Buraco d`Oráculo: 15 anos de História

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Buraco d’Oráculo PELAS RUAS DESDE 1998

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Buraco d’Oráculo PELAS RUAS DESDE 1998

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Organização Adailtom Alves Teixeira Revisão Taiguara Belo de Oliveira Editor de Arte e diagramador Mauricio F. Santana Colaboração Alexandre Mate, Edson Paulo, Lu Coelho, Heber Humberto Teixeira, Fabiano Nunes, Narah Neckis, Narciso Telles e Jussara Trindade. Buraco d`Oráculo Adailtom Alves, Edson Paulo, Heber Humberto Teixeira, Lu Coelho, Patrícia Leal, Romison Paulo, Selma Pavanelli e Thiago Thalles. Foto capa Arquivo do grupo manipulado por Mauricio Santana

Teixeira, Adailtom Alves (Org.)

T266b Buraco d’Oráculo: 15 anos de história – Para Muito Ser TÃO Ser, muito mais Cuscuz / Adailtom Alves Teixeira (Org.). Revisão Taiguara Belo de Oliveira. - São Paulo: Grafnorte, 2013. 200 p. : il. ISBN 978-85-61343-11-8 1. Teatro. 2. Teatro de rua. I. Teixeira, Adailtom Alves. II. Taiguara. III. Título CDD 792 Ficha catalográfica elaborada por Fabiana Colares – Bibliotecária

Esta obra foi produzida com recursos do Prêmio Funarte Artes Cênicas nas Ruas - 2012.

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Sumário Apresentação Introdução

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primeira parte - Pontos que se cruzam Pequeno histórico

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Buraco d`Oráculo: história e caminhadas, por Adailtom Alves Teixeira

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O tempo não para..., por Lu Coelho

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Histórias da outra margem, por Heber Humberto Teixeira

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Eu, O Cuscuz e o Ser TÃO ser, por Edson Paulo

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Segunda Parte - Arte e graça do Cuscuz O Cuscuz Fedegoso, por Edson Paulo

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Como servir cuscuz em praça pública, por Fabiano Nunes

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Como servir cuscuz e narrativas ou seres tão concretos criados a partir das margens da cidade, por Adailtom Alves Teixeira

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Terceira Parte - Ser TÃO Ser para ser sertão Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, criação coletiva do Buraco d`Oráculo

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Ser TÃO Ser como epifania de um cotidiano perverso. Uma poética alegórica de tantos desterritorializados, por Alexandre Mate

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Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem: um espetáculo de resistência, luta e esperança, por Narah Neckis

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O político e o poético em Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, por Narciso Telles

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A musicalidade do espetáculo em Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, por Jussara Trindade

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Bibliografia Geral

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Registro Fotográfico

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Agradecimentos

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Dedicamos este livro ao professor Alexandre Mate, que tem contribuído, sistematicamente, para o avanço do registro da história do teatro de rua.

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APRESENTAÇÃO Quando um ato de escolha determina muito mais do que apenas um querer motivado pelas modas Alexandre Mate 1. Escolhas No âmbito do senso comum, escolha refere-se a uma ação cujo sentido é bastante significativo; nessa perspectiva, a ação deliberada pressuposta pela escolha adequar-se-ia feito uma luva ao Buraco d’Oráculo, grupo de teatro de rua que completa, em 2013, 15 anos. Realmente, no que se refere à questão teatral – em um país sem projeto de política cultural –, esse tempo de atuação é uma grande conquista, sobretudo quando o grupo opta pela mais desprestigiada das matrizes estéticas do fazer teatral: o teatro de rua. Além disso, o período tão significativo em anos redimensiona-se pela trajetória que o grupo vem trilhando ao longo de sua carreira. De uma oficina de teatro com muitos interessados, depurando-se para um grupo menor e buscando espaços alternativos, o coletivo opta pela rua e por texto farsesco e popular. Independentemente de fases pelas quais o grupo tenha passado, com certeza, O cuscuz fedegoso (que também figura nesta publicação), escrito por Edson Paulo e dirigido por Atílio Garret, expressa uma mudança na trajetória que o grupo seguia e a sua opção efetiva pelo popular e pelas ruas. Em razão disso, e auxiliados por Ednaldo Freire, orientador do projeto Ademar Guerra, da Secretaria de Estado da Cultura (SP), os integrantes do grupo conscientizam-se de seu fazer, das infindas dificuldades a serem enfrentadas e da importância de que se reveste o teatro de rua para as interlocuções reais com aqueles apartados e distantes do acesso à linguagem representacional, apresentada ao vivo. -5-

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A formação do grupo, “seu encontro” e definição, ocorridos com O cuscuz fedegoso, e a criação de obra magistral como Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem (que concentra em si todos os anos de aprendizado e de trocas) amadurecem e colocam o Buraco d’Oráculo entre os mais importantes coletivos teatrais da cidade de São Paulo. 2. Os tantos sentidos da escolha A palavra escolha, no caso do grupo em questão, espraiar-se-ia à formação de um coletivo que optou pela rua como palco e, majoritariamente, a Zona Leste da cidade de São Paulo como norte e território de seu processo de criação. Atualmente, e à exceção de alguns de seus colaboradores, todos os integrantes do Buraco residem em bairros da Zona Leste, considerada, no Brasil, a área que abriga a maior população de migrantes de origem nordestina. Ao longo da vida, homens e mulheres, infindas vezes, podem “escolher”. Considerando que aquilo que se deseja ou se tem necessidade já está produzido e pronto para o uso, os sujeitos “escolhem”: na arara da loja, com múltiplas calças, aquela da moda e a que se pode pagar; no restaurante, e estampado no cardápio, o prato que mais lhes agrade e que o vale refeição permite experimentar; de sua casa até seu trabalho, o melhor caminho, que tende a ser o mais curto... Escolhas forçadas, permanentemente condicionadas. Em texto estupendo, Clarice Lispector finaliza o quarto, dos cinco relatos que compõem a obra A Quinta História, com uma pseudo escolha de alguém do seguinte modo: “[...] Áspero instante de escolha entre dois caminhos que, pensava eu, se dizem adeus, e certa de que qualquer escolha seria a do sacrifício: eu ou minha alma. Escolhi. E hoje ostento secretamente no coração uma placa de virtude [...]”. Evocando ditado conhecido por todos: ninguém escapa da morte. Entretanto, com relação às demais “escolhas”, somos mesmo donos do que queremos? Se a totalidade de tudo o que existe é produzida e se apresenta pronta, não seriam também impostos sentimentos, percepções, inferências, desejos, necessidades, ideias, valores, mentalidades, condutas?... -6-

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3. Escolha: a palavra Em dicionário etimológico, a palavra escolha figura na seguinte ordem: Escol: derivado regressivo de escolher. Escola (do gr. Scholẽ): “propriamente, paragem; repouso, descanso; ocupação de quem se encontra em descanso; ocupação estudiosa, ocupação sábia; estudo; associação de cultura; lugar de estudo, escola; produto do estudo, tratado, obra”. Pelo latim schola, ócio consagrado ao estudo, lição, curso, conferência etc. Escolha: regressivo de escolher. Tais ordenação e aparição, por incrível que pareça, podem chocar mais no papel do dicionário do que as não escolhas na vida. De qualquer modo, com relação ao sentido da palavra, a grandeza de Drummond, em o Lutador, acorda a consciência para a dificuldade em lidar com as palavras, porque, segundo o poeta, elas: “[...] esplendem na curva da noite”. Assim, como no viver concreto, em que se acredita ser sujeito de si, a escolha, por sua possibilidade concreta, caracteriza-se em palavra cujo sentido histórico e etimológico se perdeu. Feito um cometa, o que tem do sentido da palavra escolha é apenas seu rastro espelhado e inexistente. O suposto sentido da palavra escapou, sem conseguir mais ser laçado; a utilização da palavra demandará processos de revisitação e de desassossego; daí em diante, o viver demandará um trânsito demasiadamente inquieto. Se antes era confortável pensar e ligar a palavra à decisão, à deliberação, sua origem e aproximação espalham pedras pelo caminho... “No meio do caminho [fica] uma pedra”. No meio do caminho pedreiras estão... 4. O permanente processo pressuposto pelas “escolhas” Porque é um grupo de teatro de rua; porque se caracteriza em um coletivo cujo processo de criação e produção é partilhado; porque, em sendo dono de seu passe – sem precisar prestar contas ao mercado e criar “produtos” –, os seus integrantes arbitram sobre o que e como montar. Em razão disso tudo, o Buraco d’Oráculo, a partir de 2011, opta, na condição de esco-7-

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lha e compromisso, por falar de sua gente, e inicia os processos de pesquisa e montagem da histórica marcha de diáspora nordestina, que obriga seu povo a sair do lugar em que nascera por uma vida mais digna e humana. Nas selvas de pedra, evidentemente pelo sistema coercitivo, excludente e predatório, homens e mulheres, com subempregos, e na condição de lumpemproletários, sobrevivem em imensos conglomerados urbanos conhecidos como favelas, em áreas ocupadas, em territórios afastados de quase tudo. Às vezes, algumas das inúmeras favelas se transformam em conjuntos habitacionais, nos quais quase tudo falta. Do mencionado processo de pesquisa, surge o Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem. Criação teatral coletiva, engravidada por lirismo na dramaturgia de texto, na dramaturgia da cena, na dramaturgia interpretativa... A obra comove e aproxima os seres sensíveis de algo... Algo já visto, vivido, intuído, ouvido-olvidado, mas presentificado em alguma parte da origem de cada um de nós: nordestinos, estrangeiros, pobres, trabalhadores, minorias... 5. Escolhas? Se homens e mulheres têm necessidade de se dedicarem a um determinado trabalho mediado pelo simbólico, até que ponto eles podem, de verdade, escolher ao que vão se dedicar nas chamadas artes do fazer, e os caminhos para a satisfação de suas arbitradas escolhas, cujo compromisso lhes transcende e atravessa histórica e politicamente? Que se tome, por exemplo, o teatro. A linguagem teatral, priorizando seu fenômeno que é o espetáculo, pode ser desenvolvida em todos os espaços, em qualquer tempo, para todos os públicos... Potencialmente poderia, mas não é o que acontece desde que ela foi estetizada pelo Estado grego (da Antiguidade clássica). Quando se criou o teatro, na condição de um espaço, o teatro passou a ser acessível a poucos, apenas àqueles que podiam pagar. De outra forma, aquele que pode economicamente tem acesso a obras, sejam elas mercadorias ou não. No geral, espaços, forma artística e artistas atendem aos interesses e expectativas de uma classe. Por intermédio de grupos de rua, em sua constante deambulação, -8-

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tantos “esquecidos” do essencial podem também ter acesso à linguagem e assistir aos espetáculos teatrais. Nesse fazer, portanto, pode-se vislumbrar concretamente uma escolha arbitrada, determinada por diversas questões, mas, principalmente, por compromissos de natureza política: a gente d’Oráculo escolheu estar junto de sua gente. Ao deslocarem-se pela imensa malha periférica das cidades, grupos de teatro de rua podem levar o espetáculo, e com ele a prática da antiga ágora grega, principalmente pelo fato de antes, durante e depois de apresentados os espetáculos os espectadores (que participaram de toda a cena) terem condições de discutirem a obra, suas vidas e tudo o que está às suas voltas. Os espetáculos apresentados passam a ser, também, fonte de interlocução, de troca, de momento de festa e de reconhecimento de si e de seus tantos semelhantes: é isso que o Buraco d’Oráculo vem fazendo durante esses 15 anos. Para finalizar, parafraseando, com variações, uma das falas de Ser TÃO Ser... “Todo mundo é assim: começa onde nasce e termina onde escolhe.” “Todo mundo é assim: começa onde nasce e termina onde escolhe!” “Todo mundo é assim: começa onde nasce e termina onde escolhe?” Histórias...!?

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Ilustração sobre o espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem feita por Bruna Pavanelli (7 anos), após apresentação realizada em 19/08/2012.

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INTRODUÇÃO Maurice Halbwachs, em A memória coletiva, afirma: “Nossa memória não se apoia na história aprendida, mas na história vivida” (2008: 78-9). E é a partir da história vivida que se escreveu esse livro, que recompõe parte da memória de um grupo teatral. Halbwachs afirma também que, para podermos aproveitar a memória um do outro, é necessário que haja “[...] muitos pontos de contato entre uma e outras para que a lembrança que nos fazem recordar venha a ser reconstruída sobre uma base comum” (2008: 39). Quinze anos vividos em grupo, produzindo teatro de rua, é a base comum dos sujeitos que optaram por essa arte. O livro que ora apresentamos foi escrito por muitas mãos e apresenta muitos olhares sobre um mesmo objeto, o grupo Buraco d`Oráculo, que em 2013 completa quinze anos de (r)existência. Como a memória não é linear, senão seletiva, selecionamos dessa década e meia de vida de muito trabalho, dois momentos importantes, melhor dizendo, dois espetáculos marcantes na história do grupo. Em 2002, o grupo estreou o espetáculo O cuscuz fedegoso e em 2009, Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem. Ambos são considerados por seus integrantes como significativos, momentos de virada na maneira de fazer teatro no Buraco d`Oráculo. O primeiro, reuniu toda a pesquisa que os atores vinham realizando sobre o grotesco e a comicidade; o segundo, representou uma virada do ponto de vista político e levou o grupo a criar um espetáculo a partir de histórias reais, coletadas em diversas comunidades da cidade de São Paulo, modificando seu olhar sobre esta metrópole e sobre o seu fazer artístico. - 11 -

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Os espetáculos, para além das próprias pesquisas que os geraram, chegaram ao universo acadêmico, criando novos frutos, novas reflexões. Daí surgiram um mestrado e um doutorado. O primeiro realizado por Adailtom Alves Teixeira e o segundo, por Jussara Trindade. Trechos de ambas as reflexões estão inseridas nas páginas que se seguem. Além desse material mais teórico, os textos teatrais de O cuscuz fedegoso e Ser TÃO ser também estão presentes no livro. Esse é um dado importante, pois não se ver por aí publicações de textos teatrais criados especificamente para a rua. Esse fato, por si só, é de extrema relevância. Por outro lado, todos que conhecem teatro de rua sabem que um texto teatral jamais dará conta do que é um espetáculo realizado no espaço aberto. Por isso mesmo, e visando construir um vasto painel desses dois momentos na história do Buraco d`Oráculo, foram acrescentadas quatro críticas dos espetáculos, escritas por Alexandre Mate, Fabiano Assis, Narah Neckis e Narciso Telles. Além disso, outros pontos de vista compõem esse painel, são textos de Edson Paulo, Heber Humberto Teixeira e Lu Coelho, integrantes do grupo. No que concerne à divisão propriamente dita do livro, o mesmo é composto de três partes: a primeira é mais focada na história do grupo, com pontos de vistas apresentados por seus integrantes; a segunda é centrada no espetáculo O cuscuz fedegoso, com texto, crítica e reflexão acadêmica; a terceira é dedicada ao espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, com o texto teatral, críticas e uma reflexão sobre a sua musicalidade. A . A. T.

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PRIMEIRA PARTE

Pontos que se cruzam

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Fonte – Arquivo do grupo

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Ator – Edson Paulo, como Resmelengo, no espetáculo O cuscuz fedegoso apresentado na COHAB Juscelino Kubitschek durante o projeto Circular Cohab`s (2005).

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PEQUENO HISTÓRICO O Buraco d`Oráculo nasceu em 1998, com o intuito de fazer um teatro que discutisse o homem urbano contemporâneo e seus problemas. Desta forma, e desde o início, o grupo optou pelo teatro de rua, maneira mais efetiva que encontrou de compartilhar momentos de reflexão e afetividade com o público, por meio de sua arte. O trabalho do grupo é calcado em três pontos fundamentais: a rua, como local fundamental para promover o encontro direto com o público; a cultura popular, como fonte inspiradora; e o cômico, destacando-se a farsa e as relações com o denominado “realismo grotesco”. O grupo encontrou nas manifestações populares os elementos de expressão de sua arte. A descoberta do popular aconteceu a partir do encontro com Ednaldo Freire, que orientou o grupo durante dois anos (1999 e 2000). O grupo optou por usar o popular e a rua como determinação e alvo de crítica. Sendo assim, seu trabalho, pelas características e adesões apresentadas, o levou ao encontro de um público diferente daquele que frequenta as salas de espetáculos. Assim, começou a desenvolver trabalhos de forma descentralizada, buscando democratizar o acesso ao fazer teatral. Desde 2002, atua pela região de São Miguel Paulista, bairro da Zona Leste da cidade de São Paulo. Essa necessidade de democratização do fazer artístico levou o grupo a ampliar o raio de atuação, apresentando seus espetáculos nos conjuntos habitacionais da Companhia de Habitação Metropolitana (COHAB) - 15 -

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da Zona Leste, densamente povoados, por intermédio do Projeto Circular COHAB´s, desenvolvido em 2005 com recursos do VAI – Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais. Nesse processo de circulação, o trabalho ampliou-se e, a partir de 2006, graças ao apoio do Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, o grupo pode circular por dezoito conjuntos habitacionais, atingindo um público de mais de trinta mil pessoas com esse projeto. Em 2008, obteve novamente os recursos do Programa de Fomento, e a partir de maio daquele ano passou a desenvolver um trabalho de pesquisa junto às comunidades do extremo leste; o que, apoiado por um processo de aperfeiçoamento técnico, resultou em um novo espetáculo, Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, realizando sua estreia em agosto de 2009. Em 2010 o grupo foi contemplado pela terceira vez com o Fomento para desenvolver o projeto Narrativas de Trabalho, até novembro de 2011, do qual faz parte uma pesquisa sobre a narrativa, bem como sobre a precarização do trabalho – temas sobre os quais o grupo criou intervenções. Além disso, fizeram parte do projeto um circuito teatral e a Mostra de Teatro de São Miguel Paulista, realizada em dezembro de 2010. Em 2012, contemplado pela quarta vez com o Programa de Fomento, o grupo deu continuidade ao processo de aperfeiçoamento técnico, sobretudo musical, bem como à pesquisa sobre a precarização do trabalho, realizando debates no Café Teatral e continuando a publicação de A gargalhada. Nesse ano, realizou ainda a 7ª edição da Mostra de Teatro de São Miguel Paulista e, ao término do projeto, prevê a estreia de seu novo espetáculo: Ópera do trabalho, fruto de suas últimas pesquisas. A história do Buraco d`Oráculo é uma demonstração clara da importância das políticas públicas para a cultura: o grupo surgiu de um projeto realizado em um equipamento público de cultura, as Oficinas Culturais da Secretaria de Estado da Cultura (1998), e foi apoiado diversas vezes por prêmios públicos, com os quais pode aperfeiçoar e aprofundar sua arte. Dos prêmios públicos, já foi contemplado quatro vezes com o Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo (2006, 2008, 2010 e 2012), - 16 -

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duas vezes com Prêmio Funarte Myriam Muniz de Teatro (2009 e 2012), Prêmio Petrobrás-Funarte para o Teatro (2005 – que não existe mais), Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais (VAI) da cidade de São Paulo (2004), duas vezes com Prêmio Artes Cênicas de Rua (2009 e 2012). Esses prêmios permitiram que o grupo continuasse atuando e produzindo, mas, sobretudo, permitiram que o grupo levasse seu trabalho gratuitamente a centenas de milhares de pessoas, que, em grande parte, nunca haviam presenciado um espetáculo teatral; possibilitaram que o grupo viajasse pelas cinco regiões do Brasil levando suas obras a outros rincões; e que publicasse suas reflexões e sua história em livros, jornais, contribuindo, de forma crítica e teórica, com o teatro de rua brasileiro. Além disso, o Buraco d`Oráculo tem participado de dezenas de festivais e mostras espalhados pelo Brasil, partilhando sua experiência com outros coletivos teatrais. Os espetáculos do grupo são protagonizados por tipos populares, pessoas comuns, afinal, são eles o principal público desses quinze anos de história. Desde a formação até o presente momento, o grupo produziu nove espetáculos, através dos quais busca manter essas propostas. São eles: • • • • • • • • •

A guerra santa – 1998; Amor de donzela, olho nela! – 1999; Quem pensa que muito engana, acaba sendo enganado – 2000; A bela adormecida – 2001; O cuscuz fedegoso – 2002; A farsa do bom enganador – 2006; ComiCidade – 2008; Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem – 2009; Ópera do trabalho – 2013.

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Fonte – Arquivo do grupo

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Cartaz de divulgação da Oficina da qual originou o Buraco d’Oráculo.

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Buraco d`Oráculo: história e caminhadas Adailtom Alves Teixeira1 Em 1998, o ator e diretor João Carlos Andreazza realizou um projeto em parceria com a Secretaria de Estado da Cultura, na Oficina Cultural Amácio Mazzaropi. O projeto consistia na formação de um núcleo de teatro de rua. Os aprendizes tiveram aulas de interpretação, expressão corporal, canto, técnicas circenses e criação musical, todas elas voltadas para o espaço aberto. Além disso, havia ainda oficinas de direção, produção, figurinos e adereços para outras turmas. Todo o projeto durou dez meses: oito de oficinas, desembocando em uma montagem teatral, e dois meses de apresentações. A partir daí nasceu o Buraco d`Oráculo. No início havia cinquenta pessoas no núcleo de atores; alguns desistiram e, na montagem do espetáculo A guerra santa, havia trinta e uma pessoas. O espetáculo, livremente inspirado em obra do grupo mineiro Galpão, Corra enquanto é tempo, discutia a exploração da fé por parte dos líderes religiosos. O tema era muito pertinente, já que estava próximo da virada do milênio, quando, no seio popular, se dizia que o mundo iria acabar. Naquela época, percebia-se claramente o crescimento de igrejas pentecostais e de escândalos envolvendo as lideranças de algumas delas. Apesar de os líderes das igrejas pentecostais serem o alvo principal, o espetáculo não poupava nenhum inescrupuloso, independente da religião. A guerra santa foi apresentada em São Paulo e em algumas cidades do interior paulista, como Marília e Sorocaba. 1

Mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Unesp e integrante do Buraco d`Oráculo.

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Findo o projeto, a maioria seguiu o seu caminho, mas alguns integrantes continuaram a se encontrar e a discutir a continuidade do grupo. Conseguiram uma sala para ensaiar na estação Brás do Metrô, onde depois viriam a fazer apresentações. Nesse mesmo ano, 1999, o grupo inscreveuse em outro projeto da Secretaria de Estado da Cultura: o Ademar Guerra. Ocorreu então o encontro com o diretor Ednaldo Freire, estudioso do cômico e do popular. Nesse período, afirmaram-se como grupo e fizeram a opção pelo teatro de rua. Pesquisaram uma estética e optaram pelo público que residia distante do centro da cidade, que não tinha acesso ao teatro, pois, como afirma Lu Coelho, atriz do Buraco d`Oráculo, em entrevista a mim concedida em 05/05/2008, foi o contato com o público do Brás que impulsionou essa escolha. João Carlos Andreazza havia apresentado o teatro de rua ao Grupo e Ednaldo Freire fez com que descobrissem sua linguagem, sua linha de pesquisa e seu público preferencial. Dessa forma, o grupo tomou consciência de que fazia parte do universo daquelas pessoas, escolhidas como público de suas obras. Com Ednaldo Freire e, depois, sem ele, o grupo leu e releu Mikhail Bakhtin, autor russo que discute a carnavalização presente na obra de François Rabelais, tomando como referência a cultura popular da Idade Média e do Renascimento. Segundo Bakhtin (1987), o carnaval seria uma espécie de segunda vida do povo, baseada no princípio do riso, isto é, o carnaval seria a possibilidade de pôr o mundo de ponta-cabeça. É do autor russo também o termo realismo grotesco, do qual o Buraco d`Oráculo se apropriou para falar de sua estética: “[...] encontramos nas manifestações populares e no chamado realismo grotesco os elementos de expressão de nossa arte” (ANUÁRIO, 2006: 142). Como o termo grotesco também gera discussões, já que está associado à escatologia, às aberrações etc., é importante frisar que ele opera por rebaixamento, daí o grupo ter optado pelo lado crítico dessa categoria estética, que “[...] propicia um desmascaramento das convenções, rebaixando pelo riso os cânones e o poder absoluto. A crítica é lúcida, cruel e risível” (ALVES, 2006: 2). Dessa forma, a carnavalização torna-se um elemento crítico do status quo, da ordem, do oficial. O grupo se - 20 -

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vale de figuras grotescas, que vão de encontro ao dito bom gosto; utiliza o baixo corporal como elemento do riso, um riso ambivalente. Nesse período, entre 1999 e 2001, afirmam-se os três elementos fundamentais na pesquisa do Buraco d`Oráculo: a rua, como espaço de promoção do encontro; a cultura popular, inspiradora dos espetáculos; e o cômico, com ênfase na farsa e no realismo grotesco. O popular é um elemento inspirador do grupo, tanto aquelas práticas vindas da área rural, como as do ambiente urbano. No início de sua trajetória, nos seus primeiros passos como grupo, o Buraco d`Oráculo cumpriu temporada na estação Brás do Metrô com dois espetáculos: Amor de donzela, olho nela! e Quem pensa que muito engana acaba sendo enganado. Os dois trabalhos resultaram do encontro com Ednaldo Freire e do estudo da obra de Mikhail Bakhtin (1987). Depois de alguns meses de temporada, o grupo viu-se obrigado a se retirar da estação Brás do Metrô, pois pastores evangélicos estavam cobrando do coordenador daquela estação o mesmo espaço e o mesmo tempo para fazer suas pregações. Grande ironia, já que o seu primeiro espetáculo, A guerra santa, tinha como personagens um pastor, uma irmã, um coro e demais evangélicos que visavam evangelizar aqueles que vinham em busca de cura. Em 2002, o Buraco d`Oráculo e mais seis grupos fizeram parte da Ação Cultural Se Essa Rua Fosse Minha.2 Foi nesse ano que o grupo foi para São Miguel Paulista, na Zona Leste de São Paulo, buscando desenvolver projetos para aquele público que passava na estação Brás do Metrô. A criação da Ação Cultural Se Essa Rua Fosse Minha caracterizava também a militância do grupo em prol do teatro de rua, um novo estágio no processo de consciência, já que se tratava de uma ação político-artística que tinha como objetivos a troca entre os grupos, a criação de um corredor cultural A iniciativa de criar um coletivo de coletivos, em certa medida, era fruto do momento político do período, puxado pelo Movimento Arte Contra a Barbárie e pelas discussões em torno da criação da Lei de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo. Sete grupos passaram a se encontrar e discutir ações, juntos, os coletivos definiram estratégias de ocupação de alguns bairros da cidade, com ações contínuas, de maneira a dar visibilidade para o teatro de rua, já que nem a categoria teatral nem o poder público reconheciam essa modalidade teatral. 2

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e a visibilidade do teatro de rua. Mais tarde, o grupo auxiliou também na fundação e organização do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo3, que reúne diversos grupos que lutam por políticas públicas de cultura para o teatro, bem como pelo reconhecimento, por parte dos gestores culturais, do espaço público aberto, sobretudo as praças, como equipamento cultural. Os demais grupos que participaram da Ação Cultural Se Essa Rua Fosse Minha são os seguintes: Abacirco, Bonecos Urbanos, Circo Navegador, Farândola Troupe, Monocirco e Núcleo Pavanelli. Foi também em 2002 que o grupo estreou o espetáculo O cuscuz fedegoso, síntese do que vinha estudando até aquele momento. Este foi o espetáculo constituído por elementos grotescos, farsescos e que, mais uma vez, colocava cidadãos comuns em cena. Tratava-se de quatro tipos na luta pela sobrevivência em uma grande cidade: uma quituteira (Maria do Cuscuz), um pedinte, uma raizeira (vendedora de ervas medicinais) e um policial – este último, a autoridade corrupta que dificultava o trabalho dos dois vendedores (raizeira e quituteira) e espancava o pedinte. Ao assistir a uma apresentação desse espetáculo, o jornalista Fabiano Nunes afirmou que “[...] o teatro de rua torna-se uma boa maneira para exorcizar os males e as contradições do comportamento humano” (2006: 3), isso porque, conforme relata no texto, ele havia escutado de uma senhora do público que seu filho havia falecido, e comentava que não deveria ficar rindo, no entanto, a mulher gargalhava. Essa situação demonstra muito bem o realismo grotesco destacado por Bakhtin, pois há aqui um riso ambivalente. Mesmo na dor, aquela senhora riu, carnavalizou, exorcizou seus demônios, ainda que por momentos, contrapondo-se aos absurdos do mundo e da vida. Finalizada a Ação Cultural Se Essa Rua Fosse Minha, o autor desse texto, que na época também fazia parte do Núcleo Pavanelli, propôs ao grupo a realização de um seminário no Barracão Pavanelli, no bairro do Tucuruvi. O objetivo do encontro era que os grupos pudessem compartilhar seus problemas e angústias. Doze grupos participaram: Abacirco e Rodamoinho (11/08/2003), Tablado de Arruar e Pombas Urbanas (18/08/2003), Bonecos Urbanos e Farândola Troupe (25/08/2003), Circo Navegador e Cia. Pavanelli (01/09/2003), Teatro Vento Forte e Grupo Manifesta de Arte Cômica (08/09/2003), ManiCômicos e Buraco d`Oráculo (15/09/2003). Após a realização do seminário, os grupos passaram a se encontrar regularmente, denominando-se Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (MTR/SP). 3

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Assim, é possível dizer que a afirmação desse coletivo como grupo teatral acontece no período que vai de 2000 a 2002. Nessa época, alguns integrantes abandonaram outros trabalhos e se dedicaram ao teatro. Amadureceu uma dupla consciência: a de pertencimento à Zona Leste da cidade de São Paulo e a política, ao se engajarem com outros coletivos em ações artísticas e políticas. Ao chegar a São Miguel Paulista o grupo realizou a Mostra de Teatro de São Miguel Paulista, com o objetivo de trocar experiências com os grupos teatrais da região. Até a presente data, 2012, a Mostra já teve sete edições. Foi também por lá, em São Miguel Paulista, que desenvolveu diversas temporadas nas praças e nas comunidades, denominando o projeto de Buraco nas Praças, alusão ao grupo e às condições das praças nas quais se apresentavam. Foi a partir dessas temporadas que nasceu um de seus principais projetos, o Circular Cohab`s4, realizado de 2005 a 2007. Com esse projeto, o grupo conseguiu ser selecionado pelas comissões de alguns editais públicos: Prêmio de Valorização às Iniciativas Culturais (VAI), da Secretaria Municipal de Cultura (SMC), Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, também da SMC. Até então, sempre tinha trabalhado e criado seus espetáculos com verbas dos próprios atores. Na época em que foram para São Miguel Paulista eles eram seis: Adailtom Alves, Danilo Cavalcante, Edson Paulo, Lu Coelho, Mônica Martins e Renata Câmara. Hoje, Danilo Cavalcante, Mônica Martins e Renata Câmara não fazem mais parte do Buraco d`Oráculo. Com a entrada de novos atores, o grupo permaneceu com seis integrantes, a saber, os já citados mais Heber Humberto Teixeira, Rominson Paulo e Selma Pavanelli, na sua atual formação5. Selma Pavanelli e Heber Humberto começaram a fazer parte do grupo como atores convidados nos espetáculos A farsa do bom enganador (2006) e ComiCidade6 (2008), respectivamente. Companhia Metropolitana de Habitação e também como são conhecidos os conjuntos habitacionais populares construídos pela mesma. 4

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Em 2013 mais duas pessoas começaram a participar do Grupo: Patrícia Leal e Thiago Thalles.

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Os espetáculos do Buraco d`Oráculo são os seguintes: A guerra santa (1998); Amor de donzela,

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Se a fase anterior foi de afirmação do grupo, é possível compreender o período de 2002 a 2006 como uma reestruturação, já que algumas pessoas saíram do grupo e outras entraram. Ainda nesse período, o trabalho do grupo começou a ecoar pela cidade e por outras regiões brasileiras, em decorrência dos primeiros prêmios públicos recebidos e de suas primeiras viagens, como a participação no Festival de Teatro de Rua de Recife (PE), o que possibilitou a troca de experiência com grupos de outros estados do Brasil. De 2006 a 2008, ocorreu o crescimento artístico. O grupo foi selecionado duas vezes pela comissão julgadora do Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, o que permitiu o aprofundamento técnico e artístico, bem como o espraiamento de suas atividades na Zona Leste, por meio do Projeto Circular Cohab`s, confirmando a importância de uma política pública de cultura. No Fomento, os grupos criam seus projetos de acordo com suas pesquisas e com o que querem realizar, não há modelos. Assim como o Fomento possibilitou o crescimento artístico do Buraco d`Oráculo, é possível afirmar também que a cidade de São Paulo tem sido contemplada com um teatro de altíssima qualidade, graças a esse programa público que, anualmente, possibilita a realização de trabalhos diversificados produzidos por dezenas de grupos teatrais. O ponto principal do projeto Circular Cohab`s consistia em um circuito teatral que passava por dezoito comunidades da Zona Leste7, somando um público de mais de trinta mil pessoas. Havia ainda no projeto a formação de três núcleos de teatro de rua, nos moldes do que havia formado o Buraco d`Oráculo em 1998. Nos núcleos, os jovens tinham aulas de interpretação, corpo, voz, circo, percussão, figurinos e adereços, durante seis meses e, ao término das oficinas, cada núcleo montava um espetáculo. olho nela! (1999); Quem pensa que muito engana, acaba sendo enganado (2000); A bela adormecida (2001); O cuscuz fedegoso (2002); A farsa do bom enganador (2006); ComiCidade (2008) e Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem (2009). Cohab I, Cohab II, José de Anchieta, Fazenda da Juta, Inácio Monteiro, Jardim Palanque, Jardim das Oliveiras, União de Vila Nova, Vila Mara, Itaim Paulista, Setor VII G, Praça do 65 (Cidade Tiradentes), Juscelino Kubitschek, Jardim Pantanal, entre outras. 7

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Foi durante esse projeto também que o Buraco d`Oráculo passou a publicar o informativo A gargalhada8 e a realizar o encontro Café Teatral, às tardes, com convidados que discutiam teatro. Os núcleos de teatro de rua formados no Projeto Circular Cohab`s deram resultado, surgindo daí três grupos: Nascidos do Buraco (2006), Teatristas Periféricos (2006) e Trupe Arruacirco (2007), pertencentes aos bairros de São Miguel Paulista, Cidade Tiradentes e Itaim Paulista, respectivamente. Em 2011, a Trupe Arruacirco acompanhou parte do Projeto Narrativas de Trabalho, realizado pelo Buraco d`Oráculo. A realização do Projeto Circular Cohab`s deu aos integrantes do grupo a noção de relevância do trabalho que desenvolvem junto às comunidades, estimulando-os a levarem à cena a realidade dessas localidades. Assim surgiu o projeto de comemoração dos dez anos do Buraco d`Oráculo. Por essa razão, é possível afirmar que, desde 2002, um projeto sempre se desdobra em outros, em permanente continuidade. Em 2008, o grupo completou dez anos, sendo selecionado mais uma vez pela comissão julgadora do Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo. Do projeto constava novo circuito teatral por seis comunidades9, denominado Re-praça10. Nas comunidades, o grupo recolheu histórias de vida dos moradores e dessas localidades, dando origem ao espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem. Para esse projeto convidaram diversos profissionais, responsáveis pelo aperfeiçoamento técnico e para a criação do espetáculo; assim, todo o processo de montagem do novo espetáculo foi realizado de forma coletiva. No que diz respeito à relação do Buraco d`Oráculo com seu público, Edson Paulo, em entrevista concedida em 05/05/2008, afirma que 8 Este informativo, composto de artigos sobre teatro de rua, políticas públicas, além da programação do Buraco d`Oráculo, chegou à 26a edição, com tiragem de 3.000 exemplares cada uma delas, disponibilizadas também virtualmente. 9

Vila Mara, Jardim das Oliveiras, União de Vila Nova, Jardim Lapena, Jardim São Vicente e Prestes Maia.

Trata-se de uma apropriação do título de um poema de Raberuan (1953-2011), poeta e músico de São Miguel Paulista e amigo dos integrantes do Buraco d`Oráculo: Reinventar a praça, repor/ revitalizar seu destino/ justificar seus motivos:/ Por quê? Pra quê?/ Reler a história de novo/ rever nas meninas os meninos que fomos./ Cantar e dançar.../ Brincar na praça do povo! 10

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ela ocorre antes, durante e após as apresentações, confirmando, assim, a importância do teatro de rua que, além de instaurar essa relação, tem a possibilidade de ir a diversos lugares. Edson Paulo cita, por exemplo, que muitas pessoas para as quais o grupo se apresentou, seja no centro da cidade ou na periferia, nunca tinham visto teatro. A rua, ainda segundo Edson Paulo na mesma entrevista, é “[...] a melhor forma de você permitir o acesso ao teatro”. Mesmo o teatro de rua tendo a possibilidade de chegar a muitos lugares, o ator não acredita que esta arte possa alcançar a todos, ser universalizada, já que não há interesse por parte do poder público que ela chegue a todos, isto porque não há políticas públicas que deem conta desse trabalho e faltam grupos dispostos a trabalhar no chamado “circuito alternativo”. Apesar disso, tem aumentado o número de grupos que buscam a rua como espaço cênico. Segundo Edson Paulo, isso demonstra inquietação desses grupos, revela a busca por um público diferenciado, um público que não frequenta as salas teatrais. Para o ator, esse movimento de os grupos irem para a rua é muito importante para o processo de acessibilidade dos trabalhadores. Edson Paulo, na entrevista mencionada, fala também sobre a participação do público do teatro de rua e de sua interferência nos espetáculos. O fato de se estar aberto, de se promover o acesso, de se procurar um diálogo direto com o público, faz com que esse público também se torne dono dessa obra, dono dessa manifestação. Quanto à relação com a mídia, Edson Paulo, na citada entrevista, é taxativo: “A gente não tem relação nenhuma!”. A prova disso é que durante os mais de dez anos de grupo foram publicadas apenas duas reportagens em jornais de grande circulação, como A Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo. O primeiro jornal fez uma pequena matéria assinada por Valmir Santos sobre a estreia do espetáculo ComiCidade, no centro da cidade de São Paulo. O segundo jornal fez uma matéria em um de seus cadernos, Estadão Leste, ainda em 2002, sobre o grupo e a Ação Cultural Se Essa Rua Fosse Minha. Essa falta de interesse pelas realizações do grupo está diretamente relacionada à região onde o grupo está inserido. Por outro lado, o - 26 -

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grupo tem viajado bastante, levando seus espetáculos para outras cidades, participando de festivais, de mostras, entre outros. Nessas localidades, em geral, o acesso à mídia é mais fácil. A criação do jornal A gargalhada é também uma forma de responder a essa falta de espaço na grande mídia. Como essa publicação é mantida nos projetos com verbas públicas, acaba se tornando um veículo de divulgação do trabalho do grupo e, ao mesmo tempo, uma prestação de contas pública de suas atividades. Atualmente o grupo tem realizado um estudo teórico sobre a precarização do trabalho e, na prática, tem criado pequenas intervenções nas quais discute o tema e experimenta narrativas diferenciadas. O grupo tem mantido o circuito teatral Re-praça, o Café Teatral e a publicação A gargalhada. Por fim, é possível afirmar que, desde 2008, os integrantes do Buraco d`Oráculo têm se dedicado ao estudo de temas políticos e ao aperfeiçoamento técnico-estético de seus integrantes, o que vem se refletindo nos espetáculos e no processo de organização interna, bem como na participação política junto a outros coletivos, não apenas artísticos, mas também sociais. Dessa forma, o processo de troca com outros coletivos, bem como seu engajamento político, vem se intensificando. Para os integrantes do grupo, a arte é vista como uma necessidade humana, logo, direito de todos; daí a insistência em permanecer junto a essas comunidades. Compreendem também que, em sendo um direito de todos, a cultura deve ser um dever do Estado. Por isso, os integrantes do grupo têm se engajado na luta por políticas públicas de cultura.

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Fonte – Arquivo do grupo Foto: Augusto Paiva.

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Atriz – Lu Coelho no espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, durante apresentação realizada no Boulevard da Av. São João (2009).

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O tempo não para... Lu Coelho11 Ao completar 15 anos de trajetória, o Buraco d`Oráculo revisita o passado para ver o que de lá ficou e o quanto ele nos transformou. Essa reflexão nasce a partir de dois espetáculos impulsionadores de mudanças e afirmações dentro do grupo. O primeiro, O cuscuz fedegoso, teve sua estreia em 2002, dentro da Ação Cultural Se Essa Rua Fosse Minha, que uniu grupos de teatro de rua das cinco regiões de São Paulo, ação esta que teve o objetivo primeiro de trazer maior visibilidade ao teatro de rua. Esta Ação foi o embrião do que se firmou hoje como Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (MTR/SP). A Ação nos fez descobrir nosso chão (São Miguel Paulista, extremo da Zona Leste de São Paulo), nosso público (o homem simples que anda a caminho do trabalho e de suas casas e que é tocado, surpreendidos pelo teatro) e nossa linguagem (uma dramaturgia própria, uma dramaturgia popular). 11

Pedagoga, atriz, integrante do Buraco d`Oráculo.

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Esse tripé clareou nossos objetivos e, ao mesmo tempo, estremeceu nossas estruturas. O grupo estava mudando. Saíram pessoas e entraram outras. Ao todo, desde a estreia, em 2002, até sua última apresentação na Praça Nossa Senhora Aparecida em União de Vila Nova, na Zona Leste, no ano de 2007, O cuscuz fedegoso passou por três versões no elenco. O cuscuz foi nosso espetáculo mais popular, os tipos que lá apareciam podiam ser encontrados na rua. Um pedinte, uma vendedora, uma raizeira e um policial, todos na luta pela sobrevivência. Essas figuras eram por vezes grotescas, onde muito de suas relações com o outro ocorria por meio do baixo corporal. O texto era ágil; a relação com o público era direta, o que nos ensinou a lidar com a rua e seus imprevistos; o figurino, colorido, se definindo junto com as personagens; os atores, dentro de suas possibilidades, cantavam e tocavam, ainda que de forma limitadas. Encontramos o popular, o riso, o grotesco, num texto que partia de um de nós: Edson Paulo. No entanto, com a saída de mais um integrante em 2007, resolvemos nos despedir de O cuscuz fedegoso, pois achávamos desgastante, naquele momento, mais uma versão, mesmo com a sensação de que algo de nós estava ficando para trás. Em 2008, quando, ao completar dez anos de história, resolvemos nos dedicar ao estudo da narrativa na rua com o projeto 10 anos: a cidade, a comunidade e as pessoas na trajetória Buraco, contemplado pelo Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, nasceu o espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem. Este espetáculo, criado a partir de histórias que colhemos em diferentes bairros da Zona Leste, trouxe ao grupo novos desafios e a coragem de afirmarmos o que e como pensávamos sobre o nosso fazer teatral. Esse caminho, claro que não poderíamos tê-lo feito sozinhos. O Ser TÃO Ser foi um espetáculo erguido a muitas mãos: amigos, colaboradores, professores opinaram, criticaram, apontaram e nos ajudaram a dizer da melhor forma o que estava dentro de nós. Nesta trajetória, o Ser TÃO Ser trouxe caminhos não previstos no seu fazer. Foi o espetáculo que nos levou a outra forma de militância, não apenas cultural, nos aproximou de movimentos sociais. Do ponto de vista - 30 -

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da cena, a narrativa através da história contada ao pé do ouvido e a música como dramaturgia resolveram muitos problemas. Estas mudanças amadureceram o grupo artisticamente, e os resultados logo surgiram. Se O cuscuz fedegoso foi o primeiro espetáculo que apresentamos fora de São Paulo, nos aproximando de grupos com histórias antigas com o teatro de rua, como o Movimento Popular de Teatro de Rua de Pernambuco, com Ser TÃO Ser circulamos por muitos festivais e mostras, passando pelas cinco regiões do Brasil. Apesar de o sertão estar dentro de cada um de nós, tínhamos medo de estarmos falando para o nosso umbigo, sendo bairrista. Mas, pelo contrário, nossa pesquisa nos mostrou na prática que estávamos no caminho certo ao parafrasearmos Tolstoi: cante sua aldeia e será universal. O cuscuz fedegoso, assim como Ser TÃO Ser foram dois espetáculos que ajudaram a formar o que é hoje o Buraco d`Oráculo. Se não tivéssemos passado pelo caos, o imprevisto e o improviso de O cuscuz, não teríamos o jogo e o popular sempre presente na rua como os temos hoje. Se não tivéssemos tido a coragem de assumir nosso ser e nosso pensar em Ser TÃO Ser, assumindo uma bandeira e sendo tachados, muitas vezes, de panfletários e loucos, não teríamos avançados em nosso fazer. Os dois espetáculos nos mostraram que rupturas fazem parte do processo de crescimento de um grupo. Não são fáceis estes momentos, trazem angústias, medos, mas, acima de tudo, certezas de que vale a pena mudar, arriscar-se. Com a aprovação deste projeto de memória, vimos a oportunidade de remontar O cuscuz fedegoso – um marco no nosso fazer, que pensávamos ter deixado lá no passado – criar uma nova versão: nova direção, novos atores e um novo olhar para aquilo que achávamos que não dava para mudar. Quanto ao Ser TÃO Ser, continua sendo nosso carro chefe, desbravando diversos chãos de resistência, de história. Apresentou-nos um novo teatro, um teatro militante, a disposição da luta, mas que, acima de tudo, nos aproximou da realidade, daquilo de que falamos, mas com distanciamento. Entramos em crise, continuamos a fazer teatro? Sim, continuamos, só não somos os mesmos. Mudamos, com nossos fazeres, nossos caminhos, - 31 -

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nossas escolhas. É preciso se perceber, olhar para trás para continuar seguindo em frente. Chegamos aos 15 anos. Nossa! Mal sabíamos que chegaríamos ao primeiro ano. Para um grupo popular, de rua, periférico, não comercial, é uma vitória! É resistência! É persistência. Sigamos, pois como afirma o poeta Ray Lima (2009): O tempo não para. A língua é viva, mas pode morrer. A vida tem limite? A vida sem sentido dorme. O ser não é sermão. O ser não sendo está sem razão. Haveremos de ser com arte Antes mesmo de ser pela arte-outro, outros, tantos num só que, de tanto [ser, não haverá como mais somente ser, desta ou daquela. Dest`arte.

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Fonte – Arquivo do grupo. Foto: Patrícia Leal

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Ator – Heber Humberto Teixeira no espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, durante apresentação no Assentamento Milton Santos (2013).

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Histórias da outra margem Heber Humberto Teixeira12 O espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem começa a existir a partir da necessidade do Buraco d`Oráculo de escutar e registrar a memória das pessoas. Passamos por seis comunidades da Zona Leste da cidade de São Paulo, ou seja, nós tínhamos e temos muito o que aprender com nosso público! O projeto foi contemplado pelo Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo e chamava-se 10 anos: a cidade, a comunidade e as pessoas na trajetória do Buraco. As histórias para serem escutadas eram muitas e os moradores, nosso estimado público, tiveram voz e vez para se posicionar falando, relembrando e compartilhando suas vivências. Passamos pelo Jd. Helena/Vila Mara, bem próximo de onde nasci, cresci e vivo até hoje, e posso dizer a mesma frase que escutei de um morador: “aqui tá um pouco melhor, tem teatro”. Já que durante minha vida nesse meu sertão onde moro nunca assisti a um espetáculo teatral, mas hoje fico feliz por poder apresentar para as pessoas, das quais, grande maioria nunca viu teatro. Sou grato a elas, que contribuíram para meu 12

Ator do Buraco d`Oráculo.

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crescimento enquanto ser humano, ator e me ajudaram a escolher a opção de tentar trabalhar no meu grupo. Naquela época, fazia apenas meses que estava trabalhando no Buraco d`Oráculo, e a possibilidade de desistir era muito grande; mas decidi apresentar o Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, aqui, ali e acolá. - “Aqui”, pertinho de casa, vendo as crianças assistindo, se divertindo e os adultos participando, comentando durante a apresentação, a todo momento. O nosso melhor prêmio veio deles, ao dizerem: “a nossa história está aí, sendo representada”. - “Ali”, nas outras zonas de são Paulo, onde também existe a identificação da luta por moradia, que é o fio condutor do nosso espetáculo. - “Acolá”, nas cinco regiões do Brasil, Norte, Nordeste, Sul, Sudeste e Centro-Oeste, onde chegamos à conclusão de que o espetáculo se comunica com todos. É incrível poder percorrer por outros estados e conhecer novas histórias, já que o espetáculo desperta essa vontade no outro de contar também sua história de vida, de luta e de pertencimento a um lugar. É prazeroso apresentar o Ser TÃO Ser em qualquer canto do Brasil, mas prefiro apresentar no meu sertão próximo de casa, aqui no barro da praça, ao lado do campo de futebol e do ponto de leitura; da feira do rolo e dos ambulantes, que são perseguidos; ao lado do trem que despeja os trabalhadores todos os dias e que, quando tem espetáculo, são abraçados por nós: a roda se estabelece, a criançada já se faz presente ajudando a desembarcar o cenário e sempre nos dizendo que demoramos para voltar com o teatro. Cobram, afinal o teatro faz muita falta na vida dessas pessoas. Com essa arte, o encontro vai se refazendo, é a grande festa, o começo de uma união perdida, os laços vão sendo novamente estreitados. E assim vamos seguindo com esse espetáculo chamando Ser TÃO Ser, que mexeu e mexe com todos. Emprestamos nosso corpo e levamos à cena a vida deles, para que o melhor venha na vida de todas as pessoas, revelando que nós somos um!

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Fonte – Arquivo do grupo. Foto: Augusto Paiva

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Ator – Edson Paulo, espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, durante apresentação realizada no Boulevard da Av. São João (2009).

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Eu, O Cuscuz e o Ser TÃO Ser Quando escrevo, repito o que já vivi antes. João Guimarães Rosas A minha trajetória de vida com o teatro cruza e se confunde com a trajetória do Buraco d`Oráculo, que completa 15 anos em 2013 e lança esta publicação como forma comemorativa e reflexiva, por meio de análise crítica e trabalhos acadêmicos defendidos sobre dois significativos trabalhos de seu repertório, O cuscuz fedegoso (2002) e Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem (2009). Confundem-se e se encontram na linha do tempo, por conta de que eu sou integrante desde a sua primeira formação, e trouxe para o grupo aquilo que me inspirava na flor da iniciação teatral. Tomo o Buraco d`Oráculo como a minha formação, minha escola de aprendizado, um lugar que, às vezes de forma espontânea, proporcionou a construção de meu trabalho enquanto ator. Considero o Buraco d`Oráculo aquilo que chamam de “chão da fábrica”, um local onde posso discutir, refletir e passar por um processo de aprendizagem por meio da troca de conhecimento. - 37 -

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A formação desse coletivo, que por vezes se pronunciou “utópico e marginal”, definida na publicação Buraco d`Oraculo: uma trupe paulistana de jogatores desfraldando espetáculos pelos espaços públicos da cidade, escrita por Alexandre Mate (2009), “Marginal, entre os “oraculistas”, concerne à invisibilidade que é imposta ao público da periferia para o qual a obra potencialmente é preparada e apresentada”, permanece ainda como motor impulsionador. Aprofundamos raízes em nosso chão marginal, a Zona Leste paulistana, e reafirmamos nossos compromissos de luta. Somos utópicos no sentido apresentado no poema Janela Sobre a Utopia, de Eduardo Galeano: A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.

Nesse sentido, seguimos em frente somando parceiros e ampliando a nossa atuação, desenvolvendo um projeto de trabalho contínuo em grupo. A forma em que o grupo está organizado atualmente reflete a construção de relações formadas no decorrer de nossa trajetória, considero uma relação “familiar”. Familiar, longe da construção familiar patriarcal promíscua, mas próxima de uma relação familiar das trupes circenses, que dividiam os carroções, a lona, o picadeiro e os sonhos. Dividimos quase que o mesmo chão em função de termos o nosso espaço de trabalho compartilhado no quintal de casa: a Casa d`Oráculo. Atuando nos dois trabalhos aqui destacados e sendo também autor de O cuscuz fedegoso, presenciei todo o desenvolvimento de ambos, desde o projeto de montagem, até as suas transformações no decorrer de suas trajetórias. Ao olhar a construção dessa trajetória de 15 anos e observando os acertos e os erros (pois uma trajetória é feita de acertos e erros) que cercam os trabalhos produzidos pelo coletivo Buraco d`Oráculo, encontro pontos significativos nos dois trabalhos desta publicação: O cuscuz fedegoso e Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem. - 38 -

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Ambos apresentam pontos em comum e divergentes em suas construções, mas são considerados divisores de água nessa trajetória. Por isso mesmo, ambos impulsionaram relevantes trabalhos acadêmicos, um realizado pelo integrante do próprio grupo, Adailtom Alves Teixeira, que lançou o seu olhar sobre a questão da identidade e o território em sua dissertação; enquanto Jussara Trindade fez apontamentos sobre a questão da musicalidade de Ser TÃO Ser, em seu doutoramento. O cuscuz fedegoso nasceu em um momento de afirmação do grupo com a rua, é o quarto trabalho e o primeiro em que o grupo ganhou maior maturidade. Foi com este trabalho que tomamos conta de que nosso processo de construção caminhava para um processo de construção coletiva. Reconheço que a presença do diretor Atílio Garret foi fundamental para o surgimento do espetáculo, foi ele que soube organizar em cena aquilo que eu tinha mais em mente do que no papel. O que temos de resultado final é uma organização de várias e várias versões de texto, pois o que tínhamos de início de trabalho era apenas as figuras/personagens em determinadas situações. Lidávamos, vejo hoje, com a construção do tipo, buscando cada um encaixar-se naquele que lhe era mais comum: o pedinte-bufão, o vendedor-chalatão, a vendedora-espalhafatosa e a autoridade que esconde ser covarde. O processo inicial trouxe as primeiras tomadas de decisão por parte de algumas pessoas em deixarem o coletivo, talvez por uma não compreensão do todo, ou por uma tomada de decisão pessoal, por novos rumos de vida. Naquele momento Renata Câmara e Isaias Cardoso deixaram o grupo, e, mais a frente, Danilo Cavalcante também saiu para seguir a sua pesquisa sobre o teatro de mamulengo. Ficando a formação que vinha antes mesmo do Buraco: Edson Paulo, Lucélia Coelho, Adailtom Alves, somado com Mônica Martins, que deixou o grupo no final de 2007, finalizando assim a carreira de O cuscuz fedegoso. Foi com essa formação que o grupo começou a se estruturar e a se firmar como teatro marginal, ganhando as ruas não só da Zona Leste, mas de outros cantos de São Paulo e de fora da cidade, visto que o espetáculo proporcionou nossa primeira viagem ao - 39 -

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Nordeste, ao participarmos do II Festival de Teatro de Rua do Recife – organizado pelo MTP-PE (Movimento de Teatro Popular de Pernambuco). O espetáculo pautava-se pelo cômico/grotesco e tornou-se o “carro chefe” do Buraco d`Oráculo por 3 anos. Até a sua última apresentação, contabilizamos 88 (oitenta e oito) apresentações, que deixaram muitas lembranças, até hoje citadas pelo grupo em rodas de conversas. Experiências que nos fizeram lidar com as manifestações do público presente, pois havia forte identificação entre público, personagens e atores. Foi também com este espetáculo que conseguimos ser contemplado com o VAI (Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais), nosso primeiro prêmio público. Posso afirmar que este é o momento de ligação histórica entre O cuscuz fedegoso e Ser TÃO Ser, pois com esse prêmio ampliamos o nosso raio de atuação, saindo da região de São Miguel Paulista e indo para os conjuntos habitacionais, por meio do Projeto Circular Cohab`s, depois ampliado com o Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, e incluindo outros espetáculos do repertório, como A bela adormecida e A farsa do bom enganador. Essa “ida” aos conjuntos habitacionais nos levou a uma reflexão de que poderíamos fazer um espetáculo que tomasse como ponto de partida as histórias daquelas pessoas, que nos acompanhavam nas apresentações. Foi com essa reflexão que iniciamos os trabalhos de construção de Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, espetáculo construído dentro do projeto 10 anos: a cidade, a comunidade e as pessoas na trajetória do Buraco. Projeto que nos levou a novas tomadas de decisões, a mudar os rumos e os caminhos tomados e nos encorajou a assumirmos bandeiras. Pois, acima de tudo, era um projeto que tratava de identidade, a do grupo, que comemorava 10 anos e lançava um registro por meio de um livro, e, ao mesmo tempo, se propunha a criar um espetáculo que falasse da gente e do seu chão. Debruçado sobre mais de 80 horas de gravação de relatos coletados em vídeo e outras tantas formas de relatos escutados em conversas informais, surge um espetáculo que em sua construção fez a bandeira de luta pela terra, uma metáfora para tantas outras lutas. Ser TÃO Ser deu uma nova cara à formação do coletivo, Selma - 40 -

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Pavanelli e Johnny John (hoje Heber Humberto Teixeira, seu verdadeiro nome), se assumem como novos integrantes do grupo – ambos já participavam de trabalhos anteriores: A farsa do bom enganador e ComiCidade, espetáculos construídos após O cuscuz fedegoso. Assumem-se integrantes do grupo, mas nada muda em suas relações habituais de trabalho, pois já desempenhavam funções dentro da organização do coletivo sem distinções hierárquicas, assim como um coletivo deve ser. Ser TÃO Ser foi construído por uma narrativa épica, feito de forma episódica e por vez poética, muito diferente do alvoroço promovido pelo O cuscuz fedegoso. Ser TÃO Ser nos marcou por outra forma de seduzir o público da rua. A proposta de aconchego, servindo um cafezinho em plena rua, é uma das coisas que o diferencia dos trabalhos anteriores. A dinâmica do desenrolar do espetáculo passa por momentos mnemônicos, cômicos e tensos, propondo diferentes reações ao público, mas ao final leva todos ao caminho de uma reflexão acerca do mundo que nos cerca. As questões de identidade e de identificação estão postas no trabalho. O espetáculo diz a que veio, fala de uma classe social, a dos trabalhadores, sem confabular ou camuflar as condições a que ela é exposta. O que permeia o grupo e que une ambos os trabalhos é a construção de um trabalho coletivo, que mantém um tripé de formação, que aparece em todos os trabalhos. Esse tripé é composto pelas manifestações populares, que é a nossa eterna fonte de inspiração; o cômico, a quem devemos nosso diálogo direto com o nosso público; e a rua, esta, o terceiro ponto, nosso palco de manifestação. Esses três elementos perpassam todos os nossos trabalhos, caracterizando assim a nossa linguagem. O grupo mantém o trabalho continuado de pesquisa, criação e produção, com projetos que estão dando sequência à inesgotável temática que cerca Ser TÃO Ser. Dessa vez, voltado para as questões que envolvem a precarização do trabalho e as relações dentro do sistema capitalista, daí vem sendo criada a Ópera do trabalho, com estreia prevista para julho de 2013. E se, para “tanto Ser TÃO Ser, necessitamos muito mais Cuscuz”, decidimos revisitar O cuscuz fedegoso, dando-lhe uma nova roupagem, em uma nova - 41 -

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versão. Certo de que teremos dois novos trabalhos no decorrer deste ano, ambos com ligações históricas na trajetória de um coletivo que comemora 15 anos. Assim, como no livro de 10 anos, tomando como inspiração o professor Alexandre Mate, termino o texto reticenciando para uma continuidade, pois a história não acaba aqui... Edson Paulo13 Em um fim de domingo de páscoa. Sampa, 31 de março de 2013.

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Graduado em Artes, ator do Buraco d`Oráculo.

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SEGUNDA PARTE

Arte e graรงa do Cuscuz

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Fonte – Arquivo do grupo. Foto: Mayara Evangelista

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Ator – Edson Paulo, como Resmelengo no espetáculo O cuscuz fedegoso apresentado em frente à Casa de Cultura do Itaim Paulista durante o Circular Cohab`s (2007).

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O Cuscuz Fedegoso (Que tapa buraco é barro, que enche bucho é cuscuz) Edson Paulo Os atores chegam em cortejo, tocando com muita animação. Ao chegar ao espaço definido para apresentação, cantam apresentando as personagens: Buraco d`Oráculo chegou pra apresentar Cuscuz Fedegoso, venha se adeliciar. Que tapa buraco é barro Que enche bucho é cuscuz. (Trecho falado. A partir daqui intercala, cantado e falado). O cuscuz de dona Maria É feito com muito suor Resmelengo come tanto Que a barriga dá um nó. Que tapa buraco é barro Que enche bucho é cuscuz. - 45 -

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Você que estar por aí Sentindo as dores do mundo, É melhor ficar por aqui Que Mãezinha do Quixadá Vai arrancar esse mal profundo. Que tapa buraco é barro Que enche bucho é cuscuz. Se você quer provar do cuscuz Que Maria faz e vende, Prove de uma vez agora Se não, chega o Guarda Chicão E todos têm que dar o fora. Que tapa buraco é barro Que enche bucho é cuscuz. Ator - E vamos começar o fuzuê! Maria do Cuscuz – Se aprochegue minha gente, que Maria do Cuscuz chegou, com seus doces feitos com muito amor. Olha, olha, gentarada, que chegou a cocada, a empada e a umbuzada. Compra, compra, minha gente, uma empadinha pra conquistar aquela vizinha, um pão-de-ló pra agradar a vovó, coma esse ovo amarelo pra você ficar mais belo. Olha, olha, gentarada, venha matar a fome que de fome morreu um homem. Coma, minha gente, que saco vazio não para em pé! Coma a delícia da Dona Maria, feito com um matinho gostoso, o delicioso, saboroso, cuscuz fedegoso! Quem quer meu cuscuz? Quem quer comer meu cus...cuz? Se adeliciem com o cuscuz fedegoso! Quem vai querer? Quem vai querer? (Vendo que - 46 -

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ninguém se interessa e percebendo a presença de Resmelengo entre o público, oferece a ele). Maria – O senhor aí. O senhor quer comer o meu cuscuz? Resmelengo – Eu? Maria – É, o senhor mesmo. O senhor quer comer meu cuscuz? Resmelengo – Eu quer. Maria – Qual é sua graça? Resmelengo – Pobre não tem graça, minha senhora. Maria – Então, qual é sua desgraça? Resmelengo – Muitas, minha senhora: o barraco que cai, o salário que não sobe, a fila do INSS, o carnê das casas Bahia... Maria – Oh, sujeito, qual é seu nome? Resmelengo – Me chamam eu de Resmelengo da Silva. Maria – Então toma, coma meu cuscuz, seu Resmelengo. Se adelicie, coma a vontade, pois essa é uma amostra grátis. Resmelengo (Engole rapidamente) – Eu quer mais. Maria – Pois coma mais, coma mais de meu cuscuz. Vejo que o senhor adorou meu cuscuz! Resmelengo (Cuspindo farelos ao falar.) – Tá gostozim. Maria – Tá gostozim, é? Pois é R$ 1,00. Resmelengo – Tem dinheiro não, dona. Maria – Como não?! Comeu e não quer pagar? Resmelengo – E eu quer mais... Maria – Toma vergonha nessa cara lisa! Ou você me paga o que deve ou vou descer a mão nas suas fuças. - 47 -

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Resmelengo – Ecaaaaaaaaaaa!!!!! Maria – E não adianta gritar, tem é que me pagar.

Resmelengo puxa do canto da boca um fio de cabelo, que Maria ajuda a puxar, pois o cabelo tem aproximadamente 3m.

