou já estava no mundo. Era necessário arrepender-se, castigar o corpo, para assim se salvar do mal que viria sem demora. Outros, enfim, passaram do arrependimento à ação. Os últimos tempos, que se aproximavam, deveriam ser marcados pela fidelidade ao evangelho e pela justiça. Nesta hora a tarefa do cristão consistia em empunhar as armas e marchar em direção ao Reino de Deus, contra os


114 / A era dos sonhos frustrados que falsificavam a verdade evangélica, ou contra os que destru (am a justiça oprimindo os pobres. Já que aqui é imposs(vel narrar a história de toda esta agitação, iremos nos limitar a dar uma idéia superficial de um movimento cujo ponto central foi a pobreza voluntária - o das beguinas e dos begardos - de outro cuja caracterfstica foi a penitência extrema - os flagelantes - de um terceiro que tentou estabelecer a verdade evangélica mediante a força das armas - os taboritas - e por fim um dos muitos que sonharam com o Reino da justiça - o de Hans Bohrn,

Beguinas e begardos

O monaquismo sempre tinha exercido uma forte atração sobre as mulheres. No século XIII o despertamento religioso que deu origem ao franciscanismo se fez sentir também entre elas. rl:iuitas se uniram aos ramos femininos dos franciscanos e dos dominicanos. Outras engrossaram as fileiras das ordens mais antigas. Mas em pouco tempo seu número era tão grande que os homens começaram a se queixar, e a limitar o número de mulheres que estavam dispostos a aceitar no ramo feminino das suas ordens. muito provável que em parte este impulso entre as mulheres foi motivado pelo fato de a vida monástica ser o único meio ern que elas, mesmo as mais ricas, podiam escapar de uma vida completamente dirigida pelos desejos e decisões dos outros - pais, irmãos, esposos e filhos. Seja como for, os conventos tradicionais em pouco tempo não tinham mais espaço para todas as candidatas, e um grande número de mulheres passou a se reunir em pequenos grupos que viviam juntos e levavam uma vida de oração, devoção e relativa pobreza. Estas passaram a ser chamadas de "beguinas", e as casas em que viviam de "beguinagens". A origem deste nome é obscura, mas tudo parece indicar que ele era depreciativo, pois era usado freqüentemente como sinônimo de "herege" ou de "albigense". Isto é um ind feio de como o restante da sociedade as considerava, e também a maior parte da hierarquia eclesiástica. Alguns bispos apoiaram o movimento, mas outros o proibiram em suas dioceses. Em fins do século XIII começou a haver legislação contra este É


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Na cidade de Bruxelas, na Bélgica, ainda existe este antigo beguinagem. Foto deJM.

tipo de vida, que ameaçava a estrutura da igreja porque não constitu (a uma ordem oficialmente estabelecida, e também não seguia o tipo de vida do restante dos leigos. Na mesma época o movimento começou a assumir coloração um pouco diferente. No começo muitos beguinagens aceitavam somente mulheres que tivessem meios para suprir sua própria subsistência. Mas depois começaram a ingres$<Jr neles outras de origem mais simples, cuja pobreza não .rn totalmente voluntária, mas mais real que a das primoir I". Sem demora os beguinagens começaram a ser acusados Ut centro de ociosidade, onde se refugiavam mulheres que nflo queriam assumir as responsabilidades da sociedade. Com ad .• vez mais insistência os bispos começaram a lhes antepor OUS táculos. Como conseqüência as beguinas se afastaram cada vez mais da igreja hierárquica, e algumas chegaram a abraçar doutrinas supostamente ou realmente erradas. Em alguns poucos lugares, particularmente nos Países Baixos, elas conseguiram sobreviver até tempos recentes. Mas em muitos outros elas foram proibidas. ou se juntaram a movimentos mais radicais.


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Em menor número e em data um pouco posterior os homens seguiram o mesmo caminho das mulheres. Estes receberam o nome de "begardos", e também foram acusados mais tarde de heresia, e destru (dos. Os flagelantes

Os flagelantes apareceram pela primeira vez em 1260, mas tiveram uma expansão súbita no século XI V. Eles eram pessoas que castigavam seus próprios corpos com chicotes, em penitência por seus pecados. Isto não era novidade, pois diversos grandes mestres do monaquismo o tinham praticado. Mas até então isto sempre ocorrera dentro do âmbito da vida monástica, e quase sempre tinha sido regulamentado pelas autoridades. Agora passou a ser um movimento popular. Convictos de que o fim do mundo se aproximava, ou de que Deus o destruiria se a humanidade não desse mostras convincentes de arrependimento, centenas e milhares de cristãos começaram a se chicotear a ponto de fazer correr sangue. Não se tratava, ao contrário do que poder(amos supor, de um movimento histérico momentâneo e desordenado, mas de uma disciplina regida e às vezes até mesmo ritualista. Alguém que quisesse se juntar ao movimento tinha de se comprometer a segui-lo durante trinta e três dias e meio. Durante este tempo tinha de obedecer totalmente aos seus superiores. Depois, mesmo voltando para casa, o flagelante ficava comprometido a se chicotear todos os anos na Sexta-feira Santa. Durante os trinta e três dias da sua obediência o flagelante se unia a um grupo que seguia diariamente um ritual prescrito. Iam em procissão até a igreja, marchando de dois em dois e cantando hinos. Depois de rezar à Virgem na igreja se dirigiam para uma praça pública, sempre entoando hinos. Ali desnudavam as costas e formavam um grande círculo. Depois de se prostarem em oração, ficavam de joelhos e, ao mesmo tempo que continuavam cantando, se flagelavam até sangrar. Outras vezes, enquanto se chicoteavam, um dos Iíderes pregava, geralmente sobre os sofrimentos de Cristo. Depois se levantavam, cobriam novamente suas costas, e voltavam marchando em procissão. Faziam isto duas vezes por dia, além de outra flaqelaçãoindividual, à noite.


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Chicatllallllm-611 até correr SIIngUII. Assim os represent« lista gravura da

época.

Apesar de serem acusados de gente desordenada, a verdade tinham uma disciplina regida. A princfpio a hierarquia não os viu com maus olhos, mas pouco a pouco sua atitude foi mudando. A causa disto foi principalmente que aparentemente os flagelantes ofereciam um caminho de salvação dissociado dos sacramentos da igreja. Se sua flagelação constituía uma penitência, como eles diziam, isto implicava em que era poss(vel uma penitência válida à parte da confissão ao sacerdote. Além disto ul(JlIrlS começaram a se referir à flagelação como um "segundo b.uisrno", imitando o que tinha sido dito muitos séculos 11111', do martírio. Em conseqüência diversos prelados os ÚCllhllt 1111 do querer usurpar "o poder das chaves" que tinha sidu ti 1<10 I Pedro e a seus sucessores. A isto foram acresccnuuhu 111111"', icusacões. Vestir um hábito especial sem ter peru: !ol, II II II ol 1',10 era um ato

é que os flagelantes


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de desobediência. Quando suas reuruoes foram proibidas, os que continuaram se reunindo foram acusados de participar de reuniões ilIcitas. Em vários países eles foram perseguidos. !'v'ais tarde deixaram de praticar sua flagelação em público. Mas parece que o movimento continuou de maneira clandestina por várias gerações. Os taboritas

Quando estudamos os hussitas tivemos oportunidade de nos referirmos aos taboritas. Seu cantata com os hussitas de Praga, e a necessidade de formar uma frente unida contra as repetidas cruzadas que foram lançadas contra a Boêmia, levaram os taboritas a abrandar algumas das suas doutrinas originais. Ao que parece estas doutrinas se baseavam no começo em um milenarismo exagerado. O fim estava às portas. Então Jesus Cristo castigaria os ímpios, e exaltaria os eleitos. Nos últimos dias, à espera do fim, era tarefa destes eleitos empunhar a espada e preparar o caminho do Senhor. Não havia motivo para ter misericórdia daqueles que de qualquer forma o Juiz Supremo iria condenar ao fogo eterno. Por isto todos os que agora se opunham à vontade de Deus deveriam ser destru ídos pelas mil (cias cristãs. Quando chegasse a hora final Deus restauraria o para (so. Quando alguns dos taboritas, os adamitas, levaram estas doutrinas ao extremo de andarem nus, imitando Adão e Eva no paraíso, e se dedicaram a uma vida licenciosa, afirmando que não poderiam ser condenados porque já faziam parte dos eleitos, o restante dos taboritas se voltou contra eles e os passou ao fio da espada. O estudioso moderno pode descobrir em todo este movimento as conseqüências de um profundo sentimento de opressão social, mas os taboritas não viam o Reino vindouro nestes termos, em primeiro lugar. Não se tratava tanto da vitória dos oprimidos sobre os opressores, como do triunfo dos santos sobre os pecados. Mas é realidade que quase todos os taboritas pertenciam às classes marginalizadas da Boêmia, e que os "pecadores" que eles condenavam eram os ricos e poderosos, primeiro na Boêmia, e depois da condenação de Huss de toda a Europa.


Os movimentos

populares

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Outro fato significativo é que a expectação escatológica levou os taboritas a tomar atitudes concretas, e contribuiu para seus repetidos triunfes sobre os invasores alemães. É importante mencionar isto, porque freqüentemente se diz que esta expectação leva as pessoas ao conformismo, quando na verdade a história nos relata diversos casos que provam o contrário. Na realidade muita coisa depende do conteúdo concreto desta expectativa, e da maneira em que ela se relaciona com o presente. Hens Bohm

Era a quaresma de 1476. As colheitas tinham sido fracas no sul da Alemanha. Na diocese de Wurzburg o bispo, que era também senhor da comarca, impunha impostos cada vez mais pesados. Na pequena aldeia de Nicklashausen havia uma imagem

A exptlctBtíV8 escstológícs erB urna das coro tnroucos n a!s cumuns destes mo vimentos populares. Aqui vemos o sntl rlsto , fll aludo pelos demânlos, BnqUBnto um anjo tenta derrubá-lo.


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da Virgem que passara a ser alvo de peregrinação, pois dizia-se que ela tinha poderes milagrosos. Num certo dia do mês de março o jovem pastor Hans Bohrn se levantou no meio dos peregrinos e começou a pregar. Suas palavras tocavam fundo no coração. Sua mensagem, que era necessário se arrepender, encontrou eco naquelas pessoasangustiadas, e em pouco tempo contava-se aos milhares os que acorriam para ouvir o jovem Bbhm. Muitos deles permaneciam ali, e os cronistas nos contam que o número dos que se reuniram passou de cinqüenta mil. Então as mensagens de Bbhm começaram a ser mais radicais. Diante de toda aquela miséria reunida ali, não era diffcil ver o contraste entre a mensagem cristã e a vida luxuosa que o bispo de Wurzburg levava. Bbhm começou a atacar a pompa, a avareza e a corrupção do clero. Depois anunciou que viria o dia em que todos os seres humanos seriam iguais, e todos teriam de trabalhar. Isto era o que o Senhor prometia. Mais tarde Bohm instigou seus seguidores a agirem em antecipação ao dia do Senhor, negando-se a pagar qualquer tipo de impostos, d(zimos ou outras obrigações, e marcou um dia em que todos juntos marchariam para reclamar seus direitos. Nunca se soube o que Bôhrn tencionava fazer, pois no dia anterior à data marcada os soldados do bispo se apoderaram dele e dispersaram seus seguidores a tiros de canhão. Pouco depois Bohrn foi queimado como herege. Como aparentemente o fermento da sua pregação continuava, o bispo colocou toda a aldeia sob interdito, e proibiu as peregrinações para lá. Mas nem mesmo estas medidas sufocaram as últimas fa(scas do movimento, até que a igreja foi destruída por ordem do arcebispo de Mainz. Este episódio é somente um de várias dezenas que podedamos ter contado. Os últimos anos da Idade Média foram caracterizados por um grande descontentamento popular, que combinava causas sociais com motivos religiosos. Os oprimidos viam que a vida dos apressores não só era injusta, mas também se vestia com um manto de piedade cristã, e inclusive se apoiava na autoridade da igreja. Contra esta situação houve inúmeros movimentos de protesto, e até rebeliões que só puderam ser sufocados mediante a ação militar. Em todos estes casos as autoridades eclesiásticas, que integravam o número dos que se


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beneficiavam com a situação existente, deram todo seu apoio aos poderosos. Em conseqüência disto floresceu o sentimento anti-cJerical, inspirado no início não por correntes modernas de secularização, mas pelo antiquíssimo sonho de justiça entre os seres humanos.


