Arte e Resistência na Rua
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COORDENADORIA DA COORDENADORIA DA
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Projeto realizado com o apoio do Governo do Estado de São Paulo, Secretaria da Cultura
Companhia de Engenharia de Tráfego
Revista do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (MTR-SP)
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Revista do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (MTR-SP)
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NÚCLEO NACIONAL DE PESQUISADORES DE TEATRO DE RUA NÚCLEO REGIONAL DE PESQUISADORES DE TEATRO DE RUA – SÃO PAULO
Expediente Jornalista responsável: Augusto Paiva – MTB 28.118 Colaboradores: Adailton Alves, Alexandre Mate, Calixto de Inhamuns, Cláudia Funchal, Daniela Giampietro, Daniela Landin, Giancarlo Carlo Magno, Isabela Penov, Jackeline Stefanski, João Alves, José Cetra Filho, Josy Rouse, Juliana Arapiraca, Juliana Rocha de Oliveira, Junio Santos, Jussara Trindade, Kiko Rieser, Licko Turle, Mário Condor, Narah Neckis, Natália Siufi, Paulo Bio, Ray Lima, Roberta Ninin e William Rosa Revisão: Airton Dantas Concepção da revista e revisão técnica: Alexandre Mate Projeto gráfico/Diagramação: Maurício F. Santana (powerblack.com.br) Fotomontagem da capa: Maurício F. Santana Produção executiva: Selma Pavanelli 2ª Edição: Março/2012 Tiragem: 1.000 exemplares Contatos: mtrsaopaulo@gmail.com www.mtrsaopaulo.blogspot.com
Distribuição gratuita Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP A792
Arte e resistência na rua / Movimento de Teatro de Rua de São Paulo. n.2 (2009) – São Paulo: Movimento de Teatro de São Paulo, Grafnorte 2012 Anual ISSN: 22375503 1. Teatro de rua – Periódicos. 2. Grupos de teatro – Periódicos. 3. Teatro – Periódicos. 4. Teatro – História - Periódicos. I. Movimento de Teatro de São Paulo CDD 792.028
Agradecimentos Sempre corremos o risco, quando agradecemos, de não citarmos o nome de alguém importante. Mas é sempre preferível corrermos esse risco. Assim, agradecemos especialmente a três pessoas públicas que têm contribuído com o Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (MTR/SP) sem solicitar nada em troca: à vereadora Juliana Cardoso, ao deputado estadual Adriano Diogo e ao deputado federal João Dado. Agradecemos também ao professor Alexandre Mate, que tem trabalhado voluntariamente para a publicação desta Revista, bem como a todos os demais colaboradores. Agradecemos à Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR) por lançar fios em todo o território brasileiro; ao Movimento Escambo Popular Livre de Rua, que tem demonstrado como realizar ações na contracorrente, defendendo nossos resquícios culturais. Por fim, e não menos importante, nossos agradecimentos à Fundação Nacional de Artes - FUNARTE, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP, Secretaria Municipal de Cultura, parceira desde a primeira edição da Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas, e nossa gratidão às suas funcionárias Branca López Ruiz, Clara Lobo e Maria Rosa Coentro.
Índice Geral
Histórico do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo ....... 06 Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas ....... 08 Editorial ....... 14 Carta do Rio Grande do Sul ....... 16 7º Encontro de Articuladores da Rede Brasileira de Teatro de Rua (Rio Grande do Sul/2010) ....... 18 Crítica... ou comentário teatral? ....... 19 O que é essencial, dramaturgicamente falando, para os espetáculos de rua? ....... 22 Introdução às análises críticas e um pouco de história ....... 25 Leituras Críticas ....... 30 Programação da Mostra ......120 Grupos do Movimento Escambo Popular Livre de Rua e espetáculos ......122 Grupos de São Paulo ......123 Grupos convidados ......129
Histórico do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo
O Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (MTR/SP) nasceu em 2002 por intermédio da união de sete grupos na Ação Cultural Se Essa Rua Fosse Minha. Desde então, tem crescido significativamente o número de grupos interessados em debater temas pertinentes às especificidades do teatro de rua. De agosto a setembro de 2003, foi realizado o 1 Seminário de Teatro de Rua com a participação de 12 grupos. Esse Seminário consolidou o Movimento e resultou na I Overdose de Teatro de Rua, com a apresentação de 15 espetáculos teatrais, no dia 3 de novembro de 2003, no Boulevard São João e Vale do Anhangabaú, em São Paulo. Mesmo sem patrocínio nem apoio do poder público ou da iniciativa privada, a ação marcou o início de um processo mobilizatório político e artístico. o
O Movimento realizou, em junho de 2004, a II Overdose de Teatro de Rua. Em julho desse mesmo ano, o 2o Seminário de Teatro de Rua, que contou com a participação de pensadores, fazedores e políticos que atuam e pensam o espaço urbano. Ainda em 2004, realizou-se a 1a Temporada de Teatro de Rua de São Paulo, na Praça do Patriarca, com o intuito de transformar 6
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aquele local em espaço permanente para apresentação de espetáculos e também de divulgação da programação do teatro de rua. Desde a realização do 1o Seminário, o MTR/SP realiza encontros em que se estabelecem as bases de uma atuação propositiva para que haja a inserção da manifestação artística no espaço público aberto; a luta por políticas culturais específicas que atendam às necessidades de produção, de pesquisa e de circulação da arte popular, como também as formas de ampliar o acesso ao teatro. Em 2006, o Movimento realizou a III Overdose de Teatro de Rua e lançou sua CARTA ABERTA em 29 de maio. A ação exigiu do poder público o lançamento de um edital, prometido desde 2004. Em setembro desse mesmo ano, o MTR/SP realizou a 1a MOSTRA DE TEATRO DE RUA LINO ROJAS, com recurso público da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, e participou do II Fórum Artístico realizado pela Cooperativa Paulista de Teatro, em que se discutiu política pública cultural, estética e a formação do artista que atua em espaços abertos. Em 27 de março de 2007, o MTR/SP organizou a IV Overdose de Teatro de Rua com a participação de grupos de outras cidades paulistas, como também de outros estados brasileiros. Em dezembro, foi a vez da 2a MOSTRA DE TEATRO DE RUA LINO ROJAS, novamente em parceria com a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. Nesse mesmo ano, o MTR/SP participou, com movimentos de outros estados, da criação da REDE BRASILEIRA DE TEATRO DE RUA, hoje presente em mais de vinte Estados.