Resmelengo – A senhora num pode fazer uma coisa dessa comigo, não. Eu sou pobre mais eu sou limpinho! Maria – Mas não tem problema, meu senhor, isso é só o cabelo da barba do camarão. (Levantando a saia e comparando o fio de cabelo). Resmelengo – Nojera, imoralidade, outro, eu quero, se não a vigilância sanitária eu denuncio. Maria – Olha aqui, o primeiro foi de graça e o senhor já me deve um, se quiser outro vai ter que pagar e já disse que é R$ 1,00. Aliás, R$ 1,00 não, R$ 1,50 com o cabelo do camarãozinho. (Torna a repetir o gesto. Resmelengo interrompe com um grito e passa a simular um ataque, cai nos braços de Maria e depois no chão). Maria – Ai, meu Deus do céu, o que está acontecendo? (Maria abana Resmelengo com a saia). Resmelengo – Prefiro a morte que este cheiro forte. (finge desmaiar). Maria – Um médico, um médico, um médico pelo amor de Deus! Neste momento entra Mãezinha do Quixadá, com uma carroça cheia de ervas medicinais penduradas. Mãezinha do Quixadá – Pois não, minha senhora. Maria – Mas quem é a senhora? Por acaso a senhora e médica? - 48 -

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Mãezinha – Melhor que isso: sou raizeira, curandeira, mandigueira, catimbozeira e tudo mais que é eira. Mãezinha do Quixadá! E quem estiver doente pode se aproximar. Maria – Pois bem, minha senhora, cure aquele coitado. Mãezinha – Qual? Aquele ali deitado, tomando um bronzeado. Maria – Que bronzeado que nada, o homem está amarelo! Mãezinha – Para o amarelão, eu tenho a flor do manjericão, que acaba de uma vez com o verme do cidadão. Maria – Não é nada disso. Mãezinha – Se é amarelo por falta de cor, então seu problema acabou, trago aqui este bronzeador, feito da raiz do capador. Um sucesso na China, principalmente entre as meninas, que depois de usarem sentem um calor nas partes de maior pudor... Maria – Que bronzeador, que nada! E deixe de servegonhice, o homem desmaiou... Mãezinha – Mas é isso que acontece com quem não usa o protetor solar feito da banha do guará. A senhora não quer aproveitar a promoção, na compra de um, leva cinco e ganhe, grátis, uma loção? Maria – Minha senhora, aquele sujeito teve um troço e vai morrer. Mãezinha – Não diga um desatino desse! Justamente hoje que acabou o meu revitalizador, o fortificador, o reanimador, o ressuscitador: ACORDA MORIMBUNDO! Um produto da melhor qualidade, que dentre mil e uma utilidades, levanta até defunto morto! Maria – Mas no meio dessas bugigangas não tem nada que faça levantar o homem? Mãezinha – Minha senhora, não se deve medicar sem antes consultar. Venha aqui, me ajude a colocar o homem numa posição para podermos encontrar uma solução. (Mãezinha e Maria jogam - 49 -

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Resmelengo em cima da carroça. Essa tarefa é feita com auxílio do público). Mãezinha – Agora, minha senhora, vai até a boca e olhe bem dentro, enquanto eu vejo aqui por trás. (Maria olha pela boca e Mãezinha olha pela bunda. Resmelengo solta um pum). Mãezinha – Nossa mãe do céu! Este homem está podre! Deve ter comido carniça! Maria – Carniça, não. Ele experimentou foi meu delicioso cuscuz fedegoso! Mas, como o bucho dele não estava preparado para tamanha gostosura, não aguentou e desmaiou. Mãezinha – Tá explicado! Ele comeu essas coisas. Maria – Como, essas coisas? Não se atreva a falar assim do cuscuz de Dona Maria... quero ver é se estas ervas têm mesmo algum efeito. Mãezinha – Não duvide da sabedoria popular, pois fui aluna de Chico Raizeiro. Fiz mestrado com Girió de Alencar e aprendi o poder da cura lendo os princípios de João do Pau D`alho, que estão reunidos neste livro, que vem de brinde na compra deste remédio para caminheira. Maria – Caminheira!? Mãezinha – Etimologicamente falando, é caganeira. (Enquanto Maria e Mãezinha discutem, Resmelengo aproveita e abocanha mais um pedaço do cuscuz). Maria – Deixe de enrrolação e vamos logo dar um jeito neste homem. Mãezinha – Então, vamos partir logo para o diagnóstico. Dona Maria, quando eu mandar a senhora olhe goela abaixo que eu olho vias fiofodais acima, para ver se enxergamos uma luz no fim do túnel. Está me vendo? - 50 -

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Maria – Não. Mãezinha – E agora, está me vendo? Maria – Não. Mãezinha – Como suspeitei desde o princípio. Foi uma comoção do intestino, causada por uma duolência sistemática anatômica, devido a uma reação orgânica múltipla intestinal, causando um atamento do intestino fino com o intestino grosso. Mais conhecido como nó nas tripas! Maria – Nó nas tripas? Que diabo da febre do rato é isso? Mãezinha – Para um maior esclarecimento, se faz necessário uma cirurgia espiritual, e que pai Gonguinho me guie. (Mãezinha começa a rezar, enquanto vai abrindo a barriga de Resmelengo). Vento excomungado! Se teu mal é quebranto, cobreiro, zóio virado, que se pronuncie agora ou se cale para sempre. (Ao termino da reza, a barriga está aberta e de lá surge o Estrombo Severino, boneco manipulado pelo próprio ator que faz Resmelengo). Estrombo Severino – Vamos parar com essa fruvioca aqui dentro. Maria – Vixe Maria, mas que estrupício é isso?!! Mãezinha – Não se preocupe, não, Dona Maria. Veja, é isso que acontece com gente esfomeada, que tem o estômago mais desenvolvido que o cérebro... Estrombo – Cala essa boca mole, que o que se passa aqui dentro quem sabe sou eu, e explico o acontecido. Há muito tempo o dono deste corpo não via uma gororoba. Quando o nutritivo, vitaminado, saboroso, cuscuz fedegoso chegou até eu, Estrombo Severino, o responsável pelo processo digestivo, resolvi não fazer a divisão do cuscuz com as tripas. Mãezinha – Mas não pode fazer isso, vivemos num país democrá- 51 -

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tico, devemos repartir o pão, no seu caso, o cuscuz. Estrombo – Mas, dona Mãezinha, você acha que as tripas deixaram por menos, elas fizeram foi uma revoltada, e ficaram se enrolando tripa grossa com tripa fina, tripa fina com tripa grossa, até darem um nó e impedir o processo natural da digestão. Agora a senhora que é muito da catimbozeira, vê se dá um jeito na situação, pois o cuscuz necessita seguir seu processo natural. E assim me despeço. Maria – Isso tem cura? Mãezinha – Mas é claro! Com Mãezinha do Quixadá, tudo é fácil de curar. Este supositório (apresenta um supositório de 1 metro), feito da casca sagrada da imburana de cheiro, com o composto da batata de purga e lubrificado com o óleo de risne, vai resolver o problema. (Ameaça colocar o supositório). Maria (interrompendo) – Mas não corre o risco dele ficar entalado? Mãezinha – Não se apoquente, minha senhora! O único problema é que tem gente que depois que experimenta acaba gostando, se é que a senhora me entende. (Ameaça colocar o supositório). Maria (Interrompendo) – Mas, um xaropinho num resolveria? Mãezinha – Xaropinho? Xaropinho? Xaropinho que nada, o caso é grave, minha senhora! (Ameaça colocar o supositório). Maria (Interrompendo) – E se ele explodir? Mãezinha – Minha senhora, me deixe, que da forma de tratamento cuido eu. E além do mais, para o que este homem comeu ele devia era ser desinfetado. Maria – Olha aqui, sua Mãezinha num sei de onde, a senhora pare de me ofender, que se não eu vou lhe descer a mão! Que filha de uma mãe sem pai, num fala assim com Maria do Cuscuz. A senhora merece é uma sova. (Enquanto discutem, Resmelengo torna a levan- 52 -

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tar e come o cuscuz no tabuleiro de Dona Maria, voltando depois para o carrinho em outra posição). Mãezinha – Dona Maria, vamos manter a calma. A senhora deve estar com a pressão alta, depois lhe dou uma garrafada. Maria – Então, vamos logo acabar com esse aperreio. Mãezinha (Estranhamento. Ameaça colocar o supositório) – E dessa vez ninguém me atrapalha. (Em câmera lenta, Mãezinha mira a bunda de Resmelengo, que se abaixa, acertando assim dona Maria, que fica com o supositório preso entre seus seios). Resmelengo (Levantando-se. Corta a câmera lenta.) – Passou. Mãezinha – Passou o quê? Eu nem te curei, filho de uma égua! (Acerta a cabeça de Resmelengo com o supositório e ele desmaia). Maria – Ai, minha Nossa Senhora da Boca Banguela, estou cansada deste acorda, desacorda, acorda, desacorda! Vou é pegar minhas guloseimas e dar no pé. Mãezinha – Stop! Nada disso, minha senhora! Agora é que eu entro em ação. Para desacordamentos repentinos, o elixir de micomecão é a solução! Maria – Meu Deus do céu! A senhora nunca desiste? Nós vamos é ser presas por usar drogas em praça pública. Mãezinha – Não exagera. Para a senhora manter a calma, vou lhe indicar uma oração para Santo Antônio, pois a senhora está de precisão. Vamos ao trabalho. (Colocam Resmelengo sentado, inclinam sua cabeça e colocam um funil em sua boca e despejam o elixir. Após receber o remédio, Resmelengo cai). Maria – Agora o homem morreu de vez! Mãezinha – Morreu que nada. A fé dos homens com as benzeções há de curar todo e qualquer mal. (Começa a benzer Resmelengo.) - 53 -

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Eu te benzo com o nome que te puseram na pia, em nome de Deus e da Virgem Maria e das três pessoas do santíssimo, eu te benzo. Deus nosso senhor que te cura, Deus que te ajuda nas tuas necessidades ou qualquer outra enfermidade, se teu mal é quebranto, mal invejado, olhos atravessados ou outra enfermidade... (Batendo com ramos no corpo de Resmelengo.) Se te deram no comer, no beber, no zombar, na tua formosura, na tua gordura, na tua postura, nas tuas lombrigas, na tua barriga, nos teus ossos, na tua cabeça, na tua garganta, que Deus nosso senhor há de tirar. Vem um anjo do céu, cai no fundo do mar, onde não possa ouvir galo e nem galinha cantar, este mal há de curar! (Aperta a barriga de Resmelengo, que cospe o elixir em Mãezinha, levanta-se e sai correndo). Maria – O que aconteceu, homem? Você está melhor? Quer mais um pedaço do meu cuscuz? Resmelengo – Não dona, eu quer é mijar. Mãezinha – É o efeito colateral do elixir. (Entregando uma garrafa a Resmelengo.) Vai se aliviar, meu filho. (Resmelengo vai desesperado para um canto se aliviar). Mãezinha – Pronto, minha senhora! Mais um caso resolvido pela farmácia popular de Mãezinha do Quixadá. Agora só falta me pagar. Maria – Pagar? Mãezinha – E a senhora achou que era de graça? Nesta vida só não ganha dinheiro quem não sabe trabalhar. Guarda Chicão (Chegando repentinamente) – Se é que pode chamar isso de trabalho. Todos – Guarda Chicão! (Todos tentam sair desesperadamente, mas são barrados por Chicão que usa de violência). Chicão – Cambada de vagabundos, aonde é que pensam que vão? - 54 -

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Fazem uma zorra desta numa praça pública e acham que tudo vai ficar por isso mesmo? Onde está a licença de vocês? Resmelengo – Icença? Mãezinha – E precisa? Maria – É que nóis achava que era permitido. Chicão – Permitido, uma ova! A senhora acha que é permitido vender umas tranqueiras dessas, cheias de moscas e sem licença? Resmelengo – Eu não tava vendendo nada. Chicão – Sim. Claro que não! E o que é isto? (Tira a garrafa das mãos de Resmelengo.) E mãos ao alto. (Revista Resmelengo.) Opa! O que é isto duro, aqui? Maria – Corre, gente, que o homem tá armado! (Resmelengo tira do bolso um dropes e vários papéis). Mãezinha – É só um dropes. Chicão (Tomando os papéis) – Mas, vejam o que temos aqui, um pedinte! (Começa a ler.) “Me ajude, por favor, não tenho ninguém neste mundo...” Resmelengo – Sou sozim. Chicão – “Preciso levar leite pros meus filhinhos...” Resmelengo – Eles adoram leite ninum. Chicão – “Sou portador de doença contagiosa, não posso arranjar emprego...” Resmelengo – Tem eu, gonorreia, quer vê? Chicão – “Me ajude a comprar uma passagem de volta pra minha terra...” Resmelengo – Tô com saudade de mainha, lá na Bahia. - 55 -

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Chicão – Toma vergonha! Fique sabendo que esmola a um homem que é são ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão. No seu caso, cabe o segundo (Bate em Resmelngo). Maria e Mãezinha – Para, Chicão! Para, Chicão, não bate no homem, não! Chicão (Ameaçando) – Então, bato em vocês. Maria e Mãezinha – Não, pode continuar! Chicão (Para Resmelengo) – Tem algo a dizer? Resmelengo (Cantando) – Vivo sozinho na rua Sou um pobre coitado. Preciso de ajuda sua, Me dê logo um trocado. Por favor, me dê um pão Roubar pouco, não posso, não Dê dinheiro pra passagem Roubar muito, não tenho coragem. Por isso eu peço, mas ninguém me dá. Chicão – Vais até tua mãe e retornes regenerado. Resmelengo – Nossa, que poético! O que quer dizer? Chicão – Vai à puta que te pariu! (Bate no mendigo) Resmelengo – E eu espero que o senhor visite os seus infernos corporais. Chicão – O que quer dizer isso? Resmelengo – Vai tomar no cu! (Torna a apanhar do policial). Chicão – Pois, fiquem sabendo que aqui não é permitido pedir es- 56 -

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mola, vender doces, remédio, nem fazer teatro. Todos – Nem teatro?! Chicão – Nada. Nada é permitido. Somente com a devida autorização conforme decreto nº 5.624 de 1º de abril de 1912, autorizada pelo excelentíssimo Ministro de vias públicas, o Srº Luiz Eutimelo Rego. Todos – Eutimelo Rego? Chicão – Isso mesmo. Eutimelo Rego, que proibiu a venda de qualquer tipo de mercadoria em praça pública, bem como também a apresentação de qualquer evento que induza o povo a pensar, pois de tanto pensar morreu um burro. Mas se acaso não tiverem a autorização, eu, Guarda Chicão, autoridade máxima aqui presente, representante dos três poderes que regem este país, a saber, legislativo, executivo e judiciário, poderei dar um jeitinho na situação, mediante um pequeno mensalão. Maria – Mas eu votei foi no vereador Marabelo Cornudo, que prometeu acabar com essa corrupção. Chicão – Quem promete despromete. E além do mais, eu pertenço a regional dele que também recebe unzinho. Mãezinha – E o prefeito, Tunico Buracudo? Chicão – Com o buraco cada vez maior. Sabe como é, finge que não sabe de nada! Resmelengo – E o Papa? Todos – O Papa!? Chicão – Perdoa os pecados de todos. (Bate nos três). Mãezinha – Assim não dá pra viver! Chicão – É a vida. Os pequenos tem que obedecer aos grandes, - 57 -

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que cada vez têm mais e mais, por causa de vocês, pequenos, que alimentam os tubarões. (Tenta beber o suposto refrigerante, que é o xixi de Resmelengo). Todos – Não! Chicão – Como, não? Não é à toa que este país está uma merda! E digo mais, não se deve mijar contra o vento... (Tenta beber o suposto refrigerante novamente). Todos – Não! Guarda – Não? Então, tentem! Tentem mijar contra o vento e vocês vão se molhar todo. (Tenta beber o suposto refrigerante novamente). Todos – Não! Chicão – Pois estou falando que sim. E isso serve também pra dizer que devemos nos contentar com o que temos e não ficar desejando a grandeza do próximo... (Tenta beber o suposto refrigerante novamente). Todos – Não! Chicão – Como, não? Vocês estão tentando me impedir de beber um refrigerante, é isso? Todos – Sim! (Chicão ameaça) Quer dizer, não, na verdade... Chicão – Vamos deixar de conversa mole e não me interrompa, que eu quero matar minha sede. (Chicão bebe. Todos ficam espantados. Chicão, começa a ter reações, começa a esbugalhar os olhos até dar um berro). Chicão – Quem fez isto? Maria e Mãezinha (Apontando Resmelengo) – Ele. Chicão – Então, foi você! (Mudando de atitude) Que maravilha é esta? (Chicão tira o quepe, abre a blusa, solta o cinto deixando a - 58 -

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calça cair e revela-se um travesti.) Tão quente, tão suave, tão doce, tão excitante! Isso só poderia ser criação tua, meu seborrentozinho! Meu docinho de coco! Meu cheiroso! Vem abrir minha guarda, invadir minha sela, me fazer uma rebelião, me escavar um túnel... Resmelengo – Olha só, gente, como ficou a situação: quando aqui cheguei, meu estômago estava muito nervoso, mas logo ele se acalmou, pois Dona Maria me deu cuscuz fedegoso. Mas um troço me subiu, um troço me desceu, minhas tripas se enrolaram, mas Mãezinha chegou e minhas tripas curaram. Mas tem uma coisa, meu povo guerreiro, esse tipo de gente só trabalha por dinheiro e como eu não tenho um tostão, pra piorar a situação, me apareceu Guarda Chicão. Mas Chicão não é de nada, só sabe dá porrada, tomou o meu mijão e ficou com a mão desmonhecada. (Para Chicão) Agora se aquete e vá procurar outro cacetete. (Resmelengo toma o cacetete de Chicão, desconta toda surra que tomou e sai correndo sendo perseguido por Chicão, que quer beijá-lo). Mãezinha – Gente, o que foi feito nesta garrafa é quase um milagre! Dona Maria, a reação orgânica do seu cuscuz fedegoso com o meu elixir, fez aquele sujeito mijar esse revolucionário produto, revelador dos desejo mais íntimos. Melhor que viagra, que catuaba, que amendoim, que gergilim é... xixi-tuaba! Santa Mãezinha da Quixadá, a partir de agora seremos sócias! Maria – Isso mesmo, Dona Mãezinha, nós vamos vender isso como água. (Ao público) Se aprochegue, gentarada, que Dona Maria chegou, com seus doces, feitos com muito amor e um produto que vai dar um calor... Mãezinha – Nas partes de maior pudor. Maria e Mãezinha – Quem vai querer, cuscuz fedegoso acompanhado de um produto caloroso?

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Música final: Maria vende doce, Mãezinha vende raiz. Resmelengo quando come, Até fica feliz. Chicão é valentão E põe ordem no país. Que tapa buraco é barro, Que enche o bucho é cuscuz! Atores passam o chapéu. Fim

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Fonte – Arquivo do grupo. Foto: Mayara Evangelista

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Atriz – Mônica Martins, como Maria do Cuscuz no espetáculo O cuscuz fedegoso. Apresentação realizada em frente a Casa de Cultura do Itaim Paulista; projeto Circular Cohab`s (2007).

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Buraco d`Oráculo: 15 anos de história

Como servir cuscuz em praça pública Um passo à frente e você já não está mais no mesmo lugar! Chico Science

Sábado à tarde no Largo do Paissandu, no centro de São Paulo, próximo ao imponente Teatro Municipal, início de janeiro de 2006. Uma trupe monta seu cenário, veste o figurino, forma um tablado e recebe o público transeunte. Mais do que uma plateia, testemunhas, convidados, companheiros e confidentes de palco. “Ô, raio o sol suspende a lua! Olha o teatro no meio da rua. Uma roda aqui, uma risada lá, se liga, minha gente, é o teatro popular”. Eis o teatro de rua. Impressões compartilhadas in loco, na cumplicidade da troca de olhares, de gestos diretos. A cidade mantém sua coreografia frenética: ônibus partem, chegam e saem para outras vias. Passageiros, pedestres, vendedores ambulantes. O burburinho das pessoas num ir e vir constante. Agora o mosaico de sons ganha mais um ingrediente: Mãezinha anuncia para os quatro ventos numa certeza messiânica: “Aqui temos as curas para todos os males!”. Sua farmácia ambulante chega repleta de ervas, mandingas, patuás, composições de fórmulas mirabolantes. E rimos de suas promessas, pois a farsa faz parte do contrato. - 62 -

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Maria vende doce e seduz clientes com receita peculiar. A fome de Resmelengo será eliminada à base de um prato da culinária baiana. “O que tapa buraco é barro, o que enche bucho é cuscuz”. Uma senhora, por volta de seus 60 anos, gargalha compulsivamente e depois confessa: “Meu filho morreu há uma semana e eu estou aqui rindo de tudo isso”, e torna a gargalhar. Ela foi fisgada pela comédia da trupe. O teatro de rua torna-se uma boa maneira para exorcizar os males e as contradições do comportamento humano. Resmelengo sai de seu estado inerte, por ora parecia sofrer de algum mal súbito e passa agir na surdina. Seus métodos brejeiros são um retrato instantâneo da brasileirice. O espectador identifica-se com seu jeitinho dissimulado. Um casal improvisa um assento de plástico no chão para assistir ao espetáculo. As crianças riem das travessuras dos personagens. O público já faz parte da cena. Com a cidade ao fundo, como cenário da trupe. “Resmelengo quando come até fica feliz. Chicão é valentão e põe ordem no país”. Pronto! O policial Chicão chega para manter a ordem e os bons costumes. Seu cacetete entra na roda e distribui “carinhos” a todos, afinal, um tapinha do GOE não dói. O cuscuz fedegoso já foi servido na Grande São Paulo, Campinas, I Festival de Rua de São Sebastião, no II Festival de Teatro de Rua do Recife, Pernambuco, mas principalmente na periferia de São Paulo. O Buraco d`Oráculo brinca, canta, dança e encanta. E durante os 50 minutos de espetáculo o público é transportado para um mundo em que a comédia o faz refletir sobre sua realidade. Como disse Chico Science na música Etnia: “É o povo na arte/ é a arte no povo/ e não o povo na arte/de quem faz arte com o povo”. Fabiano Nunes Jornalista

Fonte: A Gargalhada, Maio/Junho 2006.

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Fonte – Arquivo do grupo. Foto: Augusto Paiva

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Ator – Adailtom Alves, no espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, apresentação realizada no Boulevard da Av. São João (2009).

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Como servir cuscuz e narrativas ou seres tão concretos criados a partir das margens da cidade14 Adailtom Alves Teixeira15 Em que medida a geografia da cidade influencia ou determina o processo de criação de um grupo teatral? Uma característica do Buraco d`Oráculo é que seus projetos refletem experiências que se somam e se transformam, o que, por si só, revela a continuidade de um processo de trabalho, demonstrando, assim, a quem se destinam os mesmos. Outro aspecto importante é que o grupo surgiu e se afirmou a partir da zona leste da cidade de São Paulo. Os espetáculos aqui abordados foram criados tomando a rua como espaço cênico, o que revela a vontade de ressignificar a cidade e de buscar o diálogo com os seus cidadãos. Dessa maneira, os artistas buscam a troca de experiência no sentido benjaminiano. A análise dos espetáculos foi realizada a partir do arquivo do grupo e das entrevistas concedidas ao autor. Para tanto, tomou-se um espetáculo do início da história do grupo e a montagem mais recente. Esse recorte pretende clarificar a coerência da história do grupo, se não do ponto de vista estético, pelo menos em relação ao seu público. Mas, antes, vejamos dois pontos importantes, intimamente ligados, que dizem respeito à produção dos espetáculos criados para a rua: a troca de experiências e a relação dos atores com o público. 14 Esse texto, levemente modificado, é parte do capítulo 3 de minha dissertação de mestrado, defendida em março de 2012 no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Unesp. 15

Mestre em Artes, ator, diretor, integrante do Buraco d`Oráculo.

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Sobre a troca de experiência e a relação na rua O conceito de experiência, que perpassa a obra de Walter Benjamin, é fundamental para a compreensão da importância de qualquer grupo teatral que se coloca no espaço aberto urbano nos dias de hoje, bem como nas comunidades onde busca dialogar com a cidade e com os cidadãos. Experiência diz respeito à memória, vínculo com o passado; tradição é um conhecimento que se acumula e se desdobra. O grupo que se relaciona com o público e com a cidade instaura uma ponte entre o particular e o coletivo, estabelecendo fluxos de correspondências com a memória dos cidadãos e da coletividade (MEINERZ, 2008). Para Benjamin, vivência (erlebnis), na acepção de presenciar um evento de forma particular, ligado ao seu cotidiano e apartado da coletividade, se opõe à experiência (erfahrung), conhecimento que se acumula, desdobrando-se da vida particular à coletividade, sedimentando as coisas no tempo: “Significa o modo de vida que pressupõe o mesmo universo de linguagem e de práticas associando a vida particular à vida coletiva e estabelecendo um fluxo de correspondências alimentado pela memória” (MEINERZ, 2008: 18). A vivência tem se sobreposto à experiência, sobretudo em uma sociedade que tem se caracterizado cada vez mais pelo uso de uma comunicação eletrônica que se, por um lado, aproxima, por outro, distância as pessoas, já que na comunicação mediatizada pela eletrônica não se necessita mais da presença física de seus comunicantes. A pobreza de experiência, segundo Benjamin (1996), vem ocorrendo desde o início do período industrial, e ela se dá porque os meios de produção dominam o ser humano, e não o inverso, como ocorria na sociedade medieval. Logo, Walter Benjamin nos apresenta pessoas alienadas, dominadas pelos meios de produção. Nesse sentido, o trabalho é elemento fundamental para se entender a experiência aludida por Benjamin. Na produção artesanal, o trabalhador é dono e conhecedor de seu modo de produção, sendo capaz de transmitir suas habilidades, suas experiências. - 66 -

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Em seu texto de 1933, Experiência e pobreza, Benjamin (1996) começa por uma parábola que lia na infância, na qual um velho, em seu leito de morte, revela aos filhos que há um tesouro em seu vinhedo. Os filhos cavam a terra para procurar o tesouro e nada encontram, mas, quando vem o outono e as vinhas dão uma produção bem maior se comparada à de outras da região, descobrem que a riqueza está no trabalho. Nesse momento, compreendem que seu pai lhes transmitiu uma experiência. Em outro texto, O narrador, Benjamin, para quem a narrativa é uma forma de trocar experiências, afirma que os artífices aperfeiçoaram a arte de narrar: O mestre sedentário e os aprendizes migrantes trabalhavam juntos na mesma oficina; cada mestre tinha sido um aprendiz ambulante antes de se fixar em sua pátria ou no estrangeiro. Se os camponeses e os marujos foram os primeiros mestres da arte de narrar, foram os artífices que a aperfeiçoaram (1996: 199).

Assim, antes de se tornarem mestres, os aprendizes erravam em diversos lugares, aprendendo, acumulando experiências, até se fixarem como mestre em determinado lugar. O aprendiz, assim como o mestre, carregava na memória (a mais épica das faculdades, segundo Benjamin (1996)) e no corpo (o autor destaca a mão como importante elemento na intervenção narrativa) os saberes, as tradições populares: “O grande narrador tem sempre suas raízes no povo, principalmente nas camadas artesanais” (BENJAMIN, 1996: 214). Para Benjamin, a I Guerra Mundial (1914-1918), ao invés de aumentar, provocou uma pobreza de experiência; por isso o autor refuncionaliza o conceito de barbárie de maneira positiva, afirmando que as melhores cabeças têm se ajustado aos novos tempos, demonstrando total desilusão com o seu século. Assumir a barbárie é possibilitar que o bárbaro construa o novo sem olhar para os lados, pois, entre os grandes criadores, existem aqueles que operam com base na tábula rasa (BENJAMIN, 1996). Dessa maneira, o teatro de hoje deve ser feito para uma era científica, como afirmou Bertolt Brecht (2005). - 67 -

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Todos os dias, nos jornais, há uma profusão de notícias sobre o mundo todo, mas continuamos pobres de histórias surpreendentes, isso porque elas já vêm com as explicações (BENJAMIN, 1996). Assim, o grupo teatral, ao se colocar na rua, não deve levar explicações, mas provocações para um debate, forçando o espectador a tomar posição e a formular sua própria explicação. Dessa forma, conservará o que viu e ouviu, porque construiu junto. Por isso, um grupo teatral que opta pelo espaço aberto deve apresentar obras abertas, esponjosas, para que elas sejam um elemento disparador da troca de experiência. Por outro lado, é necessário analisar a história a contrapelo (BENJAMIN, 1996), levando à cena os subsumidos, aqueles que não aparecem nos livros, de maneira que o público identifique seus vínculos com o passado. Dessa forma, por ser uma produção ainda artesanal, o teatro produzido em grupo se torna portador dos elementos aludidos por Benjamin (1996), isto é, capaz de portar e transmitir uma experiência acumulada e, ao se colocar no espaço aberto, trocar com o público, porque faz seu teatro de maneira conjunta. Um espetáculo que acontece em espaço fechado, em geral, é divulgado pela mídia, ou dele distribuem-se cartazes, filipetas... Há, enfim, uma convocação do público que, por sua vez, se programa e se prepara para ir assistir ao espetáculo. De modo geral, as regras estão estabelecidas: chegar antes, comprar o ingresso ou retirar o convite, entrar na sala e esperar o terceiro sinal, antes do início do espetáculo. E, nesse ínterim, ouve-se a solicitação para desligar celulares ou quaisquer outros instrumentos que possam vir a quebrar o silêncio necessário para a fruição do espetáculo. As regras, em geral, estão internalizadas; se alguém rompê-las, será repreendido pelos próprios espectadores, que são o seu guardião e possíveis censores do seu descumprimento. Na rua, ainda que haja convocação, a grande maioria do público é sempre espontânea. Não há regras pré-combinadas, universalmente aceitas. Elas são estabelecidas ali no espaço aberto pelos atores e público. O espetáculo se inicia, em certa medida, com a chegada do grupo teatral, que - 68 -

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começa a se preparar, a preparar a cena e as pessoas para o que vai ocorrer. Estabelece-se uma relação que busca propiciar a fruição do espetáculo, que pode vir por água abaixo a qualquer momento, pois mesmo aquilo que foi combinado pode ser rompido, por ser um espaço de todos, onde, por isso mesmo, todos podem interferir. Desse ponto de vista, apresentar-se na rua é sempre um risco e, ao mesmo tempo, é sempre uma assembleia, já que as regras são construídas coletivamente. De qualquer forma, a observação que se faz aqui não tem juízo de valor, não se trata de afirmar que um teatro seja melhor do que o outro; trata-se tão somente de demonstrar as diferenças no que concerne à relação com o público. Para ilustrar o que se afirmou, vale citar alguns exemplos vivenciados pelo autor desse texto, sendo que todos eles foram também vivenciados pelos demais integrantes do Buraco d`Oráculo; logo, passível de ocorrer com qualquer grupo que se coloca no espaço aberto. Os exemplos podem auxiliar na compreensão da relação estabelecida na rua, visando à formação de um espaço cênico para apresentação de um espetáculo e de como as interferências do público também constroem o espaço cênico e o espetáculo. Vale ressaltar que os exemplos não se limitam aos espetáculos aqui analisados. São nos momentos que antecedem o espetáculo que se constroem as relações, que se criam afinidades com o lugar e com as pessoas. Nas comunidades, até por desconfiança dos adultos, quem sempre se aproxima primeiro dos atores são as crianças, que têm grande curiosidade. No Jardim Palanque, conjunto habitacional em Cidade Tiradentes, durante a realização do Projeto Circular Cohab`s16, em 2007, com o espetáculo A bela adormecida, muitas foram as crianças que ajudaram a carregar os objetos cênicos e a montar os adereços. É por meio delas que se chega às demais pessoas, especialmente em um lugar onde nunca teve nada, como relatou 16 Projeto realizado de 2005 a 2007, inicialmente com recursos do Programa de Valorização as Iniciativas Culturais (VAI) e depois com o Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo. O circuito ocorria nos fins de semana e passou por dezoito comunidades, atingindo um público de mais de trinta mil espectadores.

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um morador. Essa primeira aproximação é também espaço educativo para todos. Para os atores, é o momento de lidar com situações e pessoas em condições diferentes daquelas de seu cotidiano. Para o público, é o momento, muitas vezes, de entender que a obra não é efêmera, no sentido de ser apresentada uma única vez. No Jardim Palanque, ao término da apresentação, muitas crianças queriam levar para casa os adereços do espetáculo, o que nos levava a explicar que ele seria apresentado em outros lugares e que, por essa razão, não havia como fazer novos adereços a cada nova apresentação. Além disso, o final de cada espetáculo é o momento que o público tem de tocar nos adereços depois de ver sua funcionalidade em cena, de tocar nos instrumentos musicais. Existe a necessidade de aplacar, de saciar essa curiosidade e de aprender. Saciada a curiosidade, a relação se altera nos espetáculos seguintes, isto porque há mais proximidade entre atores e público. Prova disso é que o público passa a ter mais cuidado com os objetos de cena. Durante a cena propriamente dita, há diversas interferências, inclusive aquelas capazes de destruir um espetáculo, afinal estar na rua é sempre andar na corda bamba. Na temporada no centro da cidade de São Paulo, na Praça do Patriarca, com o espetáculo A farsa do bom enganador, em 2006, uma moradora de rua entrou em cena para comprar o tecido que servia de mote para o desenrolar da trama.17 Se a compra fosse efetivada, o espetáculo findaria. Edson Paulo era o vendedor e Adailtom Alves, o comprador que pretendia dar o golpe: comprar fiado e não pagar. A mulher entrou em cena e começou a jogar com os atores: a cada fala, ela também dizia outra, como se o diálogo tivesse sido combinado. O público ria muito, pois o jogo dela era ágil, típico do universo farsesco. Isso foi ótimo porque o espetáculo estava no início. Como havia muito texto, todos os atores estavam incomodados, certos de que o espetáculo não daria certo na rua. A interferência 17 O espetáculo é uma adaptação de A farsa do mestre Pierre Pathelin, de autor desconhecido. É a história de um golpe dado por um advogado falido em um comerciante, que compra seu tecido, a quem o advogado pede que venha receber o dinheiro em sua casa. Quando o comerciante chega para cobrar o dinheiro, o advogado, auxiliado pela esposa, arma o golpe, fingindo-se doente há muito tempo. Logo, seria improvável que ele fosse o autor da compra do tecido.

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dessa mulher fez com que os atores acreditassem novamente na peça. O mesmo público que gosta de interferências – pois, em certa medida, elas desafiam a convenção estabelecida do que é cena, quem são os atores e quem é o público – também impõe os limites dessas interferências. Nesse dia, após pôr à prova os atores, o público quis também assistir ao espetáculo e acompanhar a história. A mulher continuou a interferir, até o momento em que o público começou a limitar essa interferência com falas do tipo “já deu!”, pedindo silêncio. A certa altura, a mulher entendeu e ficou na roda como os demais. O limite de interferência na rua é sempre muito delicado, pois pode “levantar” um espetáculo e pode também acabar com ele. Por isso, três elementos são frequentemente citados por todos aqueles que fazem teatro de rua: o bêbado, a criança e o cachorro. Não por acaso, todos sem limites. O cachorro, por ser animal; a criança, por ainda não ter as regras sociais internalizadas; e o bêbado, por ter optado por quebrar essas regras através da bebida. Assim, a presença dos três garante o jogo cênico, pois suas interferências provocam sempre a mudança na cena. Se, por um lado, há interferências que tornam o espetáculo mais bonito, mais crítico ou mais poético, por outro, existem as que não deixam a cena acontecer, mas nem por isso é menos teatro. Na 2a Mostra Olho da Rua, realizado pela Trupe Olho da Rua, na cidade de Santos (SP), ocorrida em janeiro de 2011, durante a primeira parte do espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, momento mais intimista, todo narrado enquanto se serve um café, a atriz Lu Coelho teve de dividir sua história com um senhor que também contava a própria história. Assim, não se ouvia o que a atriz contava nem o que o senhor dizia. A interferência começou como um diálogo: ela dizia quem era e de onde era, ele fazia o mesmo. Quando a atriz se deslocava em direção a outras pessoas, o senhor continuava a narrar a própria história. Exemplos desse tipo são inúmeros, pois “a vida tende a ser mais forte que qualquer arte”. Essa frase foi inserida no espetáculo, numa clara demonstração de que a arte, mesmo quando parte da realidade, não tem a mesma força que a vida. Ainda como exemplo, o autor desse texto presenciou uma cena - 71 -

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que ilustra a força da vida. IV Overdorse de Teatro de Rua, realizado pelo Movimento de Teatro de Rua de São Paulo, em 2005. Praça do Patriarca, centro da cidade de São Paulo. Overdose era uma mostra e também um ato político, com o intuito de chamar a atenção do poder público para o teatro de rua e para a ausência de políticas públicas para o setor. Uma atriz participante da programação apresentava uma pequena cena, representando uma migrante que procurava o marido, provavelmente morto pela violência no campo. Nas primeiras falas da atriz, uma moradora de rua, aproveitando-se do grande número de pessoas presentes, ao identificar-se com a violência narrada, quis falar um pouco de si, da condição a que estava submetida, dando bastante ênfase à violência policial que sofria quase todos os dias. Evidente que todas as atenções do público presente foram para a moradora de rua. A atriz, em um primeiro momento, tentou dialogar com ela, sem êxito. Então, sabiamente, parou e se retirou, aguardando o momento certo para realizar sua intervenção. Outro momento importante dessas relações são as conversas com o público, antes e após as apresentações dos espetáculos. É possível saber quem são as pessoas, onde moram, o que fazem. Da mesma forma, elas querem saber se só fazemos teatro, onde moramos. As conversas tendem a ter vários focos, da trivialidade a assuntos mais políticos; em ambos os casos (seja atores ou pessoas do público), tudo depende dos interlocutores. Mas, é nas conversas posteriores que é possível ter ideia do impacto da obra teatral na vida de muitas pessoas. Assim, é possível ouvir desde “eu estava triste, mas agora estou feliz, porque ri muito” até mesmo “essa é a minha situação. Vocês falaram de mim”. Mas há relatos mais difíceis e duros, sobretudo no centro da cidade de São Paulo. Na estreia de A farsa do bom enganador, em 2006, na Praça do Patriarca, um senhor de meia-idade conversou com os atores do Buraco d`Oráculo. Ele fez questão de ajudar a recolher o material cênico ao término da apresentação enquanto falava um pouco de si e de sua desilusão. Disse que estava “indo” se matar, quando se deparou com a roda e com o espetáculo. Afirmou que tinha rido muito e que isso o havia enchido de esperança. Todos os integrantes conversa- 72 -

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ram com ele sobre isso, com certa incredulidade. O grupo também não havia percebido, caso a história contada fosse verdadeira, o impacto que um espetáculo pode ter na vida de uma pessoa. Os integrantes do grupo, ao refletirem sobre isso, se deram conta da responsabilidade que é ir para a rua apresentar um espetáculo. Na semana seguinte, o homem retornou para avisar aos atores que havia arrumado um “bico” e que ele estava mais tranquilo. O fato de os atores terem parado para escutá-lo foi fundamental, a ponto de aquele senhor ter voltado para dar “um esclarecimento” sobre si. Isso demonstra que, nessa relação, ainda que temporária, foram estabelecidos laços afetivos e de confiança. Há exemplos de obras que apenas provocam o público, embora, por causa da forma como foram concebidas, elas não permitam interferência, fecham-se em si mesmas e, evidentemente, bloqueiam a comunicação com os espectadores. Não raras vezes isso é provocado pela inexperiência de quem está começando. A rua pede obras porosas, à semelhança de uma bucha que, simultaneamente, absorve e expele água; ao mesmo tempo em que pode ser moldada sobre pressão, é capaz de retomar sua forma original. Vale destacar um exemplo do próprio Buraco d`Oráculo: o espetáculo ComiCidade, criado com base nas histórias do kiogen (pequenas farsas japonesas). Dentre as quatro histórias, havia uma intitulada “Torre de barba”, que apresentava um homem machista que submetia a mulher a maus tratos. Ela se unia às vizinhas para se vingar. Nesse momento, as mulheres do público vibravam e indicavam maneiras de elas se vingarem. Mas os atores faziam ouvidos moucos, pois o espetáculo havia sido concebido de maneira fechada. Se fosse uma obra porosa, provavelmente as mulheres do público entrariam em cena para ajudar as atrizes a se vingarem do machista. Por essa limitação essa foi a obra menos apresentada do Buraco d`Oráculo.

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Primeiro rascunho de Edson Paulo para o texto O cuscuz fedegoso (1999).

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O cuscuz fedegoso feito pelo Buraco d`Oráculo Tomando a realidade da periferia nos seus mais variados aspectos, com vistas a traduzir o popular urbano, os integrantes do Buraco d`Oráculo observaram o modo de sobrevivência de inúmeras pessoas simples que moram nestas regiões e trabalham em outros lugares, sobretudo no centro da cidade. O foco era principalmente os trabalhadores informais e a série de violências a que estavam submetidos. O espetáculo O cuscuz fedegoso foi criado com base nessa pesquisa e apresentava quatro personagens, duas delas com claros vínculos nordestinos: uma quituteira e uma raizeira (vendedora de ervas). As demais personagens, um policial e um mendigo, representam, respectivamente, o poder repressor do Estado e aqueles que estão na denominada parte inferior da pirâmide social. Vejamos a sinopse do espetáculo: Dona Maria do Cuscuz vende seus quitutes nas ruas. Essas guloseimas são preparadas sem qualquer higiene. Entre seus doces destaca-se o cuscuz feito com fedegoso. Como não encontra comprador, oferece o cuscuz a um “esmolé” (pedinte), que, ao provar da iguaria, finge passar mal para não ter de pagar. Desesperada, Dona Maria pede ajuda à Mãezinha do Quixadá, uma charlatã que vende ervas medicinais. A “raizeira” irá aplicar toda a sua charlatanice para identificar a suposta doença do pedinte, procurando, de todas as maneiras, usar seus medicamentos no coitado, de forma que possa arrebanhar mais fregueses. Arma-se uma grande confusão, que só acaba com a chegada do Guarda Chicão, homem violento, que gosta de abusar do poder. Chicão desce a borracha em todos, para estabelecer a ordem e os “bons princípios” (MATE, 2009: 94-5).

Essa é a sinopse em sua redação final, isto é, relativa à última versão do espetáculo. No entanto, na leitura, é possível visualizar a grande confusão, quase um vale-tudo para poder ganhar o pão de cada dia. Prova disso é o fato de Maria oferecer cuscuz ao pedinte na tentativa de chamar a atenção de outros fregueses/público. No momento em que o pedinte finge passar - 75 -

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mal, Maria procura socorro e encontra Mãezinha do Quixadá disposta a usar todas as suas ervas, por deduzir que Maria pagará pela “consulta”. Assim, as personagens arrebanham o público para o espetáculo e chamam a atenção para a situação vivida por esses trabalhadores. Diversos foram os atores que participaram do processo de construção do espetáculo, que funcionou como laboratório para os integrantes do Buraco d`Oráculo. As invencionices, os achados e expedientes do processo passavam a integrar o espetáculo. O cuscuz fedegoso permaneceu por mais de quatro anos no repertório do grupo. Sua estreia ocorreu em 21 de setembro de 2002, na Praça Padre Aleixo Monteiro Mafra, popularmente conhecida como Praça do Forró, em São Miguel Paulista, no lançamento da Ação Cultural Se Essa Rua Fosse Minha, união de sete grupos18 teatrais de rua que se propuseram a descentralizar suas atividades. Foi nesse período que o Buraco d`Oráculo começou a realizar seus projetos em São Miguel Paulista e região. O espetáculo, em relação aos demais trabalhos dos outros grupos que propunham a descentralização, era bem diferente esteticamente. Edson Paulo, em entrevista a mim concedida em 20 de agosto de 2011, recordase de uma fala de Lincoln Rolim, integrante da Companhia Abacirco. Segundo ele, o Buraco d`Oráculo apresentava uma proposta diferenciada em relação aos demais grupos, mais próxima do camelô, enquanto os outros grupos tinham uma relação forte com o circo, com números circenses. O cuscuz fedegoso teve a direção de Atílio Garret, e o texto é de Edson Paulo, ator do grupo. O espetáculo estreou com Danilo Cavalcanti (Girió de Alencar), Edson Paulo (Resmelengo), Mônica Martins (Maria do Cuscuz) e Renata Câmara (Guarda Chicão), na época todos integrantes do grupo. Na versão final, os atores eram Adailtom Alves (Guarda Chicão), Edson Paulo (Resmelengo), Lu Coelho (Mãezinha do Quixadá19) e Mônica Martins (Maria do Cuscuz). Ao longo do processo mais dois atores chega18 Os grupos eram os seguintes: Bonecos Urbanos, Buraco d`Oráculo, Circo Navegador, Companhia Abacirco, Farândola Troupe, Monocirco e Núcleo Pavanelli de Teatro de Rua e Circo.

A personagem tinha a mesma função de Girió de Alencar; no entanto, a atriz Lu Coelho acrescentou uma característica de mãe de santo à raizeira. 19

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ram a ensaiar, mas nunca participaram propriamente do espetáculo finalizado: Flávio Laudares e Isaias Cardoso. O primeiro era integrante do Putz! Tipo Assim..., coletivo existente antes de se formar o Buraco d`Oráculo. O segundo ator participou do início do processo de montagem, no Tendal da Lapa, em 2001, onde se iniciaram os ensaios, levados depois para a rua. De forma sucinta, vale lembrar que o processo de ensaios sempre privilegiou espaços abertos, pois, mesmo no Tendal da Lapa, o grupo não ensaiava em sala fechada, mas sim em um espaço por onde circulavam diversas pessoas. Mas a gestação do espetáculo começou bem antes de 2001. Edson Paulo, na citada entrevista20, relembra que, apesar de não existir propriamente um roteiro ou um texto, a ideia vinha sendo elaborada desde o Putz! Tipo Assim.... Foi em 1997, recorda o ator, que Flávio Laudares começou a improvisar situações como Maria do Cuscuz. Para Edson Paulo, foi um processo longo e complexo que durou mais de quatro anos: “Tudo que discutíamos e íamos amadurecendo, experimentávamos no Cuscuz”. Por isso, o ator vê o espetáculo como divisor de águas, responsável pelo amadurecimento do grupo e do trabalho artístico. Selma Pavanelli, que sempre acompanhou o espetáculo na condição de espectadora, afirma, referindo-se aos atores, mas sem citar nomes, que “[...] algumas pessoas não ficavam muito à vontade na rua”. Entretanto, como assistiu ao espetáculo muitas vezes, acompanhou todo o seu desenvolvimento que, no seu entender, foi amadurecendo: “Antes [refere-se às primeiras apresentações], era mais uma brincadeira, uma ‘tiração de sarro’, e o espetáculo foi ficando cada vez mais político”. O espetáculo iniciava com um cortejo, uma chegança, elemento muito presente nas brincadeiras populares. Os atores delimitavam o espaço cênico em forma de meia arena, e as cenas desenrolavam-se de forma cumulativa, isto é, a cada nova personagem que adentrava o espaço cênico, formava-se um quadro, uma cena, tudo extremamente interligado, sequenA entrevista foi realizada com todos os integrantes do Buraco d`Oráculo: Edson Paulo, Heber Humberto Teixeira, Lu Coelho e Selma Pavanelli, em 20/08/2011; assim, todas as citações referemse a essa entrevista. 20

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cial, de modo a dar conta do universo tratado. Ao mendigo, por exemplo, sobrava apenas a astúcia para sobreviver. Quanto às demais personagens, a luta diária pela sobrevivência fazia com que tentassem “empurrar” suas mercadorias a todo possível cliente. A autoridade, além de manter a ordem com muita violência, era extremamente corrupta. Logo, era o trabalho informal que prevalecia na abordagem temática, e a astúcia se traduzia em tática do popular e elemento que realçava o tom farsesco do espetáculo. As personagens populares – Maria do Cuscuz, Resmelengo e Mãezinha do Quixadá (por ordem de entrada em cena) – eram muito picarescas e carismáticas. Elas estabeleciam grande empatia com o público nas mais variadas faixas etárias. As crianças gostavam do colorido e riam das estranhas figuras; os adultos acompanhavam as peripécias e muitas vezes se reconheciam nas situações difíceis e na opressão praticada pelo policial. A luta das personagens pela sobrevivência, travada diariamente, ainda é o retrato da realidade de inúmeros cidadãos paulistanos. O espetáculo, em seu processo de criação, contou primeiro com as personagens; depois, com as situações. Como a realidade social é o ponto de partida, dois momentos foram fundamentais para estruturar o espetáculo: o episódio da máfia dos fiscais21 e a violência policial na Favela Naval22, em Diadema. Mas 21 A máfia dos fiscais agiu de 1993 a 1999, mas só veio a público em 1998, depois da denúncia de uma empresária da Vila Madalena que quis abrir uma academia de ginástica e foi cobrada, em R$ 30.000,00, pelos fiscais da Administração Regional de Pinheiros. O caso foi bastante divulgado pela mídia. No início do ano seguinte, em 1999, vieram a público as denúncias nas Administrações Regionais da Sé e da Mooca, dessa vez com relação aos camelôs, sobretudo os do bairro do Brás, de quem os fiscais cobravam propinas mensais. Afonso José da Silva, conhecido por Afonso Camelô, foi quem fez as denúncias, após escapar de um atentado que o feriu gravemente. Depois de forte pressão dos camelôs e da mídia, as denúncias desencadearam uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigou o caso e cassou o mandato do vereador Hanna Garib, na época da situação, isto é, do governo de Celso Pitta (1997-2000 – Partido Progressista Brasileiro). A CPI apurou diversas práticas de corrupção. No caso específico dos camelôs, apurou-se que os vereadores indicavam os administradores regionais que, por sua vez, trabalhavam com fiscais que exigiam as propinas. O interessante é que dez anos depois, em 2008, o caso voltou a se repetir na mesma região, dessa vez na Feira da Madrugada do Brás. Afonso Camelô, que se tornou presidente do Sindicato dos Camelôs Independentes de São Paulo, foi morto no próprio sindicato em 15 de dezembro de 2010, com três tiros.

No dia 31 de março de 1997 o Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão, apresentou uma reportagem que tratava de Direitos Humanos e revelava a violência policial como um claro desrespeito aos mesmos. A partir de imagens colhidas por um cinegrafista amador, apresentava um grupo de

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devido a sua longa permanência em repertório, atravessou outro grande escândalo sobre o universo da corrupção: o mensalão no Governo Federal23. O espetáculo abordava exatamente a corrupção instalada nas mais diversas instâncias e a dificuldade de sobrevivência diante disso tudo, cabendo aos populares utilizarem a própria astúcia para continuarem vivos. Edson Paulo, na citada entrevista, lembra que o escândalo da máfia dos fiscais era a tônica no período que antecedeu a estreia do espetáculo. Por essa razão, a personagem do policial visava apresentar ao público o ambiente em que os camelôs tinham de trabalhar, marcado pela precariedade e corrupção. Por isso, quando o policial entrava em cena, afirmava que não podiam vender nada naquele lugar, a não ser “mediante uma boa quantia”. Quando veio a público o escândalo do mensalão, a fala foi modificada para “um pequeno mensalão”. Foi com esse espetáculo que o grupo começou a circular para além do bairro de São Miguel Paulista, o que, na concepção dos integrantes do grupo, fez com que eles avaliassem melhor sua relação com as comunidades e com o público lá residente. Todos os atores passaram a entender melhor o que significava estar nessas comunidades e que precisavam criar projetos para estabelecer uma relação mais efetiva. Em certa medida, a circulação policiais militares que extorquia dinheiro, humilhava, espancava e até matava pessoas em uma blitz realizada na Favela Naval, na cidade de Diadema/SP. Conhecido como Mensalão ou Esquema de compra de votos de parlamentares, o escândalo ocorreu no primeiro mandato do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006). O caso veio a público em maio de 2005 por meio da imprensa e apresentava, inicialmente, um caso de corrupção nos Correios. A estatal era dirigida por pessoas indicadas pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), que tinha como presidente o deputado Roberto Jefferson, que tornou popular o termo “mensalão”. Jeferson denunciou que a base aliada do Governo Federal, da qual ele próprio fazia parte, recebia periodicamente recursos do Partido dos Trabalhadores (PT) para apoiar determinadas votações. A Procuradoria Geral da República denunciou 40 nomes ao Supremo Tribunal Federal (STF), que julgou o caso em 2007. Em 2008 o esquema do mensalão teve novo desdobramento com a investigação por parte da Polícia Federal, onde se descobriu que a maior parte dos recursos para o mensalão vinha do Banco Opportunity, dirigido por Daniel Dantas. Na época do mensalão, o Ministro-Chefe da Casa Civil era José Dirceu, que foi afastado do cargo e depois teve seu mandato de Deputado Federal cassado em 1º de dezembro de 2005, ficando inelegível até 2015. Em 2012 o STF julgou o caso e condenou 25 pessoas, entre eles João Paulo Cunha, Valdemar Costa Neto, Pedro Henry, Marcos Valério, José Dirceu, José Genoino, Delúbio Soares, Roberto Jefferson, José Roberto Salgado, Bispo Rodrigues, entre tantos outros. Para o STF, ficou comprovado que houve favorecimento ao governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, graças à compra de apoio político.

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por outras comunidades, ainda que na mesma região, levou-os à consciência de pertencimento ao lugar e ao reconhecimento daquelas pessoas e de si próprias. Edson Paulo, no texto Você já foi a uma COHAB?, no instante em que se dirige à categoria teatral (ainda que esta não seja citada), revela esses momentos de descobertas. Começa questionando: “Você já foi ao Jardim Palanque? Sabe onde fica a Praça do 65? O conjunto Santa Etelvina VII-G?”. (2007:7) Depois, o ator descreve o encontro que teve com pessoas do Jardim Palanque, muitas delas, vindas da Vila Prudente, após um incêndio da favela onde moravam. O Jardim Palanque, apesar de estar próximo da residência do ator naquela época (Cidade Tiradentes), era desconhecida por ele: [...] Sem nenhuma sombra de dúvida o local nunca havia recebido qualquer tipo de manifestação artística, e estar distante de qualquer programação municipal ou de outro tipo: “por aqui não tem nem show de comício”, revelou um de seus moradores. Nosso encontro com esse local deu-se por meio de dois jovens (Rosário e Jones) líderes comunitários, que na força de seus 19 anos, sonham, lutam pela implantação de uma biblioteca comunitária e por atividades que tragam entretenimento, lazer e educação para os seus habitantes. Vimos nesses jovens e também em nossas apresentações o quanto é necessário estar fazendo ações, mesmo que pequenas, mas que quando somadas a outras resultarão em grandes transformações, se não para um mundo mais justo, servirão para a transformação do cidadão comum (2007: 7).

Em seguida, no mesmo texto, Edson Paulo reflete sobre a necessidade de desenvolver um processo contínuo de trabalho com essas comunidades: Descobrimos locais de grande circulação de público. Dos seis conjuntos habitacionais percorridos, três tiveram um público acima da média, o que nos fez refletir sobre a necessidade de um trabalho contínuo. Alguns espectadores assistiam ao primeiro espetáculo da janela de seus apartamentos, o segundo do outro lado da rua, o terceiro como parte da grande roda, no quarto faziam parte daquele acontecimento e depois queriam mais (2007: 7).

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Edson Paulo aborda aqui a aproximação com o público adulto; afinal, as crianças – ainda sem ou com poucos preconceitos – aproximavamse sem problemas. As temporadas do Circular Cohab`s, em cada comunidade, eram compostas de quatro espetáculos, um a cada domingo, num total de quatro apresentações ao longo de um mês. O público aumentava a cada dia, pois se estabeleciam laços de confiança. Em diversos lugares, os atores ficavam em dúvida quanto ao retorno do público no domingo seguinte, levando-se em conta que as pessoas estavam cansadas de ouvir promessas feitas por outras tantas pessoas que não as cumpriam. Dessa forma, O cuscuz fedegoso verticalizou a relação do grupo na zona leste de São Paulo e se desdobrou em um processo contínuo, pois, ao circular com o espetáculo, os integrantes começaram a ouvir as histórias dos lugares e das pessoas, passando a se reconhecerem nessas histórias e a perceberem como essas comunidades vêm sendo construídas por tantos trabalhadores. O processo gerou afetividade e vontade de aprofundar o conhecimento sobre os lugares e as pessoas, o que levou seus integrantes a registrarem as histórias ouvidas, resultando na montagem de Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem. Como o espetáculo O cuscuz fedegoso serviu de laboratório24, às vezes havia momentos de crise por parte dos atores, momentos de não compreensão daquilo que estavam realizando. Nesse sentido, duas apresentações foram marcantes, segundo Edson Paulo. A primeira ocorreu no Centro Educacional Unificado (CEU) São Carlos, em São Miguel Paulista, em comemoração ao primeiro ano daquele equipamento educacional e cultural. A segunda aconteceu em Recife (PE), no 2o Festival de Teatro de Antônio Januzelli (1992) afirma que a atuação exige dois níveis básicos de estudo: o analítico/ reflexivo e o prático/cênico. Sendo que o primeiro diz respeito à história encenada e à realidade na qual está inserido o grupo, e o segundo trata da preparação do instrumental de trabalho do ator. Para o autor, o laboratório diz respeito ao segundo caso – a parte prática –, isto é, à possibilidade de os atores experimentar, aprimorar o corpo, a voz, a emoção etc. e, ao mesmo tempo, aperfeiçoar e aprofundar a personagem. Assim, ao tratar o espetáculo O cuscuz fedegoso como laboratório para o grupo, Edson Paulo o vê como possibilidade de todos os participantes aprofundarem sua relação com a rua, com o público e com o tema tratado, ou seja, é o campo para aprofundamento e experimentação de conhecimentos artísticos e de mundo. 24

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Rua do Recife, realizado pelo Movimento de Teatro Popular de Pernambuco (MTP-PE). Ambas apresentações ocorreram em 2005: a primeira na quadra poliesportiva do CEU e a segunda numa comunidade periférica do Recife, por volta de onze horas da noite. As duas apresentações foram uma “bagunça” generalizada, o que levou os atores a pensarem que o espetáculo não comunicava a contento. Essa “bagunça”, em certos momentos, fugia ao controle dos atores. O fato é que as personagens eram tipos muito fortes que provocavam o público todo o tempo, e o público respondia na mesma medida. O salto qualitativo dos atores ocorreu no momento em que eles compreenderam que faltava mais jogo com os espectadores; afinal, se eles jogavam e o público correspondia, era preciso desenvolver as propostas, jogar o jogo. Assim, mesmo com roteiro fixo, o espetáculo se construía com o público, no momento de sua apresentação. Havia uma ondulação entre caos e ordem, gestada e desenvolvida no momento do espetáculo. As cenas eram cumulativas no que se refere ao desenvolvimento da trama, mas também do caos: entrava uma personagem por vez, formando um quadro que gerava certa confusão. Ao entrar a terceira personagem, por exemplo, problematizava-se a trama e a confusão aumentava. Selma Pavanelli, na condição de espectadora, relembra: O Guarda entrava no momento perfeito, porque estava um caos, e aí vinha aquela figura que controlava as demais. Ao mesmo tempo, era menos grotesco, contrastava com as outras personagens... Começava outra coisa, até se tornar o caos novamente.

Ainda em Recife ocorreu um fato curioso que revelou como o espetáculo ficava sempre aberto a novas inserções ou modificações. Estavam programadas duas apresentações no Festival. Depois de assistir à primeira, o ator Sérgio Diniz, do Teamu e Cia. (grupo pertencente ao MTP-PE, que organizou o Festival), cantou uma paródia do funk “Um tapinha não dói”, do grupo Furacão 2000, música bastante popular nas rádios naquele período. O refrão da música é o seguinte: - 82 -

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para muito Ser TÃO Ser muito mais Cuscuz Dói, um tapinha não dói Um tapinha não dói Um tapinha não dói Só um tapinha25

Sérgio Diniz cantou o refrão paródico em alusão à cena do Guarda Chicão e à sua violência: GOE26, um tapinha do GOE Um tapinha do GOE Um tapinha do GOE Só um tapinha

Na segunda apresentação do espetáculo no Festival foi inserido o refrão paródico, cantado e dançado por Maria do Cuscuz e Mãezinha do Quixadá, enquanto o policial batia em Resmelengo. Para completar essa cena, havia clara alusão ao episódio ocorrido na Favela Naval, em Diadema (SP), pois o Guarda Chicão pedia o pé de Resmelengo para bater em sua sola. O público sempre lembrava o fato, pois, no caso da Favela Naval, os policiais batiam na sola dos pés com um cacetete visando esconder possíveis escoriações causadas pelos espancamentos. A estética predominante em todo o espetáculo era a do grotesco, perceptível de diversas formas no espetáculo. Primeiro, nas próprias personagens, figuras estranhas e deformadas, como o mendigo que, ao tornar pública sua fome, fazia saltar de dentro de si o próprio estômago, que conversava com a raizeira e a quituteira. Essas figuras estranhas, aos olhos de várias pessoas, tornavam-se cômicas, mas também possibilitavam retratar e refratar a realidade de todos aqueles que assistiam ao espetáculo e que viviam, em diversos casos, a mesma e dura realidade. O que existia não era 25

Disponível em: http://letras.terra.com.br/furacao-2000/15575/. Consultado em 26/12/2011.

Grupo de Operações Especiais, ligado à Polícia Civil do Estado de São Paulo, criado em 1991. Entre suas atribuições estão à observância ao cumprimento de mandados de busca e apreensão e o gerenciamento de crises, como motins e distúrbios civis. 26

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propriamente identificação e, sim, estranhamento. Mas, naquele momento, atores e público tendiam a tornar-se um único coletivo. Aqui é possível entender a afirmação de Mikhail Bakhtin: “O portavoz do princípio material e corporal não é aqui nem o ser biológico isolado nem o egoísta indivíduo burguês, mas o povo, um povo que na sua evolução cresce e se renova constantemente” (1987: 17). Assim, aquelas figuras deformadas eram porta-vozes, por meio das situações vividas e do riso, de todo o povo (pelo menos do público da periferia, geralmente oprimido). Tratava-se do realismo grotesco, no qual, ainda segundo Mikhail Bakhtin (1987), o cósmico, o social e o corporal não se separam. Edson Paulo lembra que “[...] o espetáculo tinha muita coisa do baixo corporal, duplos sentidos, mas não tinha palavrão”. Lu Coelho, na mesma entrevista, relembra um episódio ocorrido em uma das apresentações realizadas no Parque Raul Seixas, em Itaquera, em que a coordenadora do parque havia conversado com os integrantes do grupo sobre a recorrência de palavrões no texto. Por essa razão, os integrantes do grupo repassaram o texto e constataram que não havia nenhum palavrão. Depois disso, os atores resolveram inserir dois palavrões, utilizando a proposição bakhtiniana do vocabulário da praça pública, ou seja, falar algo com outras conotações, apontando para além do que é explícito na fala. Assim, enquanto o policial batia no mendigo e, depois, solicitava que ele fosse embora, dizia: POLICIAL – Vais até tua mãe e retornes regenerado. RESMELENGO – Nossa, que poético! O que quer dizer? POLICIAL – Vai à puta que te pariu! (Bate no mendigo) RESMELENGO – E eu espero que o senhor visite os seus infernos corporais. POLICIAL – O que quer dizer isso? RESMELENGO – Vai tomar no cu! (Torna a apanhar do policial.)

Enquanto ocorria o espetáculo, sobretudo na última cena, em que entrava o policial, as personagens e o público irmanavam-se contra um mundo de opressão. Além da relação entre populares e polícia, que ao lon- 84 -

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go da história tem sido pouco amistosa, o fato de o policial ser a única personagem a representar o poder criava no público um desejo, ainda que fosse apenas simbólico, de “se vingar” do poder instituído, que, na sociedade capitalista, tem se caracterizado como um braço da burguesia, da classe opressora. Uma característica do realismo grotesco é o rebaixamento, isto é, “[...] a transferência ao plano material e corporal [...] de tudo que é elevado, espiritual, ideal e abstrato” (BAKHTIN, 1987: 17). Esse rebaixamento era operado no espetáculo no momento em que o Guarda Chicão, sem saber, tomava a urina do mendigo. Ao tomar esse “elixir”, revelava seus impulsos homossexuais e corria atrás do mendigo como se ele fosse o homem desejado. O mendigo, por sua vez, aproveitava para revidar todas as “borrachadas” recebidas do policial. Essa cena levou os integrantes do grupo a discutirem se não estariam reforçando o preconceito contra homossexuais. Nunca chegaram a um acordo sobre isso, mas quando a atriz Mônica Martins saiu do grupo, resolveram não mais apresentar o espetáculo. O rebaixamento está ligado a uma topografia (terra, órgãos genitais etc.), e a degradação que se opera nesse rebaixamento não é formal: Rebaixar consiste em aproximar da terra, entrar em comunhão com a terra concebida como um princípio de absorção e, ao mesmo tempo, nascimento: quando se degrada, amortalha-se e semeia-se simultaneamente, mata-se e dá-se a vida em seguida, mais e melhor (BAKHTIN, 1987: 19).

É como se, ao rebaixar o guarda, o povo – naquele momento representado pelos atores e pelo público – realizasse sua correção pelo renascimento, em que ele (o policial) seria melhor. Bakhtin (1987) chama a isso de “corpo social”. Por meio desse espetáculo, fica claro que o Buraco d`Oráculo cumpria a função de se aproximar de sua comunidade, como apresentado por - 85 -

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Alexandre Mate, no livro Buraco d`Oráculo: uma trupe paulistana de jogatores desfraldando espetáculos pelos espaços públicos da cidade, que conta a história dos dez primeiros anos de existência do grupo: A manifestação teatral que se aproxima de seu público (sua comunidade), sem restrições de quarta parede e de fossos de orquestra; impedimentos econômicos como a cobrança de ingressos; sem subestimar ou superestimar o público; sem exigir e impor silêncio sepulcral e contrição absolutos com relação à obra, e tantas outras exigências, efetivamente separatistas, podem repropor o espetáculo como festa e como encontro (2009: 30).

Para o Buraco d`Oráculo, foi um encontro com os seus. E no espetáculo ocorria a festa, a carnavalização, a inversão de um mundo opressor, ainda que durasse apenas o tempo da apresentação do espetáculo, mas que certamente os fazia extravasar as energias, que vinham a público durante a função. O espetáculo era um encontro com os seus e no seu “pedaço”. Por isso, das oitenta apresentações do espetáculo, sessenta e sete foram realizadas na Zona Leste da cidade de São Paulo, região onde moram e atuam os integrantes do Buraco d`Oráculo.

Histórias de um sertão urbano Se com o espetáculo O cuscuz fedegoso se pode afirmar que os integrantes do Buraco d`Oráculo mergulharam no território (ainda que nele já residissem) da Zona Leste, sobretudo com a circulação propiciada pelo projeto Circular Cohab`s, o processo de construção do espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem levou-os a uma extensa pesquisa sobre a identidade daquele povo, permitindo aprofundar o conhecimento sobre sua gente e sua classe e, por extensão, sobre eles próprios. Lucélia Coelho, em entrevista confirma essa proposição: - 86 -

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O Ser TÃO Ser dizíamos que já estava dentro de nós, porque vinha dessa relação, dessa troca com a comunidade. Só que a dimensão do público ainda não tinha aparecido e o espetáculo nasceu dessa ânsia de vermos essas pessoas em cena, como protagonistas de suas histórias.

Selma Pavanelli, na mesma entrevista, destaca a ideia de pertencimento: “Isso ficou claro quando percebi que não estamos fazendo a história deles, mas sim a nossa. Quando estamos ali atuando, é uma carga de muita gente”. É possível afirmar que o processo de pesquisa e de criação do espetáculo propiciou o salto qualitativo aos integrantes do grupo, no que concerne à consciência de classe, ao perceberem que a própria história é também a do outro, e que a história do outro, quando pertencente à mesma classe, é também a sua. Segundo Edson Paulo, esse é o processo criativo “mais autoral” do grupo. Perguntado sobre como tudo começou, Selma Pavanelli explica: “Ele não começou, veio vindo. É um processo que vem se formando, como todos os nossos projetos. Revisitar a nossa história, nos identificar com as pessoas nos lugares que nós apresentamos. Somos nós”. Ao completar dez anos, em 2008, o grupo Buraco d`Oráculo começou um processo de coleta de relatos, mesclando-os com as histórias de vida de seus integrantes, criando, assim, o espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, com estreia em 2009. A pesquisa é resultante de todas as histórias ouvidas desde o momento em que começaram a circular pelos conjuntos habitacionais em 2005 e, até mesmo, das histórias ouvidas desde 2002, em São Miguel Paulista (e desde sempre no seio familiar). Diante de acervo tão rico, o coletivo optou por representar as próprias comunidades, tomando como recorte a escassez de moradia. No espetáculo, há três instâncias relativas aos espaços visitados ao longo da pesquisa: uma ocupação de terra, uma favela e um conjunto habitacional. - 87 -

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Um elemento característico das personagens são os movimentos de desterritorialização e de territorialização, a saber, deixar seu lugar de origem e se apropriar de outro território (HAESBAERT, 2006a). Afinal, as personagens são todas migrantes que se encaminham para uma grande cidade, vindas especialmente do interior do Nordeste do Brasil. Portanto, nesse processo migratório, a quase totalidade das pessoas entrevistadas passaram pelo processo T-D-R (territorialização, desterritorialização e reterritorialização), ou seja, apropriaram-se de um território, perderam-no e se apropriaram de outro. Mesmo na migração interna, isto é, na própria cidade, ocorre o movimento T-D-R, pois numa cidade como São Paulo, em que foram coletadas as histórias, quando acontece a mudança de um bairro para o outro, ainda que em menor intensidade, é sempre um processo desterritorializador, já que cada “pedaço” é muito peculiar. Também não se pode esquecer que, pela imensidão de São Paulo, tanto em termos populacionais como em extensão territorial, existem muitos “estrangeiros” na própria cidade, pessoas que, não raras vezes, nascem, crescem e tornamse adultas conhecendo apenas uma ínfima parte da cidade. O processo de desterritorialização nunca é fácil nem tranquilo. Nesse sentido, Rogério Haesbaert (2006a e 2006b) deixa de analisar as perdas psicológicas dos sujeitos. Para ilustrar essas perdas, o ator Heber Humberto relembra, na citada entrevista, que, em 2010, o Jardim Pantanal, localizado na região do Itaim Paulista, tinha passado por enchentes e, em seguida, por um processo de desapropriação para a construção do maior parque linear do mundo. Ao entender que suas histórias são também as histórias dessas pessoas, e que o espetáculo trata de uma luta política por moradia, o grupo se dispôs, como fez em outros momentos, a realizar uma apresentação com o intuito de reunir pessoas, nessa região, com vistas a enfrentar o governo do estado de São Paulo a fim de deter o processo de desapropriação. Relembra Heber Humberto: Talvez essa seja a coisa mais forte para mim, no Ser TÃO Ser, saber que a nossa história é deles, e que a deles é nossa. Voltar àquela re-

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para muito Ser TÃO Ser muito mais Cuscuz gião onde apresentamos o espetáculo e onde ocorreram várias enchentes [Vila Nova Itaim]. O quanto foi forte para eu caminhar nas ruas e ver casas destruídas. Esse ano [2011], a enchente foi menor; mesmo assim era possível ver alguns lugares ainda com água... Eu entrei na casa de um senhor, um lugar que parecia um sítio e tinha uma árvore com quarenta anos de idade, que é o tempo que ele está ali. Ele mora bem próximo ao Rio [Tietê] e, do outro lado, as máquinas já estavam trabalhando. E conversamos sobre a retirada das pessoas daquele lugar e do quão forte é a relação deles com aquele lugar. Ele até falava de sair, mas queria uma quantia suficiente para poder ir para um lugar digno. Mas aí, você pensa, mesmo se derem um bom dinheiro, você analisa o quanto essas pessoas vão perder, porque é muito significativo aquele lugar para elas. E tudo isso... essas histórias, eu analiso, o quanto foram me construindo. (Grifo nosso).

O espetáculo trata da questão da moradia, tomando por base as histórias de vida coletadas em cinco comunidades da zona leste da cidade de São Paulo27, adotando, nessa coleta, a metodologia da história oral, já que nesse processo a “história de vida pode ser considerada um relato autobiográfico, mas do qual a escrita – que define a autobiografia – está ausente” (FREITAS, 2006: 21). E como toda pessoa é um ser social, cada narrativa apresenta um ponto de vista sobre a realidade vivida e acerca dessas comunidades. Mesmo tratando da questão relativa à moradia, Edson Paulo, na entrevista, lembra que foi o processo que se encaminhou para isso, não foi uma determinação desde o início: O legal é que nunca dissemos assim: vamos falar da terra, da questão da moradia. Não. Queríamos um espetáculo que falasse das pessoas, do entorno de nossa convivência. Aí a moradia era muito presente para essas pessoas e para nós. O mote era as pessoas. E depois de um momento turbulento no processo28, achamos nosso porto seguro em 27

As comunidades são: Vila Mara, União de Vila Nova, Cohab Prestes Maia, Jardim Lapena e Jardim Ipê.

Edson se refere ao conflito ocorrido com o então diretor Paulo de Moraes, que, segundo todos os integrantes do grupo, não compreendeu ou não entendeu muito bem a realidade na qual essas 28

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Buraco d`Oráculo: 15 anos de história nós mesmos, partindo de nossas histórias, não no sentido egocêntrico, mas no sentido de que em nossas histórias tem muito das histórias dessas pessoas, e vice-versa: somos moradores da Zona Leste, somos migrantes ou filhos de migrantes, buscamos também nosso chão. É o espetáculo que mais fala da gente!

Apesar de adotar a metodologia da história oral, que tem como finalidade criar fontes históricas (FREITAS, 2006), o espetáculo é obra ficcional, ainda que centrada na realidade. No processo de criação, tomou-se a liberdade de mesclar histórias e acontecimentos, de maneira a enriquecer as cenas e as personagens. Dessa forma, é possível afirmar, assim como fez Marcelo Soler (2010), que uma obra realizada com base em material histórico presentifica o passado, sem, no entanto, reproduzir a realidade. É uma forma de apresentar um ponto de vista sobre essa realidade. E uma obra artística é sempre resultante da experiência do seu tempo histórico (FISCHER, 1973), tomando ou não a realidade como elemento criativo, isto porque somos sujeitos históricos inseridos em determinado tempo e espaço, em determinadas condições históricas e sociais. Essa forma de criação, denominada por Marcelo Soler (2010) de teatro documentário, que faz questão de lembrar ter sido Erwin Piscator “[...] o primeiro a explicitar uma forma teatral com essa denominação” (SOLER, 2010: 48), pode também simplesmente ser chamada de teatro épico. Afinal, Piscator foi um dos criadores dessa “forma teatral” que rompeu com o drama, a fim de que a realidade, em todas as suas possibilidades, pudesse caber na cena teatral. Segundo Soler, apesar de defender a proposição de um teatro documentário, estaríamos “[...] diante de um gênero fortemente épico, tanto pela preocupação com a discussão sociopolítica, como pelo caráter narrativo, anti-ilusionista e fragmentado do discurso” (2010: 72). Por isso, afirmamos que o espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem é um espetáculo épico, criado a partir da realidade de muitos pessoas estavam inseridas e, por isso, não conseguiu encaminhar o processo da maneira que o grupo gostaria, provocando uma cisão entre o Buraco d`Oráculo e o diretor. Assim, os integrantes realizaram a dramaturgia e a direção que, neste caso, ficou a cargo do autor deste texto.