VIII A alternativa mística A contemplação é um conhecimento superior aos diversos tipos de conhecimento .... É uma ignorância iluminada, um belo espelho onde brilha a eterna luz de Deus. João de Ruysbroeck Os séculos XIV e XV foram um período de muita atividade religiosa, mesmo em meio às suas muitas frustrações, e talvez em parte por causa delas. Tanto na Espanha como na Inglaterra e na Itália houve místicos notáveis cujas obras serviram de inspiração para várias gerações. Mas foi na Alemanha, nas margens do Reno em particular, que este movimento floresceu e realizou seus maiores feitos. Durante toda a sua história o cristianismo contou com homens e mulheres cuja relação com Deus foi tal que receberam o título de "místicos". Nesta história; porém, apareceram dois tipos diferentes de misticismo, entre os quais convém fazer distinção. Um é essencialmente cristocêntrico. Não pretende chegar a Deus através da contemplação direta, ou através de uma iluminação divina, mas através de Jesus Cristo. Sua contemplação tem por alvo os sofrimentos de Jesus, ou sua ressurreição e triunfo final. Exemplos deste tipo de misticismo são o Apocalipse, São Bernardo de Claraval e São Francisco de Assis. O outro tipo de contemplação se deriva principalmente da tradição neoplatônica. O propósito dos que seguem este caminho é ascender através da contemplação interna, até chegar à união


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com o Um inefável. Plotino, o grande mestre pagão deste tipo de misticismo, dizia que nesta união a alma chegava a um estado de êxtase. Mais tarde alguns dos seus seguidores foram inimigos encarniçados do cristianismo. Mas outros aceitaram esta fé, e desta forma este segundo tipo de misticismo foi introduzido na tradição cristã. Através do falso Dion(sio, o Aeropagita, Gregório de Nissa, Agostinho e outros, o neoplatonismo se uniu a tal forma ao cristianismo que muitos chegaram a confundi-los. A parti r de então grande parte dos m Isticos cristãos escolheu o segundo caminho, em lugar do cristocêntrico. Em alguns casos, como no de Boaventura no século XIII, os dois elementos se uniram, e este místico dedica bel fssimos escritos à contemplação da paixão de Cristo, e outros ao processo de subir espiritualmente pelos degraus da hierarquia das coisas criadas, até chegar à contemplação co criador. grande mestre cio misticismo alemão foi Eckhart de Hochheim, conhecido geralmente como I\~estre Eckhart. Em fins do século XIII, quando tinha uns quarenta anos de idade, Eckhart foi enviado por sua ordem - a de São Domingos - para a universidade de Paris. Depois de completar ali os seus estudos ele foi nomeado provincial da Saxônia, e mais tarde vigário-geral da Boêmia. No exercício destes cargos ele demonstrou que seu misticismo não impedia que ele fosse um administrador prático e eficiente. Durante seus últimos anos coube-lhe viver na época do papado de Avignon, e ele sofreu muito com as circunstâncias que a igreja atravessava. A doutrina m (stica de Eckhart é essencialmente neoplatônica. Seu ponto de partida é a contemplação da divindade, do Um inefável. Tudo que podemos dizer de Deus é inexato, e por isto, em certo sentido, falso. "Se eu digo: Deus é bom, isto não é verdade. Eu sou bom, Deus não". Uma afirmação como esta pode ser mal interpretada, e de fato o foi. Naturalmente o que Eckhart queria dizer não era que Deus fosse mau, mas que qualquer linguagem que descreve Deus é analógica, e por isto inexata. Mas no fim das contas suas palavras deixam claro a direção em que ia seu pensamento, cujo propósito era exaltar Deus, mostrando que ele está acima de todo conceito humano, razão pela qual o verdadeiro conhecimento

a


A alternativa mística / 125 de Deus não é racional, mas intuitivo. Não podemos conhecer Deus estudando-o, mas vendo-o em contemplação m (stica. Em Deus estão desde a eternidade todas as idéias de todas as criaturas. Já antes de criar o mundo Deus, como art(fice supremo, tinha em sua mente a idéia de cada coisa que iria criar. Este é outro tema caracter(stico do cristianismo de tendência platônica. E com base nisto Eckhart chega a dizer: Nesta verdadeira essência da divindade, que está além de todo ser e de toda distinção, eu não existia; desejei estar ali; conheci-me ali; quis criar ali o homem que sou. Por isto eu sou 'minha própria causa de acordo com meu ser, que é eterno, mesmo que não de acordo com minha origem, que é temporal. Esta afirmação, e muitas outras semelhantes, fizeram com que Eckhart fosse .acusadc de ser herege. Dizia-se que ele estava ensinando a eternidade do mundo e das criaturas, e confundia Deus com o mundo de tal forma que incorria em pante(smo - a doutrina que as criaturas são parte da divindade. Ele era acusado particularmente de ter dito que a alma, ou parte dela, não é criada, mas eterna. Repetidamente Eckhart declarou que isto se baseava em interpretações falsas dos seus ensinos. A verdade parece ser que ele tentou evitar cair no pante(smo, ou na doutrina da divindade da alma, mas freqüentemente suas afirmações davam margens a estas interpretações. Até o fim de seus dias ele foi acusado de ser herege, e condenado como tal. Sua .apelação tramitava na cúria papal em Roma quando morreu. Mesmo sendo as acusações feitas contra khart exageros ou interpretações erradas dos seus ensinos, não resta dúvida de que o misticismo deste mestre alemão ru bum di] rente do misticismo cristocêntrico de São Bernardo I I) r (II reis Q. Prova disto é que para Eckhart os lugares SUIHo!>II U 11111101111 II importância que tinham tido para aqueles. ,I( dl.1 II <tlll ".11 rusalém está tão próxima da minha alma como o III III • III III" estou neste momento". Para isto não era noc :J', II (j '" I I I) olhar em di reção a Jerusalém, nem para os Icollli I. 1111 III( I que tiveram lugar ali. O importante é se dedic Ir ) COi,l, '11111111, II


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interna, "deixar-se levar", e chegar a ver Deus "sem nenhum intermediário". Mesmo acusado de herege em vida, ~v'~estre Eckhart teve muitos seguidores, especialmente entre os dominicanos. Os mais famosos destes foram João Tauler e Henrique Susso. Estes dois, apesar de serem menos eruditos que seu mestre, sabiam expor suas doutrinas de maneira que podiam ser compreendidas e seguidas por pessoas muito menos estudadas em questões teológicas, e por isto sua obra consistiu mormente em propagar os ensinos m (sticos de Eckhart. Seguindo o curso do Reno mais para baixo, encontramos o lugar onde viveu o místico flamengo João de Ruysbroeck. E muito provável que Ruysbroeck tenha lido as obras de Eckhart, e as seguido em alguns aspectos, mas o misticismo do flamengo é muito mais prático que o do mestre alemão. Esta tendência foi levada mais além por Gerardo de Groote, outro rnfstico flamengo sobre quem Ruysbroeck teve um forte impacto. Por causa da obra destes dois o que é chamado de "devoção moderna" tomou forma e se popularizou. Esta devoção consistia em levar uma vida de meditação disciplinada, orientada principalmente em direção à contemplação da vida de Cristo, e a imitá-lo. O escrito mais famoso desta escola é Imitação de Cristo, que até hoje continua sendo uma das obras de devoção mais lidas, tanto por católicos como por protesta ntes. Parte da obra de Ruysbroeck e de seus discípulos consistiu em mostrar os erros dos "irmãos de esp(rito livre". As doutrinas deste movimento não estão bem claras. Mas parece que se tratava de pessoas com tendências m (sticas que diziam que, por causa da sua experiência direta com Deus, eles não precisavam de meios como a igreja ou as Escrituras. Alguns chegavam a dizer que, como eram pessoas espirituais, podiam dar liberdade ao corpo para que seguisse suas próprias inclinações. Uma conseqüência notável da obra de Gerardo de Groote foi o surgimento dos Irmãos da Vida Comum. De Groote renunciou ao rendimento eclesiástico que recebia, e passou a pregar contra os abusos eclesiásticos, e a exortar seus seguidores para que levassem uma vida de santidade e devoção renovadas. Em contraste com os que antes dele tinham pregado


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a mesma coisa, no entanto, de Groote não exigia de seus seguidores que se dedicassem à vida monástica, mas lhes dizia que deveriam continuar sua vida normalmente, e nela se dedicar à devoção, a não ser que tivessem uma vocação monástica. Apesar disto mais tarde muitos dos seus discípulos se dedicaram à vida monástica, seguindo a regra agostiniana. Mas nunca perderam seu interesse pela vida comum, e por isto os Irmãos da Vida Comum fundaram escolas que não tinham igual. Nestas escolas não educavam só os que queriam ser monges, mas também pessoas que tencionavam abraçar carreiras bem diferentes. Assim, ao mesmo tempo que estimulavam o estudo, promoviam a "devoção moderna". Estas escolas foram um centro de renovação da igreja, pois nelas se formaram pessoas de espírito crítico e reformador. O mais famoso de seus alunos foi Desidério Erasmo, a quem voltaremos mais adiante. A não ser em alguns poucos casos o misticismo alemão e flamengo dos séculos XIV e XV evitou os excessos do entusiasmo. A contemplação mística não tinha o propósito de produzir grandes emoções, mas uma paz interna. E a maneira utilizada não era tanto o estfrnulo das emoções, mas a meditação. Na opinião destes místicos chegava-se a Deus não pelos sentimentos, mas através do intelecto. Este movimento não tinha a intenção de se opor à igreja, nem à sua hierarquia. Alguns dos seus JCderes criticaram os abusos dos prelados, em particular o seu espírito de ostentação, mas com o passar do tempo a maioria encontrava uma resposta para esta situação, em termos de não mais atacá-Ia abertamente, mas se retirar para meditar. Se a igreja estava corrompida, o cristianismo ainda podia se sobrepor a esta corrupção seguindo o caminho da devoção morderna, e dedicando-se a imitar a Cristo. Por estas razões o movimento m fstlco pôde continuar seu caminho sem que fosse perseguido como o foram reformadores no estilo de Huss e de seus seguidores. Mas por outro lado o misticismo era uma ameaça, em um sentido mais profundo, não mais para os prelados corruptos, mas para a própria noção de igreja hierárquica como a conheceu a Idade lViédia. De fato, se o cristão chega ao nível supremo da vida espiritual chegando-se diretamente a Deus, a conclusão óbvia é que os sacramentos, a pregação e a comunhão com


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a igreja têm um valor secundário, ou pelo menos passageiro. O m (stico, em seu estado de contemplação perfeita, não precisa de sacerdotes que lhe ofereçam os sacramentos, nem de uma igreja que lhe mostre que caminho deve seguir, nem mesmo das Escrituras para lhe mostrarem qual é a vontade de Deus. Os místicos dos séculos XIV e XV poucas vezes chegaram a estas conclusões. Mas em suas doutrinas havia um fermento que mais tarde despedaçaria a autoridade da hierarquia eclesiástica, e em alguns casos até mesmo a da Escritura. Podemos ver no misticismo, assim como já vimos no nacionalismo de que já falamos, os primeiros sinais da ruptura da unidade hierárquica que a igreja medieval presenciou.


