Caderno de Trabalho II – relatos sobre o projeto15 Anos:
Buraco na história - revisitar os caminhos, fortalecer as pontes. Elizete Gomes, Edson Paulo e Lucélia Coelho (Org.)
Caderno de Trabalho II – relatos sobre o projeto15 Anos:
Buraco na histĂłria - revisitar os caminhos, fortalecer as pontes.
Organização: Elizete Gomes, Lucélia Coelho e Edson Paulo Souza Revisão: Rodrigo Reis Editor de Arte e diagramador: Mao Santana (powerblack.com.br) Buraco d`Oráculo: Edson Paulo Souza, Heber Humberto, Lu Coelho e Romison Paulo Colaboradores: Cleiton Pereira, Daniela Landin, Eric d`Avila, Galpão da Lua, Givanildo Manoel (Giva), Jussara Trindade, Nataly Oliveira, Osvanilton Conceição, Pedro Bomba, Rodrigo Luiz, Guto Nunes, Luciana Yumi, Luana Csermak e Idevanir Ribeiro
buracodoraculo.com.br facebook.com/groups/buracodoraculo (11) 98152-4483 - 2558-2598 edsonpauloburaco@gmail.com
ISSN 2316-3119
Esta obra foi produzida com recursos do Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo - Lei 13.279/2012. E faz parte das atividades do projeto 15 Anos: Buraco na história - revisitar os caminhos, fortalecer as pontes. Contemplado na 24ª Edição do programa em 2014.
Editorial
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INTERVENÇÕES DE UM BURACO Intervindo na cidade
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RITUALIZANDO O ORÁCULO Performance e corporalidade do ator/atriz
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Ritos de passagem IMERSSÕES
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PARTILHAS DE VIDA: no canto e no silêncio, no ofício nosso Alargar a compreensão
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Buraco 15 Anos: rindo a verdade é dita Tecituras entre (re)existências, (re)encontros e reflexões
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CIRCULAR Re-Praça
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BURACO ABERTO Eu sou o som, que flui, voa sepenteia e morre
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Porosidade do tempo Ser ou não ser
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Caí no Buraco O QUE NÃO QUER CALAR
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A Res(EX)istência nas ruas ESTADO: Ontem e Hoje, A Violência Permanente!
80 84
Ocupa(ação) Casarão
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O Cuscuz Fedegoso no Parque Cruzeiro do Sul – Circuito Re-praça (2015) – Foto: Idevanir Arcanjo
Oswald de Andrade
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“A gente escreve o que ouve, nunca o que houve”
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EDITORIAL
Ao propormos um projeto, e o intitularmos “15 Anos: O Buraco na História – revisitar os caminhos, fortalecer as pontes”, não tínhamos a dimensão do quanto isso atravessaria a nossa história. Começamos de uma forma e terminamos de outra, modificados, perfurados pela própria história revista. Prestes a entrar na maturidade dos 18 anos, vivenciamos um rito de passagem. Compartilhamos nesta publicação alguns momentos ritualizados durante os 18 meses de projeto: Imersões, performances, trocas, ações (ora teóricas, ora prática) tão misturadas com nossa própria vida. Celebramos tantos acontecimentos neste caderno-memória. Memória que se faz com a história vivida. Nós nos perdermos nos caminhos traçados para nos reencontrarmos. Com o comprometimento de quem sabe o que quer, não nos desviamos de nosso foco, e esse foi o ponto fundamental deste projeto feito por escolhas. Escolhas necessárias a continuidade, nos revimos e nos revemos quantas vezes for necessário para continuarmos. Buraco d’Oráculo - 2015
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INTERVINDO NA CIDADE
A rua é considerada, por muitos fazedores de teatro de rua, como um espaço de disputa de diversos seguimentos: pelo espaço político que ela representa, pela forma estratégica de atuação, ou até mesmo pela concorrência sonora. Neste campo torna-se necessário cada vez mais fazer escolhas de formas de atuação que utilize de recursos de outras linguagens artísticas para que assim a manifestação da rua se instaure de forma que o teatro seja instrumento de interlocução com os transeuntes. O Buraco d’Oráculo viu possibilidades de ampliar suas experiências de atuação na rua ao lançar um olhar para o estudo de intervenções/performance, que neste projeto teve como tema norteador a liberdade e/ou falta de liberdade. Isso levou a pensar o período do regime civil-militar e o que possa ser considerado seus resquícios. Tendo, assim em mãos, um conteúdo e uma forma para impulsionar as nossas criações. Por fazer parte de movimentos que reuni coletivos de teatro, como a Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR) e Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (MTR-SP), nos aproximamos também de outros movimentos de ações política de reivindicações sociais. E sempre deixamos nossas produções artísticas à disposição para participar de ações em movimentos, seja em programações ou em manifestações. As construções elaboradas neste projeto foram convidadas a integrar ações de manifestos com os quais dialogamos. Destacamos aqui três momentos importantes dessas atuações em que levamos o fruto dos estudos sobre performance/intervenção – esses nos valeram como experimento de novas formas de atuação na rua, potencializando o nosso teatro. A primeira ocorreu em 02 outubro de 2014, durante o Ato em memória ao massacre do Carandiru, que lembrava os
111 presos mortos em 1992. Convidados pela organização do Ato, levamos uma alegoria que unia figuras presentes em dois trabalhos anteriores do grupo, que foram re-significadas surgindo uma alegoria composta por um pernalta (ator em perna-de-pau) vestido uma saia estampada com diversas logomarcas, representando a mídia e a sociedade de consumo, e com uma máscara do governador do Estado de São Paulo Geraldo Alkmim. Ela conduzia figuras presas por cordas no pescoço, vestidos com máscaras de cachorros, representando os cães de guarda do estado, a polícia. A aceitação por parte dos movimentos organizadores foi imediata, esta alegoria performática e interventiva tornou-se a “comissão de frente” do ato. Por meio deste trabalho fomos convidados pelo Coletivo de Galochas a compor o ato em protesto aos 43 estudantes desaparecidos na cidade de Aytnznapa, México. A intervenção ocorreu em frente ao consulado mexicano, e contou com a presença dos grupos de teatro Coletivo de Galochas e Parlendas – e com o apoio dos movimentos Casa Mafalda, FUMA, Rede 2 de Outubro, o MPL, Frente de Esculacho Popular e o Instituto Praxis. Mais uma vez a alegoria criada para o ato de 02 de outubro se fez presente. Dessa vez ela conduzia 43 atores encapuzados com sacos pretos, que representavam os 43 estudantes desaparecidos, e ao final jogava tinta vermelha em todos como se os metralhassem. Mesmo em um dia de chuva o ato teve força, deixando simbolicamente toda a calçada da embaixada banhada de vermelho. O que representava não só o sangue dos estudantes mexicanos, mas também os dos presos no Carandiru, o do Amarildo, os dos filhos das mães de maio e de tantos outros derramados.
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Pág09: Intervenção Ato 02 de Outubro em memória aos 111 presos mortos no massacre do Carandiru” – Atores: ao fundo Thiago Thalles e no primeiro plano Amanda Nascimento. Em ação organizada pelo Coletivo Desentorpecendo a Razão – DAR.
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Outro momento que nos fizemos presente foi o caso que envolveu um estupro em uma cabine de recarga de bilhete único, na estação República do Metrô. Sensibilizados pela causa, atendemos ao convite de um grupo feminista que fez várias ações de repudio a violência contra a mulher. Juntos ao sindicato dos metroviários, protestamos contra a terceirização aprovada pelo Projeto Lei (PL) 4333/04 que libera a terceirização e fere as leis trabalhistas. Neste ato, tingimos de vermelho as mãos e deslizamos pelo corpo que estava envolvido com tecidos brancos. Os tecidos eram faixas utilizadas no espetáculo “Ópera do Trabalho” que tem estampas, frases e imagens de protesto a violência contra a mulher. Ao final, lemos o poema “Os Ombros Suportam o Mundo” de Carlos Drummond de Andrade. Ao pensarmos ações que resultam do estudo e experimentos performáticos, vimos que qualquer espaço da cidade apresenta possibilidades de atuação, como um grande palco, um lugar que ultrapassa os limites da relação ator/plateia. Com este pensamento outras intervenções foram criadas, coletivamente ou como proposta individual, e passaram a interagir com a cidade.
Edson Paulo1
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Edson Paulo: Ator, arte-educador, integrante fundador do Buraco d`Oráculo.
Com o objetivo de trabalhar os elementos da performance a partir da corporalidade do ator/ atriz, iniciamos nossos estudos teóricos e práticos. O conteúdo contava com: Os elementos da “performance arte”; Os princípios da “teoria da performance”, a partir das proposições de Richard Schechner e da antropologia cultural - Franz Boas, Victor Turner, C. Geertz e Anold van Gennep, entre outros; Performance como resistência social e questões de gênero e Práticas de intervenções cênicas em espaços abertos e públicos. Nossos encontros com o tema da performance tiveram início com a fundamentação teórica, por meio de palestras, debates, círculos de conversa e exposições dos integrantes do grupo. O assunto foi divido em dois blocos: “Performance Arte Brasil e Mundo” com alguns expoentes marcantes e “Estudos da Performance” com alguns antropólogos mais significativos para a nossa pesquisa. Concomitantemente aos estudos teóricos, algumas práticas aconteceram, como: atividades coletivas que levam ao estado cênico; práticas com leques que colocam o corpo em estado de atenção; jogos corporais ritualizados; intervenções cênicas em diversos espaços da cidade, entre outras ações. A primeira intervenção cênica foi proposta pelo grupo e pelo Eric, responsável pelo preparo vocal, que se nominou “interferência cênica com sinos no metrô e na CPTM”. Após a vivência, houve uma rica reflexão a respeito de possíveis estados corporais que a performance coloca aos atores enquanto performer.
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PERFORMANCE E A CORPORALIDADE DO ATOR/ATRIZ
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O leque
Ritos, cerimônias Xamanismo
erupção e resolução da crise performance
performance na vida cotidiana, esportes, entretenimentos
jogos
processos do fazer artístico
ritualização
performance
Elizete Gomes2
Imagem do Leque. (LIGIÉRO, 2012, p.17) LIGIÉRO, Zeca. Org. Performance e Antropologia de Richard Schechner. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012.
Elizete Gomes é Diretora, atriz e professora de teatro. Mestre em Educação e atualmente leciona na UNISO – Universidade de Sorocaba. Coordenou trabalhos corporais para o grupo Buraco d`Oráculo, e neste projeto foi responsável pelo estudos da performance.
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A segunda intervenção foi uma prática de Teatro Invisível, de Boal, em diversos lugares da cidade de São Paulo. Após esta prática abriram-se novas perspectivas para a investigação do estado cênico do performer. Após estas interferências aprofundamos a busca de estados cênicos por meio de encontros fechados movidos por “Ritos de Passagem”, que foram propostos por cada integrante do grupo. Os encontros visaram o estudo de diversos conceitos performáticos, como por exemplo: colagem, embodiment, atravessamento corporal, corporalidade, corpo-memória, liminaridade, assemblage, interdisciplinaridade, musicalidade, entre outros. Esta dinâmica, de ‘Ritos de Passagem’ nos auxiliou em cada encontro de nossas investigações práticas e teóricas. Os ritos foram enriquecidos pela contribuição das outras áreas de trabalho do grupo como a musical (propostas pelo Éric D’Ávila e pelo Celso Nascimento) e da formação política (proposta pelo Scapi), que sempre reverberam em nossas práticas e falas. Acredito que os objetivos propostos para estas vivências foram alcançados com muita amplitude, o que nos colocou em outra (nova) perspectiva de trabalho, muito propositiva para futuras produções cênicas e intervenções urbanas de caráter político.
RITOS DE PASSAGEM
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Encontro sobre o estudo da performance sob a coordenação de Elizete Gomes. Foto: Romison Paulo.
CONVITE INICIAL AO ‘RITO DE PASSAGEM’ Antes de iniciarmos nossas experiências com os Ritos de Passagem tivemos um encontro fundamental para a experimentação corporal, com foco no reconhecimento do ‘estado’ do corpo cênico, pronto para os futuros ‘atravessamentos’ que as vivências performáticas provocariam em nós. Preparação corporal: Alongar; Tonificar; Flexibilizar e Relaxar. Sequência seguinte: caminhar e domar a ansiedade; centro do corpo erradia energia na caminhada; o espaço erradia energia para o corpo (nesse momento já estávamos com caminhadas de todos os tipos: eixos e equilíbrios diferentes); respiração interfere no caminhar (diversos modos de respirar). No decorrer do exercício, deixar a memória ‘surgir’ e começar a estimular essa memória pessoal/coletiva. Acrescentar as TENSÕES (ainda na caminhada): alongamento; contração; pressão; torção; expansão; flutuação; frouxidão; retenção. ‘DEIXAR’ explodir a palavra/som/ruído.
Onde Rito de transferência
Personagem Materiais Questões
Ação
Sala de ensaio Consciência corporal - estado performático Sair do estado mecânico, alienado, para (re) encontrar o seu interior, mas manter-se ao mesmo tempo conectado com o mundo externo. Você mesmo Lençol, malha, linhas, instrumentos musicais, vendas, 1 flor Qual é a sua busca? Que sons têm a sua busca? Qual é a fala que aproxima dessa busca? Que corpo tem essa busca? Há tensões? Fases do rito
Integração: • •
Círculo, silêncio, olhares; Respiração normal até ofegar - flexionando os joelhos na medida em que a respiração se
• • • •
altera, ao final o tronco está inclinado à frente - aumento respiratório total/limite; O círculo começa a girar - sons naturais - não tribal, até chegar ao extremo e cair; 2 pessoas são ‘amarradas’ no lençol (reagem a isso) o grupo resiste; Quando o grupo amarrar gritos uníssonos; Não resistir corporalmente, ao terminar todos terminam deitados no chão.
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Roteiro de trabalho - nosso primeiro rito de passagem
Separação:
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Corpo vai se recuperando, levantando (seguem seu subtexto) qual é a minha busca? Com que olhar eu busco?; Cada um a seu tempo, pegar a sua flor, colocar em linha reta, em paralelo com as outras formando uma linha na saída da sala (porta); Corpo para na parede oposta a da flor; Manter contato consigo mesmo (5 min.); girar e vai em direção à flor (não movimento) - olhar para si - ao som do sino em caminhada (20 min.); Sons da caminhada, quais são os seus sons?; Os 2 do lençol saem e fazem o mesmo percurso da flor.