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cidadãos que habitam a parte leste da cidade de São Paulo e é, também, uma reflexão e uma refração sobre a realidade social presente em todas as grandes e médias cidades brasileiras. Aprendemos com Bertolt Brecht, em Cenas de rua, que “[...] o objetivo da representação é possibilitar uma apreciação crítica da ocorrência. Os meios de que se serve correspondem a este objetivo” (2005: 102). O espetáculo, dividido em quadros que se sucedem, é apresentado em dois lugares. O primeiro quadro é o das memórias. É narrativo, e foi experimentado de várias formas. Todos os atores desenvolveram uma narrativa na qual mesclavam parte de sua história pessoal com as histórias ouvidas. No processo, cada ator ficou em um determinado ponto. Concluída a narração, os atores encontravam-se, em uma alusão às suas vindas de diversos lugares. Depois, o espetáculo foi apresentado por estação ou processionalmente, com o público e os atores seguindo em cortejo. Em determinado momento, eles paravam e, a cada novo ponto, um ator contava a sua própria história. Mas o que permaneceu foi a escolha de um ponto onde todos os atores se reúnem. Dois deles (Edson Paulo e Lu Coelho) contam suas histórias, enquanto isso, vai sendo preparado um café, que é servido ao público. O café foi inserido na cena devido a necessidade de aguçar outros sentidos para além do visual e do auditivo, a saber, o olfato e o paladar que, com as histórias, provocam a rememoração no público. Nesse sentido, é possível afirmar que o espetáculo cria possibilidades de suspensão do tempo, de modo que o público possa relembrar situações vivenciadas. Depois desse quadro, atores e público deslocam-se para outro ponto, como forma de representar a mudança de lugar: a saída de uma cidade em direção a outra. É a chegada na cidade grande. No ponto escolhido, desdobra-se o restante do espetáculo: uma ocupação de terra, uma favela e um conjunto habitacional popular. O espetáculo não se atém à determinação de tempo, mas, pelos lugares ocupados, pelos figurinos e pelas músicas, é perceptível uma abrangência de tempo bastante grande. Nesta etapa do espetáculo, a primeira parte refere-se à chegada dos migrantes e à ocupação da terra, o que os leva ao enfrentamento com a - 91 -

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polícia, no qual uma pessoa morre. Depois da morte da personagem, representada por Lu Coelho, são inseridas falas reais de pessoas que estão em ocupações, lutando por moradia. Mesclar ficção e realidade, por meio de falas gravadas, provoca distanciamento, no sentido brechtiano, ou seja, propõe aos espectadores a reflexão, ao invés da identificação com a personagem, subsumindo na emoção. “A atitude do espectador não será menos artística por ser crítica. O efeito de distanciamento, quando descrito, resulta muito menos natural do que quando realizado na prática” (BRECHT, 2005: 110). Mas este não é um único elemento de distanciamento no espetáculo. Músicas são utilizadas como complemento à dramaturgia, ao mesmo tempo em que produzem um corte nos acontecimentos em cena. Martin Eikmeier (2009), que se dedica à música na Companhia do Latão, compreende que, no século XX, as artes políticas usaram a música buscando romper com as tendências dominantes, isto é, apenas como elemento que reforça a emoção. Outros recursos são a utilização da quebra da cena para narrativas diretas realizadas pelos atores e não pelas personagens, uso de documentos reais, o que leva o espectador a compreender a presentificação na cena do real (SOLER, 2010). Na cena seguinte, a da favela, há uma exposição da luta travada entre o direito à moradia e a especulação imobiliária. Duas personagens – Costela (Heber Humberto) e Buchada (Edson Paulo) – realizam os preparativos do espaço para a festa de casamento do segundo personagem. Para tanto, necessitam fazer um “gato”29 para iluminar a festa, que deve ocorrer proximamente a um campo de futebol. No entanto, Costela informa que o campo vai desaparecer porque ali será construído um shopping. A personagem de Lu Coelho tenta mobilizar a comunidade para que os moradores não sejam despejados; no entanto, na hora da festa do casamento, começa a desapropriação, e as máquinas começam a derrubar “os barracos”. Essa luta ocorre diariamente em São Paulo e em outros lugares do 29

Nesse caso, ou na acepção aqui adotada, trata-se do uso da corrente elétrica sem o devido pagamento.

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mundo, como afirma Mariana Fix: “No caso do setor imobiliário, eles são responsáveis por empreendimentos que aumentam a concentração de renda e a segregação espacial, e direcionam os fundos públicos em benefício próprio” (2007: 150). Essa é a lógica do capital, que utiliza o Estado, em todas as suas instâncias – unidades federativas e municípios –, no concernente ao que se tem denominado “parcerias” público-privadas. Mas, conforme alerta o geógrafo David Harvey em seu livro Espaços de esperança: “A parceria entre o poder público e a iniciativa privada significa que o poder público entra com os riscos e a iniciativa privada fica com os lucros. Os cidadãos ficam à espera de benefícios que nunca chegam” (2006: 190). Continua o autor: [...] Trata-se da racionalidade suprema do mercado versus a tola irracionalidade de tudo o que não seja o mercado. E todas as instituições que poderiam ter ajudado a moldar alguma alternativa foram suprimidas ou [...] reduzidas à submissão. Nós, o povo, não temos o direito de escolher o tipo de cidade que vamos habitar (HARVEY, 2006: 205).

A terceira cena transcorre em um conjunto habitacional popular que, em geral, são prédios construídos pelos governos de plantão sem a participação popular. Esses imóveis, via de regra, são minúsculos apartamentos. Ainda que representem avanços do ponto de vista da urbanização, seu entorno, na maioria das vezes, não conta com infraestrutura. Na verdade, não passam de pequenas “caixas” destinadas à moradia. Por isso mesmo, as personagens se comunicam através de janelas. O que se constatou no processo de pesquisa foi que, nesses espaços – talvez pela ausência de participação –, as pessoas tendem a ressaltar o individualismo, em lugar do coletivismo dos outros espaços (ocupação e favela). Apesar da imensa quantidade de pessoas, é como se elas vivessem isoladas. Nesse sentido, as políticas de governo cumprem mais uma vez o papel do capital, desagregando o coletivo. Como afirma Bauman: “Com os - 93 -

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fatores supraindividuais moldando o curso de uma vida individual longe dos olhos e do pensamento, o valor agregado de ‘unir forças’ e ‘ficar lado a lado’ é difícil de ser reconhecido” (2008: 17). Mais à frente, insiste o autor: Os tempos de combate direto entre o “dominante” e o “dominado”, corporificado em instituições panópticas de vigilância e doutrinação diárias, parece ter sido substituído (ou estar em curso de ser substituído) por meios mais limpos, elegantes, flexíveis e econômicos. [...] O descomprometimento é o mais atrativo e praticado jogo da cidade hoje em dia (BAUMAN, 2008: 20).

Trata-se, é claro, da própria lógica do capital, a saber, ver-nos uns aos outros como adversários. E como nos conjuntos habitacionais as pessoas não lutaram juntas, como em boa parte das demais comunidades, não criaram laços umas com as outras. Mas Bauman se refere também à precarização a que estamos todos submetidos. “Empilhar” pessoas em prédios populares, em geral construídos em lugares muito afastados de tudo, quase sem nenhuma infraestrutura, é também reflexo desse jogo de precarização. Por meio de uma música coletada no movimento social, os atores finalizam o espetáculo convidando o público para a luta, chamando a atenção de todos para que se vejam e percebam que são muitos: “Se o povo soubesse o valor que ele tem, não aguentava desaforo de ninguém!”. Todo o processo de construção do espetáculo foi muito rico e contraditório ao mesmo tempo. No entanto, os atores tomaram consciência de que a arte precisa cumprir sua função social. “Como um ramo social, coletivo de arte, o teatro enfatiza a mudança social, em como o mundo pode ser mudado e em porque ele precisa ser mudado” (PRENTKI, 2009: 25). Lucélia Coelho expressou-se nesses termos na entrevista citada: “Não existe não querer mudar essa realidade”. Interessado por mudanças, o teatro pode cumprir o papel contra-hegemônico; por isso, a atriz entende que “[...] precisamos cada vez mais da teoria, não para virarmos papagaios, mas para falarmos com a mesma força que o inimigo”. No entanto, certa angústia permanece, pois querem - 94 -

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mais. Ao longo da entrevista, percebe-se certo tom angustiante na fala de todos, mas reproduzo aqui apenas a de Edson Paulo: Eu ainda me sinto incomodado, porque tomamos consciência, mas o que estamos fazendo para mudar a realidade? A circulação, o contato com essas pessoas é uma ação? É. As discussões? É. Mas eu acho que ainda falta algo mais contundente, e aí não sei se é pelo espetáculo... Se despertamos, como é que agimos nisso? Será que também não ficamos acomodados?

Durante a entrevista, Lucélia Coelho afirma que “[...] não se pode entrar em desespero”. Selma Pavanelli, por sua vez, afirma que “[...] não sabem construir o novo, mas têm plena certeza de que não querem o que está aí”. Heber Humberto refere-se à necessidade de “[...] algo prático, para além do espetáculo”. Edson Paulo arremata: “O processo de Ser TÃO Ser nos deixou ‘malucos’ e, com certeza, toda essa conscientização veio no decorrer desse processo”. Em última análise, essas afirmações servirão para demonstrar o esclarecimento dos atores com relação à realidade na qual estão inseridos, confirmando a máxima de Julian Beck, que afirma que o teatro deve servir para esclarecer, pelo menos, quem faz. Ou ainda: “O teatro é um meio comunitário para tentar compreender a vida. [...] Por isso, é preciso fazer teatro. Hoje, diria, acima de tudo fazer teatro de rua para mudar a vida de todos os dias [...]” (Apud CRUCIANI; FALLETTI, 1999: 90). A arte que o Buraco d`Oráculo tem buscado praticar, como lembra Edson Paulo, é aquela “[...] como o do poema Nova poética, de Manuel Bandeira”: Vou lançar a teoria do poeta sórdido. Poeta sórdido: Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida. Vai um sujeito. Sai um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito bem [engomado, e na primeira esquina passa um caminhão,

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Buraco d`Oráculo: 15 anos de história [salpica-lhe o paletó ou a calça de uma nódoa de lama: É a vida. O poema deve ser como a nódoa no brim: Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero. Sei que a poesia é também orvalho. Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens cem [por cento e as amadas que envelheceram sem maldade.

(BANDEIRA, 1993: 205). No entanto, isso não significa que os atores estão preocupados apenas com o conteúdo a ser levado para os espetáculos. A questão técnica não é deixada de lado. Todos eles falaram sobre a necessidade de apropriação do seu instrumental de trabalho, seu corpo e sua voz. “O processo deixou claro que nós precisamos ter propriedade e qualidade no que estamos fazendo para levar ao público o que queremos. Não dá para levar qualquer coisa e de qualquer jeito”, afirma Edson Paulo. Por isso mesmo, desde 2008, os atores vêm estudando percussão com Celso Nascimento, canto com Melissa Maranhão e trabalho de corpo com Paulo de Moraes – o trabalho de corpo foi interrompido em 2009 e retomado em 2011, com Elizete Gomes. Para Lu Coelho, é por meio de sua arte que ela fala com o mundo. Por isso, é preciso estar bem preparado, “porque um discurso político, você vai lá e diz. Agora o espetáculo é diferente, precisa de preparo”, afirma a atriz. A criação de Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem levou o grupo a um novo processo, sobre o qual está debruçado, a saber, a precarização do trabalho. Essa foi uma tentativa de os integrantes do grupo buscarem entender por que essas pessoas estão nessas comunidades, isto é, por que elas estão na base da pirâmide social, ocupando postos precários de trabalho. Mas isso é outra história...

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TERCEIRA PARTE

Ser TÃO Ser para ser sertão

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Fonte – Arquivo do grupo. Foto: Edson Paulo

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Vista do bairro União de Vila Nova. A árvore com as casas ao fundo tornou-se a ilustração símbolo do Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem.

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Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem Criação coletiva do Buraco d`Oráculo Cena 1 – Cafés Os atores se encontram na casa de Lurdinha, onde ela prepara um café. Chegam de pontos diferentes. Cada ator leva consigo um baú/mochila às costas. Depositam os baús ao chão. Cantam Cálix Bento. Dois atores contam suas histórias.30 Zé da Cruz José Alves da Cruz, Zé da Cruz a seu dispor; um sertanejo baiano, filho de uma grande família despedaçada pela dificuldade da vida. Lá em casa nós semos em oito. Oito irmãos... Faz tempo que não vejo ninguém... tão tudo espalhado pelo mundo afora! Partiram, cada um prum canto. Eu também tô de partida, que boi é vaca em pasto alheio, preciso arrumar meu pasto. Todo mundo já se arribou, eu sou o último, mas também vou arribar. Resisti, mas num dá mais, aqui num dá mais. Não é fácil deixar a terra da gente, onde se é criado, mas se não há condições o que se pode fazer?! Durante o processo cada ator criou uma história que misturava as que havia escutado com as suas próprias. Inicialmente o objetivo era que cada ator, ao narrar sua história, fizesse café no ponto em que estava ocupando. Depois esse início foi apresentado de diversas formas: atores em pontos diferentes contando suas histórias; de forma processional, a cada ponto (estação) um ator ou atriz contava sua história. Mas, por fim, optou-se pelo formato em que todos se encontram na casa de Lurdinha e apenas ela e José Justino narram suas histórias. Depois seguem para outro ponto. 30

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Mas vou sentir saudade desse lugar, dessa gente... Eu lembro de minha mãe... Ela acordava cedinho, antes de todo mundo e passava o café pro meu pai ir pra roça. Depois ia acordando os fio: “Levanta minino, que o sol já vai alto!” Os que ia trabaiá era acordado junto com o pai... Só foi eu crescer um bucadinho e já era acordado na mesma hora que meu pai. A vida não vem de graça. Depois de beber o café, seguia todo mundo pra roça! (para si) Trabaiá de sol a sol... Mais amargo que café... oito ano e já pegava na enxada... (voltando) Quando tinha cuscuz, se tomava café com cuscuz, se não, era puro mesmo!... (para o público) Já bebeu café com cuscuz? E café amargo? Eu não gosto de café amargo, por isso já coloco o açúcar junto com o danado. Cada um tem uma forma de fazer café, não é mesmo? Tô partindo, gente, porque o dinheiro que se ganha aqui é tão pouco que num dá nem pra comprar uma corda pra morrer enforcado. Mas eu sei que vou sofrer solidão, vou sentir falta desse povo, desse lugá... vou fazer minha vida, aqui já não tem trabaio. O homem desempregado é como boi que está amarrado num pau no meio do pasto. Num dia ele come tudo em volta. Mas no outro dia o dono se compadece dele e muda de lugar. Eu sou como boi amarrado que o dono não muda de lugar. Então, se eu vivo na incerteza, vou viver na incerteza longe daqui! Vou caminhar, que caminhar é ter falta de lugar! Caminhar é ter falta de lugar! É hora de deixar tudo o que sei e o que sou e partir em busca do que nem sei que sou. Pôr o pé na estrada, um outro lugar, uma outra gente, uma nova vida me espera. A gente escreve a própria história; e, quando ela se junta com a história do outro, é outra história, é muito mais bonita! Minha gente, cês pode me seguir, pode me acompanhar que pra onde eu vou tem mais história. Porque todo mundo é assim: começa onde nasce, termina onde escolhe ou onde der. Manuel Azevedo Sou Manuel Azevedo, mas pode me chamar de Manuzinho. Quando eu era pequenininho meu pai morreu. Nóis ficou sem pai. Minha mãe - 100 -

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ficou uns 6 anos sozinha, dispois arrumou um senhor e casaram. Tudo que nóis ajuntou foi só pra ladrão... Inclusive, quem casou esse véio fui eu, por causa que ele num tinha dinheiro nem pro terno. E foi com esse véio, pai de criação que num tinha dinheiro, que nóis foi vivendo... Foi vivendo... A gente cresce sempre sem saber pra onde. Viver sempre vale a pena, mas é um negócio muito perigoso! Naquele tempo, lá no norte, onde nóis amorava, era dificulitoso. Vai rolando a situação, a minha mãe adoeceu, e médico naquela região é dificulitoso. Daí minha mãe morreu. Aí o véio, ao invés de me criar, bolou de tomar a fazenda. Cismou com a minha cara! Me chamou de condenado do diabo e disse que ia dar fim em mim. Eu disse: “O quê?! Vou largar tudo, me picar no mundo!”. E fiz isso mesmo: abandonei tudo, me piquei no mundo. O que assenta justo é cada um fugir do que bem não se pertence: o bom longe do ruim, o são longe do doente, o vivo longe do morto, o frio longe do quente. Só levei a cuia presa no cinturão e vim vivê aqui com o ganho de minha profissão. Cuido da minha vida, subo essa serra, corto esse chão. Foi aí que eu conheci a mulher mais linda desse diacho de mundo. Uma coisa linda pra iluminar minha vida de amor. A flor do amor tem muitos nomes e a minha se chama Rosa. Eu e Rosa, nóis fiquemo de namoro por debaixo dos pano, por causa que o pai dela é bravo. Açogueiro! Toma umas cajubina desgraçada, é metidão a facãozeiro. É malvado e não alisa. Eu tenho medo, mas eu e Rosa bolemo de fugir... morar numa palhoça, continuar uma roça, fazer verso e prosa. Tô enamorado de Rosa... E só ando pra lá, porque pra trás não existe família. Mas sofrimento passado é glória, é sal em cinza. O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta, esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. A vida vai, mas vem vindo. Aí a gente quer alguma coisa que viu, e eu vi a Rosa. E é por isso que quando eu morrer eu cuido dela, e quando ela morrer ela cuida de mim. Agora, se os senhores quiserem escutar mais histórias como esta, me acompanhem. - 101 -

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José Justino Sou José Justino Ventura, morador de um oco de mundo, de uma terra esquecida por meu Deus. Assim como meu pai e meu avô, sempre morei numa terra que não me pertencia, até que um dia, chegou alguém que se dizia dono da terra, com papel na mão e tudo... e me pois pra fora. Nisso, vim pará aqui, em um lugar que já não é mais meu, pois ponham reparo, estou de partida. Sou José Justino Ventura, mas conhecido como Zé da Déia. Déia é minha mulher, Valdinéia. Minha mulher que não vejo há três anos. Faz três anos que Valdinéia foi-se embora, foi atrás de Reginaldo. Reginaldo é meu filho mais velho, o primeiro a partir, ou melhor, que eu fiz partir. As coisas por aqui nunca foram das melhores e está cada vez pior, vale até dizer o ditado: “Já não dá mais nem para comer, só pra lamber”. Então vocês há de me dar razão: vocês podem até passar fome, não ter o que vestir, não ter instrução nenhuma na vida, mas ver um filho seu vivendo essa mesma penúria é de doer o coração, não é verdade? Pois então! Sabendo que uns parentes meus estavam numa situação melhor que a minha lá na cidade grande, mandei Reginaldo morar com os parentes. Parente? Parente mesmo é pai, mãe e os irmãos. Mas no dia da partida do menino foi bonito de ver, parecia que toda a cidade estava na rodoviária pra se despedir do menino. Cabra frouxo! Os olhos se derramava em lágrima. Levava uma única muda de roupa, mas ia muito bem vestido. Ia muito bem vestido que é pra quando chegar lá, os parentes visse que nós tamo passando necessidades, mas nós num é nenhum esmolé. A Déia, minha mulher, fez uma farofa de galinha assada... e aquilo foi a garantia de comida durante os três dias de viagem. Pra consolar, falei que as pessoa que tava com ele, naquele ônibus, era a família dele. Família? Família mesmo, é pai, mãe e os irmãos. Quando o ônibus partiu, soltou um grito choroso: “pai eu volto final do ano”. Não voltou nunca mais, não voltou nunca mais... Três anos depois mandou uma carta dizendo que lá na cidade grande dá prum home - 102 -

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viver melhor que aqui. Foi aí então que a Déia, a que mais se despedaçava em saudade, juntou os dois filhos que ficou e foi pra lá, atrás de Reginaldo. Ficando só eu, ficando eu sozinho. Mas né nada não, minha gente. Mês passado chegou outra carta de Reginaldo, falando que quer juntar novamente a família, que está precisando da força do pai. Se é assim eu vou, pois, como eu bem disse, família mesmo é pai, mãe e os irmãos. Hora de deixar tudo o que sei e o que sou e partir em busca do que nem sei que sou... Pôr o pé na estrada, um outro lugar, uma outra gente, uma nova vida me espera. Todo mundo é assim: começa onde nasce, termina onde escolhe. Lurdinha Nesse momento a atriz improvisa um diálogo com o ator que faz José Justino e o público, antes de iniciar a sua história. É nesse momento também que serve um café ao público. Meu nome é Lurdinha, não tenho outro de pia. Minha história começa longe daqui, na Bahia. Conhece? Quando meus pais saíram de lá, eu era menina ainda, nem corpo formado tinha. Saíram fugidos da fome daqueles dias. A fome chama, põe a gente na estrada. Foi então que apareceu por aquelas bandas o gato e seu caminhão. Sabe o que é gato? É um empreiteiro, sabe? Ele enchia o caminhão com as famílias, que ficava aguardando na beira da estrada, botava todo mundo no pau de arara e caia no mundo. Dezoito dias... Quando a gente chegava, os cabelos tava tudo arrupiado, em pé, assim, da poeira dos caminhos! O gato tava levando nós pro Paraná, pra trabalhar na lavoura de café, milho, algodão... Aí a gente chegava, sabe, e saía do caminhão direto pro porão, assim, todo mundo junto: home, mulher, criança, tudo misturado. Então chegava o dono da terra e o gato vendia nós. É verdade, vendia! E nós tinha que trabalhar pros donos de lá. E eu trabalhava, era menina ainda, nem corpo formado eu tinha, mais não fugia da lida. Tinha que tra- 103 -

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balhar, porque meu pai já chegava devendo pro patrão... a viagem, a comida, a dormida... tudo tinha que pagar. Minha gente, eu só sei que a gente trabalhava dia e noite, noite e dia e a dívida só aumentava. Diacho de vida, a gente era como escravo! A gente era escravo? Eita, que a cabeça da gente vai longe, tava aqui só fazendo um cafezinho... Mas a vida teimava em continuar. Quando cê pensa que tá ruim aí é que melhora! Então, quando eu tinha lá pelos meus 14 anos, meu pai e meu irmão arrumaram um marido pra mim. Eu era menina, corpo formando ainda. E eu casei. Com 15 tive meu primeiro filho. E assim nós foi vivendo. Pai arrendou uma terrinha e nós foi vivendo... Mas home é um bicho disgramado, num é que meu marido se injuriou e resolveu ir embora! Ele recebeu uma carta muito bonita, contando as vantagens da cidade grande, as maravilhas. Joana, prima dele, conhece? Conhece não, né? Pois então, a mulher quando saiu daqui, vixe, magrinha, parecia uma seriema de tão magra. Tinha as pernas de Manoel Fonseca: uma fina e outra seca. Agora apareceu aí, trazendo a carta. Gorda, mas gorda de dá gosto de vê. Então esse negócio de cidade grande não deve ser de todo tão ruim, não é mesmo? Não sei se quero ir. Também não digo que não vou. É que a gente houve falar da violência... Mas mulher tem que seguir o marido, tá certo? Então eu vou. A mulher é assim, começa onde nasce, termina onde o marido escolhe, né mesmo? Hora de partir. Deixar tudo que sei e o que sou e partir em busca do que nem sei que sou. Um outro lugar, uma nova gente me espera. Todo mundo é assim: começa onde nasce, termina onde Deus escolhe! Terezinha Tô passando um cafezinho fresquinho... aceita? Meu nome é Terezinha dos Santos. Café lembra reunião de família, de amigos... café é encontro! Essa fumacinha são lembranças de outros cafés. Essa me lembrou uma história do passado! E é essa história que eu vou contar. - 104 -

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Eu vim do interior de São Paulo, lá era pequeno de mais pra mim. Eu queria estudar, vim a passeio e nunca mais voltei. Era uma menina! Estudei, casei, era uma dona de casa como todas as outras. Fazia crochê em frente à televisão. Êta! vidinha besta! Mas certo dia, tava dormindo, um barulho, carro de polícia, muita gente falando, gritando. Saí pra ver quem tava atrapalhando meu sono. Quando cheguei no portão, a casa em frente da minha, tava a maior confusão. Tinha tantos policiais. Eu contei: mais de trinta, tudo armado. Pra quê? Vi uma mulher desesperada ajoelhada nas pedras, implorando pra não derrubarem sua casa. Que nada! Chega um dia que a gente tem que acordar. Às vezes a gente é acordada pela vida! Você já viu uma casa sendo derrubada? Aquela máquina enorme destruindo, destruindo, destruindo uma vida... Eu não sabia o nome dela, nem quanto tempo ela tava morando ali. Nem que ela tinha 04 filhos. Acho que passava por ela, todos os dias... Aquela máquina derrubando, derrubando... Eu não sabia o nome dela... “O que vai acontecer com aquela família?”, perguntei pra assistente social. “Pra onde ela vai? E as coisas dela?” Ela me respondeu com a maior indiferença: “Não sei, ela não quer ir pro abrigo.” “E o direito a moradia? Da criança? Cadê os direitos humanos?” “Só tá no papel”, ela respondeu. Gente, vamos rasgar o papel e por isso em prática! “Pelo menos um caminhão pra ela levar as coisas dela, vocês tem obrigação de arranjar. É o mínimo!” Foi uma luta pra conseguir esse caminhão. Essa foi minha primeira batalha. Sozinho, não conseguimos nada, mas juntos... A mobilização é tudo. Tá faltando conhecimento da população do que eles têm direito e do que não têm. Falta lutar. Tenho muito medo de sair daqui. Mas se a gente cruzar os braços pro medo, ele sempre vai ser o vencedor. Hora de partir, pôr o pé na estrada, um outro lugar, uma nova vida me espera. Quem quiser pode vir comigo, conhecer outras histórias, outras pessoas... Todo mundo é assim: começa onde nasce, termina onde escolhe. Todo mundo é assim? Começa onde nasce e termina onde escolhe?

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Todos se encaminham para outro ponto, repetindo a última frase de acordo com a sua história: Todo mundo é assim, começa onde nasce e termina onde Deus quer/ onde der/ onde o marido vai/ termina fugido/ termina onde escolhe?. No caminhar, formam um grupo de retirantes. Ao chegar ao espaço da cidade, estranhamento, andam em ritmo marcado por instrumentos. Cena 2 – A chegada Terezinha/Migrante 1 – Eu vim num ônibus cheio de iludidos que voltava com os arrependidos. Zé da Cruz/Migrante 2 – Quando eu desci do ônibus, fiquei meio que perdido, sem saber pra onde ir. Lurdinha/Migrante 3 – Num sabia onde ficava nada, mas tinha vergonha de ficar perguntando pras pessoas. Manuel Azevedo/ Migrante 4 – Eu num entendia o que as pessoa falava. Eles falava estranho! José Justinho/Migrante 5 – Fiquei três dia perdido na rodoviária, até ser encontrado, sem querer, pela amiga da minha mulher. Terezinha/Migrante 1 – Quando cheguei aqui, vi tantos carros, tantas pessoas! Fiquei assustada, saí correndo pelas ruas. Zé da Cruz/Migrante 2 – Quando desci do ônibus, fiquei meio perdido, sem saber pra onde ir! Todos – Falam frases soltas ao mesmo tempo. Todos aceleram, cada vez mais, formando um círculo. José Justino – Um dia, ainda volto pra minha terra. (Todos param, se olham e começa a música). Música de apresentação Oi, aqui vamos cantar - 106 -

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Oi, aqui vamos narrar A história de uma gente Que construiu o seu lugar. Onde não havia nada Toda essa multidão Reescreveu a sua história Num pedaço de chão. Essa é a nossa história Sua, também pode ser O Buraco d`Oráculo Apresenta Ser Tão Ser! Os atores vão saindo, formam um quadrado e o público fica em círculo à sua volta. No centro da cena fica o ator que faz José Justino e narra o início do espetáculo.

Cena 3 – A realidade bate à porta

Ator – Bom dia a todos. Meus senhores, minhas senhoras, o que aqui irão ver e ouvir não se passa em um momento presente, mas num tempo passado, escrito por nossa gente. Ouvimos essas histórias do povo: vocês, nós. Todas contadas em volta de uma mesa de café, num fim de tarde qualquer. As personagens que aqui aparecem são habitantes de um sertão que fica à margem da cidade, pois foi lá o único lugar que podiam pagar. Desse passado, não tão distante, muita coisa ainda permanece. Nas comunidades por onde passamos, as pessoas abriram as portas de suas casas e de seus corações, pois então, vos peço humildemente que abram espaço para - 107 -

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o teatro que aqui vamos apresentar. E vamos começar pela chegada desse povo, pois, como diz o poeta, “um passo a frente e você já não está no mesmo lugar”. (Volta a representar o Migrante 5). Jose Justino/Migrante 5 – Cheguei, enfim cheguei. Depois de dura caminhada, cheguei! Só não sei pra onde vou agora, perdi o endereço do meu filho, a única coisa que me indicava o caminho nessa cidade. Não sei pra onde eu vou... só sei que preciso de um lugar pra morar e um emprego pra trabalhar. Ator 1 – Mais um que chega. Ator 2 – Chegou pra quê? Ator 3 – Vai pra onde agora? Ator 4 – Tem documentos? Ator 1 – RG? Ator 2 – CPF? Ator 3 – PIS/ PASEP? Ator 4 – Carteira de trabalho? José Justino – Tenho não, senhor. A única coisa que tenho é o meu certidão de nascimento, com o meu nome: José Justino Ventura. Todos – Iihh!! Mais um Zé! José Justino – Se fui bicho brabo no sertão, serei bicho brabo aqui também. (Repete a frase e senta na sua caixa/baú ao centro da cena). Migrante 1/Terezinha – Quando cheguei nessa cidade, era ainda uma menina. Pedi pra mãe, vim de férias, nunca mais voltei. Eu tinha determinado que viria pra uma cidade grande. Na hora que cheguei aqui, caiu a ficha, eu caí na real... eu disse “caramba”, e foi uma choradeira danada. Eu queria estudar. Eu tinha muitos sonhos, lá era pequeno demais para mim!... - 108 -

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Ator 1 – De onde vem? Ator 2 – Onde estudou? Ator 3 – Faculdade? Ator 1 – Diploma? Ator 2 – Currículo? Ator 3 – Carta de referência? Ator 1 – Atestado de antecedentes? Ator 2 – Mora perto? Terezinha – Não. Moro longe. Mas tenho todos os cursos que vocês pediram, eu só quero uma chance. Todos – Mais um que pede! Terezinha – Tenho tudo o que eles pediram, todos os diplomas, tudo... eu só quero uma chance! (Repete o fim da frase e senta na caixa). Migrante 3/Lurdinha – Quando eu cheguei aqui estava acompanhando o meu marido. Eu não queria vir não, mas vim. A mulher é assim: tem que ir aonde o marido vai. Mas foi só chegar aqui e ele se engraçou por uma moça mais nova que eu e me deixou com o nosso filho. Agora, eu sou dona de minha vida! Mas o dinheiro é pouco, trabalho, nenhum... pra onde que essa gente vai? Ator 1 – O que veio fazer aqui? Ator 3 – Procura casa? Ator 1 – Emprego? Ator 3 – O que sabe fazer? Ator 1 – Lavar? Passar? Ator 3 – Tem onde morar? - 109 -

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Lurdinha – Não, não tenho onde morar, mas sei fazer de tudo um pouco e tenho muita força de vontade. Ator 1 e 3 – É pouco! Lurdinha – É pouco? Agora, eu sou dona da minha vida! (Repete a frase e senta na caixa ao centro da cena). Lurdinha e Terezinha dançam música afro, como um pedido de licença ao espaço. José Justino (Subindo na caixa) – Esse pedaço é nosso! Todos – É nosso! Cena 4 – A ocupação ou meu pedaço de chão Mutação. Cada um vai para um canto, volta a formar o quadrado. Ocupante 1 – Aqui tem terra pra todo mundo! Ocupante 2 – Mas vamos dividir por igual. Ocupante 3 – E se a polícia chegar? Ocupante 4 – É o nosso direito! (Começa a cantar) maia, maia, maia, maiadô maia, que seu Maia quer morá maia, maia, maia, maiadô maia, que seu Maia quer morá (Cantam duas vezes. Se olham e começam a demarcar o espaço com terra, enquanto cantam) a noite antes do galo cantar - 110 -

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a gente ligeiro se levantá o grupo dos sem teto vai a luta querendo um terreninho pra morá vai homem, vai mulher e vai menino sabendo que é difícil de encontrar Ocupante 1/José Justino – O pobre quando começa a lutar por um pedaço de chão é chamado muitas vezes de vagabundo, mas eu sou trabalhador, só que com o que a gente ganha não dá pra comprar casa, não. É por isso que eu tô nessa luta. Ocupante 3/Manuel Azevedo – Eu tenho medo! Todo mundo diz que a polícia pode prender. Mas eu só quero uma casa, não tenho condições de pagar aluguel... Ocupante 2/Lurdinha – Eu até pagava aluguel, aí eu tive que escolher, ou pagava aluguel ou comia. Larguei tudo e vim pra cá. Ocupante 4/Terezinha – Moradia não é um direito?! Todos – Direito à Moradia! Música Fazenda véia, cumieira já rachou Levanta povo cativeiro já acabou A música é cantada até a interrupção da polícia. Cena 5 – Enfrentamento Policial – (Chegando com violência.) Reintegração de posse imediata. O aparato policial chega. Enfrentamento. Grupo começa a bater ritmado no peito e nas mãos ao som de rap, acompanhado também pelo policial, que bate o cacetete no escudo. - 111 -

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Policial Desocupem essa área, tô cumprindo meu dever Proteger o patrimônio, doa a quem doer Desocupem essa área ou a porrada vai comer! Ocupantes/Trabalhadores Chega de promessa, chega de enrolação (2x) União, Estado e Município / Ninguém dá a solução (2x) Direito a moradia está na Constituição (2x) Policial Desocupem essa área ou a porrada vai comer Tô fazendo meu papel, tô cumprindo meu dever Proteger o patrimônio, doa a quem doer Spray, bala de borracha, gás pra entorpecer Desocupem essa área ou a porrada vai comer Trabalhadores Aqui só tem família e trabalhador (2x) Mas tem panela, pau, pedra... (2x) Ameaça de real enfrentamento. Ocupante 2 (Intervindo entre ambos) – Calma, gente, calma! Embaixo daquele capacete tem um homem, que tem família, filhos... Calma! Vamos conversar! Atores, em coro, falam o poema Há Lugar, o policial fica parado.

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Todos os atores (Poema “Há Lugar”) Esta é a luta de um povo humilde Vivendo em opressão Lutando contra o relento Buscando casa e sustento Pra não viver como cão Esse povo cansou de sofrimento E vem aqui reivindicar O direito à moradia Lutando com euforia Pra construir o seu lar (Ao finalizar, todos estão de volta a seus lugares, como ocupantes). Ocupante 2 – Calma! Som de tiro. Ocupante 2 cai. Os companheiros olham e encaminhamse em direção ao corpo para retirá-lo de cena. Gravação de falas reais do movimento de moradia, abordando a questão da ocupação e da repressão. Terminada a gravação, música anuncia a periferia. Rap. Cena 6 – Periferia Música da periferia Você não precisa entender geografia Pra saber onde fica essa tal periferia Dizem que é longe, violenta e coisa assim A minha, a sua, a nossa periferia. (2X)

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É certo que precisa de muita melhoria Escola, condução, saúde e moradia. Por isso tem que ter uma certa teimosia Pra viver e amar essa tal periferia. (2X) É populosa, é enorme, chega gente todo dia Por isso, veja só, eu não me oporia, Se tivesse um pouquinho de mordomia Na minha, na sua, na nossa, periferia. (2X) Pra melhorar tudo isso, o que precisaria? Cumprir com as promessas feitas todo dia. Precisamos acabar com essa covardia Tem gente destruindo a nossa periferia. Tem gente destruindo a tua periferia! Brasil Periferia Cena 7 – A favela ou é na quebrada que se quebra Costela continua cantando a música anterior, como se tivesse isolado, sozinho, baixo. Buchada – Ô, Costela, tu tá maluco, meu irmão! Costela – Diz aí, Buchada, beleza! Que que tá pegando? (Buchada e Costela se cumprimentam com uma coreografia). Buchada – Você não sabe da maior: eu vou dar uma casada. Por isso estou enfeitando tudo aqui, pra minha festa de casamento. E vamos aproveitar e fazer um gato. - 114 -

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Costela – Beleza! Ih, mas com aquele fio vagabundo que você arrumou, não vai dá pra fazê gato, não. Buchada – Foi o único que o Zé da Luz conseguiu, mano, vai ter que dá. Costela – E você nem tá trampando, que eu sei, num tem dinheiro e ainda quer fazer festa! Buchada – Você que pensa. Tá ligado o Toninho? Ele me conseguiu um trampo como entregador na perua dele. Trabalho maneiro! Melhor que o teu, que fica o dia todo fazendo concreto pra construir casa pra bacana e nem tem onde morar. Costela – Pô, cê tá tirando... Buchada – Num tô tirando nem colocando, e para de chorar e vamos fazer isso logo! Costela – A gente podia fazer lá perto do poste do fundão. Assim ninguém vê o gato. Buchada – Fundão não, Costela. Quero que todo mundo veja minha festa de casamento. (para o público) E ó, tá todo mundo convidado, quero todo mundo aqui, curtindo a paisagem, olhando o campão... Costela – Ihhhh! Cê não tá sabendo, não? Tão dizendo por aí que o campão vai acabar, vai virar shopping. Buchada – Melhor ainda, maluco! Imagina só, eu e a Jéssica passeando no shopping no domingão! Olhando as vitrines, sonhando com um celular da hora... Entra Jéssica preocupada. Jessica – Buchada, o que você tá fazendo? Por que vocês não foram lá na reunião? - 115 -

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Buchada – Que mané reunião, mina? Tô enfeitando aqui pra nossa festa de casamento! Jéssica – Que festa? Eu tô vindo da reunião; sabia que, por causa desse Shopping, estão querendo expulsar a gente daqui? Quem vai querer uma favela do lado do shopping!? Buchada – Calma, meu biscoitinho, isso não vai acontecer, a gente tá aqui há um tempão. Ninguém vai chegar tirando a gente daqui do dia pra noite, não. Calma, meu biscoitinho! Jéssica – Calma? Chega não? O que vocês andam fazendo, assistindo a novelinha das oito? Buchada e Costela – É das Nove! Jéssica - Eles chegam, sim, e sem avisar, e não vai passar no Jornal Nacional, não. A gente tem que fazer alguma coisa. Temos que nos organizar, mobilizar todo mundo ou vamos parar embaixo da ponte. (Saindo) - E tem mais, eu não sou mulher de seguir o marido, não! Então você fica esperto. (sai). Costela – Eita mina braba da pleura! Você é doido de casar com essa mina, veio, ela vai mandar em você... (Cantando) Malandro é malandro, Mané e Mané, podes crê que é. Malandro é malandro, o Buchada é manê, podes crê que é... Buchada (Ameaça Costela, que foge) – Mané, o caramba, você sabe quem é o pai dessa mina? É um pernambucano puxador de peixeira! Ou eu casava ou virava comida de formiga! Por isso tô fazendo essa festa, que é pra impressionar o véio. D. Vitória (Entrando.) – Ei, para de contar história, Buchada! Olha, seu bolo tá quase pronto, tá ficando uma beleza! Buchada – Valeu, D. Vitória! É assim que eu gosto de ver, a comunidade mobilizada pela minha festa de casamento. Eu quero uma festa, igual às que tinha antigamente. Conta aí pra nós como era. - 116 -

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D. Vitória – Conto sim, fio. (Som de triangulo) Quando eu cheguei aqui, nem luz tinha, a gente enchia aqui tudo com lampião... quando acendia ficava uma beleza! E quando tinha festa?! Todo mundo vinha pra festa, mas quando chovia, lá embaixo virava um lamaçal, eles colocavam sacos plásticos nos pés, os homens erguiam as calças, as mulheres, as saias... E eles vinham, e eles vinham, quando chegavam aqui tiravam os sacos plásticos dos pé e a gente dançava a noite inteira, a gente dançava até amanhecer o dia... (Cantando) Todo tempo quanto houver pra mim é pouco pra dançar com meu benzinho numa casa de reboco (2x). E quando acabava a festa, todo mundo ficava com o nariz pretinho. Sabe por quê? Por causa da fumaça dos lampião! Festa boa era no meu tempo! Ai, eu vou lá terminar seu bolo, Buchada... (sai resmungando). Buchada – Vai lá, Dona Vitória. Aí, Costela, é assim que eu quero minha festa, mas não é com lampião, não, quero com luz elétrica. Pode ligar a bagaça! Costela – 110 ou 220? Buchada – Põe no 220 que é pro negócio bombar. (Estouro). Todos – Viva os noivos! Festa do casamento, os noivos entram e convidam o público para dançar. Durante a dança, uma autoridade distribui uma carta de despejo ao público e aos personagens. Com falas: “Preenche o documento. Vai todo mundo dançar.” A carta distribuída é um documento real, utilizada nos despejos durante o governo de Gilberto Kassab na cidade de São Paulo. Autoridade (Interrompendo a festa) – Atenção! Atenção! Todo mundo que recebeu a carta, vamos preencher direitinho e atenção ao pro- 117 -

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nunciamento. (Gravação com parte do texto da carta de despejo). Cena 8 – Favelados X autoridades Autoridade – Desocupem seus barracos! As máquinas vão começar a trabalhar. Não se preocupem, suas coisas irão para um depósito e as pessoas para um abrigo. Peguem apenas o necessário. Jéssica – Eu falei, eu avisei que a gente tinha que se organizar e fazer alguma coisa. D. Vitória – Eles não podem me tirar daqui, eu moro aqui há mais de 40 anos. Jéssica – É isso mesmo, d. Vitória! Autoridade – Desocupem os barracos. (Som de sirene) As máquinas vão começar o trabalho. Costela – Pô, Buchada, você não falou que isso não ia acontecer? Que ia demorar muito? Buchada – Pô, e bem no meio da minha festa! Mas não se preocupa, não, eu vi na TV que, quando eles fazem isso, eles dão umas casa pra gente que é maior legal... D. Vitória, Costela e Jéssica – Não fala besteira, Buchada! Autoridade – (Cortando a cena.) Saiam, desocupem seus barracos, as máquinas já vão começar o trabalho. Retirem as crianças. D. Vitória – Mas eles não podem me tirar daqui, gente... Eu moro aqui há mais de 40 anos... Autoridade – Sai fora, velha! (Empurra dona Vitória para fora de cena) As máquinas vão começar o trabalho. (Som ruidoso. Sirene. Correria.) Retirem as crianças! As máquinas vão começar o trabalho! (A máquina é feita pelos atores; derrubada da favela). - 118 -

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Coro – A vida é sempre mais forte do que qualquer arte. Atriz – Nesse exato momento em que estamos aqui, representando a derrubada de uma favela, milhares e milhares de pessoas lutam por um teto! Cena 9 – Crescer e empreender Animador (cantando em paródia de Cachaça Não é Água) Se você quer sua casa própria Não fique aí parado, não Traga todos os documentos Pegue aqui a relação. Se você quer sua casa própria Não fique aí parado, não Pegue todo o seu dinheiro E pague aqui a inscrição. Olha o lançamento, olha o empreendimento! Meu barraco, minha dívida! Senhoras e senhores, dizem que Deus criou o mundo em seis dias e no sétimo descansou, o mesmo não se deu com os conjuntos habitacionais, na verdade, foi um Deus nos acuda! (Limpam a cena). Ator 1 – O terreno era em área rural, para ficar mais barato pra prefeitura, pro estado... Ator 2 – Lá não tinha água, não tinha luz, não tinha nada. Atriz 1 – Mas a Cohab disse: façam-se as casas! Atriz 2 – E as casa foram feitas.

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Primeiro os atores entram cantando e carregando as casas/caixas revestidas de cinzas; depois, as atrizes entram carregando caixas/casas também revestidas de cinzas, cantando. Na terceira vez que repetem o canto, todos, atores e atrizes. Música (Paródia de Se Essa Rua Fosse Minha) Essa casa, essa casa, vai ser minha, Se eu pagar, se eu pagar a prestação. 25, com mais 10 do acordo, 35 anos de espoliação! Atriz 2 – As casas não tinham reboco, as ruas eram de barro, nem comércio tinha. Atriz 1 – Mas nós fomos à luta! E conseguimos algumas melhorias... Ator 2 – Cinco anos pra chegar a luz! Atriz 2 – Sete anos pra chegar a água! Ator 1 – Oito pra chegar escola! Todos – Saúde, não chegou nunca! Ator 1 – O tempo passou, a situação melhorou, mas ainda falta muito, muito... Música (Paródia de trecho de A Casa) Era uma casa tão desejada / A casa própria, que emoção! Tudo era cinza, tudo igualzinho / Cinza do teto até o chão! (2X) Abro a janela, vejo o vizinho/ Do outro lado, que confusão (2X) Tudo era cinza, tudo igualzinho/ Cinza do teto até o chão! (3X)

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CENA 10 – Minha vida numa caixa Apesar de estarem todos em cena, a entrada de cada personagem ocorre ao colocar o rosto em uma pequena janela, sustentada pelo(a) próprio(a) ator/atriz. Bebel – Juraci! Juraci! Juraci – Oi, Bebel! Bebel – Que vida, todo dia limpando a casa dos outros, chega fim de semana ainda tenho que limpar a minha, né, Juraci?! Juraci – Nem me fale! Bebel – E a condução, que está cada vez mais difícil? Você acredita que tiraram a linha que vinha direto pra cá? Agora temos que fazer baldeação. É isso que dá morar longe. Ninguém liga pra gente! Político só aparece aqui em época de eleição e olhe lá, né, Juraci? Juraci – Nem me fale! Abel (Aparecendo na janela) – Compadre Juraci, comadre Bebel... esse lugar tem jeito não... não vai mudar, não... quem quiser que as coisas melhorem, meu conselho é que se mude. Bebel – Eu não mudo daqui, não... eu gosto, mesmo com tudo isso que falta... fazê o quê, né, Juraci? Juraci – Nem me fale. Cida (Aparecendo na janela, mas em meio ao público) – Gente! Não é que ela conseguiu de novo! Bebel – Conseguiu o quê? Abel – Quem? Juraci – Conta. Cida – A Auxiliadora, ela conseguiu marcar uma reunião na prefeitura, pra gente falar do nosso posto de saúde... - 121 -

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Bebel – Não sei onde ela arranja tempo para ficar correndo atrás dessas coisas... Abel – Eu também não sei. Ela trabalha que nem a gente, volta cansada que nem a gente... Onde ela arranja tempo pra isso? Bebel – A intenção é boa, mas alguma coisa me diz que ela quer mesmo é se aparecer!... Daqui a pouco se candidata a vereadora... Melhor: eu acho que ela tem é um cacho lá na prefeitura, assim até eu, né Juraci? Juraci – Nem me fale! Cida – Olha o veneno! Isso é despeito de vocês! Ela sempre chama todo mundo pra participar das reuniões, mas na hora H, aparecem dois ou três gatos pingados. Inclusive, ela quer saber quem vai na reunião pra falar do nosso posto de saúde? Bebel – Ah!, eu até gostaria de ir, mas eu não tenho tempo, tenho muita coisa pra fazer, vou fazer o jantar, né, Juraci? (Entra. Retira a janela do rosto e fica parada). Juraci – Nem me fale! (Entra. Mesma ação). Abel – O tempo que me sobra eu uso pra descansar. Inclusive, eu vou ver se descanso mais um pouco, que a semana promete. (Entra. Repete ação). Cida – Tempo a gente faz, basta querer! (Retira a janela). Atriz/Cida – O povo, apesar de estar mais junto, um em cima do outro, anda se mobilizando pouco, será que o povo está acomodado? Todos – Será? Canto final Atriz/Cida – Se o povo soubesse o valor que ele tem Todos – Não aguentava desaforo de ninguém! - 122 -

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Todos repetem diversas vezes. Se o povo soubesse o valor que ele tem Não aguentava desaforo de ninguém! Se o povo soubesse o valor que ele tem Não aguentava desaforo de ninguém!

FIM

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Fonte: Mostra Monte Azul e Arquivo do grupo – Foto: Berinjela Filmes e Akira Yamasaki.

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Foto montagem a partir de duas apresentações de Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, Mostra Monte Azul (2011) e Circuito Re-Praça (2011).

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Ser TÃO Ser como epifania de um cotidiano perverso. Uma poética alegórica de tantos desterritorializados Alexandre Mate31 Ser tão sem, sem ser tão, tão sem ser... (Uma brincadeira a partir de) Mário de Andrade. A prática sem a teoria e esta sem aquela de pouco valem. Também em arte a práxis é vital ao criar. De outro modo, a objetividade do viver é alimentante da subjetividade do sonhar. O educador espanhol Jorge Larossa Bondía afirma, de modo sábio (porque ele aprendeu com aqueles que vieram antes e com aqueles com quem ele conviveu), no texto Notas sobre a experiência: “Pensar não é somente raciocinar ou argumentar, como nos tem sido ensinado ao longo da vida; pensar é também dar sentido ao que somos e ao que nos acontece”. É exatamente disso que se trata. Ao coletarem relatos de vida de gente que mora muito além de qualquer e obrigatório direito-cidadão, os integrantes do Buraco d`Oráculo (grupo com mais de 10 anos, radicado na Zona Leste da cidade de São Paulo) buscavam levar para a cena de rua, mediados por símbolos, a história de tantos desterrados, desterritorializados... Na universidade pública, desde 1993, ministra, atualmente, aulas na graduação e na pós-graduação do Instituto de Artes da UNESP. Tem Mestrado em Teatro-educação pela ECA-USP e Doutorado em História Social pela FFLCH-USP. Autor de diversos livros, artigos, ensaios e críticas teatrais. Pesquisador e militante da área teatral, coordenador do Núcleo Regional (SP) de Fazedores e Pesquisadores de Teatro de Rua. 31

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Ao assumir o desafio proposto por Ser TÃO Ser: narrativas da outra margem, para ressignificar esteticamente as vozes da imensa comunidade de destino que compreende a periferia paulistana, o Buraco d`Oráculo, porque tem estofo e condições para isso, concilia de modo extraordinário o binômio – apresentado por Walter Benjamin em O autor como produtor – qualidade estética e pertinência política. Na 26ª edição do Festivale – Festival Nacional de Teatro do Vale do Paraiba, o grupo, já presente em outra edição, teve como seu lócus (espaço de apresentação) a “tímida” – quando comparada à majestade da Afonso Pena – Praça Cônego Lima. Trata-se de uma praça quase protegida, posto que não cortada por 4 ruas como é comum. Mais próxima à XV de Novembro, de todas as árvores, destaca-se uma belíssima seringueira (provavelmente centenária). Antes de o espetáculo começar, com belas músicas de Chico Buarque, Luiz Gonzaga... “me peguei perguntando”, porque me é relevante: “Quem teria plantado aquela árvore? Quem, ao longo de tantas décadas, conservou aquela árvore e tantas outras que lá estão?” Claro, nome de jardineiros não figuram na História! Que importância teria esse tipo de gente para uma história contada, desde sempre, pela elite? Para onde iria aquela gente toda, quase em frenesi, que circula e atravessa a pequena Praça? Quem desse imenso mar humano figurará, qualquer dia, na História oficial? Muito provavelmente nenhuma... Muito distante dali, daquela singela praça, mas aterrado na História, fui despertado para ir a um dos extremos daquele espaço: a peça começava sob um sol escaldante... Uma atriz dava início à prosa. A roupa bastante colorida, mas a narrativa tecida por significativa “tristezura”. Lu Coelho era a primeira corifeia do épico que ali se instalava: personagem alegórica de tantas Lurdinhas (e vários outros nomes) desterradas pelo Brasil. Sem quaisquer afetações, mas gigantemente cúmplice, a atriz apresenta a narrativa de sua emblemática personagem. O café (de verdade) que era preparado durante a fala não daria para todos, então, em um expediente magistral e popular, afirma a personagem: alguns “olham o cheiro”, outros lambem os beiços e outros tomam... Pronto, todos degustam aquele café! - 126 -

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Durante o café tomado, “olhado”, “beiçado” entra a cantoria: Calix bento. Ó, Deus salve o oratório (bis), onde Deus fez a morada. Óia, meu Deus. Certa comoção planta-se em muita gente que foi apanhada de modo distraído pelo teatro de rua. Na sequência, o ator Edson Paulo apresenta uma narrativa impecável na “pele” de José Justino Ventura. Assim como Lurdinha, este, segundo as autoridades, é “mais um Zé”, mais um migrante a inchar a cidade... Por meio da fala firme do ator, mesclada àquela emocionada da personagem, uma primeira inquietação é apresentada em coro: – A gente, cada um de nós, começa onde nasce. Termina onde [Deus?] escolhe! Durante o espetáculo apresentado dia 06/09, uma senhora, adere ao coro e completa a frase. – A gente começa onde nasce. Termina onde escolhe, porque já estamos na curva do mundo. Na rodoviária, mais e mais gente sendo despejada para contemplar o horror e viver a miséria humana de uma cidade inóspita, perversa... A diáspora de gente se instaura e se faz quase que por meio de uma fila indiana ininterrupta. A gente desterritorializada ocupa áreas abandonadas e infindamente distantes do centro. Os atores marcam o terreno ocupado delimitando o chão com terra vermelha. Aquela gente constrói coisas que se parecem casas, e tenta levar sua vida... trabalhando incansavelmente. Os atores, em coro, novamente, apresentam uma nova canção, que é quase um canto de trabalho: de gente que vende sua força de trabalho. Gente daquele tipo, com a expansão do poder econômico, precisa deixar o território ocupado para dar lugar a um grande empreendimento. A atriz Selma Pavanelli canta com a mesma força e atitude daqueles que fazem e cantam seus raps. A “rapeira” pré-anuncia a morte de Lurdinha pela truculência da polícia. Na cena de rua, cujo cenário próximo é a praça, e nela (na praça), outra vez a seringueira... é absolutamente curioso, mas no momento de morte uma lufada de vento mais forte faz a seringueira chorar (muitas folhas caem e dão a impressão de um cho- 127 -

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ro intenso)... Efeito da natureza. Espécie de milagre do teatro de rua! No despejo daquela gente, muitos recebem uma carta de despejo da Prefeitura de São Paulo (trata-se de cópia do documento original). O documento promove certo alvoroço. Nesse exato momento, chega um casal jovem que se preocupa, pensa que os vendedores ambulantes é que seriam despejados da praça... O corifeu (Adailtom Alves) logo depois disso afirma, em contragesto (alusão a ser foda), que Deus ajudaria os desterrados. Do despejo muitos moradores vão morar em conjuntos habitacionais: tudo cinza, sem felicidade, com muita promiscuidade entre os vizinhos, pelo apertamento. De modo absolutamente panfletário (e necessário), o elenco, em forma de coro, canta: “Se o povo soubesse o valor que tem, não aguentava desaforo de ninguém». Em uma hora de espetáculo, histórias de desterrados ganham a cena e falam por incontáveis sujeitos falantes, mas silenciados pela História oficial. Adailtom Alves, diretor do espetáculo, consegue articular o trabalho colaborativo e criar expedientes e cenas vibrantes. O público presente ao espetáculo, abaixo do sol das onze ao meio-dia, concordava com o olhar, entre emocionado pelo assunto e pelas imagens criadas. No trabalho coletivo, música e figurinos têm função épica: tudo feito e construído pelos integrantes do grupo. Nos adereços e figurinos singelos, a presença das mãos dos homens. Grande momento, singular e importante espetáculo, parafraseando alguém do público: “A terra sente a necessidade de ser útil!” Fonte: http://bit.ly/10SxMVR (link reduzido)

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Fonte – Arquivo do grupo - Foto: Patrícia Leal

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Apresentação do espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem no distrito de Cruz das Posses – Sertãozinho/SP , durante o Projeto Ser TÃO Ser pelo sertão paulista (2013).

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Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem: um espetáculo de resistência, luta e esperança Narah Neckis32 Fui assistir à peça Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, do grupo Buraco d`Oráculo. Durante a apresentação, notei a presença de um menino, de trajes simples, aparência de alguém que, apesar de pouca idade, já conhecia muito da vida, postura forte e decidida que por vezes incomodava algumas pessoas que se sentavam ao seu lado. O que mais me chamou atenção foi o olhar dessa criança ao ver o espetáculo. Havia, naquele olhar, um brilho diferente; um brilho de identificação, de pertencimento. Vi em seus olhos, dentre tantos outros sentimentos, sonho e esperança. Ao final da apresentação, esse menino me disse: “Tia, escreve meu nome aí. Eles falam de mim, sabia? Escreve meu nome, eu me chamo Alex”. Durante a 4ª edição da MOSTRA DE TEATRO DE RUA LINO ROJAS, o Buraco d`Oráculo apresentou-se com o Ser TÃO Ser, dirigido por Adailtom Alves. Difícil apresentar por meio de palavras a força transformadora deste espetáculo que, mesmo em meio ao caos do centro da cidade de São Paulo, conseguiu prender a atenção do público, levando-o à reflexão. Senti uma pontada no estômago: sou também responsável pela desigualdade social de nosso país. Preciso tomar partido, agir, lutar.... Atriz formada em Teatro pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) e em Direito pela Universidade Mackenzie. Integrante do Grupo de Pesquisa Teatral Nativação. 32

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A dramaturgia do espetáculo tomou por referência histórias de vida coletadas pelos integrantes do grupo, por meio de entrevistas com moradores residentes em diversos locais da Zona Leste da cidade de São Paulo. De certo modo, todas as personagens encontram-se em estado de partida, “[...] é hora de deixar o que se é, e ser o que não se sabe”. Iniciada a apresentação, permaneceu a sensação de espera. Esperamos o espetáculo e, quando nos damos conta, ele já está acontecendo. Os retirantes caminhavam, cada um em um canto do Vale do Anhangabaú, contando suas histórias a quem estivesse mais próximo. Em determinado momento, as personagens-retirantes encontram-se e passam a contar uma mesma história: o sofrimento das pessoas que não têm casa própria e não conseguem pagar aluguel. O espetáculo caminha do micro para o macro, o indivíduo nada mais é do que um reflexo de sua coletividade, um ser social, somado a tantos outros no mesmo estado, em peregrinação, em processo de diáspora. Interessante observar, ainda, o jogo estabelecido entre os atores e a plateia. Nesse sentido, duas cenas merecem destaque: a do casamento, momento em que todos participaram de uma grande festa; e a final, no instante em que o público, sensibilizado com os atores, ajudou-os a cantar: “Se o povo soubesse o valor que tem, não aguentava desaforo de ninguém”. Quem assistiu a Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem seguramente se dispôs à reflexão. Difícil permanecer alheio à obra e às suas histórias, porque todas elas nos dizem respeito. Trata-se de um espetáculo instigante, contundente... por meio do qual algumas mudanças podem ser divisadas. Fonte: Revista Arte e Resistência na Rua. Ano II, nº 2, julho de 2010, p. 94-5.

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Fonte – Arquivo do grupo - Foto: Patrícia Leal

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Público presente na apresentação do espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, COHAB Preste Maia. Projeto Ser TÃO Ser pelo sertão paulista (2013).

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O político e o poético em Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem O espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, apresentado pelo grupo Buraco d’Oráculo, segue a tradição político-popular do teatro de rua brasileiro. Em nosso país, a produção teatral de rua carrega historicamente a marca de um modo de fazer teatral no qual as questões sociais e políticas são colocadas e discutidas com o público, restaurando ao teatro sua relação com a cidade. Nesta esteira, as experiências realizadas nos anos 60 pelos CPCs e pelo Teatro de Cultura Popular de Pernambuco, ambas ancoradas no pensamento do teatrólogo alemão Bertolt Brecht, antecipam as práticas teatrais mais recentes do teatro de rua no Brasil, no qual a presença de um teatro político se faz preponderante. O Buraco d’Oráculo encena o drama dos inúmeros migrantes brasileiros que percorrem este país a procura de melhores condições de vida. Nas grandes cidades, estes são vítimas de um sistema social violento, coercitivo e excludente, que os coloca à margem na teia social capitalista. Passam pela cena de Ser TÃO Ser personagens que lutam por uma vida melhor dentro de seu contexto social. Desta forma, o espetáculo nos é apresentado como um grito contra a opressão, a violência e uma denúncia sobre a situação existente, especialmente [não exclusivamente] na cidade de São Paulo. - 133 -

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Tendo a roda como organização espacial – promovendo, como afirma Denis Guenoun, uma outra relação entre os espectadores, pois estes podem também olharem-se uns aos outros e estabelecerem uma comunidade frente ao espetáculo – os atores promovem esta integração. No primeiro momento, isso acontece pela conversa ao pé do ouvido com cafezinho feito e servido na hora, através da qual o drama dos personagens é narrado para a plateia e o tema da migração, tão cara ao teatro latino-americano, nos é apresentado. Nas vozes do pai que vai a procura da mulher e filho ou na da mulher que segue sua sina de acompanhar o marido, vamos de onde se nasce até onde se morre. A própria encenação segue este percurso quando o público é convidado a se deslocar na praça para assistir à segunda parte do espetáculo. Nesta, os personagens-migrantes não aparecem com a força de antes, agora estão diluídos, um misto de ator-personagem de linha brechtiana. O trabalho dos atores vai trafegando entre a construção de um personagem-tipo e a própria presença do ator e sua posição sobre o tema em questão. A encenação neste momento ganha um tom de denúncia da situação vivida pelos personagens e de suas lutas comunitárias, do despejo e da nova moradia, no apertado apartamento do conjunto habitacional. Até o público recebe o documento de instrução do despejo. Seremos também vítimas deste sistema? Como manda a tradição, Ser TÃO Ser utiliza os elementos presentes no teatro de rua: músicas conhecidas do público, coro, a chita/algodão cru e a crítica social. Ingredientes que [de]marcam a poética do espetáculo. Ao fim da função os atores dizem: ‘o povo não sabe a força que tem’. É justamente esta frase que, para mim, pesquisador e fazedor de teatro de rua, levanta questões em torno da função social do artista. O tom de denúncia que o espetáculo tem me parece crer na perspectiva transformadora do ato teatral, apenas por seu viés político, ou seja, o espectador ganha consciência desta situação e age contra ou a favor do estabelecido. Penso que o teatro deve ir além, deve compreender o homem como sujeito sensível, histórico e crítico e, partindo desta premissa, construir um modo - 134 -

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de fazer teatral que proponha, por sua poética, a instauração de outra possibilidade ética. A percepção sobre o mundo também ocorre por meio dos sentidos, outros modos de apreensão da realidade, e quanto a isso o teatro de rua brasileiro precisa também colocar questão. Se pensarmos que o artista de teatro é um perdedor neste sistema regido pelo capital, podemos modificar nosso posicionamento: em vez de querer ocupar espaços de poder, ocuparemos [e aqui falo no sentido militante] as margens, as brechas para, teatralmente, partilharmos o que desejamos com o público. Suas [e nossas] narrativas. Seus [e nossos] modos de criação artística. Compreender a perda como possibilidade de salvação [ou de liberdade para o ato poético], pois, como diz Amir Haddad, ‘só o teatro salva’... Será? Narciso Telles33 Lembrando esta música: nós fazemos teatro, neste país colorido, descamisado e subnutrido... Fonte: 5º Festcamp – Festival Nacional de Teatro de Campo Grande, ocorrido de 15 a 23 de outubro de 2011 (http://festcamp.blogspot.com.br/p/narciso.html).

33 Ator, performer, diretor, professor do Curso de Teatro e do Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Doutor em Teatro pela UNIRIO (2007). Pesquisador do Núcleo de Criação e Pesquisa Teatral e membro do Coletivo Teatro da Margem. Organizador dos livros: Teatro: ensino, teoria e prática (EDUFU, 2004), Teatro de Rua: olhares e perspectivas (E-Papers, 2005) e Pedagogia do teatro e o teatro de rua (Mediação, 2008).

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Fonte – Arquivo do grupo - Foto: Píu Dip

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Ator – Adailtom Alves, no espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, apresentação realizada em São Francisco Xavier, S. J. dos Campos/SP, pelo Circuito SESC de Artes (2012).

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A musicalidade do espetáculo em Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem Jussara Trindade34 No verbete “recepção” do seu Dicionário de Teatro, Patrice Pavis (2003) descreve a participação do espectador de teatro como uma situação em que o mesmo se encontra imerso “num banho de imagens e sons”. Contudo, ao desenvolver suas considerações sobre os códigos perceptivos da recepção e, mais particularmente, os de percepção do espaço, a atividade é descrita apenas dentro de um quadro referencial visual: [...] examina-se como o palco ou o dispositivo cênico apresenta a realidade artística; como se utiliza a perspectiva; quais são as possíveis distorções da visão; em que medida o espetáculo está armado em função do ponto de vista dos espectadores (PAVIS, 2003: 330). Jussara Trindade, natural de Londrina, PR, é educadora musical e musicoterapeuta especializada em Psicomotricidade e Pedagogia do Movimento. Mestre e Doutora em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. Como pesquisadora teatral realizou os seguintes trabalhos: A Liturgia Carnavalizada de Amir Haddad e o Grupo Tá Na Rua (RioArte/2003); A pedagogia teatral do grupo Tá Na Rua (Capes-Unirio/2007) e A contemporaneidade do Teatro de Rua: potências musicais da cena no espaço urbano (Capes-Unirio/2012). Organizadora e co-autora dos livros Tá Na Rua: teatro sem arquitetura, dramaturgia sem literatura, ator sem papel (2008) e Teatro de Rua no Brasil: a primeira década do Terceiro Milênio (2010). Ministra cursos, oficinas e palestras sobre a «musicalidade do ator» e outros temas ligados ao teatro em espaços abertos desde 2001. Atualmente é articuladora da Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR) e membro da ABRACE – Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas, onde participou da criação do Grupo de Trabalho “Artes Cênicas na Rua” em 2010. 34

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A dimensão auditiva do espetáculo – onde o espectador estaria “imerso” – não é sequer mencionada neste trecho de uma importante obra de referência para os estudos teatrais. Além disso, o autor usa como referência espacial prioritária para falar da visualidade do espetáculo a noção de perspectiva35. Na Renascença, “a perspectiva baseava-se na ordenação racional do espaço e do tempo como requisito à construção de uma sociedade mais avançada” (HARVEY apud GASTAL, 2006: 85), em concordância com o sentimento da época, de se buscar, no mundo, espaços geométrica e sistematicamente delineados. Desse modo, ao colocar a noção de perspectiva como o centro de sua definição de recepção, Pavis retoma um princípio espacial que contribuiu para corroborar na arte do teatro o paradigma cartesiano. Defendo aqui a necessidade de ampliarmos os nossos canais perceptivos, aprofundando o entendimento do espetáculo teatral, de modo a percebê-lo como uma arte capaz de abranger simultaneamente várias camadas de recepção igualmente importantes. Proponho a ideia de que a recepção do espetáculo de teatro em espaço aberto possui uma natureza específica, essencialmente audiovisual, e não apenas visual. Não se trata, evidentemente, de substituir uma primazia (visual) por outra (auditiva), mas de simplesmente mergulharmos mais fundo na obra de arte. Mas, para isso é preciso, antes de tudo, compreender duas instâncias singulares e intrínsecas à dimensão sonora do fenômeno perceptivo: se o “ouvir”, possibilitado pelo aparelho auditivo, cumpre uma função fisiológica, o ato da “escuta” vai além e se converte num meio para a construção de sentido do mundo e da realidade. Numa concepção semiótica da audição, isso significa que, mesmo ouvindo perfeitamente do ponto de Coerente com o princípio de profundidade – construído pelo artifício abstrato do “ponto de fuga” inscrito no painel plano, de fundo, do palco italiano – a perspectiva no teatro é construída a partir do ponto de vista do observador “ideal”, sentado no centro da plateia, a qual se mostrou totalmente pertinente ao nascente teatro burguês; tornou-se, não obstante, insuficiente como referência para o teatro que a partir do século XX tratou de explodir a estrutura convencional do palco (e, junto com ela, a abstração da perspectiva). 35

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vista fisiológico, escutamos apenas aquilo que selecionamos, consciente ou inconscientemente, para escutar. Assim como ocorre com os demais sentidos do aparelho sensorial, a escuta também é uma construção históricocultural e, como tal, condicionada pela época na qual está inserida (HARNONCOURT, 1998). O teatro ocidental sofreu grandes modificações do ponto de vista da sua conformação estrutural, passando por diferentes formas espaciais e arquitetônicas ao longo de sua história36; em função disso, é provável que tais mudanças tenham também operado, em igual medida, influências significativas sobre os processos de recepção por parte do espectador. Diferentes configurações espaciais solicitam pontos de vista – e de escuta – também diferenciados: a recepção do espetáculo teatral pelo cidadão da polis no antigo e ruidoso anfiteatro grego não era, certamente, idêntica à do cidadão burguês no moderno edifício teatral, com a sua exigência de “silêncio” para a abertura das cortinas e entrada dos atores no palco à italiana. Assim como também não o é para os teatros que desconhecem as convenções das salas fechadas ou, ainda, os que delas saem para se entregarem à aventura da cidade. A necessidade de compreender como acontece a recepção teatral – pelo viés da sua audibilidade – no espaço multifacetado e polifônico da cidade levou-nos então à busca de referenciais conceituais que digam respeito ao universo sonoro no qual o espetáculo de rua está “imerso” (resgatando-se, aqui, o termo utilizado por Pavis) e do qual retira parte essencial de sua poética. Nessa perspectiva, a “escuta” é tomada, aqui, como matriz conceitual que permite dar início a uma reflexão sobre a musicalidade do espetáculo de rua. A partir da postura de “espectador-ouvinte” e de uma recepção que busca privilegiar, temporária e propositalmente, o sentido da audição, serão aqui apresentados aspectos do espetáculo usualmente 36 Em seu artigo A casa e a barraca, Lidia Kosovski apresenta cinco configurações espaciais que caracterizaram o teatro ocidental em distintos períodos históricos: o anfiteatro grego, o palco múltiplo medieval, o palco elisabetano, o espaço renascentista da tragédia clássica e o palco italiano, e acrescenta a estes os espaços múltiplos e alternativos do teatro do século XX, que inclui a própria cidade como espaço cênico (KOSOVSKI, 2005).