IX A teologia acadêmica Todos têm um desejo natural de saber. Mas de que serve o conhecimento sem o temor de Deus? Sem dúvida um lavrador humilde que serve a Deus é melhor que um filósofo orgulhoso que ... tenta entender o rumo do céu. Imitação

de Cristo

A teologia acadêmica teve duas características principais depois de seu apogeu com Tomás de Aquino. A primeira foi uma tendência constante para as distinções cada vez mais sutis, as questões rebuscadas e escabrosas, e o estilo condensado e carregado. A segunda foi uma crescente separação entre a filosofia e a teologia, entre o que a razão pode descobrir e o que somente sabemos depois de Deus revelá-lo. São Tomás de Aquino e seus contemporâneos tinham afirmado que entre a fé e a razão havia uma continuidade fundamental, de maneira que certas verdades reveladas como a da existência de Deus - podiam ser conhecidas também através do uso correto da razão. I\ías pouco depois da morte do grande mestre dominicano foi se abrindo um abismo cada vez mais profundo entre os dois tipos de adquirir conhecimento. João Duns Escoto, o mais famoso do rn stres franciscanos desde o tempo de Boaventura, recebeu COir1 lodo a justiça o tftulo de Doctor suti/. Este título lh . 101 ('Olll( I ido como uma


130 / A era dos sonhos frustrados

honra, mas na verdade é testemunho do maior defeito das suas obras. Sua sutileza e suas distinções constantes são tantas e tais que seus escritos somente podem ser compreendidos pelos especialistas que dedicaram longos anos ao estudo da teologia e da filosofia desta época. Em meio a todo o emaranhado de seus escritos, entretanto, uma coisa fica clara: Duns Escoto não concorda com os teólogos da geração anterior à sua, que criam que doutrinas como a da imortalidade da alma, ou da onipresença divina, podiam ser provadas de maneira racional. Escoto não nega estas doutrinas. Nem sequer nega que sejam compat(veis com a razão. Mas nega que a razão seja capaz de demonstrá-Ias. No máximo a razão pode chegar a provar que estas coisas são possíveis. mas não que são necessárias. Esta tendência ficou mais clara na teologia de Guilherme de Occam e de seus contemporâneos e discípulos, nos séculos XIV e XV. Partindo da onipotência divina estes teólogos chegaram à conclusão de que a razão natural não pode provar absolutamente nada relacionado com Deus, nem com seus propósitos. Quase todos estes teólogos estabelecem uma distinção entre o poder de Deus "absoluto" e seu poder "ordenado". Se Deus é verdadeiramente onipotente isto quer dizer que ele pode fazer o que lhe agrada, de acordo com seu poder absoluto. Não existe nada que possa limitar este poder. Tanto a razão como a distinção entre o bem e o mal estão subordinadas a ele. Se ocorresse o contrário ter(amos de dizer que o poder de Deus é limitado pela razão, ou pela idéia do bem. ~ somente por causa do seu poder ordenado que Deus age razoavelmente, e que Deus faz o bem. Falando em termos estritos, na opinião destes teólogos, não se deve dizer que Deus sempre faz o que é bom, mas que tudo o que Deus faz é bom, seja o que for. ~ Deus quem determina o que é bom, e não vice-versa. Da mesma forma não podemos dizer que Deus age de maneira razoável. Não é a racionalidade que faz com que Deus aja desta ou daquela maneira. Pelo contrário, é Deus, em sua vontade soberana, que determina em que consistirá a razão, e então, através do seu poder ordenado, age seguindo as diretrizes desta razão.


A teologia acadêmica /131 Em conseqüência, os antigos argumentos através dos quais os teóloqos tentavam demonstrar que esta ou aquela doutrina era razoável ou "conveniente" perdiam todo seu valor. Tomemos como exemplo o problema da encarnação. Anselmo, e quase toda a tradição teológica a partir dele, tinha dito que a encarnação de Deus em um ser humano era razoável, porque a humanidade tinha uma devida para com Deus que, por ser infinita, somente podia ser paga por Deus, e que, por ser humana, somente podia ser paga por um ser humano. Mas agora os teólogos dos séculos XIV e XV afirmam que tudo isto, que pode parecer muito racional do nosso ponto de vista, não o é se levamos em conta o poder absoluto de Deus. Com seu poder absoluto Deus poderia ter decretado que a d (vida fosse cancelada, ou simplesmente declarado que o ser humano não era pecador, ou ter contado como mérito qualquer outra coisa que escolhesse, bem diferente dos méritos de Cristo. Por isto, o fato de sermos salvos por estes méritos não é porque tinha de ser assim, ou que a encarnação e os sofrimentos de Cristo tenham sido o meio mais apropriado, mas simplesmente porque Deus assim o determino.u. De igual modo também não podemos pensar que na criatura humana haja algo que a torne particularmente apta para a encarnação. A presença de Deus na criatura é sempre um milagre. ~ um milagre tão grande que nada tem a ver com a capacidade do ser humano de receber o Criador. Por esta razão, continuando nesta linha de pensamento, houve discípulos de Occam que chegaram a dizer que, se Deus quisesse, poderia ter se encarnado em um burro. Tudo isto não deve nos levar a pensar que estes teólogos fossem pessoas incrédulas que tinham prazer em fazer perguntas sutis só pelo prazer de fazê-Ias. Ao contrário, tudo que sabemos de suas vidas parece indicar que eram pessoas devotas e sinceras. Seu propósito era exaltar a Ulól iu de Deus. O Criador está a uma distância infinita da criu tur ti. /\ mente humana é incapaz de penetrar os mistérios de I uu:.. 1\ onipotência divina é tal que todos os nossos esforços (II 1)(III trar nela se deterão diante dela. Pretender que a man iI U CUIII que Deus age é eminentemente racional equivaleria (I I III I II I I )eus, colocando a razão acima dele. Este era o teor d I Ir 010, I d .• época.


132 / A era dos sonhos frustrados

Não se tratava, portanto, de uma teologia incrédula, disposta a crer somente o que a razão pudesse demonstrar, mas exatamente do contrário. Tratava-se de uma teologia que, depois de provar que a razão tem pouca serventia, colocava tudo nas mãos de Deus, e estava disposta a crer em tudo o que o Senhor tinha revelado; e crer não por ser racional, mas por ter sido revelado. Disto conclu (mos que a questão da autoridade é de suma importância para a teologia dos séculos XI V e XV. Se não podemos provar pela razão que esta ou aquela afirmação é correta, deve haver autoridades infal íveis que nos dêem a conhecer a doutrina verdadeira. Occam cria que tanto o papa como um concílio universal podiam errar, e que somente as Escrituras eram infal (veis. Mas algum tempo depois, à medida que o Grande Cisma do Ocidente levou o movimento conciliar ao seu auge, muitos teólogos começaram a pensar que um concílio universal era a autoridade suprema, e que qualquer oposição deveria cessar diante dele. Por esta razão no concílio de Constança OS grandes teólogos Gerson e Ailly insistiam na necessidade de Huss se submeter ao concílio. Se ele tivesse oportunidade de demonstrar que a grande assembléia estava equivocada ao condená-lo, a autoridade do concílio cairia por terra. E como eles mesmos tinham dito que o poder da razão é muito pequeno, não restaria nenhuma alternativa para subsanar o cisma, reformar a igreja, ou determinar qual era a reta doutrina. Por outro lado, esta doutrina dava muita importância à fé, não só como crença, mas também como confiança. Deus ordenou seu poder para nosso bem. E isto quer dizer que devemos confiar nas promessas de Deus, mesmo quando todas as considerações da razão nos levarem a duvidar delas. A onipotência divina é tal que está acima dos nossos inimigos. Os que confiam nela não serão desamparados. Este foi o tema característico de alguns teólogos anteriores à Reforma, e o veremos aparecer novamente em Martinho Lutero. Mas por mais devotos que estes pensadores tenham sido, suas sutilezas e sua insistência em definições precisas e sutis não podiam deixar de provocar uma forte reação entre os que viam o contraste entre a complexidade da teologia acadêmica e a simplicidade do evangelho. Parte desta reação foi a "devoção


A teologia acadêmica / 133

moderna", de que falamos no capítulo anterior. Desta devoção surgiu a Imitação de Cristo, livro que logo ficou muito popular, e que expressa no primeiro capítulo o que parece ter sido uma reação muito comum contra a teologia da época: De que te adianta poder debater com profundidade sobre a Trindade, se te falta a humildade, e com isto ofendes a Trindade? As palavras altissonantes não fazem com que alguém seja santo e justo. A vida virtuosa é que faz com que sejamos agradáveis a Deus. melhor sentir o arrependimento que saber defini-lo. Se soubesses de cor a Bíblia toda e tudo o que os filósofos têm dito, de que te adiantaria isto, sem o amor de Deus e sem a graça? Vaidade de vaidades. Tudo é vaidade, exceto amar a Deus e servir somente a ele. Em resumo, nos últimos séculos da Idade Média a escolástica seguiu um caminho que não podia deixar de provocar uma reação negativa por parte de pessoas devotas, que viam neste tipo de teologia um obstáculo à piedade, e não uma ajuda. Com sempre crescente insistência e urgência se fez ouvir o grito angustiado dos que pediam um retorno à simplicidade evangélica. É


x

o renascimento e o humanismo Oh! Suprema generosidade do Pai Deus! Oh! altlssima e maravilhoslssima sorte do ser humano! A ele foi concedido ter o que decidir, ser o que quiser. Pico de la Miranaola Poucos termos na história são usados com maior ambigüidade que os de "Renascimento" e "humanismo". O próprio t(tulo "Renascimento", aplicado a uma época histórica, implica em um ju ízo negativo da época que lhe precedeu. Neste sentido o termo foi usado pelos que o cunharam.' Para eles a Idade Média era somente isto: um período intermediário entre as glórias da antigüidade e as dos tempos modernos. Ao chamar a arte medieval de "gótica" estavam expressando novamente um conceito pejorativo - "gótico" quer dizer "proveniente dos godos", e assim é sinônimo de "bárbaro". Já dissemos no volume anterior que a arte chamada "gótica", longe de ser um sinal de barbárie, foi um dos maiores feitos da civilização ocidental. Mas seja como for, os que deram o nome de "Renascimento" ao movimento intelectual e artístico que surgiu na Itália nos séculos XIV e XV, além de com isto evidenciar seus preconceitos com relação aos séculos anteriores, davam sinais de ignorância destes séculos. De fato, o suposto "Renascimento", apesar de em parte ter ido às fontes clássicas de Iiteratu ra e arte, se inspi rou mu ito