Foto de Augusto Paiva
Em 2008, no dia 27 de março – Dia do Teatro –, realizou a V Overdose de Teatro de Rua. Na ocasião, solicitou ao: Poder Municipal a ampliação de recursos para o Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo; Poder Estadual a criação do Fundo Estadual de Arte e Cultura; Poder Federal a criação do Prêmio Nacional ao Teatro. No mesmo ano, em novembro, o MTR/SP viabilizou a 3a MOSTRA DE TEATRO DE RUA LINO ROJAS, que teve o copatrocínio da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo; apoio do Ministério da Cultura, da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo e apoio institucional da Cooperativa Paulista de Teatro, da Coordenadoria da Juventude da Secretaria de Participação e Parceria do Município de São Paulo, do Aprendizes da Capela, do Sindicato dos Comerciários. Ainda, em 2008, realizou o IV Encontro da Rede Brasileira de Teatro de Rua, com a presença de articuladores de 18 Estados: Acre, Amazonas, Ceará, Bahia, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Pará, Pernambuco, Paraná, Rio de Janeiro, Roraima, Rio Grande do Norte, Rondônia, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo, que discutiu técnicas e estéticas do teatro de rua e política pública cultural do País. Em 2009, no mês de abril, o MTR/SP publicou a Revista Arte e Resistência na Rua e produziu um documentário sobre a 3a Mostra e o Encontro da Rede Brasileira de Teatro de Rua. Ainda em 2009, em novembro, realizou a 4a MOSTRA DE TEATRO DE RUA LINO ROJAS, que teve o copatrocínio da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo; apoio institucional da Cooperativa Paulista de Teatro, da Coordenadoria da Juventude da Secretaria de Participação e Parceria do Município de São Paulo, do Sindicato dos Comerciários. Na ocasião, o Movimento Escambo Popular Livre de Rua, com forte atuação nos Estados do Ceará e do Rio Grande do Norte, foi homenageado. O Movimento de Teatro de Rua de São Paulo conta hoje com a participação de dezenas de fazedores e pensadores do Teatro de Rua, visando especialmente à formação de uma ação cultural que alcance indistintamente o cidadão da metrópole paulistana, de maneira a mobilizar a sociedade para novas formas e relações com o espaço público. p 7
A Mostra nasceu do desejo do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo, com o apoio jurídico da Cooperativa Paulista de Teatro, de levar ao conhecimento público os grupos que pesquisam essa linguagem. O objetivo primordial do Movimento é a criação de novas oportunidades para os criadores de teatro de rua, de modo que eles possam ter apoio institucional e espaço para a apresentação de seus espetáculos; para a realização de debates; para a publicação de suas vivências estético-teóricas e exposições, ampliando, assim, a reflexão e a troca de experiências, fundamentais para o avanço estético e aperfeiçoamento das linguagens utilizadas pelos coletivos.
Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas
A expectativa inicial, plenamente correspondida em todas as edições, foi a de envolver os grupos durante todo o período da Mostra, reforçando sua identidade, seus elos profissionais e oferecendo ao público uma programação diversificada e de qualidade, de maneira a contribuir com a difusão e a valorização do fazer teatral em espaços públicos abertos. Os seminários e encontros promovidos durante a Mostra têm por alvo primordial unir os fazedores de teatro, principalmente aqueles ligados às manifestações da arte popular. Nesse processo de união, os participantes dos diversos grupos são convidados a refletir e a trocar informações sobre seu ofício, priorizando temas concernentes à prática do Teatro de Rua, em seus aspectos e contextos: histórico, social, técnico, estético, organização, Trupe Olho da rua – Foto de Augusto Paiva
modos de produção, bem como sobre políticas públicas para o teatro. A Mostra caracteriza-se em uma oportunidade de inserir no calendário cultural de São Paulo uma programação diferenciada, que permita a fruição da arte em espaços abertos. Nessa perspectiva, a rua deixa de ser um mero corredor de passagem e torna-se um espaço de troca entre os sujeitos que a ocupam. Ressignificar os espaços públicos e a vida por meio da arte é uma necessidade. Retirar, ainda que por um lapso de tempo, os cidadãos de sua correria, permitindo-lhes fruir, rir, sonhar, criticar... é um dos objetivos primordiais das diversas ações ligadas ao Movimento de Teatro de Rua de São Paulo. p
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Materiais das ações do MTR - Arquivo MTR/SP
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1a Edição (Estadual) – 2006 Realizada pelo Movimento de Teatro de Rua de São Paulo, em parceria com a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo e apoio da Cooperativa Paulista de Teatro, da São Paulo Transporte S.A. (SPTrans), da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) e da Fundação Nacional de Artes (Funarte), a Mostra ocorreu entre os dias 20 e 25 de setembro de 2006. A programação, além de 20 apresentações, incluiu um seminário para discussão de políticas públicas, com a presença de Rubens Moura (Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo), Hélvio Tamoio (Funarte), Ney Piacentini (Cooperativa Paulista de Teatro), César Vieira (Teatro Popular União e Olho Vivo – TUOV) e Ilo Krugli (Teatro Ventoforte), realizado na Galeria Olido. Fez parte da programação a exposição fotográfica de Augusto Paiva, com fotos das ações realizadas pelo MTR/SP, intitulada Filhos da Rua, apresentada na Galeria Olido e no Centro Cultural Arte em Construção. Os 20 grupos selecionados por meio de edital foram: Galpão do Clã, Companhia dos Inventivos, Abacirco, Companhia Vate Katarse, Grupo Manifesta de Arte Cômica, Núcleo Pavanelli de Teatro de Rua e Circo, Mamulengo da Folia, Companhia do Miolo, Companhia Raso da Catarina, Circo Navegador, Los Patos, Farândola Trupe, IVO 60, Companhia do Feijão, Companhia Teatral Manicômicos, Algazarra Teatral, Companhia Circo de Trapo, Coletivo Teatral Commune, Buraco d’Oráculo e Tablado de Arruar. Todas as apresentações foram realizadas na Praça do Patriarca, de segunda a sexta-feira, com um público estimado de mais de 11.000 pessoas. O encerramento da Mostra ocorreu em Cidade Tiradentes, Zona Leste da cidade de São Paulo, com um grande cortejo teatral que reuniu vários artistas e comunidade. A escolha pela Cidade Tiradentes deveu-se ao fato de naquele local o grupo Pombas Urbanas e seu diretor, Lino Rojas, desenvolverem um trabalho de formação teatral em sua sede, o Centro Cultural Arte em Construção. p