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omitidos numa recepção teatral convencional. Em seguida, a interpretação artística da experiência musical encontrada no espetáculo de rua Ser TÃO ser – narrativas da outra margem37, criação coletiva do Buraco d’Oráculo, grupo paulistano de teatro de rua, é utilizada como meio de vislumbrar uma estética musical própria desta modalidade teatral, onde importantes aspectos de sua audiovisibilidade podem ser observados e discutidos sob o viés da escuta. O conceito musical chave, nesta análise, é o de imagem sonora38. O espetáculo que possibilita uma reflexão em que este e o conceito de escuta se articulam foi selecionado por criar, em cena, sonoridades cujas características musicais remetem o espectador-ouvinte a outros espaços-tempos, distantes do presente da cena. Isto vem a romper a relação usual de causalidade linear entre música e cena e demonstra – a despeito do senso comum vigente sobre a música no teatro como elemento “decorativo” – que o impacto das imagens sonoras produzidas pelos atores contribui para multiplicar, polifonicamente, os sentidos do espetáculo. Imagem sonora O termo imagem sonora é encontrado, hoje, em reflexões teóricas de pesquisadores que atuam em diversas áreas do conhecimento – tais como a psicoacústica, a musicologia, a musicoterapia e a antropologia – mas deve o seu nascimento a estudos de neurologia voltados para o mapeamento do sistema nervoso e das funções neurais ligadas ao equipamento sensorial e perceptivo do homem. Na perspectiva da neurofisiologia da audição, a imagem sonora nada mais é senão uma imagem mental evocada pela percepção auditiva; uma rede de impulsos neurais observável por 37

Respeitou-se, aqui, a grafia proposta pelo grupo.

Originalmente, a noção de imagem sonora se relaciona com um tipo de construção mental préconceitual, fato esse corroborado por pesquisas no campo da neurologia. As imagens sonoras – ou seja, imagens simbólicas evocadas por sonoridades – formam-se no córtex (superfície e tecido subjacente) onde são identificadas, armazenadas na memória e, eventualmente, enviadas a outros centros cerebrais (ROEDERER, 2002). 38

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meios tecnológicos. Evidentemente, essa imagem mental não possui uma forma figurativa tal como sugerido pelo termo “imagem”. Ela se constitui, antes, num padrão elétrico cujo movimento pulsante pode, por meio de equipamentos especializados, ser “desenhado” em formas visuais que apresentam graficamente essa atividade neural39. Desse modo, a imagem sonora é, basicamente, um padrão de impulsos neurais interpretados pelo cérebro. No campo da Musicoterapia, o estudo da imagem sonora aparece relacionado principalmente às teorizações do pediatra e psicanalista infantil inglês D. W. Winnicott, que introduziu a noção de fenômeno transicional para designar uma área intermediária da experiência humana que coloca em questão aquela premissa cartesiana sobre o indivíduo bipartido entre duas realidades, uma corporal e outra mental. Em seu texto de 1951, Objetos transicionais e fenômenos transicionais, Winnicott reivindica a existência de uma “terceira parte da vida de um ser humano”, que se constitui em “uma área intermediária entre o subjetivo e aquilo que é objetivamente percebido”, ou seja, trata-se de [...] uma área intermediária de experimentação, para a qual contribuem tanto a realidade interna quanto a vida externa. Trata-se de uma área que não é disputada, porque nenhuma reivindicação é feita em seu nome, exceto que ela exista como lugar de repouso para o indivíduo empenhado na perpétua tarefa humana de manter as realidade interna e externa separadas, ainda que interrelacionadas (WINNICOTT, 1988: 391. Grifo do autor).

O que interessa particularmente na teoria de Winnicott para este estudo é que o pediatra inglês compreende a música não só como um objeto transicional, mas como provavelmente o objeto transicional primário, uma A ultrassonografia e o eletrocardiograma são exemplos de algumas “partituras” de imagens sonoras decodificadas como imagens visuais, captadas por equipamentos sensíveis a estímulos sonoros e aplicadas em campos específicos da medicina. A diferença gráfica entre ambas é que enquanto a primeira é registrada sob a forma de manchas em contraste claro-escuro, a segunda descreve uma linha sinuosa cujo desenho fornece a significação de um padrão rítmico legível.

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vez que desde muito cedo o bebê reconhece, na voz da mãe, um objeto “que se torna vitalmente importante para seu uso no momento de ir dormir, constituindo uma defesa contra a ansiedade” (WINNICOTT, 1988: 393). Mais tarde, mesmo na vida adulta, a música continuará mantendo essa natureza transicional, o que explicaria também sob a ótica dos estudos psicanalíticos o poder interacional que a música representa na vida do ser humano. No âmbito do teatro, compreender a musicalidade do espetáculo como fenômeno transicional significa que, por meio de elementos e procedimentos musicais, se está estabelecendo um canal de comunicação não intelectual com o espectador-ouvinte, uma vez que as imagens sonoras suscitadas em sua mente durante o espetáculo são estreitamente vinculadas aos centros neurológicos da emoção40, anteriores ao pensamento racional. E, além disso, é preciso considerar ainda que a musicalidade de um lugar, uma comunidade ou uma cidade, territórios por excelência do teatro de rua, é também depositária de uma memória sonora, coletiva e social. Recuperar essa memória sonoro-musical através do espetáculo teatral significa, também, reativar antigas imagens sonoras no imaginário do cidadão e, com elas, os seus sentimentos mais profundos de pertencimento a uma coletividade, a uma “tribo” (MAFFESOLI, 1997), contribuindo para uma vida urbana menos vulnerável às possíveis influências desagregadoras da cidade contemporânea. Portanto, para o artista do teatro de rua não se trata apenas de produzir música durante uma apresentação teatral, mas, sobretudo, de mobilizar afetos profundos no espectador-ouvinte. Sinestesia A criação da imagem sonora deve-se basicamente ao fenômeno sensorial da sinestesia som/imagem. Esta palavra, derivada do antigo grego, justapõe a preposição syn (que denota união) ao substantivo aisthesis (sensação). De acordo com o Novo Dicionário “Aurélio” da Língua PortuSobretudo o Sistema Límbico, estrutura cerebral primitiva, responsável pelas reações emocionais (medo, desejo, raiva etc.), aspecto fundamental à sobrevivência do ser vivo. 40

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guesa, o termo se refere à “relação subjetiva, que se estabelece espontaneamente entre uma percepção e outra que pertença ao domínio de um sentido diferente”; ou seja, significa a capacidade de um sentido, estimulado, despertar outro, num cruzamento das sensações. O som como estímulo primário pode ser encontrado em diversas combinações sinestésicas como, por exemplo, as de som-movimento, som-luminosidade, som-temperatura, som-tato, dentre outras. A arte está repleta de fenômenos combinatórios dessa natureza: a sinestesia do sensório/auditivo para o motor, por exemplo, está no cerne da dança. No terreno das artes visuais, alusões sinestésicas são constantes nas descrições de obras famosas. O próprio Artaud, em seu conhecido ensaio A encenação e a metafísica, descreve assim o quadro As filhas de Loth, obra do pintor holandês renascentista Lucas Hugensz van Leyden (1494-1533): [...] seu patético é visível mesmo de longe, impressiona o espírito com uma espécie de harmonia visual fulgurante, ou seja, cuja acuidade age inteira e é apanhada num único olhar. Mesmo antes de poder ver do que se trata, sente-se que ali está acontecendo algo grandioso, e os ouvidos, por assim dizer, emocionam-se ao mesmo tempo que os olhos [...] vemos de repente revelar-se a nossos olhos, numa luz de alucinação, em relevo sobre a noite, alguns detalhes da paisagem: árvores, torre, montanhas, casas, cuja iluminação e cuja aparição permanecerão para sempre ligadas em nosso espírito à ideia desse dilaceramento sonoro [...] (ARTAUD, 2006: 31-33).

O recurso a descrições sinestésicas torna-se o meio mais poderoso para Artaud fazer chegar ao leitor as suas convicções, e levá-lo a acompanhar a sua crítica contra o que designa como “o teatro ocidental de tendências psicológicas”. Provavelmente um sinesteta, Artaud constrói suas teses não pela racionalidade de uma argumentação intelectual, mas por um discurso poético, sinestésico e visceral como ele próprio. Certas análises teatrais, realizadas em termos de uma escuta “cênica” do espetáculo, nos dão fortes indícios de que a sinestesia está presente - 143 -

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já nas obras dos grandes inovadores da cena teatral europeia do início do século XX, os quais manipulavam recursos musicais em prol de seus objetivos estéticos. Em A arte do teatro: entre tradição e vanguarda (2006), por exemplo, a pesquisadora teatral Béatrice Picon-Vallin nos informa que a musicalidade concebida por Meyerhold introduz no palco a presença da morte, em contraposição ao teatro naturalista, da “vida viva”, de Stanislavski. Ela descreve nos seguintes termos uma cena de A morte de Tintagiles, encenada em 1906: As três criadas da Rainha invisível aparecem juntas no palco, como um amontoado informe de trapos cinzentos e ameaçadores, sibilando suas intenções quase indecifráveis para se apoderarem o mais depressa possível do adolescente Tintagiles, vítima semelhante às dezenas de jovens que apodreciam nas prisões. Um crítico de Tiflis41 nota que certos espectadores sentem os cabelos se arrepiarem de horror (PICON-VALLIN, 2006: 17).

Meyerhold cria um tipo de incômodo sinestésico no público, que “sente os cabelos arrepiando de horror” diante das vozes “sibilantes” das personagens. Revela-se aí o uso consciente de um elemento musical – o uníssono – aqui, usado “ao contrário” (as vozes são sussurradas de forma assimétrica e irregular, propositalmente “desencontrada”), para suscitar estranheza no espectador e aprofundar ao nível fisiológico, pré-conceitual, o entendimento do espetáculo. Em O som e o sentido: uma outra história das músicas, José Wisnik comenta que o ruído sonoro é entendido como “aquele som que desorganiza outro, sinal que bloqueia o canal, ou desmancha a mensagem, ou desloca o código” (WISNIK, 1989: 29). Já o som que apresenta periodicidade – na fala ou na música – é compreendido como “organizado”, pois propõe ao ouvinte a expectativa de uma ordem subjacente. A construção da música passa, desde as suas práticas mais elementares, por esse princípio ordenador do caos sonoro: 41

Nome russo que a capital da atual Geórgia Oriental (hoje, Tbilisi) manteve até 1936.

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para muito Ser TÃO Ser muito mais Cuscuz Um único som afinado, cantado em uníssono por um grupo humano, tem o poder mágico de evocar uma fundação cósmica: insemina-se coletivamente, no meio dos ruídos do mundo, um princípio ordenador. [...] Assim a música se oferece tradicionalmente como o mais intenso modelo utópico da sociedade harmonizada e/ou, ao mesmo tempo, a acabada representação ideológica (simulação interessada) de que ela não tem conflitos (WISNIK, 1989: 30).

A definição de ruído como “desordenação interferente” ganha um caráter ainda mais complexo ao adentrar na esfera da arte, tornando-se “um elemento virtualmente criativo, desorganizador de mensagens/códigos cristalizados, e provocador de novas linguagens”. É isso o que propõe Meyerhold ao colocar, em cena, vozes que mais se parecem com ruídos do que com palavras articuladas. Esse procedimento musical provoca sonoramente um forte desvio do código ordenador, instaura o caos e potencializa a tensão da cena. Estudos de semiologia musical, como os do etnomusicólogo JeanJacques Nattiez (2004), levam à identificação de uma “sintaxe musical” – um sistema de relações formais entre os elementos constituintes do fenômeno musical que delineiam a sua estrutura (melodia, harmonia, estilos) – e uma “semântica musical” que relaciona as sensações auditivas a outras esferas, pertencentes a distintas ordens: emoção, imagem, ideologia e outras referências, inclusive sensoriais (tato, visão etc.). Significações semânticas são apreendidas também por associações sinestésicas: visuais (brilhos, cores, claro/escuro), relacionadas a movimentos (direcionais, circulares, estáticos, dinâmicos), densidades (denso, rarefeito), peso (leve, pesado) ou texturas (liso, áspero). Um forte indicativo disso é o uso corrente de uma terminologia musical repleta de termos oriundos de outros campos sensoriais para descrever o universo sonoro, de difícil apreensão. Termos como “textura” (tato), “brilho” (visão), “verticalidade” (propriocepção) e muitos outros, recorrentes na literatura musical, são essencialmente referências sinestésicas. - 145 -

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A interdependência mútua entre imagem e som – ou seja, a imagem sonora – pode ser considerada como um tipo bastante comum de sinestesia cuja natureza ainda não foi devidamente abordada no âmbito dos estudos teatrais, provavelmente pela concepção vigente de que o teatro é essencialmente uma arte visual. O mesmo ocorre em relação ao espetáculo teatral de rua, cujas reflexões e proposições se encontram, ainda, atreladas a concepções teóricas consagradas, voltadas para o teatro de sala. Nessa modalidade, as questões ligadas à musicalidade (do ator, da cena, do espaço cênico) são da maior importância, pois afirmam a sua especificidade. A apreensão sinestésica do espetáculo teatral de rua parece ser um caminho através do qual se torna possível transcender os limites bidimensionais de uma recepção estritamente visual (FLÜSSER, 2002) e mergulhar no sentido multidimensional daquilo que se poderia designar como escuta cênica do espetáculo, uma vez que a percepção do som pelo ser humano acontece por todas as direções, diferentemente da percepção visual que é prioritariamente frontal (e, em menor medida, lateral). A musicalidade do espetáculo Além dos aspectos intrínsecos à sintaxe da linguagem musical – presentes no próprio modo de organização do espetáculo, numa forma musical, nos movimentos corporais do ator, na velocidade e modulação da fala durante um diálogo – podemos considerar a musicalidade do espetáculo também em seus elementos semânticos, pelas correlações que se estabelecem entre elementos musicais e outros fatores, de natureza “externa” à música propriamente dita (associações sinestésicas, mnemônicas, históricas, afetivas etc.). Como exemplo dessa concepção de musicalidade presente numa encenação teatral “clássica”, temos a encenação de A dama de espadas em 1935, em que Meyerhold obtém poderosos efeitos de cena pela fusão contrapontística entre o musical e o cênico: Apoiada pela luz, a música de Tchaikovski aprofunda as ações cênicas, desnuda as emoções silenciosas dos personagens. Desvela,

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para muito Ser TÃO Ser muito mais Cuscuz por exemplo, a cada um dos passos de Liza, que desce a escada do dispositivo enquanto sua amiga Paulina canta, sempre no alto do salão de música, as diversas emoções experimentadas pela jovem. Ou, ainda, faz com que os espectadores escutem as batidas do coração de Hermano, o ruído de sua respiração, no início do terceiro ato em que, sobre a mesma música da introdução, ele sobe na ponta dos pés, com a longa capa arrastando-se atrás, a escada cujo oval caprichoso, ritmado pela ruptura de dois patamares, ocupa toda a cena e enquadra o quarto da velha condessa, embaixo. Ele se imobiliza, estatiza no patamar inferior e depois, à entrada dos violinos, sobre as colcheias, toma a partir para estatizar de novo, no alto, quando escutamos as semicolcheias, perante o retrato da velha, onde cantará em seguida o seu monólogo (PICON-VALLIN, 1989: 3).

A análise de Piccon-Vallin não apenas descreve um trecho da peça apontando as relações entre as ações realizadas pelos atores e os elementos musicais ali utilizados. Mais que isso, a sua interpretação poetizada é desveladora de uma dramaturgia eminentemente audiovisual, que nos permite entrever o diálogo entre as imagens da cena – signos de uma época e uma classe social (a escadaria oval, a longa capa, o retrato da condessa) – e a carga sinestésica que a trilha musical suscita, revelando sutilezas da emoção do personagem que somente os signos de uma linguagem sonoro-corporal (a pulsação do coração, a respiração) poderiam proporcionar. Outro exemplo é a montagem de O professor Bubu, de A. Faiko, em 1925, em que Meyerhold cria um “espetáculo-laboratório” onde a música está ininterruptamente presente em cena. Esta é produzida ao vivo por um pianista de casaca, Lev Arntcham, que executa Liszt e Chopin ao piano de cauda, instalado num dispositivo que reina absoluto, acima do palco. Apesar do virtuosismo exigido pela tarefa, o ator-músico exibe uma liberdade de expressão impensável para um pianista erudito, pois, em lugar de uma execução ipsis literis das peças, sua performance é marcada pelo emprego de trechos específicos de obras que dialogam ativamente com a ação cênica, rompendo portanto com uma ideia da música utilizada como “fundo” para - 147 -

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estabelecer com o espetáculo uma relação viva e dinâmica, desempenhando o papel de elemento “co-construtor” do mesmo. Um outro estímulo sonoro, paradoxal, é colocado no palco: inspirado nas matracas dos teatros orientais que demarcam para os espectadores o início de cada evento teatral, Meyerhold coloca uma “cortina” de bambus suspensos em torno da área de representação, soando a cada entrada e saída dos atores. Curiosamente, no documento fotográfico42 do espetáculo que chegou até nós, o dispositivo do piano e seu pianista foram omitidos do enquadre visual, que registrou apenas a cortina de bambus sendo ultrapassada pelos atores, no palco. Isso nos dá indícios de que o fotógrafo que documentou essa importante encenação não levou em conta o dispositivo piano-pianista para o contexto global da obra, provavelmente considerando-a restrita aos limites de uma função cenográfica e de apoio (musical). Inadvertidamente, esse documento, que registrou apenas os atores em detrimento do ator-músico, contribuiu para suprimir do espetáculo a sua dimensão audiovisual. Trazendo estas considerações para o universo do teatro de rua, cabe comentar que um procedimento semelhante ao acima descrito foi adotado pelo Grupo Galpão, de Belo Horizonte, na montagem de Um Molière imaginário (BRANDÃO, 2003). As diferenças mais perceptíveis aqui, entretanto, são em relação ao trabalho atorial da “pianista” neste espetáculo de rua, na verdade uma atriz do grupo que também é musicista43. Na peça, caracterizada de fada, ela toca um singelo teclado eletrônico de cinco oitavas e não um suntuoso piano de cauda; mas, em diversos momentos do espetáculo, além de executar melodias e comentários musicais, estabelecendo um diálogo sonoro com a cena que se realiza logo abaixo do dispositivo, ela também narra ou comenta diretamente com o público alguma ação que se passa em cena, acentuando o caráter épico do espetáculo. Tal procedimento vincula, assim, o trabalho do grupo às formulações teóricas 42 A fotografia aqui mencionada ilustra o texto intitulado O ator musical: investigando as dimensões do ritmo, da pesquisadora teatral Ana Dias, e publicado no nº 10 da Revista Folhetim/Teatro do Pequeno Gesto, em 2001. 43

Fernanda Vianna, no papel de Rainha Mab, a fada dos sonhos.

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de Bertolt Brecht sobre o uso da música no Teatro Épico (BRECHT, 1967), enquanto recurso estético capaz de produzir em cena o chamado efeito de distanciamento, mas, principalmente, revela uma concepção teatral em que a música desempenha, assim como em Meyerhold, o papel de elemento coconstrutor do espetáculo. Ser TÃO ser – narrativas da outra margem Embora a temática nordestina seja bastante comum no teatro de rua brasileiro, o tratamento dado à mesma pelo Buraco d’Oráculo no espetáculo Ser TÃO ser – narrativas da outra margem é, de fato, original. A cultura popular, inerente ao tema do espetáculo – o migrante nordestino –, não recebeu o tratamento “folclórico” que é frequentemente encontrado em espetáculos de coletivos de outras regiões do país que abordam essa temática tomando de empréstimo textos da literatura de cordel ou outros elementos característicos do nordeste44, nem trabalhou no mesmo sentido dos grupos teatrais oriundos dessa região45, que assumem francamente uma postura ético-estética em defesa dos seus valores culturais. Ao contrário, ainda que tenha surgido de uma pesquisa de campo realizada pelos membros do grupo (alguns destes, descendentes de nordestinos46), com migrantes que ao longo das últimas décadas se estabeleceram nos bairros periféricos da capital paulistana, o espetáculo não presentifica o nordeste em suas cores e danças mais festivas; o seu lócus é a cinzenta São Paulo, “o avesso do avesso do avesso”, nas palavras do também migrante Caetano Veloso, imortalizadas na canção Sampa.

44 Em eventos teatrais de rua no Brasil, é mais comum a adoção da temática nordestina dentro de uma linha cômico-popular. 45 Imbuaça (SE); Gente de Teatro da Bahia (BA); Grupo Sinos (PI); Movimento de Teatro Popular (MTP-PE), entre outros. 46 Adailtom Alves é natural de Iguatu (CE); os demais integrantes do grupo atual (Edson Paulo, Lucélia Coelho e Heber Teixeira, o “Johnny John”) são paulistas descendentes de nordestinos. Selma Pavanelli, como mostra o seu nome, descende de italianos radicados no interior do estado de São Paulo.

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Os primórdios dessa criação coletiva encontram-se no ano de 2006, quando o grupo foi contemplado pela primeira vez com o Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, com o projeto Circular Cohab’s. Durante um ano e meio, o Buraco passou por dezoito comunidades da cidade apresentando o seu repertório teatral e realizando oficinas47. Nessas comunidades, os seus integrantes entraram em contato com as histórias de seus moradores, suas origens, quando e como haviam chegado, o que faziam, descobrindo através desses relatos as transformações pelas quais haviam passado aqueles lugares e sua gente. Surge o desejo de levar para a cena as pessoas que até então apenas assistiam aos espetáculos e de estabelecer com aquelas comunidades uma nova forma de relacionamento. Ao serem contemplados novamente em 2008 pelo Fomento, o grupo concentrou o trabalho em São Miguel Paulista e Cidade Tiradentes, distritos da região leste de São Paulo, onde iniciou o registro sistemático das histórias das pessoas e dos lugares por meio de entrevistas coletivas. O resultado desse processo foi o espetáculo Ser TÃO ser – narrativas da outra margem, cujo mote, segundo o ator e diretor Adailtom Alves, se inspirou na célebre frase de Guimarães Rosa: “O sertão está em toda parte”. E, de que “fala” o espetáculo? Este é construído por uma série de narrativas de migrantes brasileiros que chegam, vindos de diferentes regiões (embora o nordeste seja enfatizado), para a grande metrópole paulistana em busca de melhores condições de vida. Elementos da cultura nordestina estão presentes na indumentária dos atores, nos códigos comunicacionais entre os personagens (uso de jargões, gestos), nas cenas que evocam costumes tradicionais; em nenhum momento, porém, é adotado pelos atores o “sotaque” nordestino, procedimento este que evita tipificações de caráter cômico para promover, em contrapartida, um efeito de distanciamento (no sentido brechtiano) e despertar no espectador uma atitude mais reflexiva e crítica acerca da difícil condição do migrante – oriundo do nordeste ou de qualquer região do país – que é levado a abandonar suas raízes no interior para buscar a sorte na “cidade grande”. No espetáculo, os deslocamentos espaciais dos atores e das próprias Segundo registros do grupo, com o projeto alcançou-se um público de mais de trinta mil pessoas (CADERNO DE TRABALHO, 2011). 47

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cenas rompem, por sua vez, com a estaticidade que é comumente atribuída ao teatro de rua em função da espacialidade em roda (predominante na vertente tradicional desta modalidade), criando em alguns momentos diferentes situações de intervenção ativa sobre o espaço urbano – procedimento este mais ligado a uma proposta contemporânea e “invasora” de teatro de rua, em que a cena teatral toma repentinamente, “de assalto”, a cidade (KOSOVSKI, 2003; CARREIRA, 2008). Estas interferências estão presentes também na ação fragmentada dos atores e nas relações que estes estabelecem com os transeuntes por quem passam, durante a sua perambulação aleatória no prólogo do espetáculo; na “roda de causo” que se forma espontaneamente na calçada, quando uma das atrizes começa a oferecer café feito na hora aos curiosos enquanto lhes conta a sua história, e que é repentinamente desfeita pela marcha desesperada dos personagens que saem em busca de seu destino, sem saber ao certo qual direção seguir (e o público, tão perdido quanto os recém-chegados na rodoviária da capital, os seguem pela rua ouvindo fragmentos de relatos). O pesquisador teatral André Carreira comenta que o teatro de rua é capaz de promover “diferentes planos de atenção dos espectadores”, tanto pelo caráter flutuante e eventual do público na rua quanto pela a ausência de restrições que o mesmo encontra no espaço aberto da cidade: Na rua, as convenções sociais não são tão rígidas como as de uma sala de espetáculos, e como o cidadão não paga entrada nem tem lugar fixo para assistir à representação de rua, se sente, em todo momento, em liberdade de entrar ou sair do âmbito da representação (CARREIRA, 2007: 47).

A situação de mobilidade própria do espectador que assiste a um espetáculo realizado no espaço público acaba por desenvolver fruições estéticas também diferenciadas, que variam desde a percepção superficial de alguns relances da ação individual dos atores, até a experiência total de acompanhá-los de perto, durante toda a apresentação. É o que se verifi- 151 -

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ca em Ser TÃO ser. O mesmo espectador que em determinado instante se encontra, talvez por acaso, num ponto de visão privilegiado em relação a uma cena, logo no momento seguinte, é destituído desse privilégio porque a cena se desfez, colocando-o simbolicamente no mesmo desconforto da súbita experiência de desterritorialização pela qual passam os personagens migrantes do espetáculo. Por várias vezes, o público é desafiado a viver junto, com os atores, a errância compulsória que caracterizou grande parte da população brasileira, sobretudo nordestina, durante praticamente toda a história do país. Equilibrando-se entre a tensão e o distensão que os relatos e a ação cênica lhe provocam, o público que acompanha os atores permitese fazê-lo a partir de diferentes pontos – de vista e de escuta – fruindo o espetáculo de diferentes formas: ora mais próximo, ora mais distante, ora “dentro” da própria cena, “jogando” o espetáculo junto com os atores. Outro dado que chama a atenção é de ordem sonoro-musical: onde se esperaria encontrar ritmos e canções do cancioneiro popular nordestino, xotes e quadrilhas entoadas com os tradicionais acompanhamentos de zabumba, triângulo, pandeiro e sanfona, ouve-se violão, percussões com sucata, rap, paródias de MPB. Essa desobediência aos códigos convencionais também na área da musicalidade indica uma atitude inovadora do grupo frente às questões do popular num espetáculo de rua. Ao mesclar elementos tradicionais com a cultura urbana, Ser TÃO ser transpõe os limites das referências cristalizadas pela tradição e penetra no território menos definido das culturas híbridas (CANCLINI, 2003), aspecto esse que enfatiza o seu caráter de contemporaneidade. Adentrando o âmbito específico da música, será feita a seguir uma descrição nos moldes da etnografia densa proposta por Clifford Geertz (1978), onde algumas noções musicais são utilizadas como ferramenta metodológica para analisar o prólogo musical de Ser TÃO ser, no intuito de desvelar uma semântica musical em que referências musicais, históricas e culturais travam um cruzamento de sensações que caracteriza uma recepção não apenas visual, mas audiovisual da cena. - 152 -

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Migrantes e canções Calçadão de Canoas, pleno calor do verão gaúcho. O Buraco d’Oráculo se prepara para a apresentação de Ser TÃO ser – narrativas da outra margem, espetáculo que integra a programação da III Mostra de Teatro de Rua da RBTR-RS48, realizada em janeiro de 2010. Pessoas passam, arrastando sombras pelo calçamento quadriculado, vultos cansados pelo dia quente de trabalho. Procuro os atores, que se dispersaram pelo espaço seguindo, cada um, o seu próprio caminho. O espetáculo, assim pulverizado, coloca-me, enquanto espectadora, na condição de ter que optar: que caminho seguir? Então, antes pelo ouvido do que pelo olho, encontro Adailtom Alves, que também dirige o espetáculo. Ao caminhar, vai dedilhando um violão. Volto-me para as notas musicais que o instrumento, agora já transmutado em viola pela magia do teatro, despeja no ar. Vai nascendo, assim, uma melodia. O ator estanca; olha à sua volta como se procurasse alguma coisa... Seu figurino – calças folgadas e túnica, ambos de algodão cru – completa a imagem pintada na mochila às suas costas: terra. Terra marrom, rachada, muito rachada. E céu. Marrom e azul-celeste. E a areia alva do tecido. Adailtom, o violeiro, carrega no próprio corpo a terra natal em cores e formas. É a presença indelével de outro lugar, estampada na trama da roupa e da memória. Vagueia, parecendo meio perdido, meio pedindo ajuda com o olhar, acompanhando quem passa. Mas quem passa não olha para ele; sua presença é sumariamente ignorada pelos transeuntes. Não imaginam que, ao repetir esse gesto de descaso, passaram – mesmo que involuntariamente – a fazer parte do espetáculo, como atores de um elenco representando o desdém da população de um grande centro urbano em relação aos miseráveis que nela chegam todos os dias, vindos do interior do país. O ator se aproxima de um casal sentado num banco, cumprimenta -o respeitosamente com o chapéu e fala alguma coisa. Ainda consigo ouvir o seguinte trecho, enquanto me aproximo: 48

Rede Brasileira de Teatro de Rua, Rio Grande do Sul.

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Buraco d`Oráculo: 15 anos de história [...] A gente escreve a própria história. Quando a história da gente se junta com a do outro, é mais bonito. É uma outra história. Ói, se vocês quiserem, podem me seguir. Porque pra onde eu vou tem mais história, viu? Todo mundo é assim: começa onde nasce. E termina onde escolhe.

Os outros atores-viajantes começam a regressar para um lugar central de encontro no espaço do calçadão. Adailtom também se dirige para lá, para e tira a estranha mochila, retangular, das costas. Esta se transforma num banco onde o ator senta, atraindo o público com placidez de velho sertanejo. A atriz Lu Coelho convida os que passam, com um gesto camarada de mão. Logo os outros atores, Edson Paulo e Selma, vêm se unir à trupe. Assim, todos chegam à cozinha, tiram suas mochilas-caixas das costas fazendo uma grande roda que anseia pelo café, cujo aroma se espalha pelo ar. Cada um desses objetos é um caixote de madeira, um guarda-roupa, um baú, um relicário no qual os personagens carregam as histórias de suas vidas: raízes, sonhos, objetos, amores. Surge agora uma canção alegre, que recebe acompanhamento rítmico: o ator Heber Humberto percute com as mãos a sua mochila-caixa, sentado sobre ele à moda de um cajón peruano49. Uma cadência perfeita50 nasce do violão, oferecendo a introdução para Adailtom “puxar” o canto de Cálix Bento, conhecida canção de Milton Nascimento51: Ó Deus salve o oratório (bis) onde Deus fez a morada, oiá meu Deus... O cajón, aumentativo de caja (“caixa” em espanhol), é originário do Peru colonial, quando os escravos africanos utilizavam caixas de madeira como instrumento de percussão em suas manifestações musicais. É considerado, hoje, afro-peruano e patrimônio cultural dessa nação. 49

50 Do italiano cadenza (caindo), a cadência marca o fim de uma frase musical no sistema tonal, dando-lhe o sentido de uma pontuação. A cadência perfeita é constituída por dois acordes: o da dominante, seguido da tônica. Na prática, isso significa que o ator-músico Adailtom utilizou, como introdução ao canto de Cálix Bento, os acordes de LáM (dominante) e RéM (tônica) algumas vezes, antes que o grupo começasse a cantar.

Inspirada nos cantos da Folia de Reis do interior de Minas Gerais, a versão original da composição aparece no álbum Geraes (1976) do compositor mineiro. 51

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para muito Ser TÃO Ser muito mais Cuscuz onde Deus fez a morada, oiá! Onde mora o Cálix Bento (bis) E a hóstia consagrada, oiá meu Deus... e a hóstia consagrada, oiá! De Jessé nasceu a vara (bis) Da vara nasceu a flor, oiá meu Deus... da vara nasceu a flor, oiá! E da flor nasceu Maria (bis) De Maria, o Salvador, oiá meu Deus... de Maria o Salvador, oiá!

Todos se integram à cantoria, timidamente no início e, a seguir, com entusiasmo. É um canto religioso-profano inspirado no repertório das Folias de Reis, testemunha do fervor católico que impregna toda a música “de raiz” do interior do país e particularmente de Minas Gerais, terra de Pena Branca e Xavantinho, dupla sertaneja que o popularizou nos anos de 1970. Ao som da viola, são contados “causos” de migrantes, entremeados de canções populares. Depois desse momento de aconchego, é chegada a hora da partida; os atores repentinamente colocam suas mochilas-casas nas costas e, desfazendo a roda que se formou espontaneamente à sua volta, ganham novamente a rua em passos rápidos, quase corridos. A maior parte do público, surpreendido com a guinada súbita, tenta acompanhar os atores nessa nova etapa de sua saga. Mais à frente, forma-se outra roda em torno dos personagens que acabaram de “chegar” à Rodoviária da Grande São Paulo, para ouvir novos relatos verídicos, dos atores ou das pessoas entrevistadas na sua pesquisa de campo. De quadro em quadro, o Buraco d’Oráculo apresenta ali o processo perverso que caracteriza os grandes agrupamentos urbanos da atualidade: a ocupação de um terreno, a construção de seus abrigos precários, a desocupação forçada e, finalmente, a sujeição desses cidadãos desassistidos às manobras do setor imobiliário que, em conluio com os poderes públicos, “soluciona” o problema dessa população oferecendo-lhe uma moradia “a preços acessíveis” em conjuntos habitacionais de qualidade inferior. - 155 -

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Todas as cenas são alimentadas musicalmente por canções populares conhecidas, mas principalmente por composições próprias, cujos títulos traduzem de forma simples e direta a crítica social e a denúncia pretendidas pelo grupo: Rap do Enfrentamento, A luta de um povo humilde, Rap da periferia, Se você quer sua casa própria, Essa casa vai ser minha, Minha casa, Levanta povo. Além desse conteúdo musical inédito, o grupo faz ainda algumas “apropriações”, criando paródias52 e “recriações” a partir de outras obras musicais, como é o caso de Cachaça não é água (Mirabeau Pinheiro, Lúcio de Castro e Héber Lobato), Se essa rua fosse minha (domínio público), A casa (Vinicius de Moraes); Maia e Se o povo soubesse (canções oriundas de movimentos sociais, de autoria coletiva), e alguns gêneros nordestinos tais como Xote dos cabeludos (Luiz Gonzaga e José Clementino), Xote das meninas (Luiz Gonzaga e Zé Dantas) e O cheiro da Carolina (Luiz Gonzaga). Esse rico repertório musical reflete as referências culturais dos integrantes do grupo: na infância, todos tiveram a oportunidade, hoje rara, de crescerem em meio a cantigas de roda, presentes em jogos e brincadeiras populares que mantêm preservadas uma estrutura multifacética ao integrarem atividades simultaneamente rítmico-melódicas e corporais, vivenciadas lúdica e coletivamente. São mencionadas, também, influências musicais de teor fortemente tradicional, incluindo-se aí a sonoridade nostálgica das violas sertanejas e as emboladas “de pandeiro”, além dos cantos religiosos católicos. Nas cenas em que aparecem, as músicas são quase sempre entoadas em uníssono pelo coletivo, acompanhadas pelo violão de Adailtom e pelas percussões realizadas por outros integrantes, desempenhando no espetáculo uma função de elemento que potencializa o efeito de distanciamento No contexto musical, a paródia é uma técnica que emprega propositalmente elementos reconhecíveis de outras composições dentro de uma obra (por exemplo, usar a música de uma canção, porém alterando-se parcial ou completamente a letra). Oriundo da música renascentista, o procedimento renasceu no século XX e passou a ser amplamente adotado em várias vertentes da música de cena, como ópera, teatro, cinema e televisão. Ao “cruzar” elementos musicais, a paródia cria para o ouvinte uma dupla referência, multiplicando os sentidos da cena. 52

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brechtiano. Alguns fatores auxiliam-nos a fazer essa afirmação. Verificouse, por exemplo, o uso predominante de canções – songs, na terminologia de Brecht – que interrompiam por vezes a linearidade da ação cênica, evidenciando o caráter não-ilusionista da representação; além disso, por meio das letras dessas canções os atores iam narrando ao público as manobras de opressão e repressão utilizadas pelas figuras de poder ali representadas – a polícia, a mídia, os políticos – tornando-se “um colaborador ativo na tarefa de desnudar o corpo da ideologia burguesa” (BRECHT, 1967, p. 83). O uso desse tipo de música-gestus, capaz de representar musicalmente os gestos sociais dos personagens envolvidos em cada cena, demonstra que não se tratou de colocar em cena atores-cantores interpretando canções, mas de atores narrando uma história por meio das canções. Isso não significa, entretanto, que inexistiu qualquer exigência técnica nesse sentido; ao contrário, para dar conta da tarefa o coletivo manteve um trabalho permanente de preparação53 corporal, rítmica e vocal, paralelo à montagem do espetáculo. Num certo momento do espetáculo, por exemplo, um “policial” adentra a cena anunciando aos demais personagens (os moradores da comunidade de imigrantes, ali representada) uma ordem oficial de despejo de suas casas. Toda a cena é “musicalizada” por meio de um procedimento conhecido no meio musical como jogo de “pergunta-e-resposta”, tipo de canto responsorial que no espetáculo é realizado pelo policial e os imigrantes, que respondem em coro às suas ameaças. Enquanto cantam, os atores simulam com o próprio corpo um movimento em uníssono que se contrapõe aos movimentos do antagonista, que usa o próprio “escudo” como instrumento musical. Percutindo ritmicamente a sua “arma” (um cacetete, utilizado pelo personagem como baqueta) no corpo desse objeto cênico transformado em instrumento percussivo (o escudo típico de uma tropa de 53 Esse trabalho se desenvolveu com o apoio de dois profissionais, Melissa Maranhão (preparadora vocal) e Celso Nascimento (professor de percussão), durante o projeto Narrativas de Trabalho, dentro do qual também estava prevista a qualificação musical dos atores do Buraco d’Oráculo. Elizete Gomes foi a profissional responsável pela preparação corporal.

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choque, feito de sucata), o ator cria uma base rítmica sobre a qual todo o conjunto da cena irá se desenvolver. Rap do Enfrentamento (criação coletiva do Buraco d’Oráculo) [Policial] Desocupem essa área Tô cumprindo o meu dever Proteger o patrimônio Doa a quem doer Desocupem essa área Ou a porrada vai comer. [Povo / ocupantes] Chega de promessa Chega de enrolação (2X) União, Estado e Município Ninguém dá a solução! (2X) Direito a moradia Está na Constituição (2X) [Policial] Desocupem essa área Ou a porrada vai comer Tô fazendo o meu papel Tô cumprindo o meu dever Proteger o patrimônio Doa a quem doer! Spray, bala de borracha Gás pra entorpecer Desocupem essa área Ou a porrada vai comer! [Povo / ocupantes]

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para muito Ser TÃO Ser muito mais Cuscuz Aqui só tem família e trabalhador (2X) Mas tem panela, pau, pedra. (2X)

Estabelece-se, assim, um cruzamento de múltiplas referências – a imagem de uma figura de poder (o “policial”) em oposição ao “povo”, a letra da canção, o gênero musical que lhe dá a base rítmica (Rap)54 – onde tudo contribui para a construção de uma imagem cênica, visual e sonora dos conflitos sociais existentes nas grandes metrópoles. Porém, ainda que o trabalho musical desenvolvido pelo grupo mostre a importância que a música representa para a sua proposta ético-estética de teatro – fazendo de suas criações e recriações musicais a concretização de um gestus musical imbuído de forte carga política que extrapola a mera “utilização” da música em um espetáculo – é preciso ressaltar, neste ponto, que a musicalidade do espetáculo Ser TÃO ser não se limitou à utilização de exemplos pontuais de canções com finalidade didático-política. O tratamento sonoro-musical dado pelo grupo vai mais além, extrapolando mesmo a musicalidade-gestus que se vincula a uma cena em especial (como a do exemplo descrito antes), mostrando que por meio de procedimentos e elementos musicais é possível agenciar o conteúdo afetivo-existencial do espetáculo. É para essa camada, mais profunda, da musicalidade de Ser TÃO ser que se voltam as reflexões que se seguem. Prólogo de Ser TÃO ser: o sertão está em toda parte O universo musical está repleto de analogias entre som e imagem. Desde as primeiras tentativas de registro das melodias litúrgicas pelos padres católicos, a grafia da música europeia representou uma estratégia de transpor, para o espaço plano e bidimensional, a matéria-prima de uma arte que recusa deixar-se aprisionar dentro dos limites do espaço físico. A 54 Chegando ao país no final dos anos 80, o Rap (rhyme and poetry) logo se tornou um gênero popular nas periferias das grandes metrópoles brasileiras (sobretudo do sul e sudeste), devido ao conteúdo contundente das letras que oscilavam entre a crítica social e o ataque direto às instituições, sobretudo a polícia, levando a público questões como violência, criminalidade e discriminação racial.

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impermanência da matéria sonora trouxe para os primeiros estudiosos da música ocidental o desafio de apreender o som num suporte fixo e, com isto, assegurar não apenas a expressão artística que produziam, mas, e além disso, criar um instrumento pedagógico eficaz para a transmissão e manutenção da ideologia cristã através dos cantos bíblicos. Os exemplos mais elementares da analogia som/imagem são o da nota musical como “ponto” e o da melodia (sucessão de notas musicais) como “linha” sonora; o mesmo ocorre em relação ao termo “altura” como sinônimo de frequência (vibrações de um corpo), além dos movimentos musicais de “ascendência” e “descendência” que as notas descrevem no espaço imaginário da pauta musical. Segundo Roy Bennett (1986), a música ocidental mais antiga de que se tem o registro escrito consiste em uma única “linha” melódica. No contexto religioso do início do período medieval esse tipo de música sacra, vocal e sem acompanhamento instrumental, tornou-se conhecido como cantochão. As primeiras composições polifônicas – formadas por duas ou mais linhas melódicas – surgem somente a partir do século IX, com o nome de organum. A forma mais antiga deste estilo é a do organum paralelo, onde a voz principal (o cantochão original) é duplicada nota a nota (daí a expressão latina punctus contra punctus que deu origem ao termo contraponto), criando um paralelismo sonoro que se tornou um dos elementos mais marcantes da cultura musical cristã. Mais tarde, o contraponto irá dar lugar a experimentações polifônicas muito mais complexas, capazes de misturar elementos heterogêneos e romper com o paralelismo inicial. É com essa ideia de composição polifônica contrapontística que pretendo estabelecer uma analogia entre cena e som, para penetrar no universo cênico-musical do prólogo de Ser TÃO ser. Aqui, o termo prólogo (do grego prologos, “discurso que vem an55 tes”) é utilizado para descrever a primeira ação cênica deste espetáculo, De acordo com Pavis (2003), o prólogo se refere à parte que antecede a peça propriamente dita, na qual um ator dirige-se diretamente ao público para lhe dar boas vindas e anunciar temas importantes. Dentre outras funções do prólogo, figura a de estabelecer um discurso intermediário que 55

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momento em que se estabelece o primeiro contato da representação com a sua audiência: o público aleatório do calçadão de Canoas num fim de tarde. Este, constituído em sua maioria por comerciantes e vendedores que estão fechando as lojas para irem embora após um dia comum de trabalho, é gradativamente “fisgado” por um fio de música que se insinua por entre os ruídos (vozes, passos, motores) da paisagem urbana. A ação cênica inicial – aquela que inaugura o nexo entre representação e espectador – é promovida, sobretudo, por um estímulo sonoro-musical: a improvisação de Adailtom, cujas peculiaridades musicais carregam consigo o sentido global do espetáculo. O prólogo de Ser TÃO ser é realizado por meio de uma melodia que soa solitariamente no espaço aberto da cidade, e é entremeada pelas falas declarativas dos personagens: “Todo mundo é assim: começa onde nasce. E termina onde escolhe”. A mesma frase, enunciada individualmente pelos atores ao público, é o anúncio de algo não pertencente ao tempo do evento representado. Encontra-se noutro espaço-tempo, como uma profecia que se dirige ao conjunto humano e não apenas a alguém em particular. A abertura do espetáculo mostra um modo de construção dramatúrgico-musical que explicita o paradoxo de viver entre o “ser” (algo que simplesmente nasce e morre) e o “TÃO ser” (alguém que delibera sobre o próprio destino). A vida sem ou com arbítrio é a grande questão existencial apresentada pelo “Oráculo”, cujos ecos estão também na máxima shakespeareana ser ou não ser, eis a questão, parodiada no próprio título do espetáculo. Do ponto de vista da musicalidade da cena propriamente dita, pode-se dizer que o Buraco d’Oráculo utiliza, no prólogo, um procedimento de improvisação musical em que a solidão do nordestino na metrópole é evocada, semanticamente, pela execução quase aleatória de notas de uma escala modal – vestígios de um mundo ancestral, cíclico e coletivo que aparecem como que deslocados do mundo atual contemporâneo, linear e individualista – materializando sonoramente a precariedade do sertanejo garanta uma passagem “suave” da realidade para a ficção e introduza o espectador no jogo teatral.

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em meio ao ambiente urbano. É ao mesmo tempo um lamento, um chamado e um testemunho desse sentimento de nostalgia do mundo que foi deixado para trás e do espanto de ver-se arremessado repentinamente noutro lugar, no qual o homem não se sente à vontade, pois as convenções aí reinantes ainda lhe são estranhas. A sua música é também um porto seguro, e o homem se agarra a ela como o ator segura o instrumento junto de seu corpo, de seu peito, na única intimidade possível naquele universo de exposição pública e anônima que a cidade lhe impõe, deixando à mostra a fragilidade do ser. É também um signo dessa busca de afeto, a viola que o ator abraça e acaricia com carinho, devolvendo ao objeto o aconchego de um lar distante, talvez perdido para sempre. A estrutura musical como veículo de imagens sonoras Em seu estado primário, o campo sonoro é fluido e caótico. Enquanto fenômeno físico, o som musical não se diferencia do que se chama comumente de “ruído”. Todo som é vibração: um corpo vibra, e em resultado dessa ação vibratória produz ondas invisíveis que se propagam no espaço, sensibilizam o nosso aparelho auditivo e são identificadas pelo cérebro como “som”. É apenas pela força das convenções criadas pelo homem que o efeito das ondas sonoras vai além de suas funções essenciais (como as de comunicação e sobrevivência, de que todo ser vivo depende) e se torna música: arte. Ao longo do tempo cada povo elege os seus sons preferenciais, destacando-os do oceano indiferenciado dos sons do universo e fazendo deles referências objetivas de seu mundo e modo de vida: nascem desse modo as chamadas “notas musicais”, pontos sonoros de apoio sobre os quais serão construídas as estruturas musicais de cada cultura – as escalas. Segundo Wisnik, As escalas são paradigmas construídos artificialmente pelas culturas, e das quais se impregnam fortemente, ganhando acentos étnicos típicos. Ouvindo certos trechos melódicos, dos quais identificamos não-conscientemente o modo escalar, reconhecemos frequentemen-

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para muito Ser TÃO Ser muito mais Cuscuz te um território, uma paisagem sonora, seja ela nordestina, eslava, japonesa, napolitana, ou outra (WISNIK, 1989: 65).

Essa construção se efetiva ao longo do tempo, representando o produto cultural resultante de um pensamento e um modo de vida que pertence a toda uma coletividade; são, contudo, os músicos os que lidam mais diretamente com essas estruturas, pois são elas que dão uma primeira forma à matéria informe do campo sonoro e possibilitam criar o que convencionamos chamar de “música”. Foi através do mapeamento e do trabalho de organização e reorganização dos sons, realizado por incontáveis músicos dos mais diversos lugares e tempos, que se desenvolveram e continuarão a se desenvolver as mais diversas expressões musicais. O que vemos acontecer no prólogo de Ser TÃO ser poderia ser descrito como uma reedição sintética desse processo milenar, concretizado no jogo musical aparentemente singelo que o ator-músico Adailtom estabelece com o seu instrumento. Isso significa dizer que, na fase inicial de sua improvisação com o violão, ele busca intuitivamente pontos sonoros de apoio – notas musicais “chaves” – em busca de um sentido musical. Por isso, nesse momento parecem ainda notas avulsas que nascem sem direção, sem intenção, soando apenas, numa vida que se preocupa apenas em ser vivida. Quando, em meio a esse processo, a estrutura escalar da melodia finalmente se define, surge uma frase musical elementar de três notas musicais, vacilante, que se repete e repete, exercitando a sua presença no mundo, como uma criança que começa a andar sozinha. Essa brincadeira sonora não se dá, entretanto, sem que uma intensa carga cultural do nordeste venha também à tona, uma vez que o atormúsico que a realiza tem nessa região do país as suas próprias origens; as estruturas escalares que constituíram historicamente a musicalidade que reconhecemos como nordestina estão profundamente enraizadas em sua memória, de modo que a improvisação musical, embora livre, já caminha nessa direção. Surge um pequeno discurso musical, primitivo, essencial, sem adornos. Uma a uma, notas soltas do início formam motivos melódi- 163 -

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cos mais definidos, desenhando uma linha sonora cada vez mais nítida. O sentido musical até então apenas esboçado flutua agora no ar, sugerindo uma melodia que mergulha reiteradamente, descrevendo um movimento descendente. Agora, torna-se possível reconhecer uma escala modal56, que une no mesmo gesto sonoro o passado distante de uma Europa mediterrânea e de um Brasil caboclo onde, pela força da evangelização católica e canônica, preservaram-se esses modos musicais, eternizados na sonoridade de seus cantos de fé e conversão. Submersas nas correntes profundas da cultura popular nordestina, estão resquícios de antigas escalas gregas que sobreviveram no canto salmodiado dos missionários jesuítas, constituindo testemunhos de uma ancestralidade marcada pela mistura de culturas, etnias, territórios, vozes, tempos. De acordo com uma importante obra de referência no assunto – As estruturas modais na música folclórica brasileira (1994) – a musicóloga Ermelinda Paz comenta que, para a grande maioria dos pesquisadores de música brasileira, são as influências ibérica e africana as mais importantes para nossa formação musical, e isso significa considerar a longa ocupação árabe na Península Ibérica como parte essencial dessa influência. Vários autores citados por Paz apontam a presença moura no Brasil através de festas populares, como o Auto do Rei dos Mouros e a Cavalhada, além de elementos especificamente musicais como o aboio, que seria uma assimilação das zambras e hudas cantados pelos tropeiros árabes. Um estudo musical mais acurado do prólogo revelou claramente a presença dessas estruturas modais na improvisação livre de Adailtom. Ao transpor para uma partitura convencional esse trecho musical conforme estava registrado em vídeo, ficou evidente que a improvisação não ocorria de fato na escala de G (Sol Maior) como pensava inicialmente o ator-músico, mas sim do uso totalmente intuitivo – não intelectualizado – de uma estrutura escalar modal, e não tonal. Em primeiro lugar, em termos rítmicos, a No ocidente, refere-se à organização escalar, descendente, de notas musicais dentro do sistema musical historicamente anterior à música tonal. 56

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grafia da improvisação fez emergir uma partitura de sons sem tempos definidos metricamente. Ao contrário, encontramos uma sequência fluida, que prescinde das barras de compasso57 a definir um número exato de tempos e divisões de tempo – característica da pulsão ocidental moderna pela exatidão métrica da linguagem musical, ausente naquela improvisação instrumental. Observou-se, diferentemente, um uso fluido das durações sonoras, tal como era em seus primórdios a música ocidental, ao não se subordinar a um sistema de medição temporal baseado em proporções matemáticas, e sim aos laços viscerais que estabelecia com o texto cantado ou com o pulso das danças populares. Em termos do tratamento propriamente melódico, a reiterada presença do baixo sobre a nota ré, as outras notas musicais utilizadas na improvisação e o movimento claramente descendente que se desenhava como linha melódica mostravam que a escala utilizada era, na verdade, pertencente ao campo sonoro de Ré Mixolídio, que contém o mesmo fá# (fá sustenido) que o ator-músico indicara como referência. Este modo escalar, assim como os demais modos gregos58, foi sendo paulatinamente modificado e finalmente suprimido da música ocidental erudita até o seu total desaparecimento com o advento do tonalismo durante o século XVII59, sobrevivendo no Novo Mundo graças aos cantos litúrgicos dos missionários cristãos. O uso da nota ré como “bordão” foi, finalmente, o fator decisivo para a constatação do modo grego no prólogo musical de Ser TÃO ser. As investigações musicológicas de José Wisnik corroboram tal percepção: Nas músicas modais, pentatônicas ou outras, é muito frequente o uso de um bordão: uma nota fixa que fica soando no grave, como 57 O sinal, hoje comum, da barra de compasso que divide com exatidão a partitura musical em “partes” de tempo rigorosamente iguais (salvo trechos de exceção devidamente sinalizados) ganhou força de convenção apenas nos séculos XVI e XVII, com o grande desenvolvimento da música instrumental.

Jônio (hoje, modo maior); Dórico; Frígio; Lídio; Mixolídio; Eólio (hoje, modo menor); Lócrio (criação teórica). 58

Segundo Bennett, o abuso de ornamentos e notas alteradas (bemóis e sustenidos) pelos compositores no período Barroco levou à perda da identidade dos antigos modos, contribuindo para a fixação do sistema tonal (BENNETT, 1986).

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Buraco d`Oráculo: 15 anos de história uma tônica que atravessa a música, se repetindo sem se mover do lugar, enquanto que sobre ela as outras dançam seus movimentos circulares. A música indiana faz questão de marcar o bordão (essa lembrança contínua do chão sobre o qual se dança, o solo firme sob os voos melódicos) [...] A tônica fixa é um princípio muito geral em toda a música pré-tonal: explícita ou implícita, declarada ou não, pode-se aprender a ouvi-la, pois ela está lá, como a terra, a unidade indivisa, a montanha que não se move, o eixo harmônico contínuo, soando através (ou noutra dimensão) do tempo (WISNIK, 1989: 73).

Era exatamente o que se passava na improvisação musical do ator, em que o bordão, tal como a presença marcante da terra natal, se instalava firmemente na melodia que flutuava pelo ar. O curioso, aqui, é ser justamente o modo de estruturação dessa antiga escala mixolídia o que produz a “coloração” característica da música nordestina “de raiz”. Dentro do contexto do espetáculo, esse dado musical permitiu trazer para o presente da cena toda a carga sígnica, afetiva, cultural e histórica aí contida, pois o seu uso recorrente na música popular nordestina faz, dessa estrutura sonora arcaica, um elemento profundamente enraizado no imaginário do povo brasileiro. Além disso, parece ter sido este o modo grego que se fixou mais fortemente no país, pois todos os autores estudados por Ermelinda Paz fazem menção à predominância do modo mixolídio na música nordestina brasileira.

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Fonte – Arquivo do grupo

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Rascunho de letra feita pelo músico Raberuan (1957-2011) para o espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem (2009).

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O ethos musical de Ser TÃO ser A investigação musical do prólogo de Ser TÃO ser nos remete ainda à antiga doutrina grega do ethos. Para o cidadão ateniense, a música agregava todos os princípios éticos, estéticos e intelectuais existentes em sua sociedade, e por isso ela constituía um dos principais aspectos da organização política do Estado. Portanto, o termo nomos era utilizado para designar tanto melodias tradicionais quanto as leis morais, sociais e políticas. No âmbito da música, os nomoi60 eram padrões melódicos dotados de expressividade própria, uma vez que eram entoados em determinadas regiões vocais. Uma vez organizados, deram origem aos modos gregos, tornando-se os portadores dos diversos ethos – efeitos específicos sobre o comportamento humano. Segundo a doutrina, a cítara era o meio ideal para expressar o ethos dos hinos litúrgicos dedicados a Apolo; associado ao ethos deste instrumento (eleito por Platão para a República) está o modo dórico, austero e firme; o modo frígio também possuía caráter moral compatível com os cantos de louvor aos deuses, inclusive nos cultos dionisíacos, onde o aulos era o instrumento preferencial; o modo lídio, plangente, era adequado para os trenos (cantos fúnebres) e lamentos, seu ethos triste, contudo, tornava-o inadequado para o Estado grego, pois segundo a doutrina poderia induzir à preguiça e à embriaguez. Os modos jônio e eólio são aqueles cujas estruturas básicas perduraram até os nossos dias, mantendo-se nos atuais modos “maior” e “menor” da música ocidental tonal. O modo mixolídio, formado da mistura dos modos dórico e lídio, teria um caráter emocional próprio para as tragédias, uma vez que o ethos a ele atribuído era patético e doloroso, porém altivo (NASSER, 1997). Fazendo-se uma leitura musical do prólogo de Ser TÃO ser na perspectiva da doutrina do ethos, é possível observar que o modo mixolídio, presente na improvisação do ator-músico, imprime à cena inicial um “clima emocional” em consonância com o conteúdo afetivo do espetáculo. A desterritorialização dos personagens que abandonam seus lares em busca de 60

Plural de nomos.

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melhores condições de vida se apresenta como uma experiência dolorosa e até mesmo trágica uma vez que, ao recusar a imposição de um destino cruel, vão inadvertidamente ao seu encontro. Mas nada disso é explícito, pois na verdade o espetáculo mal começou; no entanto, a melodia mixolídia carrega consigo um ethos que soa como um presságio sombrio daquilo que virá depois. E, importante lembrar: essa rica constelação de significados semânticos não foi, neste caso, fruto de uma elaboração intelectual prévia, mas do encontro do elenco com suas raízes culturais mais profundas, encontro esse que é oferecido ao público por meios essencialmente musicais. Assim, ao acompanhar o músico e seus sons, o lugar imaginário e metafórico do sertão nordestino deixa de ser subjetivo e fictício para se tornar extremamente vívido e concreto, na experiência de errar pelo espaço junto ao caminhante solitário. Vivemos com ele a sua solidão, a perda de um ponto de segurança, a busca de solidariedade num outro que, não raro, nos vira o rosto. As notas musicais soltas e quase aleatórias, que aos poucos vão construindo a melodia modal, criam poeticamente a imagem sonora do sertanejo solitário na cidade grande, à procura de calor humano. Essa melodia só se define claramente à medida que o personagem consegue reunir, daqui e dali, pedaços espalhados de seu mundo cultural e afetivo. Por meio da música, seu ser também se vai reconstruindo. Dessa forma, homem e música descrevem paralelamente no espaço – o primeiro, sobre a terra; a segunda, pelo ar – o desenho de seus respectivos processos identitários, delineando-se mutuamente num movimento que serpenteia aparentemente sem direção, em busca de um abrigo ou de uma forma sensível. Analogia entre estrutura musical e ação cênica, um contraponto entre música e cena: dramaturgia musical. Territórios sonoros Como foi dito, a maneira de articulação entre as notas musicais, com as quais se formam as frases melódicas, é designada “escala”. Dito de outra forma, toda melodia provém de uma determinada escala ou estoque - 169 -

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de notas selecionadas culturalmente e que, combinadas, criam o discurso musical. No trecho musical aqui analisado, não há definição de uma nota musical preponderante que exerça atração para uma resolução final (como na música tonal, cronologicamente mais tardia na história da música ocidental), o que torna perceptível a tendência dessa melodia em descrever reiteradamente um desenho circular de retorno ao mesmo motivo sonoro. Esta é, inclusive, a característica fundamental da música modal: não repousar definitivamente sobre um som, uma derradeira nota musical (ou com um acorde final estrondoso, como na música do período romântico) que finaliza uma ideia, tal como um ponto final termina a frase falada. Ao contrário: o “raciocínio” da melodia modal parece estar sempre em movimento; não segue uma trajetória retilínea para desembocar previsivelmente num ponto determinado. A melodia modal descreve linhas sonoras sinuosas, espiraladas ou talvez circulares, num jogo sonoro cíclico que inverte a lógica racional linear e induz o ouvinte a penetrar noutra esfera sensível. Em Ser TÃO ser, todas as vezes que o peso da vida na grande metrópole é demais para os personagens e surge uma grande tensão dramática, aquela melodia arcaica volta a soar, confortando-os. Misto de tristeza, solidão, errância, desterro, saudade do lar e perda do aconchego, ela também representa um retorno às origens mais remotas, o “estado zero” da alma, de onde é preciso começar – ou recomeçar – tudo. Por isso, ela ressurge quando em cenas seguintes os personagens se mostram perdidos; pois é dela que irão retirar o sustento de seu ser. O cantochão – canto monódico das liturgias cristãs da Idade Média – caracterizava-se pelo uso da “corda de recitação”. Também denominada “dominante salmódica”, era esta uma nota musical sobre a qual eram entoadas as salmodias, com o objetivo de se obter um efeito de reforço das principais palavras ou sílabas e, desse modo, proporcionar aos ouvintes a maior inteligibilidade possível do texto bíblico cantado. Com o tempo e a institucionalização do cantochão como forma musical, o uso da dominante salmódica se tornou o elemento mais característico e facilmente reconhecível dessa expressão musical, pois mantém em sua estrutura a presença do - 170 -

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bordão arcaico da música modal. É interessante observar que, no trecho improvisado, o ator-músico emprega o mesmo recurso acústico ao utilizar a nota ré como “corda de recitação”, sendo inclusive essa mesma nota que irá determinar a tonalidade da primeira música tonal executada na cena seguinte ao prólogo, Ré maior. Esse procedimento estabelece entre os dois modos utilizados (o modal e o tonal) uma relação de afinidade natural e fluente, sem choque ou ruptura, sugerindo metaforicamente uma passagem, vivida com alegria pelos personagens ao regressarem simbolicamente para o seu lar, na primeira cena propriamente dita. Na verdade, é esse o “baixo” que se repete por toda a improvisação do prólogo – uma característica do próprio instrumento musical utilizado pelo performer – que o polegar dedilha quase que por automatismo, buscando a mecânica de execução mais fluente e graciosa. Nessa dança dos ornamentos sonoros, instala-se também a presença dos povos nômades que durante séculos migraram da Arábia e do Saara para a Península Ibérica trazendo consigo seus pertences, cantos, fé e saudade, misturando o espírito nostálgico do desejo de regresso ao ímpeto do viajante aventureiro – impulso de seguir adiante – sentimento contraditório do qual compartilham, provavelmente, os teatristas de rua. Depois, ao fazer a roda para o café, o nomadismo musical e espacial do prólogo de Ser TÃO ser encontra um ponto de repouso. A música que vem da viola, de condutora de um movimento contínuo pelo espaço, se transforma agora em ponto de referência estável, apoio sonoro e harmônico para as vozes dos atores que, nesse momento, cantam Cálix Bento em uníssono. O lugar de estabilidade criado pela cena “do café na cozinha” faz da viola errante o objeto integrador61 (BENENZON, 1985) do grupo de atores/personagens. É ele, o instrumento musical ainda antes do café quentinho servido aos convidados, o elemento cênico que estabelece os laços de ligação entre cena e público, num mútuo acordo sonoro. Criado pelo musicoterapeuta argentino Rolando Benezon, o termo designa aquele instrumento musical que aglutina ao seu redor os membros de um grupo, convertendo-se temporariamente em seu guia e líder. 61

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Outras canções serão ainda entoadas pelos atores, desse momento até o final do espetáculo. Outras sonoridades, influências explícitas do mundo contemporâneo que se desdobrarão em novos ritmos, cenas, cantos. Entretanto, é aquele fragmento melódico inicial o que revela mais fortemente a potência musical do espetáculo, tanto pelas conexões semânticas que estabelece imediatamente com o tema abordado – a migração nordestina para a Grande São Paulo – quanto pela experiência concreta do sentimento de perda e nostalgia do lar que propõe, sutilmente, ao espectador-ouvinte.

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HARNOUNCOURT, Nikolaus. O discurso dos sons: caminhos para uma nova compreensão musical. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. HARVEY, David. Espaços de esperança. 2ª ed. Trad.: Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Loyola, 2006. JANUZELLI, Antônio (Janô). A aprendizagem do ator. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1992. KOSOVSKI, Lidia. A casa e a barraca. In: TELLES, Narciso e CARNEIRO, Ana (orgs.). Teatro de rua: olhares e perspectivas. Rio de Janeiro: E-papers, 2005. p.8-19. LIMA, Ray. Lâminas. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2009. MAFESSOLI, Michel. A transfiguração do político: a tribalização do mundo. Porto Alegre: Ed. Sulina, 1997. MATE, Alexandre. Buraco d`Oráculo: uma trupe paulistana de jogatores desfraldando espetáculos pelos espaços públicos da cidade. São Paulo: RWC, 2009. MEINERZ, Andréia. Concepção de experiência em Walter Benjamin. Dissertação de mestrado em filosofia, 81 f. Universidade do Rio Grande do Sul, 2008. NASSER, Najat. O ethos na música grega. Boletim do CPA – Publicação do Centro de Estudos e Documentação sobre o Pensamento Antigo Clássico, Helenístico e sua Posteridade Histórica; nº 4, jul/dez. Campinas, SP: IFCH/ UNICAMP, 1997. NATTIEZ, Jean-Jacques. Etnomusicologia e significações musicais. Tradução de Silvana Zilli Bomskov. In: Per Musi. Revista Acadêmica de Música. Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal de Minas Gerais, nº 10, jul-dez/2004. p. 5-30. NUNES, Fabiano. Como servir Cuscuz em praça pública. A Gargalhada. nº 2, maio/junho de 2006, p. 3. PAULO, Edson. Você já foi a uma Cohab? In: A Gargalhada. Março/abril de 2007, p. 7. - 177 -

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Buraco d`Oráculo: 15 anos de história

PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 2003. PAZ, Ermelinda. As estruturas modais na música folclórica brasileira. Rio de Janeiro: Cadernos Didáticos da UFRJ, nº8 (3ª Ed.), 1994. PICON-VALLIN, Béatrice. A arte do teatro: entre tradição e vanguarda: Meyerhold e a cena contemporânea. (organização: Fátima Saadi). Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto: Letra e Imagem, 2006. PRENTKI, Tim. Contranarrativa: Ser ou não ser: esta não é a questão. In: NOGUEIRA, Márcia Pompeo (Org.). Teatro na comunidade: interações, dilemas e possibilidades. Florianóplis: Udesc, 2009. ROEDERER, Juan. Introdução à Física e Psicofísica da Música. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002. SOLER, Marcelo. Teatro documentário: a pedagogia da não ficção. São Paulo: Hucitec, 2010. SPOSATI, Aldaíza. Cidade em pedaços. São Paulo: Brasiliense, 2001. (São Paulo 21) TEIXEIRA, Adailtom Alves. (Org.). Caderno de trabalho. São Paulo: Grafnorte, 2011. WINNICOTT, D. W. Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves Ed., 1988. WISNIK, José Miguel. O som e o sentido: uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das Letras/Círculo do Livro, 1989.

ENTREVISTAS

Edson Paulo e Lu Coelho, em 05/05/2008. Edson Paulo, Heber Humberto Teixeira, Lu Coelho e Selma Pavanelli, em 20/08/2011. - 178 -

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REGISTRO FOTOGRÁFICO

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Buraco d`Oráculo: 15 anos de história

Foto de Mayara Evangelista

O cuscuz fedegoso

O cuscuz fedegoso, apresentação realizada em frente a Casa de Cultura do Itaim Paulista, projeto Circular COHAB`s (2007).

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Fotos de Autor desconhecido

O cuscuz fedegoso, apresentação realizada na Praça do 65, bairro de Cidade Tiradentes, pelo projeto Circular COHAB´s (2007).

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Buraco d`Oráculo: 15 anos de história

Fotos de autor desconhecido

O cuscuz fedegoso, apresentação realizada na Praça do 65, bairro de Cidade Tiradentes, pelo projeto Circular COHAB´s (2007).

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Fotos de Autor desconhecido

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Foto de Mayara Evangelista

O cuscuz fedegoso, apresentação realizada em Cidade Tiradentes, Praça do 65 (2007).

Cidade Tiradentes, Praça do 65 (2007).

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Fotos de Augusto Paiva

Buraco d`Oráculo: 15 anos de história

O cuscuz fedegoso, apresentação realizada na Praça do Patriarca, dentro da programação da III Overdose de Teatro de Rua (2005).

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Fotos de Augusto Paiva

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O cuscuz fedegoso, apresentação realizada na Praça do Patriarca, III Overdose de Teatro de Rua (2005).

O cuscuz fedegoso, apresentação realizada na Praça do Forró, bairro de São Miguel Paulista (2002).

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Fotos de Autor desconhecido

Buraco d`Oráculo: 15 anos de história

O cuscuz fedegoso, apresentação realizada na Praça do Setor VII G, bairro de Cidade Tiradentes. Projeto Circular COHAB`s (2007).

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Fotos de Autor desconhecido

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Foto de Mayara Evangelista

O cuscuz fedegoso. Apresentação realizada na Praça do Setor VII G, bairro Cidade Tiradentes. Projeto Circular COHAB`s (2007).

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Foto de Mayara Evangelista

Buraco d`Oráculo: 15 anos de história

Foto de Autor desconhecido

O cuscuz fedegoso, apresentação realizada em frente a Casa de Cultura do Itaim Paulista – Circular COHAB´s (2007).

Público presente durante apresentação d`O cuscuz fedegoso na Praça do 65, cidade Tiradentes – Circular COHAB´s (2007)

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Fotos de Augusto Paiva

Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem

Espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, apresentação realizada no Boulevard da Av. São João (2009).

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Fotos de Patrícia Barcelos

Buraco d`Oráculo: 15 anos de história

Fotos de Sueli Kimura

Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, apresentação realizada na Praça do Casarão – Vila Mara, bairro de São Miguel Paulista (2009).

Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, apresentação realizada no Jardim das Oliveiras, Circuito Re-Praça (2010).

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Foto de Patrícia Barcelos

Foto de Romison Paulo

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Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, apresentação realizada em Cidade Tiradentes (2009).

Jardim dos Ipês, Circuito Re-Praça (2009).

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Foto de Rocco

Buraco d`Oráculo: 15 anos de história

Foto de Ana Claudia Jathay

Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem na I Mostra As Marias de Teatro de Rua, S. B. dos Campos/SP (2011).

Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem no V Festac – Festival de Teatro do Acre, Rio Branco/AC (2012).

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Fotos de Romison Paulo

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Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, apresentação realizada no Assentamento Milton Santos (2013).

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Fotos de Patrícia Leal

Buraco d`Oráculo: 15 anos de história

Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, apresentação realizada no distrito de Cruz das Posses, Sertãozinho/SP. Projeto Ser TÃO Ser pelo sertão paulista (2013).

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Fotos de Patrícia Leal

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Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, apresentação realizada no distrito de Cruz das Posses, Sertãozinho/SP. Projeto Ser TÃO Ser pelo sertão paulista (2013).