136 / A era dos sonhos frustrados

mais nos séculos XII e XIII. Sua arte tem profundas raízes no gótico; sua atitude em relação ao mundo empresta tanto de São Francisco como de Cícero; e sua literatura se inspira em parte nos cânticos medievais que os trovadores levavam de região para região. Mas apesar de tudo isto ainda podemos, particularmente na Itália, dar o nome de "Renascimento" a este período. Muitos dos principais intelectuais da época viam no passado imediato, e às vezes no presente, uma época de decadência com respeito à antigüidade clássica, e por causa disto se empenhavam em provocar um renascer desta antigüidade, em voltar às suas fontes, e em imitar sua linguagem e estilo. É a isto que nos referimos aqui quando falamos de "Renascimento". Quanto ao termo "humanismo", a ambigüidade não é menor. Por um lado este termo traz em si a tendência de colocar a criatura humana no centro do universo, e fazer sobressair seu valor. Por outro lado o mesmo termo se refere ao estudo das "humanidades". Um "humanista", então, não é alguém que exalta o valor humano, mas que se dedica às belas artes, em particular à literatura. Como veremos no restante deste capítulo, muitos "humanistas" dos séculos XIV e XV, e mesmo depois, o eram nos dois sentidos. Seu interesse pelas letras clássicas freqüentemente andava junto com uma grande admiração pela criatura capaz de produzir estas obras de arte. Mas nem sempre houve esta união. Por isto, à guisa de simples esclarecimento, diremos que ao falarmos do "humanismo" neste contexto não nos referimos a uma opinião sobre o valor da criatura humana, mas a um movimento literário que se caracterizou pelo estudo cuidadoso das letras clássicas, e por sua imitação. A Itália nos séculos XIV e XV

O Renascimento teve na Itália sua origem e sua melhor expressão. Podemos ver as causas disto, pelo menos em parte, nas condições polfticas e econômicas desta pen ínsula. Assim como o restante da Europa ocidental, a Itália sofreu os estragos da peste bubónica e das guerras, que pareciam ter se tornado endêmicas. E sofreu, muito mais que o


o renascimento

e o humanismo / 137

restante da Europa, as conseqüências do "cativeiro babilônico" e do grande cisma do Ocidente. Quase constantemente ela foi cenário de guerras entre papas rivais, ou entre nobres ou republicanos que apoiavam um ou outro dos pretendentes. Ao mesmo tempo o movimento republicano enfrentava continuamente a velha aristocracia, e por isto havia em cidades como Florença e Veneza revoluções que com freqüência desembocavam em conflitos armados que se estendiam inclusive aos territórios vizinhos. Em meio a estas circunstâncias a Itália não conseguia seguir o exemplo da França, que tinha conseguido sua unidade nacional, nem da Espanha, que se aproximava deste objetivo. Os espíritos mais patrióticos entre os italianos lamentavam esta situação. Dentro deste contexto devemos entender a mais famosa obra de Nicolau Maquiavel, O pr/ncipe. Maquiavel era um patriota florentino que sonhava com a unidade italiana. Suas convicções eram republicanas, mas ele estava convicto também que somente um príncipe astuto e sem muitos escrúpulos poderia unir o país. Por isto ele dedicou sua obra ao cardeal Lourenço de Médici, que na época governava Florença, incentivando-o a deixar de lado "as debilidades da nossa religião" e se lançar a esta empresa. Não só Maquiavel estava descontente com as condições da época. Este tema era caracter(stico de toda a Europa, açoi tada pela praga, pela guerra dos cem anos e pelo grande cisma. A diferença com a Itália era que nesta a insatisfação ocorria dentro de um ambiente de prosperidade econômica. As cidades de Florença, Veneza, Gênova e Milão eram importantes centros de indústria e comércio. A posição geográfica da Itália, no centro do Mediterrâneo, permitia a estas cidades beneficiar-se do comércio com os países muçulmanos e com o Império Bizantino. A burguesia italiana, que surgiu desta indústria e deste comércio, era poderos(ssima. Daí o conflito quase constante entre esta burguesia com seus ideais republicanos e a velha aristocracia. A prosperidade econômica, unida à instabilidade pol (tica, deu lugar a uma aristocracia intelectual, de origem principalmente burguesa, que buscou inspiração nos tempos clássicos da Grécia e da Roma republicana.


138 / A era dos sonhos frustrados

o despertar

das letras clássicas

Um dos principais propulsores desta nova tendência foi o poeta Petrarca, que em sua juventude tinha escrito sonetos

o

Renascimento viu surgir um no !tO interesse nos manuscritos gregos que o Império Bizantino tinha conservedo, Este acima, que é do começo do eV8ngelho de Lucas e data do século XIII, está guardado na biblioteca do Seminário Luterano de Chicago.


o renascimento

e o humanismo / 139

em italiano, mas depois passou a escrever em latim, imitando o estilo de C (cero. Ele logo teve muitos seguidores, que também começaram a imitar as letras clássicas. Com este propósito copiaram manuscritos dos velhos autores latinos. Outros viajaram até Constantinopla, e de volta à Itália trouxeram consigo manuscritos gregos. Mais tarde, quando Constantinopla foi tomada pelos turcos em 1453, muitos exilados bizantinos chegaram à Itália com seus manuscritos e conhecimentos da antigüidade grega. Tudo isto contribuiu para um despertar literário que começou na Itália e foi se estendendo por toda a Europa ocidental. Este interesse pelo clássico em pouco tempo inclu (a também as artes, e não só as letras. Os pintores, escultores e arquitetos foram buscar sua inspiração não na arte cristã dos séculos imediatamente anteriores, mas na arte pagã da antigüidade. Naturalmente eles não conseguiram se desvencilhar totalmente da sua herança direta, mesmo querendo fazê-lo, e por isto boa parte da arte do Renascimento tem suas raízes no gótico. O

A

invençéo

humanismo.

da imprensa de tipos

móveis abriu novas possibilidades

ao


140 / A era dos sonhos frustrados ideal de muitos artistas italianos da época, no entanto, era redescobrir os cânones de beleza da antigüidade, e assimilá-los em suas obras.

jítffrurtJiri ílCuodi·l tJhúllttlUrlmi actmdll:aíi.iruí.llttlrJ1tptffnttmlÍ: n fadú r Ilúpn mmu tlim quurtUll. birit criá ti". ~i>rolJltnlrnaue rQlált animr Iliunltíol unhlwrfuptt ro:ní. rultlinl1u11IêrordI.!!rrrouirq; !ruOrrrt unUl!)tn·n onUtt aínm UlUlluf fitlj;

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mnnaltlli' quiÍ,1lIJulitt5rmrutí[p:a'tf ruas·,onllltunlnwrfttimgm'ffulÍ. )fi uinlr !ru!ll)J rIfrtlnnú·!mool)iÍ1X)} cio lJicmo.J[ufâtr llllfnpliramiru'l rQllnr Ill!UilO~lIilrin.mlcfq; mftipli tmrfup tttr5.ttfudú ruúpf 1l1lilm llim quilUo.J!)trtr quotjllinm.Jl)ro, I:mcacmm aium uiunuê m gmil'uo. , Illlunua'il'lllwia·lhfii.ll'lrttfcfttim fpmmfUilo./ndúljji ica.,L!rfíntlI' tnltun trttf iu;El'ílfpmm Iunu-iummm 11l1lllU' tllJrilr rarr ígmn:rfuo. ir uíatr nmo l)J rífrr !:tonú·n lllf.},fllctu lllunl!oirm an nlmgiuE lliflCUllmé noRm·, pnfu pír~ mann·rr unI.l' rilib; ttti 'l hití,n Ul1iiJrrq, l'Ol'C.llluiq; reprilí qli mnunur í ttrril. Jft mmnr Illl,lO lloirm illll'magiuhlifnUl:liuf flhí·Uil rmnginé lllÍ nraurr tllú-mu. ÚlJ!ú.fnlliuã rnautr roa.!f>ml'llirit, lj, íllio lJtUo-, mul:rd!in: lltlf.âphm mini lrepl.ttttttr5·I.tOiIurr ti·1X luiw mini pifn"h;uhlrío-I.tunlntüiln cditr uniucdin allimiinln qur lUOUntr ruptttr5.i1~i>icq;lJr9.ltmlll'lli unbif olUuf I)rdlã uffttntti frmrnfup ttrrii. IXumufuliUl1"ljut blÍ! III fnurnpto Úlunlre !J!IIio fur-ur fmcuobloi nrii llUlltlía aíflllltb"l'Ol'C·ômq;uoltttn

ttti·t uuiurríio ij mouEiurtu Cttríl·, í quibJ!fi Mima uiurc-ur lJullc.lr uI) uÚtmlltí.ffrfadú!fi iril:t~llJlcq;!rua nmrra ljUrfm:rm.l mir unlar bnna,

A S/blia de Gutenberg manuscritos da época.

está impressa de maneira muito semelhante

aos


o renescimento

e o humenismo / 141

Todo este interesse na antigüidade clássica coincidiu com a invenção da imprensa, que por sua vez teve um impacto profundo sobre o humanismo. Mas não devemos pensar que isto fez das letras renascentistas um movimento popular. Ao contrário, os livros que os renascentistas mandaram imprimir eram obras dif íceis de serem lidas, compostas em latim clássico ou em grego. Além disto a arte tipográfica da época fez todo o possível para imitar os manuscritos que eram impressos. As muitas abreviaturas, muito dif íceis de entender, que os copistas usavam para facilitar seu trabalho, continuaram sendo usadas nos livros impressos. Para os humanistas a imprensa era um meio magn(fico para se comunicarem entre si, ou para reeditar as obras da antigüidade, mas não para difundir as idéias entre o povo. Estas idéias continuaram sendo posse exclusiva da aristocracia intelectual. Exceto o caso de Savonarola, somente quando do advento da Reforma protestante a imprensa começou a ser usada como meio de comunicação com as massas, para a divulgação de idéias teológicas e filosóficas. Apesar disto a imprensa teve um impacto notável sobre as letras renascentistas. Em primeiro lugar os livros se torna-

Os livros eram tio em correntes,

ceras que em multas btollotoou olos estevem errerrsdos

como no caso dB unlversldedo do Loydon, 8té o século XVII.