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2a Edição (Estadual) – 2007 Realizada pelo Movimento de Teatro de Rua de São Paulo, em parceria com a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, o Ministério da Cultura, a Funarte e apoiada pela Cooperativa Paulista de Teatro, SPTrans, CET e pelos Pontos de Cultura: Commune Coletivo Teatral, Instituto Pombas Urbanas e Instituto Tá na Rua – a Mostra ocorreu entre os dias 10 e 15 de dezembro de 2007. A 2a Mostra homenageou o diretor Amir Haddad, fundador do grupo carioca Tá na Rua, que há três décadas dedica-se incansavelmente ao teatro de rua. O grupo homenageado apresentou-se na abertura do evento e foi antecedido por um cortejo dos demais grupos participantes, que se deslocou do Teatro Municipal até a Praça do Patriarca. Essa Mostra teve edital lançado em âmbito estadual, que contemplou 20 grupos que se apresentaram na Praça do Patriarca. Os grupos foram os seguintes: Os Itinerantes, Algazarra Teatral, Companhia do Miolo, Pombas Urbanas, Circo Fractais, Companhia São Jorge de Variedades, Teatro da Pateticidade, Valdeck de Guaranhuns, Companhia Cristal, Circo e Companhia, Teatro de Rocokóz, Circo Navegador, Manicômicos Núcleo Brava Companhia, Companhia das Graças, Teatro de Mamulengo da Folia, Companhia Cênica Farândola Trupe, Trupe Olho da Rua, Buraco d’ Oráculo, Companhia Raso da Catarina e Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Teatro. O encerramento, como na edição anterior, aconteceu em Cidade Tiradentes, no Centro Cultural Arte em Construção, sede do Pombas Urbanas, com um cortejo ainda maior pelas ruas da comunidade. p Cortejo da 2ª Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas – Foto de Augusto Paiva
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Lino Rojas, formado pelo Instituto Nacional Superior de Arte Dramática – INSAD (Lima/Peru), dá nome à Mostra em virtude de sua pesquisa e atuação nas ruas. Foi um dos pioneiros da pesquisa em teatro de rua em São Paulo, e já em 1979 atuava com o Grupo Treta, formado por jovens da Universidade de São Paulo (USP). Lino Rojas estudou com renomados diretores e pesquisadores, como Julian Beck, Enrique Buenaventura, Atahualpa del Cioppo, entre outros. Em São Paulo, ministrou diversos cursos e desenvolveu projetos importantes, dentre os quais cabe destacar o Semear Asas, desenvolvido em 1989 no bairro de São Miguel Paulista (Zona Leste de São Paulo), que deu origem ao Pombas Urbanas, grupo que dirigiu por 15 anos. Em novembro de 2005, seus familiares receberam do Ministério da Cultura a Medalha de Ordem ao Mérito Cultural, um reconhecimento do governo por sua contribuição à cultura brasileira. Lino Rojas - Foto arquivo Pombas Urbanas
3a Edição (Nacional) – 2008 Realizada pelo Movimento de Teatro de Rua de São Paulo, tendo o copatrocínio da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo; apoio do Ministério da Cultura, da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo e apoio institucional da Cooperativa Paulista de Teatro, da Coordenadoria da Juventude da Secretaria de Participação e Parceria do Município de São Paulo, do Aprendizes da Capela e do Sindicato dos Comerciários – a 3a Mostra homenageou o diretor e dramaturgo César Vieira e o Teatro Popular União e Olho Vivo, na pessoa de Neriney Evaristo Moreira. Na abertura da Mostra, realizou-se um cortejo artístico, cuja trajetória foi da Praça do Patriarca até o Vale do Anhangabaú, espaço onde o grupo homenageado esperava a todos para a apresentação do espetáculo A lenda de Sapé Tiaraju, que abriu o evento. A Mostra ocorreu entre os dias 8 e 16 de novembro de 2008. Os grupos do Estado de São Paulo foram selecionados por edital, com curadoria a cargo de Alexandre Mate e de Romualdo Bacco; os de outros Estados foram convidados pelo Movimento de Teatro de Rua de São Paulo. A 3a Mostra contou com a participação de 20 grupos, 15 deles do Estado de São Paulo: Brava Companhia, Buraco d`Oráculo, Companhia Baitaclã, Companhia Mamulengo da Folia, Companhia Troada, Circo de Trapo, Circo Nosotros, Circo Ybimarã, Ivo 60, Núcleo Pavanelli, Teatro Popular União e Olho Vivo (sediados na cidade de São Paulo); Circo Teatro Rosa dos Ventos (Presidente Prudente), Sítio do Jeca (Pirassununga), Teatro Fabricantes e Matulão (Assis), Trupe Olho da Rua (Santos); e 5 grupos de outros Estados: Grupo de Teatro Kabana (MG), Grupo Nu Escuro (GO), Oigalê (RS) Off-Sina (RJ) e Será o Benidito (RJ). p 12
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4a Edição (Nacional) – 2009 Realizada pelo Movimento de Teatro de Rua de São Paulo, tendo o copatrocínio da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo; apoio institucional da Cooperativa Paulista de Teatro, da Coordenadoria da Juventude da Secretaria de Participação e Parceria do Município de São Paulo e do Sindicato dos Comerciários. A 4a Mostra homenageou o Movimento Escambo Popular Livre de Rua, que está pelas vias públicas do País desde 1991 e reúne grupos de teatro de rua, dança, capoeira, artistas plásticos e visuais, poetas, músicos e artistas populares dos Estados do Rio Grande do Norte, Maranhão, Pernambuco, Paraíba, Pará, São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Ceará, com o intuito de socializar suas experiências artísticas, culturais, políticas e comunitárias em “uma vivência coletiva de mobilização e organização social e de atuação política regional