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Foto de Romison Paulo

Buraco d`Oráculo: 15 anos de história

Foto de Rocco

Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, apresentação realizada na Praça do 65, bairro de Cidade Tiradentes (2013).

Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, apresentação realizada na I Mostra Cia. As Marias de Teatro de Rua, S. B. do Campo/SP (2011).

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Foto de Romison Paulo

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Foto de Piu Dip

Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, apresentação realizada no Circuito SESC de Artes – 2012.

Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, apresentação realizada na Praça do 65, bairro de Cidade Tiradentes - 2013.

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Fotos de Romison Paulo

Buraco d`Oráculo: 15 anos de história

Fotos de Rocco

Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, apresentação realizada na Praça do 65, bairro Cidade Tiradentes (2013).

Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, apresentação realizada na I Mostra Cia. As Marias de Teatro de Rua, S. B. do Campo/SP (2011).

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Agradecimentos

Em 15 anos de trajetória são muitas as pessoas que contribuíram para chegarmos até aqui. Teríamos que escrever uma enorme lista para agradecermos um a um, e mesmo assim, correríamos o risco de deixar alguém de fora. Portanto, para não correr este risco, o fazemos de uma forma geral, agradecendo aos grupos parceiros, aos familiares, aos ex-integrantes, aos profissionais que nos acompanharam e acompanham, aos amigos e companheiros de jornada, aos companheiros que partiram e, principalmente, as comunidades que sempre nos receberam e recebem de braços e peitos abertos. Que todos, ao lerem esta publicação, sintam-se contemplados neste agradecimento e tenham a certeza de fazerem parte desses 15 anos de história.

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Miolo impresso em Off Set 90g e capas em Supremo 250g

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Organização Adailtom Alves Teixeira Revisão Taiguara Belo de Oliveira Editor de Arte e diagramador Mauricio F. Santana Colaboração Alexandre Mate, Edson Paulo, Lu Coelho, Heber Humberto Teixeira, Fabiano Nunes, Narah Neckis, Narciso Telles e Jussara Trindade. Buraco d`Oráculo Adailtom Alves, Edson Paulo, Heber Humberto Teixeira, Lu Coelho, Patrícia Leal, Romison Paulo, Selma Pavanelli e Thiago Thalles. Foto capa Arquivo do grupo manipulado por Mauricio Santana

Teixeira, Adailtom Alves (Org.) T266b Buraco d’Oráculo: 15 anos de história – Para Muito Ser TÃO Ser, muito mais Cuscuz / Adailtom Alves Teixeira (Org.). Revisão Taiguara Belo de Oliveira. - São Paulo: Grafnorte, 2013. 200 p. : il. ISBN 978-85-61343-11-8 1. Teatro. 2. Teatro de rua. I. Teixeira, Adailtom Alves. II. Taiguara. III. Título CDD 792 Ficha catalográfica elaborada por Fabiana Colares – Bibliotecária

Esta obra foi produzida com recursos do Prêmio Funarte Artes Cênicas nas Ruas - 2012.

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Sumário Apresentação Introdução

05 11

PRIMEIRA PARTE - Pontos que se cruzam Pequeno histórico

15

Buraco d`Oráculo: história e caminhadas, por Adailtom Alves Teixeira

19

O tempo não para..., por Lu Coelho

29

Histórias da outra margem, por Heber Humberto Teixeira

34

Eu, O Cuscuz e o Ser TÃO ser, por Edson Paulo

37

SEGUNDA PARTE - Arte e graça do Cuscuz O Cuscuz Fedegoso, por Edson Paulo

45

Como servir cuscuz em praça pública, por Fabiano Nunes

62

Como servir cuscuz e narrativas ou seres tão concretos criados a partir das margens da cidade, por Adailtom Alves Teixeira

65

TERCEIRA PARTE - Ser TÃO Ser para ser sertão Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, criação coletiva do Buraco d`Oráculo

99

Ser TÃO Ser como epifania de um cotidiano perverso. Uma poética alegórica de tantos desterritorializados, por Alexandre Mate

125

Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem: um espetáculo de resistência, luta e esperança, por Narah Neckis

130

O político e o poético em Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, por Narciso Telles

133

A musicalidade do espetáculo em Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, por Jussara Trindade

137

Bibliografia Geral

174

Registro Fotográfico

179

Agradecimentos

199

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Buraco d`Oráculo: 15 anos de história para muito Ser TÃO Ser muito mais Cuscuz

Dedicamos este livro ao professor Alexandre Mate, que tem contribuído, sistematicamente, para o avanço do registro da história do teatro de rua.

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APRESENTAÇÃO Quando um ato de escolha determina muito mais do que apenas um querer motivado pelas modas Alexandre Mate 1. Escolhas No âmbito do senso comum, escolha refere-se a uma ação cujo sentido é bastante significativo; nessa perspectiva, a ação deliberada pressuposta pela escolha adequar-se-ia feito uma luva ao Buraco d’Oráculo, grupo de teatro de rua que completa, em 2013, 15 anos. Realmente, no que se refere à questão teatral – em um país sem projeto de política cultural –, esse tempo de atuação é uma grande conquista, sobretudo quando o grupo opta pela mais desprestigiada das matrizes estéticas do fazer teatral: o teatro de rua. Além disso, o período tão significativo em anos redimensiona-se pela trajetória que o grupo vem trilhando ao longo de sua carreira. De uma oficina de teatro com muitos interessados, depurando-se para um grupo menor e buscando espaços alternativos, o coletivo opta pela rua e por texto farsesco e popular. Independentemente de fases pelas quais o grupo tenha passado, com certeza, O cuscuz fedegoso (que também figura nesta publicação), escrito por Edson Paulo e dirigido por Atílio Garret, expressa uma mudança na trajetória que o grupo seguia e a sua opção efetiva pelo popular e pelas ruas. Em razão disso, e auxiliados por Ednaldo Freire, orientador do projeto Ademar Guerra, da Secretaria de Estado da Cultura (SP), os integrantes do grupo conscientizam-se de seu fazer, das infindas dificuldades a serem enfrentadas e da importância de que se reveste o teatro de rua para as interlocuções reais com aqueles apartados e distantes do acesso à linguagem representacional, apresentada ao vivo. -5-

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A formação do grupo, “seu encontro” e definição, ocorridos com O cuscuz fedegoso, e a criação de obra magistral como Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem (que concentra em si todos os anos de aprendizado e de trocas) amadurecem e colocam o Buraco d’Oráculo entre os mais importantes coletivos teatrais da cidade de São Paulo. 2. Os tantos sentidos da escolha A palavra escolha, no caso do grupo em questão, espraiar-se-ia à formação de um coletivo que optou pela rua como palco e, majoritariamente, a Zona Leste da cidade de São Paulo como norte e território de seu processo de criação. Atualmente, e à exceção de alguns de seus colaboradores, todos os integrantes do Buraco residem em bairros da Zona Leste, considerada, no Brasil, a área que abriga a maior população de migrantes de origem nordestina. Ao longo da vida, homens e mulheres, infindas vezes, podem “escolher”. Considerando que aquilo que se deseja ou se tem necessidade já está produzido e pronto para o uso, os sujeitos “escolhem”: na arara da loja, com múltiplas calças, aquela da moda e a que se pode pagar; no restaurante, e estampado no cardápio, o prato que mais lhes agrade e que o vale refeição permite experimentar; de sua casa até seu trabalho, o melhor caminho, que tende a ser o mais curto... Escolhas forçadas, permanentemente condicionadas. Em texto estupendo, Clarice Lispector finaliza o quarto, dos cinco relatos que compõem a obra A Quinta História, com uma pseudo escolha de alguém do seguinte modo: “[...] Áspero instante de escolha entre dois caminhos que, pensava eu, se dizem adeus, e certa de que qualquer escolha seria a do sacrifício: eu ou minha alma. Escolhi. E hoje ostento secretamente no coração uma placa de virtude [...]”. Evocando ditado conhecido por todos: ninguém escapa da morte. Entretanto, com relação às demais “escolhas”, somos mesmo donos do que queremos? Se a totalidade de tudo o que existe é produzida e se apresenta pronta, não seriam também impostos sentimentos, percepções, inferências, desejos, necessidades, ideias, valores, mentalidades, condutas?... -6-

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3. Escolha: a palavra Em dicionário etimológico, a palavra escolha figura na seguinte ordem: Escol: derivado regressivo de escolher. Escola (do gr. Scholẽ): “propriamente, paragem; repouso, descanso; ocupação de quem se encontra em descanso; ocupação estudiosa, ocupação sábia; estudo; associação de cultura; lugar de estudo, escola; produto do estudo, tratado, obra”. Pelo latim schola, ócio consagrado ao estudo, lição, curso, conferência etc. Escolha: regressivo de escolher. Tais ordenação e aparição, por incrível que pareça, podem chocar mais no papel do dicionário do que as não escolhas na vida. De qualquer modo, com relação ao sentido da palavra, a grandeza de Drummond, em o Lutador, acorda a consciência para a dificuldade em lidar com as palavras, porque, segundo o poeta, elas: “[...] esplendem na curva da noite”. Assim, como no viver concreto, em que se acredita ser sujeito de si, a escolha, por sua possibilidade concreta, caracteriza-se em palavra cujo sentido histórico e etimológico se perdeu. Feito um cometa, o que tem do sentido da palavra escolha é apenas seu rastro espelhado e inexistente. O suposto sentido da palavra escapou, sem conseguir mais ser laçado; a utilização da palavra demandará processos de revisitação e de desassossego; daí em diante, o viver demandará um trânsito demasiadamente inquieto. Se antes era confortável pensar e ligar a palavra à decisão, à deliberação, sua origem e aproximação espalham pedras pelo caminho... “No meio do caminho [fica] uma pedra”. No meio do caminho pedreiras estão... 4. O permanente processo pressuposto pelas “escolhas” Porque é um grupo de teatro de rua; porque se caracteriza em um coletivo cujo processo de criação e produção é partilhado; porque, em sendo dono de seu passe – sem precisar prestar contas ao mercado e criar “produtos” –, os seus integrantes arbitram sobre o que e como montar. Em razão disso tudo, o Buraco d’Oráculo, a partir de 2011, opta, na condição de esco-7-

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lha e compromisso, por falar de sua gente, e inicia os processos de pesquisa e montagem da histórica marcha de diáspora nordestina, que obriga seu povo a sair do lugar em que nascera por uma vida mais digna e humana. Nas selvas de pedra, evidentemente pelo sistema coercitivo, excludente e predatório, homens e mulheres, com subempregos, e na condição de lumpemproletários, sobrevivem em imensos conglomerados urbanos conhecidos como favelas, em áreas ocupadas, em territórios afastados de quase tudo. Às vezes, algumas das inúmeras favelas se transformam em conjuntos habitacionais, nos quais quase tudo falta. Do mencionado processo de pesquisa, surge o Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem. Criação teatral coletiva, engravidada por lirismo na dramaturgia de texto, na dramaturgia da cena, na dramaturgia interpretativa... A obra comove e aproxima os seres sensíveis de algo... Algo já visto, vivido, intuído, ouvido-olvidado, mas presentificado em alguma parte da origem de cada um de nós: nordestinos, estrangeiros, pobres, trabalhadores, minorias... 5. Escolhas? Se homens e mulheres têm necessidade de se dedicarem a um determinado trabalho mediado pelo simbólico, até que ponto eles podem, de verdade, escolher ao que vão se dedicar nas chamadas artes do fazer, e os caminhos para a satisfação de suas arbitradas escolhas, cujo compromisso lhes transcende e atravessa histórica e politicamente? Que se tome, por exemplo, o teatro. A linguagem teatral, priorizando seu fenômeno que é o espetáculo, pode ser desenvolvida em todos os espaços, em qualquer tempo, para todos os públicos... Potencialmente poderia, mas não é o que acontece desde que ela foi estetizada pelo Estado grego (da Antiguidade clássica). Quando se criou o teatro, na condição de um espaço, o teatro passou a ser acessível a poucos, apenas àqueles que podiam pagar. De outra forma, aquele que pode economicamente tem acesso a obras, sejam elas mercadorias ou não. No geral, espaços, forma artística e artistas atendem aos interesses e expectativas de uma classe. Por intermédio de grupos de rua, em sua constante deambulação, -8-

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tantos “esquecidos” do essencial podem também ter acesso à linguagem e assistir aos espetáculos teatrais. Nesse fazer, portanto, pode-se vislumbrar concretamente uma escolha arbitrada, determinada por diversas questões, mas, principalmente, por compromissos de natureza política: a gente d’Oráculo escolheu estar junto de sua gente. Ao deslocarem-se pela imensa malha periférica das cidades, grupos de teatro de rua podem levar o espetáculo, e com ele a prática da antiga ágora grega, principalmente pelo fato de antes, durante e depois de apresentados os espetáculos os espectadores (que participaram de toda a cena) terem condições de discutirem a obra, suas vidas e tudo o que está às suas voltas. Os espetáculos apresentados passam a ser, também, fonte de interlocução, de troca, de momento de festa e de reconhecimento de si e de seus tantos semelhantes: é isso que o Buraco d’Oráculo vem fazendo durante esses 15 anos. Para finalizar, parafraseando, com variações, uma das falas de Ser TÃO Ser... “Todo mundo é assim: começa onde nasce e termina onde escolhe.” “Todo mundo é assim: começa onde nasce e termina onde escolhe!” “Todo mundo é assim: começa onde nasce e termina onde escolhe?” Histórias...!?

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Ilustração sobre o espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem feita por Bruna Pavanelli (7 anos), após apresentação realizada em 19/08/2012.

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INTRODUÇÃO Maurice Halbwachs, em A memória coletiva, afirma: “Nossa memória não se apoia na história aprendida, mas na história vivida” (2008: 78-9). E é a partir da história vivida que se escreveu esse livro, que recompõe parte da memória de um grupo teatral. Halbwachs afirma também que, para podermos aproveitar a memória um do outro, é necessário que haja “[...] muitos pontos de contato entre uma e outras para que a lembrança que nos fazem recordar venha a ser reconstruída sobre uma base comum” (2008: 39). Quinze anos vividos em grupo, produzindo teatro de rua, é a base comum dos sujeitos que optaram por essa arte. O livro que ora apresentamos foi escrito por muitas mãos e apresenta muitos olhares sobre um mesmo objeto, o grupo Buraco d`Oráculo, que em 2013 completa quinze anos de (r)existência. Como a memória não é linear, senão seletiva, selecionamos dessa década e meia de vida de muito trabalho, dois momentos importantes, melhor dizendo, dois espetáculos marcantes na história do grupo. Em 2002, o grupo estreou o espetáculo O cuscuz fedegoso e em 2009, Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem. Ambos são considerados por seus integrantes como significativos, momentos de virada na maneira de fazer teatro no Buraco d`Oráculo. O primeiro, reuniu toda a pesquisa que os atores vinham realizando sobre o grotesco e a comicidade; o segundo, representou uma virada do ponto de vista político e levou o grupo a criar um espetáculo a partir de histórias reais, coletadas em diversas comunidades da cidade de São Paulo, modificando seu olhar sobre esta metrópole e sobre o seu fazer artístico. - 11 -

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Buraco d`Oráculo: 15 anos de história

Os espetáculos, para além das próprias pesquisas que os geraram, chegaram ao universo acadêmico, criando novos frutos, novas reflexões. Daí surgiram um mestrado e um doutorado. O primeiro realizado por Adailtom Alves Teixeira e o segundo, por Jussara Trindade. Trechos de ambas as reflexões estão inseridas nas páginas que se seguem. Além desse material mais teórico, os textos teatrais de O cuscuz fedegoso e Ser TÃO ser também estão presentes no livro. Esse é um dado importante, pois não se ver por aí publicações de textos teatrais criados especificamente para a rua. Esse fato, por si só, é de extrema relevância. Por outro lado, todos que conhecem teatro de rua sabem que um texto teatral jamais dará conta do que é um espetáculo realizado no espaço aberto. Por isso mesmo, e visando construir um vasto painel desses dois momentos na história do Buraco d`Oráculo, foram acrescentadas quatro críticas dos espetáculos, escritas por Alexandre Mate, Fabiano Assis, Narah Neckis e Narciso Telles. Além disso, outros pontos de vista compõem esse painel, são textos de Edson Paulo, Heber Humberto Teixeira e Lu Coelho, integrantes do grupo. No que concerne à divisão propriamente dita do livro, o mesmo é composto de três partes: a primeira é mais focada na história do grupo, com pontos de vistas apresentados por seus integrantes; a segunda é centrada no espetáculo O cuscuz fedegoso, com texto, crítica e reflexão acadêmica; a terceira é dedicada ao espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, com o texto teatral, críticas e uma reflexão sobre a sua musicalidade. A . A. T.

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PRIMEIRA PARTE

Pontos que se cruzam

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Fonte – Arquivo do grupo

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Ator – Edson Paulo, como Resmelengo, no espetáculo O cuscuz fedegoso apresentado na COHAB Juscelino Kubitschek durante o projeto Circular Cohab`s (2005).

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PEQUENO HISTÓRICO O Buraco d`Oráculo nasceu em 1998, com o intuito de fazer um teatro que discutisse o homem urbano contemporâneo e seus problemas. Desta forma, e desde o início, o grupo optou pelo teatro de rua, maneira mais efetiva que encontrou de compartilhar momentos de reflexão e afetividade com o público, por meio de sua arte. O trabalho do grupo é calcado em três pontos fundamentais: a rua, como local fundamental para promover o encontro direto com o público; a cultura popular, como fonte inspiradora; e o cômico, destacando-se a farsa e as relações com o denominado “realismo grotesco”. O grupo encontrou nas manifestações populares os elementos de expressão de sua arte. A descoberta do popular aconteceu a partir do encontro com Ednaldo Freire, que orientou o grupo durante dois anos (1999 e 2000). O grupo optou por usar o popular e a rua como determinação e alvo de crítica. Sendo assim, seu trabalho, pelas características e adesões apresentadas, o levou ao encontro de um público diferente daquele que frequenta as salas de espetáculos. Assim, começou a desenvolver trabalhos de forma descentralizada, buscando democratizar o acesso ao fazer teatral. Desde 2002, atua pela região de São Miguel Paulista, bairro da Zona Leste da cidade de São Paulo. Essa necessidade de democratização do fazer artístico levou o grupo a ampliar o raio de atuação, apresentando seus espetáculos nos conjuntos habitacionais da Companhia de Habitação Metropolitana (COHAB) - 15 -

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da Zona Leste, densamente povoados, por intermédio do Projeto Circular COHAB´s, desenvolvido em 2005 com recursos do VAI – Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais. Nesse processo de circulação, o trabalho ampliou-se e, a partir de 2006, graças ao apoio do Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, o grupo pode circular por dezoito conjuntos habitacionais, atingindo um público de mais de trinta mil pessoas com esse projeto. Em 2008, obteve novamente os recursos do Programa de Fomento, e a partir de maio daquele ano passou a desenvolver um trabalho de pesquisa junto às comunidades do extremo leste; o que, apoiado por um processo de aperfeiçoamento técnico, resultou em um novo espetáculo, Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, realizando sua estreia em agosto de 2009. Em 2010 o grupo foi contemplado pela terceira vez com o Fomento para desenvolver o projeto Narrativas de Trabalho, até novembro de 2011, do qual faz parte uma pesquisa sobre a narrativa, bem como sobre a precarização do trabalho – temas sobre os quais o grupo criou intervenções. Além disso, fizeram parte do projeto um circuito teatral e a Mostra de Teatro de São Miguel Paulista, realizada em dezembro de 2010. Em 2012, contemplado pela quarta vez com o Programa de Fomento, o grupo deu continuidade ao processo de aperfeiçoamento técnico, sobretudo musical, bem como à pesquisa sobre a precarização do trabalho, realizando debates no Café Teatral e continuando a publicação de A gargalhada. Nesse ano, realizou ainda a 7ª edição da Mostra de Teatro de São Miguel Paulista e, ao término do projeto, prevê a estreia de seu novo espetáculo: Ópera do trabalho, fruto de suas últimas pesquisas. A história do Buraco d`Oráculo é uma demonstração clara da importância das políticas públicas para a cultura: o grupo surgiu de um projeto realizado em um equipamento público de cultura, as Oficinas Culturais da Secretaria de Estado da Cultura (1998), e foi apoiado diversas vezes por prêmios públicos, com os quais pode aperfeiçoar e aprofundar sua arte. Dos prêmios públicos, já foi contemplado quatro vezes com o Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo (2006, 2008, 2010 e 2012), - 16 -

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duas vezes com Prêmio Funarte Myriam Muniz de Teatro (2009 e 2012), Prêmio Petrobrás-Funarte para o Teatro (2005 – que não existe mais), Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais (VAI) da cidade de São Paulo (2004), duas vezes com Prêmio Artes Cênicas de Rua (2009 e 2012). Esses prêmios permitiram que o grupo continuasse atuando e produzindo, mas, sobretudo, permitiram que o grupo levasse seu trabalho gratuitamente a centenas de milhares de pessoas, que, em grande parte, nunca haviam presenciado um espetáculo teatral; possibilitaram que o grupo viajasse pelas cinco regiões do Brasil levando suas obras a outros rincões; e que publicasse suas reflexões e sua história em livros, jornais, contribuindo, de forma crítica e teórica, com o teatro de rua brasileiro. Além disso, o Buraco d`Oráculo tem participado de dezenas de festivais e mostras espalhados pelo Brasil, partilhando sua experiência com outros coletivos teatrais. Os espetáculos do grupo são protagonizados por tipos populares, pessoas comuns, afinal, são eles o principal público desses quinze anos de história. Desde a formação até o presente momento, o grupo produziu nove espetáculos, através dos quais busca manter essas propostas. São eles: • • • • • • • • •

A guerra santa – 1998; Amor de donzela, olho nela! – 1999; Quem pensa que muito engana, acaba sendo enganado – 2000; A bela adormecida – 2001; O cuscuz fedegoso – 2002; A farsa do bom enganador – 2006; ComiCidade – 2008; Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem – 2009; Ópera do trabalho – 2013.

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Fonte – Arquivo do grupo

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Cartaz de divulgação da Oficina da qual originou o Buraco d’Oráculo.

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Buraco d`Oráculo: história e caminhadas Adailtom Alves Teixeira1 Em 1998, o ator e diretor João Carlos Andreazza realizou um projeto em parceria com a Secretaria de Estado da Cultura, na Oficina Cultural Amácio Mazzaropi. O projeto consistia na formação de um núcleo de teatro de rua. Os aprendizes tiveram aulas de interpretação, expressão corporal, canto, técnicas circenses e criação musical, todas elas voltadas para o espaço aberto. Além disso, havia ainda oficinas de direção, produção, figurinos e adereços para outras turmas. Todo o projeto durou dez meses: oito de oficinas, desembocando em uma montagem teatral, e dois meses de apresentações. A partir daí nasceu o Buraco d`Oráculo. No início havia cinquenta pessoas no núcleo de atores; alguns desistiram e, na montagem do espetáculo A guerra santa, havia trinta e uma pessoas. O espetáculo, livremente inspirado em obra do grupo mineiro Galpão, Corra enquanto é tempo, discutia a exploração da fé por parte dos líderes religiosos. O tema era muito pertinente, já que estava próximo da virada do milênio, quando, no seio popular, se dizia que o mundo iria acabar. Naquela época, percebia-se claramente o crescimento de igrejas pentecostais e de escândalos envolvendo as lideranças de algumas delas. Apesar de os líderes das igrejas pentecostais serem o alvo principal, o espetáculo não poupava nenhum inescrupuloso, independente da religião. A guerra santa foi apresentada em São Paulo e em algumas cidades do interior paulista, como Marília e Sorocaba. 1

Mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Unesp e integrante do Buraco d`Oráculo.

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Findo o projeto, a maioria seguiu o seu caminho, mas alguns integrantes continuaram a se encontrar e a discutir a continuidade do grupo. Conseguiram uma sala para ensaiar na estação Brás do Metrô, onde depois viriam a fazer apresentações. Nesse mesmo ano, 1999, o grupo inscreveuse em outro projeto da Secretaria de Estado da Cultura: o Ademar Guerra. Ocorreu então o encontro com o diretor Ednaldo Freire, estudioso do cômico e do popular. Nesse período, afirmaram-se como grupo e fizeram a opção pelo teatro de rua. Pesquisaram uma estética e optaram pelo público que residia distante do centro da cidade, que não tinha acesso ao teatro, pois, como afirma Lu Coelho, atriz do Buraco d`Oráculo, em entrevista a mim concedida em 05/05/2008, foi o contato com o público do Brás que impulsionou essa escolha. João Carlos Andreazza havia apresentado o teatro de rua ao Grupo e Ednaldo Freire fez com que descobrissem sua linguagem, sua linha de pesquisa e seu público preferencial. Dessa forma, o grupo tomou consciência de que fazia parte do universo daquelas pessoas, escolhidas como público de suas obras. Com Ednaldo Freire e, depois, sem ele, o grupo leu e releu Mikhail Bakhtin, autor russo que discute a carnavalização presente na obra de François Rabelais, tomando como referência a cultura popular da Idade Média e do Renascimento. Segundo Bakhtin (1987), o carnaval seria uma espécie de segunda vida do povo, baseada no princípio do riso, isto é, o carnaval seria a possibilidade de pôr o mundo de ponta-cabeça. É do autor russo também o termo realismo grotesco, do qual o Buraco d`Oráculo se apropriou para falar de sua estética: “[...] encontramos nas manifestações populares e no chamado realismo grotesco os elementos de expressão de nossa arte” (ANUÁRIO, 2006: 142). Como o termo grotesco também gera discussões, já que está associado à escatologia, às aberrações etc., é importante frisar que ele opera por rebaixamento, daí o grupo ter optado pelo lado crítico dessa categoria estética, que “[...] propicia um desmascaramento das convenções, rebaixando pelo riso os cânones e o poder absoluto. A crítica é lúcida, cruel e risível” (ALVES, 2006: 2). Dessa forma, a carnavalização torna-se um elemento crítico do status quo, da ordem, do oficial. O grupo se - 20 -

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vale de figuras grotescas, que vão de encontro ao dito bom gosto; utiliza o baixo corporal como elemento do riso, um riso ambivalente. Nesse período, entre 1999 e 2001, afirmam-se os três elementos fundamentais na pesquisa do Buraco d`Oráculo: a rua, como espaço de promoção do encontro; a cultura popular, inspiradora dos espetáculos; e o cômico, com ênfase na farsa e no realismo grotesco. O popular é um elemento inspirador do grupo, tanto aquelas práticas vindas da área rural, como as do ambiente urbano. No início de sua trajetória, nos seus primeiros passos como grupo, o Buraco d`Oráculo cumpriu temporada na estação Brás do Metrô com dois espetáculos: Amor de donzela, olho nela! e Quem pensa que muito engana acaba sendo enganado. Os dois trabalhos resultaram do encontro com Ednaldo Freire e do estudo da obra de Mikhail Bakhtin (1987). Depois de alguns meses de temporada, o grupo viu-se obrigado a se retirar da estação Brás do Metrô, pois pastores evangélicos estavam cobrando do coordenador daquela estação o mesmo espaço e o mesmo tempo para fazer suas pregações. Grande ironia, já que o seu primeiro espetáculo, A guerra santa, tinha como personagens um pastor, uma irmã, um coro e demais evangélicos que visavam evangelizar aqueles que vinham em busca de cura. Em 2002, o Buraco d`Oráculo e mais seis grupos fizeram parte da Ação Cultural Se Essa Rua Fosse Minha.2 Foi nesse ano que o grupo foi para São Miguel Paulista, na Zona Leste de São Paulo, buscando desenvolver projetos para aquele público que passava na estação Brás do Metrô. A criação da Ação Cultural Se Essa Rua Fosse Minha caracterizava também a militância do grupo em prol do teatro de rua, um novo estágio no processo de consciência, já que se tratava de uma ação político-artística que tinha como objetivos a troca entre os grupos, a criação de um corredor cultural A iniciativa de criar um coletivo de coletivos, em certa medida, era fruto do momento político do período, puxado pelo Movimento Arte Contra a Barbárie e pelas discussões em torno da criação da Lei de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo. Sete grupos passaram a se encontrar e discutir ações, juntos, os coletivos definiram estratégias de ocupação de alguns bairros da cidade, com ações contínuas, de maneira a dar visibilidade para o teatro de rua, já que nem a categoria teatral nem o poder público reconheciam essa modalidade teatral. 2

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e a visibilidade do teatro de rua. Mais tarde, o grupo auxiliou também na fundação e organização do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo3, que reúne diversos grupos que lutam por políticas públicas de cultura para o teatro, bem como pelo reconhecimento, por parte dos gestores culturais, do espaço público aberto, sobretudo as praças, como equipamento cultural. Os demais grupos que participaram da Ação Cultural Se Essa Rua Fosse Minha são os seguintes: Abacirco, Bonecos Urbanos, Circo Navegador, Farândola Troupe, Monocirco e Núcleo Pavanelli. Foi também em 2002 que o grupo estreou o espetáculo O cuscuz fedegoso, síntese do que vinha estudando até aquele momento. Este foi o espetáculo constituído por elementos grotescos, farsescos e que, mais uma vez, colocava cidadãos comuns em cena. Tratava-se de quatro tipos na luta pela sobrevivência em uma grande cidade: uma quituteira (Maria do Cuscuz), um pedinte, uma raizeira (vendedora de ervas medicinais) e um policial – este último, a autoridade corrupta que dificultava o trabalho dos dois vendedores (raizeira e quituteira) e espancava o pedinte. Ao assistir a uma apresentação desse espetáculo, o jornalista Fabiano Nunes afirmou que “[...] o teatro de rua torna-se uma boa maneira para exorcizar os males e as contradições do comportamento humano” (2006: 3), isso porque, conforme relata no texto, ele havia escutado de uma senhora do público que seu filho havia falecido, e comentava que não deveria ficar rindo, no entanto, a mulher gargalhava. Essa situação demonstra muito bem o realismo grotesco destacado por Bakhtin, pois há aqui um riso ambivalente. Mesmo na dor, aquela senhora riu, carnavalizou, exorcizou seus demônios, ainda que por momentos, contrapondo-se aos absurdos do mundo e da vida. Finalizada a Ação Cultural Se Essa Rua Fosse Minha, o autor desse texto, que na época também fazia parte do Núcleo Pavanelli, propôs ao grupo a realização de um seminário no Barracão Pavanelli, no bairro do Tucuruvi. O objetivo do encontro era que os grupos pudessem compartilhar seus problemas e angústias. Doze grupos participaram: Abacirco e Rodamoinho (11/08/2003), Tablado de Arruar e Pombas Urbanas (18/08/2003), Bonecos Urbanos e Farândola Troupe (25/08/2003), Circo Navegador e Cia. Pavanelli (01/09/2003), Teatro Vento Forte e Grupo Manifesta de Arte Cômica (08/09/2003), ManiCômicos e Buraco d`Oráculo (15/09/2003). Após a realização do seminário, os grupos passaram a se encontrar regularmente, denominando-se Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (MTR/SP). 3

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Assim, é possível dizer que a afirmação desse coletivo como grupo teatral acontece no período que vai de 2000 a 2002. Nessa época, alguns integrantes abandonaram outros trabalhos e se dedicaram ao teatro. Amadureceu uma dupla consciência: a de pertencimento à Zona Leste da cidade de São Paulo e a política, ao se engajarem com outros coletivos em ações artísticas e políticas. Ao chegar a São Miguel Paulista o grupo realizou a Mostra de Teatro de São Miguel Paulista, com o objetivo de trocar experiências com os grupos teatrais da região. Até a presente data, 2012, a Mostra já teve sete edições. Foi também por lá, em São Miguel Paulista, que desenvolveu diversas temporadas nas praças e nas comunidades, denominando o projeto de Buraco nas Praças, alusão ao grupo e às condições das praças nas quais se apresentavam. Foi a partir dessas temporadas que nasceu um de seus principais projetos, o Circular Cohab`s4, realizado de 2005 a 2007. Com esse projeto, o grupo conseguiu ser selecionado pelas comissões de alguns editais públicos: Prêmio de Valorização às Iniciativas Culturais (VAI), da Secretaria Municipal de Cultura (SMC), Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, também da SMC. Até então, sempre tinha trabalhado e criado seus espetáculos com verbas dos próprios atores. Na época em que foram para São Miguel Paulista eles eram seis: Adailtom Alves, Danilo Cavalcante, Edson Paulo, Lu Coelho, Mônica Martins e Renata Câmara. Hoje, Danilo Cavalcante, Mônica Martins e Renata Câmara não fazem mais parte do Buraco d`Oráculo. Com a entrada de novos atores, o grupo permaneceu com seis integrantes, a saber, os já citados mais Heber Humberto Teixeira, Rominson Paulo e Selma Pavanelli, na sua atual formação5. Selma Pavanelli e Heber Humberto começaram a fazer parte do grupo como atores convidados nos espetáculos A farsa do bom enganador (2006) e ComiCidade6 (2008), respectivamente. Companhia Metropolitana de Habitação e também como são conhecidos os conjuntos habitacionais populares construídos pela mesma. 4

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Em 2013 mais duas pessoas começaram a participar do Grupo: Patrícia Leal e Thiago Thalles.

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Os espetáculos do Buraco d`Oráculo são os seguintes: A guerra santa (1998); Amor de donzela,

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Se a fase anterior foi de afirmação do grupo, é possível compreender o período de 2002 a 2006 como uma reestruturação, já que algumas pessoas saíram do grupo e outras entraram. Ainda nesse período, o trabalho do grupo começou a ecoar pela cidade e por outras regiões brasileiras, em decorrência dos primeiros prêmios públicos recebidos e de suas primeiras viagens, como a participação no Festival de Teatro de Rua de Recife (PE), o que possibilitou a troca de experiência com grupos de outros estados do Brasil. De 2006 a 2008, ocorreu o crescimento artístico. O grupo foi selecionado duas vezes pela comissão julgadora do Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, o que permitiu o aprofundamento técnico e artístico, bem como o espraiamento de suas atividades na Zona Leste, por meio do Projeto Circular Cohab`s, confirmando a importância de uma política pública de cultura. No Fomento, os grupos criam seus projetos de acordo com suas pesquisas e com o que querem realizar, não há modelos. Assim como o Fomento possibilitou o crescimento artístico do Buraco d`Oráculo, é possível afirmar também que a cidade de São Paulo tem sido contemplada com um teatro de altíssima qualidade, graças a esse programa público que, anualmente, possibilita a realização de trabalhos diversificados produzidos por dezenas de grupos teatrais. O ponto principal do projeto Circular Cohab`s consistia em um circuito teatral que passava por dezoito comunidades da Zona Leste7, somando um público de mais de trinta mil pessoas. Havia ainda no projeto a formação de três núcleos de teatro de rua, nos moldes do que havia formado o Buraco d`Oráculo em 1998. Nos núcleos, os jovens tinham aulas de interpretação, corpo, voz, circo, percussão, figurinos e adereços, durante seis meses e, ao término das oficinas, cada núcleo montava um espetáculo. olho nela! (1999); Quem pensa que muito engana, acaba sendo enganado (2000); A bela adormecida (2001); O cuscuz fedegoso (2002); A farsa do bom enganador (2006); ComiCidade (2008) e Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem (2009). Cohab I, Cohab II, José de Anchieta, Fazenda da Juta, Inácio Monteiro, Jardim Palanque, Jardim das Oliveiras, União de Vila Nova, Vila Mara, Itaim Paulista, Setor VII G, Praça do 65 (Cidade Tiradentes), Juscelino Kubitschek, Jardim Pantanal, entre outras. 7

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Foi durante esse projeto também que o Buraco d`Oráculo passou a publicar o informativo A gargalhada8 e a realizar o encontro Café Teatral, às tardes, com convidados que discutiam teatro. Os núcleos de teatro de rua formados no Projeto Circular Cohab`s deram resultado, surgindo daí três grupos: Nascidos do Buraco (2006), Teatristas Periféricos (2006) e Trupe Arruacirco (2007), pertencentes aos bairros de São Miguel Paulista, Cidade Tiradentes e Itaim Paulista, respectivamente. Em 2011, a Trupe Arruacirco acompanhou parte do Projeto Narrativas de Trabalho, realizado pelo Buraco d`Oráculo. A realização do Projeto Circular Cohab`s deu aos integrantes do grupo a noção de relevância do trabalho que desenvolvem junto às comunidades, estimulando-os a levarem à cena a realidade dessas localidades. Assim surgiu o projeto de comemoração dos dez anos do Buraco d`Oráculo. Por essa razão, é possível afirmar que, desde 2002, um projeto sempre se desdobra em outros, em permanente continuidade. Em 2008, o grupo completou dez anos, sendo selecionado mais uma vez pela comissão julgadora do Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo. Do projeto constava novo circuito teatral por seis comunidades9, denominado Re-praça10. Nas comunidades, o grupo recolheu histórias de vida dos moradores e dessas localidades, dando origem ao espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem. Para esse projeto convidaram diversos profissionais, responsáveis pelo aperfeiçoamento técnico e para a criação do espetáculo; assim, todo o processo de montagem do novo espetáculo foi realizado de forma coletiva. No que diz respeito à relação do Buraco d`Oráculo com seu público, Edson Paulo, em entrevista concedida em 05/05/2008, afirma que 8 Este informativo, composto de artigos sobre teatro de rua, políticas públicas, além da programação do Buraco d`Oráculo, chegou à 26a edição, com tiragem de 3.000 exemplares cada uma delas, disponibilizadas também virtualmente. 9

Vila Mara, Jardim das Oliveiras, União de Vila Nova, Jardim Lapena, Jardim São Vicente e Prestes Maia.

Trata-se de uma apropriação do título de um poema de Raberuan (1953-2011), poeta e músico de São Miguel Paulista e amigo dos integrantes do Buraco d`Oráculo: Reinventar a praça, repor/ revitalizar seu destino/ justificar seus motivos:/ Por quê? Pra quê?/ Reler a história de novo/ rever nas meninas os meninos que fomos./ Cantar e dançar.../ Brincar na praça do povo! 10

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ela ocorre antes, durante e após as apresentações, confirmando, assim, a importância do teatro de rua que, além de instaurar essa relação, tem a possibilidade de ir a diversos lugares. Edson Paulo cita, por exemplo, que muitas pessoas para as quais o grupo se apresentou, seja no centro da cidade ou na periferia, nunca tinham visto teatro. A rua, ainda segundo Edson Paulo na mesma entrevista, é “[...] a melhor forma de você permitir o acesso ao teatro”. Mesmo o teatro de rua tendo a possibilidade de chegar a muitos lugares, o ator não acredita que esta arte possa alcançar a todos, ser universalizada, já que não há interesse por parte do poder público que ela chegue a todos, isto porque não há políticas públicas que deem conta desse trabalho e faltam grupos dispostos a trabalhar no chamado “circuito alternativo”. Apesar disso, tem aumentado o número de grupos que buscam a rua como espaço cênico. Segundo Edson Paulo, isso demonstra inquietação desses grupos, revela a busca por um público diferenciado, um público que não frequenta as salas teatrais. Para o ator, esse movimento de os grupos irem para a rua é muito importante para o processo de acessibilidade dos trabalhadores. Edson Paulo, na entrevista mencionada, fala também sobre a participação do público do teatro de rua e de sua interferência nos espetáculos. O fato de se estar aberto, de se promover o acesso, de se procurar um diálogo direto com o público, faz com que esse público também se torne dono dessa obra, dono dessa manifestação. Quanto à relação com a mídia, Edson Paulo, na citada entrevista, é taxativo: “A gente não tem relação nenhuma!”. A prova disso é que durante os mais de dez anos de grupo foram publicadas apenas duas reportagens em jornais de grande circulação, como A Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo. O primeiro jornal fez uma pequena matéria assinada por Valmir Santos sobre a estreia do espetáculo ComiCidade, no centro da cidade de São Paulo. O segundo jornal fez uma matéria em um de seus cadernos, Estadão Leste, ainda em 2002, sobre o grupo e a Ação Cultural Se Essa Rua Fosse Minha. Essa falta de interesse pelas realizações do grupo está diretamente relacionada à região onde o grupo está inserido. Por outro lado, o - 26 -

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grupo tem viajado bastante, levando seus espetáculos para outras cidades, participando de festivais, de mostras, entre outros. Nessas localidades, em geral, o acesso à mídia é mais fácil. A criação do jornal A gargalhada é também uma forma de responder a essa falta de espaço na grande mídia. Como essa publicação é mantida nos projetos com verbas públicas, acaba se tornando um veículo de divulgação do trabalho do grupo e, ao mesmo tempo, uma prestação de contas pública de suas atividades. Atualmente o grupo tem realizado um estudo teórico sobre a precarização do trabalho e, na prática, tem criado pequenas intervenções nas quais discute o tema e experimenta narrativas diferenciadas. O grupo tem mantido o circuito teatral Re-praça, o Café Teatral e a publicação A gargalhada. Por fim, é possível afirmar que, desde 2008, os integrantes do Buraco d`Oráculo têm se dedicado ao estudo de temas políticos e ao aperfeiçoamento técnico-estético de seus integrantes, o que vem se refletindo nos espetáculos e no processo de organização interna, bem como na participação política junto a outros coletivos, não apenas artísticos, mas também sociais. Dessa forma, o processo de troca com outros coletivos, bem como seu engajamento político, vem se intensificando. Para os integrantes do grupo, a arte é vista como uma necessidade humana, logo, direito de todos; daí a insistência em permanecer junto a essas comunidades. Compreendem também que, em sendo um direito de todos, a cultura deve ser um dever do Estado. Por isso, os integrantes do grupo têm se engajado na luta por políticas públicas de cultura.

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Fonte – Arquivo do grupo Foto: Augusto Paiva.

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Atriz – Lu Coelho no espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, durante apresentação realizada no Boulevard da Av. São João (2009).

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O tempo não para... Lu Coelho11 Ao completar 15 anos de trajetória, o Buraco d`Oráculo revisita o passado para ver o que de lá ficou e o quanto ele nos transformou. Essa reflexão nasce a partir de dois espetáculos impulsionadores de mudanças e afirmações dentro do grupo. O primeiro, O cuscuz fedegoso, teve sua estreia em 2002, dentro da Ação Cultural Se Essa Rua Fosse Minha, que uniu grupos de teatro de rua das cinco regiões de São Paulo, ação esta que teve o objetivo primeiro de trazer maior visibilidade ao teatro de rua. Esta Ação foi o embrião do que se firmou hoje como Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (MTR/SP). A Ação nos fez descobrir nosso chão (São Miguel Paulista, extremo da Zona Leste de São Paulo), nosso público (o homem simples que anda a caminho do trabalho e de suas casas e que é tocado, surpreendidos pelo teatro) e nossa linguagem (uma dramaturgia própria, uma dramaturgia popular). 11

Pedagoga, atriz, integrante do Buraco d`Oráculo.

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Esse tripé clareou nossos objetivos e, ao mesmo tempo, estremeceu nossas estruturas. O grupo estava mudando. Saíram pessoas e entraram outras. Ao todo, desde a estreia, em 2002, até sua última apresentação na Praça Nossa Senhora Aparecida em União de Vila Nova, na Zona Leste, no ano de 2007, O cuscuz fedegoso passou por três versões no elenco. O cuscuz foi nosso espetáculo mais popular, os tipos que lá apareciam podiam ser encontrados na rua. Um pedinte, uma vendedora, uma raizeira e um policial, todos na luta pela sobrevivência. Essas figuras eram por vezes grotescas, onde muito de suas relações com o outro ocorria por meio do baixo corporal. O texto era ágil; a relação com o público era direta, o que nos ensinou a lidar com a rua e seus imprevistos; o figurino, colorido, se definindo junto com as personagens; os atores, dentro de suas possibilidades, cantavam e tocavam, ainda que de forma limitadas. Encontramos o popular, o riso, o grotesco, num texto que partia de um de nós: Edson Paulo. No entanto, com a saída de mais um integrante em 2007, resolvemos nos despedir de O cuscuz fedegoso, pois achávamos desgastante, naquele momento, mais uma versão, mesmo com a sensação de que algo de nós estava ficando para trás. Em 2008, quando, ao completar dez anos de história, resolvemos nos dedicar ao estudo da narrativa na rua com o projeto 10 anos: a cidade, a comunidade e as pessoas na trajetória Buraco, contemplado pelo Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, nasceu o espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem. Este espetáculo, criado a partir de histórias que colhemos em diferentes bairros da Zona Leste, trouxe ao grupo novos desafios e a coragem de afirmarmos o que e como pensávamos sobre o nosso fazer teatral. Esse caminho, claro que não poderíamos tê-lo feito sozinhos. O Ser TÃO Ser foi um espetáculo erguido a muitas mãos: amigos, colaboradores, professores opinaram, criticaram, apontaram e nos ajudaram a dizer da melhor forma o que estava dentro de nós. Nesta trajetória, o Ser TÃO Ser trouxe caminhos não previstos no seu fazer. Foi o espetáculo que nos levou a outra forma de militância, não apenas cultural, nos aproximou de movimentos sociais. Do ponto de vista - 30 -

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da cena, a narrativa através da história contada ao pé do ouvido e a música como dramaturgia resolveram muitos problemas. Estas mudanças amadureceram o grupo artisticamente, e os resultados logo surgiram. Se O cuscuz fedegoso foi o primeiro espetáculo que apresentamos fora de São Paulo, nos aproximando de grupos com histórias antigas com o teatro de rua, como o Movimento Popular de Teatro de Rua de Pernambuco, com Ser TÃO Ser circulamos por muitos festivais e mostras, passando pelas cinco regiões do Brasil. Apesar de o sertão estar dentro de cada um de nós, tínhamos medo de estarmos falando para o nosso umbigo, sendo bairrista. Mas, pelo contrário, nossa pesquisa nos mostrou na prática que estávamos no caminho certo ao parafrasearmos Tolstoi: cante sua aldeia e será universal. O cuscuz fedegoso, assim como Ser TÃO Ser foram dois espetáculos que ajudaram a formar o que é hoje o Buraco d`Oráculo. Se não tivéssemos passado pelo caos, o imprevisto e o improviso de O cuscuz, não teríamos o jogo e o popular sempre presente na rua como os temos hoje. Se não tivéssemos tido a coragem de assumir nosso ser e nosso pensar em Ser TÃO Ser, assumindo uma bandeira e sendo tachados, muitas vezes, de panfletários e loucos, não teríamos avançados em nosso fazer. Os dois espetáculos nos mostraram que rupturas fazem parte do processo de crescimento de um grupo. Não são fáceis estes momentos, trazem angústias, medos, mas, acima de tudo, certezas de que vale a pena mudar, arriscar-se. Com a aprovação deste projeto de memória, vimos a oportunidade de remontar O cuscuz fedegoso – um marco no nosso fazer, que pensávamos ter deixado lá no passado – criar uma nova versão: nova direção, novos atores e um novo olhar para aquilo que achávamos que não dava para mudar. Quanto ao Ser TÃO Ser, continua sendo nosso carro chefe, desbravando diversos chãos de resistência, de história. Apresentou-nos um novo teatro, um teatro militante, a disposição da luta, mas que, acima de tudo, nos aproximou da realidade, daquilo de que falamos, mas com distanciamento. Entramos em crise, continuamos a fazer teatro? Sim, continuamos, só não somos os mesmos. Mudamos, com nossos fazeres, nossos caminhos, - 31 -

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nossas escolhas. É preciso se perceber, olhar para trás para continuar seguindo em frente. Chegamos aos 15 anos. Nossa! Mal sabíamos que chegaríamos ao primeiro ano. Para um grupo popular, de rua, periférico, não comercial, é uma vitória! É resistência! É persistência. Sigamos, pois como afirma o poeta Ray Lima (2009): O tempo não para. A língua é viva, mas pode morrer. A vida tem limite? A vida sem sentido dorme. O ser não é sermão. O ser não sendo está sem razão. Haveremos de ser com arte Antes mesmo de ser pela arte-outro, outros, tantos num só que, de tanto [ser, não haverá como mais somente ser, desta ou daquela. Dest`arte.

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Fonte – Arquivo do grupo. Foto: Patrícia Leal

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Ator – Heber Humberto Teixeira no espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, durante apresentação no Assentamento Milton Santos (2013).

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Histórias da outra margem Heber Humberto Teixeira12 O espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem começa a existir a partir da necessidade do Buraco d`Oráculo de escutar e registrar a memória das pessoas. Passamos por seis comunidades da Zona Leste da cidade de São Paulo, ou seja, nós tínhamos e temos muito o que aprender com nosso público! O projeto foi contemplado pelo Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo e chamava-se 10 anos: a cidade, a comunidade e as pessoas na trajetória do Buraco. As histórias para serem escutadas eram muitas e os moradores, nosso estimado público, tiveram voz e vez para se posicionar falando, relembrando e compartilhando suas vivências. Passamos pelo Jd. Helena/Vila Mara, bem próximo de onde nasci, cresci e vivo até hoje, e posso dizer a mesma frase que escutei de um morador: “aqui tá um pouco melhor, tem teatro”. Já que durante minha vida nesse meu sertão onde moro nunca assisti a um espetáculo teatral, mas hoje fico feliz por poder apresentar para as pessoas, das quais, grande maioria nunca viu teatro. Sou grato a elas, que contribuíram para meu 12

Ator do Buraco d`Oráculo.

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crescimento enquanto ser humano, ator e me ajudaram a escolher a opção de tentar trabalhar no meu grupo. Naquela época, fazia apenas meses que estava trabalhando no Buraco d`Oráculo, e a possibilidade de desistir era muito grande; mas decidi apresentar o Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, aqui, ali e acolá. - “Aqui”, pertinho de casa, vendo as crianças assistindo, se divertindo e os adultos participando, comentando durante a apresentação, a todo momento. O nosso melhor prêmio veio deles, ao dizerem: “a nossa história está aí, sendo representada”. - “Ali”, nas outras zonas de são Paulo, onde também existe a identificação da luta por moradia, que é o fio condutor do nosso espetáculo. - “Acolá”, nas cinco regiões do Brasil, Norte, Nordeste, Sul, Sudeste e Centro-Oeste, onde chegamos à conclusão de que o espetáculo se comunica com todos. É incrível poder percorrer por outros estados e conhecer novas histórias, já que o espetáculo desperta essa vontade no outro de contar também sua história de vida, de luta e de pertencimento a um lugar. É prazeroso apresentar o Ser TÃO Ser em qualquer canto do Brasil, mas prefiro apresentar no meu sertão próximo de casa, aqui no barro da praça, ao lado do campo de futebol e do ponto de leitura; da feira do rolo e dos ambulantes, que são perseguidos; ao lado do trem que despeja os trabalhadores todos os dias e que, quando tem espetáculo, são abraçados por nós: a roda se estabelece, a criançada já se faz presente ajudando a desembarcar o cenário e sempre nos dizendo que demoramos para voltar com o teatro. Cobram, afinal o teatro faz muita falta na vida dessas pessoas. Com essa arte, o encontro vai se refazendo, é a grande festa, o começo de uma união perdida, os laços vão sendo novamente estreitados. E assim vamos seguindo com esse espetáculo chamando Ser TÃO Ser, que mexeu e mexe com todos. Emprestamos nosso corpo e levamos à cena a vida deles, para que o melhor venha na vida de todas as pessoas, revelando que nós somos um!

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Fonte – Arquivo do grupo. Foto: Augusto Paiva

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Ator – Edson Paulo, espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, durante apresentação realizada no Boulevard da Av. São João (2009).

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Eu, O Cuscuz e o Ser TÃO Ser Quando escrevo, repito o que já vivi antes. João Guimarães Rosas A minha trajetória de vida com o teatro cruza e se confunde com a trajetória do Buraco d`Oráculo, que completa 15 anos em 2013 e lança esta publicação como forma comemorativa e reflexiva, por meio de análise crítica e trabalhos acadêmicos defendidos sobre dois significativos trabalhos de seu repertório, O cuscuz fedegoso (2002) e Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem (2009). Confundem-se e se encontram na linha do tempo, por conta de que eu sou integrante desde a sua primeira formação, e trouxe para o grupo aquilo que me inspirava na flor da iniciação teatral. Tomo o Buraco d`Oráculo como a minha formação, minha escola de aprendizado, um lugar que, às vezes de forma espontânea, proporcionou a construção de meu trabalho enquanto ator. Considero o Buraco d`Oráculo aquilo que chamam de “chão da fábrica”, um local onde posso discutir, refletir e passar por um processo de aprendizagem por meio da troca de conhecimento. - 37 -

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A formação desse coletivo, que por vezes se pronunciou “utópico e marginal”, definida na publicação Buraco d`Oraculo: uma trupe paulistana de jogatores desfraldando espetáculos pelos espaços públicos da cidade, escrita por Alexandre Mate (2009), “Marginal, entre os “oraculistas”, concerne à invisibilidade que é imposta ao público da periferia para o qual a obra potencialmente é preparada e apresentada”, permanece ainda como motor impulsionador. Aprofundamos raízes em nosso chão marginal, a Zona Leste paulistana, e reafirmamos nossos compromissos de luta. Somos utópicos no sentido apresentado no poema Janela Sobre a Utopia, de Eduardo Galeano: A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.

Nesse sentido, seguimos em frente somando parceiros e ampliando a nossa atuação, desenvolvendo um projeto de trabalho contínuo em grupo. A forma em que o grupo está organizado atualmente reflete a construção de relações formadas no decorrer de nossa trajetória, considero uma relação “familiar”. Familiar, longe da construção familiar patriarcal promíscua, mas próxima de uma relação familiar das trupes circenses, que dividiam os carroções, a lona, o picadeiro e os sonhos. Dividimos quase que o mesmo chão em função de termos o nosso espaço de trabalho compartilhado no quintal de casa: a Casa d`Oráculo. Atuando nos dois trabalhos aqui destacados e sendo também autor de O cuscuz fedegoso, presenciei todo o desenvolvimento de ambos, desde o projeto de montagem, até as suas transformações no decorrer de suas trajetórias. Ao olhar a construção dessa trajetória de 15 anos e observando os acertos e os erros (pois uma trajetória é feita de acertos e erros) que cercam os trabalhos produzidos pelo coletivo Buraco d`Oráculo, encontro pontos significativos nos dois trabalhos desta publicação: O cuscuz fedegoso e Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem. - 38 -

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Ambos apresentam pontos em comum e divergentes em suas construções, mas são considerados divisores de água nessa trajetória. Por isso mesmo, ambos impulsionaram relevantes trabalhos acadêmicos, um realizado pelo integrante do próprio grupo, Adailtom Alves Teixeira, que lançou o seu olhar sobre a questão da identidade e o território em sua dissertação; enquanto Jussara Trindade fez apontamentos sobre a questão da musicalidade de Ser TÃO Ser, em seu doutoramento. O cuscuz fedegoso nasceu em um momento de afirmação do grupo com a rua, é o quarto trabalho e o primeiro em que o grupo ganhou maior maturidade. Foi com este trabalho que tomamos conta de que nosso processo de construção caminhava para um processo de construção coletiva. Reconheço que a presença do diretor Atílio Garret foi fundamental para o surgimento do espetáculo, foi ele que soube organizar em cena aquilo que eu tinha mais em mente do que no papel. O que temos de resultado final é uma organização de várias e várias versões de texto, pois o que tínhamos de início de trabalho era apenas as figuras/personagens em determinadas situações. Lidávamos, vejo hoje, com a construção do tipo, buscando cada um encaixar-se naquele que lhe era mais comum: o pedinte-bufão, o vendedor-chalatão, a vendedora-espalhafatosa e a autoridade que esconde ser covarde. O processo inicial trouxe as primeiras tomadas de decisão por parte de algumas pessoas em deixarem o coletivo, talvez por uma não compreensão do todo, ou por uma tomada de decisão pessoal, por novos rumos de vida. Naquele momento Renata Câmara e Isaias Cardoso deixaram o grupo, e, mais a frente, Danilo Cavalcante também saiu para seguir a sua pesquisa sobre o teatro de mamulengo. Ficando a formação que vinha antes mesmo do Buraco: Edson Paulo, Lucélia Coelho, Adailtom Alves, somado com Mônica Martins, que deixou o grupo no final de 2007, finalizando assim a carreira de O cuscuz fedegoso. Foi com essa formação que o grupo começou a se estruturar e a se firmar como teatro marginal, ganhando as ruas não só da Zona Leste, mas de outros cantos de São Paulo e de fora da cidade, visto que o espetáculo proporcionou nossa primeira viagem ao - 39 -

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Nordeste, ao participarmos do II Festival de Teatro de Rua do Recife – organizado pelo MTP-PE (Movimento de Teatro Popular de Pernambuco). O espetáculo pautava-se pelo cômico/grotesco e tornou-se o “carro chefe” do Buraco d`Oráculo por 3 anos. Até a sua última apresentação, contabilizamos 88 (oitenta e oito) apresentações, que deixaram muitas lembranças, até hoje citadas pelo grupo em rodas de conversas. Experiências que nos fizeram lidar com as manifestações do público presente, pois havia forte identificação entre público, personagens e atores. Foi também com este espetáculo que conseguimos ser contemplado com o VAI (Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais), nosso primeiro prêmio público. Posso afirmar que este é o momento de ligação histórica entre O cuscuz fedegoso e Ser TÃO Ser, pois com esse prêmio ampliamos o nosso raio de atuação, saindo da região de São Miguel Paulista e indo para os conjuntos habitacionais, por meio do Projeto Circular Cohab`s, depois ampliado com o Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, e incluindo outros espetáculos do repertório, como A bela adormecida e A farsa do bom enganador. Essa “ida” aos conjuntos habitacionais nos levou a uma reflexão de que poderíamos fazer um espetáculo que tomasse como ponto de partida as histórias daquelas pessoas, que nos acompanhavam nas apresentações. Foi com essa reflexão que iniciamos os trabalhos de construção de Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, espetáculo construído dentro do projeto 10 anos: a cidade, a comunidade e as pessoas na trajetória do Buraco. Projeto que nos levou a novas tomadas de decisões, a mudar os rumos e os caminhos tomados e nos encorajou a assumirmos bandeiras. Pois, acima de tudo, era um projeto que tratava de identidade, a do grupo, que comemorava 10 anos e lançava um registro por meio de um livro, e, ao mesmo tempo, se propunha a criar um espetáculo que falasse da gente e do seu chão. Debruçado sobre mais de 80 horas de gravação de relatos coletados em vídeo e outras tantas formas de relatos escutados em conversas informais, surge um espetáculo que em sua construção fez a bandeira de luta pela terra, uma metáfora para tantas outras lutas. Ser TÃO Ser deu uma nova cara à formação do coletivo, Selma - 40 -

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Pavanelli e Johnny John (hoje Heber Humberto Teixeira, seu verdadeiro nome), se assumem como novos integrantes do grupo – ambos já participavam de trabalhos anteriores: A farsa do bom enganador e ComiCidade, espetáculos construídos após O cuscuz fedegoso. Assumem-se integrantes do grupo, mas nada muda em suas relações habituais de trabalho, pois já desempenhavam funções dentro da organização do coletivo sem distinções hierárquicas, assim como um coletivo deve ser. Ser TÃO Ser foi construído por uma narrativa épica, feito de forma episódica e por vez poética, muito diferente do alvoroço promovido pelo O cuscuz fedegoso. Ser TÃO Ser nos marcou por outra forma de seduzir o público da rua. A proposta de aconchego, servindo um cafezinho em plena rua, é uma das coisas que o diferencia dos trabalhos anteriores. A dinâmica do desenrolar do espetáculo passa por momentos mnemônicos, cômicos e tensos, propondo diferentes reações ao público, mas ao final leva todos ao caminho de uma reflexão acerca do mundo que nos cerca. As questões de identidade e de identificação estão postas no trabalho. O espetáculo diz a que veio, fala de uma classe social, a dos trabalhadores, sem confabular ou camuflar as condições a que ela é exposta. O que permeia o grupo e que une ambos os trabalhos é a construção de um trabalho coletivo, que mantém um tripé de formação, que aparece em todos os trabalhos. Esse tripé é composto pelas manifestações populares, que é a nossa eterna fonte de inspiração; o cômico, a quem devemos nosso diálogo direto com o nosso público; e a rua, esta, o terceiro ponto, nosso palco de manifestação. Esses três elementos perpassam todos os nossos trabalhos, caracterizando assim a nossa linguagem. O grupo mantém o trabalho continuado de pesquisa, criação e produção, com projetos que estão dando sequência à inesgotável temática que cerca Ser TÃO Ser. Dessa vez, voltado para as questões que envolvem a precarização do trabalho e as relações dentro do sistema capitalista, daí vem sendo criada a Ópera do trabalho, com estreia prevista para julho de 2013. E se, para “tanto Ser TÃO Ser, necessitamos muito mais Cuscuz”, decidimos revisitar O cuscuz fedegoso, dando-lhe uma nova roupagem, em uma nova - 41 -

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versão. Certo de que teremos dois novos trabalhos no decorrer deste ano, ambos com ligações históricas na trajetória de um coletivo que comemora 15 anos. Assim, como no livro de 10 anos, tomando como inspiração o professor Alexandre Mate, termino o texto reticenciando para uma continuidade, pois a história não acaba aqui... Edson Paulo13 Em um fim de domingo de páscoa. Sampa, 31 de março de 2013.

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Graduado em Artes, ator do Buraco d`Oráculo.

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SEGUNDA PARTE

Arte e graรงa do Cuscuz

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Fonte – Arquivo do grupo. Foto: Mayara Evangelista

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Ator – Edson Paulo, como Resmelengo no espetáculo O cuscuz fedegoso apresentado em frente à Casa de Cultura do Itaim Paulista durante o Circular Cohab`s (2007).

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O Cuscuz Fedegoso (Que tapa buraco é barro, que enche bucho é cuscuz) Edson Paulo Os atores chegam em cortejo, tocando com muita animação. Ao chegar ao espaço definido para apresentação, cantam apresentando as personagens: Buraco d`Oráculo chegou pra apresentar Cuscuz Fedegoso, venha se adeliciar. Que tapa buraco é barro Que enche bucho é cuscuz. (Trecho falado. A partir daqui intercala, cantado e falado). O cuscuz de dona Maria É feito com muito suor Resmelengo come tanto Que a barriga dá um nó. Que tapa buraco é barro Que enche bucho é cuscuz. - 45 -

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Você que estar por aí Sentindo as dores do mundo, É melhor ficar por aqui Que Mãezinha do Quixadá Vai arrancar esse mal profundo. Que tapa buraco é barro Que enche bucho é cuscuz. Se você quer provar do cuscuz Que Maria faz e vende, Prove de uma vez agora Se não, chega o Guarda Chicão E todos têm que dar o fora. Que tapa buraco é barro Que enche bucho é cuscuz. Ator - E vamos começar o fuzuê! Maria do Cuscuz – Se aprochegue minha gente, que Maria do Cuscuz chegou, com seus doces feitos com muito amor. Olha, olha, gentarada, que chegou a cocada, a empada e a umbuzada. Compra, compra, minha gente, uma empadinha pra conquistar aquela vizinha, um pão-de-ló pra agradar a vovó, coma esse ovo amarelo pra você ficar mais belo. Olha, olha, gentarada, venha matar a fome que de fome morreu um homem. Coma, minha gente, que saco vazio não para em pé! Coma a delícia da Dona Maria, feito com um matinho gostoso, o delicioso, saboroso, cuscuz fedegoso! Quem quer meu cuscuz? Quem quer comer meu cus...cuz? Se adeliciem com o cuscuz fedegoso! Quem vai querer? Quem vai querer? (Vendo que - 46 -

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ninguém se interessa e percebendo a presença de Resmelengo entre o público, oferece a ele). Maria – O senhor aí. O senhor quer comer o meu cuscuz? Resmelengo – Eu? Maria – É, o senhor mesmo. O senhor quer comer meu cuscuz? Resmelengo – Eu quer. Maria – Qual é sua graça? Resmelengo – Pobre não tem graça, minha senhora. Maria – Então, qual é sua desgraça? Resmelengo – Muitas, minha senhora: o barraco que cai, o salário que não sobe, a fila do INSS, o carnê das casas Bahia... Maria – Oh, sujeito, qual é seu nome? Resmelengo – Me chamam eu de Resmelengo da Silva. Maria – Então toma, coma meu cuscuz, seu Resmelengo. Se adelicie, coma a vontade, pois essa é uma amostra grátis. Resmelengo (Engole rapidamente) – Eu quer mais. Maria – Pois coma mais, coma mais de meu cuscuz. Vejo que o senhor adorou meu cuscuz! Resmelengo (Cuspindo farelos ao falar.) – Tá gostozim. Maria – Tá gostozim, é? Pois é R$ 1,00. Resmelengo – Tem dinheiro não, dona. Maria – Como não?! Comeu e não quer pagar? Resmelengo – E eu quer mais... Maria – Toma vergonha nessa cara lisa! Ou você me paga o que deve ou vou descer a mão nas suas fuças. - 47 -

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Resmelengo – Ecaaaaaaaaaaa!!!!! Maria – E não adianta gritar, tem é que me pagar.

Resmelengo puxa do canto da boca um fio de cabelo, que Maria ajuda a puxar, pois o cabelo tem aproximadamente 3m.