142 / A era dos sonhos frustrados

ram relativamente mais acessíveis. Quando somente havia manuscritos, e mesmo durante várias décadas depois da invenção da imprensa, os livros eram tão caros que em muitas bibliotecas eles estavam amarrados às estantes com correntes. Um erudito de recursos médios podia possuir apenas alguns poucos. Com a invenção da imprensa foi possível começar a reproduzir em quantidades maiores alguns dos livros mais apreciados da antigü idade. Isto, por sua vez, fez com que os humanistas vissem até que ponto os erros dos copistas se tinham introduzido em uma obra. Se um humanista, por exemplo, tomasse um livro impresso em outra cidade com base em outro manuscrito, lo~.) encontrava diferenças entre este livro e outro manuscrito da mesma obra. Nos séculos anteriores os eruditos não estavam de todo ignorantes desta situação, mas a invenção da imprensa a fez mais palpável. Bem, a própria imprensa oferecia um meio de remediar a situação, mesmo que não de todo. Agora era possível produzir várias centenas de exemplares de um livro idênticos entre si. Já não era necessário confiar a reprodução de obras literárias a uma multidão de copistas, sob o risco de que cada um deles introduzisse nelas novos erros. Se um erudito se dedicava à árdua tareva de comparar vários manuscritos de um mesmo livro e tentar chegar a um texto fiel ao original, sua obra podia culminar em uma edição impressa, sem mais erros que os que o próprio erudito deixara passar. Assim surgiu a "crítica textual", cujo propósito não é criticar os textos, como podedamos supor, mas aplicar todos os recursos da crítica histórica para chegar novamente ao texto original de uma obra. Tudo isto deu lugar a uma desconfiança entre os legados da tradição imediata. Se os manuscritos não eram totalmente fidedignos, não era também possível que algumas destas obras fossem completamente falsas, produto da imaginação de algum século posterior? Logo alguns dos documentos mais respeitados da Idade Média foram declarados espúrios. Um dos casos mais notáveis foi o da Doação de Constantino, em que o famoso imperador concedia ao papa jurisdição sobre o Ocidente. O erudito Lourenço Valia estudou este documento, e chegou à conclusão de que era falso, por diversas razões de estilo, vocabu-


o renascimento

Oficina

ele encederneaores,

e o humanismo /143

no século XVI.

lário, etc, que impossibilitavam a datação pelo século IV. Da mesma forma Valia atacou a lenda de acordo com a qual o Credo tinha sido composto pelos apóstolos, antes de se separarem para partir cada um em sua própria missão. Tudo isto não teve imediatamente conseqüências graves para a vida da igreja. O próprio Valia serviu como secretário


144 / A era dos sonhos frustrados do papa, sem que seus estudos e suas conclusões lhe acarretassem maiores problemas. Isto porque, como já dissemos, toda esta atividade literária se limitou a uma aristocracia intelectual, que tinha a tendência de desprezar as massas, e que não tinha grande interesse em divulgar os resultados das suas investigações. Mas apesar do pouco impacto que teve de imediato este despertar literário contribuiu, junto com o misticismo e a devoção moderna, para marcar o fim da época em que a escolástica dominava a vida intelectual.

A nova visão da realidade

H istoriadores preconcebidos têm tido o costume de pintar a Idade I\;;édia com cores sombrias, para dar assim maior destaque às glórias da época moderna, mas a verdade é que na Idade 1\1édia houve, ao lado dos ascetas que desprezavam o mundo presente na expectativa pelo vindouro, outra corrente que se gloriava nas maravilhas da criação. Podemos ver isto no naturalismo de São Francisco, entoando louvores às aves, à água, aos astros, e mesmo à morte. Seu canto não era de negação do mundo, mas de concordância com ele. Para ele e para os que seguiram sua inspiração, o mundo vindouro era glorioso não porque contrastasse com o presente, mas porque o superava. Se este mundo já é belo e digno de admiração, quanto mais o será o outro, que o Criador de ambos nos prometeu! Nas catedrais góticas os escultores se regozijavam esculpindo cenas da natureza, reais ou imaginárias. Ali aparecem, entre frondosas vides, mil avezinhas, lesmas e camaleões que dão testemunho do mesmo Criador universal cantado por São Francisco. Não é verdade, portanto, que o Renascimento tenha descoberto a beleza da criação, supostamente esquecida pelo homem medieval. Pelo contrário: a arte renascentista, inspirada em parte na arte clássica, prestou mais atenção à beleza e perfeição do corpo humano. A Itália tinha belezas exuberantes. Em suas principais cidades havia dinheiro suficiente para construlr grandes ediffcios, e para reunir neles todos os recursos artfsticos imagináveis.


o renascimento

e

o humanismo

/ 145

Os nobres e os grandes burgueses tinham meios para suprir o custo de uma arte dedicada, não para a glória do céu, mas do

o "Davi" de MiflUellnfJelo fi uma mar;ni'flaJ 1I10NcrU do taoet da perfelǧo humana do Renascimento. Foto de JM.


146/ A era dos sonhos frustrados

mecenas que custeava o empreendimento. A arte, portanto, até então dedicada quase exclusivamente ao ensino religioso e à glória de Deus, passou a se ocupar do esplendor humano. Nos modelos clássicos da Grécia e de Roma estava manifesta uma admiração pela criatura humana que boa parte da arte medieval tinha esquecido, e que agora os pintores e escultores da Renascença assimilaram, em pedra e pintura. O Adão que Miguelângelo pintou na abóbada da Capela Sixtina, que recebe do dedo de Deus poder para governar a criação, é bem diferente do Adão débil dos manuscritos medievais. Nele está concretizada a visão renascentista do ser humano, nascido para criar, para governar, para deixar sua marca no mundo que o rodeia. A mesma visão toma carne e osso na pessoa de Leonardo da Vinci. Houve poucas atividades humanas em que este gênio da Renascença não interveio ou tentou mostrar sua maestria. A posteridade o conhece principalmente como pintor, mas Leonardo dedicou muito da sua atenção à engenharia, à arquitetura, à ourivesaria, à bal (stica e à economia. Sua ambição era ser o "homem universal" que era o ideal da época. Seus grandes projetos de canalização fluvial, máquinas militares e aparatos de voo nunca foram realizados. Muitas das suas esculturas e pinturas ficaram inconclu (das, ou não passaram de esboços que são conservados até hoje como peças valiosas. Seus interesses múltiplos, unidos às flutuações pol [ticas que não lhe permitiram residir por muito tempo no mesmo lugar, deram à sua obra um caráter fragmentário e inconclu(do. Mas apesar disto Leonardo, e as lendas que se formaram ao redor da sua personalidade, passou a ser símbolo e encarnação do ideal renascentista do "homem universal". Esta visão do ser humano e da sua capacidade sem limites, tanto para o bem como para o mal, é o tema principal do autor renascentista Pico de la Mirandola, que citamos no começo deste capítulo. Continuando esta citação Pico diz que Deus deu ao homem todo tipo de sementes, para que as semeasse dentro de si mesmo, e assim determine o que há de ser. Quem escolher a semente vegetativa, ou a sens(vel, não será mais que uma planta ou um bruto, 1V1asquem escolher a semente intelectual, e a cultivar dentro de si, "será um anjo e filho de Deus". E se ele se volta para o centro da sua alma, insatisfeito


o renascimento

e o humanismo / 147

Leonardo da Vinci. com o fato de ser uma criatura, "seu espírito, unido a Deus em obscura solidão, se elevará por cima de todas estas coisas". Tudo isto levou Pico a exclamar, em estranhas palavras de louvor à criatura humana: "Quem não há de admirar este camaleão que nós somos?"

Os papas do renascimento Quando deixamos a história do papado varros capítulos atrás (cap(tulo IV), este acabara de triunfar sobre o movimento conciliar. Na época Eugênio IV o ocupava, que se ocupou,


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além dos conflitos com o condlio de Cesaréia, do embelezamento da cidade de Roma. Isto era o primeiro indfcio de que o espfrito do Renascimento começava a se apossar do papado. A partir de então, e mesmo depois de iniciada a Reforma protestante, o pontificado romano estaria em mãos de homens cujos ideais eram os que a Renascença defendia. Quase todos eles eram amantes das belas artes, e um dos propósitos fundamentais dos seus pontificados foi trazer para Roma os melhores artistas, e dotar a cidade de palácios, igrejas e monumentos dignos de sua posição como capital da cristandade. Alguns tomaram do espfrito da Renascença seu amor pelas letras, e por isto enriqueceram as bibliotecas do Vaticano. Mas muito poucos deles se ocuparam verdadeiramente da reforma da igreja. Quase todos tomaram do espfrito da época seu amor pelo luxo, o poder despótico e os prazeres sensuais. Vejamos brevemente sua história. Nicolau V sucedeu a Eugênio IV quando da morte deste. Os anos de seu pontificado, de 1447 a 1455, foram dedicados principalmente ao fortalecimento da posição pol ítica de Roma entre os estados italianos e a do papa dentro dela. Sua meta era fazer de Roma a capital intelectual da Europa, trazendo para ela os melhores pintores e autores da época. Sua biblioteca pessoal chegou a ser a melhor do século XV. Ele fortificou também a cidade e mandou expulsar os que se opunham ao seu poder monárquico. Em 1453 a queda de Constantinopla, a que nos referiremos mais adiante, sacudiu a consciência da cristandade ocidental, e o papa tentou organizar uma cruzada contra os turcos, sem ter nenhum êxito. Na reforma da igreja ele pensou pouco ou nada. Seu sucessor, Calixto III, foi o primeiro papa da famflia espanhola dos Borja - que na Itália recebeu o nome de Bórgia. A única coisa que este papa emprestou dos ideais da Renascença foi o sonho de ser um grande príncipe secular. Com a desculpa de que era necessário unir a Itália para empreender uma cruzada contra os turcos, ele se dedicou mais à guerra que às suas responsabilidades religiosas. Além disto seu pontificado ficou caracterizado por um dos piores males da época, que a partir de então se tornaria endêmico do papado, o nepotismo. Um dos parentes que ele cobriu de honras foi seu neto Rodrigo,


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a quem fez cardeal e que mais tarde seria o tristemente famoso Alexandre VI. O próximo papa, Pio II, foi o último que em todo este per(odo cingiu com certa dignidade a tiara papal. Em sua mocidade ele tinha sido um homem característico da Renascença. Mas depois decidiu que precisava emendar sua vida, e assumiu suas responsabilidades pontiffcias com toda a seriedade. Como a Europa estava ameaçada pelos turcos ele dedicou boa parte dos seus esforços para deter seu avanço e tentar organizar uma cruzada. Apesar de seus feitos não terem sido especiais, seus erros também não o foram. Paulo II era um oportunista que, quando soube que seu tio Eugênio IV tinha sido feito papa, decidiu que a carreira eclesiástica lhe prometia mais que o comércio a que se dedicava. Seu interesse principal era acumular objetos de arte, em particular jóias e artigos de ourivesaria. Seu gosto pela pompa se tornou proverbial. O fato de agora ser papa não fez com que ele abandonasse suas concubinas, que a corte, ao que parece, reconhecia publicamente. Ele se dedicou a restaurar a glória da Roma pagã, mandando restaurar os arcos do triunfo dos imperadores Tito e Sétimo Severo, e a estátua de rI/arco Aurélio. Morreu ainda jovem de apoplexia, em conseqüência de seus excessos sexuais, de acordo com cronistas da época. Sixto IV comprou o papado, fazendo-se eleger com base em promessas e presentes que fez aos cardeais. Durante seu pontificado o nepotismo e a corrupção chegaram a níveis nunca vistos no papado. A essência da sua pol (tica consistiu em enriquecer sua fam ília, em particular seus cinco sobrinhos. Um destes, Juliano della Rovere, mais tarde ocuparia o papado com o nome de Júlio II. Sob Sixto a igreja se transformou em negócio da fam (lia. Toda a Itália se viu às voltas com guerras e conspirações cujo único objetivo era conquistar territórios, riquezas e honras para os sobrinhos do papa. Seu sobrinho predileto, Pedro Riário, tinha vinte e seis anos quando foi feito cardeal, patriarca de Constantinopla e arcebispo de Florença. Seus vícios e excessos ficaram famosos em toda a Itália, e se diz que foi em conseqüência deles que ele morreu poucos anos depois. Outro deles, Jerônimo Riário, urdiu uma trama em que um dos Médicis foi assassinado diante do altar, enquanto ouvia rnis-