e local”. O Movimento é um espaço livre de produção de conhecimento, de inclusão social e de inserção do cidadão comum na vida artística. Na abertura da Mostra, realizou-se um cortejo artístico, cuja trajetória partiu das escadarias do Teatro Municipal até o Vale do Anhangabaú, espaço onde o Movimento homenageado esperava a todos para a apresentação de seu espetáculo Cabeça de papelão, que abriu o evento realizado de 7 a 15 de novembro de 2009. A 4a Mostra teve a participação de 18 grupos, 11 deles sediados na cidade de São Paulo: Buraco d`Oráculo, Companhia do Miolo, Companhia Os Inventivos, Circo Nosotros, Companhia Raso da Catarina, Como Lá em Casa, Grupo Forte Casa Teatro, Grupo Manifesta de Arte Cômica, Grupo Namakaca, Grupo Pombas Urbanas, Trupe Artemanha; três de outras cidades do Estado de São Paulo: Companhia As Marias (São Bernardo do Campo), Grupo Teatral Nativos Terra Rasgada (Sorocaba), Trupe Olho da Rua (Santos); e quatro grupos de outros Estados: Banco La Trupe (RN), Grupo Teatral Manjericão (RS), Poemia do Mundo (CE e RN), Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz (RS). p
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Editorial Na 4a Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas: vi nordestino e paulistano conversar por Junio Santos (grupo Cervantes do Brasil) e Ray Lima (grupo Pintou Melodia na Poesia e Movimento Escambo Popular Livre de Rua)
No mês de novembro do ano passado Assisti com os olhos que um dia a terra há de comer Nordestinos e paulistanos sem saber o que dizer Mas pelo jeito do olhar emocionado Quando riam se torciam para o lado Dava pra ver admiração em seu olhar O nordestino gaguejava sem parar O paulistano fazia cara de lua Na 4a Mostra de Teatro de Rua Vi nordestino e paulistano conversar Entre uma e outra apresentação Fui chegando pra perto pra escutar E ouvi baixinho o paulistano falar Teatro é cultura e educação É a arte que mexe com a emoção Que faz o povo no tempo viajar Quem dela um dia se apropriar Vai ver a verdade ficar nua Na 4a Mostra de Teatro de Rua Vi nordestino e paulistano conversar O nordestino pela vida desconfiado Deu dois passos e uma rodada no chão E disse com o peito cheio de emoção Pro paulistano já meio desconcertado O Nordeste tem teatro de reisado E muito calunga pra brincar Tem baião e xote pra dançar Tem a pureza da cultura quase crua Na 4a Mostra de Teatro de Rua Vi nordestino e paulistano conversar 14
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O paulistano sem tremer nas estruturas Olhou pro nordestino com humildade E disse inda vou à sua cidade Conhecer de pertinho sua cultura Sei que a vida por lá anda dura Que a seca quando vem é pra matar Mas mesmo assim a arte vive a brotar Como uma deusa na mata seminua Na 4a Mostra de Teatro de Rua Vi nordestino e paulistano conversar O nordestino à vontade respondeu Por aqui já tô quase acostumado Já entortei a língua e dou gingado Já troquei o “oxente” pelo “ô meu” Já usufruo do que antes era seu Quase sempre tô na praça para olhar O teatro que insiste em ser popular Que vem à praça sem nenhuma falcatrua Na 4a Mostra de Teatro de Rua Vi nordestino e paulistano conversar
E os dois riram encantados com os brincantes Com alguns deles até se confundindo Naquela roda aberta bem sentindo A energia dos sátiros e das bacantes As vozes fortes do ator, da atriz, dos feirantes Essa maneira brasileira de brincar E voltaram pra casa pra descansar Como se toda essa história fosse sua Na 4a Mostra de Teatro de Rua Vi nordestino e paulistano conversar
Pra terminar essa peleja rimada A palavra encantada é o prazer O sentimento eterno o agradecer Por poder ter vivido essa jornada Já trilhei nessa vida muita estrada Mas agora para o mundo vou contar Que foi bom demais encontrar Os brincantes que o teatro acentua Na 4a Mostra de Teatro de Rua Vi nordestino e paulistano conversar
Já em casa os dois deitados no sofá Relembrando cada ato ali vivido O som da rua martelando no ouvido E as imagens circulando sem parar De Pombas urbanas dançando pelo ar De Buracos D’oráculos resistentes Zona Leste, Zona Norte e Tiradentes Fazendo da memória uma meia-lua Na 4a Mostra de Teatro de Rua Vi nordestino e paulistano conversar A gente sabe que essa peleja não tem fim A arte popular do infinito faz seu teto A rua tem no povo seu gestor e arquiteto Não discrimina nem quer que a vida seja ruim Do artista de rua é seu verdadeiro camarim O espaço que abriga nordestino e paulistano Que se tornam pelas artes mais humanos Superando o preconceito que os extenua Na 4a Mostra de Teatro de Rua Vi nordestino e paulistano conversar Agora miram mil cabeças de papelão Show de bonecos saltando na garoa O Anhangabaú enchendo pela proa De gente querendo ver bela função No Viaduto do Chá a multidão E sob ele a arte popular comendo solta O transeunte quer passar, dá meia volta, Porque sente que uma cena se efetua Na 4a Mostra de Teatro de Rua Vi nordestino e paulistano conversar Todos viram como foi o envolvimento Dos artistas – cidadãos – participantes O escambo acontecia a todo instante Os arteiros sempre estavam em movimento Não dava pra perder um só momento A vontade eterna era festejar O verbo dominante era o encontrar O teatro naquele instante era nossa grua Na 4a Mostra de Teatro de Rua Vi nordestino e paulistano conversar 15
Carta do Rio Grande do Sul Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR), reunida em Canoas (RS), de 1o a 6 de maio de 2010, em seu 7o Encontro, reafirma o compromisso de: •
contribuir para o desenvolvimento do fazer teatral de rua no Brasil e nos demais países da América Latina;
•
lutar por políticas públicas culturais com investimento direto do Estado, por meio de fundos públicos de cultura, garantindo, assim, o direito à produção e ao acesso aos bens culturais a todos os cidadãos brasileiros;
•
possibilitar trocas de experiências artísticas entre os grupos de teatro da Rede;
•
reafirmar a necessidade de uma nova ordem por um mundo socialmente justo e igualitário.