Resmelengo – A senhora num pode fazer uma coisa dessa comigo, não. Eu sou pobre mais eu sou limpinho! Maria – Mas não tem problema, meu senhor, isso é só o cabelo da barba do camarão. (Levantando a saia e comparando o fio de cabelo). Resmelengo – Nojera, imoralidade, outro, eu quero, se não a vigilância sanitária eu denuncio. Maria – Olha aqui, o primeiro foi de graça e o senhor já me deve um, se quiser outro vai ter que pagar e já disse que é R$ 1,00. Aliás, R$ 1,00 não, R$ 1,50 com o cabelo do camarãozinho. (Torna a repetir o gesto. Resmelengo interrompe com um grito e passa a simular um ataque, cai nos braços de Maria e depois no chão). Maria – Ai, meu Deus do céu, o que está acontecendo? (Maria abana Resmelengo com a saia). Resmelengo – Prefiro a morte que este cheiro forte. (finge desmaiar). Maria – Um médico, um médico, um médico pelo amor de Deus! Neste momento entra Mãezinha do Quixadá, com uma carroça cheia de ervas medicinais penduradas. Mãezinha do Quixadá – Pois não, minha senhora. Maria – Mas quem é a senhora? Por acaso a senhora e médica? - 48 -

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Mãezinha – Melhor que isso: sou raizeira, curandeira, mandigueira, catimbozeira e tudo mais que é eira. Mãezinha do Quixadá! E quem estiver doente pode se aproximar. Maria – Pois bem, minha senhora, cure aquele coitado. Mãezinha – Qual? Aquele ali deitado, tomando um bronzeado. Maria – Que bronzeado que nada, o homem está amarelo! Mãezinha – Para o amarelão, eu tenho a flor do manjericão, que acaba de uma vez com o verme do cidadão. Maria – Não é nada disso. Mãezinha – Se é amarelo por falta de cor, então seu problema acabou, trago aqui este bronzeador, feito da raiz do capador. Um sucesso na China, principalmente entre as meninas, que depois de usarem sentem um calor nas partes de maior pudor... Maria – Que bronzeador, que nada! E deixe de servegonhice, o homem desmaiou... Mãezinha – Mas é isso que acontece com quem não usa o protetor solar feito da banha do guará. A senhora não quer aproveitar a promoção, na compra de um, leva cinco e ganhe, grátis, uma loção? Maria – Minha senhora, aquele sujeito teve um troço e vai morrer. Mãezinha – Não diga um desatino desse! Justamente hoje que acabou o meu revitalizador, o fortificador, o reanimador, o ressuscitador: ACORDA MORIMBUNDO! Um produto da melhor qualidade, que dentre mil e uma utilidades, levanta até defunto morto! Maria – Mas no meio dessas bugigangas não tem nada que faça levantar o homem? Mãezinha – Minha senhora, não se deve medicar sem antes consultar. Venha aqui, me ajude a colocar o homem numa posição para podermos encontrar uma solução. (Mãezinha e Maria jogam - 49 -

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Resmelengo em cima da carroça. Essa tarefa é feita com auxílio do público). Mãezinha – Agora, minha senhora, vai até a boca e olhe bem dentro, enquanto eu vejo aqui por trás. (Maria olha pela boca e Mãezinha olha pela bunda. Resmelengo solta um pum). Mãezinha – Nossa mãe do céu! Este homem está podre! Deve ter comido carniça! Maria – Carniça, não. Ele experimentou foi meu delicioso cuscuz fedegoso! Mas, como o bucho dele não estava preparado para tamanha gostosura, não aguentou e desmaiou. Mãezinha – Tá explicado! Ele comeu essas coisas. Maria – Como, essas coisas? Não se atreva a falar assim do cuscuz de Dona Maria... quero ver é se estas ervas têm mesmo algum efeito. Mãezinha – Não duvide da sabedoria popular, pois fui aluna de Chico Raizeiro. Fiz mestrado com Girió de Alencar e aprendi o poder da cura lendo os princípios de João do Pau D`alho, que estão reunidos neste livro, que vem de brinde na compra deste remédio para caminheira. Maria – Caminheira!? Mãezinha – Etimologicamente falando, é caganeira. (Enquanto Maria e Mãezinha discutem, Resmelengo aproveita e abocanha mais um pedaço do cuscuz). Maria – Deixe de enrrolação e vamos logo dar um jeito neste homem. Mãezinha – Então, vamos partir logo para o diagnóstico. Dona Maria, quando eu mandar a senhora olhe goela abaixo que eu olho vias fiofodais acima, para ver se enxergamos uma luz no fim do túnel. Está me vendo? - 50 -

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Maria – Não. Mãezinha – E agora, está me vendo? Maria – Não. Mãezinha – Como suspeitei desde o princípio. Foi uma comoção do intestino, causada por uma duolência sistemática anatômica, devido a uma reação orgânica múltipla intestinal, causando um atamento do intestino fino com o intestino grosso. Mais conhecido como nó nas tripas! Maria – Nó nas tripas? Que diabo da febre do rato é isso? Mãezinha – Para um maior esclarecimento, se faz necessário uma cirurgia espiritual, e que pai Gonguinho me guie. (Mãezinha começa a rezar, enquanto vai abrindo a barriga de Resmelengo). Vento excomungado! Se teu mal é quebranto, cobreiro, zóio virado, que se pronuncie agora ou se cale para sempre. (Ao termino da reza, a barriga está aberta e de lá surge o Estrombo Severino, boneco manipulado pelo próprio ator que faz Resmelengo). Estrombo Severino – Vamos parar com essa fruvioca aqui dentro. Maria – Vixe Maria, mas que estrupício é isso?!! Mãezinha – Não se preocupe, não, Dona Maria. Veja, é isso que acontece com gente esfomeada, que tem o estômago mais desenvolvido que o cérebro... Estrombo – Cala essa boca mole, que o que se passa aqui dentro quem sabe sou eu, e explico o acontecido. Há muito tempo o dono deste corpo não via uma gororoba. Quando o nutritivo, vitaminado, saboroso, cuscuz fedegoso chegou até eu, Estrombo Severino, o responsável pelo processo digestivo, resolvi não fazer a divisão do cuscuz com as tripas. Mãezinha – Mas não pode fazer isso, vivemos num país democrá- 51 -

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tico, devemos repartir o pão, no seu caso, o cuscuz. Estrombo – Mas, dona Mãezinha, você acha que as tripas deixaram por menos, elas fizeram foi uma revoltada, e ficaram se enrolando tripa grossa com tripa fina, tripa fina com tripa grossa, até darem um nó e impedir o processo natural da digestão. Agora a senhora que é muito da catimbozeira, vê se dá um jeito na situação, pois o cuscuz necessita seguir seu processo natural. E assim me despeço. Maria – Isso tem cura? Mãezinha – Mas é claro! Com Mãezinha do Quixadá, tudo é fácil de curar. Este supositório (apresenta um supositório de 1 metro), feito da casca sagrada da imburana de cheiro, com o composto da batata de purga e lubrificado com o óleo de risne, vai resolver o problema. (Ameaça colocar o supositório). Maria (interrompendo) – Mas não corre o risco dele ficar entalado? Mãezinha – Não se apoquente, minha senhora! O único problema é que tem gente que depois que experimenta acaba gostando, se é que a senhora me entende. (Ameaça colocar o supositório). Maria (Interrompendo) – Mas, um xaropinho num resolveria? Mãezinha – Xaropinho? Xaropinho? Xaropinho que nada, o caso é grave, minha senhora! (Ameaça colocar o supositório). Maria (Interrompendo) – E se ele explodir? Mãezinha – Minha senhora, me deixe, que da forma de tratamento cuido eu. E além do mais, para o que este homem comeu ele devia era ser desinfetado. Maria – Olha aqui, sua Mãezinha num sei de onde, a senhora pare de me ofender, que se não eu vou lhe descer a mão! Que filha de uma mãe sem pai, num fala assim com Maria do Cuscuz. A senhora merece é uma sova. (Enquanto discutem, Resmelengo torna a levan- 52 -

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tar e come o cuscuz no tabuleiro de Dona Maria, voltando depois para o carrinho em outra posição). Mãezinha – Dona Maria, vamos manter a calma. A senhora deve estar com a pressão alta, depois lhe dou uma garrafada. Maria – Então, vamos logo acabar com esse aperreio. Mãezinha (Estranhamento. Ameaça colocar o supositório) – E dessa vez ninguém me atrapalha. (Em câmera lenta, Mãezinha mira a bunda de Resmelengo, que se abaixa, acertando assim dona Maria, que fica com o supositório preso entre seus seios). Resmelengo (Levantando-se. Corta a câmera lenta.) – Passou. Mãezinha – Passou o quê? Eu nem te curei, filho de uma égua! (Acerta a cabeça de Resmelengo com o supositório e ele desmaia). Maria – Ai, minha Nossa Senhora da Boca Banguela, estou cansada deste acorda, desacorda, acorda, desacorda! Vou é pegar minhas guloseimas e dar no pé. Mãezinha – Stop! Nada disso, minha senhora! Agora é que eu entro em ação. Para desacordamentos repentinos, o elixir de micomecão é a solução! Maria – Meu Deus do céu! A senhora nunca desiste? Nós vamos é ser presas por usar drogas em praça pública. Mãezinha – Não exagera. Para a senhora manter a calma, vou lhe indicar uma oração para Santo Antônio, pois a senhora está de precisão. Vamos ao trabalho. (Colocam Resmelengo sentado, inclinam sua cabeça e colocam um funil em sua boca e despejam o elixir. Após receber o remédio, Resmelengo cai). Maria – Agora o homem morreu de vez! Mãezinha – Morreu que nada. A fé dos homens com as benzeções há de curar todo e qualquer mal. (Começa a benzer Resmelengo.) - 53 -

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Eu te benzo com o nome que te puseram na pia, em nome de Deus e da Virgem Maria e das três pessoas do santíssimo, eu te benzo. Deus nosso senhor que te cura, Deus que te ajuda nas tuas necessidades ou qualquer outra enfermidade, se teu mal é quebranto, mal invejado, olhos atravessados ou outra enfermidade... (Batendo com ramos no corpo de Resmelengo.) Se te deram no comer, no beber, no zombar, na tua formosura, na tua gordura, na tua postura, nas tuas lombrigas, na tua barriga, nos teus ossos, na tua cabeça, na tua garganta, que Deus nosso senhor há de tirar. Vem um anjo do céu, cai no fundo do mar, onde não possa ouvir galo e nem galinha cantar, este mal há de curar! (Aperta a barriga de Resmelengo, que cospe o elixir em Mãezinha, levanta-se e sai correndo). Maria – O que aconteceu, homem? Você está melhor? Quer mais um pedaço do meu cuscuz? Resmelengo – Não dona, eu quer é mijar. Mãezinha – É o efeito colateral do elixir. (Entregando uma garrafa a Resmelengo.) Vai se aliviar, meu filho. (Resmelengo vai desesperado para um canto se aliviar). Mãezinha – Pronto, minha senhora! Mais um caso resolvido pela farmácia popular de Mãezinha do Quixadá. Agora só falta me pagar. Maria – Pagar? Mãezinha – E a senhora achou que era de graça? Nesta vida só não ganha dinheiro quem não sabe trabalhar. Guarda Chicão (Chegando repentinamente) – Se é que pode chamar isso de trabalho. Todos – Guarda Chicão! (Todos tentam sair desesperadamente, mas são barrados por Chicão que usa de violência). Chicão – Cambada de vagabundos, aonde é que pensam que vão? - 54 -

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Fazem uma zorra desta numa praça pública e acham que tudo vai ficar por isso mesmo? Onde está a licença de vocês? Resmelengo – Icença? Mãezinha – E precisa? Maria – É que nóis achava que era permitido. Chicão – Permitido, uma ova! A senhora acha que é permitido vender umas tranqueiras dessas, cheias de moscas e sem licença? Resmelengo – Eu não tava vendendo nada. Chicão – Sim. Claro que não! E o que é isto? (Tira a garrafa das mãos de Resmelengo.) E mãos ao alto. (Revista Resmelengo.) Opa! O que é isto duro, aqui? Maria – Corre, gente, que o homem tá armado! (Resmelengo tira do bolso um dropes e vários papéis). Mãezinha – É só um dropes. Chicão (Tomando os papéis) – Mas, vejam o que temos aqui, um pedinte! (Começa a ler.) “Me ajude, por favor, não tenho ninguém neste mundo...” Resmelengo – Sou sozim. Chicão – “Preciso levar leite pros meus filhinhos...” Resmelengo – Eles adoram leite ninum. Chicão – “Sou portador de doença contagiosa, não posso arranjar emprego...” Resmelengo – Tem eu, gonorreia, quer vê? Chicão – “Me ajude a comprar uma passagem de volta pra minha terra...” Resmelengo – Tô com saudade de mainha, lá na Bahia. - 55 -

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Chicão – Toma vergonha! Fique sabendo que esmola a um homem que é são ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão. No seu caso, cabe o segundo (Bate em Resmelngo). Maria e Mãezinha – Para, Chicão! Para, Chicão, não bate no homem, não! Chicão (Ameaçando) – Então, bato em vocês. Maria e Mãezinha – Não, pode continuar! Chicão (Para Resmelengo) – Tem algo a dizer? Resmelengo (Cantando) – Vivo sozinho na rua Sou um pobre coitado. Preciso de ajuda sua, Me dê logo um trocado. Por favor, me dê um pão Roubar pouco, não posso, não Dê dinheiro pra passagem Roubar muito, não tenho coragem. Por isso eu peço, mas ninguém me dá. Chicão – Vais até tua mãe e retornes regenerado. Resmelengo – Nossa, que poético! O que quer dizer? Chicão – Vai à puta que te pariu! (Bate no mendigo) Resmelengo – E eu espero que o senhor visite os seus infernos corporais. Chicão – O que quer dizer isso? Resmelengo – Vai tomar no cu! (Torna a apanhar do policial). Chicão – Pois, fiquem sabendo que aqui não é permitido pedir es- 56 -

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mola, vender doces, remédio, nem fazer teatro. Todos – Nem teatro?! Chicão – Nada. Nada é permitido. Somente com a devida autorização conforme decreto nº 5.624 de 1º de abril de 1912, autorizada pelo excelentíssimo Ministro de vias públicas, o Srº Luiz Eutimelo Rego. Todos – Eutimelo Rego? Chicão – Isso mesmo. Eutimelo Rego, que proibiu a venda de qualquer tipo de mercadoria em praça pública, bem como também a apresentação de qualquer evento que induza o povo a pensar, pois de tanto pensar morreu um burro. Mas se acaso não tiverem a autorização, eu, Guarda Chicão, autoridade máxima aqui presente, representante dos três poderes que regem este país, a saber, legislativo, executivo e judiciário, poderei dar um jeitinho na situação, mediante um pequeno mensalão. Maria – Mas eu votei foi no vereador Marabelo Cornudo, que prometeu acabar com essa corrupção. Chicão – Quem promete despromete. E além do mais, eu pertenço a regional dele que também recebe unzinho. Mãezinha – E o prefeito, Tunico Buracudo? Chicão – Com o buraco cada vez maior. Sabe como é, finge que não sabe de nada! Resmelengo – E o Papa? Todos – O Papa!? Chicão – Perdoa os pecados de todos. (Bate nos três). Mãezinha – Assim não dá pra viver! Chicão – É a vida. Os pequenos tem que obedecer aos grandes, - 57 -

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que cada vez têm mais e mais, por causa de vocês, pequenos, que alimentam os tubarões. (Tenta beber o suposto refrigerante, que é o xixi de Resmelengo). Todos – Não! Chicão – Como, não? Não é à toa que este país está uma merda! E digo mais, não se deve mijar contra o vento... (Tenta beber o suposto refrigerante novamente). Todos – Não! Guarda – Não? Então, tentem! Tentem mijar contra o vento e vocês vão se molhar todo. (Tenta beber o suposto refrigerante novamente). Todos – Não! Chicão – Pois estou falando que sim. E isso serve também pra dizer que devemos nos contentar com o que temos e não ficar desejando a grandeza do próximo... (Tenta beber o suposto refrigerante novamente). Todos – Não! Chicão – Como, não? Vocês estão tentando me impedir de beber um refrigerante, é isso? Todos – Sim! (Chicão ameaça) Quer dizer, não, na verdade... Chicão – Vamos deixar de conversa mole e não me interrompa, que eu quero matar minha sede. (Chicão bebe. Todos ficam espantados. Chicão, começa a ter reações, começa a esbugalhar os olhos até dar um berro). Chicão – Quem fez isto? Maria e Mãezinha (Apontando Resmelengo) – Ele. Chicão – Então, foi você! (Mudando de atitude) Que maravilha é esta? (Chicão tira o quepe, abre a blusa, solta o cinto deixando a - 58 -

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calça cair e revela-se um travesti.) Tão quente, tão suave, tão doce, tão excitante! Isso só poderia ser criação tua, meu seborrentozinho! Meu docinho de coco! Meu cheiroso! Vem abrir minha guarda, invadir minha sela, me fazer uma rebelião, me escavar um túnel... Resmelengo – Olha só, gente, como ficou a situação: quando aqui cheguei, meu estômago estava muito nervoso, mas logo ele se acalmou, pois Dona Maria me deu cuscuz fedegoso. Mas um troço me subiu, um troço me desceu, minhas tripas se enrolaram, mas Mãezinha chegou e minhas tripas curaram. Mas tem uma coisa, meu povo guerreiro, esse tipo de gente só trabalha por dinheiro e como eu não tenho um tostão, pra piorar a situação, me apareceu Guarda Chicão. Mas Chicão não é de nada, só sabe dá porrada, tomou o meu mijão e ficou com a mão desmonhecada. (Para Chicão) Agora se aquete e vá procurar outro cacetete. (Resmelengo toma o cacetete de Chicão, desconta toda surra que tomou e sai correndo sendo perseguido por Chicão, que quer beijá-lo). Mãezinha – Gente, o que foi feito nesta garrafa é quase um milagre! Dona Maria, a reação orgânica do seu cuscuz fedegoso com o meu elixir, fez aquele sujeito mijar esse revolucionário produto, revelador dos desejo mais íntimos. Melhor que viagra, que catuaba, que amendoim, que gergilim é... xixi-tuaba! Santa Mãezinha da Quixadá, a partir de agora seremos sócias! Maria – Isso mesmo, Dona Mãezinha, nós vamos vender isso como água. (Ao público) Se aprochegue, gentarada, que Dona Maria chegou, com seus doces, feitos com muito amor e um produto que vai dar um calor... Mãezinha – Nas partes de maior pudor. Maria e Mãezinha – Quem vai querer, cuscuz fedegoso acompanhado de um produto caloroso?

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Música final: Maria vende doce, Mãezinha vende raiz. Resmelengo quando come, Até fica feliz. Chicão é valentão E põe ordem no país. Que tapa buraco é barro, Que enche o bucho é cuscuz! Atores passam o chapéu. Fim

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Fonte – Arquivo do grupo. Foto: Mayara Evangelista

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Atriz – Mônica Martins, como Maria do Cuscuz no espetáculo O cuscuz fedegoso. Apresentação realizada em frente a Casa de Cultura do Itaim Paulista; projeto Circular Cohab`s (2007).

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Como servir cuscuz em praça pública Um passo à frente e você já não está mais no mesmo lugar! Chico Science

Sábado à tarde no Largo do Paissandu, no centro de São Paulo, próximo ao imponente Teatro Municipal, início de janeiro de 2006. Uma trupe monta seu cenário, veste o figurino, forma um tablado e recebe o público transeunte. Mais do que uma plateia, testemunhas, convidados, companheiros e confidentes de palco. “Ô, raio o sol suspende a lua! Olha o teatro no meio da rua. Uma roda aqui, uma risada lá, se liga, minha gente, é o teatro popular”. Eis o teatro de rua. Impressões compartilhadas in loco, na cumplicidade da troca de olhares, de gestos diretos. A cidade mantém sua coreografia frenética: ônibus partem, chegam e saem para outras vias. Passageiros, pedestres, vendedores ambulantes. O burburinho das pessoas num ir e vir constante. Agora o mosaico de sons ganha mais um ingrediente: Mãezinha anuncia para os quatro ventos numa certeza messiânica: “Aqui temos as curas para todos os males!”. Sua farmácia ambulante chega repleta de ervas, mandingas, patuás, composições de fórmulas mirabolantes. E rimos de suas promessas, pois a farsa faz parte do contrato. - 62 -

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Maria vende doce e seduz clientes com receita peculiar. A fome de Resmelengo será eliminada à base de um prato da culinária baiana. “O que tapa buraco é barro, o que enche bucho é cuscuz”. Uma senhora, por volta de seus 60 anos, gargalha compulsivamente e depois confessa: “Meu filho morreu há uma semana e eu estou aqui rindo de tudo isso”, e torna a gargalhar. Ela foi fisgada pela comédia da trupe. O teatro de rua torna-se uma boa maneira para exorcizar os males e as contradições do comportamento humano. Resmelengo sai de seu estado inerte, por ora parecia sofrer de algum mal súbito e passa agir na surdina. Seus métodos brejeiros são um retrato instantâneo da brasileirice. O espectador identifica-se com seu jeitinho dissimulado. Um casal improvisa um assento de plástico no chão para assistir ao espetáculo. As crianças riem das travessuras dos personagens. O público já faz parte da cena. Com a cidade ao fundo, como cenário da trupe. “Resmelengo quando come até fica feliz. Chicão é valentão e põe ordem no país”. Pronto! O policial Chicão chega para manter a ordem e os bons costumes. Seu cacetete entra na roda e distribui “carinhos” a todos, afinal, um tapinha do GOE não dói. O cuscuz fedegoso já foi servido na Grande São Paulo, Campinas, I Festival de Rua de São Sebastião, no II Festival de Teatro de Rua do Recife, Pernambuco, mas principalmente na periferia de São Paulo. O Buraco d`Oráculo brinca, canta, dança e encanta. E durante os 50 minutos de espetáculo o público é transportado para um mundo em que a comédia o faz refletir sobre sua realidade. Como disse Chico Science na música Etnia: “É o povo na arte/ é a arte no povo/ e não o povo na arte/de quem faz arte com o povo”. Fabiano Nunes Jornalista

Fonte: A Gargalhada, Maio/Junho 2006.

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Fonte – Arquivo do grupo. Foto: Augusto Paiva

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Ator – Adailtom Alves, no espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, apresentação realizada no Boulevard da Av. São João (2009).

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Como servir cuscuz e narrativas ou seres tão concretos criados a partir das margens da cidade14 Adailtom Alves Teixeira15 Em que medida a geografia da cidade influencia ou determina o processo de criação de um grupo teatral? Uma característica do Buraco d`Oráculo é que seus projetos refletem experiências que se somam e se transformam, o que, por si só, revela a continuidade de um processo de trabalho, demonstrando, assim, a quem se destinam os mesmos. Outro aspecto importante é que o grupo surgiu e se afirmou a partir da zona leste da cidade de São Paulo. Os espetáculos aqui abordados foram criados tomando a rua como espaço cênico, o que revela a vontade de ressignificar a cidade e de buscar o diálogo com os seus cidadãos. Dessa maneira, os artistas buscam a troca de experiência no sentido benjaminiano. A análise dos espetáculos foi realizada a partir do arquivo do grupo e das entrevistas concedidas ao autor. Para tanto, tomou-se um espetáculo do início da história do grupo e a montagem mais recente. Esse recorte pretende clarificar a coerência da história do grupo, se não do ponto de vista estético, pelo menos em relação ao seu público. Mas, antes, vejamos dois pontos importantes, intimamente ligados, que dizem respeito à produção dos espetáculos criados para a rua: a troca de experiências e a relação dos atores com o público. 14 Esse texto, levemente modificado, é parte do capítulo 3 de minha dissertação de mestrado, defendida em março de 2012 no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Unesp. 15

Mestre em Artes, ator, diretor, integrante do Buraco d`Oráculo.

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Sobre a troca de experiência e a relação na rua O conceito de experiência, que perpassa a obra de Walter Benjamin, é fundamental para a compreensão da importância de qualquer grupo teatral que se coloca no espaço aberto urbano nos dias de hoje, bem como nas comunidades onde busca dialogar com a cidade e com os cidadãos. Experiência diz respeito à memória, vínculo com o passado; tradição é um conhecimento que se acumula e se desdobra. O grupo que se relaciona com o público e com a cidade instaura uma ponte entre o particular e o coletivo, estabelecendo fluxos de correspondências com a memória dos cidadãos e da coletividade (MEINERZ, 2008). Para Benjamin, vivência (erlebnis), na acepção de presenciar um evento de forma particular, ligado ao seu cotidiano e apartado da coletividade, se opõe à experiência (erfahrung), conhecimento que se acumula, desdobrando-se da vida particular à coletividade, sedimentando as coisas no tempo: “Significa o modo de vida que pressupõe o mesmo universo de linguagem e de práticas associando a vida particular à vida coletiva e estabelecendo um fluxo de correspondências alimentado pela memória” (MEINERZ, 2008: 18). A vivência tem se sobreposto à experiência, sobretudo em uma sociedade que tem se caracterizado cada vez mais pelo uso de uma comunicação eletrônica que se, por um lado, aproxima, por outro, distância as pessoas, já que na comunicação mediatizada pela eletrônica não se necessita mais da presença física de seus comunicantes. A pobreza de experiência, segundo Benjamin (1996), vem ocorrendo desde o início do período industrial, e ela se dá porque os meios de produção dominam o ser humano, e não o inverso, como ocorria na sociedade medieval. Logo, Walter Benjamin nos apresenta pessoas alienadas, dominadas pelos meios de produção. Nesse sentido, o trabalho é elemento fundamental para se entender a experiência aludida por Benjamin. Na produção artesanal, o trabalhador é dono e conhecedor de seu modo de produção, sendo capaz de transmitir suas habilidades, suas experiências. - 66 -

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Em seu texto de 1933, Experiência e pobreza, Benjamin (1996) começa por uma parábola que lia na infância, na qual um velho, em seu leito de morte, revela aos filhos que há um tesouro em seu vinhedo. Os filhos cavam a terra para procurar o tesouro e nada encontram, mas, quando vem o outono e as vinhas dão uma produção bem maior se comparada à de outras da região, descobrem que a riqueza está no trabalho. Nesse momento, compreendem que seu pai lhes transmitiu uma experiência. Em outro texto, O narrador, Benjamin, para quem a narrativa é uma forma de trocar experiências, afirma que os artífices aperfeiçoaram a arte de narrar: O mestre sedentário e os aprendizes migrantes trabalhavam juntos na mesma oficina; cada mestre tinha sido um aprendiz ambulante antes de se fixar em sua pátria ou no estrangeiro. Se os camponeses e os marujos foram os primeiros mestres da arte de narrar, foram os artífices que a aperfeiçoaram (1996: 199).

Assim, antes de se tornarem mestres, os aprendizes erravam em diversos lugares, aprendendo, acumulando experiências, até se fixarem como mestre em determinado lugar. O aprendiz, assim como o mestre, carregava na memória (a mais épica das faculdades, segundo Benjamin (1996)) e no corpo (o autor destaca a mão como importante elemento na intervenção narrativa) os saberes, as tradições populares: “O grande narrador tem sempre suas raízes no povo, principalmente nas camadas artesanais” (BENJAMIN, 1996: 214). Para Benjamin, a I Guerra Mundial (1914-1918), ao invés de aumentar, provocou uma pobreza de experiência; por isso o autor refuncionaliza o conceito de barbárie de maneira positiva, afirmando que as melhores cabeças têm se ajustado aos novos tempos, demonstrando total desilusão com o seu século. Assumir a barbárie é possibilitar que o bárbaro construa o novo sem olhar para os lados, pois, entre os grandes criadores, existem aqueles que operam com base na tábula rasa (BENJAMIN, 1996). Dessa maneira, o teatro de hoje deve ser feito para uma era científica, como afirmou Bertolt Brecht (2005). - 67 -

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Todos os dias, nos jornais, há uma profusão de notícias sobre o mundo todo, mas continuamos pobres de histórias surpreendentes, isso porque elas já vêm com as explicações (BENJAMIN, 1996). Assim, o grupo teatral, ao se colocar na rua, não deve levar explicações, mas provocações para um debate, forçando o espectador a tomar posição e a formular sua própria explicação. Dessa forma, conservará o que viu e ouviu, porque construiu junto. Por isso, um grupo teatral que opta pelo espaço aberto deve apresentar obras abertas, esponjosas, para que elas sejam um elemento disparador da troca de experiência. Por outro lado, é necessário analisar a história a contrapelo (BENJAMIN, 1996), levando à cena os subsumidos, aqueles que não aparecem nos livros, de maneira que o público identifique seus vínculos com o passado. Dessa forma, por ser uma produção ainda artesanal, o teatro produzido em grupo se torna portador dos elementos aludidos por Benjamin (1996), isto é, capaz de portar e transmitir uma experiência acumulada e, ao se colocar no espaço aberto, trocar com o público, porque faz seu teatro de maneira conjunta. Um espetáculo que acontece em espaço fechado, em geral, é divulgado pela mídia, ou dele distribuem-se cartazes, filipetas... Há, enfim, uma convocação do público que, por sua vez, se programa e se prepara para ir assistir ao espetáculo. De modo geral, as regras estão estabelecidas: chegar antes, comprar o ingresso ou retirar o convite, entrar na sala e esperar o terceiro sinal, antes do início do espetáculo. E, nesse ínterim, ouve-se a solicitação para desligar celulares ou quaisquer outros instrumentos que possam vir a quebrar o silêncio necessário para a fruição do espetáculo. As regras, em geral, estão internalizadas; se alguém rompê-las, será repreendido pelos próprios espectadores, que são o seu guardião e possíveis censores do seu descumprimento. Na rua, ainda que haja convocação, a grande maioria do público é sempre espontânea. Não há regras pré-combinadas, universalmente aceitas. Elas são estabelecidas ali no espaço aberto pelos atores e público. O espetáculo se inicia, em certa medida, com a chegada do grupo teatral, que - 68 -

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começa a se preparar, a preparar a cena e as pessoas para o que vai ocorrer. Estabelece-se uma relação que busca propiciar a fruição do espetáculo, que pode vir por água abaixo a qualquer momento, pois mesmo aquilo que foi combinado pode ser rompido, por ser um espaço de todos, onde, por isso mesmo, todos podem interferir. Desse ponto de vista, apresentar-se na rua é sempre um risco e, ao mesmo tempo, é sempre uma assembleia, já que as regras são construídas coletivamente. De qualquer forma, a observação que se faz aqui não tem juízo de valor, não se trata de afirmar que um teatro seja melhor do que o outro; trata-se tão somente de demonstrar as diferenças no que concerne à relação com o público. Para ilustrar o que se afirmou, vale citar alguns exemplos vivenciados pelo autor desse texto, sendo que todos eles foram também vivenciados pelos demais integrantes do Buraco d`Oráculo; logo, passível de ocorrer com qualquer grupo que se coloca no espaço aberto. Os exemplos podem auxiliar na compreensão da relação estabelecida na rua, visando à formação de um espaço cênico para apresentação de um espetáculo e de como as interferências do público também constroem o espaço cênico e o espetáculo. Vale ressaltar que os exemplos não se limitam aos espetáculos aqui analisados. São nos momentos que antecedem o espetáculo que se constroem as relações, que se criam afinidades com o lugar e com as pessoas. Nas comunidades, até por desconfiança dos adultos, quem sempre se aproxima primeiro dos atores são as crianças, que têm grande curiosidade. No Jardim Palanque, conjunto habitacional em Cidade Tiradentes, durante a realização do Projeto Circular Cohab`s16, em 2007, com o espetáculo A bela adormecida, muitas foram as crianças que ajudaram a carregar os objetos cênicos e a montar os adereços. É por meio delas que se chega às demais pessoas, especialmente em um lugar onde nunca teve nada, como relatou 16 Projeto realizado de 2005 a 2007, inicialmente com recursos do Programa de Valorização as Iniciativas Culturais (VAI) e depois com o Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo. O circuito ocorria nos fins de semana e passou por dezoito comunidades, atingindo um público de mais de trinta mil espectadores.

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um morador. Essa primeira aproximação é também espaço educativo para todos. Para os atores, é o momento de lidar com situações e pessoas em condições diferentes daquelas de seu cotidiano. Para o público, é o momento, muitas vezes, de entender que a obra não é efêmera, no sentido de ser apresentada uma única vez. No Jardim Palanque, ao término da apresentação, muitas crianças queriam levar para casa os adereços do espetáculo, o que nos levava a explicar que ele seria apresentado em outros lugares e que, por essa razão, não havia como fazer novos adereços a cada nova apresentação. Além disso, o final de cada espetáculo é o momento que o público tem de tocar nos adereços depois de ver sua funcionalidade em cena, de tocar nos instrumentos musicais. Existe a necessidade de aplacar, de saciar essa curiosidade e de aprender. Saciada a curiosidade, a relação se altera nos espetáculos seguintes, isto porque há mais proximidade entre atores e público. Prova disso é que o público passa a ter mais cuidado com os objetos de cena. Durante a cena propriamente dita, há diversas interferências, inclusive aquelas capazes de destruir um espetáculo, afinal estar na rua é sempre andar na corda bamba. Na temporada no centro da cidade de São Paulo, na Praça do Patriarca, com o espetáculo A farsa do bom enganador, em 2006, uma moradora de rua entrou em cena para comprar o tecido que servia de mote para o desenrolar da trama.17 Se a compra fosse efetivada, o espetáculo findaria. Edson Paulo era o vendedor e Adailtom Alves, o comprador que pretendia dar o golpe: comprar fiado e não pagar. A mulher entrou em cena e começou a jogar com os atores: a cada fala, ela também dizia outra, como se o diálogo tivesse sido combinado. O público ria muito, pois o jogo dela era ágil, típico do universo farsesco. Isso foi ótimo porque o espetáculo estava no início. Como havia muito texto, todos os atores estavam incomodados, certos de que o espetáculo não daria certo na rua. A interferência 17 O espetáculo é uma adaptação de A farsa do mestre Pierre Pathelin, de autor desconhecido. É a história de um golpe dado por um advogado falido em um comerciante, que compra seu tecido, a quem o advogado pede que venha receber o dinheiro em sua casa. Quando o comerciante chega para cobrar o dinheiro, o advogado, auxiliado pela esposa, arma o golpe, fingindo-se doente há muito tempo. Logo, seria improvável que ele fosse o autor da compra do tecido.

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dessa mulher fez com que os atores acreditassem novamente na peça. O mesmo público que gosta de interferências – pois, em certa medida, elas desafiam a convenção estabelecida do que é cena, quem são os atores e quem é o público – também impõe os limites dessas interferências. Nesse dia, após pôr à prova os atores, o público quis também assistir ao espetáculo e acompanhar a história. A mulher continuou a interferir, até o momento em que o público começou a limitar essa interferência com falas do tipo “já deu!”, pedindo silêncio. A certa altura, a mulher entendeu e ficou na roda como os demais. O limite de interferência na rua é sempre muito delicado, pois pode “levantar” um espetáculo e pode também acabar com ele. Por isso, três elementos são frequentemente citados por todos aqueles que fazem teatro de rua: o bêbado, a criança e o cachorro. Não por acaso, todos sem limites. O cachorro, por ser animal; a criança, por ainda não ter as regras sociais internalizadas; e o bêbado, por ter optado por quebrar essas regras através da bebida. Assim, a presença dos três garante o jogo cênico, pois suas interferências provocam sempre a mudança na cena. Se, por um lado, há interferências que tornam o espetáculo mais bonito, mais crítico ou mais poético, por outro, existem as que não deixam a cena acontecer, mas nem por isso é menos teatro. Na 2a Mostra Olho da Rua, realizado pela Trupe Olho da Rua, na cidade de Santos (SP), ocorrida em janeiro de 2011, durante a primeira parte do espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, momento mais intimista, todo narrado enquanto se serve um café, a atriz Lu Coelho teve de dividir sua história com um senhor que também contava a própria história. Assim, não se ouvia o que a atriz contava nem o que o senhor dizia. A interferência começou como um diálogo: ela dizia quem era e de onde era, ele fazia o mesmo. Quando a atriz se deslocava em direção a outras pessoas, o senhor continuava a narrar a própria história. Exemplos desse tipo são inúmeros, pois “a vida tende a ser mais forte que qualquer arte”. Essa frase foi inserida no espetáculo, numa clara demonstração de que a arte, mesmo quando parte da realidade, não tem a mesma força que a vida. Ainda como exemplo, o autor desse texto presenciou uma cena - 71 -

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que ilustra a força da vida. IV Overdorse de Teatro de Rua, realizado pelo Movimento de Teatro de Rua de São Paulo, em 2005. Praça do Patriarca, centro da cidade de São Paulo. Overdose era uma mostra e também um ato político, com o intuito de chamar a atenção do poder público para o teatro de rua e para a ausência de políticas públicas para o setor. Uma atriz participante da programação apresentava uma pequena cena, representando uma migrante que procurava o marido, provavelmente morto pela violência no campo. Nas primeiras falas da atriz, uma moradora de rua, aproveitando-se do grande número de pessoas presentes, ao identificar-se com a violência narrada, quis falar um pouco de si, da condição a que estava submetida, dando bastante ênfase à violência policial que sofria quase todos os dias. Evidente que todas as atenções do público presente foram para a moradora de rua. A atriz, em um primeiro momento, tentou dialogar com ela, sem êxito. Então, sabiamente, parou e se retirou, aguardando o momento certo para realizar sua intervenção. Outro momento importante dessas relações são as conversas com o público, antes e após as apresentações dos espetáculos. É possível saber quem são as pessoas, onde moram, o que fazem. Da mesma forma, elas querem saber se só fazemos teatro, onde moramos. As conversas tendem a ter vários focos, da trivialidade a assuntos mais políticos; em ambos os casos (seja atores ou pessoas do público), tudo depende dos interlocutores. Mas, é nas conversas posteriores que é possível ter ideia do impacto da obra teatral na vida de muitas pessoas. Assim, é possível ouvir desde “eu estava triste, mas agora estou feliz, porque ri muito” até mesmo “essa é a minha situação. Vocês falaram de mim”. Mas há relatos mais difíceis e duros, sobretudo no centro da cidade de São Paulo. Na estreia de A farsa do bom enganador, em 2006, na Praça do Patriarca, um senhor de meia-idade conversou com os atores do Buraco d`Oráculo. Ele fez questão de ajudar a recolher o material cênico ao término da apresentação enquanto falava um pouco de si e de sua desilusão. Disse que estava “indo” se matar, quando se deparou com a roda e com o espetáculo. Afirmou que tinha rido muito e que isso o havia enchido de esperança. Todos os integrantes conversa- 72 -

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ram com ele sobre isso, com certa incredulidade. O grupo também não havia percebido, caso a história contada fosse verdadeira, o impacto que um espetáculo pode ter na vida de uma pessoa. Os integrantes do grupo, ao refletirem sobre isso, se deram conta da responsabilidade que é ir para a rua apresentar um espetáculo. Na semana seguinte, o homem retornou para avisar aos atores que havia arrumado um “bico” e que ele estava mais tranquilo. O fato de os atores terem parado para escutá-lo foi fundamental, a ponto de aquele senhor ter voltado para dar “um esclarecimento” sobre si. Isso demonstra que, nessa relação, ainda que temporária, foram estabelecidos laços afetivos e de confiança. Há exemplos de obras que apenas provocam o público, embora, por causa da forma como foram concebidas, elas não permitam interferência, fecham-se em si mesmas e, evidentemente, bloqueiam a comunicação com os espectadores. Não raras vezes isso é provocado pela inexperiência de quem está começando. A rua pede obras porosas, à semelhança de uma bucha que, simultaneamente, absorve e expele água; ao mesmo tempo em que pode ser moldada sobre pressão, é capaz de retomar sua forma original. Vale destacar um exemplo do próprio Buraco d`Oráculo: o espetáculo ComiCidade, criado com base nas histórias do kiogen (pequenas farsas japonesas). Dentre as quatro histórias, havia uma intitulada “Torre de barba”, que apresentava um homem machista que submetia a mulher a maus tratos. Ela se unia às vizinhas para se vingar. Nesse momento, as mulheres do público vibravam e indicavam maneiras de elas se vingarem. Mas os atores faziam ouvidos moucos, pois o espetáculo havia sido concebido de maneira fechada. Se fosse uma obra porosa, provavelmente as mulheres do público entrariam em cena para ajudar as atrizes a se vingarem do machista. Por essa limitação essa foi a obra menos apresentada do Buraco d`Oráculo.

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Primeiro rascunho de Edson Paulo para o texto O cuscuz fedegoso (1999).

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O cuscuz fedegoso feito pelo Buraco d`Oráculo Tomando a realidade da periferia nos seus mais variados aspectos, com vistas a traduzir o popular urbano, os integrantes do Buraco d`Oráculo observaram o modo de sobrevivência de inúmeras pessoas simples que moram nestas regiões e trabalham em outros lugares, sobretudo no centro da cidade. O foco era principalmente os trabalhadores informais e a série de violências a que estavam submetidos. O espetáculo O cuscuz fedegoso foi criado com base nessa pesquisa e apresentava quatro personagens, duas delas com claros vínculos nordestinos: uma quituteira e uma raizeira (vendedora de ervas). As demais personagens, um policial e um mendigo, representam, respectivamente, o poder repressor do Estado e aqueles que estão na denominada parte inferior da pirâmide social. Vejamos a sinopse do espetáculo: Dona Maria do Cuscuz vende seus quitutes nas ruas. Essas guloseimas são preparadas sem qualquer higiene. Entre seus doces destaca-se o cuscuz feito com fedegoso. Como não encontra comprador, oferece o cuscuz a um “esmolé” (pedinte), que, ao provar da iguaria, finge passar mal para não ter de pagar. Desesperada, Dona Maria pede ajuda à Mãezinha do Quixadá, uma charlatã que vende ervas medicinais. A “raizeira” irá aplicar toda a sua charlatanice para identificar a suposta doença do pedinte, procurando, de todas as maneiras, usar seus medicamentos no coitado, de forma que possa arrebanhar mais fregueses. Arma-se uma grande confusão, que só acaba com a chegada do Guarda Chicão, homem violento, que gosta de abusar do poder. Chicão desce a borracha em todos, para estabelecer a ordem e os “bons princípios” (MATE, 2009: 94-5).

Essa é a sinopse em sua redação final, isto é, relativa à última versão do espetáculo. No entanto, na leitura, é possível visualizar a grande confusão, quase um vale-tudo para poder ganhar o pão de cada dia. Prova disso é o fato de Maria oferecer cuscuz ao pedinte na tentativa de chamar a atenção de outros fregueses/público. No momento em que o pedinte finge passar - 75 -

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mal, Maria procura socorro e encontra Mãezinha do Quixadá disposta a usar todas as suas ervas, por deduzir que Maria pagará pela “consulta”. Assim, as personagens arrebanham o público para o espetáculo e chamam a atenção para a situação vivida por esses trabalhadores. Diversos foram os atores que participaram do processo de construção do espetáculo, que funcionou como laboratório para os integrantes do Buraco d`Oráculo. As invencionices, os achados e expedientes do processo passavam a integrar o espetáculo. O cuscuz fedegoso permaneceu por mais de quatro anos no repertório do grupo. Sua estreia ocorreu em 21 de setembro de 2002, na Praça Padre Aleixo Monteiro Mafra, popularmente conhecida como Praça do Forró, em São Miguel Paulista, no lançamento da Ação Cultural Se Essa Rua Fosse Minha, união de sete grupos18 teatrais de rua que se propuseram a descentralizar suas atividades. Foi nesse período que o Buraco d`Oráculo começou a realizar seus projetos em São Miguel Paulista e região. O espetáculo, em relação aos demais trabalhos dos outros grupos que propunham a descentralização, era bem diferente esteticamente. Edson Paulo, em entrevista a mim concedida em 20 de agosto de 2011, recordase de uma fala de Lincoln Rolim, integrante da Companhia Abacirco. Segundo ele, o Buraco d`Oráculo apresentava uma proposta diferenciada em relação aos demais grupos, mais próxima do camelô, enquanto os outros grupos tinham uma relação forte com o circo, com números circenses. O cuscuz fedegoso teve a direção de Atílio Garret, e o texto é de Edson Paulo, ator do grupo. O espetáculo estreou com Danilo Cavalcanti (Girió de Alencar), Edson Paulo (Resmelengo), Mônica Martins (Maria do Cuscuz) e Renata Câmara (Guarda Chicão), na época todos integrantes do grupo. Na versão final, os atores eram Adailtom Alves (Guarda Chicão), Edson Paulo (Resmelengo), Lu Coelho (Mãezinha do Quixadá19) e Mônica Martins (Maria do Cuscuz). Ao longo do processo mais dois atores chega18 Os grupos eram os seguintes: Bonecos Urbanos, Buraco d`Oráculo, Circo Navegador, Companhia Abacirco, Farândola Troupe, Monocirco e Núcleo Pavanelli de Teatro de Rua e Circo.

A personagem tinha a mesma função de Girió de Alencar; no entanto, a atriz Lu Coelho acrescentou uma característica de mãe de santo à raizeira. 19

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ram a ensaiar, mas nunca participaram propriamente do espetáculo finalizado: Flávio Laudares e Isaias Cardoso. O primeiro era integrante do Putz! Tipo Assim..., coletivo existente antes de se formar o Buraco d`Oráculo. O segundo ator participou do início do processo de montagem, no Tendal da Lapa, em 2001, onde se iniciaram os ensaios, levados depois para a rua. De forma sucinta, vale lembrar que o processo de ensaios sempre privilegiou espaços abertos, pois, mesmo no Tendal da Lapa, o grupo não ensaiava em sala fechada, mas sim em um espaço por onde circulavam diversas pessoas. Mas a gestação do espetáculo começou bem antes de 2001. Edson Paulo, na citada entrevista20, relembra que, apesar de não existir propriamente um roteiro ou um texto, a ideia vinha sendo elaborada desde o Putz! Tipo Assim.... Foi em 1997, recorda o ator, que Flávio Laudares começou a improvisar situações como Maria do Cuscuz. Para Edson Paulo, foi um processo longo e complexo que durou mais de quatro anos: “Tudo que discutíamos e íamos amadurecendo, experimentávamos no Cuscuz”. Por isso, o ator vê o espetáculo como divisor de águas, responsável pelo amadurecimento do grupo e do trabalho artístico. Selma Pavanelli, que sempre acompanhou o espetáculo na condição de espectadora, afirma, referindo-se aos atores, mas sem citar nomes, que “[...] algumas pessoas não ficavam muito à vontade na rua”. Entretanto, como assistiu ao espetáculo muitas vezes, acompanhou todo o seu desenvolvimento que, no seu entender, foi amadurecendo: “Antes [refere-se às primeiras apresentações], era mais uma brincadeira, uma ‘tiração de sarro’, e o espetáculo foi ficando cada vez mais político”. O espetáculo iniciava com um cortejo, uma chegança, elemento muito presente nas brincadeiras populares. Os atores delimitavam o espaço cênico em forma de meia arena, e as cenas desenrolavam-se de forma cumulativa, isto é, a cada nova personagem que adentrava o espaço cênico, formava-se um quadro, uma cena, tudo extremamente interligado, sequenA entrevista foi realizada com todos os integrantes do Buraco d`Oráculo: Edson Paulo, Heber Humberto Teixeira, Lu Coelho e Selma Pavanelli, em 20/08/2011; assim, todas as citações referemse a essa entrevista. 20

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cial, de modo a dar conta do universo tratado. Ao mendigo, por exemplo, sobrava apenas a astúcia para sobreviver. Quanto às demais personagens, a luta diária pela sobrevivência fazia com que tentassem “empurrar” suas mercadorias a todo possível cliente. A autoridade, além de manter a ordem com muita violência, era extremamente corrupta. Logo, era o trabalho informal que prevalecia na abordagem temática, e a astúcia se traduzia em tática do popular e elemento que realçava o tom farsesco do espetáculo. As personagens populares – Maria do Cuscuz, Resmelengo e Mãezinha do Quixadá (por ordem de entrada em cena) – eram muito picarescas e carismáticas. Elas estabeleciam grande empatia com o público nas mais variadas faixas etárias. As crianças gostavam do colorido e riam das estranhas figuras; os adultos acompanhavam as peripécias e muitas vezes se reconheciam nas situações difíceis e na opressão praticada pelo policial. A luta das personagens pela sobrevivência, travada diariamente, ainda é o retrato da realidade de inúmeros cidadãos paulistanos. O espetáculo, em seu processo de criação, contou primeiro com as personagens; depois, com as situações. Como a realidade social é o ponto de partida, dois momentos foram fundamentais para estruturar o espetáculo: o episódio da máfia dos fiscais21 e a violência policial na Favela Naval22, em Diadema. Mas 21 A máfia dos fiscais agiu de 1993 a 1999, mas só veio a público em 1998, depois da denúncia de uma empresária da Vila Madalena que quis abrir uma academia de ginástica e foi cobrada, em R$ 30.000,00, pelos fiscais da Administração Regional de Pinheiros. O caso foi bastante divulgado pela mídia. No início do ano seguinte, em 1999, vieram a público as denúncias nas Administrações Regionais da Sé e da Mooca, dessa vez com relação aos camelôs, sobretudo os do bairro do Brás, de quem os fiscais cobravam propinas mensais. Afonso José da Silva, conhecido por Afonso Camelô, foi quem fez as denúncias, após escapar de um atentado que o feriu gravemente. Depois de forte pressão dos camelôs e da mídia, as denúncias desencadearam uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigou o caso e cassou o mandato do vereador Hanna Garib, na época da situação, isto é, do governo de Celso Pitta (1997-2000 – Partido Progressista Brasileiro). A CPI apurou diversas práticas de corrupção. No caso específico dos camelôs, apurou-se que os vereadores indicavam os administradores regionais que, por sua vez, trabalhavam com fiscais que exigiam as propinas. O interessante é que dez anos depois, em 2008, o caso voltou a se repetir na mesma região, dessa vez na Feira da Madrugada do Brás. Afonso Camelô, que se tornou presidente do Sindicato dos Camelôs Independentes de São Paulo, foi morto no próprio sindicato em 15 de dezembro de 2010, com três tiros.

No dia 31 de março de 1997 o Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão, apresentou uma reportagem que tratava de Direitos Humanos e revelava a violência policial como um claro desrespeito aos mesmos. A partir de imagens colhidas por um cinegrafista amador, apresentava um grupo de

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devido a sua longa permanência em repertório, atravessou outro grande escândalo sobre o universo da corrupção: o mensalão no Governo Federal23. O espetáculo abordava exatamente a corrupção instalada nas mais diversas instâncias e a dificuldade de sobrevivência diante disso tudo, cabendo aos populares utilizarem a própria astúcia para continuarem vivos. Edson Paulo, na citada entrevista, lembra que o escândalo da máfia dos fiscais era a tônica no período que antecedeu a estreia do espetáculo. Por essa razão, a personagem do policial visava apresentar ao público o ambiente em que os camelôs tinham de trabalhar, marcado pela precariedade e corrupção. Por isso, quando o policial entrava em cena, afirmava que não podiam vender nada naquele lugar, a não ser “mediante uma boa quantia”. Quando veio a público o escândalo do mensalão, a fala foi modificada para “um pequeno mensalão”. Foi com esse espetáculo que o grupo começou a circular para além do bairro de São Miguel Paulista, o que, na concepção dos integrantes do grupo, fez com que eles avaliassem melhor sua relação com as comunidades e com o público lá residente. Todos os atores passaram a entender melhor o que significava estar nessas comunidades e que precisavam criar projetos para estabelecer uma relação mais efetiva. Em certa medida, a circulação policiais militares que extorquia dinheiro, humilhava, espancava e até matava pessoas em uma blitz realizada na Favela Naval, na cidade de Diadema/SP. Conhecido como Mensalão ou Esquema de compra de votos de parlamentares, o escândalo ocorreu no primeiro mandato do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006). O caso veio a público em maio de 2005 por meio da imprensa e apresentava, inicialmente, um caso de corrupção nos Correios. A estatal era dirigida por pessoas indicadas pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), que tinha como presidente o deputado Roberto Jefferson, que tornou popular o termo “mensalão”. Jeferson denunciou que a base aliada do Governo Federal, da qual ele próprio fazia parte, recebia periodicamente recursos do Partido dos Trabalhadores (PT) para apoiar determinadas votações. A Procuradoria Geral da República denunciou 40 nomes ao Supremo Tribunal Federal (STF), que julgou o caso em 2007. Em 2008 o esquema do mensalão teve novo desdobramento com a investigação por parte da Polícia Federal, onde se descobriu que a maior parte dos recursos para o mensalão vinha do Banco Opportunity, dirigido por Daniel Dantas. Na época do mensalão, o Ministro-Chefe da Casa Civil era José Dirceu, que foi afastado do cargo e depois teve seu mandato de Deputado Federal cassado em 1º de dezembro de 2005, ficando inelegível até 2015. Em 2012 o STF julgou o caso e condenou 25 pessoas, entre eles João Paulo Cunha, Valdemar Costa Neto, Pedro Henry, Marcos Valério, José Dirceu, José Genoino, Delúbio Soares, Roberto Jefferson, José Roberto Salgado, Bispo Rodrigues, entre tantos outros. Para o STF, ficou comprovado que houve favorecimento ao governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, graças à compra de apoio político.

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por outras comunidades, ainda que na mesma região, levou-os à consciência de pertencimento ao lugar e ao reconhecimento daquelas pessoas e de si próprias. Edson Paulo, no texto Você já foi a uma COHAB?, no instante em que se dirige à categoria teatral (ainda que esta não seja citada), revela esses momentos de descobertas. Começa questionando: “Você já foi ao Jardim Palanque? Sabe onde fica a Praça do 65? O conjunto Santa Etelvina VII-G?”. (2007:7) Depois, o ator descreve o encontro que teve com pessoas do Jardim Palanque, muitas delas, vindas da Vila Prudente, após um incêndio da favela onde moravam. O Jardim Palanque, apesar de estar próximo da residência do ator naquela época (Cidade Tiradentes), era desconhecida por ele: [...] Sem nenhuma sombra de dúvida o local nunca havia recebido qualquer tipo de manifestação artística, e estar distante de qualquer programação municipal ou de outro tipo: “por aqui não tem nem show de comício”, revelou um de seus moradores. Nosso encontro com esse local deu-se por meio de dois jovens (Rosário e Jones) líderes comunitários, que na força de seus 19 anos, sonham, lutam pela implantação de uma biblioteca comunitária e por atividades que tragam entretenimento, lazer e educação para os seus habitantes. Vimos nesses jovens e também em nossas apresentações o quanto é necessário estar fazendo ações, mesmo que pequenas, mas que quando somadas a outras resultarão em grandes transformações, se não para um mundo mais justo, servirão para a transformação do cidadão comum (2007: 7).

Em seguida, no mesmo texto, Edson Paulo reflete sobre a necessidade de desenvolver um processo contínuo de trabalho com essas comunidades: Descobrimos locais de grande circulação de público. Dos seis conjuntos habitacionais percorridos, três tiveram um público acima da média, o que nos fez refletir sobre a necessidade de um trabalho contínuo. Alguns espectadores assistiam ao primeiro espetáculo da janela de seus apartamentos, o segundo do outro lado da rua, o terceiro como parte da grande roda, no quarto faziam parte daquele acontecimento e depois queriam mais (2007: 7).

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Edson Paulo aborda aqui a aproximação com o público adulto; afinal, as crianças – ainda sem ou com poucos preconceitos – aproximavamse sem problemas. As temporadas do Circular Cohab`s, em cada comunidade, eram compostas de quatro espetáculos, um a cada domingo, num total de quatro apresentações ao longo de um mês. O público aumentava a cada dia, pois se estabeleciam laços de confiança. Em diversos lugares, os atores ficavam em dúvida quanto ao retorno do público no domingo seguinte, levando-se em conta que as pessoas estavam cansadas de ouvir promessas feitas por outras tantas pessoas que não as cumpriam. Dessa forma, O cuscuz fedegoso verticalizou a relação do grupo na zona leste de São Paulo e se desdobrou em um processo contínuo, pois, ao circular com o espetáculo, os integrantes começaram a ouvir as histórias dos lugares e das pessoas, passando a se reconhecerem nessas histórias e a perceberem como essas comunidades vêm sendo construídas por tantos trabalhadores. O processo gerou afetividade e vontade de aprofundar o conhecimento sobre os lugares e as pessoas, o que levou seus integrantes a registrarem as histórias ouvidas, resultando na montagem de Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem. Como o espetáculo O cuscuz fedegoso serviu de laboratório24, às vezes havia momentos de crise por parte dos atores, momentos de não compreensão daquilo que estavam realizando. Nesse sentido, duas apresentações foram marcantes, segundo Edson Paulo. A primeira ocorreu no Centro Educacional Unificado (CEU) São Carlos, em São Miguel Paulista, em comemoração ao primeiro ano daquele equipamento educacional e cultural. A segunda aconteceu em Recife (PE), no 2o Festival de Teatro de Antônio Januzelli (1992) afirma que a atuação exige dois níveis básicos de estudo: o analítico/ reflexivo e o prático/cênico. Sendo que o primeiro diz respeito à história encenada e à realidade na qual está inserido o grupo, e o segundo trata da preparação do instrumental de trabalho do ator. Para o autor, o laboratório diz respeito ao segundo caso – a parte prática –, isto é, à possibilidade de os atores experimentar, aprimorar o corpo, a voz, a emoção etc. e, ao mesmo tempo, aperfeiçoar e aprofundar a personagem. Assim, ao tratar o espetáculo O cuscuz fedegoso como laboratório para o grupo, Edson Paulo o vê como possibilidade de todos os participantes aprofundarem sua relação com a rua, com o público e com o tema tratado, ou seja, é o campo para aprofundamento e experimentação de conhecimentos artísticos e de mundo. 24

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Rua do Recife, realizado pelo Movimento de Teatro Popular de Pernambuco (MTP-PE). Ambas apresentações ocorreram em 2005: a primeira na quadra poliesportiva do CEU e a segunda numa comunidade periférica do Recife, por volta de onze horas da noite. As duas apresentações foram uma “bagunça” generalizada, o que levou os atores a pensarem que o espetáculo não comunicava a contento. Essa “bagunça”, em certos momentos, fugia ao controle dos atores. O fato é que as personagens eram tipos muito fortes que provocavam o público todo o tempo, e o público respondia na mesma medida. O salto qualitativo dos atores ocorreu no momento em que eles compreenderam que faltava mais jogo com os espectadores; afinal, se eles jogavam e o público correspondia, era preciso desenvolver as propostas, jogar o jogo. Assim, mesmo com roteiro fixo, o espetáculo se construía com o público, no momento de sua apresentação. Havia uma ondulação entre caos e ordem, gestada e desenvolvida no momento do espetáculo. As cenas eram cumulativas no que se refere ao desenvolvimento da trama, mas também do caos: entrava uma personagem por vez, formando um quadro que gerava certa confusão. Ao entrar a terceira personagem, por exemplo, problematizava-se a trama e a confusão aumentava. Selma Pavanelli, na condição de espectadora, relembra: O Guarda entrava no momento perfeito, porque estava um caos, e aí vinha aquela figura que controlava as demais. Ao mesmo tempo, era menos grotesco, contrastava com as outras personagens... Começava outra coisa, até se tornar o caos novamente.

Ainda em Recife ocorreu um fato curioso que revelou como o espetáculo ficava sempre aberto a novas inserções ou modificações. Estavam programadas duas apresentações no Festival. Depois de assistir à primeira, o ator Sérgio Diniz, do Teamu e Cia. (grupo pertencente ao MTP-PE, que organizou o Festival), cantou uma paródia do funk “Um tapinha não dói”, do grupo Furacão 2000, música bastante popular nas rádios naquele período. O refrão da música é o seguinte: - 82 -

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para muito Ser TÃO Ser muito mais Cuscuz Dói, um tapinha não dói Um tapinha não dói Um tapinha não dói Só um tapinha25

Sérgio Diniz cantou o refrão paródico em alusão à cena do Guarda Chicão e à sua violência: GOE26, um tapinha do GOE Um tapinha do GOE Um tapinha do GOE Só um tapinha

Na segunda apresentação do espetáculo no Festival foi inserido o refrão paródico, cantado e dançado por Maria do Cuscuz e Mãezinha do Quixadá, enquanto o policial batia em Resmelengo. Para completar essa cena, havia clara alusão ao episódio ocorrido na Favela Naval, em Diadema (SP), pois o Guarda Chicão pedia o pé de Resmelengo para bater em sua sola. O público sempre lembrava o fato, pois, no caso da Favela Naval, os policiais batiam na sola dos pés com um cacetete visando esconder possíveis escoriações causadas pelos espancamentos. A estética predominante em todo o espetáculo era a do grotesco, perceptível de diversas formas no espetáculo. Primeiro, nas próprias personagens, figuras estranhas e deformadas, como o mendigo que, ao tornar pública sua fome, fazia saltar de dentro de si o próprio estômago, que conversava com a raizeira e a quituteira. Essas figuras estranhas, aos olhos de várias pessoas, tornavam-se cômicas, mas também possibilitavam retratar e refratar a realidade de todos aqueles que assistiam ao espetáculo e que viviam, em diversos casos, a mesma e dura realidade. O que existia não era 25

Disponível em: http://letras.terra.com.br/furacao-2000/15575/. Consultado em 26/12/2011.

Grupo de Operações Especiais, ligado à Polícia Civil do Estado de São Paulo, criado em 1991. Entre suas atribuições estão à observância ao cumprimento de mandados de busca e apreensão e o gerenciamento de crises, como motins e distúrbios civis. 26

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propriamente identificação e, sim, estranhamento. Mas, naquele momento, atores e público tendiam a tornar-se um único coletivo. Aqui é possível entender a afirmação de Mikhail Bakhtin: “O portavoz do princípio material e corporal não é aqui nem o ser biológico isolado nem o egoísta indivíduo burguês, mas o povo, um povo que na sua evolução cresce e se renova constantemente” (1987: 17). Assim, aquelas figuras deformadas eram porta-vozes, por meio das situações vividas e do riso, de todo o povo (pelo menos do público da periferia, geralmente oprimido). Tratava-se do realismo grotesco, no qual, ainda segundo Mikhail Bakhtin (1987), o cósmico, o social e o corporal não se separam. Edson Paulo lembra que “[...] o espetáculo tinha muita coisa do baixo corporal, duplos sentidos, mas não tinha palavrão”. Lu Coelho, na mesma entrevista, relembra um episódio ocorrido em uma das apresentações realizadas no Parque Raul Seixas, em Itaquera, em que a coordenadora do parque havia conversado com os integrantes do grupo sobre a recorrência de palavrões no texto. Por essa razão, os integrantes do grupo repassaram o texto e constataram que não havia nenhum palavrão. Depois disso, os atores resolveram inserir dois palavrões, utilizando a proposição bakhtiniana do vocabulário da praça pública, ou seja, falar algo com outras conotações, apontando para além do que é explícito na fala. Assim, enquanto o policial batia no mendigo e, depois, solicitava que ele fosse embora, dizia: POLICIAL – Vais até tua mãe e retornes regenerado. RESMELENGO – Nossa, que poético! O que quer dizer? POLICIAL – Vai à puta que te pariu! (Bate no mendigo) RESMELENGO – E eu espero que o senhor visite os seus infernos corporais. POLICIAL – O que quer dizer isso? RESMELENGO – Vai tomar no cu! (Torna a apanhar do policial.)

Enquanto ocorria o espetáculo, sobretudo na última cena, em que entrava o policial, as personagens e o público irmanavam-se contra um mundo de opressão. Além da relação entre populares e polícia, que ao lon- 84 -

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go da história tem sido pouco amistosa, o fato de o policial ser a única personagem a representar o poder criava no público um desejo, ainda que fosse apenas simbólico, de “se vingar” do poder instituído, que, na sociedade capitalista, tem se caracterizado como um braço da burguesia, da classe opressora. Uma característica do realismo grotesco é o rebaixamento, isto é, “[...] a transferência ao plano material e corporal [...] de tudo que é elevado, espiritual, ideal e abstrato” (BAKHTIN, 1987: 17). Esse rebaixamento era operado no espetáculo no momento em que o Guarda Chicão, sem saber, tomava a urina do mendigo. Ao tomar esse “elixir”, revelava seus impulsos homossexuais e corria atrás do mendigo como se ele fosse o homem desejado. O mendigo, por sua vez, aproveitava para revidar todas as “borrachadas” recebidas do policial. Essa cena levou os integrantes do grupo a discutirem se não estariam reforçando o preconceito contra homossexuais. Nunca chegaram a um acordo sobre isso, mas quando a atriz Mônica Martins saiu do grupo, resolveram não mais apresentar o espetáculo. O rebaixamento está ligado a uma topografia (terra, órgãos genitais etc.), e a degradação que se opera nesse rebaixamento não é formal: Rebaixar consiste em aproximar da terra, entrar em comunhão com a terra concebida como um princípio de absorção e, ao mesmo tempo, nascimento: quando se degrada, amortalha-se e semeia-se simultaneamente, mata-se e dá-se a vida em seguida, mais e melhor (BAKHTIN, 1987: 19).

É como se, ao rebaixar o guarda, o povo – naquele momento representado pelos atores e pelo público – realizasse sua correção pelo renascimento, em que ele (o policial) seria melhor. Bakhtin (1987) chama a isso de “corpo social”. Por meio desse espetáculo, fica claro que o Buraco d`Oráculo cumpria a função de se aproximar de sua comunidade, como apresentado por - 85 -

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Alexandre Mate, no livro Buraco d`Oráculo: uma trupe paulistana de jogatores desfraldando espetáculos pelos espaços públicos da cidade, que conta a história dos dez primeiros anos de existência do grupo: A manifestação teatral que se aproxima de seu público (sua comunidade), sem restrições de quarta parede e de fossos de orquestra; impedimentos econômicos como a cobrança de ingressos; sem subestimar ou superestimar o público; sem exigir e impor silêncio sepulcral e contrição absolutos com relação à obra, e tantas outras exigências, efetivamente separatistas, podem repropor o espetáculo como festa e como encontro (2009: 30).

Para o Buraco d`Oráculo, foi um encontro com os seus. E no espetáculo ocorria a festa, a carnavalização, a inversão de um mundo opressor, ainda que durasse apenas o tempo da apresentação do espetáculo, mas que certamente os fazia extravasar as energias, que vinham a público durante a função. O espetáculo era um encontro com os seus e no seu “pedaço”. Por isso, das oitenta apresentações do espetáculo, sessenta e sete foram realizadas na Zona Leste da cidade de São Paulo, região onde moram e atuam os integrantes do Buraco d`Oráculo.

Histórias de um sertão urbano Se com o espetáculo O cuscuz fedegoso se pode afirmar que os integrantes do Buraco d`Oráculo mergulharam no território (ainda que nele já residissem) da Zona Leste, sobretudo com a circulação propiciada pelo projeto Circular Cohab`s, o processo de construção do espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem levou-os a uma extensa pesquisa sobre a identidade daquele povo, permitindo aprofundar o conhecimento sobre sua gente e sua classe e, por extensão, sobre eles próprios. Lucélia Coelho, em entrevista confirma essa proposição: - 86 -

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O Ser TÃO Ser dizíamos que já estava dentro de nós, porque vinha dessa relação, dessa troca com a comunidade. Só que a dimensão do público ainda não tinha aparecido e o espetáculo nasceu dessa ânsia de vermos essas pessoas em cena, como protagonistas de suas histórias.

Selma Pavanelli, na mesma entrevista, destaca a ideia de pertencimento: “Isso ficou claro quando percebi que não estamos fazendo a história deles, mas sim a nossa. Quando estamos ali atuando, é uma carga de muita gente”. É possível afirmar que o processo de pesquisa e de criação do espetáculo propiciou o salto qualitativo aos integrantes do grupo, no que concerne à consciência de classe, ao perceberem que a própria história é também a do outro, e que a história do outro, quando pertencente à mesma classe, é também a sua. Segundo Edson Paulo, esse é o processo criativo “mais autoral” do grupo. Perguntado sobre como tudo começou, Selma Pavanelli explica: “Ele não começou, veio vindo. É um processo que vem se formando, como todos os nossos projetos. Revisitar a nossa história, nos identificar com as pessoas nos lugares que nós apresentamos. Somos nós”. Ao completar dez anos, em 2008, o grupo Buraco d`Oráculo começou um processo de coleta de relatos, mesclando-os com as histórias de vida de seus integrantes, criando, assim, o espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, com estreia em 2009. A pesquisa é resultante de todas as histórias ouvidas desde o momento em que começaram a circular pelos conjuntos habitacionais em 2005 e, até mesmo, das histórias ouvidas desde 2002, em São Miguel Paulista (e desde sempre no seio familiar). Diante de acervo tão rico, o coletivo optou por representar as próprias comunidades, tomando como recorte a escassez de moradia. No espetáculo, há três instâncias relativas aos espaços visitados ao longo da pesquisa: uma ocupação de terra, uma favela e um conjunto habitacional. - 87 -

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Um elemento característico das personagens são os movimentos de desterritorialização e de territorialização, a saber, deixar seu lugar de origem e se apropriar de outro território (HAESBAERT, 2006a). Afinal, as personagens são todas migrantes que se encaminham para uma grande cidade, vindas especialmente do interior do Nordeste do Brasil. Portanto, nesse processo migratório, a quase totalidade das pessoas entrevistadas passaram pelo processo T-D-R (territorialização, desterritorialização e reterritorialização), ou seja, apropriaram-se de um território, perderam-no e se apropriaram de outro. Mesmo na migração interna, isto é, na própria cidade, ocorre o movimento T-D-R, pois numa cidade como São Paulo, em que foram coletadas as histórias, quando acontece a mudança de um bairro para o outro, ainda que em menor intensidade, é sempre um processo desterritorializador, já que cada “pedaço” é muito peculiar. Também não se pode esquecer que, pela imensidão de São Paulo, tanto em termos populacionais como em extensão territorial, existem muitos “estrangeiros” na própria cidade, pessoas que, não raras vezes, nascem, crescem e tornamse adultas conhecendo apenas uma ínfima parte da cidade. O processo de desterritorialização nunca é fácil nem tranquilo. Nesse sentido, Rogério Haesbaert (2006a e 2006b) deixa de analisar as perdas psicológicas dos sujeitos. Para ilustrar essas perdas, o ator Heber Humberto relembra, na citada entrevista, que, em 2010, o Jardim Pantanal, localizado na região do Itaim Paulista, tinha passado por enchentes e, em seguida, por um processo de desapropriação para a construção do maior parque linear do mundo. Ao entender que suas histórias são também as histórias dessas pessoas, e que o espetáculo trata de uma luta política por moradia, o grupo se dispôs, como fez em outros momentos, a realizar uma apresentação com o intuito de reunir pessoas, nessa região, com vistas a enfrentar o governo do estado de São Paulo a fim de deter o processo de desapropriação. Relembra Heber Humberto: Talvez essa seja a coisa mais forte para mim, no Ser TÃO Ser, saber que a nossa história é deles, e que a deles é nossa. Voltar àquela re-

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para muito Ser TÃO Ser muito mais Cuscuz gião onde apresentamos o espetáculo e onde ocorreram várias enchentes [Vila Nova Itaim]. O quanto foi forte para eu caminhar nas ruas e ver casas destruídas. Esse ano [2011], a enchente foi menor; mesmo assim era possível ver alguns lugares ainda com água... Eu entrei na casa de um senhor, um lugar que parecia um sítio e tinha uma árvore com quarenta anos de idade, que é o tempo que ele está ali. Ele mora bem próximo ao Rio [Tietê] e, do outro lado, as máquinas já estavam trabalhando. E conversamos sobre a retirada das pessoas daquele lugar e do quão forte é a relação deles com aquele lugar. Ele até falava de sair, mas queria uma quantia suficiente para poder ir para um lugar digno. Mas aí, você pensa, mesmo se derem um bom dinheiro, você analisa o quanto essas pessoas vão perder, porque é muito significativo aquele lugar para elas. E tudo isso... essas histórias, eu analiso, o quanto foram me construindo. (Grifo nosso).

O espetáculo trata da questão da moradia, tomando por base as histórias de vida coletadas em cinco comunidades da zona leste da cidade de São Paulo27, adotando, nessa coleta, a metodologia da história oral, já que nesse processo a “história de vida pode ser considerada um relato autobiográfico, mas do qual a escrita – que define a autobiografia – está ausente” (FREITAS, 2006: 21). E como toda pessoa é um ser social, cada narrativa apresenta um ponto de vista sobre a realidade vivida e acerca dessas comunidades. Mesmo tratando da questão relativa à moradia, Edson Paulo, na entrevista, lembra que foi o processo que se encaminhou para isso, não foi uma determinação desde o início: O legal é que nunca dissemos assim: vamos falar da terra, da questão da moradia. Não. Queríamos um espetáculo que falasse das pessoas, do entorno de nossa convivência. Aí a moradia era muito presente para essas pessoas e para nós. O mote era as pessoas. E depois de um momento turbulento no processo28, achamos nosso porto seguro em 27

As comunidades são: Vila Mara, União de Vila Nova, Cohab Prestes Maia, Jardim Lapena e Jardim Ipê.

Edson se refere ao conflito ocorrido com o então diretor Paulo de Moraes, que, segundo todos os integrantes do grupo, não compreendeu ou não entendeu muito bem a realidade na qual essas 28

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Buraco d`Oráculo: 15 anos de história nós mesmos, partindo de nossas histórias, não no sentido egocêntrico, mas no sentido de que em nossas histórias tem muito das histórias dessas pessoas, e vice-versa: somos moradores da Zona Leste, somos migrantes ou filhos de migrantes, buscamos também nosso chão. É o espetáculo que mais fala da gente!

Apesar de adotar a metodologia da história oral, que tem como finalidade criar fontes históricas (FREITAS, 2006), o espetáculo é obra ficcional, ainda que centrada na realidade. No processo de criação, tomou-se a liberdade de mesclar histórias e acontecimentos, de maneira a enriquecer as cenas e as personagens. Dessa forma, é possível afirmar, assim como fez Marcelo Soler (2010), que uma obra realizada com base em material histórico presentifica o passado, sem, no entanto, reproduzir a realidade. É uma forma de apresentar um ponto de vista sobre essa realidade. E uma obra artística é sempre resultante da experiência do seu tempo histórico (FISCHER, 1973), tomando ou não a realidade como elemento criativo, isto porque somos sujeitos históricos inseridos em determinado tempo e espaço, em determinadas condições históricas e sociais. Essa forma de criação, denominada por Marcelo Soler (2010) de teatro documentário, que faz questão de lembrar ter sido Erwin Piscator “[...] o primeiro a explicitar uma forma teatral com essa denominação” (SOLER, 2010: 48), pode também simplesmente ser chamada de teatro épico. Afinal, Piscator foi um dos criadores dessa “forma teatral” que rompeu com o drama, a fim de que a realidade, em todas as suas possibilidades, pudesse caber na cena teatral. Segundo Soler, apesar de defender a proposição de um teatro documentário, estaríamos “[...] diante de um gênero fortemente épico, tanto pela preocupação com a discussão sociopolítica, como pelo caráter narrativo, anti-ilusionista e fragmentado do discurso” (2010: 72). Por isso, afirmamos que o espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem é um espetáculo épico, criado a partir da realidade de muitos pessoas estavam inseridas e, por isso, não conseguiu encaminhar o processo da maneira que o grupo gostaria, provocando uma cisão entre o Buraco d`Oráculo e o diretor. Assim, os integrantes realizaram a dramaturgia e a direção que, neste caso, ficou a cargo do autor deste texto.