Separação: • • • • • •
Entre/lugar: Chegar na flor - plano alto; pegar a flor com emoção que encontrou o que busca (não movimento 5 min.); Tocar na flor emoção deve aparecer/ que sensação é essa do encontro; As relações com a flor - sua intensidade (5 min.); Sino encerra - vai para o chão; Retomar as sensações - (retomar em 5 min.).
Ato 01 - Preparação Um exercício de oposições feito com todos deitados no chão, que são conduzidos, inicialmente, a perceber o corpo tocando o chão, quais partes tocam, o que mais tem contato com o chão, que partes tocam diretamente, o que há entre o corpo e o chão, como sente a pele, os músculos. Sentir cada vez mais preso ao chão, como se houvesse garras, fios, pressionando o corpo ao chão. Aos poucos sentir outra força puxando para cima, como se fosse arrancar o corpo do chão. Seguindo a condução aos poucos vai cedendo a força que puxa para cima, até que numa explosão levanta-se. Ainda como preparação, ao levantar do chão por um impulso iniciamos um bate-cabeça (Headbanging: tipo de dança, que consiste em movimenta-se violentamente ao ritmo da música, mais comum ao metal, mas também aos derivados do rock`n roll em geral), ao som de Holinday In Cabodia, música dos Dead Kennedys. Durante o último solo de guitarra, alguém previamente combinado, lê a tradução da música: Férias No Cambodia Então você foi para a escola por um ano ou dois E acha que já viu de tudo No carro do papai pensando que vai longe Volte pra casa seu filinho de papai, não rasteje Toca jazz pra se mostrar seu otário No seu estéreo cinco estrelas Dizendo que sabe como os negros sentem frio E que a favela tem tanta alma É hora de provar o que você mais teme A guarda direitista não irá ajudá-lo aqui Aguente, meu querido Aguente, meu querido
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RITO DE PASSAGEM - Edson Souza
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Encontro sobre o estudo da performance sob a coordenação de Elizete Gomes. Foto: Romison Paulo.
São férias no Camboja É difícil, garoto, mas é a vida São férias no Camboja Não se esqueça de arrumar uma esposa Você é um star-belly sneech Você suga como uma sanguessuga Quer que todos ajam como você Beijando bundas como uma puta Então você pode ficar rico Mas seu chefe fica mais rico que você Escravo dos soldados até você morrer de fome Então sua cabeça será espetada numa estaca Agora você pode ir aonde as pessoas são especiais Agora você pode ir aonde elas conseguem as coisas O que você precisa, meu filho... O que você precisa, meu filho... São férias no Camboja Onde as pessoas se vestem de preto São férias no Camboja Onde você beija bundas ou se ferra Pol... Pot Pol... Pot Pol... Pot Pol... Pot E são férias no Camboja Onde você faz o que lhe mandam São férias no Camboja Onde as favelas possuem tanta alma Pol Pot...” https://www.youtube.com/watch?v=1Rm-Fu8rBms
O comer e o beber são uma das manifestações mais importantes da vida do corpo grotesco. As características especiais desse corpo são que ele é aberto, inacabado, em interação com o mundo. É no comer que essas particularidades se manifestam da maneira mais tangível e mais concreta: o corpo escapa às suas fronteiras, ele engole, devora, despedaça o mundo, fá-lo entrar dentro de si, enriquece-se e cresce às suas custas. O encontro do homem com o mundo que se opera na grande boca aberta que mói, corta e mastiga é dos assuntos mais antigos e mais marcantes do pensamento humano. O homem degusta o mundo, sente o gosto do mundo, o introduz no seu corpo, faz dele uma parte de si.” BAKTHIN, Mikail.
Ato 03 - Trocar de pele. Depois da retirada da cesta todos andam pela sala. Procurando tranquilizar a respiração, buscando acalma-se. Considerando que a nossa roupa é a nossa pele, ela é possível de troca. Andando pela sala, buscando trocar olhares, em total silêncio, fazer 4 troca de peles. As trocas poderão ser das peles/ roupas que recebi, ou das próprias que me revestem. Sentir se o que recebe me cabe, como uso. andar com essa nova pele. Ato 04 - Lava-pés Após as troca de peles, dividido em dois grupos, inicia-se o ato de lavar os pés. Durante a lavagem, e lido o texto deixado sobre a cadeira. Os textos têm diferentes conteúdos. Deve haver um rodízio para que todos lavem os pés de todos e que leiam todos os textos.
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Ato 02 - Comer, devorar. Ao finalizar a leitura da tradução de Holiday in Cambodia. É colocada uma cesta com alimentos e bebida, que deverá ser comida por todos em 3 minutos. Ao termino de 3 minutos a sexta é retirada.
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Ilustração sobre os ritos de passagem feita por Nataly Oliveira.
Buscas: Escuta sensível Consciência corporal individual e em grupo Criar algo junto, percepção de parte do processo (algo aparece porque vou para ação) Não quero tempo do pensar (ação o tempo todo) A sala de ensaio está preparada com o tatame e aromatizada suavemente. Início. O café é servido na garagem que acomoda alguns bancos e placas de EVA para descanso. Após a leitura de um trecho retirado do livro ‘Mito e Corpo’ de Stanley Keleman em uma conversa com Joseph Camphell. O texto faz referência a jornada do herói. O acesso para a sala de ensaio está fechada por um tecido preto onde está escrita uma mensagem que representa o portal do grupo. Pergunto se todos se todos querem passar pelo portal, se estavam prontos para seguir em frente... A travessia deveria ser feita com um companheiro. No caminho há a presença de elementos que representam: a Terra (piso recoberto por terra preta), a água (vários potes com água aromatizada), o fogo (velas e penumbra) e o ar (aromas, cheiros, incensos, ervas, flores). Na passagem era possível ler frases do livro citado e outras frases sempre afinando o ouvido para voz mítica do corpo: O QUE BUSCAMOS?... POR QUE VOLTO?... O QUE BUSCAMOS VEM DE NÓS OU DO OUTRO?... COMO USAMOS NOSSO CÉREBRO?... NOSSA PELVE?... OS NOSSOS BRAÇOS?... VIVEMOS NA IMAGEM DO CORPO, NÃO NO CORPO... O QUE ME TRAZ AQUI?... E, POR QUE EU VOLTO? 3
Lucélia Coelho: Atriz, pedagoga e brincante. Integrante é uma das fundadoras do Buraco d`Oráculo em 1998.
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RITO DE PASSAGEM - Lucélia Coelho3
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No percurso o som reproduzido era de um ensaio da Ópera do Trabalho (ensaio em que todos falavam ao mesmo tempo, ninguém se ouvia, porém todos opinavam assim mesmo. O áudio também foi analisado mais a frente em uma imersão na Aldeia Casa Viva com Jussara Trindade). Ao finalizarmos o percurso do coredor, chegando a porta de entrada da sala de ensaio, lavamos nossos pés em água morna e aromatizada para finalmente entrar no ‘novo ambiente’, na sala de ensaio ‘renovada’. Iniciamos então nossas atividades corporais, deitados em um exercício de Eutonia (Prática corporal criada e desenvolvida por Gerda Alexander). A palavra Eutonia significa tensão em equilíbrio, tônus harmonioso (do grego Eu: bom harmonioso e do latim tônus: tensão). Conduzi a atividade até passarmos para a dança dos ventos, momento em que cada um tinha um tecido a sua escolha. Consciência corporal: começa com o foco na respiração. Buscar movimentações mínimas em relação ao chão, mas todo movimento deve partir dos quadris. Nosso eixo deve chegar a ficar em pé. Som de tambores. Todo este momento é individual até que começam as relações em grupos (movimentação dois, três, todos, agrupam, separam, encontram os tecidos)
A partir daí a condução seguiu com a Elizete Gomes. Ao fundo a música era ‘The End’ do ‘The Doors’, chegamos até os estados de exaustão e êxtase. Seguimos então para a produção do cookie em dupla. Ao fundo, um poema de Mia Couto, narrado na voz de Luciano Weiser, do grupo Pernaproar de Canoas/POA, que construiu uma belíssima paisagem sonora. Levantamos mesa rápida e tranquilamente, os materiais foram colocados sobre ela. Passamos então, a produzir, juntos, uma receita: pegue uma receita de cookies, rápida, fácil, separar os ingredientes em duplas, Fazer é a ideia e todos provam no final. Levam 10 min. para assar.
Ilustração sobre os ritos de passagem feita por Nataly Oliveira.
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Enquanto esperávamos os cookies assarem no forno, o ambiente se enchia com este novo aroma (chocolate e frutas secas), escrevemos sobre o que vivenciamos, sobre sensações corporais causadas pelas propostas individuais e coletivas e, assim que todos os biscoitos ficaram assados. Compartilhamos nossas sensações e os quitutes, ainda quentes, com o chocolate derretendo. Ainda, houve quem quis levar os biscoitinhos para casa.
RITO DE PASSAGEM - Thiago Thalles4
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24 O candidato: O coletivo Personagem: Você Questões: Porque trabalhar em coletivo? Qual a minha escuta? Qual a minha generosidade? Qual a minha doação? O que eu proponho? O que só eu posso fazer? No que eu não posso contribuir? O que nós podemos fazer juntos? Qual a ação coletiva?... Ação: Fase do rito: 1º Movimento – 16:15 – arrumar o espaço 2º Movimento – 18:00 – Dormir 20 minutos 3º Movimento – 18:20 – Preparar o café 4º Movimento – 18:45 - o café 5º Movimento – 19:20 – Preparação para entrar no espaço de criação. • Higienizar-se • Desligar os celulares • Trocar de roupa • Silenciar 6º Movimento – 19:27 – A escolha de entrar 7º Movimento – 19:30 - Limpeza do espaço 8º Movimento – 19:40 – ‘presentificação’ • Escolher um lugar no espaço e sentar com a coluna ereta em uma posição confortável. • De olhos fechados respirar até ceder ao chão, ouvir o espaço, enfeitar de você ao universo. Thiago Talles: Ator. Elaborou este rito de passagem durante o processo de estudo sobre performance/intervenção, coordenado por Elizete Gomes durante a execução do projeto.
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Iniciar o deslocamento, a partir do centro, mover a partir de partes pouco usadas do corpo, testar apoios pouco usuais, equilíbrios precários, ritmos, sons, planos, etc. 9º Movimento: 20:10 Abraçar alguém verdadeiramente 10º Movimento: 20:12 Contar um segredo 11º Movimento: 20:15 Ir embora / Segurar 12º Movimento: 20:20 Tapas 13º Movimento: 20:22 Abraçar verdadeiramente (eu te amo) 14º Movimento: 20:25 Ações Cantar uma música; Coletivamente pular; Tirar a roupa; Alimentar a fogueira; Gritar; Correr; Tocar; Dançar uma dança esquisita; Seguir alguém; Fazer a ola; Distribuir histórias; Alimentar a fogueira; Coletivamente dançar; Imitar alguém; Ouvir uma música no celular; Florescer; Assoprar até alguém cair; Dormir; Desenhar um quadro; Voar; Gritar no ouvido de alguém dormindo; Coletivamente fazer montinho em alguém; Coletivamente fazer uma coreografia (mínimo 3 pessoas, coreografia com inicio meio e fim); Pular corda (2 pessoas batem); Alimentar a fogueira; Montar uma versão da linha da evolução de Darwin; Brincar de 2 ou 1 apostando um “pintuin”; Ser livre como uma pluma ao vento; Fingir um sotaque e conversar com alguém que também está fingindo um; Montar uma pirâmide humana; Ouvir; Brincar de estrela nova cela;Coletivamente fazer um cânone de movimentos; Montar uma fotografia; Verticalizar; Coletivamente jogar alguém para o alto e pegar; Coletivamente fazer um losango; Minha sogra é?; Dançar: Somos todas prostitutas; Torcer; Alimentar a fogueira; Polemizar; Fazer briga de galo; Sortear um ganhador; O que o peixe faz no seu cu?; Poetizar; Amarrar alguém no teto; Atrapalhar quem toca; Perfumar; Jogar vôlei imaginário (times de 2); Coletivamente caminhar na lua; Coletivamente brincar de vivo ou morto; Coletivamente fazer um baile funk; Jorrar vida; Alimentar a fogueira; Tomar um bonde (James bonde); Coletivamente fazer a dança da chuva; Fazer
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os tomates atravessando a rua; Passar o beck; Fazer a egípcia; Dar um abraço coletivo; Vomitar; Fazer a chuca; Sensualizar (mesmo!); Rir até ficar triste; Respirar profundamente; Observar do “espaço do observador”; Fazer o jogo do rabo; Fazer espelho; Chorar de tristeza ou de felicidade; Fritar; Alimentar a fogueira; Fazer a cor verde; Rir até ficar feliz; Fumar um cigarro; Foi válido; Dar um banho de agua fria em alguém (pedir para Thiago encher o balde outra vez); Ler para alguém; Dizer para alguém o que ele merece ouvir; Chover; Uma mentira contada mil vezes vira verdade; Parar coletivamente; Passar a mão no sexo de alguém; Rir de algo realmente engraçado; Ignorar alguém; Fazer em um corpo (pode ser o seu) um desenho com pingos de vela; Coletivamente empurrar a parede; Uhun! Senta lá Claudia; Trocar todos os tipos possíveis de cumprimentos em um minuto; Desenhar uma amarelinha, ou parte dela; Alimentar a fogueira; Procurar alguém; Coletivamente contar de 0 à 50; Esconder-se; Fazer uma tatoo em alguém; Beijar; Esconder alguém
16º Movimento: 20:50 – pegar um canudo de massinha e fazer um totem deposite tudo que você tem de ruim e de bom, tudo de lindo e de feio, ame-o como ele é. 17º Movimento: 20:53 O sacrifício: Queimar o totem na fogueira com o Canto: Nos raios do astro rei / Eu vi nascer uma fogueira E dar a luz a uma nobre ave / Com penas douradas reluzentes como ouro No céu azul seu voo de liberdade anuncia / Um novo tempo, uma nova era É hora de morrer e morrendo renascer / É hora de morrer e morrendo renascer A morte é uma passagem e libertação / A vida é o caminho para a construção
18º Movimento: 20:54 Consumir-se: olhar o fogo 19º Movimento: 21:00: versar com...