A Rede, criada em março de 2007, em Salvador (BA), é um espaço físico e virtual de organização horizontal, sem hierarquia, democrático e inclusivo. Todos os artistas-trabalhadores, grupos de rua e afins pertencentes à Rede podem e devem ser seus articuladores para, assim, ampliar e capilarizar, cada vez mais, suas ações e pensamentos. O intercâmbio da Rede ocorre presencial e virtualmente; entretanto, toda e qualquer deliberação é feita nos encontros presenciais, sendo que seus membros participarão de pelo menos dois encontros anuais de forma rotativa para contemplar todas as regiões do Brasil. Os articuladores de todos os Estados, bem como os coletivos regionais, deverão organizar suas participações nos encontros. Os articuladores da Rede, com o objetivo de elaborar políticas públicas culturais democráticas e inclusivas, defendem:
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•
a imediata regularização da ocupação definitiva do Hospital Psiquiátrico São Pedro, pelos grupos: Oigalê, Povo da Rua, Caixa Preta, Falus & Stercus e Neelic, que tem sua origem na cidade de Porto Alegre (RS), onde desenvolvem seu trabalho artístico e cultural;
•
a representação do teatro de rua nos colegiados setoriais e conselhos das instâncias municipal, estadual e federal;
•
a aprovação e regulamentação imediata da Proposta de Emenda Constitucional 150/03 (atual PEC 147), que vincula à cultura o mínimo de 2% do orçamento da União, 1,5% do orçamento dos Estados e Distrito Federal e 1% do orçamento dos municípios;
•
a reformulação da lei no 8.666/93 das licitações, convênios e contratos, com a inclusão de um capítulo específico para as atividades artísticas e culturais, que contemple a extinção de todas e quaisquer formas de contraprestação, considerando que o trabalho artístico de rua já cumpre função social;
•
a extinção da Lei Rouanet e de quaisquer mecanismos de financiamentos que utilizem a renúncia fiscal, por compreendermos que a utilização da verba pública deve se dar por meio de financiamento direto do Estado, de programas e editais em forma de prêmios elaborados pelos segmentos organizados da sociedade;
•
a criação de programas específicos que contemplem: produção, circulação, formação, registro e memória, manutenção, pesquisa, intercâmbio, vivência, mostras e encontros de teatro de rua;
•
a criação de um programa interministerial (Ministério da Cultura e Ministério das Cidades) em parceria com Estados e Municípios para a construção e/ou reforma de espaços públicos (praças, parques, entre outros), adaptando-os às necessidades dos artistas e trabalhadores das Artes de Rua, além da inclusão imediata desses espaços no programa de construção dos equipamentos culturais do PAC;
•
a consideração de que os espaços públicos (ruas, praças, parques, entre outros) sejam vistos como equipamentos culturais e, assim, contemplados na elaboração de editais públicos, no Plano Nacional de Cultura, e outros;
•
a garantia da aplicação dos recursos obtidos pela extração de petróleo na região do pré-sal para o teatro de rua;
•
a criação de um programa nacional de ocupação de propriedades públicas ociosas, para sede do trabalho e para a pesquisa dos grupos de teatro de rua;
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•
a extinção de todas e quaisquer cobranças de taxas, bem como a desburocratização para as apresentações de artistas-trabalhadores, grupos de rua e afins, garantindo, assim, o direito de ir e vir e a livre expressão artística, em conformidade com o artigo 5o da Constituição da República Federativa do Brasil;
•
a transformação dos editais para as artes em leis que garantam sua continuidade, levando em consideração as especificidades de cada região do País;
•
a publicação dos editais referentes aos Prêmios de Teatro Myriam Muniz e Artes Cênicas de Rua no primeiro trimestre de cada ano e mais aporte de verbas, bem como a lista de projetos contemplados e suplentes e, também, a divulgação de parecer técnico de todos os projetos avaliados;
•
a elaboração, no Fundo Setorial das Artes Cênicas, do edital Prêmio Brasileiro de Teatro de Rua, consideradas as especificidades de cada região, bem como a ação continuada e comprovada de grupos, companhias, coletivos e artistas conforme proposta da Rede Brasileira de Teatro de Rua;
•
a regionalização dos editais e das comissões, que devem ser compostas por indicação dos artistas, bem como a criação de mecanismos de acompanhamento e assessoramento dos artistas-trabalhadores e grupos de teatro de rua e afins;
•
a promoção de mais intercâmbio entre Brasil e demais países da América Latina por meio de programas específicos;
•
a equidade, nos editais publicados pelas estatais, no que se refere ao teatro de rua, respeitando o critério de regionalização;
•
o direito à indicação de representantes do teatro de rua nas comissões regionalizadas dos editais públicos;
•
o apoio financeiro da Fundação Nacional de Artes (Funarte) para a realização dos Encontros Nacionais e Internacionais de Teatro de Rua, tendo como foco a América Latina, em valor equivalente ao montante repassado àqueles realizados pela Associação dos Festivais Internacionais de Artes Cênicas do Brasil;
•
a inclusão, nas Universidades, em instituições de ensino e escolas técnicas, de matérias referentes ao estudo do Teatro de Rua, da Cultura Popular Brasileira e do teatro da América Latina;
•
a valorização e o financiamento de publicações e estudos de materiais específicos sobre teatro de rua e manifestações da cultura popular, respeitando sua forma de saber enquanto registro.