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cidadãos que habitam a parte leste da cidade de São Paulo e é, também, uma reflexão e uma refração sobre a realidade social presente em todas as grandes e médias cidades brasileiras. Aprendemos com Bertolt Brecht, em Cenas de rua, que “[...] o objetivo da representação é possibilitar uma apreciação crítica da ocorrência. Os meios de que se serve correspondem a este objetivo” (2005: 102). O espetáculo, dividido em quadros que se sucedem, é apresentado em dois lugares. O primeiro quadro é o das memórias. É narrativo, e foi experimentado de várias formas. Todos os atores desenvolveram uma narrativa na qual mesclavam parte de sua história pessoal com as histórias ouvidas. No processo, cada ator ficou em um determinado ponto. Concluída a narração, os atores encontravam-se, em uma alusão às suas vindas de diversos lugares. Depois, o espetáculo foi apresentado por estação ou processionalmente, com o público e os atores seguindo em cortejo. Em determinado momento, eles paravam e, a cada novo ponto, um ator contava a sua própria história. Mas o que permaneceu foi a escolha de um ponto onde todos os atores se reúnem. Dois deles (Edson Paulo e Lu Coelho) contam suas histórias, enquanto isso, vai sendo preparado um café, que é servido ao público. O café foi inserido na cena devido a necessidade de aguçar outros sentidos para além do visual e do auditivo, a saber, o olfato e o paladar que, com as histórias, provocam a rememoração no público. Nesse sentido, é possível afirmar que o espetáculo cria possibilidades de suspensão do tempo, de modo que o público possa relembrar situações vivenciadas. Depois desse quadro, atores e público deslocam-se para outro ponto, como forma de representar a mudança de lugar: a saída de uma cidade em direção a outra. É a chegada na cidade grande. No ponto escolhido, desdobra-se o restante do espetáculo: uma ocupação de terra, uma favela e um conjunto habitacional popular. O espetáculo não se atém à determinação de tempo, mas, pelos lugares ocupados, pelos figurinos e pelas músicas, é perceptível uma abrangência de tempo bastante grande. Nesta etapa do espetáculo, a primeira parte refere-se à chegada dos migrantes e à ocupação da terra, o que os leva ao enfrentamento com a - 91 -

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polícia, no qual uma pessoa morre. Depois da morte da personagem, representada por Lu Coelho, são inseridas falas reais de pessoas que estão em ocupações, lutando por moradia. Mesclar ficção e realidade, por meio de falas gravadas, provoca distanciamento, no sentido brechtiano, ou seja, propõe aos espectadores a reflexão, ao invés da identificação com a personagem, subsumindo na emoção. “A atitude do espectador não será menos artística por ser crítica. O efeito de distanciamento, quando descrito, resulta muito menos natural do que quando realizado na prática” (BRECHT, 2005: 110). Mas este não é um único elemento de distanciamento no espetáculo. Músicas são utilizadas como complemento à dramaturgia, ao mesmo tempo em que produzem um corte nos acontecimentos em cena. Martin Eikmeier (2009), que se dedica à música na Companhia do Latão, compreende que, no século XX, as artes políticas usaram a música buscando romper com as tendências dominantes, isto é, apenas como elemento que reforça a emoção. Outros recursos são a utilização da quebra da cena para narrativas diretas realizadas pelos atores e não pelas personagens, uso de documentos reais, o que leva o espectador a compreender a presentificação na cena do real (SOLER, 2010). Na cena seguinte, a da favela, há uma exposição da luta travada entre o direito à moradia e a especulação imobiliária. Duas personagens – Costela (Heber Humberto) e Buchada (Edson Paulo) – realizam os preparativos do espaço para a festa de casamento do segundo personagem. Para tanto, necessitam fazer um “gato”29 para iluminar a festa, que deve ocorrer proximamente a um campo de futebol. No entanto, Costela informa que o campo vai desaparecer porque ali será construído um shopping. A personagem de Lu Coelho tenta mobilizar a comunidade para que os moradores não sejam despejados; no entanto, na hora da festa do casamento, começa a desapropriação, e as máquinas começam a derrubar “os barracos”. Essa luta ocorre diariamente em São Paulo e em outros lugares do 29

Nesse caso, ou na acepção aqui adotada, trata-se do uso da corrente elétrica sem o devido pagamento.

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mundo, como afirma Mariana Fix: “No caso do setor imobiliário, eles são responsáveis por empreendimentos que aumentam a concentração de renda e a segregação espacial, e direcionam os fundos públicos em benefício próprio” (2007: 150). Essa é a lógica do capital, que utiliza o Estado, em todas as suas instâncias – unidades federativas e municípios –, no concernente ao que se tem denominado “parcerias” público-privadas. Mas, conforme alerta o geógrafo David Harvey em seu livro Espaços de esperança: “A parceria entre o poder público e a iniciativa privada significa que o poder público entra com os riscos e a iniciativa privada fica com os lucros. Os cidadãos ficam à espera de benefícios que nunca chegam” (2006: 190). Continua o autor: [...] Trata-se da racionalidade suprema do mercado versus a tola irracionalidade de tudo o que não seja o mercado. E todas as instituições que poderiam ter ajudado a moldar alguma alternativa foram suprimidas ou [...] reduzidas à submissão. Nós, o povo, não temos o direito de escolher o tipo de cidade que vamos habitar (HARVEY, 2006: 205).

A terceira cena transcorre em um conjunto habitacional popular que, em geral, são prédios construídos pelos governos de plantão sem a participação popular. Esses imóveis, via de regra, são minúsculos apartamentos. Ainda que representem avanços do ponto de vista da urbanização, seu entorno, na maioria das vezes, não conta com infraestrutura. Na verdade, não passam de pequenas “caixas” destinadas à moradia. Por isso mesmo, as personagens se comunicam através de janelas. O que se constatou no processo de pesquisa foi que, nesses espaços – talvez pela ausência de participação –, as pessoas tendem a ressaltar o individualismo, em lugar do coletivismo dos outros espaços (ocupação e favela). Apesar da imensa quantidade de pessoas, é como se elas vivessem isoladas. Nesse sentido, as políticas de governo cumprem mais uma vez o papel do capital, desagregando o coletivo. Como afirma Bauman: “Com os - 93 -

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fatores supraindividuais moldando o curso de uma vida individual longe dos olhos e do pensamento, o valor agregado de ‘unir forças’ e ‘ficar lado a lado’ é difícil de ser reconhecido” (2008: 17). Mais à frente, insiste o autor: Os tempos de combate direto entre o “dominante” e o “dominado”, corporificado em instituições panópticas de vigilância e doutrinação diárias, parece ter sido substituído (ou estar em curso de ser substituído) por meios mais limpos, elegantes, flexíveis e econômicos. [...] O descomprometimento é o mais atrativo e praticado jogo da cidade hoje em dia (BAUMAN, 2008: 20).

Trata-se, é claro, da própria lógica do capital, a saber, ver-nos uns aos outros como adversários. E como nos conjuntos habitacionais as pessoas não lutaram juntas, como em boa parte das demais comunidades, não criaram laços umas com as outras. Mas Bauman se refere também à precarização a que estamos todos submetidos. “Empilhar” pessoas em prédios populares, em geral construídos em lugares muito afastados de tudo, quase sem nenhuma infraestrutura, é também reflexo desse jogo de precarização. Por meio de uma música coletada no movimento social, os atores finalizam o espetáculo convidando o público para a luta, chamando a atenção de todos para que se vejam e percebam que são muitos: “Se o povo soubesse o valor que ele tem, não aguentava desaforo de ninguém!”. Todo o processo de construção do espetáculo foi muito rico e contraditório ao mesmo tempo. No entanto, os atores tomaram consciência de que a arte precisa cumprir sua função social. “Como um ramo social, coletivo de arte, o teatro enfatiza a mudança social, em como o mundo pode ser mudado e em porque ele precisa ser mudado” (PRENTKI, 2009: 25). Lucélia Coelho expressou-se nesses termos na entrevista citada: “Não existe não querer mudar essa realidade”. Interessado por mudanças, o teatro pode cumprir o papel contra-hegemônico; por isso, a atriz entende que “[...] precisamos cada vez mais da teoria, não para virarmos papagaios, mas para falarmos com a mesma força que o inimigo”. No entanto, certa angústia permanece, pois querem - 94 -

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mais. Ao longo da entrevista, percebe-se certo tom angustiante na fala de todos, mas reproduzo aqui apenas a de Edson Paulo: Eu ainda me sinto incomodado, porque tomamos consciência, mas o que estamos fazendo para mudar a realidade? A circulação, o contato com essas pessoas é uma ação? É. As discussões? É. Mas eu acho que ainda falta algo mais contundente, e aí não sei se é pelo espetáculo... Se despertamos, como é que agimos nisso? Será que também não ficamos acomodados?

Durante a entrevista, Lucélia Coelho afirma que “[...] não se pode entrar em desespero”. Selma Pavanelli, por sua vez, afirma que “[...] não sabem construir o novo, mas têm plena certeza de que não querem o que está aí”. Heber Humberto refere-se à necessidade de “[...] algo prático, para além do espetáculo”. Edson Paulo arremata: “O processo de Ser TÃO Ser nos deixou ‘malucos’ e, com certeza, toda essa conscientização veio no decorrer desse processo”. Em última análise, essas afirmações servirão para demonstrar o esclarecimento dos atores com relação à realidade na qual estão inseridos, confirmando a máxima de Julian Beck, que afirma que o teatro deve servir para esclarecer, pelo menos, quem faz. Ou ainda: “O teatro é um meio comunitário para tentar compreender a vida. [...] Por isso, é preciso fazer teatro. Hoje, diria, acima de tudo fazer teatro de rua para mudar a vida de todos os dias [...]” (Apud CRUCIANI; FALLETTI, 1999: 90). A arte que o Buraco d`Oráculo tem buscado praticar, como lembra Edson Paulo, é aquela “[...] como o do poema Nova poética, de Manuel Bandeira”: Vou lançar a teoria do poeta sórdido. Poeta sórdido: Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida. Vai um sujeito. Sai um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito bem [engomado, e na primeira esquina passa um caminhão,

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Buraco d`Oráculo: 15 anos de história [salpica-lhe o paletó ou a calça de uma nódoa de lama: É a vida. O poema deve ser como a nódoa no brim: Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero. Sei que a poesia é também orvalho. Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens cem [por cento e as amadas que envelheceram sem maldade.

(BANDEIRA, 1993: 205). No entanto, isso não significa que os atores estão preocupados apenas com o conteúdo a ser levado para os espetáculos. A questão técnica não é deixada de lado. Todos eles falaram sobre a necessidade de apropriação do seu instrumental de trabalho, seu corpo e sua voz. “O processo deixou claro que nós precisamos ter propriedade e qualidade no que estamos fazendo para levar ao público o que queremos. Não dá para levar qualquer coisa e de qualquer jeito”, afirma Edson Paulo. Por isso mesmo, desde 2008, os atores vêm estudando percussão com Celso Nascimento, canto com Melissa Maranhão e trabalho de corpo com Paulo de Moraes – o trabalho de corpo foi interrompido em 2009 e retomado em 2011, com Elizete Gomes. Para Lu Coelho, é por meio de sua arte que ela fala com o mundo. Por isso, é preciso estar bem preparado, “porque um discurso político, você vai lá e diz. Agora o espetáculo é diferente, precisa de preparo”, afirma a atriz. A criação de Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem levou o grupo a um novo processo, sobre o qual está debruçado, a saber, a precarização do trabalho. Essa foi uma tentativa de os integrantes do grupo buscarem entender por que essas pessoas estão nessas comunidades, isto é, por que elas estão na base da pirâmide social, ocupando postos precários de trabalho. Mas isso é outra história...

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TERCEIRA PARTE

Ser TÃO Ser para ser sertão

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Fonte – Arquivo do grupo. Foto: Edson Paulo

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Vista do bairro União de Vila Nova. A árvore com as casas ao fundo tornou-se a ilustração símbolo do Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem.

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Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem Criação coletiva do Buraco d`Oráculo Cena 1 – Cafés Os atores se encontram na casa de Lurdinha, onde ela prepara um café. Chegam de pontos diferentes. Cada ator leva consigo um baú/mochila às costas. Depositam os baús ao chão. Cantam Cálix Bento. Dois atores contam suas histórias.30 Zé da Cruz José Alves da Cruz, Zé da Cruz a seu dispor; um sertanejo baiano, filho de uma grande família despedaçada pela dificuldade da vida. Lá em casa nós semos em oito. Oito irmãos... Faz tempo que não vejo ninguém... tão tudo espalhado pelo mundo afora! Partiram, cada um prum canto. Eu também tô de partida, que boi é vaca em pasto alheio, preciso arrumar meu pasto. Todo mundo já se arribou, eu sou o último, mas também vou arribar. Resisti, mas num dá mais, aqui num dá mais. Não é fácil deixar a terra da gente, onde se é criado, mas se não há condições o que se pode fazer?! Durante o processo cada ator criou uma história que misturava as que havia escutado com as suas próprias. Inicialmente o objetivo era que cada ator, ao narrar sua história, fizesse café no ponto em que estava ocupando. Depois esse início foi apresentado de diversas formas: atores em pontos diferentes contando suas histórias; de forma processional, a cada ponto (estação) um ator ou atriz contava sua história. Mas, por fim, optou-se pelo formato em que todos se encontram na casa de Lurdinha e apenas ela e José Justino narram suas histórias. Depois seguem para outro ponto. 30

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Mas vou sentir saudade desse lugar, dessa gente... Eu lembro de minha mãe... Ela acordava cedinho, antes de todo mundo e passava o café pro meu pai ir pra roça. Depois ia acordando os fio: “Levanta minino, que o sol já vai alto!” Os que ia trabaiá era acordado junto com o pai... Só foi eu crescer um bucadinho e já era acordado na mesma hora que meu pai. A vida não vem de graça. Depois de beber o café, seguia todo mundo pra roça! (para si) Trabaiá de sol a sol... Mais amargo que café... oito ano e já pegava na enxada... (voltando) Quando tinha cuscuz, se tomava café com cuscuz, se não, era puro mesmo!... (para o público) Já bebeu café com cuscuz? E café amargo? Eu não gosto de café amargo, por isso já coloco o açúcar junto com o danado. Cada um tem uma forma de fazer café, não é mesmo? Tô partindo, gente, porque o dinheiro que se ganha aqui é tão pouco que num dá nem pra comprar uma corda pra morrer enforcado. Mas eu sei que vou sofrer solidão, vou sentir falta desse povo, desse lugá... vou fazer minha vida, aqui já não tem trabaio. O homem desempregado é como boi que está amarrado num pau no meio do pasto. Num dia ele come tudo em volta. Mas no outro dia o dono se compadece dele e muda de lugar. Eu sou como boi amarrado que o dono não muda de lugar. Então, se eu vivo na incerteza, vou viver na incerteza longe daqui! Vou caminhar, que caminhar é ter falta de lugar! Caminhar é ter falta de lugar! É hora de deixar tudo o que sei e o que sou e partir em busca do que nem sei que sou. Pôr o pé na estrada, um outro lugar, uma outra gente, uma nova vida me espera. A gente escreve a própria história; e, quando ela se junta com a história do outro, é outra história, é muito mais bonita! Minha gente, cês pode me seguir, pode me acompanhar que pra onde eu vou tem mais história. Porque todo mundo é assim: começa onde nasce, termina onde escolhe ou onde der. Manuel Azevedo Sou Manuel Azevedo, mas pode me chamar de Manuzinho. Quando eu era pequenininho meu pai morreu. Nóis ficou sem pai. Minha mãe - 100 -

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ficou uns 6 anos sozinha, dispois arrumou um senhor e casaram. Tudo que nóis ajuntou foi só pra ladrão... Inclusive, quem casou esse véio fui eu, por causa que ele num tinha dinheiro nem pro terno. E foi com esse véio, pai de criação que num tinha dinheiro, que nóis foi vivendo... Foi vivendo... A gente cresce sempre sem saber pra onde. Viver sempre vale a pena, mas é um negócio muito perigoso! Naquele tempo, lá no norte, onde nóis amorava, era dificulitoso. Vai rolando a situação, a minha mãe adoeceu, e médico naquela região é dificulitoso. Daí minha mãe morreu. Aí o véio, ao invés de me criar, bolou de tomar a fazenda. Cismou com a minha cara! Me chamou de condenado do diabo e disse que ia dar fim em mim. Eu disse: “O quê?! Vou largar tudo, me picar no mundo!”. E fiz isso mesmo: abandonei tudo, me piquei no mundo. O que assenta justo é cada um fugir do que bem não se pertence: o bom longe do ruim, o são longe do doente, o vivo longe do morto, o frio longe do quente. Só levei a cuia presa no cinturão e vim vivê aqui com o ganho de minha profissão. Cuido da minha vida, subo essa serra, corto esse chão. Foi aí que eu conheci a mulher mais linda desse diacho de mundo. Uma coisa linda pra iluminar minha vida de amor. A flor do amor tem muitos nomes e a minha se chama Rosa. Eu e Rosa, nóis fiquemo de namoro por debaixo dos pano, por causa que o pai dela é bravo. Açogueiro! Toma umas cajubina desgraçada, é metidão a facãozeiro. É malvado e não alisa. Eu tenho medo, mas eu e Rosa bolemo de fugir... morar numa palhoça, continuar uma roça, fazer verso e prosa. Tô enamorado de Rosa... E só ando pra lá, porque pra trás não existe família. Mas sofrimento passado é glória, é sal em cinza. O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta, esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. A vida vai, mas vem vindo. Aí a gente quer alguma coisa que viu, e eu vi a Rosa. E é por isso que quando eu morrer eu cuido dela, e quando ela morrer ela cuida de mim. Agora, se os senhores quiserem escutar mais histórias como esta, me acompanhem. - 101 -

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José Justino Sou José Justino Ventura, morador de um oco de mundo, de uma terra esquecida por meu Deus. Assim como meu pai e meu avô, sempre morei numa terra que não me pertencia, até que um dia, chegou alguém que se dizia dono da terra, com papel na mão e tudo... e me pois pra fora. Nisso, vim pará aqui, em um lugar que já não é mais meu, pois ponham reparo, estou de partida. Sou José Justino Ventura, mas conhecido como Zé da Déia. Déia é minha mulher, Valdinéia. Minha mulher que não vejo há três anos. Faz três anos que Valdinéia foi-se embora, foi atrás de Reginaldo. Reginaldo é meu filho mais velho, o primeiro a partir, ou melhor, que eu fiz partir. As coisas por aqui nunca foram das melhores e está cada vez pior, vale até dizer o ditado: “Já não dá mais nem para comer, só pra lamber”. Então vocês há de me dar razão: vocês podem até passar fome, não ter o que vestir, não ter instrução nenhuma na vida, mas ver um filho seu vivendo essa mesma penúria é de doer o coração, não é verdade? Pois então! Sabendo que uns parentes meus estavam numa situação melhor que a minha lá na cidade grande, mandei Reginaldo morar com os parentes. Parente? Parente mesmo é pai, mãe e os irmãos. Mas no dia da partida do menino foi bonito de ver, parecia que toda a cidade estava na rodoviária pra se despedir do menino. Cabra frouxo! Os olhos se derramava em lágrima. Levava uma única muda de roupa, mas ia muito bem vestido. Ia muito bem vestido que é pra quando chegar lá, os parentes visse que nós tamo passando necessidades, mas nós num é nenhum esmolé. A Déia, minha mulher, fez uma farofa de galinha assada... e aquilo foi a garantia de comida durante os três dias de viagem. Pra consolar, falei que as pessoa que tava com ele, naquele ônibus, era a família dele. Família? Família mesmo, é pai, mãe e os irmãos. Quando o ônibus partiu, soltou um grito choroso: “pai eu volto final do ano”. Não voltou nunca mais, não voltou nunca mais... Três anos depois mandou uma carta dizendo que lá na cidade grande dá prum home - 102 -

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viver melhor que aqui. Foi aí então que a Déia, a que mais se despedaçava em saudade, juntou os dois filhos que ficou e foi pra lá, atrás de Reginaldo. Ficando só eu, ficando eu sozinho. Mas né nada não, minha gente. Mês passado chegou outra carta de Reginaldo, falando que quer juntar novamente a família, que está precisando da força do pai. Se é assim eu vou, pois, como eu bem disse, família mesmo é pai, mãe e os irmãos. Hora de deixar tudo o que sei e o que sou e partir em busca do que nem sei que sou... Pôr o pé na estrada, um outro lugar, uma outra gente, uma nova vida me espera. Todo mundo é assim: começa onde nasce, termina onde escolhe. Lurdinha Nesse momento a atriz improvisa um diálogo com o ator que faz José Justino e o público, antes de iniciar a sua história. É nesse momento também que serve um café ao público. Meu nome é Lurdinha, não tenho outro de pia. Minha história começa longe daqui, na Bahia. Conhece? Quando meus pais saíram de lá, eu era menina ainda, nem corpo formado tinha. Saíram fugidos da fome daqueles dias. A fome chama, põe a gente na estrada. Foi então que apareceu por aquelas bandas o gato e seu caminhão. Sabe o que é gato? É um empreiteiro, sabe? Ele enchia o caminhão com as famílias, que ficava aguardando na beira da estrada, botava todo mundo no pau de arara e caia no mundo. Dezoito dias... Quando a gente chegava, os cabelos tava tudo arrupiado, em pé, assim, da poeira dos caminhos! O gato tava levando nós pro Paraná, pra trabalhar na lavoura de café, milho, algodão... Aí a gente chegava, sabe, e saía do caminhão direto pro porão, assim, todo mundo junto: home, mulher, criança, tudo misturado. Então chegava o dono da terra e o gato vendia nós. É verdade, vendia! E nós tinha que trabalhar pros donos de lá. E eu trabalhava, era menina ainda, nem corpo formado eu tinha, mais não fugia da lida. Tinha que tra- 103 -

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balhar, porque meu pai já chegava devendo pro patrão... a viagem, a comida, a dormida... tudo tinha que pagar. Minha gente, eu só sei que a gente trabalhava dia e noite, noite e dia e a dívida só aumentava. Diacho de vida, a gente era como escravo! A gente era escravo? Eita, que a cabeça da gente vai longe, tava aqui só fazendo um cafezinho... Mas a vida teimava em continuar. Quando cê pensa que tá ruim aí é que melhora! Então, quando eu tinha lá pelos meus 14 anos, meu pai e meu irmão arrumaram um marido pra mim. Eu era menina, corpo formando ainda. E eu casei. Com 15 tive meu primeiro filho. E assim nós foi vivendo. Pai arrendou uma terrinha e nós foi vivendo... Mas home é um bicho disgramado, num é que meu marido se injuriou e resolveu ir embora! Ele recebeu uma carta muito bonita, contando as vantagens da cidade grande, as maravilhas. Joana, prima dele, conhece? Conhece não, né? Pois então, a mulher quando saiu daqui, vixe, magrinha, parecia uma seriema de tão magra. Tinha as pernas de Manoel Fonseca: uma fina e outra seca. Agora apareceu aí, trazendo a carta. Gorda, mas gorda de dá gosto de vê. Então esse negócio de cidade grande não deve ser de todo tão ruim, não é mesmo? Não sei se quero ir. Também não digo que não vou. É que a gente houve falar da violência... Mas mulher tem que seguir o marido, tá certo? Então eu vou. A mulher é assim, começa onde nasce, termina onde o marido escolhe, né mesmo? Hora de partir. Deixar tudo que sei e o que sou e partir em busca do que nem sei que sou. Um outro lugar, uma nova gente me espera. Todo mundo é assim: começa onde nasce, termina onde Deus escolhe! Terezinha Tô passando um cafezinho fresquinho... aceita? Meu nome é Terezinha dos Santos. Café lembra reunião de família, de amigos... café é encontro! Essa fumacinha são lembranças de outros cafés. Essa me lembrou uma história do passado! E é essa história que eu vou contar. - 104 -

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Eu vim do interior de São Paulo, lá era pequeno de mais pra mim. Eu queria estudar, vim a passeio e nunca mais voltei. Era uma menina! Estudei, casei, era uma dona de casa como todas as outras. Fazia crochê em frente à televisão. Êta! vidinha besta! Mas certo dia, tava dormindo, um barulho, carro de polícia, muita gente falando, gritando. Saí pra ver quem tava atrapalhando meu sono. Quando cheguei no portão, a casa em frente da minha, tava a maior confusão. Tinha tantos policiais. Eu contei: mais de trinta, tudo armado. Pra quê? Vi uma mulher desesperada ajoelhada nas pedras, implorando pra não derrubarem sua casa. Que nada! Chega um dia que a gente tem que acordar. Às vezes a gente é acordada pela vida! Você já viu uma casa sendo derrubada? Aquela máquina enorme destruindo, destruindo, destruindo uma vida... Eu não sabia o nome dela, nem quanto tempo ela tava morando ali. Nem que ela tinha 04 filhos. Acho que passava por ela, todos os dias... Aquela máquina derrubando, derrubando... Eu não sabia o nome dela... “O que vai acontecer com aquela família?”, perguntei pra assistente social. “Pra onde ela vai? E as coisas dela?” Ela me respondeu com a maior indiferença: “Não sei, ela não quer ir pro abrigo.” “E o direito a moradia? Da criança? Cadê os direitos humanos?” “Só tá no papel”, ela respondeu. Gente, vamos rasgar o papel e por isso em prática! “Pelo menos um caminhão pra ela levar as coisas dela, vocês tem obrigação de arranjar. É o mínimo!” Foi uma luta pra conseguir esse caminhão. Essa foi minha primeira batalha. Sozinho, não conseguimos nada, mas juntos... A mobilização é tudo. Tá faltando conhecimento da população do que eles têm direito e do que não têm. Falta lutar. Tenho muito medo de sair daqui. Mas se a gente cruzar os braços pro medo, ele sempre vai ser o vencedor. Hora de partir, pôr o pé na estrada, um outro lugar, uma nova vida me espera. Quem quiser pode vir comigo, conhecer outras histórias, outras pessoas... Todo mundo é assim: começa onde nasce, termina onde escolhe. Todo mundo é assim? Começa onde nasce e termina onde escolhe?

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Todos se encaminham para outro ponto, repetindo a última frase de acordo com a sua história: Todo mundo é assim, começa onde nasce e termina onde Deus quer/ onde der/ onde o marido vai/ termina fugido/ termina onde escolhe?. No caminhar, formam um grupo de retirantes. Ao chegar ao espaço da cidade, estranhamento, andam em ritmo marcado por instrumentos. Cena 2 – A chegada Terezinha/Migrante 1 – Eu vim num ônibus cheio de iludidos que voltava com os arrependidos. Zé da Cruz/Migrante 2 – Quando eu desci do ônibus, fiquei meio que perdido, sem saber pra onde ir. Lurdinha/Migrante 3 – Num sabia onde ficava nada, mas tinha vergonha de ficar perguntando pras pessoas. Manuel Azevedo/ Migrante 4 – Eu num entendia o que as pessoa falava. Eles falava estranho! José Justinho/Migrante 5 – Fiquei três dia perdido na rodoviária, até ser encontrado, sem querer, pela amiga da minha mulher. Terezinha/Migrante 1 – Quando cheguei aqui, vi tantos carros, tantas pessoas! Fiquei assustada, saí correndo pelas ruas. Zé da Cruz/Migrante 2 – Quando desci do ônibus, fiquei meio perdido, sem saber pra onde ir! Todos – Falam frases soltas ao mesmo tempo. Todos aceleram, cada vez mais, formando um círculo. José Justino – Um dia, ainda volto pra minha terra. (Todos param, se olham e começa a música). Música de apresentação Oi, aqui vamos cantar - 106 -

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Oi, aqui vamos narrar A história de uma gente Que construiu o seu lugar. Onde não havia nada Toda essa multidão Reescreveu a sua história Num pedaço de chão. Essa é a nossa história Sua, também pode ser O Buraco d`Oráculo Apresenta Ser Tão Ser! Os atores vão saindo, formam um quadrado e o público fica em círculo à sua volta. No centro da cena fica o ator que faz José Justino e narra o início do espetáculo.

Cena 3 – A realidade bate à porta

Ator – Bom dia a todos. Meus senhores, minhas senhoras, o que aqui irão ver e ouvir não se passa em um momento presente, mas num tempo passado, escrito por nossa gente. Ouvimos essas histórias do povo: vocês, nós. Todas contadas em volta de uma mesa de café, num fim de tarde qualquer. As personagens que aqui aparecem são habitantes de um sertão que fica à margem da cidade, pois foi lá o único lugar que podiam pagar. Desse passado, não tão distante, muita coisa ainda permanece. Nas comunidades por onde passamos, as pessoas abriram as portas de suas casas e de seus corações, pois então, vos peço humildemente que abram espaço para - 107 -

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o teatro que aqui vamos apresentar. E vamos começar pela chegada desse povo, pois, como diz o poeta, “um passo a frente e você já não está no mesmo lugar”. (Volta a representar o Migrante 5). Jose Justino/Migrante 5 – Cheguei, enfim cheguei. Depois de dura caminhada, cheguei! Só não sei pra onde vou agora, perdi o endereço do meu filho, a única coisa que me indicava o caminho nessa cidade. Não sei pra onde eu vou... só sei que preciso de um lugar pra morar e um emprego pra trabalhar. Ator 1 – Mais um que chega. Ator 2 – Chegou pra quê? Ator 3 – Vai pra onde agora? Ator 4 – Tem documentos? Ator 1 – RG? Ator 2 – CPF? Ator 3 – PIS/ PASEP? Ator 4 – Carteira de trabalho? José Justino – Tenho não, senhor. A única coisa que tenho é o meu certidão de nascimento, com o meu nome: José Justino Ventura. Todos – Iihh!! Mais um Zé! José Justino – Se fui bicho brabo no sertão, serei bicho brabo aqui também. (Repete a frase e senta na sua caixa/baú ao centro da cena). Migrante 1/Terezinha – Quando cheguei nessa cidade, era ainda uma menina. Pedi pra mãe, vim de férias, nunca mais voltei. Eu tinha determinado que viria pra uma cidade grande. Na hora que cheguei aqui, caiu a ficha, eu caí na real... eu disse “caramba”, e foi uma choradeira danada. Eu queria estudar. Eu tinha muitos sonhos, lá era pequeno demais para mim!... - 108 -

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Ator 1 – De onde vem? Ator 2 – Onde estudou? Ator 3 – Faculdade? Ator 1 – Diploma? Ator 2 – Currículo? Ator 3 – Carta de referência? Ator 1 – Atestado de antecedentes? Ator 2 – Mora perto? Terezinha – Não. Moro longe. Mas tenho todos os cursos que vocês pediram, eu só quero uma chance. Todos – Mais um que pede! Terezinha – Tenho tudo o que eles pediram, todos os diplomas, tudo... eu só quero uma chance! (Repete o fim da frase e senta na caixa). Migrante 3/Lurdinha – Quando eu cheguei aqui estava acompanhando o meu marido. Eu não queria vir não, mas vim. A mulher é assim: tem que ir aonde o marido vai. Mas foi só chegar aqui e ele se engraçou por uma moça mais nova que eu e me deixou com o nosso filho. Agora, eu sou dona de minha vida! Mas o dinheiro é pouco, trabalho, nenhum... pra onde que essa gente vai? Ator 1 – O que veio fazer aqui? Ator 3 – Procura casa? Ator 1 – Emprego? Ator 3 – O que sabe fazer? Ator 1 – Lavar? Passar? Ator 3 – Tem onde morar? - 109 -

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Lurdinha – Não, não tenho onde morar, mas sei fazer de tudo um pouco e tenho muita força de vontade. Ator 1 e 3 – É pouco! Lurdinha – É pouco? Agora, eu sou dona da minha vida! (Repete a frase e senta na caixa ao centro da cena). Lurdinha e Terezinha dançam música afro, como um pedido de licença ao espaço. José Justino (Subindo na caixa) – Esse pedaço é nosso! Todos – É nosso! Cena 4 – A ocupação ou meu pedaço de chão Mutação. Cada um vai para um canto, volta a formar o quadrado. Ocupante 1 – Aqui tem terra pra todo mundo! Ocupante 2 – Mas vamos dividir por igual. Ocupante 3 – E se a polícia chegar? Ocupante 4 – É o nosso direito! (Começa a cantar) maia, maia, maia, maiadô maia, que seu Maia quer morá maia, maia, maia, maiadô maia, que seu Maia quer morá (Cantam duas vezes. Se olham e começam a demarcar o espaço com terra, enquanto cantam) a noite antes do galo cantar - 110 -

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a gente ligeiro se levantá o grupo dos sem teto vai a luta querendo um terreninho pra morá vai homem, vai mulher e vai menino sabendo que é difícil de encontrar Ocupante 1/José Justino – O pobre quando começa a lutar por um pedaço de chão é chamado muitas vezes de vagabundo, mas eu sou trabalhador, só que com o que a gente ganha não dá pra comprar casa, não. É por isso que eu tô nessa luta. Ocupante 3/Manuel Azevedo – Eu tenho medo! Todo mundo diz que a polícia pode prender. Mas eu só quero uma casa, não tenho condições de pagar aluguel... Ocupante 2/Lurdinha – Eu até pagava aluguel, aí eu tive que escolher, ou pagava aluguel ou comia. Larguei tudo e vim pra cá. Ocupante 4/Terezinha – Moradia não é um direito?! Todos – Direito à Moradia! Música Fazenda véia, cumieira já rachou Levanta povo cativeiro já acabou A música é cantada até a interrupção da polícia. Cena 5 – Enfrentamento Policial – (Chegando com violência.) Reintegração de posse imediata. O aparato policial chega. Enfrentamento. Grupo começa a bater ritmado no peito e nas mãos ao som de rap, acompanhado também pelo policial, que bate o cacetete no escudo. - 111 -

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Policial Desocupem essa área, tô cumprindo meu dever Proteger o patrimônio, doa a quem doer Desocupem essa área ou a porrada vai comer! Ocupantes/Trabalhadores Chega de promessa, chega de enrolação (2x) União, Estado e Município / Ninguém dá a solução (2x) Direito a moradia está na Constituição (2x) Policial Desocupem essa área ou a porrada vai comer Tô fazendo meu papel, tô cumprindo meu dever Proteger o patrimônio, doa a quem doer Spray, bala de borracha, gás pra entorpecer Desocupem essa área ou a porrada vai comer Trabalhadores Aqui só tem família e trabalhador (2x) Mas tem panela, pau, pedra... (2x) Ameaça de real enfrentamento. Ocupante 2 (Intervindo entre ambos) – Calma, gente, calma! Embaixo daquele capacete tem um homem, que tem família, filhos... Calma! Vamos conversar! Atores, em coro, falam o poema Há Lugar, o policial fica parado.

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Todos os atores (Poema “Há Lugar”) Esta é a luta de um povo humilde Vivendo em opressão Lutando contra o relento Buscando casa e sustento Pra não viver como cão Esse povo cansou de sofrimento E vem aqui reivindicar O direito à moradia Lutando com euforia Pra construir o seu lar (Ao finalizar, todos estão de volta a seus lugares, como ocupantes). Ocupante 2 – Calma! Som de tiro. Ocupante 2 cai. Os companheiros olham e encaminhamse em direção ao corpo para retirá-lo de cena. Gravação de falas reais do movimento de moradia, abordando a questão da ocupação e da repressão. Terminada a gravação, música anuncia a periferia. Rap. Cena 6 – Periferia Música da periferia Você não precisa entender geografia Pra saber onde fica essa tal periferia Dizem que é longe, violenta e coisa assim A minha, a sua, a nossa periferia. (2X)

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É certo que precisa de muita melhoria Escola, condução, saúde e moradia. Por isso tem que ter uma certa teimosia Pra viver e amar essa tal periferia. (2X) É populosa, é enorme, chega gente todo dia Por isso, veja só, eu não me oporia, Se tivesse um pouquinho de mordomia Na minha, na sua, na nossa, periferia. (2X) Pra melhorar tudo isso, o que precisaria? Cumprir com as promessas feitas todo dia. Precisamos acabar com essa covardia Tem gente destruindo a nossa periferia. Tem gente destruindo a tua periferia! Brasil Periferia Cena 7 – A favela ou é na quebrada que se quebra Costela continua cantando a música anterior, como se tivesse isolado, sozinho, baixo. Buchada – Ô, Costela, tu tá maluco, meu irmão! Costela – Diz aí, Buchada, beleza! Que que tá pegando? (Buchada e Costela se cumprimentam com uma coreografia). Buchada – Você não sabe da maior: eu vou dar uma casada. Por isso estou enfeitando tudo aqui, pra minha festa de casamento. E vamos aproveitar e fazer um gato. - 114 -

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Costela – Beleza! Ih, mas com aquele fio vagabundo que você arrumou, não vai dá pra fazê gato, não. Buchada – Foi o único que o Zé da Luz conseguiu, mano, vai ter que dá. Costela – E você nem tá trampando, que eu sei, num tem dinheiro e ainda quer fazer festa! Buchada – Você que pensa. Tá ligado o Toninho? Ele me conseguiu um trampo como entregador na perua dele. Trabalho maneiro! Melhor que o teu, que fica o dia todo fazendo concreto pra construir casa pra bacana e nem tem onde morar. Costela – Pô, cê tá tirando... Buchada – Num tô tirando nem colocando, e para de chorar e vamos fazer isso logo! Costela – A gente podia fazer lá perto do poste do fundão. Assim ninguém vê o gato. Buchada – Fundão não, Costela. Quero que todo mundo veja minha festa de casamento. (para o público) E ó, tá todo mundo convidado, quero todo mundo aqui, curtindo a paisagem, olhando o campão... Costela – Ihhhh! Cê não tá sabendo, não? Tão dizendo por aí que o campão vai acabar, vai virar shopping. Buchada – Melhor ainda, maluco! Imagina só, eu e a Jéssica passeando no shopping no domingão! Olhando as vitrines, sonhando com um celular da hora... Entra Jéssica preocupada. Jessica – Buchada, o que você tá fazendo? Por que vocês não foram lá na reunião? - 115 -

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Buchada – Que mané reunião, mina? Tô enfeitando aqui pra nossa festa de casamento! Jéssica – Que festa? Eu tô vindo da reunião; sabia que, por causa desse Shopping, estão querendo expulsar a gente daqui? Quem vai querer uma favela do lado do shopping!? Buchada – Calma, meu biscoitinho, isso não vai acontecer, a gente tá aqui há um tempão. Ninguém vai chegar tirando a gente daqui do dia pra noite, não. Calma, meu biscoitinho! Jéssica – Calma? Chega não? O que vocês andam fazendo, assistindo a novelinha das oito? Buchada e Costela – É das Nove! Jéssica - Eles chegam, sim, e sem avisar, e não vai passar no Jornal Nacional, não. A gente tem que fazer alguma coisa. Temos que nos organizar, mobilizar todo mundo ou vamos parar embaixo da ponte. (Saindo) - E tem mais, eu não sou mulher de seguir o marido, não! Então você fica esperto. (sai). Costela – Eita mina braba da pleura! Você é doido de casar com essa mina, veio, ela vai mandar em você... (Cantando) Malandro é malandro, Mané e Mané, podes crê que é. Malandro é malandro, o Buchada é manê, podes crê que é... Buchada (Ameaça Costela, que foge) – Mané, o caramba, você sabe quem é o pai dessa mina? É um pernambucano puxador de peixeira! Ou eu casava ou virava comida de formiga! Por isso tô fazendo essa festa, que é pra impressionar o véio. D. Vitória (Entrando.) – Ei, para de contar história, Buchada! Olha, seu bolo tá quase pronto, tá ficando uma beleza! Buchada – Valeu, D. Vitória! É assim que eu gosto de ver, a comunidade mobilizada pela minha festa de casamento. Eu quero uma festa, igual às que tinha antigamente. Conta aí pra nós como era. - 116 -

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D. Vitória – Conto sim, fio. (Som de triangulo) Quando eu cheguei aqui, nem luz tinha, a gente enchia aqui tudo com lampião... quando acendia ficava uma beleza! E quando tinha festa?! Todo mundo vinha pra festa, mas quando chovia, lá embaixo virava um lamaçal, eles colocavam sacos plásticos nos pés, os homens erguiam as calças, as mulheres, as saias... E eles vinham, e eles vinham, quando chegavam aqui tiravam os sacos plásticos dos pé e a gente dançava a noite inteira, a gente dançava até amanhecer o dia... (Cantando) Todo tempo quanto houver pra mim é pouco pra dançar com meu benzinho numa casa de reboco (2x). E quando acabava a festa, todo mundo ficava com o nariz pretinho. Sabe por quê? Por causa da fumaça dos lampião! Festa boa era no meu tempo! Ai, eu vou lá terminar seu bolo, Buchada... (sai resmungando). Buchada – Vai lá, Dona Vitória. Aí, Costela, é assim que eu quero minha festa, mas não é com lampião, não, quero com luz elétrica. Pode ligar a bagaça! Costela – 110 ou 220? Buchada – Põe no 220 que é pro negócio bombar. (Estouro). Todos – Viva os noivos! Festa do casamento, os noivos entram e convidam o público para dançar. Durante a dança, uma autoridade distribui uma carta de despejo ao público e aos personagens. Com falas: “Preenche o documento. Vai todo mundo dançar.” A carta distribuída é um documento real, utilizada nos despejos durante o governo de Gilberto Kassab na cidade de São Paulo. Autoridade (Interrompendo a festa) – Atenção! Atenção! Todo mundo que recebeu a carta, vamos preencher direitinho e atenção ao pro- 117 -

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nunciamento. (Gravação com parte do texto da carta de despejo). Cena 8 – Favelados X autoridades Autoridade – Desocupem seus barracos! As máquinas vão começar a trabalhar. Não se preocupem, suas coisas irão para um depósito e as pessoas para um abrigo. Peguem apenas o necessário. Jéssica – Eu falei, eu avisei que a gente tinha que se organizar e fazer alguma coisa. D. Vitória – Eles não podem me tirar daqui, eu moro aqui há mais de 40 anos. Jéssica – É isso mesmo, d. Vitória! Autoridade – Desocupem os barracos. (Som de sirene) As máquinas vão começar o trabalho. Costela – Pô, Buchada, você não falou que isso não ia acontecer? Que ia demorar muito? Buchada – Pô, e bem no meio da minha festa! Mas não se preocupa, não, eu vi na TV que, quando eles fazem isso, eles dão umas casa pra gente que é maior legal... D. Vitória, Costela e Jéssica – Não fala besteira, Buchada! Autoridade – (Cortando a cena.) Saiam, desocupem seus barracos, as máquinas já vão começar o trabalho. Retirem as crianças. D. Vitória – Mas eles não podem me tirar daqui, gente... Eu moro aqui há mais de 40 anos... Autoridade – Sai fora, velha! (Empurra dona Vitória para fora de cena) As máquinas vão começar o trabalho. (Som ruidoso. Sirene. Correria.) Retirem as crianças! As máquinas vão começar o trabalho! (A máquina é feita pelos atores; derrubada da favela). - 118 -

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Coro – A vida é sempre mais forte do que qualquer arte. Atriz – Nesse exato momento em que estamos aqui, representando a derrubada de uma favela, milhares e milhares de pessoas lutam por um teto! Cena 9 – Crescer e empreender Animador (cantando em paródia de Cachaça Não é Água) Se você quer sua casa própria Não fique aí parado, não Traga todos os documentos Pegue aqui a relação. Se você quer sua casa própria Não fique aí parado, não Pegue todo o seu dinheiro E pague aqui a inscrição. Olha o lançamento, olha o empreendimento! Meu barraco, minha dívida! Senhoras e senhores, dizem que Deus criou o mundo em seis dias e no sétimo descansou, o mesmo não se deu com os conjuntos habitacionais, na verdade, foi um Deus nos acuda! (Limpam a cena). Ator 1 – O terreno era em área rural, para ficar mais barato pra prefeitura, pro estado... Ator 2 – Lá não tinha água, não tinha luz, não tinha nada. Atriz 1 – Mas a Cohab disse: façam-se as casas! Atriz 2 – E as casa foram feitas.

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Primeiro os atores entram cantando e carregando as casas/caixas revestidas de cinzas; depois, as atrizes entram carregando caixas/casas também revestidas de cinzas, cantando. Na terceira vez que repetem o canto, todos, atores e atrizes. Música (Paródia de Se Essa Rua Fosse Minha) Essa casa, essa casa, vai ser minha, Se eu pagar, se eu pagar a prestação. 25, com mais 10 do acordo, 35 anos de espoliação! Atriz 2 – As casas não tinham reboco, as ruas eram de barro, nem comércio tinha. Atriz 1 – Mas nós fomos à luta! E conseguimos algumas melhorias... Ator 2 – Cinco anos pra chegar a luz! Atriz 2 – Sete anos pra chegar a água! Ator 1 – Oito pra chegar escola! Todos – Saúde, não chegou nunca! Ator 1 – O tempo passou, a situação melhorou, mas ainda falta muito, muito... Música (Paródia de trecho de A Casa) Era uma casa tão desejada / A casa própria, que emoção! Tudo era cinza, tudo igualzinho / Cinza do teto até o chão! (2X) Abro a janela, vejo o vizinho/ Do outro lado, que confusão (2X) Tudo era cinza, tudo igualzinho/ Cinza do teto até o chão! (3X)

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CENA 10 – Minha vida numa caixa Apesar de estarem todos em cena, a entrada de cada personagem ocorre ao colocar o rosto em uma pequena janela, sustentada pelo(a) próprio(a) ator/atriz. Bebel – Juraci! Juraci! Juraci – Oi, Bebel! Bebel – Que vida, todo dia limpando a casa dos outros, chega fim de semana ainda tenho que limpar a minha, né, Juraci?! Juraci – Nem me fale! Bebel – E a condução, que está cada vez mais difícil? Você acredita que tiraram a linha que vinha direto pra cá? Agora temos que fazer baldeação. É isso que dá morar longe. Ninguém liga pra gente! Político só aparece aqui em época de eleição e olhe lá, né, Juraci? Juraci – Nem me fale! Abel (Aparecendo na janela) – Compadre Juraci, comadre Bebel... esse lugar tem jeito não... não vai mudar, não... quem quiser que as coisas melhorem, meu conselho é que se mude. Bebel – Eu não mudo daqui, não... eu gosto, mesmo com tudo isso que falta... fazê o quê, né, Juraci? Juraci – Nem me fale. Cida (Aparecendo na janela, mas em meio ao público) – Gente! Não é que ela conseguiu de novo! Bebel – Conseguiu o quê? Abel – Quem? Juraci – Conta. Cida – A Auxiliadora, ela conseguiu marcar uma reunião na prefeitura, pra gente falar do nosso posto de saúde... - 121 -

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Bebel – Não sei onde ela arranja tempo para ficar correndo atrás dessas coisas... Abel – Eu também não sei. Ela trabalha que nem a gente, volta cansada que nem a gente... Onde ela arranja tempo pra isso? Bebel – A intenção é boa, mas alguma coisa me diz que ela quer mesmo é se aparecer!... Daqui a pouco se candidata a vereadora... Melhor: eu acho que ela tem é um cacho lá na prefeitura, assim até eu, né Juraci? Juraci – Nem me fale! Cida – Olha o veneno! Isso é despeito de vocês! Ela sempre chama todo mundo pra participar das reuniões, mas na hora H, aparecem dois ou três gatos pingados. Inclusive, ela quer saber quem vai na reunião pra falar do nosso posto de saúde? Bebel – Ah!, eu até gostaria de ir, mas eu não tenho tempo, tenho muita coisa pra fazer, vou fazer o jantar, né, Juraci? (Entra. Retira a janela do rosto e fica parada). Juraci – Nem me fale! (Entra. Mesma ação). Abel – O tempo que me sobra eu uso pra descansar. Inclusive, eu vou ver se descanso mais um pouco, que a semana promete. (Entra. Repete ação). Cida – Tempo a gente faz, basta querer! (Retira a janela). Atriz/Cida – O povo, apesar de estar mais junto, um em cima do outro, anda se mobilizando pouco, será que o povo está acomodado? Todos – Será? Canto final Atriz/Cida – Se o povo soubesse o valor que ele tem Todos – Não aguentava desaforo de ninguém! - 122 -

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Todos repetem diversas vezes. Se o povo soubesse o valor que ele tem Não aguentava desaforo de ninguém! Se o povo soubesse o valor que ele tem Não aguentava desaforo de ninguém!

FIM

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Fonte: Mostra Monte Azul e Arquivo do grupo – Foto: Berinjela Filmes e Akira Yamasaki.

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Foto montagem a partir de duas apresentações de Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, Mostra Monte Azul (2011) e Circuito Re-Praça (2011).

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Ser TÃO Ser como epifania de um cotidiano perverso. Uma poética alegórica de tantos desterritorializados Alexandre Mate31 Ser tão sem, sem ser tão, tão sem ser... (Uma brincadeira a partir de) Mário de Andrade. A prática sem a teoria e esta sem aquela de pouco valem. Também em arte a práxis é vital ao criar. De outro modo, a objetividade do viver é alimentante da subjetividade do sonhar. O educador espanhol Jorge Larossa Bondía afirma, de modo sábio (porque ele aprendeu com aqueles que vieram antes e com aqueles com quem ele conviveu), no texto Notas sobre a experiência: “Pensar não é somente raciocinar ou argumentar, como nos tem sido ensinado ao longo da vida; pensar é também dar sentido ao que somos e ao que nos acontece”. É exatamente disso que se trata. Ao coletarem relatos de vida de gente que mora muito além de qualquer e obrigatório direito-cidadão, os integrantes do Buraco d`Oráculo (grupo com mais de 10 anos, radicado na Zona Leste da cidade de São Paulo) buscavam levar para a cena de rua, mediados por símbolos, a história de tantos desterrados, desterritorializados... Na universidade pública, desde 1993, ministra, atualmente, aulas na graduação e na pós-graduação do Instituto de Artes da UNESP. Tem Mestrado em Teatro-educação pela ECA-USP e Doutorado em História Social pela FFLCH-USP. Autor de diversos livros, artigos, ensaios e críticas teatrais. Pesquisador e militante da área teatral, coordenador do Núcleo Regional (SP) de Fazedores e Pesquisadores de Teatro de Rua. 31

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Ao assumir o desafio proposto por Ser TÃO Ser: narrativas da outra margem, para ressignificar esteticamente as vozes da imensa comunidade de destino que compreende a periferia paulistana, o Buraco d`Oráculo, porque tem estofo e condições para isso, concilia de modo extraordinário o binômio – apresentado por Walter Benjamin em O autor como produtor – qualidade estética e pertinência política. Na 26ª edição do Festivale – Festival Nacional de Teatro do Vale do Paraiba, o grupo, já presente em outra edição, teve como seu lócus (espaço de apresentação) a “tímida” – quando comparada à majestade da Afonso Pena – Praça Cônego Lima. Trata-se de uma praça quase protegida, posto que não cortada por 4 ruas como é comum. Mais próxima à XV de Novembro, de todas as árvores, destaca-se uma belíssima seringueira (provavelmente centenária). Antes de o espetáculo começar, com belas músicas de Chico Buarque, Luiz Gonzaga... “me peguei perguntando”, porque me é relevante: “Quem teria plantado aquela árvore? Quem, ao longo de tantas décadas, conservou aquela árvore e tantas outras que lá estão?” Claro, nome de jardineiros não figuram na História! Que importância teria esse tipo de gente para uma história contada, desde sempre, pela elite? Para onde iria aquela gente toda, quase em frenesi, que circula e atravessa a pequena Praça? Quem desse imenso mar humano figurará, qualquer dia, na História oficial? Muito provavelmente nenhuma... Muito distante dali, daquela singela praça, mas aterrado na História, fui despertado para ir a um dos extremos daquele espaço: a peça começava sob um sol escaldante... Uma atriz dava início à prosa. A roupa bastante colorida, mas a narrativa tecida por significativa “tristezura”. Lu Coelho era a primeira corifeia do épico que ali se instalava: personagem alegórica de tantas Lurdinhas (e vários outros nomes) desterradas pelo Brasil. Sem quaisquer afetações, mas gigantemente cúmplice, a atriz apresenta a narrativa de sua emblemática personagem. O café (de verdade) que era preparado durante a fala não daria para todos, então, em um expediente magistral e popular, afirma a personagem: alguns “olham o cheiro”, outros lambem os beiços e outros tomam... Pronto, todos degustam aquele café! - 126 -

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Durante o café tomado, “olhado”, “beiçado” entra a cantoria: Calix bento. Ó, Deus salve o oratório (bis), onde Deus fez a morada. Óia, meu Deus. Certa comoção planta-se em muita gente que foi apanhada de modo distraído pelo teatro de rua. Na sequência, o ator Edson Paulo apresenta uma narrativa impecável na “pele” de José Justino Ventura. Assim como Lurdinha, este, segundo as autoridades, é “mais um Zé”, mais um migrante a inchar a cidade... Por meio da fala firme do ator, mesclada àquela emocionada da personagem, uma primeira inquietação é apresentada em coro: – A gente, cada um de nós, começa onde nasce. Termina onde [Deus?] escolhe! Durante o espetáculo apresentado dia 06/09, uma senhora, adere ao coro e completa a frase. – A gente começa onde nasce. Termina onde escolhe, porque já estamos na curva do mundo. Na rodoviária, mais e mais gente sendo despejada para contemplar o horror e viver a miséria humana de uma cidade inóspita, perversa... A diáspora de gente se instaura e se faz quase que por meio de uma fila indiana ininterrupta. A gente desterritorializada ocupa áreas abandonadas e infindamente distantes do centro. Os atores marcam o terreno ocupado delimitando o chão com terra vermelha. Aquela gente constrói coisas que se parecem casas, e tenta levar sua vida... trabalhando incansavelmente. Os atores, em coro, novamente, apresentam uma nova canção, que é quase um canto de trabalho: de gente que vende sua força de trabalho. Gente daquele tipo, com a expansão do poder econômico, precisa deixar o território ocupado para dar lugar a um grande empreendimento. A atriz Selma Pavanelli canta com a mesma força e atitude daqueles que fazem e cantam seus raps. A “rapeira” pré-anuncia a morte de Lurdinha pela truculência da polícia. Na cena de rua, cujo cenário próximo é a praça, e nela (na praça), outra vez a seringueira... é absolutamente curioso, mas no momento de morte uma lufada de vento mais forte faz a seringueira chorar (muitas folhas caem e dão a impressão de um cho- 127 -

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ro intenso)... Efeito da natureza. Espécie de milagre do teatro de rua! No despejo daquela gente, muitos recebem uma carta de despejo da Prefeitura de São Paulo (trata-se de cópia do documento original). O documento promove certo alvoroço. Nesse exato momento, chega um casal jovem que se preocupa, pensa que os vendedores ambulantes é que seriam despejados da praça... O corifeu (Adailtom Alves) logo depois disso afirma, em contragesto (alusão a ser foda), que Deus ajudaria os desterrados. Do despejo muitos moradores vão morar em conjuntos habitacionais: tudo cinza, sem felicidade, com muita promiscuidade entre os vizinhos, pelo apertamento. De modo absolutamente panfletário (e necessário), o elenco, em forma de coro, canta: “Se o povo soubesse o valor que tem, não aguentava desaforo de ninguém». Em uma hora de espetáculo, histórias de desterrados ganham a cena e falam por incontáveis sujeitos falantes, mas silenciados pela História oficial. Adailtom Alves, diretor do espetáculo, consegue articular o trabalho colaborativo e criar expedientes e cenas vibrantes. O público presente ao espetáculo, abaixo do sol das onze ao meio-dia, concordava com o olhar, entre emocionado pelo assunto e pelas imagens criadas. No trabalho coletivo, música e figurinos têm função épica: tudo feito e construído pelos integrantes do grupo. Nos adereços e figurinos singelos, a presença das mãos dos homens. Grande momento, singular e importante espetáculo, parafraseando alguém do público: “A terra sente a necessidade de ser útil!” Fonte: http://bit.ly/10SxMVR (link reduzido)

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Fonte – Arquivo do grupo - Foto: Patrícia Leal

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Apresentação do espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem no distrito de Cruz das Posses – Sertãozinho/SP , durante o Projeto Ser TÃO Ser pelo sertão paulista (2013).

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Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem: um espetáculo de resistência, luta e esperança Narah Neckis32 Fui assistir à peça Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, do grupo Buraco d`Oráculo. Durante a apresentação, notei a presença de um menino, de trajes simples, aparência de alguém que, apesar de pouca idade, já conhecia muito da vida, postura forte e decidida que por vezes incomodava algumas pessoas que se sentavam ao seu lado. O que mais me chamou atenção foi o olhar dessa criança ao ver o espetáculo. Havia, naquele olhar, um brilho diferente; um brilho de identificação, de pertencimento. Vi em seus olhos, dentre tantos outros sentimentos, sonho e esperança. Ao final da apresentação, esse menino me disse: “Tia, escreve meu nome aí. Eles falam de mim, sabia? Escreve meu nome, eu me chamo Alex”. Durante a 4ª edição da MOSTRA DE TEATRO DE RUA LINO ROJAS, o Buraco d`Oráculo apresentou-se com o Ser TÃO Ser, dirigido por Adailtom Alves. Difícil apresentar por meio de palavras a força transformadora deste espetáculo que, mesmo em meio ao caos do centro da cidade de São Paulo, conseguiu prender a atenção do público, levando-o à reflexão. Senti uma pontada no estômago: sou também responsável pela desigualdade social de nosso país. Preciso tomar partido, agir, lutar.... Atriz formada em Teatro pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) e em Direito pela Universidade Mackenzie. Integrante do Grupo de Pesquisa Teatral Nativação. 32

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A dramaturgia do espetáculo tomou por referência histórias de vida coletadas pelos integrantes do grupo, por meio de entrevistas com moradores residentes em diversos locais da Zona Leste da cidade de São Paulo. De certo modo, todas as personagens encontram-se em estado de partida, “[...] é hora de deixar o que se é, e ser o que não se sabe”. Iniciada a apresentação, permaneceu a sensação de espera. Esperamos o espetáculo e, quando nos damos conta, ele já está acontecendo. Os retirantes caminhavam, cada um em um canto do Vale do Anhangabaú, contando suas histórias a quem estivesse mais próximo. Em determinado momento, as personagens-retirantes encontram-se e passam a contar uma mesma história: o sofrimento das pessoas que não têm casa própria e não conseguem pagar aluguel. O espetáculo caminha do micro para o macro, o indivíduo nada mais é do que um reflexo de sua coletividade, um ser social, somado a tantos outros no mesmo estado, em peregrinação, em processo de diáspora. Interessante observar, ainda, o jogo estabelecido entre os atores e a plateia. Nesse sentido, duas cenas merecem destaque: a do casamento, momento em que todos participaram de uma grande festa; e a final, no instante em que o público, sensibilizado com os atores, ajudou-os a cantar: “Se o povo soubesse o valor que tem, não aguentava desaforo de ninguém”. Quem assistiu a Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem seguramente se dispôs à reflexão. Difícil permanecer alheio à obra e às suas histórias, porque todas elas nos dizem respeito. Trata-se de um espetáculo instigante, contundente... por meio do qual algumas mudanças podem ser divisadas. Fonte: Revista Arte e Resistência na Rua. Ano II, nº 2, julho de 2010, p. 94-5.

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Fonte – Arquivo do grupo - Foto: Patrícia Leal

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Público presente na apresentação do espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, COHAB Preste Maia. Projeto Ser TÃO Ser pelo sertão paulista (2013).

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O político e o poético em Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem O espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, apresentado pelo grupo Buraco d’Oráculo, segue a tradição político-popular do teatro de rua brasileiro. Em nosso país, a produção teatral de rua carrega historicamente a marca de um modo de fazer teatral no qual as questões sociais e políticas são colocadas e discutidas com o público, restaurando ao teatro sua relação com a cidade. Nesta esteira, as experiências realizadas nos anos 60 pelos CPCs e pelo Teatro de Cultura Popular de Pernambuco, ambas ancoradas no pensamento do teatrólogo alemão Bertolt Brecht, antecipam as práticas teatrais mais recentes do teatro de rua no Brasil, no qual a presença de um teatro político se faz preponderante. O Buraco d’Oráculo encena o drama dos inúmeros migrantes brasileiros que percorrem este país a procura de melhores condições de vida. Nas grandes cidades, estes são vítimas de um sistema social violento, coercitivo e excludente, que os coloca à margem na teia social capitalista. Passam pela cena de Ser TÃO Ser personagens que lutam por uma vida melhor dentro de seu contexto social. Desta forma, o espetáculo nos é apresentado como um grito contra a opressão, a violência e uma denúncia sobre a situação existente, especialmente [não exclusivamente] na cidade de São Paulo. - 133 -

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Tendo a roda como organização espacial – promovendo, como afirma Denis Guenoun, uma outra relação entre os espectadores, pois estes podem também olharem-se uns aos outros e estabelecerem uma comunidade frente ao espetáculo – os atores promovem esta integração. No primeiro momento, isso acontece pela conversa ao pé do ouvido com cafezinho feito e servido na hora, através da qual o drama dos personagens é narrado para a plateia e o tema da migração, tão cara ao teatro latino-americano, nos é apresentado. Nas vozes do pai que vai a procura da mulher e filho ou na da mulher que segue sua sina de acompanhar o marido, vamos de onde se nasce até onde se morre. A própria encenação segue este percurso quando o público é convidado a se deslocar na praça para assistir à segunda parte do espetáculo. Nesta, os personagens-migrantes não aparecem com a força de antes, agora estão diluídos, um misto de ator-personagem de linha brechtiana. O trabalho dos atores vai trafegando entre a construção de um personagem-tipo e a própria presença do ator e sua posição sobre o tema em questão. A encenação neste momento ganha um tom de denúncia da situação vivida pelos personagens e de suas lutas comunitárias, do despejo e da nova moradia, no apertado apartamento do conjunto habitacional. Até o público recebe o documento de instrução do despejo. Seremos também vítimas deste sistema? Como manda a tradição, Ser TÃO Ser utiliza os elementos presentes no teatro de rua: músicas conhecidas do público, coro, a chita/algodão cru e a crítica social. Ingredientes que [de]marcam a poética do espetáculo. Ao fim da função os atores dizem: ‘o povo não sabe a força que tem’. É justamente esta frase que, para mim, pesquisador e fazedor de teatro de rua, levanta questões em torno da função social do artista. O tom de denúncia que o espetáculo tem me parece crer na perspectiva transformadora do ato teatral, apenas por seu viés político, ou seja, o espectador ganha consciência desta situação e age contra ou a favor do estabelecido. Penso que o teatro deve ir além, deve compreender o homem como sujeito sensível, histórico e crítico e, partindo desta premissa, construir um modo - 134 -

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de fazer teatral que proponha, por sua poética, a instauração de outra possibilidade ética. A percepção sobre o mundo também ocorre por meio dos sentidos, outros modos de apreensão da realidade, e quanto a isso o teatro de rua brasileiro precisa também colocar questão. Se pensarmos que o artista de teatro é um perdedor neste sistema regido pelo capital, podemos modificar nosso posicionamento: em vez de querer ocupar espaços de poder, ocuparemos [e aqui falo no sentido militante] as margens, as brechas para, teatralmente, partilharmos o que desejamos com o público. Suas [e nossas] narrativas. Seus [e nossos] modos de criação artística. Compreender a perda como possibilidade de salvação [ou de liberdade para o ato poético], pois, como diz Amir Haddad, ‘só o teatro salva’... Será? Narciso Telles33 Lembrando esta música: nós fazemos teatro, neste país colorido, descamisado e subnutrido... Fonte: 5º Festcamp – Festival Nacional de Teatro de Campo Grande, ocorrido de 15 a 23 de outubro de 2011 (http://festcamp.blogspot.com.br/p/narciso.html).

33 Ator, performer, diretor, professor do Curso de Teatro e do Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Doutor em Teatro pela UNIRIO (2007). Pesquisador do Núcleo de Criação e Pesquisa Teatral e membro do Coletivo Teatro da Margem. Organizador dos livros: Teatro: ensino, teoria e prática (EDUFU, 2004), Teatro de Rua: olhares e perspectivas (E-Papers, 2005) e Pedagogia do teatro e o teatro de rua (Mediação, 2008).

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Fonte – Arquivo do grupo - Foto: Píu Dip

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Ator – Adailtom Alves, no espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, apresentação realizada em São Francisco Xavier, S. J. dos Campos/SP, pelo Circuito SESC de Artes (2012).

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A musicalidade do espetáculo em Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem Jussara Trindade34 No verbete “recepção” do seu Dicionário de Teatro, Patrice Pavis (2003) descreve a participação do espectador de teatro como uma situação em que o mesmo se encontra imerso “num banho de imagens e sons”. Contudo, ao desenvolver suas considerações sobre os códigos perceptivos da recepção e, mais particularmente, os de percepção do espaço, a atividade é descrita apenas dentro de um quadro referencial visual: [...] examina-se como o palco ou o dispositivo cênico apresenta a realidade artística; como se utiliza a perspectiva; quais são as possíveis distorções da visão; em que medida o espetáculo está armado em função do ponto de vista dos espectadores (PAVIS, 2003: 330). Jussara Trindade, natural de Londrina, PR, é educadora musical e musicoterapeuta especializada em Psicomotricidade e Pedagogia do Movimento. Mestre e Doutora em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. Como pesquisadora teatral realizou os seguintes trabalhos: A Liturgia Carnavalizada de Amir Haddad e o Grupo Tá Na Rua (RioArte/2003); A pedagogia teatral do grupo Tá Na Rua (Capes-Unirio/2007) e A contemporaneidade do Teatro de Rua: potências musicais da cena no espaço urbano (Capes-Unirio/2012). Organizadora e co-autora dos livros Tá Na Rua: teatro sem arquitetura, dramaturgia sem literatura, ator sem papel (2008) e Teatro de Rua no Brasil: a primeira década do Terceiro Milênio (2010). Ministra cursos, oficinas e palestras sobre a «musicalidade do ator» e outros temas ligados ao teatro em espaços abertos desde 2001. Atualmente é articuladora da Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR) e membro da ABRACE – Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas, onde participou da criação do Grupo de Trabalho “Artes Cênicas na Rua” em 2010. 34

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A dimensão auditiva do espetáculo – onde o espectador estaria “imerso” – não é sequer mencionada neste trecho de uma importante obra de referência para os estudos teatrais. Além disso, o autor usa como referência espacial prioritária para falar da visualidade do espetáculo a noção de perspectiva35. Na Renascença, “a perspectiva baseava-se na ordenação racional do espaço e do tempo como requisito à construção de uma sociedade mais avançada” (HARVEY apud GASTAL, 2006: 85), em concordância com o sentimento da época, de se buscar, no mundo, espaços geométrica e sistematicamente delineados. Desse modo, ao colocar a noção de perspectiva como o centro de sua definição de recepção, Pavis retoma um princípio espacial que contribuiu para corroborar na arte do teatro o paradigma cartesiano. Defendo aqui a necessidade de ampliarmos os nossos canais perceptivos, aprofundando o entendimento do espetáculo teatral, de modo a percebê-lo como uma arte capaz de abranger simultaneamente várias camadas de recepção igualmente importantes. Proponho a ideia de que a recepção do espetáculo de teatro em espaço aberto possui uma natureza específica, essencialmente audiovisual, e não apenas visual. Não se trata, evidentemente, de substituir uma primazia (visual) por outra (auditiva), mas de simplesmente mergulharmos mais fundo na obra de arte. Mas, para isso é preciso, antes de tudo, compreender duas instâncias singulares e intrínsecas à dimensão sonora do fenômeno perceptivo: se o “ouvir”, possibilitado pelo aparelho auditivo, cumpre uma função fisiológica, o ato da “escuta” vai além e se converte num meio para a construção de sentido do mundo e da realidade. Numa concepção semiótica da audição, isso significa que, mesmo ouvindo perfeitamente do ponto de Coerente com o princípio de profundidade – construído pelo artifício abstrato do “ponto de fuga” inscrito no painel plano, de fundo, do palco italiano – a perspectiva no teatro é construída a partir do ponto de vista do observador “ideal”, sentado no centro da plateia, a qual se mostrou totalmente pertinente ao nascente teatro burguês; tornou-se, não obstante, insuficiente como referência para o teatro que a partir do século XX tratou de explodir a estrutura convencional do palco (e, junto com ela, a abstração da perspectiva). 35

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vista fisiológico, escutamos apenas aquilo que selecionamos, consciente ou inconscientemente, para escutar. Assim como ocorre com os demais sentidos do aparelho sensorial, a escuta também é uma construção históricocultural e, como tal, condicionada pela época na qual está inserida (HARNONCOURT, 1998). O teatro ocidental sofreu grandes modificações do ponto de vista da sua conformação estrutural, passando por diferentes formas espaciais e arquitetônicas ao longo de sua história36; em função disso, é provável que tais mudanças tenham também operado, em igual medida, influências significativas sobre os processos de recepção por parte do espectador. Diferentes configurações espaciais solicitam pontos de vista – e de escuta – também diferenciados: a recepção do espetáculo teatral pelo cidadão da polis no antigo e ruidoso anfiteatro grego não era, certamente, idêntica à do cidadão burguês no moderno edifício teatral, com a sua exigência de “silêncio” para a abertura das cortinas e entrada dos atores no palco à italiana. Assim como também não o é para os teatros que desconhecem as convenções das salas fechadas ou, ainda, os que delas saem para se entregarem à aventura da cidade. A necessidade de compreender como acontece a recepção teatral – pelo viés da sua audibilidade – no espaço multifacetado e polifônico da cidade levou-nos então à busca de referenciais conceituais que digam respeito ao universo sonoro no qual o espetáculo de rua está “imerso” (resgatando-se, aqui, o termo utilizado por Pavis) e do qual retira parte essencial de sua poética. Nessa perspectiva, a “escuta” é tomada, aqui, como matriz conceitual que permite dar início a uma reflexão sobre a musicalidade do espetáculo de rua. A partir da postura de “espectador-ouvinte” e de uma recepção que busca privilegiar, temporária e propositalmente, o sentido da audição, serão aqui apresentados aspectos do espetáculo usualmente 36 Em seu artigo A casa e a barraca, Lidia Kosovski apresenta cinco configurações espaciais que caracterizaram o teatro ocidental em distintos períodos históricos: o anfiteatro grego, o palco múltiplo medieval, o palco elisabetano, o espaço renascentista da tragédia clássica e o palco italiano, e acrescenta a estes os espaços múltiplos e alternativos do teatro do século XX, que inclui a própria cidade como espaço cênico (KOSOVSKI, 2005).