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sa, por um sacerdote. Quando os familiares e amigos do defunto se vingaram enforcando o sacerdote assassino, o papa excomungou toda a cidade de Florença, por ter violado a pessoa sagrada de um sacerdote, e lhe declarou guerra. Para manter esta pol (tica, e a pompa de seus sobrinhos, ele impôs a todos os territórios papais o monopólio do trigo. O melhor grão era vendido para encher as arcas papais, e o povo somente recebia pão da pior qualidade. Mas apesar de tudo isto a posteridade conhece Sixto IV como o mecenas que mandou construir a Capela Sixtina, chamada assim em sua honra. Inocêncio VIII foi eleito depois de ter jurado pelo que havia de mais sagrado de que respeitaria os direitos dos outros cardeais, que não nomearia mais do que um da sua fam (Iia, e que poria a sé romana em ordem. Mas assim que se viu de posse da tiara papal ele declarou que o poder do papa era supremo, e que por isto não precisava se sujeitar a nenhuma promessa, principalmente quando feita sob alguma pressão. Ele foi o primeiro papa a reconhecer publicamente seus vários filhos ilegrtimos, que cumulou de honras e riquezas. A venda de indulgências se transformou em um negócio vergonhoso sob a administração e a serviço de um dos filhos do papa. Em 1484 Inocêncio quis livrar a cristandade de bruxas através de uma bula cujo resultado foi a morte de centenas de mulheres cujo único crime era serem impopulares, ou talvez um pouco excêntricas. Esta foi a única medida deste pontífice que nem mesmo de forma remota poderia ser considerada uma tentativa de reformar a vida religiosa. Então Rodrigo Bórqia comprou os cardeais e foi eleito papa, com o nome de Alexandre VI. Com ele o papado chegou ao ponto culminante da sua corrupção. Alexandre era um homem forte e implacável, que praticava em público todos os pecados capitais - exceto a gula, pois tinha pouco apetite. Conta-se que o povo dizia: "Alexandre joga fora as chaves, os altares e até o Cristo. E no fim das contas ele tem este direito, pois os comprou". Enquanto toda a Europa tremia diante do avanço dos turcos o papa travou contato com o sultão Baiaceto em segredo. Suas concubinas, esposas legais de alguns de seus subalternos, lhe deram filhos que Alexandre reconheceu como tais. Os mais famosos foram César e Lucrécia Bórgia. Mes-


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mo nem sempre havendo certeza da veracidade das piores histórias que se conta desta farnflia - seus crimes múltiplos e seus incestos - o que resta, mesmo se as descontamos, é uma corrupção e uma ambição sem limites. Suas conspirações e suas guerras banharam a Itália em sangue, e mancharam o papado como nunca antes. Alexandre VI morreu repentinamente - há quem diga que depois de beber um veneno que tinha preparado para outra pessoa. Seu filho César, que tinha planos de se apoderar do papado quando seu pai morresse, estava de cama por causa da mesma doença - ou do mesmo veneno - e não pôde concretizar seus projetos. Então foi eleito Pio III, um homem de profundo esp írito reformador que se propôs restaurar a paz na Itália. Mas morreu vinte e seis dias depois de ser eleito, e seu sucessor foi digno de Alexandre VI. Júlio II, o mesmo Juliano della Rovere que seu tio Sixto IV tinha feito cardeal, tomou este nome porque queria imitar, não algum santo ou mártir cristão, mas Júlio César. Assim como a maioria dos papas da época ele foi um grande patrocinador das artes. Durante seu pontificado 1\1iguelângelo terminou de pintar a Capela Sixtina, e Rafael decorou o Vaticano com seus famosos afrescos. Mas a ocupação favorita de Júlio II foi a guerra. Ele reorganizou a guarda papal, vestindo-a com uniformes que, diz-se, foram desenhados por Miguelângelo, e no comando dela se lançou ao campo de batalha. Hábil guerreiro e pol (tico, durante seu reinado chegou-se a pensar que talvez ele finalmente conseguisse a unidade italiana, sob a hegemonia papal. A França e a Alemanha se opuseram aos seus planos, mas o papa soube vencê-los tanto na diplomacia como no campo de batalha. Por fim, em 1513, a morte pôs um fim às aspirações de conquista daquele papa que recebeu com justiça o ep íteto de o Terrfvel. Seu sucessor foi o filho de Lourenço, o Maqnffico, de Florença, João de Médicis, que tomou o nome de Leão X. Seguindo os passos de seu pai se dedicou a patrocinar as artes, ao mesmo tempo que tentava consolidar as conquistas pol (ticas e militares de Júlio II. Nesta última tentativa ele fracassou, e em 1516 se viu obrigado a firmar com Francisco I da França um acordo que praticamente transformava a coroa na verdadeira cabeça


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Terminar s bss,7iC8de São Pedro foi um dos sonhos de Leão X. Este sonho foi causaindireta do protesto de Lutero. Foto de JM.

da igreja francesa. Sua paixão pelas belas artes se sobrepôs a todo interesse religioso ou sacerdotal. Seu grande sonho foi completar a Basflica de São Pedro. Estava entregue a esta tarefa quando irrompeu a Reforma protestante. Mas esta história faz parte do próximo volume desta série. A reforma humanista: Erasmo de Roderdã

rente.

Fora da Itália a Renascença tomou Na Espanha, Inglaterra, França,

um rumo bem difeAlemanha e Países


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Baixos havia eruditos que sonhavam com uma restauração do cristianismo antigo, seguindo os métodos dos humanistas. No próximo capítulo desta história teremos ocasião de nos referirmos a vários deles. Aqui cabe falar dos sonhos do maior e mais famoso humanista, Erasmo de Roterdã. Erasmo era filho ilegítimo de um sacerdote e da filha de um médico. Durante toda a sua vida ele teve de carregar a carga dupla das suas origens simples e de ser bastardo. 1\1as, criado em meio à grande atividade comercial da Holanda, em muitos aspectos suas opiniões refletiam os valores comuns entre a classe burguesa. Estudou um pouco a teologia escolástica, mas logo sentiu por ela uma grande repugnância, e se dedicou ao estudo das letras clásssicas, Depois, em uma visita à Inglaterra, ele começou a se interessar pelas Escrituras na literatura cristã antiga, que a ele parecia que tinha ele ser arrancada das mãos dos escolásticos. Começou a estudar grego, e chegou a dominar este idioma como poucos em sua época. Sua fama foi crescendo, e mais tarde ele passou a ser o centro de um círculo internacional de humanistas que queriam reformar a igreja, não por meios violentos, mas devolvendo-lhe sua fé simples e primitiva. O modo de Erasmo entender esta fé era característico de seu espírito humanista, unido à devoção moderna, cuja influência tinha recebido quando estudou, ainda jovem, com os Irmãos da Vida Comum. Para ele o cristianismo é antes de tudo um tipo de vida decente, equilibrado e moderado. Os mandamentos de Jesus, que são o centro da fé cristã, são muito semelhantes às máximas dos estóicos e dos platônicos. Sua meta é chegar a dominar as paixões, colocando-as sob o governo da razão. Isto dá lugar a uma disciplina que tem muito de ascetismo, mas que não deve ser confundida com o monaquismo. O monge se retira do mundo; o verdadeiro "soldado de Cristo" tem por metas do seu treinamento a vida prática e cotidiana. A igreja precisa ser reformada porque abandonou esta disciplina, e se deixou levar pelos vícios dos pagãos. Para Erasmo as doutrinas tinham importância secundária. Isto não quer dizer que ele era indiferente a elas, pois havia doutrinas que eram fundamentais, como a da encarnação.


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!\;as uma vida reta era muito mais importante que a doutrina ortodoxa, e os frades que se ocupavam com distinções sutis enquanto levavam vidas escandalosas eram objeto freqüente dos ataques mordazes de Erasmo.

Q. ERASMi·ROTRRODA .M. . AB 'ALB~RTO' DVRERO·AD

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Erasmo de Roterdã,

x, V

o pflncipe

dos humanistas.


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Em resumo, o humanista holandês procurava uma reforma dos costumes, a prática da decência e a moderação. Pouco a pouco foi conquistando a admiração de boa parte dos eruditos da Europa, que se escandal izavam com as atividades dos papas da Renascença. Entre seus admiradores havia não poucos nobres e soberanos. Seu programa de reforma parecia ter boas possibilidades de êxito. Então estalou a Reforma protestante. Os espíritos se inflamaram. As questões levantadas eram de teologia fundamental, e não tanto de moralidade. Os dois partidos tentaram conquistar o apoio do famoso humanista. 1\1as Erasmo não podia apoiar de todo coração nenhum dos dois. Por fim ele rompeu definitivamente com Lutero e os seus, mas sem dar ajuda aos católicos que se opunham à Reforma. Do seu escritório ele continuou pedindo moderação, uma reforma no estilo humanista, e a volta às virtudes dos estóicos e platônicos de antigamente. Mas ninguém lhe dava ouvidos. Erasmo não tinha percebido a profundidade das questões em debate, e a reforma por que ele tanto ansiara não ocorreu. Seu sonho, como tantos outros antes, foi frustrado.


XI Jeronimo Savonarola Estes senhores, como se não soubessem que são tão humanos como os demais, querem que todos os honrem e bendigam. Mas o verdadeiro pregador não pode adulá-los, pois tem de atacar seus vícios. Por isto não. podem suportá-lo, porque não se comporta com eles como os demais o fazem. Jerônimo Savonarola Perto do fim da primavera de 1490 um frade dominicano de trinta e sete anos de idade se apresentou diante das portas de Florença. Seu nome era Jerônimo Savonarola, natural de Ferrara, onde seu avô paterno o tinha educado, um médico conhecido tanto por seu conhecimento como por sua devoção e retidão moral. Deste avô, Savonarola tinha recebido princfpios que nunca o abandonariam, e que o levaram a se unir, ainda jovem, à ordem dos pregadores de São Domingos. Em pouco tempo o frade dominicano se distinguiu por sua dedicação ao estudo e à santidade, e por isto a ordem lhe conferiu responsabilidades cada vez mais importantes. Anos an tes ele tinha morado já uma vez em Florença, onde foi admirado por sua erudição bfblica, se bem que não por seus sermões, cuja veemência e sotaque ferrarense não soavam bem aos ouvidos renascentistas dos florentinos. Depois ele tinha sido mestre de estudos no convento dominicano de Boloçnu.