•
A reformulação da diretoria de Artes Cênicas da Funarte, promovida pelo Ministério da Cultura, transformando as atuais coordenações em diretorias setoriais de Teatro, de Circo e de Dança;
•
a inclusão dos programas setoriais nos mecanismos do Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura (Procultura);
•
a realização do 8o Encontro de Articuladores da Rede Brasileira de Teatro de Rua em Campo Grande (MS), concluindo, assim, o ciclo de encontros presenciais em todas as regiões do Brasil;
O Teatro de Rua é símbolo de resistência artística, comunicador e gerador de sentido, além de ser propositor de novas razões ao uso dos espaços públicos abertos. Assim, instituímos o dia 27 de março, dia mundial do teatro e dia nacional do circo, como o dia de mobilização nacional por políticas públicas, e conclamamos os artistas-trabalhadores, grupos de rua e a população brasileira a lutarem pelo direito à cultura e à vida. “A rua é sempre o firmamento de toda arte” Ray Lima 6 de maio de 2010 Canoas (RS) Rede Brasileira de Teatro de Rua 17
7o Encontro de Articuladores da Rede Brasileira de Teatro de Rua (Rio Grande do Sul/2010) por Giancarlo Carlo Magno Articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua/RS
De 1o a 6 de maio de 2010, na cidade de Canoas/RS, a Rede Brasileira de Teatro de Rua e os articuladores de 26 Estados da Federação brasileira voltaram a se reunir. Dessa vez, foi possível contar com mais países da América Latina (Argentina e Colômbia) e unir a parte artística à política.
promoveu-se um debate com Marcelo Bones – diretor de Artes Cênicas da Fundação Nacional de Artes (Funarte) – e integrantes da Secretaria de Políticas Culturais do MinC sobre a elaboração de políticas públicas para o teatro de rua.
Foram seis dias intensos, três deles dedicados a debates, com a participação de mais de uma centena de comparsas do teatro de rua brasileiro, argentino e colombiano. Iniciamos o 7o Encontro com a realização de uma mostra de teatro de rua. Foram 17 apresentações (13 grupos gaúchos, 1 capixaba, 1 catarinense, 1 pernambucano e 1 argentino) nos três primeiros dias. Após as apresentações, realizavam-se debates sobre os trabalhos e, a partir dessa conversa entre amigos, consideravam-se as observações e sugestões pertinentes. Isso nem sempre foi possível pela pouca clareza de várias intervenções. Mas esse também está sendo um aprendizado da nossa Rede: saber falar e saber ouvir.
Ao final dos trabalhos, com alguma serenidade e divergências de ideias, encerramos o Encontro com as seguintes deliberações: o 8o Encontro da Rede Brasileira de Teatro de Rua será realizado em Mato Grosso, na região Centro-Oeste; elaboração da Carta do Rio Grande do Sul com mais de uma dezena de reivindicações;
Munidos de muita energia positiva e de espírito agregador, iniciamos os debates políticos. Começamos pelas apresentações pessoais, já que havia representante de praticamente todos os Estados brasileiros, à exceção da Paraíba, bem como da Argentina e da Colômbia. Cada articulador discorreu um pouco sobre a realidade de cada Grupo/Estado/País, pontuou semelhanças e diferenças, destacou dificuldades, realçou o que nos aproxima. Nesse mesmo dia, foi realizada uma ação conjunta na Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, palco de audiência pública com representantes do Ministério da Cultura (MinC). Foi bonito ver a Rede Brasileira de Teatro de Rua marcar presença nacional e tornar públicas suas necessidades. No segundo dia, 18
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7º Encontro da RBTR
Crítica... ou comentário teatral? por Jussara Trindade e Licko Turle1
apresentação de mais um espetáculo de teatro de rua (Rio Grande do Norte) e, por fim, uma grande confraternização com vinho, churrasco, intervenções, dança e muito bom humor. Nos últimos anos, os encontros da Rede Brasileira de Teatro de Rua têm confirmado a importância de nossas constantes conversas. Somos semelhantes e diferentes, e essas diferenças são definitivas para nossa união. Crescemos, amadurecemos e reafirmamos a necessidade de um mundo socialmente justo e igualitário. Viva o teatro de rua! p
Foto de Caroline Bilocchi
Este ensaio tem a intenção de comentar a inexistência, no Brasil, de uma crítica teatral voltada para o teatro de rua. Várias razões poderiam ser apontadas como explicação para este fato; uma delas, porém, nos parece interessante como ponto de partida: a natureza essencialmente transgressora desta modalidade que não faz parte de um universo teatral que gira ao redor de si mesmo – o da sala à italiana. O teatro de rua, tal como o conhecemos hoje, já nasce sob o signo da marginalidade desde que, ainda na Idade Média, o espetáculo cristão (que começava a extrapolar os limites da moral religiosa) foi banido das Igrejas para os adros e pátios, onde voltou a conviver com aqueles artistas – mimos, bufões, saltimbancos – que ainda realizavam suas artes milenares ao ar livre, nos mercados, nas ruas dos povoados e lugarejos da Europa. Assim, o lugar do hoje denominado teatro de rua, desde o início, se situa num ponto qualquer entre a liturgia sagrada e a transgressão profana. Com a ascensão da burguesia e a consolidação de seus respectivos espaços de poder na ordem social nascente – as novas instituições que regularão o comportamento e a vida do homem na sociedade moderna –, surge o edifício teatral e seu aparato arquitetônico. Cria-se também, para esse teatro burguês, toda uma estrutura hierárquica de profissões que corresponde à própria hierarquia social agora vigente. Essa lógica do indivíduo – cujo espírito empreendedor parece fazer desenvolver a sociedade burguesa – leva para o palco a vida privada, e as dinâmicas psicológicas do sujeito são agora o motor do drama. O teatro dramático cria também seus monstros sagrados: é a consagração dos grandes autores, diretores, atores, produtores, proprietários de casas de espetáculos e, também, dos críticos 1 Pesquisadores do Grupo Tá Na Rua (RJ); articuladores da Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR) e integrantes do Núcleo de Pesquisadores de Teatro de Rua; mestres e doutorandos em Teatro pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - (Unirio).