Não pensar o corpo é quem conduz... Corra, não pare, não pense demais... GERALDO AZEVEDO
1. Preencher o espaço (vácuo) que existe na nossa menor partícula, menor que é o átomo: morte-átomo; molécula-organela; células-tecidos; órgãos-sistemas; corpos... corpos sonoros... música.... vida. 2. Uma parte o corpo é quem conduz ... dança sonora: Dança Jiboia (Flexibilidade do corpo) - música jiboia branca. https://www.youtube.com/watch?v=ToQanX7WJsE Dançar sentado, os braços e o corpo dança como uma jiboia... Dança Yawara (Força do corpo) - música da onça. https://www.youtube.com/watch?v=oXkvkEG6KrU Dançar sentado, mãos trazendo a força do território para o corpo. Dança do Uirapuru (Grande pássaro) - visão liberdade... https://www.youtube.com/watch?v=7xILB005PTQ Dançar em pé comm os braços como asas Dança Livre... https://www.youtube.com/watch?v=GxgGXzZYIhU Dança da pintura: as pessoas vão se pintar assim como os índios e dançarão uma dança indígena 5
Heber Humberto: Ator e estudante de musicoterapia (2015), integrante do Buraco d´Oráculo desde 2007.
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RITO DE PASSAGEM - Heber Humberto5
Dança do Silêncio Sentar e escolher um símbolo indígena que estará na lousa, imaginando trazer este símbolo para o corpo. Explo.: tambor (qual seu ritmo na vida) Trago o símbolo se achar que estou com ações devagar meu cotidiano, onde é para ser rápido e vice e versa. Esta pratica é para ver o que esta faltando para cada um.
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1. Banhos Sonoros (não pensar em nada, apenas num banho de sons). Nesse momento, o grupo vai se dividi, metade do grupo vai dar o banho na outra metade, que depois de receber o ‘banho sonoro’, vai dar o banho com os instrumentos: Pedras e maracás (2 pessoas); Djemb (2 pessoas) e Apitos de pássaros (2 pessoas). 2. Nascimento do corpo musical: o grupo vai criar uma música a partir dos instrumentos que estarão no espaço, e o grupo vai decidir quando cria a música e quando ele deverá terminar. Heber Humberto, ator do Buraco d`Oráculo, durante imersão sobre Imagem sonora coordenada por Jussara Trindade. Foto: Romison Paulo.
A PASSAGEM DO MOMENTO PRESENTE PARA O MOMENTO PRESENTE Daqui, olho para um momento do passado através de um texto em que relato o processo de elaboração de um rito que propus como parte do projeto. Sei que estou roubando ao reelaborar de um lugar diferente, distanciado. Sei também que a memória é ficção, mas Manoel de Barros já nos salvou com essa: “Tudo o que não invento é falso”. Então, simbóra nessa lembrança-inventada da vida-real ou lembrança-real da vida-inventada. O momento do processo era de Rituais de Passagens. Cada pessoa propunha um, que, tirado de dentro de si, quisesse compartilhar com o grupo. O momento do processo também era da palavra “atravessamento”. O momento do processo também era de relações em transição ou ruptura que de fato atravessavam o processo. Esses três últimos parágrafos repetem palavras, mas não repetem conteúdo, estão se referindo à aspectos diferentes que se acumulam, não redundam. Estava muito inquieta, também com as imersões com Luis Scapi, este educador de classe, que durante três sábados inteiros, em meio à nuvens de nicotina e porradas nas consciências para ver se pegava no tranco, nos trouxe tantos elementos perturbadores e nenhuma resposta. Até hoje, Scapi, você me persegue, sigo concordando e discordando sem fim. Enfim, no meio dessa confusão toda na caxola, comecei a elaborar lá meu ritual. Luciana Yumi: Atriz e arte-educadora. Elaborou este rito de passagem durante o processo de estudo sobre performance/intervenção, coordenado por Elizete Gomes durante a execução do projeto.
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Recorri a um método, pensei numa sequência apoiada nessa fórmula: SEPARAÇÃO ----------------> TRANSIÇÃO ---------------> INCORPORAÇÃO Essa fórmula eu encontrei no artigo da Regina Polo Müller, “Ritual, Schechner e Performance”, texto que fez parte das nossas referências para essa pesquisa. Essa é uma elaboração do Richard Schechner, um professor e pesquisador de Estudos da Performance da universidade de Nova Iorque, do que ele identificou como padrões processuais, tanto do ritual, quanto da performance. Aí eu entendi assim: A Separação seria separar momentos. Quando um acontecimento é importante pra gente, deixamos o que não interessa para aquela experiência de lado, podendo assim, se colocar disponível. A Transição seria a preparação para o novo estado. Uma espécie de aquecimento. A Incorporação seria o ápice do acontecimento. O momento que é fogo e que tem a potencia da transformação. O ponto central. Todos os outros momentos são caminho para esse. Isso tudo aí parece sério, de certa responsabilidade, porque é convidar as outras pessoas à uma experiência profunda. Altamente insegura, fiz, desfiz e refiz várias vezes. Lembrei-me de outras discussões e outras coisas que lemos, tinha um que dizia que a pira da pessoa performer era perder o limite entre arte e vida. Outra conversa era que ritualizamos e podemos ritualizar diversos momentos da vida. Ah peraí..., deixa de besteira e propõe logo essa bagaça! A gente vive tanta ritualização de coisa ruim na vida, não vai ser sua proposta que vai desregular o coco desse povo. É só propor com o coração, né não? Fiz assim: Voltamos todos para rua refazer um trecho de caminho que traçamos todos os dias ao chegar nesse espaço. A Chegada de cada pessoa no espaço. Iniciar sua preparação para o encontro (respiração, alongamento, o que for) e esperar, em trabalho, a última pessoa chegar e se preparar.
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Luciana Yumi, durante apresentação do espetáculo Ópera do Trabalho, Foto: Arquivo.
As Cócegas em uma pessoa por vez. Se aproximar daquele outro corpo, deitado no centro da roda, de maneira divertida, carinhosa e em certa medida, íntima. Cócegas soltam tensões de pontos do corpo (alguém me disse que disse isso o Wilheim Reich, que solta as couraças). É amor e ódio. Provoca e cura. As Brincadeiras, o Rouba Rabo e o Esconde-esconde. Ficar atrás das pessoas pra pegar um pano pendurado na bunda dela. Ganha quem tem mais rabo. E, depois, voltar à rua, endereço de nosso trabalho, e fazer uma coisa muito séria que é se esconder nos postes, carros, árvores, portões, telhados. Sentir adrenalina quando se é quase descoberta ou, numa manobra arriscada, mudar de esconderijo. Procurar em cada canto daquela rua e xingar porque tem gente que vai se esconder no espaço fora do combinado. E no fim, O Jongo: pela necessidade de comunicação, em festa, de morte e fuga, ataque e defesa, de nascimentos e conquistas. Entre pessoas que se reconhecem como iguais. Nunca se esquecendo da ancestralidade e agindo com companheiros no tempo presente, de maneira cifrada e estratégica. Agora que o texto ficou lindo, pode publicar!
RITO DE PASSAGEM - Daniela Landin7 32 Caderno de Trabalho II
Título: “A experiência com a morte como uma forma de celebração da vida: a escuta e o dizer” Epígrafe: “Nesta vida / morrer não é difícil. / O difícil / é a vida e seu ofício” (Maiakóvski)
“Começo do começo” – apresentação do roteiro, título, dedicatórias e epígrafe... Dedicatória 1: A todos aqueles que não estão mais entre nós, por diferentes motivos; Dedicatória 2: A todos aqueles virão, depois de nós 1. Todos deitados. Atenção para a respiração. “Exercícios estúpidos”: Paisagem sonora interna e externa (escuta de si, dos outros, do espaço e do entorno) – registro em escrita automática; Duplas. Tema da conversa: Como comecei a fazer teatro? Por que continuei a fazer teatro? Roda: apresentação como se fosse o outro, em 1ª pessoa; Contar até 20 – um por vez; Palmas – sentido horário: na segunda vez, as duas primeiras pessoas batem juntas, na terceira, as três primeiras... até que todos estejam batendo uma única palma, juntos; Sobrenome do outro. Quando é dito, a pessoa à esquerda diz “sim”. Depois, a da direita. Dois instrumentos: um indica que a pessoa da esquerda deve responder e o outro indica que a da direita deve responder; Sobô Kalisso – diálogo em que uma pessoa diz a primeira palavra e a outra, a segunda. 2. Partilha dos materiais que têm um significado de MORTE para cada um e organização de cortejo lúdico-fúnebre. Quais estratégias poderiam ser utilizadas para entrarmos em, pelo menos, uma casa? Daniela Landin: É formada em Licenciatura em Arte-Teatro pelo Instituto de Artes da Unesp (Universidade Estadual Paulista), integrante do Coletivo Cafuzas e participa do projeto virtual Cena de Rua (cenaderua.wordpress.com).
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4. Fogueira, perto da sede do grupo. Oferta ao fogo de pelo menos um dos materiais (palpável ou não palpável).
Ilustração sobre os ritos de passagem feita por Nataly Oliveira.
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3. Caminhada em silêncio até o grupo (sem combinar) chegar a uma casa. Tentativa de entrada nesta casa para a partilha dos materiais com os residentes. (Morte como assunto de caráter público. O debate sobre a morte pode ser um debate público. Há alegria no luto? É possível celebrar a vida na experiência do luto?).
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Partilhas de vida – no canto e no silêncio, no ofício nosso Gracias a la vida que me ha dado tanto Me ha dado la risa y me ha dado el llanto Así yo distingo dicha de quebranto Los dos materiales que forman mi canto Y el canto de ustedes que es el mismo canto Y el canto de todos que es mi propio canto (Violeta Parra)
Na noite da terça-feira do dia 17 de junho, encontramo-nos em frente à plataforma 68 da rodoviária do Tietê. Malas, bolsas, conversas, risadas e tudo em meio a alguma expectativa em torno do que nos aguardava em Teresópolis, numa certa “casa viva”, no meio da serra, sobretudo por parte daqueles que não conheciam o trajeto e o local. Uma viagem que atravessou o final da noite, a madrugada e o início da manhã. Por fim, chegamos à cidade, recepcionados por um frio que congelava os pés. Pelo vidro da van que nos transportava até a Aldeia Cultural Casa Viva, era possível observar uma cidade que amanhecia lentamente sob um céu nublado. E toca subir a serra. O caminho, sinuoso e algo íngreme, alimentava o desejo pela chegada. E enfim, ei-la: imersa em um silêncio incomum – principalmente para habitantes de uma cidade violentamente ruidosa como São Paulo – e voltada para uma paisagem caracterizada por diferentes matizes de
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(Relato da imersão com foco em musicalidade, realizada na Aldeia Cultural Casa Viva, em Teresópolis, de 18 a 22/06/14)
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verde, a casa já começa por nos oferecer uma experiência sensorial peculiar. De dentro, é possível sentir a serra invadindo os aconchegantes cômodos, através das janelas de vidro, e também os nossos sentidos. Lá fora, as redes convidam para uma contemplação meditativa da vista e do nosso estado de espírito. Abraços e beijos de boas-vindas; um café da manhã é oferecido. Em uma das mesas, entre um e outro gole de café com leite, comento com as pessoas o quanto estar ali me parecia ser um grande privilégio, pensando nos sentidos que a palavra evoca. Atendo-se apenas ao âmbito da categoria teatral do município de São Paulo, quantas pessoas teriam disponibilidade aliada a condições materiais de sair da cidade no meio de uma semana de junho para uma imersão por cerca de cinco dias em prol da própria formação artística no que se refere à musicalidade? A experiência que estava por começar ali já se configurava conscientemente em rara oportunidade. Depois de breves acordos sobre horário e rotina com a coordenadora da imersão, a musicoterapeuta e pesquisadora de teatro de rua Jussara Trindade, logo fomos conhecer o espaço que seria nosso local de trabalho nos próximos dias, ao lado da casa onde dormiríamos e nos alimentaríamos (e não só de comida). Lá, fizemos exercícios de relaxamento, identificando os pontos de tensão no corpo e os limites para o alongamento, e pausamos para uma conversa. Essa já era uma pista do tipo de trabalho que realizaríamos, pautado no corpo e na percepção de si e do outro. Almoço e rápido descanso. Aliás, um aparte sobre as refeições: eram todas preparadas pela Roseli, que esteve presente durante toda a imersão, cuidando de forma sempre muito atenciosa da nossa alimentação. À tarde, Jussara propôs exercícios relacionados ao tempo interno e ao ritmo, já com a inserção de termos ligados à técnica musical, como “semínima” e “colcheia”, por exemplo. Num segundo momento, dispomos no meio do espaço os vários instrumentos musicais que havíamos levado e também outros que estavam ali e iniciamos uma experimentação, tentando redescobrir modos de “tocá-los”, reinventando-os como fontes sonoras e refuncionalizando-os, muitas vezes, numa busca pelo
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espírito da criança que se depara com um objeto desconhecido. Experimentamos, arriscamos, jogamos com os instrumentos e com os sons encontrados por nós e pelas outras pessoas, brincamos e criamos diversas sonoridades inusitadas – sem fala ou qualquer outra comunicação que não aquela produzida pelo encontro dos nossos corpos com os instrumentos. Como contribuir musicalmente com o que estava sendo criado? Como jogar musicalmente com o outro? Como criar em relação à criação da outra pessoa? Como conhecer novamente um violão ou um pandeiro? Como descobrir um instrumento realmente desconhecido? Como existir musicalmente em relação às outras existências musicais? Esta é uma imensa discussão sobre música, teatro e muitos outros assuntos relativos à sensibilidade criativa. Depois de uma conversa sobre ancestralidade, identidade musical e culturas, a experiência foi encerrada (temporariamente, porque deve ter continuado a ecoar nas consciências) com uma roda de música mais reconhecível e de caráter celebrativo. Se não me falha a memória – e este é um registro sujeito a este tipo de falha –, assistimos à gravação da experimentação depois do jantar, o que redimensionou a experiência, que agora está no meu corpo como participante e também como observadora. E nesta noite, outra coisa interessante aconteceu: assistimos à gravação de um ensaio do espetáculo Ópera do Trabalho, em início de processo. A partir disso, conseguimos reafirmar o que já vínhamos percebendo, mas que o registro audiovisual ajudou a elaborar coletivamente, no que se refere a fragilidades da nossa postura em momentos de ensaio, entre outras características do nosso núcleo de trabalho. Foi possível ainda identificar determinadas conquistas em relação ao atual momento do processo de criação e recriação da peça, que não finaliza enquanto continuamos apresentando e trabalhando com o material. O dia seguinte foi dedicado a um trabalho mais explicitamente técnico e que parece ter se configurado naquele que mais trouxe desafios ao repertório e à formação musical de cada um e também o que exigiu mais esforço dos participantes. Os exercícios tiveram como base a percepção e execução de