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omitidos numa recepção teatral convencional. Em seguida, a interpretação artística da experiência musical encontrada no espetáculo de rua Ser TÃO ser – narrativas da outra margem37, criação coletiva do Buraco d’Oráculo, grupo paulistano de teatro de rua, é utilizada como meio de vislumbrar uma estética musical própria desta modalidade teatral, onde importantes aspectos de sua audiovisibilidade podem ser observados e discutidos sob o viés da escuta. O conceito musical chave, nesta análise, é o de imagem sonora38. O espetáculo que possibilita uma reflexão em que este e o conceito de escuta se articulam foi selecionado por criar, em cena, sonoridades cujas características musicais remetem o espectador-ouvinte a outros espaços-tempos, distantes do presente da cena. Isto vem a romper a relação usual de causalidade linear entre música e cena e demonstra – a despeito do senso comum vigente sobre a música no teatro como elemento “decorativo” – que o impacto das imagens sonoras produzidas pelos atores contribui para multiplicar, polifonicamente, os sentidos do espetáculo. Imagem sonora O termo imagem sonora é encontrado, hoje, em reflexões teóricas de pesquisadores que atuam em diversas áreas do conhecimento – tais como a psicoacústica, a musicologia, a musicoterapia e a antropologia – mas deve o seu nascimento a estudos de neurologia voltados para o mapeamento do sistema nervoso e das funções neurais ligadas ao equipamento sensorial e perceptivo do homem. Na perspectiva da neurofisiologia da audição, a imagem sonora nada mais é senão uma imagem mental evocada pela percepção auditiva; uma rede de impulsos neurais observável por 37

Respeitou-se, aqui, a grafia proposta pelo grupo.

Originalmente, a noção de imagem sonora se relaciona com um tipo de construção mental préconceitual, fato esse corroborado por pesquisas no campo da neurologia. As imagens sonoras – ou seja, imagens simbólicas evocadas por sonoridades – formam-se no córtex (superfície e tecido subjacente) onde são identificadas, armazenadas na memória e, eventualmente, enviadas a outros centros cerebrais (ROEDERER, 2002). 38

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meios tecnológicos. Evidentemente, essa imagem mental não possui uma forma figurativa tal como sugerido pelo termo “imagem”. Ela se constitui, antes, num padrão elétrico cujo movimento pulsante pode, por meio de equipamentos especializados, ser “desenhado” em formas visuais que apresentam graficamente essa atividade neural39. Desse modo, a imagem sonora é, basicamente, um padrão de impulsos neurais interpretados pelo cérebro. No campo da Musicoterapia, o estudo da imagem sonora aparece relacionado principalmente às teorizações do pediatra e psicanalista infantil inglês D. W. Winnicott, que introduziu a noção de fenômeno transicional para designar uma área intermediária da experiência humana que coloca em questão aquela premissa cartesiana sobre o indivíduo bipartido entre duas realidades, uma corporal e outra mental. Em seu texto de 1951, Objetos transicionais e fenômenos transicionais, Winnicott reivindica a existência de uma “terceira parte da vida de um ser humano”, que se constitui em “uma área intermediária entre o subjetivo e aquilo que é objetivamente percebido”, ou seja, trata-se de [...] uma área intermediária de experimentação, para a qual contribuem tanto a realidade interna quanto a vida externa. Trata-se de uma área que não é disputada, porque nenhuma reivindicação é feita em seu nome, exceto que ela exista como lugar de repouso para o indivíduo empenhado na perpétua tarefa humana de manter as realidade interna e externa separadas, ainda que interrelacionadas (WINNICOTT, 1988: 391. Grifo do autor).

O que interessa particularmente na teoria de Winnicott para este estudo é que o pediatra inglês compreende a música não só como um objeto transicional, mas como provavelmente o objeto transicional primário, uma A ultrassonografia e o eletrocardiograma são exemplos de algumas “partituras” de imagens sonoras decodificadas como imagens visuais, captadas por equipamentos sensíveis a estímulos sonoros e aplicadas em campos específicos da medicina. A diferença gráfica entre ambas é que enquanto a primeira é registrada sob a forma de manchas em contraste claro-escuro, a segunda descreve uma linha sinuosa cujo desenho fornece a significação de um padrão rítmico legível.

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vez que desde muito cedo o bebê reconhece, na voz da mãe, um objeto “que se torna vitalmente importante para seu uso no momento de ir dormir, constituindo uma defesa contra a ansiedade” (WINNICOTT, 1988: 393). Mais tarde, mesmo na vida adulta, a música continuará mantendo essa natureza transicional, o que explicaria também sob a ótica dos estudos psicanalíticos o poder interacional que a música representa na vida do ser humano. No âmbito do teatro, compreender a musicalidade do espetáculo como fenômeno transicional significa que, por meio de elementos e procedimentos musicais, se está estabelecendo um canal de comunicação não intelectual com o espectador-ouvinte, uma vez que as imagens sonoras suscitadas em sua mente durante o espetáculo são estreitamente vinculadas aos centros neurológicos da emoção40, anteriores ao pensamento racional. E, além disso, é preciso considerar ainda que a musicalidade de um lugar, uma comunidade ou uma cidade, territórios por excelência do teatro de rua, é também depositária de uma memória sonora, coletiva e social. Recuperar essa memória sonoro-musical através do espetáculo teatral significa, também, reativar antigas imagens sonoras no imaginário do cidadão e, com elas, os seus sentimentos mais profundos de pertencimento a uma coletividade, a uma “tribo” (MAFFESOLI, 1997), contribuindo para uma vida urbana menos vulnerável às possíveis influências desagregadoras da cidade contemporânea. Portanto, para o artista do teatro de rua não se trata apenas de produzir música durante uma apresentação teatral, mas, sobretudo, de mobilizar afetos profundos no espectador-ouvinte. Sinestesia A criação da imagem sonora deve-se basicamente ao fenômeno sensorial da sinestesia som/imagem. Esta palavra, derivada do antigo grego, justapõe a preposição syn (que denota união) ao substantivo aisthesis (sensação). De acordo com o Novo Dicionário “Aurélio” da Língua PortuSobretudo o Sistema Límbico, estrutura cerebral primitiva, responsável pelas reações emocionais (medo, desejo, raiva etc.), aspecto fundamental à sobrevivência do ser vivo. 40

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guesa, o termo se refere à “relação subjetiva, que se estabelece espontaneamente entre uma percepção e outra que pertença ao domínio de um sentido diferente”; ou seja, significa a capacidade de um sentido, estimulado, despertar outro, num cruzamento das sensações. O som como estímulo primário pode ser encontrado em diversas combinações sinestésicas como, por exemplo, as de som-movimento, som-luminosidade, som-temperatura, som-tato, dentre outras. A arte está repleta de fenômenos combinatórios dessa natureza: a sinestesia do sensório/auditivo para o motor, por exemplo, está no cerne da dança. No terreno das artes visuais, alusões sinestésicas são constantes nas descrições de obras famosas. O próprio Artaud, em seu conhecido ensaio A encenação e a metafísica, descreve assim o quadro As filhas de Loth, obra do pintor holandês renascentista Lucas Hugensz van Leyden (1494-1533): [...] seu patético é visível mesmo de longe, impressiona o espírito com uma espécie de harmonia visual fulgurante, ou seja, cuja acuidade age inteira e é apanhada num único olhar. Mesmo antes de poder ver do que se trata, sente-se que ali está acontecendo algo grandioso, e os ouvidos, por assim dizer, emocionam-se ao mesmo tempo que os olhos [...] vemos de repente revelar-se a nossos olhos, numa luz de alucinação, em relevo sobre a noite, alguns detalhes da paisagem: árvores, torre, montanhas, casas, cuja iluminação e cuja aparição permanecerão para sempre ligadas em nosso espírito à ideia desse dilaceramento sonoro [...] (ARTAUD, 2006: 31-33).

O recurso a descrições sinestésicas torna-se o meio mais poderoso para Artaud fazer chegar ao leitor as suas convicções, e levá-lo a acompanhar a sua crítica contra o que designa como “o teatro ocidental de tendências psicológicas”. Provavelmente um sinesteta, Artaud constrói suas teses não pela racionalidade de uma argumentação intelectual, mas por um discurso poético, sinestésico e visceral como ele próprio. Certas análises teatrais, realizadas em termos de uma escuta “cênica” do espetáculo, nos dão fortes indícios de que a sinestesia está presente - 143 -

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já nas obras dos grandes inovadores da cena teatral europeia do início do século XX, os quais manipulavam recursos musicais em prol de seus objetivos estéticos. Em A arte do teatro: entre tradição e vanguarda (2006), por exemplo, a pesquisadora teatral Béatrice Picon-Vallin nos informa que a musicalidade concebida por Meyerhold introduz no palco a presença da morte, em contraposição ao teatro naturalista, da “vida viva”, de Stanislavski. Ela descreve nos seguintes termos uma cena de A morte de Tintagiles, encenada em 1906: As três criadas da Rainha invisível aparecem juntas no palco, como um amontoado informe de trapos cinzentos e ameaçadores, sibilando suas intenções quase indecifráveis para se apoderarem o mais depressa possível do adolescente Tintagiles, vítima semelhante às dezenas de jovens que apodreciam nas prisões. Um crítico de Tiflis41 nota que certos espectadores sentem os cabelos se arrepiarem de horror (PICON-VALLIN, 2006: 17).

Meyerhold cria um tipo de incômodo sinestésico no público, que “sente os cabelos arrepiando de horror” diante das vozes “sibilantes” das personagens. Revela-se aí o uso consciente de um elemento musical – o uníssono – aqui, usado “ao contrário” (as vozes são sussurradas de forma assimétrica e irregular, propositalmente “desencontrada”), para suscitar estranheza no espectador e aprofundar ao nível fisiológico, pré-conceitual, o entendimento do espetáculo. Em O som e o sentido: uma outra história das músicas, José Wisnik comenta que o ruído sonoro é entendido como “aquele som que desorganiza outro, sinal que bloqueia o canal, ou desmancha a mensagem, ou desloca o código” (WISNIK, 1989: 29). Já o som que apresenta periodicidade – na fala ou na música – é compreendido como “organizado”, pois propõe ao ouvinte a expectativa de uma ordem subjacente. A construção da música passa, desde as suas práticas mais elementares, por esse princípio ordenador do caos sonoro: 41

Nome russo que a capital da atual Geórgia Oriental (hoje, Tbilisi) manteve até 1936.

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para muito Ser TÃO Ser muito mais Cuscuz Um único som afinado, cantado em uníssono por um grupo humano, tem o poder mágico de evocar uma fundação cósmica: insemina-se coletivamente, no meio dos ruídos do mundo, um princípio ordenador. [...] Assim a música se oferece tradicionalmente como o mais intenso modelo utópico da sociedade harmonizada e/ou, ao mesmo tempo, a acabada representação ideológica (simulação interessada) de que ela não tem conflitos (WISNIK, 1989: 30).

A definição de ruído como “desordenação interferente” ganha um caráter ainda mais complexo ao adentrar na esfera da arte, tornando-se “um elemento virtualmente criativo, desorganizador de mensagens/códigos cristalizados, e provocador de novas linguagens”. É isso o que propõe Meyerhold ao colocar, em cena, vozes que mais se parecem com ruídos do que com palavras articuladas. Esse procedimento musical provoca sonoramente um forte desvio do código ordenador, instaura o caos e potencializa a tensão da cena. Estudos de semiologia musical, como os do etnomusicólogo JeanJacques Nattiez (2004), levam à identificação de uma “sintaxe musical” – um sistema de relações formais entre os elementos constituintes do fenômeno musical que delineiam a sua estrutura (melodia, harmonia, estilos) – e uma “semântica musical” que relaciona as sensações auditivas a outras esferas, pertencentes a distintas ordens: emoção, imagem, ideologia e outras referências, inclusive sensoriais (tato, visão etc.). Significações semânticas são apreendidas também por associações sinestésicas: visuais (brilhos, cores, claro/escuro), relacionadas a movimentos (direcionais, circulares, estáticos, dinâmicos), densidades (denso, rarefeito), peso (leve, pesado) ou texturas (liso, áspero). Um forte indicativo disso é o uso corrente de uma terminologia musical repleta de termos oriundos de outros campos sensoriais para descrever o universo sonoro, de difícil apreensão. Termos como “textura” (tato), “brilho” (visão), “verticalidade” (propriocepção) e muitos outros, recorrentes na literatura musical, são essencialmente referências sinestésicas. - 145 -

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A interdependência mútua entre imagem e som – ou seja, a imagem sonora – pode ser considerada como um tipo bastante comum de sinestesia cuja natureza ainda não foi devidamente abordada no âmbito dos estudos teatrais, provavelmente pela concepção vigente de que o teatro é essencialmente uma arte visual. O mesmo ocorre em relação ao espetáculo teatral de rua, cujas reflexões e proposições se encontram, ainda, atreladas a concepções teóricas consagradas, voltadas para o teatro de sala. Nessa modalidade, as questões ligadas à musicalidade (do ator, da cena, do espaço cênico) são da maior importância, pois afirmam a sua especificidade. A apreensão sinestésica do espetáculo teatral de rua parece ser um caminho através do qual se torna possível transcender os limites bidimensionais de uma recepção estritamente visual (FLÜSSER, 2002) e mergulhar no sentido multidimensional daquilo que se poderia designar como escuta cênica do espetáculo, uma vez que a percepção do som pelo ser humano acontece por todas as direções, diferentemente da percepção visual que é prioritariamente frontal (e, em menor medida, lateral). A musicalidade do espetáculo Além dos aspectos intrínsecos à sintaxe da linguagem musical – presentes no próprio modo de organização do espetáculo, numa forma musical, nos movimentos corporais do ator, na velocidade e modulação da fala durante um diálogo – podemos considerar a musicalidade do espetáculo também em seus elementos semânticos, pelas correlações que se estabelecem entre elementos musicais e outros fatores, de natureza “externa” à música propriamente dita (associações sinestésicas, mnemônicas, históricas, afetivas etc.). Como exemplo dessa concepção de musicalidade presente numa encenação teatral “clássica”, temos a encenação de A dama de espadas em 1935, em que Meyerhold obtém poderosos efeitos de cena pela fusão contrapontística entre o musical e o cênico: Apoiada pela luz, a música de Tchaikovski aprofunda as ações cênicas, desnuda as emoções silenciosas dos personagens. Desvela,

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para muito Ser TÃO Ser muito mais Cuscuz por exemplo, a cada um dos passos de Liza, que desce a escada do dispositivo enquanto sua amiga Paulina canta, sempre no alto do salão de música, as diversas emoções experimentadas pela jovem. Ou, ainda, faz com que os espectadores escutem as batidas do coração de Hermano, o ruído de sua respiração, no início do terceiro ato em que, sobre a mesma música da introdução, ele sobe na ponta dos pés, com a longa capa arrastando-se atrás, a escada cujo oval caprichoso, ritmado pela ruptura de dois patamares, ocupa toda a cena e enquadra o quarto da velha condessa, embaixo. Ele se imobiliza, estatiza no patamar inferior e depois, à entrada dos violinos, sobre as colcheias, toma a partir para estatizar de novo, no alto, quando escutamos as semicolcheias, perante o retrato da velha, onde cantará em seguida o seu monólogo (PICON-VALLIN, 1989: 3).

A análise de Piccon-Vallin não apenas descreve um trecho da peça apontando as relações entre as ações realizadas pelos atores e os elementos musicais ali utilizados. Mais que isso, a sua interpretação poetizada é desveladora de uma dramaturgia eminentemente audiovisual, que nos permite entrever o diálogo entre as imagens da cena – signos de uma época e uma classe social (a escadaria oval, a longa capa, o retrato da condessa) – e a carga sinestésica que a trilha musical suscita, revelando sutilezas da emoção do personagem que somente os signos de uma linguagem sonoro-corporal (a pulsação do coração, a respiração) poderiam proporcionar. Outro exemplo é a montagem de O professor Bubu, de A. Faiko, em 1925, em que Meyerhold cria um “espetáculo-laboratório” onde a música está ininterruptamente presente em cena. Esta é produzida ao vivo por um pianista de casaca, Lev Arntcham, que executa Liszt e Chopin ao piano de cauda, instalado num dispositivo que reina absoluto, acima do palco. Apesar do virtuosismo exigido pela tarefa, o ator-músico exibe uma liberdade de expressão impensável para um pianista erudito, pois, em lugar de uma execução ipsis literis das peças, sua performance é marcada pelo emprego de trechos específicos de obras que dialogam ativamente com a ação cênica, rompendo portanto com uma ideia da música utilizada como “fundo” para - 147 -

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estabelecer com o espetáculo uma relação viva e dinâmica, desempenhando o papel de elemento “co-construtor” do mesmo. Um outro estímulo sonoro, paradoxal, é colocado no palco: inspirado nas matracas dos teatros orientais que demarcam para os espectadores o início de cada evento teatral, Meyerhold coloca uma “cortina” de bambus suspensos em torno da área de representação, soando a cada entrada e saída dos atores. Curiosamente, no documento fotográfico42 do espetáculo que chegou até nós, o dispositivo do piano e seu pianista foram omitidos do enquadre visual, que registrou apenas a cortina de bambus sendo ultrapassada pelos atores, no palco. Isso nos dá indícios de que o fotógrafo que documentou essa importante encenação não levou em conta o dispositivo piano-pianista para o contexto global da obra, provavelmente considerando-a restrita aos limites de uma função cenográfica e de apoio (musical). Inadvertidamente, esse documento, que registrou apenas os atores em detrimento do ator-músico, contribuiu para suprimir do espetáculo a sua dimensão audiovisual. Trazendo estas considerações para o universo do teatro de rua, cabe comentar que um procedimento semelhante ao acima descrito foi adotado pelo Grupo Galpão, de Belo Horizonte, na montagem de Um Molière imaginário (BRANDÃO, 2003). As diferenças mais perceptíveis aqui, entretanto, são em relação ao trabalho atorial da “pianista” neste espetáculo de rua, na verdade uma atriz do grupo que também é musicista43. Na peça, caracterizada de fada, ela toca um singelo teclado eletrônico de cinco oitavas e não um suntuoso piano de cauda; mas, em diversos momentos do espetáculo, além de executar melodias e comentários musicais, estabelecendo um diálogo sonoro com a cena que se realiza logo abaixo do dispositivo, ela também narra ou comenta diretamente com o público alguma ação que se passa em cena, acentuando o caráter épico do espetáculo. Tal procedimento vincula, assim, o trabalho do grupo às formulações teóricas 42 A fotografia aqui mencionada ilustra o texto intitulado O ator musical: investigando as dimensões do ritmo, da pesquisadora teatral Ana Dias, e publicado no nº 10 da Revista Folhetim/Teatro do Pequeno Gesto, em 2001. 43

Fernanda Vianna, no papel de Rainha Mab, a fada dos sonhos.

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de Bertolt Brecht sobre o uso da música no Teatro Épico (BRECHT, 1967), enquanto recurso estético capaz de produzir em cena o chamado efeito de distanciamento, mas, principalmente, revela uma concepção teatral em que a música desempenha, assim como em Meyerhold, o papel de elemento coconstrutor do espetáculo. Ser TÃO ser – narrativas da outra margem Embora a temática nordestina seja bastante comum no teatro de rua brasileiro, o tratamento dado à mesma pelo Buraco d’Oráculo no espetáculo Ser TÃO ser – narrativas da outra margem é, de fato, original. A cultura popular, inerente ao tema do espetáculo – o migrante nordestino –, não recebeu o tratamento “folclórico” que é frequentemente encontrado em espetáculos de coletivos de outras regiões do país que abordam essa temática tomando de empréstimo textos da literatura de cordel ou outros elementos característicos do nordeste44, nem trabalhou no mesmo sentido dos grupos teatrais oriundos dessa região45, que assumem francamente uma postura ético-estética em defesa dos seus valores culturais. Ao contrário, ainda que tenha surgido de uma pesquisa de campo realizada pelos membros do grupo (alguns destes, descendentes de nordestinos46), com migrantes que ao longo das últimas décadas se estabeleceram nos bairros periféricos da capital paulistana, o espetáculo não presentifica o nordeste em suas cores e danças mais festivas; o seu lócus é a cinzenta São Paulo, “o avesso do avesso do avesso”, nas palavras do também migrante Caetano Veloso, imortalizadas na canção Sampa.

44 Em eventos teatrais de rua no Brasil, é mais comum a adoção da temática nordestina dentro de uma linha cômico-popular. 45 Imbuaça (SE); Gente de Teatro da Bahia (BA); Grupo Sinos (PI); Movimento de Teatro Popular (MTP-PE), entre outros. 46 Adailtom Alves é natural de Iguatu (CE); os demais integrantes do grupo atual (Edson Paulo, Lucélia Coelho e Heber Teixeira, o “Johnny John”) são paulistas descendentes de nordestinos. Selma Pavanelli, como mostra o seu nome, descende de italianos radicados no interior do estado de São Paulo.

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Os primórdios dessa criação coletiva encontram-se no ano de 2006, quando o grupo foi contemplado pela primeira vez com o Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, com o projeto Circular Cohab’s. Durante um ano e meio, o Buraco passou por dezoito comunidades da cidade apresentando o seu repertório teatral e realizando oficinas47. Nessas comunidades, os seus integrantes entraram em contato com as histórias de seus moradores, suas origens, quando e como haviam chegado, o que faziam, descobrindo através desses relatos as transformações pelas quais haviam passado aqueles lugares e sua gente. Surge o desejo de levar para a cena as pessoas que até então apenas assistiam aos espetáculos e de estabelecer com aquelas comunidades uma nova forma de relacionamento. Ao serem contemplados novamente em 2008 pelo Fomento, o grupo concentrou o trabalho em São Miguel Paulista e Cidade Tiradentes, distritos da região leste de São Paulo, onde iniciou o registro sistemático das histórias das pessoas e dos lugares por meio de entrevistas coletivas. O resultado desse processo foi o espetáculo Ser TÃO ser – narrativas da outra margem, cujo mote, segundo o ator e diretor Adailtom Alves, se inspirou na célebre frase de Guimarães Rosa: “O sertão está em toda parte”. E, de que “fala” o espetáculo? Este é construído por uma série de narrativas de migrantes brasileiros que chegam, vindos de diferentes regiões (embora o nordeste seja enfatizado), para a grande metrópole paulistana em busca de melhores condições de vida. Elementos da cultura nordestina estão presentes na indumentária dos atores, nos códigos comunicacionais entre os personagens (uso de jargões, gestos), nas cenas que evocam costumes tradicionais; em nenhum momento, porém, é adotado pelos atores o “sotaque” nordestino, procedimento este que evita tipificações de caráter cômico para promover, em contrapartida, um efeito de distanciamento (no sentido brechtiano) e despertar no espectador uma atitude mais reflexiva e crítica acerca da difícil condição do migrante – oriundo do nordeste ou de qualquer região do país – que é levado a abandonar suas raízes no interior para buscar a sorte na “cidade grande”. No espetáculo, os deslocamentos espaciais dos atores e das próprias Segundo registros do grupo, com o projeto alcançou-se um público de mais de trinta mil pessoas (CADERNO DE TRABALHO, 2011). 47

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cenas rompem, por sua vez, com a estaticidade que é comumente atribuída ao teatro de rua em função da espacialidade em roda (predominante na vertente tradicional desta modalidade), criando em alguns momentos diferentes situações de intervenção ativa sobre o espaço urbano – procedimento este mais ligado a uma proposta contemporânea e “invasora” de teatro de rua, em que a cena teatral toma repentinamente, “de assalto”, a cidade (KOSOVSKI, 2003; CARREIRA, 2008). Estas interferências estão presentes também na ação fragmentada dos atores e nas relações que estes estabelecem com os transeuntes por quem passam, durante a sua perambulação aleatória no prólogo do espetáculo; na “roda de causo” que se forma espontaneamente na calçada, quando uma das atrizes começa a oferecer café feito na hora aos curiosos enquanto lhes conta a sua história, e que é repentinamente desfeita pela marcha desesperada dos personagens que saem em busca de seu destino, sem saber ao certo qual direção seguir (e o público, tão perdido quanto os recém-chegados na rodoviária da capital, os seguem pela rua ouvindo fragmentos de relatos). O pesquisador teatral André Carreira comenta que o teatro de rua é capaz de promover “diferentes planos de atenção dos espectadores”, tanto pelo caráter flutuante e eventual do público na rua quanto pela a ausência de restrições que o mesmo encontra no espaço aberto da cidade: Na rua, as convenções sociais não são tão rígidas como as de uma sala de espetáculos, e como o cidadão não paga entrada nem tem lugar fixo para assistir à representação de rua, se sente, em todo momento, em liberdade de entrar ou sair do âmbito da representação (CARREIRA, 2007: 47).

A situação de mobilidade própria do espectador que assiste a um espetáculo realizado no espaço público acaba por desenvolver fruições estéticas também diferenciadas, que variam desde a percepção superficial de alguns relances da ação individual dos atores, até a experiência total de acompanhá-los de perto, durante toda a apresentação. É o que se verifi- 151 -

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ca em Ser TÃO ser. O mesmo espectador que em determinado instante se encontra, talvez por acaso, num ponto de visão privilegiado em relação a uma cena, logo no momento seguinte, é destituído desse privilégio porque a cena se desfez, colocando-o simbolicamente no mesmo desconforto da súbita experiência de desterritorialização pela qual passam os personagens migrantes do espetáculo. Por várias vezes, o público é desafiado a viver junto, com os atores, a errância compulsória que caracterizou grande parte da população brasileira, sobretudo nordestina, durante praticamente toda a história do país. Equilibrando-se entre a tensão e o distensão que os relatos e a ação cênica lhe provocam, o público que acompanha os atores permitese fazê-lo a partir de diferentes pontos – de vista e de escuta – fruindo o espetáculo de diferentes formas: ora mais próximo, ora mais distante, ora “dentro” da própria cena, “jogando” o espetáculo junto com os atores. Outro dado que chama a atenção é de ordem sonoro-musical: onde se esperaria encontrar ritmos e canções do cancioneiro popular nordestino, xotes e quadrilhas entoadas com os tradicionais acompanhamentos de zabumba, triângulo, pandeiro e sanfona, ouve-se violão, percussões com sucata, rap, paródias de MPB. Essa desobediência aos códigos convencionais também na área da musicalidade indica uma atitude inovadora do grupo frente às questões do popular num espetáculo de rua. Ao mesclar elementos tradicionais com a cultura urbana, Ser TÃO ser transpõe os limites das referências cristalizadas pela tradição e penetra no território menos definido das culturas híbridas (CANCLINI, 2003), aspecto esse que enfatiza o seu caráter de contemporaneidade. Adentrando o âmbito específico da música, será feita a seguir uma descrição nos moldes da etnografia densa proposta por Clifford Geertz (1978), onde algumas noções musicais são utilizadas como ferramenta metodológica para analisar o prólogo musical de Ser TÃO ser, no intuito de desvelar uma semântica musical em que referências musicais, históricas e culturais travam um cruzamento de sensações que caracteriza uma recepção não apenas visual, mas audiovisual da cena. - 152 -

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Migrantes e canções Calçadão de Canoas, pleno calor do verão gaúcho. O Buraco d’Oráculo se prepara para a apresentação de Ser TÃO ser – narrativas da outra margem, espetáculo que integra a programação da III Mostra de Teatro de Rua da RBTR-RS48, realizada em janeiro de 2010. Pessoas passam, arrastando sombras pelo calçamento quadriculado, vultos cansados pelo dia quente de trabalho. Procuro os atores, que se dispersaram pelo espaço seguindo, cada um, o seu próprio caminho. O espetáculo, assim pulverizado, coloca-me, enquanto espectadora, na condição de ter que optar: que caminho seguir? Então, antes pelo ouvido do que pelo olho, encontro Adailtom Alves, que também dirige o espetáculo. Ao caminhar, vai dedilhando um violão. Volto-me para as notas musicais que o instrumento, agora já transmutado em viola pela magia do teatro, despeja no ar. Vai nascendo, assim, uma melodia. O ator estanca; olha à sua volta como se procurasse alguma coisa... Seu figurino – calças folgadas e túnica, ambos de algodão cru – completa a imagem pintada na mochila às suas costas: terra. Terra marrom, rachada, muito rachada. E céu. Marrom e azul-celeste. E a areia alva do tecido. Adailtom, o violeiro, carrega no próprio corpo a terra natal em cores e formas. É a presença indelével de outro lugar, estampada na trama da roupa e da memória. Vagueia, parecendo meio perdido, meio pedindo ajuda com o olhar, acompanhando quem passa. Mas quem passa não olha para ele; sua presença é sumariamente ignorada pelos transeuntes. Não imaginam que, ao repetir esse gesto de descaso, passaram – mesmo que involuntariamente – a fazer parte do espetáculo, como atores de um elenco representando o desdém da população de um grande centro urbano em relação aos miseráveis que nela chegam todos os dias, vindos do interior do país. O ator se aproxima de um casal sentado num banco, cumprimenta -o respeitosamente com o chapéu e fala alguma coisa. Ainda consigo ouvir o seguinte trecho, enquanto me aproximo: 48

Rede Brasileira de Teatro de Rua, Rio Grande do Sul.

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Buraco d`Oráculo: 15 anos de história [...] A gente escreve a própria história. Quando a história da gente se junta com a do outro, é mais bonito. É uma outra história. Ói, se vocês quiserem, podem me seguir. Porque pra onde eu vou tem mais história, viu? Todo mundo é assim: começa onde nasce. E termina onde escolhe.

Os outros atores-viajantes começam a regressar para um lugar central de encontro no espaço do calçadão. Adailtom também se dirige para lá, para e tira a estranha mochila, retangular, das costas. Esta se transforma num banco onde o ator senta, atraindo o público com placidez de velho sertanejo. A atriz Lu Coelho convida os que passam, com um gesto camarada de mão. Logo os outros atores, Edson Paulo e Selma, vêm se unir à trupe. Assim, todos chegam à cozinha, tiram suas mochilas-caixas das costas fazendo uma grande roda que anseia pelo café, cujo aroma se espalha pelo ar. Cada um desses objetos é um caixote de madeira, um guarda-roupa, um baú, um relicário no qual os personagens carregam as histórias de suas vidas: raízes, sonhos, objetos, amores. Surge agora uma canção alegre, que recebe acompanhamento rítmico: o ator Heber Humberto percute com as mãos a sua mochila-caixa, sentado sobre ele à moda de um cajón peruano49. Uma cadência perfeita50 nasce do violão, oferecendo a introdução para Adailtom “puxar” o canto de Cálix Bento, conhecida canção de Milton Nascimento51: Ó Deus salve o oratório (bis) onde Deus fez a morada, oiá meu Deus... O cajón, aumentativo de caja (“caixa” em espanhol), é originário do Peru colonial, quando os escravos africanos utilizavam caixas de madeira como instrumento de percussão em suas manifestações musicais. É considerado, hoje, afro-peruano e patrimônio cultural dessa nação. 49

50 Do italiano cadenza (caindo), a cadência marca o fim de uma frase musical no sistema tonal, dando-lhe o sentido de uma pontuação. A cadência perfeita é constituída por dois acordes: o da dominante, seguido da tônica. Na prática, isso significa que o ator-músico Adailtom utilizou, como introdução ao canto de Cálix Bento, os acordes de LáM (dominante) e RéM (tônica) algumas vezes, antes que o grupo começasse a cantar.

Inspirada nos cantos da Folia de Reis do interior de Minas Gerais, a versão original da composição aparece no álbum Geraes (1976) do compositor mineiro. 51

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para muito Ser TÃO Ser muito mais Cuscuz onde Deus fez a morada, oiá! Onde mora o Cálix Bento (bis) E a hóstia consagrada, oiá meu Deus... e a hóstia consagrada, oiá! De Jessé nasceu a vara (bis) Da vara nasceu a flor, oiá meu Deus... da vara nasceu a flor, oiá! E da flor nasceu Maria (bis) De Maria, o Salvador, oiá meu Deus... de Maria o Salvador, oiá!

Todos se integram à cantoria, timidamente no início e, a seguir, com entusiasmo. É um canto religioso-profano inspirado no repertório das Folias de Reis, testemunha do fervor católico que impregna toda a música “de raiz” do interior do país e particularmente de Minas Gerais, terra de Pena Branca e Xavantinho, dupla sertaneja que o popularizou nos anos de 1970. Ao som da viola, são contados “causos” de migrantes, entremeados de canções populares. Depois desse momento de aconchego, é chegada a hora da partida; os atores repentinamente colocam suas mochilas-casas nas costas e, desfazendo a roda que se formou espontaneamente à sua volta, ganham novamente a rua em passos rápidos, quase corridos. A maior parte do público, surpreendido com a guinada súbita, tenta acompanhar os atores nessa nova etapa de sua saga. Mais à frente, forma-se outra roda em torno dos personagens que acabaram de “chegar” à Rodoviária da Grande São Paulo, para ouvir novos relatos verídicos, dos atores ou das pessoas entrevistadas na sua pesquisa de campo. De quadro em quadro, o Buraco d’Oráculo apresenta ali o processo perverso que caracteriza os grandes agrupamentos urbanos da atualidade: a ocupação de um terreno, a construção de seus abrigos precários, a desocupação forçada e, finalmente, a sujeição desses cidadãos desassistidos às manobras do setor imobiliário que, em conluio com os poderes públicos, “soluciona” o problema dessa população oferecendo-lhe uma moradia “a preços acessíveis” em conjuntos habitacionais de qualidade inferior. - 155 -

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Todas as cenas são alimentadas musicalmente por canções populares conhecidas, mas principalmente por composições próprias, cujos títulos traduzem de forma simples e direta a crítica social e a denúncia pretendidas pelo grupo: Rap do Enfrentamento, A luta de um povo humilde, Rap da periferia, Se você quer sua casa própria, Essa casa vai ser minha, Minha casa, Levanta povo. Além desse conteúdo musical inédito, o grupo faz ainda algumas “apropriações”, criando paródias52 e “recriações” a partir de outras obras musicais, como é o caso de Cachaça não é água (Mirabeau Pinheiro, Lúcio de Castro e Héber Lobato), Se essa rua fosse minha (domínio público), A casa (Vinicius de Moraes); Maia e Se o povo soubesse (canções oriundas de movimentos sociais, de autoria coletiva), e alguns gêneros nordestinos tais como Xote dos cabeludos (Luiz Gonzaga e José Clementino), Xote das meninas (Luiz Gonzaga e Zé Dantas) e O cheiro da Carolina (Luiz Gonzaga). Esse rico repertório musical reflete as referências culturais dos integrantes do grupo: na infância, todos tiveram a oportunidade, hoje rara, de crescerem em meio a cantigas de roda, presentes em jogos e brincadeiras populares que mantêm preservadas uma estrutura multifacética ao integrarem atividades simultaneamente rítmico-melódicas e corporais, vivenciadas lúdica e coletivamente. São mencionadas, também, influências musicais de teor fortemente tradicional, incluindo-se aí a sonoridade nostálgica das violas sertanejas e as emboladas “de pandeiro”, além dos cantos religiosos católicos. Nas cenas em que aparecem, as músicas são quase sempre entoadas em uníssono pelo coletivo, acompanhadas pelo violão de Adailtom e pelas percussões realizadas por outros integrantes, desempenhando no espetáculo uma função de elemento que potencializa o efeito de distanciamento No contexto musical, a paródia é uma técnica que emprega propositalmente elementos reconhecíveis de outras composições dentro de uma obra (por exemplo, usar a música de uma canção, porém alterando-se parcial ou completamente a letra). Oriundo da música renascentista, o procedimento renasceu no século XX e passou a ser amplamente adotado em várias vertentes da música de cena, como ópera, teatro, cinema e televisão. Ao “cruzar” elementos musicais, a paródia cria para o ouvinte uma dupla referência, multiplicando os sentidos da cena. 52

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brechtiano. Alguns fatores auxiliam-nos a fazer essa afirmação. Verificouse, por exemplo, o uso predominante de canções – songs, na terminologia de Brecht – que interrompiam por vezes a linearidade da ação cênica, evidenciando o caráter não-ilusionista da representação; além disso, por meio das letras dessas canções os atores iam narrando ao público as manobras de opressão e repressão utilizadas pelas figuras de poder ali representadas – a polícia, a mídia, os políticos – tornando-se “um colaborador ativo na tarefa de desnudar o corpo da ideologia burguesa” (BRECHT, 1967, p. 83). O uso desse tipo de música-gestus, capaz de representar musicalmente os gestos sociais dos personagens envolvidos em cada cena, demonstra que não se tratou de colocar em cena atores-cantores interpretando canções, mas de atores narrando uma história por meio das canções. Isso não significa, entretanto, que inexistiu qualquer exigência técnica nesse sentido; ao contrário, para dar conta da tarefa o coletivo manteve um trabalho permanente de preparação53 corporal, rítmica e vocal, paralelo à montagem do espetáculo. Num certo momento do espetáculo, por exemplo, um “policial” adentra a cena anunciando aos demais personagens (os moradores da comunidade de imigrantes, ali representada) uma ordem oficial de despejo de suas casas. Toda a cena é “musicalizada” por meio de um procedimento conhecido no meio musical como jogo de “pergunta-e-resposta”, tipo de canto responsorial que no espetáculo é realizado pelo policial e os imigrantes, que respondem em coro às suas ameaças. Enquanto cantam, os atores simulam com o próprio corpo um movimento em uníssono que se contrapõe aos movimentos do antagonista, que usa o próprio “escudo” como instrumento musical. Percutindo ritmicamente a sua “arma” (um cacetete, utilizado pelo personagem como baqueta) no corpo desse objeto cênico transformado em instrumento percussivo (o escudo típico de uma tropa de 53 Esse trabalho se desenvolveu com o apoio de dois profissionais, Melissa Maranhão (preparadora vocal) e Celso Nascimento (professor de percussão), durante o projeto Narrativas de Trabalho, dentro do qual também estava prevista a qualificação musical dos atores do Buraco d’Oráculo. Elizete Gomes foi a profissional responsável pela preparação corporal.

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choque, feito de sucata), o ator cria uma base rítmica sobre a qual todo o conjunto da cena irá se desenvolver. Rap do Enfrentamento (criação coletiva do Buraco d’Oráculo) [Policial] Desocupem essa área Tô cumprindo o meu dever Proteger o patrimônio Doa a quem doer Desocupem essa área Ou a porrada vai comer. [Povo / ocupantes] Chega de promessa Chega de enrolação (2X) União, Estado e Município Ninguém dá a solução! (2X) Direito a moradia Está na Constituição (2X) [Policial] Desocupem essa área Ou a porrada vai comer Tô fazendo o meu papel Tô cumprindo o meu dever Proteger o patrimônio Doa a quem doer! Spray, bala de borracha Gás pra entorpecer Desocupem essa área Ou a porrada vai comer! [Povo / ocupantes]

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para muito Ser TÃO Ser muito mais Cuscuz Aqui só tem família e trabalhador (2X) Mas tem panela, pau, pedra. (2X)

Estabelece-se, assim, um cruzamento de múltiplas referências – a imagem de uma figura de poder (o “policial”) em oposição ao “povo”, a letra da canção, o gênero musical que lhe dá a base rítmica (Rap)54 – onde tudo contribui para a construção de uma imagem cênica, visual e sonora dos conflitos sociais existentes nas grandes metrópoles. Porém, ainda que o trabalho musical desenvolvido pelo grupo mostre a importância que a música representa para a sua proposta ético-estética de teatro – fazendo de suas criações e recriações musicais a concretização de um gestus musical imbuído de forte carga política que extrapola a mera “utilização” da música em um espetáculo – é preciso ressaltar, neste ponto, que a musicalidade do espetáculo Ser TÃO ser não se limitou à utilização de exemplos pontuais de canções com finalidade didático-política. O tratamento sonoro-musical dado pelo grupo vai mais além, extrapolando mesmo a musicalidade-gestus que se vincula a uma cena em especial (como a do exemplo descrito antes), mostrando que por meio de procedimentos e elementos musicais é possível agenciar o conteúdo afetivo-existencial do espetáculo. É para essa camada, mais profunda, da musicalidade de Ser TÃO ser que se voltam as reflexões que se seguem. Prólogo de Ser TÃO ser: o sertão está em toda parte O universo musical está repleto de analogias entre som e imagem. Desde as primeiras tentativas de registro das melodias litúrgicas pelos padres católicos, a grafia da música europeia representou uma estratégia de transpor, para o espaço plano e bidimensional, a matéria-prima de uma arte que recusa deixar-se aprisionar dentro dos limites do espaço físico. A 54 Chegando ao país no final dos anos 80, o Rap (rhyme and poetry) logo se tornou um gênero popular nas periferias das grandes metrópoles brasileiras (sobretudo do sul e sudeste), devido ao conteúdo contundente das letras que oscilavam entre a crítica social e o ataque direto às instituições, sobretudo a polícia, levando a público questões como violência, criminalidade e discriminação racial.

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impermanência da matéria sonora trouxe para os primeiros estudiosos da música ocidental o desafio de apreender o som num suporte fixo e, com isto, assegurar não apenas a expressão artística que produziam, mas, e além disso, criar um instrumento pedagógico eficaz para a transmissão e manutenção da ideologia cristã através dos cantos bíblicos. Os exemplos mais elementares da analogia som/imagem são o da nota musical como “ponto” e o da melodia (sucessão de notas musicais) como “linha” sonora; o mesmo ocorre em relação ao termo “altura” como sinônimo de frequência (vibrações de um corpo), além dos movimentos musicais de “ascendência” e “descendência” que as notas descrevem no espaço imaginário da pauta musical. Segundo Roy Bennett (1986), a música ocidental mais antiga de que se tem o registro escrito consiste em uma única “linha” melódica. No contexto religioso do início do período medieval esse tipo de música sacra, vocal e sem acompanhamento instrumental, tornou-se conhecido como cantochão. As primeiras composições polifônicas – formadas por duas ou mais linhas melódicas – surgem somente a partir do século IX, com o nome de organum. A forma mais antiga deste estilo é a do organum paralelo, onde a voz principal (o cantochão original) é duplicada nota a nota (daí a expressão latina punctus contra punctus que deu origem ao termo contraponto), criando um paralelismo sonoro que se tornou um dos elementos mais marcantes da cultura musical cristã. Mais tarde, o contraponto irá dar lugar a experimentações polifônicas muito mais complexas, capazes de misturar elementos heterogêneos e romper com o paralelismo inicial. É com essa ideia de composição polifônica contrapontística que pretendo estabelecer uma analogia entre cena e som, para penetrar no universo cênico-musical do prólogo de Ser TÃO ser. Aqui, o termo prólogo (do grego prologos, “discurso que vem an55 tes”) é utilizado para descrever a primeira ação cênica deste espetáculo, De acordo com Pavis (2003), o prólogo se refere à parte que antecede a peça propriamente dita, na qual um ator dirige-se diretamente ao público para lhe dar boas vindas e anunciar temas importantes. Dentre outras funções do prólogo, figura a de estabelecer um discurso intermediário que 55

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momento em que se estabelece o primeiro contato da representação com a sua audiência: o público aleatório do calçadão de Canoas num fim de tarde. Este, constituído em sua maioria por comerciantes e vendedores que estão fechando as lojas para irem embora após um dia comum de trabalho, é gradativamente “fisgado” por um fio de música que se insinua por entre os ruídos (vozes, passos, motores) da paisagem urbana. A ação cênica inicial – aquela que inaugura o nexo entre representação e espectador – é promovida, sobretudo, por um estímulo sonoro-musical: a improvisação de Adailtom, cujas peculiaridades musicais carregam consigo o sentido global do espetáculo. O prólogo de Ser TÃO ser é realizado por meio de uma melodia que soa solitariamente no espaço aberto da cidade, e é entremeada pelas falas declarativas dos personagens: “Todo mundo é assim: começa onde nasce. E termina onde escolhe”. A mesma frase, enunciada individualmente pelos atores ao público, é o anúncio de algo não pertencente ao tempo do evento representado. Encontra-se noutro espaço-tempo, como uma profecia que se dirige ao conjunto humano e não apenas a alguém em particular. A abertura do espetáculo mostra um modo de construção dramatúrgico-musical que explicita o paradoxo de viver entre o “ser” (algo que simplesmente nasce e morre) e o “TÃO ser” (alguém que delibera sobre o próprio destino). A vida sem ou com arbítrio é a grande questão existencial apresentada pelo “Oráculo”, cujos ecos estão também na máxima shakespeareana ser ou não ser, eis a questão, parodiada no próprio título do espetáculo. Do ponto de vista da musicalidade da cena propriamente dita, pode-se dizer que o Buraco d’Oráculo utiliza, no prólogo, um procedimento de improvisação musical em que a solidão do nordestino na metrópole é evocada, semanticamente, pela execução quase aleatória de notas de uma escala modal – vestígios de um mundo ancestral, cíclico e coletivo que aparecem como que deslocados do mundo atual contemporâneo, linear e individualista – materializando sonoramente a precariedade do sertanejo garanta uma passagem “suave” da realidade para a ficção e introduza o espectador no jogo teatral.

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em meio ao ambiente urbano. É ao mesmo tempo um lamento, um chamado e um testemunho desse sentimento de nostalgia do mundo que foi deixado para trás e do espanto de ver-se arremessado repentinamente noutro lugar, no qual o homem não se sente à vontade, pois as convenções aí reinantes ainda lhe são estranhas. A sua música é também um porto seguro, e o homem se agarra a ela como o ator segura o instrumento junto de seu corpo, de seu peito, na única intimidade possível naquele universo de exposição pública e anônima que a cidade lhe impõe, deixando à mostra a fragilidade do ser. É também um signo dessa busca de afeto, a viola que o ator abraça e acaricia com carinho, devolvendo ao objeto o aconchego de um lar distante, talvez perdido para sempre. A estrutura musical como veículo de imagens sonoras Em seu estado primário, o campo sonoro é fluido e caótico. Enquanto fenômeno físico, o som musical não se diferencia do que se chama comumente de “ruído”. Todo som é vibração: um corpo vibra, e em resultado dessa ação vibratória produz ondas invisíveis que se propagam no espaço, sensibilizam o nosso aparelho auditivo e são identificadas pelo cérebro como “som”. É apenas pela força das convenções criadas pelo homem que o efeito das ondas sonoras vai além de suas funções essenciais (como as de comunicação e sobrevivência, de que todo ser vivo depende) e se torna música: arte. Ao longo do tempo cada povo elege os seus sons preferenciais, destacando-os do oceano indiferenciado dos sons do universo e fazendo deles referências objetivas de seu mundo e modo de vida: nascem desse modo as chamadas “notas musicais”, pontos sonoros de apoio sobre os quais serão construídas as estruturas musicais de cada cultura – as escalas. Segundo Wisnik, As escalas são paradigmas construídos artificialmente pelas culturas, e das quais se impregnam fortemente, ganhando acentos étnicos típicos. Ouvindo certos trechos melódicos, dos quais identificamos não-conscientemente o modo escalar, reconhecemos frequentemen-

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para muito Ser TÃO Ser muito mais Cuscuz te um território, uma paisagem sonora, seja ela nordestina, eslava, japonesa, napolitana, ou outra (WISNIK, 1989: 65).

Essa construção se efetiva ao longo do tempo, representando o produto cultural resultante de um pensamento e um modo de vida que pertence a toda uma coletividade; são, contudo, os músicos os que lidam mais diretamente com essas estruturas, pois são elas que dão uma primeira forma à matéria informe do campo sonoro e possibilitam criar o que convencionamos chamar de “música”. Foi através do mapeamento e do trabalho de organização e reorganização dos sons, realizado por incontáveis músicos dos mais diversos lugares e tempos, que se desenvolveram e continuarão a se desenvolver as mais diversas expressões musicais. O que vemos acontecer no prólogo de Ser TÃO ser poderia ser descrito como uma reedição sintética desse processo milenar, concretizado no jogo musical aparentemente singelo que o ator-músico Adailtom estabelece com o seu instrumento. Isso significa dizer que, na fase inicial de sua improvisação com o violão, ele busca intuitivamente pontos sonoros de apoio – notas musicais “chaves” – em busca de um sentido musical. Por isso, nesse momento parecem ainda notas avulsas que nascem sem direção, sem intenção, soando apenas, numa vida que se preocupa apenas em ser vivida. Quando, em meio a esse processo, a estrutura escalar da melodia finalmente se define, surge uma frase musical elementar de três notas musicais, vacilante, que se repete e repete, exercitando a sua presença no mundo, como uma criança que começa a andar sozinha. Essa brincadeira sonora não se dá, entretanto, sem que uma intensa carga cultural do nordeste venha também à tona, uma vez que o atormúsico que a realiza tem nessa região do país as suas próprias origens; as estruturas escalares que constituíram historicamente a musicalidade que reconhecemos como nordestina estão profundamente enraizadas em sua memória, de modo que a improvisação musical, embora livre, já caminha nessa direção. Surge um pequeno discurso musical, primitivo, essencial, sem adornos. Uma a uma, notas soltas do início formam motivos melódi- 163 -

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cos mais definidos, desenhando uma linha sonora cada vez mais nítida. O sentido musical até então apenas esboçado flutua agora no ar, sugerindo uma melodia que mergulha reiteradamente, descrevendo um movimento descendente. Agora, torna-se possível reconhecer uma escala modal56, que une no mesmo gesto sonoro o passado distante de uma Europa mediterrânea e de um Brasil caboclo onde, pela força da evangelização católica e canônica, preservaram-se esses modos musicais, eternizados na sonoridade de seus cantos de fé e conversão. Submersas nas correntes profundas da cultura popular nordestina, estão resquícios de antigas escalas gregas que sobreviveram no canto salmodiado dos missionários jesuítas, constituindo testemunhos de uma ancestralidade marcada pela mistura de culturas, etnias, territórios, vozes, tempos. De acordo com uma importante obra de referência no assunto – As estruturas modais na música folclórica brasileira (1994) – a musicóloga Ermelinda Paz comenta que, para a grande maioria dos pesquisadores de música brasileira, são as influências ibérica e africana as mais importantes para nossa formação musical, e isso significa considerar a longa ocupação árabe na Península Ibérica como parte essencial dessa influência. Vários autores citados por Paz apontam a presença moura no Brasil através de festas populares, como o Auto do Rei dos Mouros e a Cavalhada, além de elementos especificamente musicais como o aboio, que seria uma assimilação das zambras e hudas cantados pelos tropeiros árabes. Um estudo musical mais acurado do prólogo revelou claramente a presença dessas estruturas modais na improvisação livre de Adailtom. Ao transpor para uma partitura convencional esse trecho musical conforme estava registrado em vídeo, ficou evidente que a improvisação não ocorria de fato na escala de G (Sol Maior) como pensava inicialmente o ator-músico, mas sim do uso totalmente intuitivo – não intelectualizado – de uma estrutura escalar modal, e não tonal. Em primeiro lugar, em termos rítmicos, a No ocidente, refere-se à organização escalar, descendente, de notas musicais dentro do sistema musical historicamente anterior à música tonal. 56

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grafia da improvisação fez emergir uma partitura de sons sem tempos definidos metricamente. Ao contrário, encontramos uma sequência fluida, que prescinde das barras de compasso57 a definir um número exato de tempos e divisões de tempo – característica da pulsão ocidental moderna pela exatidão métrica da linguagem musical, ausente naquela improvisação instrumental. Observou-se, diferentemente, um uso fluido das durações sonoras, tal como era em seus primórdios a música ocidental, ao não se subordinar a um sistema de medição temporal baseado em proporções matemáticas, e sim aos laços viscerais que estabelecia com o texto cantado ou com o pulso das danças populares. Em termos do tratamento propriamente melódico, a reiterada presença do baixo sobre a nota ré, as outras notas musicais utilizadas na improvisação e o movimento claramente descendente que se desenhava como linha melódica mostravam que a escala utilizada era, na verdade, pertencente ao campo sonoro de Ré Mixolídio, que contém o mesmo fá# (fá sustenido) que o ator-músico indicara como referência. Este modo escalar, assim como os demais modos gregos58, foi sendo paulatinamente modificado e finalmente suprimido da música ocidental erudita até o seu total desaparecimento com o advento do tonalismo durante o século XVII59, sobrevivendo no Novo Mundo graças aos cantos litúrgicos dos missionários cristãos. O uso da nota ré como “bordão” foi, finalmente, o fator decisivo para a constatação do modo grego no prólogo musical de Ser TÃO ser. As investigações musicológicas de José Wisnik corroboram tal percepção: Nas músicas modais, pentatônicas ou outras, é muito frequente o uso de um bordão: uma nota fixa que fica soando no grave, como 57 O sinal, hoje comum, da barra de compasso que divide com exatidão a partitura musical em “partes” de tempo rigorosamente iguais (salvo trechos de exceção devidamente sinalizados) ganhou força de convenção apenas nos séculos XVI e XVII, com o grande desenvolvimento da música instrumental.

Jônio (hoje, modo maior); Dórico; Frígio; Lídio; Mixolídio; Eólio (hoje, modo menor); Lócrio (criação teórica). 58

Segundo Bennett, o abuso de ornamentos e notas alteradas (bemóis e sustenidos) pelos compositores no período Barroco levou à perda da identidade dos antigos modos, contribuindo para a fixação do sistema tonal (BENNETT, 1986).

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Buraco d`Oráculo: 15 anos de história uma tônica que atravessa a música, se repetindo sem se mover do lugar, enquanto que sobre ela as outras dançam seus movimentos circulares. A música indiana faz questão de marcar o bordão (essa lembrança contínua do chão sobre o qual se dança, o solo firme sob os voos melódicos) [...] A tônica fixa é um princípio muito geral em toda a música pré-tonal: explícita ou implícita, declarada ou não, pode-se aprender a ouvi-la, pois ela está lá, como a terra, a unidade indivisa, a montanha que não se move, o eixo harmônico contínuo, soando através (ou noutra dimensão) do tempo (WISNIK, 1989: 73).

Era exatamente o que se passava na improvisação musical do ator, em que o bordão, tal como a presença marcante da terra natal, se instalava firmemente na melodia que flutuava pelo ar. O curioso, aqui, é ser justamente o modo de estruturação dessa antiga escala mixolídia o que produz a “coloração” característica da música nordestina “de raiz”. Dentro do contexto do espetáculo, esse dado musical permitiu trazer para o presente da cena toda a carga sígnica, afetiva, cultural e histórica aí contida, pois o seu uso recorrente na música popular nordestina faz, dessa estrutura sonora arcaica, um elemento profundamente enraizado no imaginário do povo brasileiro. Além disso, parece ter sido este o modo grego que se fixou mais fortemente no país, pois todos os autores estudados por Ermelinda Paz fazem menção à predominância do modo mixolídio na música nordestina brasileira.

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Fonte – Arquivo do grupo

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Rascunho de letra feita pelo músico Raberuan (1957-2011) para o espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem (2009).

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O ethos musical de Ser TÃO ser A investigação musical do prólogo de Ser TÃO ser nos remete ainda à antiga doutrina grega do ethos. Para o cidadão ateniense, a música agregava todos os princípios éticos, estéticos e intelectuais existentes em sua sociedade, e por isso ela constituía um dos principais aspectos da organização política do Estado. Portanto, o termo nomos era utilizado para designar tanto melodias tradicionais quanto as leis morais, sociais e políticas. No âmbito da música, os nomoi60 eram padrões melódicos dotados de expressividade própria, uma vez que eram entoados em determinadas regiões vocais. Uma vez organizados, deram origem aos modos gregos, tornando-se os portadores dos diversos ethos – efeitos específicos sobre o comportamento humano. Segundo a doutrina, a cítara era o meio ideal para expressar o ethos dos hinos litúrgicos dedicados a Apolo; associado ao ethos deste instrumento (eleito por Platão para a República) está o modo dórico, austero e firme; o modo frígio também possuía caráter moral compatível com os cantos de louvor aos deuses, inclusive nos cultos dionisíacos, onde o aulos era o instrumento preferencial; o modo lídio, plangente, era adequado para os trenos (cantos fúnebres) e lamentos, seu ethos triste, contudo, tornava-o inadequado para o Estado grego, pois segundo a doutrina poderia induzir à preguiça e à embriaguez. Os modos jônio e eólio são aqueles cujas estruturas básicas perduraram até os nossos dias, mantendo-se nos atuais modos “maior” e “menor” da música ocidental tonal. O modo mixolídio, formado da mistura dos modos dórico e lídio, teria um caráter emocional próprio para as tragédias, uma vez que o ethos a ele atribuído era patético e doloroso, porém altivo (NASSER, 1997). Fazendo-se uma leitura musical do prólogo de Ser TÃO ser na perspectiva da doutrina do ethos, é possível observar que o modo mixolídio, presente na improvisação do ator-músico, imprime à cena inicial um “clima emocional” em consonância com o conteúdo afetivo do espetáculo. A desterritorialização dos personagens que abandonam seus lares em busca de 60

Plural de nomos.

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melhores condições de vida se apresenta como uma experiência dolorosa e até mesmo trágica uma vez que, ao recusar a imposição de um destino cruel, vão inadvertidamente ao seu encontro. Mas nada disso é explícito, pois na verdade o espetáculo mal começou; no entanto, a melodia mixolídia carrega consigo um ethos que soa como um presságio sombrio daquilo que virá depois. E, importante lembrar: essa rica constelação de significados semânticos não foi, neste caso, fruto de uma elaboração intelectual prévia, mas do encontro do elenco com suas raízes culturais mais profundas, encontro esse que é oferecido ao público por meios essencialmente musicais. Assim, ao acompanhar o músico e seus sons, o lugar imaginário e metafórico do sertão nordestino deixa de ser subjetivo e fictício para se tornar extremamente vívido e concreto, na experiência de errar pelo espaço junto ao caminhante solitário. Vivemos com ele a sua solidão, a perda de um ponto de segurança, a busca de solidariedade num outro que, não raro, nos vira o rosto. As notas musicais soltas e quase aleatórias, que aos poucos vão construindo a melodia modal, criam poeticamente a imagem sonora do sertanejo solitário na cidade grande, à procura de calor humano. Essa melodia só se define claramente à medida que o personagem consegue reunir, daqui e dali, pedaços espalhados de seu mundo cultural e afetivo. Por meio da música, seu ser também se vai reconstruindo. Dessa forma, homem e música descrevem paralelamente no espaço – o primeiro, sobre a terra; a segunda, pelo ar – o desenho de seus respectivos processos identitários, delineando-se mutuamente num movimento que serpenteia aparentemente sem direção, em busca de um abrigo ou de uma forma sensível. Analogia entre estrutura musical e ação cênica, um contraponto entre música e cena: dramaturgia musical. Territórios sonoros Como foi dito, a maneira de articulação entre as notas musicais, com as quais se formam as frases melódicas, é designada “escala”. Dito de outra forma, toda melodia provém de uma determinada escala ou estoque - 169 -

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de notas selecionadas culturalmente e que, combinadas, criam o discurso musical. No trecho musical aqui analisado, não há definição de uma nota musical preponderante que exerça atração para uma resolução final (como na música tonal, cronologicamente mais tardia na história da música ocidental), o que torna perceptível a tendência dessa melodia em descrever reiteradamente um desenho circular de retorno ao mesmo motivo sonoro. Esta é, inclusive, a característica fundamental da música modal: não repousar definitivamente sobre um som, uma derradeira nota musical (ou com um acorde final estrondoso, como na música do período romântico) que finaliza uma ideia, tal como um ponto final termina a frase falada. Ao contrário: o “raciocínio” da melodia modal parece estar sempre em movimento; não segue uma trajetória retilínea para desembocar previsivelmente num ponto determinado. A melodia modal descreve linhas sonoras sinuosas, espiraladas ou talvez circulares, num jogo sonoro cíclico que inverte a lógica racional linear e induz o ouvinte a penetrar noutra esfera sensível. Em Ser TÃO ser, todas as vezes que o peso da vida na grande metrópole é demais para os personagens e surge uma grande tensão dramática, aquela melodia arcaica volta a soar, confortando-os. Misto de tristeza, solidão, errância, desterro, saudade do lar e perda do aconchego, ela também representa um retorno às origens mais remotas, o “estado zero” da alma, de onde é preciso começar – ou recomeçar – tudo. Por isso, ela ressurge quando em cenas seguintes os personagens se mostram perdidos; pois é dela que irão retirar o sustento de seu ser. O cantochão – canto monódico das liturgias cristãs da Idade Média – caracterizava-se pelo uso da “corda de recitação”. Também denominada “dominante salmódica”, era esta uma nota musical sobre a qual eram entoadas as salmodias, com o objetivo de se obter um efeito de reforço das principais palavras ou sílabas e, desse modo, proporcionar aos ouvintes a maior inteligibilidade possível do texto bíblico cantado. Com o tempo e a institucionalização do cantochão como forma musical, o uso da dominante salmódica se tornou o elemento mais característico e facilmente reconhecível dessa expressão musical, pois mantém em sua estrutura a presença do - 170 -

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bordão arcaico da música modal. É interessante observar que, no trecho improvisado, o ator-músico emprega o mesmo recurso acústico ao utilizar a nota ré como “corda de recitação”, sendo inclusive essa mesma nota que irá determinar a tonalidade da primeira música tonal executada na cena seguinte ao prólogo, Ré maior. Esse procedimento estabelece entre os dois modos utilizados (o modal e o tonal) uma relação de afinidade natural e fluente, sem choque ou ruptura, sugerindo metaforicamente uma passagem, vivida com alegria pelos personagens ao regressarem simbolicamente para o seu lar, na primeira cena propriamente dita. Na verdade, é esse o “baixo” que se repete por toda a improvisação do prólogo – uma característica do próprio instrumento musical utilizado pelo performer – que o polegar dedilha quase que por automatismo, buscando a mecânica de execução mais fluente e graciosa. Nessa dança dos ornamentos sonoros, instala-se também a presença dos povos nômades que durante séculos migraram da Arábia e do Saara para a Península Ibérica trazendo consigo seus pertences, cantos, fé e saudade, misturando o espírito nostálgico do desejo de regresso ao ímpeto do viajante aventureiro – impulso de seguir adiante – sentimento contraditório do qual compartilham, provavelmente, os teatristas de rua. Depois, ao fazer a roda para o café, o nomadismo musical e espacial do prólogo de Ser TÃO ser encontra um ponto de repouso. A música que vem da viola, de condutora de um movimento contínuo pelo espaço, se transforma agora em ponto de referência estável, apoio sonoro e harmônico para as vozes dos atores que, nesse momento, cantam Cálix Bento em uníssono. O lugar de estabilidade criado pela cena “do café na cozinha” faz da viola errante o objeto integrador61 (BENENZON, 1985) do grupo de atores/personagens. É ele, o instrumento musical ainda antes do café quentinho servido aos convidados, o elemento cênico que estabelece os laços de ligação entre cena e público, num mútuo acordo sonoro. Criado pelo musicoterapeuta argentino Rolando Benezon, o termo designa aquele instrumento musical que aglutina ao seu redor os membros de um grupo, convertendo-se temporariamente em seu guia e líder. 61

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Outras canções serão ainda entoadas pelos atores, desse momento até o final do espetáculo. Outras sonoridades, influências explícitas do mundo contemporâneo que se desdobrarão em novos ritmos, cenas, cantos. Entretanto, é aquele fragmento melódico inicial o que revela mais fortemente a potência musical do espetáculo, tanto pelas conexões semânticas que estabelece imediatamente com o tema abordado – a migração nordestina para a Grande São Paulo – quanto pela experiência concreta do sentimento de perda e nostalgia do lar que propõe, sutilmente, ao espectador-ouvinte.

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ENTREVISTAS

Edson Paulo e Lu Coelho, em 05/05/2008. Edson Paulo, Heber Humberto Teixeira, Lu Coelho e Selma Pavanelli, em 20/08/2011. - 178 -

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REGISTRO FOTOGRÁFICO

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Foto de Mayara Evangelista

O cuscuz fedegoso

O cuscuz fedegoso, apresentação realizada em frente a Casa de Cultura do Itaim Paulista, projeto Circular COHAB`s (2007).

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Fotos de Autor desconhecido

O cuscuz fedegoso, apresentação realizada na Praça do 65, bairro de Cidade Tiradentes, pelo projeto Circular COHAB´s (2007).

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Fotos de autor desconhecido

O cuscuz fedegoso, apresentação realizada na Praça do 65, bairro de Cidade Tiradentes, pelo projeto Circular COHAB´s (2007).

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Fotos de Autor desconhecido

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Foto de Mayara Evangelista

O cuscuz fedegoso, apresentação realizada em Cidade Tiradentes, Praça do 65 (2007).

Cidade Tiradentes, Praça do 65 (2007).

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Fotos de Augusto Paiva

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O cuscuz fedegoso, apresentação realizada na Praça do Patriarca, dentro da programação da III Overdose de Teatro de Rua (2005).

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Fotos de Augusto Paiva

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O cuscuz fedegoso, apresentação realizada na Praça do Patriarca, III Overdose de Teatro de Rua (2005).

O cuscuz fedegoso, apresentação realizada na Praça do Forró, bairro de São Miguel Paulista (2002).

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Fotos de Autor desconhecido

Buraco d`Oráculo: 15 anos de história

O cuscuz fedegoso, apresentação realizada na Praça do Setor VII G, bairro de Cidade Tiradentes. Projeto Circular COHAB`s (2007).

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Fotos de Autor desconhecido

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Foto de Mayara Evangelista

O cuscuz fedegoso. Apresentação realizada na Praça do Setor VII G, bairro Cidade Tiradentes. Projeto Circular COHAB`s (2007).

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Foto de Mayara Evangelista

Buraco d`Oráculo: 15 anos de história

Foto de Autor desconhecido

O cuscuz fedegoso, apresentação realizada em frente a Casa de Cultura do Itaim Paulista – Circular COHAB´s (2007).

Público presente durante apresentação d`O cuscuz fedegoso na Praça do 65, cidade Tiradentes – Circular COHAB´s (2007)

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Fotos de Augusto Paiva

Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem

Espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, apresentação realizada no Boulevard da Av. São João (2009).

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Fotos de Patrícia Barcelos

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Fotos de Sueli Kimura

Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, apresentação realizada na Praça do Casarão – Vila Mara, bairro de São Miguel Paulista (2009).

Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, apresentação realizada no Jardim das Oliveiras, Circuito Re-Praça (2010).

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Foto de Patrícia Barcelos

Foto de Romison Paulo

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Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, apresentação realizada em Cidade Tiradentes (2009).

Jardim dos Ipês, Circuito Re-Praça (2009).

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Foto de Rocco

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Foto de Ana Claudia Jathay

Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem na I Mostra As Marias de Teatro de Rua, S. B. dos Campos/SP (2011).

Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem no V Festac – Festival de Teatro do Acre, Rio Branco/AC (2012).

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Fotos de Romison Paulo

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Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, apresentação realizada no Assentamento Milton Santos (2013).

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Fotos de Patrícia Leal

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Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, apresentação realizada no distrito de Cruz das Posses, Sertãozinho/SP. Projeto Ser TÃO Ser pelo sertão paulista (2013).

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Fotos de Patrícia Leal

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Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, apresentação realizada no distrito de Cruz das Posses, Sertãozinho/SP. Projeto Ser TÃO Ser pelo sertão paulista (2013).

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Foto de Romison Paulo

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Foto de Rocco

Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, apresentação realizada na Praça do 65, bairro de Cidade Tiradentes (2013).

Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, apresentação realizada na I Mostra Cia. As Marias de Teatro de Rua, S. B. do Campo/SP (2011).

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Foto de Romison Paulo

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Foto de Piu Dip

Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, apresentação realizada no Circuito SESC de Artes – 2012.

Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, apresentação realizada na Praça do 65, bairro de Cidade Tiradentes - 2013.

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Fotos de Romison Paulo

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Fotos de Rocco

Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, apresentação realizada na Praça do 65, bairro Cidade Tiradentes (2013).

Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, apresentação realizada na I Mostra Cia. As Marias de Teatro de Rua, S. B. do Campo/SP (2011).

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Agradecimentos

Em 15 anos de trajetória são muitas as pessoas que contribuíram para chegarmos até aqui. Teríamos que escrever uma enorme lista para agradecermos um a um, e mesmo assim, correríamos o risco de deixar alguém de fora. Portanto, para não correr este risco, o fazemos de uma forma geral, agradecendo aos grupos parceiros, aos familiares, aos ex-integrantes, aos profissionais que nos acompanharam e acompanham, aos amigos e companheiros de jornada, aos companheiros que partiram e, principalmente, as comunidades que sempre nos receberam e recebem de braços e peitos abertos. Que todos, ao lerem esta publicação, sintam-se contemplados neste agradecimento e tenham a certeza de fazerem parte desses 15 anos de história.

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Miolo impresso em Off Set 90g e capas em Supremo 250g

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REALIZAÇÃO

Buraco d’Oráculo PELAS RUAS DESDE 1998

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