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teatrais. Realiza-se, então, por meio da especialização profissional, um ciclo de retroalimentação num processo que valida a si mesmo, construindo seus próprios critérios para perpetuação dos princípios que lhe deram origem. Nascida da ideologia burguesa, a crítica desse teatro de cunho dramático tem-se mantido por quase três séculos dentro do edifício teatral, com seu espetáculo, seu aparato tecnológico, seus procedimentos, seus atores e seu público. No Brasil, a história não tem sido diferente. Os críticos do palco brasileiro seguem, há pelo menos 60 anos, o mesmo modelo acadêmico e literário implantado pelas primeiras Faculdades de Filosofia e Letras. Suas análises são expostas em publicações especializadas, voltadas para o leitor acadêmico, ou em jornais de grande circulação cujo alvo é o chamado “leitor médio”. Basta abrir um desses veículos de comunicação, nas páginas dedicadas à cultura e ao lazer, para constatar que sucessivas gerações adotam, nessa crítica de cunho jornalístico, o seguinte padrão básico: na primeira parte, introdutória, são apresentadas as primeiras impressões sobre a montagem propriamente dita; considerações detalhadas sobre o texto teatral, autor e direção do espetáculo; comentários sobre os atores e suas atuações, acompanhados por observações sobre os elementos da cena – cenografia, iluminação, figurinos, música – e seus respectivos profissionais. Cabe ressaltar que, nesta última etapa, cada item é analisado separadamente, enfatizando-se não as relações significativas que estabelecem entre si, mas a figura do profissional responsável pelos aspectos da cena – ator, cenógrafo, iluminador, figurinista, diretor musical – que deixa à mostra a visão personalista sobre o trabalho artístico (resquício claro daquela concepção burguesa de autonomia do sujeito). O foco da atenção é colocado sobre o produto final ali apresentado, desconsiderando-se o processo da montagem e outros aspectos menos óbvios da apresentação. Já o teatro de rua, por não ter sua existência atrelada a praticamente nenhum dos parâmetros que orientam o teatro de sala, não produziu seus “críticos”; nem poderia ser de outra forma. Seus 20
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modos de produção, predominantemente coletivos, levam a práticas de atuação em que o foco está colocado na relação de jogo com o outro, não no virtuosismo técnico, individualizado; as fronteiras entre ação cênica e plateia são muito mais porosas, em função da horizontalidade que o espaço aberto permite; o conhecimento assim construído é socializado informalmente ou, quando muito, por processos não formais em que a aprendizagem se dá num processo permanente, por toda a vida. E, principalmente, o teatro de rua é eminentemente político em função da relação que estabelece com o espaço público, onde a estratificação social pode, pelo menos temporariamente, desaparecer. Contudo, vem surgindo uma forte tendência de aproximação entre esses dois universos ideologicamente separados; se, por um lado, o século XX ficou marcado pela “explosão” do espaço cênico convencional e pela quebra de paradigmas, por outro, é possível constatar, hoje, crescente busca de estudos formais por parte de fazedores teatrais de rua, interessados em aprimorar seus conhecimentos, aprofundar suas reflexões e conquistar seu legítimo espaço na sociedade enquanto produtores de conhecimento. Desse processo de evolução, é natural que surja também o desejo de construir uma crítica para o teatro de rua. Mas, a partir de quais critérios? Os que estão aí, ainda vigentes nas páginas dos livros e dos jornais, foram construídos com os mesmos tijolos de que foi feito o edifício teatral; oriundos da mesma matéria-prima, assentados pelas mesmas mãos. Por isso, tal desejo traz consigo o perigo de uma armadilha, que é o risco de se levar bagagem velha para um mundo novo.