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notas, a identificação de tons e semitons e a escrita em partitura de notas ouvidas no teclado. O terceiro dia de imersão foi iniciado com a partilha, por parte da Jussara, de algumas referências teóricas importantes para a construção da pesquisa dela acerca da musicalidade do teatro de rua e também especificamente para o estudo em torno da experiência musical ligada a Ser Tão Ser – narrativas de outra margem, outra peça do repertório do Buraco d’Oráculo. Após exercícios em roda ligados às diferentes sonoridades tímbricas e ao método O Passo, foi proposta uma experiência de percepção da “paisagem sonora”, em que caminharíamos coletivamente e sempre em silêncio ao longo de um trajeto determinado, da entrada da casa até um certo ponto do entorno. E partimos. Dessa forma, realizamos o difícil exercício do silêncio (sobretudo para um núcleo de trabalho formado por pelo menos 12 pessoas) e também aquele da percepção, da observação e da escuta. Nesta experiência, pude notar como são belos os diálogos que podem se dar com o outro sem a fala (ou a “palavra de boca”) e como é complexo o trabalho de se silenciar internamente para receber os sons exteriores. Em determinado momento, questionei a mim mesma se havia realmente ficado em silêncio ou se tinha dito algo, sem conseguir discernir a paisagem sonora interna e externa, que, às vezes, misturavam-se, dada a profusão de vozes e ruídos que carregava comigo. Como entrar em contato consigo sem abandonar a companhia do outro? No início, os passos constituíam uma espécie de sinfonia torta e claudicante, os latidos de cachorros e o canto dos pássaros formavam uma trilha sonora bucólica para a nossa performance, mas depois as paisagens vastas nos invadiram tanto (a mim e acredito que também às outras pessoas, pelo o que comunicavam corporalmente) que se tornou difícil, ao menos para mim, discernir som de imagem, e foi quando a noção sinestésica dos termos “paisagem sonora” e “imagem sonora” fez completo sentido. De volta à Casa Viva, e já devidamente alimentados, reunimo-nos na sala, em frente à lareira que à noite nos aquecia, e iniciamos uma partilha de músicas. Cada pessoa tinha levado uma música (ou mais, no caso dos mais indecisos, como eu) como referência significativa na sua formação, subjetividade ou repertório, a pedido da Jussara. E, nesse momento, começamos a trocar essas referências, numa bonita aproximação com o universo do outro. A experiência, também pautada pela escuta e pela reflexão de cada música, foi construída com base em um conjunto sonoro
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bastante polifônico – ainda que muito marcado pela música brasileira e atravessado por registros ligado ao “popular” –, passando por Legião Urbana, Itamar Assunção, Marisa Monte, Tim Maia, Mercedez Sosa, Elis Regina, Raul Seixas, Ney Matogrosso, um coco cearense, Cindi Lauper, entre outros artistas, finalizando com um jongo, executado “ao vivo”, isto é, coletivamente, com a participação dos presentes. Cada compartilhamento era também uma apresentação de si, que comunicava origens, sensibilidades e relações afetivas com a música. Este momento durou grande parte do período da tarde e foi até a noite, cujo início foi anunciado pela última música compartilhada, um ponto de jongo cantado-tocado: “Te afia/avisa o dia/que a noite chegou/A lua girou/a lua é a luz/Vai candiá”. Nesta noite, duas pessoas chegaram à casa: o cenotécnico do Buraco d’Oráculo, Romison Paulo, e um parceiro músico, Robson Toma (conhecido entre nós como China), integrante do grupo Rosa dos Ventos, de Presidente Prudente, que nos auxiliou muito na técnica de som. Por fim, os trabalhos foram encerrados com um ensaio, com foco na musicalidade, do espetáculo que seria apresentado no dia seguinte. E foi: na manhã do sábado, um grupo de atores e atrizes aportou na Calçada da Fama, no centro comercial de Teresópolis, com cenário e instrumentos, alterando o fluxo e a paisagem daquele ponto da cidade. E o espetáculo já estava começando, algumas horas antes do horário marcado. Isso porque a intervenção que realizamos assim que chegamos ao local, com montagem dos painéis cenográficos e da banda, passagem de som, aquecimento, já se configurava em início da relação com o público e com o espaço, momento em que somos observados, dialogamos de diversas formas com as pessoas que por ali passam e criamos uma espécie de performance pré-apresentação. Em determinado momento, um cachorro vai ao encontro de dois atores, que se alongavam no chão, e toma o lugar de um deles. Depois, algumas garotas passam a participar de um jogo de peteca iniciado por outras pessoas do elenco. Um senhor se apóia na mureta que dá para um córrego que passa por baixo do calçadão e começa a observar a passagem de algumas músicas do espetáculo. Com o anúncio no microfone de que a apresentação vai
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começar dali alguns minutos, uma roda inicial se forma e atores passam a entregar o programa para parte do público que, cada vez mais numeroso, assiste ao aquecimento de voz do grupo. E finalmente começa o espetáculo propriamente dito. Já de volta à Casa, no final da tarde, conversamos sobre a experiência da apresentação, com valiosas contribuições de China, Jussara e Licko Turle, professor e pesquisador de teatro, também responsável pela Aldeia Cultural Casa Viva. À noite, demos continuidade, de modo mais informal, à partilha de músicas referenciais para cada um e, mais tarde, um encontro musical com voz e violão foi outro momento de compartilhamento sensível entre os participantes. No nosso último dia de imersão, domingo, assistimos à gravação da apresentação do dia anterior da Ópera do Trabalho e conversamos sobre a experiência como um todo. E iniciamos as despedidas... Como um coro itinerante, partimos do espaço aberto da casa até a cozinha, cantando algo assim: “Desde o tempo em que eu nasci,/Logo cedo eu aprendi/ Cuidar do outro é cuidar de mim/Cuidar de mim é cuidar do mundo/Cuidar do mundo é cuidar de mim”. A homenagem era para Roseli, que tanto cuidou de nós. A emoção transbordava pelas vozes e sorrisos e se estendeu até os abraços de gratidão. Durante o almoço, a notícia de que alguém havia partido... (Mal sabíamos que, na semana seguinte, viveríamos mais uma experiência de luto: o assassinato de uma companheira de teatro de rua – Lua Barbosa, presente!) Depois de um breve passeio-reconhecimento pela cidade, que foi apresentada a nós pelos anfitriões Jussara e Licko, retornamos à Casa Viva para os ritos finais. O primeiro se manifestou em forma de jongo, onde lembramos a morte e celebramos a vida: “Quando alguém vai desse mundo/A gente chora, chora, chora, chora/Quando alguém vem pr’esse mundo/A gente canta/Eu vou, cantar eu vou”. Por fim, o rito da refeição coletiva, compartilhada. A noite ia bonita, estrelada, e foi no escuro de um ônibus que partimos cantando. Gracias a la vida. Daniela Landin
[...] sentados em roda (à medida que os alongamentos chegaram à parte inferior do corpo), as orientações deram lugar ao diálogo, e todos falaram sobre as suas tensões, dificuldades, lesões antigas, encurtamentos musculares, dores, traumas físicos etc. Expliquei a importância de o ator consciente aprender a “relaxar na dor” e a respeitar os próprios limites – e o quanto isso tem a ver não só com o corpo, mas também com a música e o teatro.
A proposta foi trabalhar a partir dos instrumentos musicais acústicos que tínhamos à nossa disposição – flautas doces, tambores diversos, zabumba, caxixi, violão, rabeca, viola de 10 cordas, cítara, triângulos, reco-reco, tauí (instrumento ritual indígena, que consiste num cordão com sementes), pios de pássaros – que foram depositados no chão, no centro do espaço.
Iniciamos uma improvisação livre com as seguintes orientações: não tocar músicas conhecidas; não executar os instrumentos do modo convencional; buscar aqueles que não conheciam ou nunca haviam experimentado deixando fluir a curiosidade da criança; evitar os caminhos fáceis. Todos se entregaram à proposta experimentando timbres. [...] Noutro momento surgiu um som vocal, gutural, que remeteu o grupo a um clima sonoro de profunda ancestralidade e religiosidade (como um mantra budista), pela voz de um dos atores dentro da cavidade do tambor de marabaixo.
No final, intervi (por meio de gestos) conduzindo a improvisação para um único instrumento (a rabeca), e para o aprofundamento dos sons mais suaves e sutis que ficavam geralmente ocultos sob as percussões e timbres de maior intensidade.
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[...] a surpresa da percepção de sons suaves em meio ao “caos” sonoro que se instalou em certo momento, memórias, imagens sonoras que surgiam, impressões, a possibilidade de se criar distintos ambientes - paisagens sonoras - num espetáculo teatral. Discutimos o trabalho em relação a aspectos que pesquisei academicamente (a musicalidade do espetáculo).
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Passamos a fazer jogos musicais em círculo, explorando a improvisação de palmas percutidas e sons vocais/verbais a partir de um pulso marcado com os pés. Depois, esse pulso passou a ser realizado conforme a metodologia de “O passo”, para descansar as pernas (dois passos à frente e dois passos para atrás, alternando as pernas).
A partir de uma brincadeira infantil (Vaca Amarela) como mote para conduzir a uma vivência não-verbal, saímos juntos e em silêncio da Casa Viva, em direção ao platô, que é o terreno mais elevado da área. A caminhada foi bonita, pois o céu estava totalmente aberto e dava uma linda vista para a cadeia de montanhas da Serra dos Órgãos, no horizonte. Ouviam-se os sons dos latidos de cães ao longe. Na volta, quebrei o silêncio propositalmente para que todos pudessem comentar as suas percepções.
Depois do retorno, foi realizada a apresentação das músicas. Após cada audição, o propositor deveria apenas expor ao grupo as razões (musicais e/ou outras) dessa escolha. Foi uma atividade de teor musicoterápico em essência, pois surgiram revelações que contribuíram para um conhecimento interpessoal de detalhes importantes da vida musical dos integrantes e, sobretudo, do universo emocional que alimentava as escolhas e gosto musical da pessoa. Aproveitei para introduzir os conceitos de
O espetáculo de rua começa quando os atores chegam e ocupam o espaço, intervindo nele com a sua simples presença (na performance da organização do espaço cênico, ao fazer movimentações, colocar objetos, alterar a rotina do lugar, etc), e não quando o espetáculo é anunciado formalmente. A repetição do anúncio de que o espetáculo vai começar daqui a instantes gera uma sedução que não se consuma, e por isso muitas pessoas vão embora antes mesmo do espetáculo iniciar.
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A chegada do ator-músico Robson Toma, o“China”, na noite anterior (que veio de Presidente Prudente (SP), especialmente para contribuir com o grupo como operador de som durante a apresentação), enriqueceu a avaliação sobre a musicalidade da cena. Por exemplo, quanto à falta de um contrabaixo elétrico em alguns momentos, que segundo ele, produz um timbre e linha melódica que “ligam” duas sonoridades distintas (percussões e o canto), dando mais coesão musical à cena.
Foram feitos alguns apontamentos sobre aspectos basicamente ligados à questão da ocupação do espaço cênico e relação com o público, com destaque para a participa-
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ISO e Identidade Sonora (pessoal, grupal, social), propostos por Benenzon. Pensada como uma atividade introdutória a uma prática “musical” (no sentido mais técnico) que eu planejara, essa apresentação se estendeu até a noite pelo interesse gerado, permitindo que fosse criada uma rica produção de afetos, e consequentemente uma maior coesão no grupo. A experiência dá margem à suposição de que o trabalho musical dentro de um grupo de teatro possui um enorme potencial que muitas vezes não é plenamente explorado, quando se limita ao treino de habilidades técnicas para a execução musical em cena.
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ção de um garotinho (de uns quatro anos aproximadamente) que, muito excitado, queria entrar em cena e era constantemente contido pela mãe. Incentivado por um ator, entrou numa cena em que tonéis eram percutidos como tambores; nesse momento, ele realizou com destreza total o “seu papel”. A situação confirmou a convicção de Amir Haddad sobre a sabedoria do público do teatro de rua que, por não ter as preocupações do ator (com espaço, emissão de som etc), faz tudo do melhor jeito pois “sabe exatamente o que deve fazer”.
[...] a viagem de volta. O ônibus ficou esperando os passageiros no ponto mais amplo da estrada de acesso à Casa Viva, onde podia fazer a manobra de retorno, e os atores foram até lá a pé, resultando numa breve, porém ótima experiência de caminhar no escuro a pé, sob um céu repleto de estrelas. A lanterna que levei para iluminar o trajeto foi dispensada pelos próprios caminhantes, pois estes se deram conta do quanto a cidade nos impede essa visão privilegiada; quiseram desfrutar essa experiência inusitada. A despedida foi leve, rápida e alegre, com os atores cantando dentro do ônibus e acenando para mim e LickoTurle, que participou da oficina em alguns momentos, como observador.
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Jussara Trindade, é educadora musical e musicoterapeuta especializada em Psicomotricidade e Pedagogia do Movimento. Mestre e Doutora em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. Coordenou neste projeto a imersão sobre Imagem Sonora, realizada na Aldeia Casa Viva em Teresópolis – RJ em junho de 2014.
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ALARGAR A COMPREENSÃO
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“Estou aqui para ajudar a alargar a compreensão de vocês!” Foi com essa frase que o educador social Luis Carlos Scapi8 abriu a segunda imersão do projeto, realizada em outubro de 2014, durante quatro encontros que teve por tema “Como Funciona a Sociedade”. Scapi, como é popularmente conhecido, atuou de forma pedagógica, buscando equalizar o conhecimento dos participantes, formados por integrantes do núcleo artístico do Buraco d’Oráculo e mais os que denominamos núcleo estendido (muitas vezes de outros núcleos, acompanhantes e participantes das ações que envolveram o projeto). Ao convidarmos Scapi para integrar o projeto, tínhamos por objetivo aprofundarmos os assuntos de posicionamento político do grupo. Em ação pedagógica, procurávamos material para a compreensão de que somos sujeitos em transformação e capazes de estabelecer novas relações com o mundo onde atuamos. Para isso, foi necessário fazer uma leitura dialética do mundo e analisar os contextos históricos das transformações sociais que refletem na atualidade. Estudar o processo evolutivo da sociedade é constatar que suas relações são construídas em um sistema que se apropria dos meios de produção gerando diferentes classes, em que ricos serão cada vez mais ricos e pobres cada vez mais pobres. A partir das reflexões propostas por Scapi, fizemos uma análise de conjuntura sociopolítica e econômica refletindo sobre a ideia de ‘Mais Valia’, como ponto de partida, para que assim entendêssemos as relações de trabalho, seus processos de exploração por parte do capital, a visão de obter cada vez mais lucro, e o movimento incessante da riqueza. Segundo Scapi, “[...] o mais alto ponto onde o capital pode chegar é exatamente aquele em que podemos ler e aprender juntos. Quanto mais se torna acelerado, mais a coisa ‘madura’, e quando (o capital e todo o seu sistema) estão comemorando os lucros, [...] vem a notícia de que as taxas de 8
Luiz Carlos Scapi, é professor, educador social e integrante do Núcleo de Educação Popular 13 de Maio – NEP.