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Agora ele estava voltando a Florença a pedido do senhor da cidade, Lourenço de Médicis. Talvez o que tinha inspirado neste tirano esta estranha petição tenha sido a recomendação de Pico de la Mirandola, que tinha feito amizade com o frade e se tornara seu admirador. Seja como for, Lourenço não tardaria em descobrir que o pregador que tinha convidado para sua cidade lhe acarretaria problemas. No começo Savonarola se limitou a expor as Escrituras para os frades do convento dominicano de São Marcos. Mas sua fama logo se espalhou, e um grande número de pessoas começou a acorrer às suas conferências. Em conseqüência estas foram transferidas do jardim onde até então tinham tido lugar para a igreja do convento. Durante quase meio ano o eloqüente frade expôs o livro do Apocalipse. No começo tratava-se de conferências, mas que logo se transformaram em sermões. Neles Savonarola atacava a corrupção da igreja, e profetizava que a igreja teria de passar por uma grande tribulação antes de ser restaurada. Ao mesmo tempo que comentava o Apocalipse ele atacava também os poderosos, cujo luxo e avareza se contradiziam com a fé cristã. • Sua popularidade cresceu rapidamente, e na quaresma de 1491 ele foi convidado para pregar em Santa Maria das Flores, a igreja mais importante da cidade. Ali viu-se claramente que sua pregação não era do agrado dos poderosos. Lourenço de 1V'lédicistentou fazê-lo se calar; mas o frade lhe respondeu que ninguém podia mandar se calar a Palavra de Deus. Seus ataques, dirigidos contra a corrupção que reinava em todos os n (veis sociais, não deixavam de fazer referência aos impostos pesados que Lourenço exigia, com os quais custeava a pompa da sua casa e dos seus favoritos. Lourenço tentou lhe roubar a audiência incitando outro pregador a atacar Savonarola do seu púlpito. Mas este acabou provando ser mais popular que seu oponente, e mais tarde o malfadado rival foi para Roma, para ali tramar a ru ína do dominicano. Poucos meses depois Savonarola foi eleito prior de São Marcos. Quando alguns frades lhe disseram que era costume que cada novo prior fizesse uma visita de cortesia a Lourenço, para agradecer-lhe sua boa vontade para com a casa, frei Jerõnimo simplesmente contestou; dizendo que devia sua eleição


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Sevonerote

em seu escritório.

a Deus e não a Lourenço, e que por isto tinha de se retirar para dar graças a Deus e se colocar sob suas ordens. Pouco depois ele mandou vender todas as propriedades do convento para dar o dinheiro aos pobres. A vida dos frades passou a ser um exemplo proverbial de santidade e serviço. Inclusive outras casas de cercanias pediram ao ilustre prior de São Marcos que efetuasse nelas reformas semelhantes às que instaurara no convento florentino. Quanto a Lourenço, em seu leito de morte ele mandou chamar o santo frade, de quem pediu e obteve a absolvição de todos os seus pecados. Pedro de Médicis tinha sucedido a Lourenço, e provara ser um tirano pior que o anterior, quando chegaram rumores de que o rei da França, Carlos VIII, se preparava para invadir a Itália com o propósito de conquistar o Reino de Nápoles, cuja coroa reclamava. Florença tremeu diante do avanço das tropas francesas, que Savonarola tinha predito dois anos antes. Pedro se mostrou incapaz de orqanizur as defesas da cidade, e tentou comprar o favor do rei fran ôs entregando-lhe literalmente vilas e castelos. Irados, os fi rOI I! inos enviaram a Carlos


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VIII uma embaixada encabeçada por Savonarola. Este se apresentou diante do rei, chamou-o de instrumento da justiça de Deus, declarou-o bem-vindo em nome dos florentinos, e lhe disse que tinha profetizado sua vinda dois anos antes; depois o ameaçou, e lhe profetizou grandes males se não se comportasse da maneira devida com os florentinos. Enquanto isto estes aproveitavam as circunstâncias para expulsar Pedro da cidade, e com ele o jugo dos I'viédicis. Pouco depois o rei entrou triunfante em Florença. Quando tentou impôr condições insuportáveis em troca de não saquear a cidade, os florentinos recorreram mais uma vez ao seu pregador, que enfrentou o rei e conseguiu dele condições muito mais favoráveis. Poucos dias depois, tendo estabelecido uma aliança com Florença, o rei francês partiu com suas tropas. A cidade estava agora acéfala. Poucos desejavam que os Médicis regressassem. Muitos esperavam poder se aproveitar das circunstâncias para dar rédeas soltas aos ódios que tinham se acumulado nas últimas semanas de incertezas. Por isto Savonarola se viu colocado, quase sem querer, na posição de determinar o rumo a ser seguido. Graças a ele foi estabelecido um governo republicano e evitado o derramamento de sangue. Até mesmo os amigos dos Médicis foram perdoados, graças à intervenção do fogoso pregador. Praticamente dono da cidade, Savonarola usou o púlpito para propor as reformas que Ihe pareciam necessárias. Insistiu em que o comércio fosse reaberto, que tinha sido interrompido durante a invasão francesa, dizendo que era necessário dar emprego aos pobres, que tinham perdido seus poucos rendimentos. Quanto àqueles para os quais estas medidas não bastavam, deveriam ser alimentados derretendo e vendendo o ouro e a prata das igrejas. Seu interesse pelos pobres sem demora lhe acarretou a má vontade de boa parte da aristocracia. O mesmo aconteceu com muitos clérigos, atingidos muito de perto pela reforma eclesiástica proposta. Mas Savonarola contava com a quase totalidade do povo, e não teria tido maiores problemas, se não fosse por causa da pol (tica internacional. A campanha de Carlos VIII na Itália tinha sido facflima. Em seguida o papa - na época o tristemente famoso Alexandre


Jerõnimo

Ssronerote

pregBndo.

Savonarola / 161

Observ« B Sep8rBç80 entre homens e mulheres.

VI - vários estados italianos e os monarcas da Espanha e da Alemanha se uniram em uma "Santa Aliança" contra o rei da França. A cidade de Florença, graças a Savonarola, permaneceu firme no acordo que tinha feito com os franceses. Seus aliados encarregaram Alexandre VI da tarefa de dobrar o monge inflex (vel. O cenário estava preparado para a grande tragédia que mais tarde teria lugar em Florença. Enquanto isto o movimento reformador chegou a seu apogeu em Florença. Apesar de ter sido dito que Savonarola era um monge obscurantista, a verdade é o contrário. O frei dominicano se opunha às letras renascentistas como desculpa para todo tipo de excessos morais e um retorno ao paganismo. Mas sua atitude em relação ao estudo em si sempre foi positiva. Seu sonho era que São Marcos se convertesse em um centro missionário, e por isto eram estudados neste convento, além do latim do grego, hebraico, o árabe e o caldeu. Por outro lado, Savoruu ol.: :;t mostrou inimigo decidido do luxo e da ostentação. 1!iIO 11('011 m.mi íosto em seus repetidos


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ataques, a partir do púlpito, contra as joras e as sedas, bem como todos os vestidos demasiadamente chamativos de algumas mulheres. O resultado foi a "queima de vaidades", que aconteceu diversas vezes enquanto o frei teve o apoio dos florentinos. No centro da praça principal da cidade era construída uma grande pirâmide escalonada de madeira, debaixo da qual eram colocados pólvora, palha e lenha. Depois as pessoas traziam "vaidades" - trajes, perucas, jóias, etc - que colocavam sobre os escalões da pirâmide, à qual no fim era ateado fogo. Estas grandes fogueiras, com os hinos que eram cantados, as procissões e as explosões de pólvora, vieram a substituir a celebração do carnaval em Florença. A pregação de Savonarola, sempre inflamada, inclu ra profecias cujo cumprimento alimentava o fanatismo com que muitos veneravam o frade. Assim, por exemplo, quando um dos portos que pertenciam a Florença foi sitiado por um exército e uma esquadra da Santa Aliança, Savonarola declarou que, assim como os montes seriam jogados no fundo do mar, assim também a frota seria destru(da. Pouco depois uma tempestade imprevista destruiu a esquadra da Santa Aliança, vários navios se afundaram, e os invasores se viram obrigados a levantar o s(tio. Mas isto, por sua vez, queria dizer que de Savonarola eram esperados cada vez mais e maiores milagres. Quando a situação econômica ficou diffcil não faltaram os que criticaram o profeta por não tirar Florença dos seus problemas. E estas cr(ticas aumentavam, por estas dificuldades serem motivadas em parte por Florença, sob a influência de Savonarola, se negar a se juntar à Santa Aliança. O papa também fez tudo que era possível para conseguir uma mudança na sua pol ítica, Sabendo que o frade dominicano era o grande obstáculo em seu caminho, enviou bulas de excomunhão contra ele. Mas Savonarola, com o apoio do governo florentino, declarou que a excomunhão não era válida, pois se' baseava em supostas heresias que ele não tinha pregado. Quando o papa lhe ordenou que guardasse silêncio e não pregasse mais, o frade lhe obedeceu por algum tempo. Mas neste per(odo se dedicou a escrever, com virulência cada vez maior, contra a corrupção da igreja. Pela primeira vez a imprensa foi usada como instrumento de propaganda religiosa, pois os


Jerónimo Sevonerot« / 163

Ss vonerol« tinha a visão da rena de Cristo.

1IBç80

do mundo todo atraltfls do sangUfl

escritos de Savonarola eram lidos avidamente tanto em Florença como fora da cidade. Quando, tentando comprar seu silêncio, Alexandre VI lhe ofereceu o chapéu cardinal (cio, Savonarola lhe retrucou:


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"Não quero outro chapéu que um vermelho: vermelho de sangue". O papa então procedeu a medidas mais extremas. Ameaçou toda a cidade de interdito, e de prisão todos os mercadores florentinos que havia em Roma e nas demais cidades da Aliança. Além disto, por causa do interdito, todos os bens florentinos que ca fssem em seu poder seriam confiscados. Isto era uma ameaça de ru fna econômica para toda a cidade, e Savonarola logo perdeu o apoio que tinha entre os aristocratas e os burgueses. Somente lhe restavam, ainda, seus próprios frades, alguns poucos amigos entre as pessoas abastadas, e o povo baixo. Este último, porém, estava em situação desesperadora, pois a fome aumentava, e pedia-se com cada vez mais insistência que o profeta fizesse um milagre. A ocasião para este milagre pareceu surgir quando um frade franciscano, inimigo irreconciliável de Savonarola, desafiou para a prova de fogo qualquer pessoa que afirmasse que o dominicano era verdadeiramente um profeta de Deus. Sem consultar frei Jerônimo um dominicano aceitou o desafio. Depois de longas negociações foram firmados os termos da prova. Se o franciscano saísse vencedor, ou se os dois contendentes perecessem, Savonarola teria de abandonar a cidade. Chegou por fim o dia da prova. No meio da praça foi constru ída uma grande plataforma retangular, coberta de terra para não se queimar, e sobre ela duas grandes piras, que deixavam uma passagem estreita entre si. Tinha sido combinado que os dois contendentes entrariam ao mesmo tempo. no fogo, cada um por uma extremidade da passagem. O que saísse do outro lado seria o vencedor. Savonarola, que nunca concordou com a experiência, pois dizia que isto era tentar a Deus, por fim concordou em estar presente. Os mais fanáticos dos seus seguidores estavam certos de que ocorreria ali um grande milagre, e que ficaria provado de uma vez por todas que frei Jerônimo era profeta do Altíssimo. Quando chegou o momento, todavia, o franciscano não apareceu. Seus companheiros de ordem apresentaram mil desculpas e explicações, que uma a uma foram eliminadas. E o desafiante ainda não tinha aparecido. Durante todas estas