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lucros caíram pelas tabelas. Neste momento, o capital precisa realizar as queimas, os ajustes, as compensações”. Foi importante perceber que este sistema tem seu ciclo, que entra em crise de tempo em tempo. São nestes momentos de crises que encontramos brechas para combatê-lo, senão, ao menos, para nos organizarmos neste combate. Esta organização não será feita pelo Estado, pois compreendemos que este, seja ele formado por qualquer sigla partidária, é um braço do Capital criado para atender a seus interesses e executa as medidas exigidas. Ou cumpre, ou se é expelido do sistema. Nesses momentos de crises, como os atuais, anunciados desde 2010, conseguimos enxergar a face do sistema que faz a exploração mais intensa da produção, por um conjunto de medidas apoiada pelo Estado. Exigindo cada vez mais injeção de capital, o sistema passa a recorrer das mais diversas formas de exploração para se auto-superar, sempre sangrando, em formas diversas, seja por arrochos, manipulação de trabalhadores, ou até mesmo por guerras. Identificamo-nos como trabalhadores da cultura. Por meio do nosso fazer artístico tentamos nos conscientizar do mundo, do tempo em que estamos inseridos e das situações que nos cercam. Com este entendimento entregamos ao público reflexões e posicionamento político. Todo teatro é político e estar na rua, na periferia de uma grande cidade, dá-nos a impressão de estarmos em uma trincheira, em uma batalha contra a hegemonia de tudo quanto é imposto pela produção do capital. Como um bom educador popular, Scapi promoveu debates internos, sempre muito calorosos, em torno dos temas que surgiam com suas provocações. Instigando-nos a não parar no senso comum e sim contradizer, chegar a um lugar em que a compreensão “doa”. Como o próprio Scapi finalizou nossos encontros: “não há o que ser ensinado a quem acha que já sabe”. Compreensão alargada!
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Ilustração feita por Nataly Oliveira.
“Minha relação com o Buraco d’Oráculo vem desde 1999, quando então compartilhamos os princípios do realismo grotesco sob a luz de Mikhail Bakhtin. De lá para cá estamos sempre nos trombando, quer num Café Teatral, quer em encontros da categoria ou mesmo revivendo práticas reflexivas como ocorreu recentemente. A afinidade nos une em princípios e afetividade. Longa vida!” – Ednaldo Freire9.
Com o “Projeto 15 anos” tivemos momentos intitulados “imersões”, um espaço criado para trocas e contribuições, com temas norteadores. Entre esses temas “o Riso”. Convidamos o Ednaldo Freire, velho companheiro, responsável pelo nosso encontro com o popular e o grotesco, na história do grupo. Ednaldo abriu a conversa nos lembrando da frase clássica de Aristóteles na obra “Poética”, “O Homem é o único animal que ri”, e concluiu com outra de Millor Fernandes: “E é rindo que ele mostra o animal que é”. Henri Bergson, filósofo e diplomata francês, autor de “O Riso. Ensaio sobre o significado do cômico” atribui ao Riso uma função social, corretora de infrações e reveladora dos defeitos. Com esse perfil corretivo, o riso torna-se ambivalente. Ao mesmo tempo conservador e subversivo. Conservador, quando defende a norma e a regra, ridicularizando tudo que contraria a visão de mundo do padrão Ednaldo Freire (Buique/ PE) - Ator, diretor, cenógrafo e professor de teatro, conta com mais de 100 montagens teatrais e mais de 80 direções. É diretor da Fraternal Companhia de Arte e Malas-Artes e professor de interpretação no Teatro Escola Célia Helena. Seu contato com o Buraco d’Oráculo ocorreu em 1999/ 00, quando foi orientador do grupo no projeto Ademar Guerra, desenvolvido pela Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo. É para o grupo uma das referências em teatro popular e no estudo do cômico.
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BURACO 15 ANOS: RINDO A VERDADE É DITA
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vigente; progressista, no instante em que critica padrões ultrapassados, não condizentes com as necessidades do momento. A esse respeito, Ednaldo comentou: “rindo, corrijo os maus costumes e restauro a dor”. A sociedade seria doente se apenas risse ou apenas chorasse. O carnaval, herança das festas saturnais, tornou-se típico da cultura popular, na qual o povo tinha oportunidade de extravasar, de libertar-se de um mundo regulamentado e vencer o medo (Mikhail Bakhtin: A cultura popular na Idade Média e no renascimento: o contexto de François Rabelais). Daí, o uso de máscaras monstruosas para zombar e exorcizar os temores e os tabus. Por isso o riso carnavalesco é uma parodia por meio das fantasias. Há um processo de rebaixamento, elucidando o alto pelo baixo. Nessa inversão, o elevado e o sublime passam para o baixo corporal, explorando processos biológicos: absorção dos alimentos, excreção, sexo, odores, peido, sujeira, enfim, todas as funções que rebaixam o homem. Todo este mundo das festividades carnavalescas de Bakhtin recebe o nome de “realismo grotesco”. O riso grotesco, notoriamente, ganha cunho popular. Salta aos olhos o distanciamento entre a cultura popular e erudita. Esta última, busca a instrução, enquanto a outra insiste no questionamento e na desordem. O riso foi contestado, porque visto como baderna. Festas de âmbito popular eram interditadas ou controladas, principalmente depois da aliança entre a igreja católica e a monarquia absolutista, que não toleravam confusões. O carnaval, acusado de paganismo, foi intitulado de “dia do diabo”. Elucidados por Ednaldo, percebemos que esse contexto do universo de Rabelais ressoa nas folias populares do Cavalo-Marinho, da Zona da Mata de Pernambuco – brincadeira de onde tiramos elementos que influenciaram muito no trabalho criativo do Buraco d’Oráculo, sobretudo para criar a versão atual do espetáculo “Cuscuz Fedegoso”. No Cavalo-Marinho, também denominado de dança dramática, reúne-se uma infinidade de elementos em sua representação: teatro de rua, loas, toadas, máscaras, romances, canções de louvor, bichos, assombrações, poesia e crítica social, tudo isso, com o bom e temperado tom cômico, caracteristicamente brasileiro.
10 Fernando Neves é formado em Letras, é ator, diretor teatral e coreógrafo. Compõe Os Fofos Encenam, fundado em 1992, no curso de Artes Cênicas da Unicamp. Inovador ao se alimentar artisticamente do estilo circo-teatro, devido sua origem de família circense.
Nesta imersão o grupo vivenciou parte das pesquisas de Fernando Neves. Contou suas histórias de circo e de família, como ele se descobriu artista quando aproximou-se de sua própria história, momento em que uniu suas experiências à sua vida acadêmica. E desenvolveu diversas práticas com foco em sua experiência circense e em sua pesquisa com o corpo e o desenho.corporal com ‘tipos’/personagens, que ele compõe com o Melodrama. Outro elemento muito importante trabalhado nos encontros foi a ideia da música na cena: para ilustrar, para complementar a cena, para dar clima, ou ainda, para sublinhar um tipo/personagem, revelar um pensamento, ou criar uma situação.
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Em outra imersão, cujo tema também diz respeito ao Riso, nós encontramos Fernando Neves10, que nos apresentou o Circo-teatro. Ele fez um breve panorama da história do circo teatro no Brasil: contou-nos a Trajetória da Família Neves, a estrutura de gêneros (o Melodrama, o Vaudeville), a galeria dos tipos (tipos masculinos e femininos, tipos e temperamentos, a relação da máscara com o público)11. Paralelo ao estudo sobre o Riso, a que diz respeito Bergson e Bakhtin, o melodrama transita entre o sublime e o grotesco (quanto mais grotesco mais sublime). Não tem regra: possui caráter compositivo, entrecruzam pontos opostos; tampouco possui “psicologismos”, nem vontades e contravontades, e dispensa encenação. O melodrama fala para a plateia, é a linguagem da eficácia, constrói olhando para “cara” do público. Não é conceitual, é lúdico. O melodrama é teatral por excelência. O texto é apenas um pretexto, o ator é o ambiente expressivo. É um gênero poroso, se põe na época em que quiser. É Importante destacar o quanto o Circo contribuiu com o teatro de rua. Entre eles, percebemos muitos pontos em comum: a relação direta com público, a música e a busca de uma dramaturgia própria, que nasce com o trabalho do ator, a máscara que tem a função de ampliar o jogo (a triangulação, o tônus), as formas populares, e o frescor da hora, do momento. Percebemos, também, a grande contribuição dos Tipos para o ator de rua, “O tipo mostra para o ator como se organizar em cena”, diz Fernando Neves, “O ator elege escolhas, mas o tipo determina a essência. A escolha que você nem sabe que fez, o tipo vem e potencializa o que se tem de melhor”.
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Lu Coelho, atriz do Buraco d`Oráculo, durante intervenção no Fuzuê Geral. Foto : Nataly Oliveira.
Somando-se esta proposição ao que Ednaldo Freire nos apontou, é preciso ter em mente que a função primeira do riso é celebrar o “ser social”. O riso solitário tem um sinal negativo; é uma anormalidade patológica. Diante disto, rir é comunicar, é uma forma de participar de uma sociedade. Por mais sincero que se suponha, o riso esconde uma segunda intenção, é, pois, uma ousadia: em sua aparente ingenuidade, verdades são escamoteadas e expostas. Horácio, poeta da Antiguidade Clássica (65 a.C- 8 a.C), resumia um modo de dizer a verdade: Ridendo dicere verum (Rindo, a verdade é dita), e a antiga Literatura Latina replica este pensamento com o mesmo mote: Ridendo castigat mores (Rindo, os costumes são castigados). Para o Buraco d’Oráculo foram importantes esses encontros, pois trouxeram elementos que dialogam com a trajetória do grupo e os novos caminhos que estão por vir. Lucélia Coelho
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TECITURAS ENTRE (RE)EXISTÊNCIAS, (RE)ENCONTROS E REFLEXÕES
Em meio ao cenário de desassistência ao conjunto de expressões artísticas que são desenvolvidas nas ruas de periferias e de regiões centrais em diferentes cidades e estados brasileiros, encontram-se os artistas e os diversos coletivos artísticos que, renovando os seus meios de criação artísticas, recriando os seus modos de produção e fomentando espaços de reflexões sociais, resistem a precariedade, a violência, a intolerância e, de modo geral, a barbárie que atualmente nos toca de inúmeras formas. Dentre esses coletivos artísticos cito o Grupo Buraco d’Oráculo que, somando quase duas décadas de (re)existência, possui uma trajetória teatral construída a partir da produção e desenvolvimento de um teatro de rua que provoca risos e reflexões. Nesse caminho traçado entre a diversão e a promoção de reflexões sociais, este grupo vem estabelecendo encontros entre diferentes artistas e fortalecendo aproximações com temas populares que, além de nortear o seu entendimento das artes e das relações que são tecidas no entorno delas, também tem inspirado a sua estética e, consequentemente, a organização do seu discurso cênico. Como exemplo de uma das aproximações artísticas que Buraco d’Oráculo vem promovendo, listo o primeiro encontro que realizei com o mesmo no ano de 2010. Nessa ocasião, desenvolvi com os seus integrantes e mais alguns atores convidados, os jogos e as improvisações teatrais que fazem parte das atividades formuladas na dissertação de mestrado intitulada Do Jongo ao Jogo: Uma Proposta de Treinamento Popular para Atores, esta, orientada pela Professora Doutora Inaicyra Falcão dos Santos e apresentada publicamente no Instituto de Artes da UNICAMP no ano de 2011. Entretanto, para falar de uma, dentre as tessituras que este grupo vem construído entre (re)existências, (re)encontros e reflexões vou relatar a imersão que marcou o meu reencontro com o Buraco d’Oráculo cinco anos depois da realização do
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meu primeiro encontro com o mesmo. Esse reencontro aconteceu no segundo semestre do corrente ano, no Espaço de Ocupação Cultural que está localizado diante de uma praça no Vila Mara, Zona Leste do Estado de São Paulo. Nesse reencontro com o Buraco d’Oráculo e alguns dos atores com quem o grupo mantém parcerias nas produções cênicas, foram explorados os fundamentos da pesquisa de doutorado que por ora, desenvolvo no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Escola de teatro da UFBA. Assim, a partir da prática do Jongo e do Mergulhão do Cavalo Marinho, exploramos a instalação da configuração circular como um meio de relação espacial e apropriação do espaço da rua e o estado corporal dos atores que atuam neste espaço público que é frequentado por pessoas de diferentes procedências e, igualmente, atravessado por diversas informações sonoras e visuais. O Jongo é uma dança afro-brasileira que foi inserida no Brasil na época da escravização do negro africano e afro-brasileiro no país. Suas movimentações carregam aspectos mágico-religiosos que também estão presentes nas músicas denominadas “pontos” e nas relações com os tambores chamados “angoma”, “tambu” e “candongueiro”. Atualmente essa dança de terreiro ocorre na região sudeste do país, mais precisamente, nos municípios, zonas rurais e periferias dos estados de São Paulo, Espírito Santo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, sendo que, em algumas regiões desses dois últimos estados é também chamado de “Caxambu”. O Cavalo Marinho é uma manifestação cultural oriunda da zona rural dos estados de Pernambuco e Paraíba na região nordeste do país. Essa manisfestação agrega danças e músicas denominadas “toadas” com diálogos, cenas, contracenas, máscaras e personagens chamadas de “figuras”. São em media 83 figuras, cada uma delas atende por um nome próprio e apresenta comportamentos peculiares que revelam os motivos pelos quais aparecem na roda e interagem com os seus pares e com os presentes.
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Contudo, na prática teatral, utilizo apenas uma das partes especificas dessa manifestação, o Mergulhão, uma dança de aquecimento que é realizada por alguns brincantes no começo de uma sambada, momento em que se desenvolve uma atmosfera constituída por diversão e competitividade onde, cada brincante que é convidado a entrar na roda, busca superar em agilidade, flexibilidade e inventividade, aquele que, anteriormente, foi convocado a dançar. Para atender os objetivos propostos nesta imersão, dividi as atividades em dois blocos: no primeiro foi trabalhado o Jongo no jogo dos atores que atuam no teatro de rua; e no segundo, foi utilizado o Mergulhão do Cavalo Marinho como impulso para a improvisação teatral e a criação de personagens. Mesmo sendo construídos a partir de duas danças populares regionais diferentes, os dois blocos de atividades têm em comum o objetivo de promover o aprimoramento do potencial criativo e da percepção espacial dos atores que atuam no teatro de rua. As atividades que partiram da prática do Jongo e do Mergulhão do Cavalo Marinho são exercícios que focam o potencial criativo, e também possibilitam a interação dos atores com os seus pares, com a configuração espacial circular e com o diversificado público das ruas. Não obstante, as atividades que foram propostas para esse grupo de atores, também possibilitaram que os mesmos acionassem um estado corporal ativo, um total envolvimento dos corpos na realização das ações. Ao acionar toda a musculatura, os atores não só dilataram os seus corpos, como também, experimentaram a ampliação do potencial imaginativo e dos seus níveis de percepção do espaço da rua. Ao repetir as sequências livres propostas em algumas atividades, os atores entraram em um ambiente fértil onde puderam pensar os movimentos, se questionar sobre a qualidade deles e reelaborar o trajeto de realização dos mesmos sem repeti-los mecanicamente. Neste sentido, a medida que os mesmos repetiram as movimentações das danças populares regionais ou das sequências livres por eles criadas, descobriram as possibilidades de reinvenção dos modos previsíveis e habituais de realização de movimentos que o corpo naturalmente codifica e repete. Assim, por intermédio da memória corporal e dos estímulos advindos da prática do Jongo e do Mergulhão do Cavalo Marinho, os atores criam, recriaram e resignificaram seus habituais caminhos de criação, acionando as experiências vivenciadas e procurando aperfeiçoá-las ao revivê-las.
Osvanilton Conceição12
Osvanilton Conceição: Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia, com bolsa de estudos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq. Ator, Arte-educador, Mestre em Artes pelo Instituto de Artes da UNICAMP (2011) Especialista em Linguagens da Arte pelo Centro Universitário Maria Antônia - USP (2009) Licenciado em Teatro pela Universidade Federal da Bahia (2006). Atuou na Companhia de Teatro Popular da Bahia (1999 - 2006). Foi membro fundador da Companhia de Teatro Popular Cirandarte no Estado da Bahia (2000 - 2002). Atualmente estuda processos criativos em teatro de rua e desenvolve pesquisas acerca de jogos teatrais, Contato Improvisação e de danças populares brasileiras como Coco, Ciranda, Jongo e Cavalo Marinho.
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A disponibilidade para realizar os jogos e as atividades que foram propostas, bem como, as respostas positivas apresentadas pelo grupo de atores do Buraco d’Oráculo, mais uma vez, me oportunizou constatar a pertinência da utilização da prática do Jongo e do Mergulhão do Cavalo Marinho como meio de trabalho corporal para os atores que atuam no teatro de rua. E, aproveitando o ensejo, também afirmo que o (re)encontro com o Buraco d’Oráculo tornou-se um valioso momento renovador que me inspirou a continuidade desse caminho de buscas, achados, incertezas, descobertas, fortalecimentos e renovações. Dito isto, findo este “relato torto” salientando que as tessituras que o Grupo Buraco d’Oráculo vem propondo e construindo entre (re)existências, (re)encontros e reflexões sociais, ganharam outras texturas, cores e dimensões com a realização de um encontro entre atores do grupo, artistas de outros coletivos e membros de um grupo de Jongo que, assim como este grupo de atores, também (re)existe em meio ao cenário de desassistência e, igualmente, se estabelece como uma importante prática cultural no âmbito das comunidades dos Estado de São Paulo.
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Circuito Re- Praça Fotos – Idevanir Arcanjo.
Reinventar a praça, repor. Revitalizar seu destino. Justificar seus motivos: Por quê? Pra quê? Reler a história de novo. Rever nas meninas os meninos que fomos. Cantar e dançar... Brincar na praça do povo. (Raberuan)13
O poema “Re-Praça”, escrito pelo poeta e músico Raberuan e que intitula o circuito de teatro de rua realizado pelo grupo Buraco d`Oráculo, tornou-se neste projeto uma síntese das ações do grupo. Este circuito é a forma mais efetiva de aprofundar nossos laços com as comunidades. A maioria, sem nenhum equipamento cultural, encontra na praça um espaço real de possibilidade de trocas simbólicas. É na praça que está à viabilidade de acesso ao teatro para os moradores das comunidades periféricas, porque além de gratuitos, ocorre no espaço que, em tese, é de todos. Para nós, ter a rua como palco de expressão artística e circular apresentando o nosso repertório são ações sempre presentes em nossos projetos. Desde 2002, quando, às próprias custas, realizamos uma itinerância intitulada “Buraco nas Praças”, começamos a tomar contato com os pontos de possível atuação em São Miguel Paulista. Logo depois, de 2005 a 2009, já contando com recursos públicos, circulamos pelos conjuntos habitacionais da Companhia de Habitação de São Paulo – COHAB/SP, primeiro por seis conjuntos e depois ampliado para dezoito. Raberuan (1953 - 2011), músico e poeta de São Miguel Paulista, integrante do Movimento Popular de Artes – MPA, que atuou em área artística e de militância cultural nos fins da década de 70 e inicio da década de 80.
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RE-PRAÇA
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“Reinventar a praça ... justificar seus motivos .... Cantar, dançar... brincar na praça do povo”, assim como diz o poeta que se foi, o circuito “Re-Praça” reinventou quando transformou lugares de passagens em locais que possibilitaram relações harmoniosas. Justificou seus motivos, quando (re)entregamos ao público a função de uma praça para ser um local de convívio. Inicialmente para esta circulação contávamos com um repertório de quatro trabalhos, mas, devido as circunstância do processo de transformação do grupo, ficamos com apenas um trabalho a disposição. Trabalho este que volta ao repertório do grupo após ser revisitado e ter ganhado nova roupagem. Foi com “O Cuscuz Fedegoso” que desbravamos as ruas da região de São Miguel Paulista em 2002, e foi novamente com este espetáculo que voltamos a nos reafirmar como grupo de teatro popular no decorrer de 2015 – “(Re)ler a história de novo”. Com esse espetáculo decidimos ampliar a atuação do “Re-Praça” e buscar (re)descobrir e (re)encontrar locais e pessoas que ficaram em nossa memória no decorrer destes anos. (Re)visitamos um total de doze locais e (re)encontramos inúmeros parceiros. Locais e pessoas que tinham em suas memórias momentos afetuosos de nossa passagem em tempos de outrora. Nós mesmos, por diversas vezes, nos relembramos dos momentos passados, das sensações do contato direto com o público, de ver o quanto é importante permitir dialogar com a própria história. Reconhecemo-nos naqueles olhares surpresos de ver teatro pela primeira vez, como também, nos sorrisos daqueles que nos reconheceram. Possivelmente, tenhamos sido neste intervalo de tempo de dez anos, entre uma circulação e outra, uma das poucas possibilidades de contato com uma manifestação artística do local. O nosso retorno a esses locais nos dão a certeza da necessária continuidade de um trabalho que tome a rua como local de fruição artística na região periférica. Este trabalho consegue alcançar locais que não estão em nenhum outro calendário ou roteiro cultural da cidade. Porém, mesmo com o apoio dos artistas e a mobilização local, é necessário o investimento público em programas de ações permanentes e não em ações eventuais, para que assim, momentos como os vividos no “Re-praça” não apaguem da memória de quem se viu menino e menina de novo. Cantamos e dançamos em coro junto ao público presente nas apresentações e, por fim, brincamos, pois a praça é do povo – mesmo que alguns não queiram que o povo saiba disso. Edson Paulo
O Buraco d’Oráculo no jardim das oliveiras por algumas horas, ontem à tarde - plena sexta-feira, a minha rua se transformou na capital mundial do teatro de rua. A trupe do Buraco d’Oráculo passou por aqui com o espetáculo “O Cuscuz Fedegoso” e todo o seu arsenal de brincadeiras, espantos, encantamentos e peripécias impossíveis que fizeram a alegria e a perplexidade das crianças do ‘Oliveiras’. Dos adultos também. Se a felicidade existe mesmo ontem ela deu um ‘rolezinho’ básico na minha rua. Akira - agosto/2015.
Adalberto Akira, é poeta e um articulador cultural da região de São Miguel e Itaim Paulista.
Circuito Re- Praça Fotos – Idevanir Arcanjo.
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Nossos pontos de atuação nesta itinerância passaram pela Praça do Casarão na Vila Mara, Rua Enseada de Itapocoróia no Jardim das Oliveiras, Jardim Stª Inês, Praça Guanambi, Praça 65 na Cidade Tiradentes, Parque Raul Seixas, Coletivo No Batente, Largo do Rosário, Vila Itaim, Rua Ida Vanucci Puntel na Cidade Nova São Miguel, União de Vila Nova, Perus, Praça do Forró e Praça do Jardim das Camélias.
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O nosso encontro as terças-feiras, dia sagrado na Índia, se desenvolve em dois movimentos: um ao cair da tarde, com duas horas de duração, quando nos debruçamos sobre aspectos teóricos despertados no ato de ouvir em grupo – pausa para o café – e outro movimento noturno de igual duração, quando experimentamos na voz e no corpo os novos influxos que essas ideias musicais proporcionam – é quando o indivíduo se faz porta-voz, fonte sonora e vida vibrante. Esses encontros são pontos de contato entre conhecimentos de música e de teatro. Escutar é sutil, diz Rubem Alves em seu texto “Escutatória”. Uma vez que o conhecimento é uma série de memórias, a prática musical do grupo é conduzida partindo do principio de que a percepção é fundamental para a construção do conhecimento musical e favorece o recrutamento muscular para uma boa produção vocal. A escuta torna-se uma ferramenta afiada pela reflexão fenomenológica do som nas possíveis construções musicais, históricas e estéticas, e por meio dela aprendemos a relacionar sonoridades. A maior parte dos atuadores do espetáculo “A Ópera do Trabalho” teve, além das aulas regulares durante esse período, um complemento paralelo com o estudo de instrumentos (teclado, rabeca, flauta, percussão, trompete), que foram constantemente utilizados nas aulas, inclusive para que todos conhecessem sua extensão e tessitura vocal (teclado). Isso influenciou positivamente a qualidade sonora e musical do espetáculo, melhorando a afinação, tendo em vista que a prática da música deve ser assumida como cultivo. Isso requer constância, se desejarmos obter transformações graduais.
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“EU SOU O SOM QUE FLUI E VOA, SERPENTEIA E MORRE.”
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No aspecto da técnica vocal, tentamos compreender concepções de “projeção”, “brilho vocal” (tão caros ao teatro de rua), e “ressonância”, direcionando-os a ideia de “câmaras interligadas”. Compreendemos cada vez mais a “repetição em espiral”, não embrutecedora, criativa e em direção ao tão desejado domínio musical. Os ostinatos que realizamos a la Meredith Monk, funcionaram como um repertório auxiliar, paralelo ao da “Ópera do Trabalho”, porém complementar, que possibilitaram a compreensão dos aspectos rituais da voz na articulação com as ideias de performance estudadas pelo grupo. Meredith diz que “a voz é um instrumento espiritual, pois ela pode ter acesso a lugares do sentimento e a estados de espírito para os quais não temos palavras para traduzir” (in “DemetrioStratos - Em busca da voz-música” de Janete El Houli). Uma das tarefas que pedi ao grupo era escutar música buscando uma voz parecida com a própria e “namorassem” a canção escolhida. Cada indivíduo tem sua forma de relacionar ideias, e os atores geralmente possuem formas mais livres para relacioná-las, além de serem aptos à imitação, também são frequentemente inquiridos à criatividade. Essa liberdade, no entanto, culmina em uma... imprevisibilidade dos resultados! A maior dificuldade revelada é a obtenção da chamada equidade, ou seja, cada envolvido no processo está em um estágio diferente de aprendizado musical. “Como seria possível timbrar?” “Imitando a voz do outro?” Os atores, vez ou outra, ainda não encontram as perguntas corretas para sanar suas dúvidas, dado o quociente de abstração teórica, mas à medida que o projeto avança, vão ocorrendo insights e noções do que sejam modos gregos, maior e menor, escalas exóticas (étnicas), graus conjuntos, arpejos, células rítmicas, graus harmônicos ou outros conhecimentos musicais específicos vão se fixando. É importante ressaltar o poder de unicidade da música. Qualquer atividade musical conjunta é altamente integradora, mesmo que seja ouvindo gravações de todos os períodos e confabulando sobre suas características históricas e fenomenológicas.
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Penso que o meu maior desafio é não deixar que percam a fome de aprender, e para isso, venho aprimorando as técnicas de ensaio. Descubro tantas coisas, que seria extensivo expô-las aqui, mas dentre elas, o fato de que, ao passar as melodias ao grupo, ajuda muito na afinação dobrar a melodia uma oitava acima ao piano. Também venho descobrindo o poder que o movimento tem na compreensão da forma-função, ordenamento interno e produção de memórias musculares, pois “O movimento, por si só, é capaz de provocar o que a reflexão não consegue” (Shoenberg). Enfim, há um longo caminho a ser percorrido. Para terminar vou contar uma historinha: liguei para o Edson após uma apresentação da “Ópera do Trabalho” e ouvi as vozes estridentes de todos após tudo ter dado certo. Mas isso me preocupou. Acho que o ator de rua tem uma demanda vocal sobrenatural e precisa aprender a poupar a voz! É muito difícil mudar alguns comportamentos e incorporar outros mais saudáveis à rotina do ator-cantante. Fiquei imaginando o sereno silêncio que deve ser em um camarim de uma grande casa de ópera mundial, após as estrelas de vozes caras desaquecerem (risos). Mas já sei que vou contar para eles na próxima aula, historinha que retirei do livro: “Tratado de História das religiões” (MirceaEliade)... Os andamaneses não conhecem nenhum culto de Deus, nenhuma prece, nenhum sacrifício, nenhuma solicitação, nenhuma ação de graças. Só o temor de Puluga os leva a obedecer aos seus mandamentos, alguns dos quais são rigorosos, como o de evitar comer certos frutos durante a estação das chuvas. Com um pouco de boa vontade poderemos explicar certos costumes como uma espécie de culto. Entre eles está o do “silêncio sagrado” dos caçadores que regressam à aldeia depois de uma caçada feliz...