Jerônimo

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idas e vindas o céu tinha ficado escuro, e acabou caindo um aguaceiro tão forte que mesmo se os dois contendentes quisessem, teria sido imposs(vel acender o fogo. Alguns poucos dos presentes disseram que se tratava de um milagre, pois frei Jerônimo sempre se opusera à prova. Mas os que tinham acorrido para ver um espetáculo se sentiram roubados. Nesta noite os espfritos estavam exaltados. Correu o comentário de que, já que ninguém tinha ganho a prova, Savonarola tinha perdido, de acordo com o que tinha sido combinado. Os poderosos da cidade, que temiam por seu comércio, se uniram aos eclesiásticos que Savonarola tinha ofendido, e promoveram uma grande desordem. A turba acabou por se dirigir para São Marcos, e exigiu que Savonarola fosse entregue. Enquanto o frade orava alguns dos seus seguidores mais fiéis empunharam as armas em sua defesa. Mas mais tarde o profeta se entregou aos que exigiam que ele fosse preso. Ao ver o antes tão poderoso pregador amarrado, muitos zombaram dele, cuspindo nele e dizendo-lhe palavrões. Quando o conselho da cidade se reuniu para tratar do caso de Savonarola, seus amigos não se apresentaram, e imediatamente foram escolhidos alguns que os substitu íssern. Assim ficava garantido que o acusado não teria quem o defendesse. Mas ainda era necessário encontrar de que acusá-lo. Por vários dias ele foi torturado, e a única coisa que conseguiram arrancar dele, quando estava tão quebrantado que não conseguia nem mesmo levar comida à boca, foi que na realidade ele não era profeta, mas que as profecias eram invenção sua. E isto ele negou assim que a tortura amainou. Foram feitos três julgamentos, dois deles pelas autoridades florentinas e o terceiro pelos legados do papa. Este no começo quisera que os florentinos lhe entregassem o prisioneiro, para dispor dele a seu modo. Mas os florentinos se negaram a fazer isto, não para salvar seu profeta, mas por temor dos segredos que ele poderia revelar a Alexandre VI. Por fim o papa concordou em enviar os seus legados para que julgassem o caso em Florença mesmo; apesar disto lhes ordenou antes que partissem que o condenassem. Nos três julgamentos Savonarola foi condenado sem misericórdia. Os legados do papa não conseguiram mais do que


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a confissão de que ele tivera a intenção de apelar a um concflio universal. Por fim, sem obter a confissão desejada, condenaramno como "herege e cismático", apesar de nunca terem declarado em que consistia sua heresia. Pouco antes tinham sido condenados, em circunstâncias semelhantes, dois de seus colaboradores mais chegados. De acordo com o costume, não era a igreja quem castigava os hereges, mas estes eram entregues ao "braço secular". Por isto o novo conselho de Florença foi convocado para ditar a sentença, e este decretou, como era de se esperar, que os três fossem mortos. A única misericórdia que tiveram com eles foi ordenar que fossem enforcados antes de serem queimados. Assim sucedeu no dia seguinte. Os três morreram com serenidade exemplar. Depois suas cinzas foram lançadas ao rio Arno, para evitar que os seguidores do frade as recolhessem como rei (quias, Mas apesar disto houve durante várias gerações em Florença, e em outras regiões da Itália, os que guardaram rei Iquias do santo frade. Quando, anos mais tarde, Roma foi saqueada por tropas alemãs, houve quem visse neste acontecimento o cumprimento das profecias de Savonarola em relação ao castigo que Deus preparava para a cidade corrupta. Repetidamente, também no século XX, houve católicos que falaram em declarar santo aquele frade dominicano que morreu mártir das ambições de um papa. Talvez a igreja nunca chegue a dar este passo. Mas todos os historiadores concordam em que, naquele combate desigual, a justiça estava do lado do frade.


XII O fim do Império Bizantino Os turcos temem acima de tudo nossa união com os cristãos ocidentais .... Por isto, quando quiseres lhes inspirar terror, faze-os saber que vais reunir um concílio para chegar a um entendimento com os latinos. Pensa sempre neste concílio, mas nunca o convoques. Manuel II Paleólogo, a seu filho Os séculos XIV e XV foram tempos aziagos para o que restava do Império Bizantino. Como já dissemos no volume anterior, em 1204 os cruzados se apossaram da cidade de Constantinopla, e estabeleceram nela um imperador e um patriarca latinos. Em 1261 os gregos puderam novamente se apoderar da sua capital, e assim terminou o Império Latino de Constantinopla. Mas o mal estava feito. O velho Império Bizantino nunca recobrou sua glória perdida, e teve de se contentar em manter uma existência precária entre os ocidentais de um lado e os turcos de outro. Nestas condições a questão das relações entre a igreja grega e a latina dominou o cenário religioso de Constantinopla. O receio do povo em relação aos latinos se tinha aguçado quando estes usaram a quarta cruzada para tomar Constantinopla, e depois lhe impuseram seus costumes, doutrinas e hierarquia eclesiástica. Os líderes bizantinos, tanto polfticos como


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eclesiásticos, tinham os mesmos receios. Mas eles viam a necessidade de chegar a um entendimento com o cristianismo ocidental, para poder resistir aos ataques dos turcos. Por isto quando alguém propunha uma reunião com Roma, tratava-se sempre do imperador, o patriarca, ou algum outro civil ou clérigo de alto n (vel. E pelas mesmas razões todas estas propostas sucumbiam diante da firme vontade do povo, dos monges e do clero baixo, para os quais os latinos eram hereges e cismáticos, com os quais não se deveria ter contato algum. A situação pol ítica ficava cada vez mais complicada porque, por ocasião da conquista latina de Constantinopla, tinham sido fundados diversos países que se separaram da antiga capital. Em Nicéia e Trebizonda houve impérios gregos rivais do latino de Constantinopla. No Epiro, na Mésia e em outras áreas do Egeu do Estados menores tentavam continuar a herança bizantina. Quando Constantinopla voltou a cair nas mãos dos gregos alguns destes Estados se submeteram a ela. Mas muitos outros continuaram tendo sua existência independente, ou uma relação com a capital mais teórica do que real. Em conseqüência os imperadores bizantinos eram senhores efetivos de pouco mais do que Constantinopla e circunvizinhanças. Pouco a pouco os turcos iam estreitando o cerco. E não parecia haver nenhuma defesa contra eles. Em meados do século XIVa situação piorou. Os turcos otomanos, que já tinham se apossado da Ásia Menor, atravessaram o Mar Negro e começaram a conquistar os Balcãs. Este era o único território que restava a Constantinopla, além de algumas ilhas no Egeu. Os genoveses se aproveitaram desta conjuntura e se apoderaram das principais destas ilhas, enquanto os turcos conquistavam toda a península balcânica, exceto o Epiro e o Peloponeso. O primeiro destes dois territórios seguiu um curso independente, até que foi conquistado primeiro pelos albaneses e depois, no século XV, pelos turcos. O segundo foi tomado pelos turcos em 1460, sete anos depois da queda de Constantinopla. Privada de quase todos os seus territórios, e dividida por questões de sucessão ao trono, Constantinopla somente pôde resistir como Estado vassalo dos turcos, aos quais se via obrigada a pagar tributo. E esta situação também era extrema-


o fim

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Crânice de Nuremberg.

mente precária, pois assim que os turcos se viram livres dos seus conflitos com os húngaros e os albaneses, era de se esperar que se voltassem contra Constantinopla. Já rodeada totalmente de territórios otomanos, como uma ponte entre a Asia e a Europa, a velha capital de Constantino era um enclave nas possessões do sultão Baiaceto. No começo do século XV parecia que os turcos tomariam Constantinopla a qualquer momento. Então aconteceu o imprevisto. Durante várias décadas os imperadores bizantinos tinham estado rogando ao Ocidente cristão que acudisse em sua defesa. Seus rogos não mereceram nenhuma resposta concreta. Mas no Oriente, entre os pagãos, se levantou o conquistador que, sem querer, prolongaria a vida de Bizâncio por mais meio século. Tamerlão, o terrível mongol


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que se propôs reconstruir o império de Gengis Cã, derrotou os turcos na batalha de Angora, na Asia Menor, em meados de 1402. Isto deteve o avanço dos turcos. E apesar de Tamerlão ter logo abandonado a Asia Menor, os turcos se viram depois disto divididos por uma guerra civil entre os filhos de Baiaceto. Quando por fim o sultão Maomé I saiu vencedor ele teve de dedicar seus esforços à consolidação do seu poder e a impor a ordem em seus territórios. Seu filho, Murad l l, sitiou Constantinopla em 1422. Mas um novo ataque mongol, e a rebelião de um de seus irmãos, o obrigaram a levantar o cerco. Do outro lado os húngaros e os albaneses também obtiveram vitórias importantes sobre os turcos. Assim, salva por acontecimentos inesperados, Constantinopla conseguiu prolongar sua existência. Mas em 1451 Maomé" sucedeu a I\ilurad, quando este morreu. E seu grande sonho era fazer de Constantinopla uma cidade muçulmana, capital do império. Enquanto isto os imperadores de Bizâncio não tinham outro recurso que recorrer ao Ocidente latino, na esperança de que talvez desse ouvidos ao seu clamor. Foi então que teve lugar a reconciliação entre os dois ramos da cristandade, no concflio de Ferrara-Florença, em julho de 1439. Mas isto não trouxe nada de proveitoso para a assediada Constantinopla, pois o papado não tinha o poder necessário para obrigar as potências ocidentais a enviar reforços à cidade assediada, e os gregos viram na ação de seu imperador e seus lfderes eclesiásticos uma traição e uma capitulação diante da heresia. Em 1443 os patriarcas de Jerusalém, Antioquia e Alexandria, talvez em parte por pressão dos turcos, repudiaram o que tinha sido feito no concflio. Os russos reagiram da mesma forma. E assim Constantinopla se viu completamente só, dividida e assediada pelos turcos. A Constantino XI, que reinava na época na cidade de seu homônimo, o Grande, não restava outro aliado que o ocidente cristão, e por isto ele insistiu em seus planos de união. Em dezembro de 1452 foi celebrado em Santa Sofia a missa romana. Os dias de Constantinopla estavam contados. No dia 7 de abril de 1453 Maomé II sitiou a cidade. Para derrubar as muralhas ele usou peças de artilharia que engenheiros cristãos tinham feito para ele. Os sitiados se defenderam valentemente,


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mas sua situação era desesperadora, pois as muralhas não resistiam ao ataque da artilharia turca. No dia 28 de maio houve um culto solene na catedral de Santa Sofia. No dia 29 ocorreu o último assalto dos turcos. O imperador Constantino XI Paleólogo morreu defendendo a cidade. (Cinco séculos mais tarde este autor encontrou no cemitério de uma pequena igreja angli-

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cana de uma ilha do Caribe uma lápide que dizia: "Aqui jaz o último descendente por linha direta de Constantino Paleólogo, o último imperador de Constantinopla".) Os turcos irromperam através da muralha, e por três dias e três noites, como o sultão tinha prometido, a velha capital foi saqueada. Depois Maomé tomou formalmente posse dela, e Constantinopla foi transformada em Istambul, capital do Império Otomano. Na catedral de Santa Sofia, onde séculos antes João Crisóstomo tinha pregado, ressoava agora o nome de Maomé. O grande sonho de Constantino, de fundar uma nova Roma cristã, tinha terminado.


Novas condições pol íticas e econômicas puseram fim à "era dos altos ideais". A peste bubônica, que despopulou regiões inteiras, semeou o pavor em toda a Europa. A morte passou a ser o tema principal da pregação cristã. O papado caiu em descrédito ao passar primeiro pelo "cativeiro babilônico" de Avignon, depois pelo Grande Cisma (quando chegou a haver três papas ao mesmo tempo) e pela série indigna de papas do Renascimento. Boa parte da igreja igualmente se corrompeu. Constantinopla, o antigo baluarte cristão, caiu em poder dos turcos. Mas em meio a tudo isto houve um impulso reformador, em que encontraram eco as palavras de Savonarola, Wycliff, Huss e outros.

E ATÉ AOS CONFINS DA TERRA: Uma história ilustrada do cristianismo

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DOS MÁRTIRES DOS GIGANTES DAS TREVAS DOS ALTOS IDEAIS DOS SONHOS FRUSTRADOS DOS REFORMADORES DOS CONQUISTADORES DOS DOGMAS E DAS DÚVIDAS DOS NOVOS HORIZONTES INCONCLUSA


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