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Acho que minha presença transforma e também sou transformado pelos meus alunos. Penso que nosso desafio daqui em diante é, além de atingir o solfejo, fazer todas as aulas de canto na rua para que melhor nos adequemos acusticamente ao espaço cênico e encontremos o lugar dessas vozes que são “apenas vozes da voz”, compartilhando o aprendizado e em consonância pura com outras vidas vibrantes. Eric d`Ávila14
Referências: O som e o sentido - José Miguel Wisnik; O ouvido pensante – Muray Schafer; História concisa da música - Roy Bennet; Harmonia - Arnold Shoenberg; Voz cantada (Evolução, avaliação e terapia fonoaudiológica) - Henrique Olival Costa e Marta Assumpção de Andrada e Silva; Demetrio Stratos - Em busca da voz-música - Janete El Houli; Tratado de História das religiões – Mircea Eliade; O Ator Errante – Yoshi Oida; O Nascimento da Tragédia - Friedrich Nietzsche.
Eric d`Ávila: é cantor e educador musical licenciado em música pela Universidade Estadual de Londrina. É preparador vocal de grupos teatrais e rege o coro da Cooperativa Paulista de Teatro. Participou deste projeto como preparador vocal e professor de canto.
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(esq. frente) Narany Mireya, atriz do grupo Contadores de Mentira e Edson Paulo, ator do Buraco d`OrĂĄculo, durante trocas artĂsticas realizadas com o grupo Contadores de Mentira, Suzano- SP. Foto: Arnaldo dos Anjos.
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POROSIDADE DO TEMPO
Encontramo-nos na porosidade do tempo. Olhamos a outra margem do rio e espreitamos tribos que se organizam como uma microcultura teatral. Quando um grupo reside fora da Capital, longe das universidades de arte, longe do acesso às políticas públicas, ele acaba por se organizar de outra forma. Os grupos vão se formando sob sua natureza e a identidade local. Assim foi com o nosso grupo nesses anos todos. Assim é com o Buraco d’Oráculo que olha para sua própria margem estirando-se para não se tornar beira. Passamos a perceber que qualquer conhecimento pode encher nossos organismos expressivos. Começamos a olhar para o teatro e todos os mestres que criaram estradas que nos permitem andar com mais tranquilidade, mas também olhamos para outros mestres dos saberes, da filosofia, da física, da matemática, da ciência, da química, da geografia, da história, das múltiplas culturas do mundo, e neles encontramos também nossa maneira de olhar o teatro. Aprendemos com quem cozinha, com quem é artesão, com quem limpa o lixo na rua, com quem corta nosso cabelo, e tudo isso é transformado numa substância essencial ao nosso fazer. Assim nos encontramos... Assim nos percebemos espelhos. Irmãos gêmeos separados no momento do parto que se encontram anos mais tarde. É como se as pegadas de um fossem a direção de outro. São tantos minúsculos cortes e recortes que representam mundos imensos, que às vezes parece impossível reagrupá-los em uma obra teatral. É necessário não sentir medo do tempo que corre e salta de nossas mãos. Lidamos com as pressões e com o fato de que as respostas aparecem quando estamos preparados para fazer perguntas. Uma obra nunca estará plena o bastante e esse estado de alerta nos
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(esq. frente) Cleiton Pereira, ator/diretor Contadores de Mentira, Edson Paulo, ator do Buraco d`OrĂĄculo e Narany Mireya, atriz do grupo Contadores de Mentira, durante trocas artĂsticas realizadas com o grupo Contadores de Mentira, Suzano- SP. Foto: Arnaldo dos Anjos.
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mantém vivos. Tudo no final das contas é um grande salto num emaranhado de imagens que se enraízam dia após dia. Todo o nosso processo existe para além da linguagem e é preciso tornar-se caótico, descer escadas subterrâneas onde não mora a razão e encontrar a dança de nossos corpos. É preciso ir além da língua. Lutamos para não esticar demais os tecidos da língua para que o teatro possa dançar e ser uma forja que derrete o corpo duro em corpo líquido. É uma relação de troca, todo o tempo. O que nos alimenta é sentir o gosto das experiências. Somos daqueles grupos que só conseguiram sobreviver quando atravessaram a margem para encontrar outros sobreviventes. Grupos que nos fizeram enxergar que a luta não era o exílio, mas, sim, a convivência com aquilo que nos oprime. Nossa própria recusa é uma bússola para mantermos a rota na direção oposta. Durante anos achávamos que iríamos mudar o mundo, depois descobrimos que transformávamos a nós mesmos, e essa é, sem dúvida, uma vitória de nossa microcultura. Esse encontro nos reforçou memória e o sentido de que sempre há outra tribo zelando pelo nosso sono. Viva o Buraco d’Oráculo cujo enigma é próprio salto no vazio. E saltar juntos indica que somos muitos. Cleiton Pereira15
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Cleiton Pereira: Ator, diretor e fundador do grupo Contadores de Mentira de Suzano/SP.
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SER OU NÃO SER, EIS A QUESTÃO!
Muitos fatores interferiram no que eu poderia escrever sobre o projeto que realizamos, desde as expectativas, frustrações, aprendizados, trocas, experiências coletivas e pessoais... porém nenhuma delas ficou tão viva na minha cabeça durante os últimos meses quanto uma frase que escutei de um ex-professor ao presentear-lhe com o último livro publicado pelo Buraco d’Oráculo. Aconteceu assim: fui visitar esse estimado professor que é um pesquisador do teatro e do circo teatro no Brasil, pois bem! A visita transcorria normalmente, até que ele me questiona sobre o que tenho feito, e qual a minha experiência com o teatro de rua, já que o livro se tratava disso. Respondi muito feliz e exaltado, no entanto fui surpreendido por uma afirmação por parte dele: “Você não é um ator de rua, você é um ator para o palco.” Fiquei confuso, a principio sem saber o que dizer. A conversa e a visita acabaram e eu voltei para o meu fazer teatral de rua, com aquela confusão na cabeça. Pensei “será que ele está certo?”, “e se ele tiver razão?”. Essa dúvida pairou durante todo o processo deste projeto. Voltei para o meu passado, de quando brincava de fazer teatro, juntava os colegas da rua para fazer pequenas apresentações, a grande brincadeira era brincar de ser quem eu não era. Nunca tinha ido ao teatro e o teatro nunca tinha ido até mim. Porém aconteceu quando eu tinha 16 anos, quando um projeto grandioso chegou, lá no terreno baldio, perto de casa. Foi erguido um prédio enorme e tinha um teatro dentro. Eu me inscrevi para os cursos de música e no dia da seleção, fomos levados para o teatro, ainda sem as poltronas. Que sensação... senti meu coração bater tão forte, num misto de deslumbramento e alegria, o cheiro bom da construção do palco, das cortinas novas, mas mesmo com o palco apagado, ali, naquele momento, fui mordido pelo bichinho do teatro. Ingressei na primeira turma de teatro do Projeto Vocacional. Só me importava fazer teatro. E, em 2006, vi em uma folha de papel sulfite pendurada no quadro de avisos que estavam abertas inscrições para uma formação em teatro de rua. Eu nem sabia que existia aquilo, mas tinha a palavra mágica, teatro. Eu me inscrevi e conheci, então, o Buraco d’Oráculo. Muitos anos se passaram de lá para cá, hoje sou graduado em teatro. Adquiri experiências. Sei que muita coisa fiz, mesmo inconscientemente, métodos conhecidos no mundo do teatro: fazia épico sem conhecer Brecht, ou realismo sem
Guto Nunes16
Guto Nunes: É ator e professor. Graduado em Licenciatura Plena em Educação Artística com Habilitação em Artes Cênicas e Bacharel em Teatro pela Faculdade Paulista de Artes.
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conhecer Stanislawisky, não me passava pela cabeça Artaud, Ibsen, Commedia Dell’art, Molière... apenas fazia teatro... Então, voltando às palavras do meu professor, questionei-me neste período: Para que serve o ator? Será que é preciso estar em um lugar para fazer arte política, para questionar, para dizer o que pensa? Porque não podemos fazer isso em qualquer lugar? Quem define se um ator é para rua ou para o palco? A verdade é que não importa onde se está, o que importa é saber o que pretendemos alcançar com a nossa arte, para quem queremos falar, com quem queremos dialogar. O teatro, a meu ver, é político por natureza, é essência do ser humano, tão intrínseco a ele. Postado em timeline do meu facebook, vi a foto de um muro com a seguinte frase: “Em um lugar onde não há atividades culturais a violência vira espetáculo...”. Nesse instante, lembrei-me do meu passado, do lugar onde não havia atividades culturais, onde a violência era espetáculo. Lembrei-me também, das diversas vezes em que vi a arte “resgatar” pessoas “condenadas” socialmente, assim aconteceu comigo. Busquei memórias de tantos lugares que passei com o teatro de rua e com o teatro de palco, e quantas pessoas eu pude divertir, transformar, fazer refletir, provocar qualquer sentimento. No teatro não cabe julgamento, apenas sentir e viver o que se sente. Sei que existe uma estrutura política que devemos denunciar. Aquela afirmação do meu professor, me fez refletir sobre a visão utópica que tenho como artista, que mesmo sendo uma formiguinha, estou fazendo o meu trabalho. Descobri sim, que precisamos chegar à comunidade não armado com os nossos saberes e dialogar com as pessoas. Precisamos jogar juntos, trocar experiências, fumar ou rejeitar a maconha, dividir a água que veio da geladeira da vizinha. Precisamos incentivá-los a conservar os seus espaços, debater e não empurrar goela abaixo as regras. O espetáculo começa muito antes da cena. Essa é a minha militância, esse é o poder do teatro, é o poder da comunhão. Precisamos falar língua de gente! E depois de tudo isso, pouco me importa ser ou não ser um ator de rua ou de palco, basta, por enquanto, ser artista e por consequência deixar a Arte me levar.
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Iniciei o meu contato com o grupo Buraco d’Oráculo no final de 2012, pouco conhecia sobre ele. Eu não dominava a linguagem do teatro de rua, mas depois de tanto tempo afastada, porque dedicada a educação, tinha um enorme desejo de retomar ao teatro. Via nas oficinas oferecidas pelo grupo uma oportunidade de matar a saudade do convívio teatral, sem a menor pretensão de seguir profissionalmente. Já no primeiro dia de oficina me deparei com o primeiro obstáculo: sendo eu da zona sul, fui me encontrar no extremo leste de São Paulo. Eu me questionei durante todo o percurso do trem “Em qual buraco estava me enfiando?”. Com o passar do tempo e das oficinas, essa distância foi se estreitando cada vez mais a medida que o prazer de estar com aquelas pessoas foi aumentando e a paixão pelo teatro de rua se intensificando. Foram três anos de convívio e aprendizado, e posso afirmar que jamais havia sido tão bem acolhida por um grupo de teatro. O Buraco d’Oráculo, assim como tantos outros coletivos, são verdadeiras Universidades Populares. Passei por muitas construções, desconstruções e reflexões (como atriz, sujeito e educadora), das quais me levaram a gradativa transformação enquanto artista, ou melhor, artista de rua! Luana Csermak17 17
Luana Csermak: Atriz e educadora.
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CAÍ NO BURACO!
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Ato por justiça à Lua Barbosa realizado em julho de 2014 na Praça do Patriarca – São Paulo – SP; Fonte: https://www.facebook.com/luabarbosamemoria/
Galpão Cultural Lua Barbosa Coletivo de cultura de Presidente Prudente-SP, cujo nome faz homenagem à artista Luana Carlana de Almeida Barbosa, do qual fazia parte, assassinada em 27 de junho de 2014, aos 25anos, vítima fatal de um disparo de arma de fogo efetuado pela Policia Militar do Estado de São Paulo durante uma blitz de trânsito. “Ver a lua no céu nos faz sentir saudade da Lua na rua” (Ribas Dantas)
Há um ano e três meses, perdíamos uma companheira de luta. Há um ano e três meses, um estampido rasgava nosso peito deixando uma ferida aberta. Profunda. Sem cicatrização. Para muitos, a vida não tem analgesia. A dor acompanha sem trégua. E para essa dor, não nos oferecem milagres. Seguimos, desde então, dando nossas vozes a Lua Barbosa e a tantxs outrxs, através das ruas. Lua foi vítima de uma lógica descabida, a lógica do inimigo interno que ainda rege a política de segurança. Para além das armas e das práticas de violência como regra, esse é o principal pilar da militarização: combater (A quem?). Podemos afirmar, seguramente, que vivemos numa sociedade militarizada, que internaliza um perfil de indivíduo para ser combatido ao mesmo tempo em que aceita a sua tortura e extermínio. Para
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A RES(EX)ISTÊNCIA NAS RUAS
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Lua Barbosa , durante apresentação na VIII Mostra de Teatro de São Miguel Paulista – Buraco d´Oráculo (abril/2014), na Praça do Casarão. Foto: Gyorgy Laszlo.
Galpão Cultural Lua Barbosa
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a manutenção desse quadro, grande parte da mídia e instituições exerce um papel crucial ao reafirmar, diariamente, essa lógica por meio da disseminação do terror pela fala do crime e do medo, tratando da segurança como um negócio e um privilégio. No período do regime militar, a base do discurso de manutenção da ordem voltou-se contra a ameaça que representavam os comunistas, os ditos subversivos, os discordantes políticos. As ruas foram palco de confrontos. Hoje, numa sociedade que se volta cada vez mais para o consumo, permanecem como combatíveis justamente aqueles que não desfrutam do poder do dinheiro. Numa cidade onde tudo é consumível, inclusive ela própria vira mercadoria, a pobreza é cada vez mais criminalizada. O inimigo é o jovem pobre, morador da periferia, o morador de rua, os excluídos. E a perpetuação de nossa herança escravocrata reforça, nesta listagem, também, o elemento negro. Consonante a esse estado, a ordem jurídica se instrumentaliza para impedir os movimentos sociais e as classes mais pobres, cada vez mais organizadas nos seus lugares, de apontarem os desarranjos sociais, econômicos, políticos e culturais da sociedade e barrar as reivindicações de direitos por meio de manifestações. Desta feita, as ruas continuam como espaço de disputa. Por isso, a tomada das ruas, como espaço de luta e de reafirmação do convívio social, é uma forma legítima de res(ex)istência. Que ocupemos os espaços públicos, a Cidade, com nossas vozes e corpos, fazendo política, fazendo arte. Lua vive!
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Estado Violência Deixem-me querer Estado Violência Deixem-me pensar Estado Violência Deixem-me sentir Estado Violência Deixem-me em paz... (Titãs)
A escalada do aumento da violência, que em muitos casos é praticada ou omitida pelo estado, necessita de debates permanentes de todos (as) que lutam por um mundo livre de qualquer tipo de opressão. O Brasil está na rota de um processo que atinge àqueles que ousam viver fora dos cânones estabelecidos pelo capital e sua sanha reprodutiva – Sírios, Palestinos, Africanos, Paquistaneses, Iraquianos, Líbios, Nigerianos, Ucranianos, entre outros os quais o capital selou o destino. A diferença entre nós e eles é que a maior parte desses países está em guerra ou existe um reconhecimento de um conflito de grandes proporções. No Brasil, apesar dos elevados números de mortes violentas (57 mil por ano), a maior taxa do mundo, não estamos em guerra, porque a guerra provoca baixa nos dois lados e aqui as baixas só acontecem de modo unilateral para aqueles a quem o capital definiu que irá controlar ou exterminar (a maioria negros e indígenas, preferencialmente jovens).
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ESTADO: Ontem e Hoje, A Violência Permanente!
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Intervenção Ato 02 de Outubro em memoria aos 111 presos mortos no massacre do Carandiru” – Pág 82: Atores : Ao fundo Thiago Thalles, no primeiro plano da esquerda para direita, Nataly Oliveira, Amanda Nascimento e Daniela Landin. Em ação organizada pelo Coletivo Desentorpecendo a Razão – DAR.
Givanildo Manoel18 Givanildo Manoel da Silva (Giva): É militante de defesa dos direitos humanos e Movimentos Sociais, atuando no Tribunal Popular, Comitê pela Desmilitariazação da Policia e da Política, Comitê Popular da Copa – SP, Amparar – Associação de Famílias e Amigos de Presos e Presas e Terra Livre – Movimento popular do campo e da cidade.
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As artimanhas são muitas: auto de resistência, guerra as drogas, tolerância zero, UPP, garantia da lei e da ordem, operação saturação, operação delegada etc. Qualquer um desses nomes que enganam pela proposta de maior segurança ao povo, só fez crescer a insegurança. Oriundos do Estado, da sua ação, coloca o povo em pavor permanente, pavor em ter próximo agentes do estado (PM – Polícia Militar), pois temem pela própria integridade física – como demonstrou a Anistia Internacional em pesquisa com povos de diversos países relacionado ao medo da tortura praticada por agentes do estado, o Brasil aparece disparado em primeiro lugar (80%). Instrumento esse, que teve sua estrutura jurídica criada na ditadura, admitido abertamente por comandantes da PM que dela usa e abusa para a proteção dos crimes que pratica contra o povo. Desvelar essa violência que secularmente é exercida pelo estado, que impôs o interesse de alguns em detrimento dos interesses da maioria, é uma das tarefas fundamentais nessa quadra histórica, pois é a violência que contribui significativamente para o processo de crise civilizatória que estamos vivendo. É sabido que não podemos esperar muito de um estado que teve sua constituição baseada na violência, ceifando a vida de indígenas, explorando força de trabalho escravo de indígenas e africanos (sequestrados de suas terras e trazidos para esse território a passar por toda má sorte de opressões). Porém, nosso compromisso com a humanidade tem e deve nos guiar. Assim o faz o grupo Buraco do Oráculo, se valendo da linguagem teatral para dar forma as inquietações e violações, investiga e nos instiga a pensar toda a dimensão dessa violência, essa marca inseparável do tempo em que vivemos.
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Pág84: Ocupantes do Casarão, da esquerda para a direita: Samara Silva Oliveira, Nataly Oliveria, Jô Freitas, Thiago Thalles, Leandro Pereira, Heber Humberto, Edson Paulo Souza, Luana Csermak, Daniel Marques, Eric D`Avila e Ariane Marques. Agachados: Luciana Yumi Iara, um morador não indentificado e Lu Coelho.
Ocupação Casarão: fonte: https://www.facebook.com/ocupacaocasarao/
No ano de 2004, realizamos uma circulação intitulada “Buraco nas Praças”, que visava expandir nosso raio de atuação para além da Praça do Forró, outras do bairro de São Miguel Paulista. Conhecemos por engano uma praça sem nome, com uma árvore frondosa e com um casarão antigo, próxima a um conjunto habitacional na Vila Mara. Essa se encontrava em reforma e o casarão com uma arquitetura de estilo colonial passaria a abrigar um ponto de leitura e um Telecentro. A nossa programação não estava prevista para aquele local, chegamos ali por um engano do motorista, ele nos levava para a Praça Craveiros dos Campos, no Jardim Helena. Mas as crianças que brincavam na terra revirada pelas maquinas da reforma, nos despertou a vontade de um dia retornar e apresentar naquele local. Passados dois anos, em 2006, estávamos realizando uma nova circulação, dessa vez como parte do projeto “Circular Cohab`s”19, contemplado na 7ª Edição do Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo. Reencontramos a Praça, que continuava sem nome oficial, popularmente chamada de Praça do Casarão, e contatamos a coordenadora do ponto de leitura, Adelina Maria, a qual veio tornar-se nossa parceira desde então. Na ocasião, apresentamos dois espetáculos de nosso repertório:
Projeto comtemplado na 7ª Edição do Programa de Fomento ao Teatro Para a Cidade de São Paulo tinha por objetivo levar teatro de rua a dezoito conjuntos habitacionais da região leste de São Paulo. Realizado de março de 2005 a maio de 2006, totalizou 72 apresentações.
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OCUPA(AÇÃO) CASARÃO
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“O Cuscuz Fedegoso” e “A Farsa do Bom Enganador”20; mais dois trabalhos de grupos convidados: IVO 60 e Teatro de Rocokoz . Com essa programação estabelecemos relações com o entorno e intervimos no espaço como o primeiro grupo de teatro a pisar naquele chão. Os moradores estiveram presentes em todos os espetáculos e fizeram daquela programação um acontecimento. Dessa maneira, percebemos o potencial da praça como sede pública, local de livre acesso e aberto a manifestações de Arte Pública. Termo que vem sendo defendido por Amir Haddad, que a define “como uma arte que se faz e se produz por todos, em espaços variados, sem distinções de classe ou gênero”. A Praça do Casarão passou a fazer parte de nossos projetos, o local começou a ter valor muito significativo na trajetória do grupo, ora servindo de palco para apresentações, ora como local para pesquisa e encontros, nos alimentando das histórias dos moradores do bairro a ponto de ser material para a construção do espetáculo “Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem” (2009). Mais tarde, a praça recebeu a Mostra de Teatro de São Miguel, a qual chegará à décima edição em 2016, e que desde a quarta edição recebe espetáculos das mais diversas linguagens de teatro de rua de diferentes regiões do nosso país e de outros da América Latina. Vimos à praça transformando-se ao longo dos anos: o surgimento de uma estação de trem, outras reformas, o aumento do fluxo de transeuntes, a chegada do comercio informal – como uma praça de uma pequena cidade que deixa de ser um local de convívio e torna-se um corredor de passagem de uma cidade grande. Em todos os momentos de transformação da praça atuamos com nosso fazer artístico, propondo estabelecer momentos que rompesse com o cotidiano do espaço e das pessoas que a transitaram e transitam. Tornamo-nos conhecidos no entorno, o que vale como reconhecimento e aproximação. O teatro de rua tem como premissa o uso do espaço aberto e, no uso continuo deste espaço, a transformação. Nele nos estabelecemos como a uma sede pública. Um local de livre acesso capaz de agregar ações artísticas, tanto de quem faz 20 “O Cuscuz Fedegoso” foi escrito por Edson Paulo e tinha elenco formado por: Adailton Alves, Edson Paulo, Lu Coelho e Mônica Martins. “A Farsa do Bom Enganador” foi adaptação feita a partir da “Le Farcedo Meitrê Pathelim” (A Farsa do Mestre Pathelim) por Atílio Garret, e contava com Adailton Alves, Edson Paulo, Lu Coelho, Mônica Martins e Selma Pavanelli. Ambas com direção de Atílio Garret.
Edson Paulo
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arte, como de quem aprecia. Para entrelaçar as nossas relações com a praça, passamos também a usufruir do Casarão, que desde 2014 estava parcialmente desativado. Junto a outros coletivos da região, adentramos buscando dar outra função a sala, tornando-a um espaço estratégico para estender as ações desenvolvidas na praça. A Ocupação do Casarão tem caráter coletivo e público, da qual diversos outros grupos e agentes vem se mostrando interessados em apresentar seus trabalhos. Um local gerido coletivamente, onde esses possam optar no seu desenvolvimento, contribuir diretamente para sua existência e manutenção, se posicionar politicamente sem represálias de qualquer ordem ou dependência de organizações institucionais, publicas ou privadas. A gestação de um espaço com estas características ameniza o problema da ausência de equipamentos públicos de cultura locais que são diminuídos, como foi o caso da Oficina Cultural Luiz Gonzaga, fechada pelo governo estadual em maio de 2015. A demanda de produção artística da região requer atenção do poder público, em todas as esferas governamentais, para criar mecanismos capazes de subsidiar o fazer artísticos e propiciar o acesso da população a este fazer, além de possibilitar a manutenção de núcleos estáveis. Neste sentido, somente um projeto de Lei criado com consulta aos trabalhadores da cultura, amenizará as lacunas históricas deixadas por recursos e gestões. Nesse cabo de guerra político, nós trabalhadores da cultura buscamos não permanecer na corda bamba e continuamos resistindo. Até o momento estamos lá...
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E paz, é uma palavra que nunca existiu no vocabulário da rua! Aqui é carne crua, ferida aberta... Ninguém tem medo de morrer não, muito menos de lutar, tão pouco de morrer lutando. A gente vai quebrar é tudo, vai trancar pista, queimar pneu! E não me venha dizer que é vandalismo, vandalismo é o que fazem com nossas vidas, tá me entendendo? Vandalismo é o que fazem com nossas vidas. Pacifico só oceano, o nome disso é revolta RE-VOL- TA, Tá me entendendo? Tão me ouvindo bem? Aqui todo mundo tem um monte de bomba guardada dentro de si e quando essa porra toda explodir... Ai eu quero ver... Pedro Bomba!!
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Eu tenho aqui, guardado dentro de mim um monte de bomba e essa porra toda vai explodir! Eu tô avisando... Vocês tão me ouvindo bem? Eu tenho aqui dentro de mim um monte de bomba e essa porra vai explodir. É curto o pavio... Tá vendo esses olhos fundos, tá vendo? É que ninguém dorme aqui... A insônia tem nome de polícia, milícia, tá me entendendo? O nome da nossa casa é barraco, O pesadelo tá fardado, tá me entendendo? É pouca vida pra muita morte, é lona preta, pele preta, reintegração de posse... Sabe como é viver assim? Sabe? Não sabe, né? Ai vai pra rua gritar sem violência, sem vandalismo, sem partido, vai vestir branco e pedir paz... Aqui ‘mermão’, toda camisa branca é manchada de vermelho sangue!
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Danço Danço sozinho Danço com meus irmãos Olho no olho Espelho que reflete a minuciosa Imperfeição Me liberto Me ordeno a ser livre Pois sou tabajara Lá da terra de Tupã
Escuto o mato crescendo lá fora Escuto o mato crescendo Escuto o mato Escuto O silencio é como sinfonia doce Orquestrada pelo vento Cantada por quem quer que seja Sussurra ao pé do ouvido Escute Não és lindo?
Reflito Pois GRITAVA! Quando podia falar baixo Pois falava baixo demais as vezes E não era por todos Ouvido Certas palavras A entonação certa Faz toda a diferença Canto, logo existo. Rodrigo Luiz
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Inspiro, expiro Cheiro a flor, sopro a vela Diafragma Afino a flauta Sinto o grave no peito Sustento o agudo com fervor Canto Às vezes erro, mas não tem problema Não há pecado, nem perdão Corrijo-me
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Heber Humberto como Guarda Chicão e Edson Paulo como Resmelengo em cena do espetáculo “O Cuscuz Fedegoso” durante o Circuito RePraça (2015). Foto: Idevanir Arcanjo.
O Buraco d`Oráculo agradece a todos que (re)visitaram a nossa trajetória e colaboram para construir novas pontes. Em especial àqueles que participaram deste projeto: Adaitom Alves, Akira, Amanda Nascimento, André Bueno, Carolina Abreu, Celso Nascimento, Cleiton Pereira e todos dos Contadores de Mentira, Daniela Landim, Dona Adelina, Ednaldo Freire, Edson Paulo, Elizete Gomes, Elizete Joventino, Emerson Alcade, Emerson Paulo, Eric d´Ávila, Fernando Neves, Givanildo Manoel (Giva), Guto Nunes, Heber Humberto, Jussara Trindade, Luana Csermak, Lucélia Coelho, Luciana Yumi Iara, Luiz Claudio, Luiz Scapi, Mauricio Santana, Nataly Oliveira, Patrícia Leal, Pedro Ronney, Pombas Urbanas, Romison Paulo, Samara de Oliveira, Selma Pavanelli, Sueli Kimura, Thiago Thalles, Tom Conceição, Kiwi Cia. de Teatro, Pedro Bomba e todos os coletivos que integram a Ocupação Casarão Vila Mara “Iniciamos em 1998 e recomeçamos a cada dia”
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Agradecimentos
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Nataly Oliveira como Dona Maria do Cuscuz e Edson Paulo como Resmelengo em cena do espetáculo “O Cuscuz Fedegoso” durante o Circuito Re-Praça (2015). Foto: Idevanir Arcanjo.
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Lu Coelho como Mãezinha do Quixadá em cena do espetáculo “O Cuscuz Fedegoso” durante o Circuito Re-Praça (2015). Foto: Idevanir Arcanjo.
Caderno de Trabalho II – relatos sobre o projeto15 Anos:
Buraco na histĂłria - revisitar os caminhos, fortalecer as pontes.
realização
apoio institucional