Em outras palavras, acreditamos que é preciso ter sempre em mente que essa crítica “analítica” não se aplica ao teatro de rua, porque este se apóia em outras referências estéticas e, principalmente, em outra ética. Como, então, dar vida a uma crítica teatral verdadeiramente de rua? O desafio, que diz respeito a todos os teatristas de rua, e não apenas a uma casta privilegiada, está lançado. Mas já é possível detectar algumas pistas que podem, talvez, encaminhar as primeiras discussões a esse respeito. Pode-se, por exemplo, iniciar com o que “não queremos”; não seria este o caso do próprio termo “crítica”, contaminado hoje por conotações que remetem mais ao exercício de poder de um determinado segmento social do que à função de informar, esclarecer e contribuir para o desenvolvimento da arte? O “comentarista” do teatro de rua – na mesma direção do profissional que comenta um espetáculo de futebol, por exemplo – situado no meio-termo entre a informalidade e o academicismo, poderia ser aquele artista-pesquisador que, ao utilizar o conhecimento adquirido pela experiência prática e também pelo estudo, tentaria aprofundar as questões que movem o teatro de rua, estabelecendo relações entre seus processos, procedimentos e o pensamento que, enfim, norteia tudo isso, além de acrescentar referências de outros campos do conhecimento que poderiam ampliar o entendimento de um espetáculo, uma prática, um tema. Mas essas são apenas considerações abstratas. O “comentarista” do teatro de rua é ainda uma figura informe. Poderíamos usar o termo “em construção”; porém, como esta ideia remete de algum modo à rigidez de uma estrutura fixa – equívoco que já vimos acontecer e desejamos evitar – preferimos dizer que ele é, ainda, o material maleável nas mãos de muitos escultores cuja obra coletiva, depois de pronta, será a imagem viva do espírito que os anima. p
Abertura 2ª Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas - Homenageado Foto de Augusto Paiva
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O que é essencial, dramaturgicamente falando, para os espetáculos de rua? por Calixto de Inhamuns2
A dramaturgia não se presta apenas à “contação” de histórias, mas à criação de qualquer espetáculo. É a arte de transformar em eventos, que formam uma narrativa, o que acontece antes na nossa imaginação e serve como elo entre artistas que querem mostrar alguma coisa, em determinado espaço, e um público que vai assisti-los. O suporte dramatúrgico de qualquer espetáculo é uma estrutura, que pode ser chamada de roteiro, enredo ou intriga, e que define a forma da narrativa a ser usada. A criação dessa estrutura é condicionada pelo meio (cinema, televisão e artes cênicas: teatro, canto, dança e circo), pelo que vamos mostrar, o conteúdo, e para quem vamos mostrar, o público. No texto teatral, existem dois universos: o universo do que acontece – o mito, a fábula, um grande momento de humanidade – e o da narrativa, que é como esse acontecimento é mostrado ao público. O que acontece tem origem na intuição, na imaginação, no irracional, mas é mostrado sempre de forma intencional, artificial e racional. Um mesmo mito, ou acontecimento, sempre orgânico, com princípio, meio e fim, pode ser mostrado por meio de diferentes narrativas nas quais pode ser alterada ou suprimida essa organicidade própria de qualquer evento natural, mas, destaque-se, nova ordem sempre é criada. O mito do Eterno Retorno serve de ponto de partida para dois clássicos da dramaturgia: As três irmãs, de Anton Tchekhov, e Esperando Godot, de Samuel Beckett. O mito sempre é o caminho de um arquétipo e, nos dois textos, esses arquétipos, pessoas sem forças para buscarem uma saída, esperam por um salvador que nunca vem. Em Tchekhov, esperam pela volta a Moscou; em Beckett, pela chegada de Godot. O que diferencia os dois textos? A narrativa, a forma racional e intencional como os autores mostram suas histórias. Tchekhov apresenta suas personagens com biografias e objetivos, um desenvolvimento no qual esses objetivos enfrentam obstáculos e um desenlace em que elas naufragam por falta de coragem ou de adaptação ao mundo em que vivem. Em Godot, Beckett não apresenta claramente as personagens que possuem um objetivo, mas não uma biografia, mostra eventos aparentemente desconectados como desenvolvimento e não existe um desenlace. Não sabemos explicitamente quem são ou o que acontece com as personagens, mas estão latentes indícios que nos permitem criar várias interpretações e histórias a partir do mostra2 Ator, diretor, produtor e dramaturgo. Trabalha com teatro, sempre em grupos, desde 1969. Foi um dos fundadores do Grupo Mambembe, na década de 1970, e do Studio Arteviva de Teatro, na década de 1980. Atualmente, é um dos coordenadores do Centro de Pesquisa de Teatro de Rua Rubens Brito do Núcleo Pavanelli, onde coordena oficinas de dramaturgia, e trabalha com a Companhia dos Inventivos na área de dramaturgia.
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do em cena. O mito é o mesmo, mas as narrativas dos dramaturgos fazem com que ele seja mostrado de forma diferente ao espectador. Em um espetáculo de rua, devido ao espaço cênico polifórmico, a estrutura dramatúrgica é apenas um veículo, um alicerce para a encenação. A principal função do dramaturgo, como também do encenador, é oferecer possibilidades para que os atores trabalhem e interajam com o público. O espetáculo de rua é sempre uma intervenção e, por isso, inevitavelmente interativo. Não importa que seja um encontro marcado entre um grupo de artistas e seus convidados; sempre estará por lá algum passante ou alguém que já ocupa o local do encontro pronto para reclamar ou participar, embora não convidado, da atividade invasora. A estrutura para lidar com essas situações tem que ser aberta e com várias possibilidades de saídas e voltas, mas não pode ser caótica.
revista; existem alguns que mostram uma história com a estrutura da novela, em que redundam os acontecimentos, de forma que quando alguém se aproximar da roda vai entender o que está acontecendo; outros fazem microintervenções, pílulas dramáticas. Enfim, há várias possibilidades e desafios, e é preciso criar uma teia na qual os atores possam se equilibrar, despertar o interesse dos que passam por uma rua, ou descansam em uma praça, e manter esse interesse durante toda a apresentação. É essencial para quaisquer espetáculos de rua um tema que desperte o interesse e seja, também, de interesse do espectador. Um grande equívoco é tentar fazer o que se considera ser do gosto do público, como fazem os shows de humor da televisão ou as peças do chamado teatro, para não falar malfeito ou picareta, comercial. O teatro não é guia, mas uma antena que deve captar os anseios e inquietações do seu povo e transformá-los em um evento poético.
O público que assiste a um espetáculo de rua é determinante na criação de uma dramaturgia voltada para os espaços abertos. Ele não é um público do espetáculo, mas, sim, um público que deve ser conquistado. Um espectador que está de passagem, assustado e desconfiado, pode parar por causa de qualquer acontecimento inesperado ou de algo que lhe chame a atenção, mas manter esse espectador até o fim do evento é o grande desafio. Não há fórmulas, existem formas e experiências. Alguns trabalham com eventos isolados e independentes; há os que transformam esses eventos em interdependentes, com um tema e uma personagem, ou personagens, que fazem a ligação e que os aproxima da estrutura épica ou da
Movimento Escambo – Cabeça de Papelão Foto de Augusto Paiva
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O tema é algo geral como, por exemplo, a educação brasileira, que pode ser demonstrada por meio de um assunto e interpretada por um pensamento. O assunto é um corte no tema, um evento, como o espancamento de um professor por seus alunos, que pode conter, em ação, todas as pessoas envolvidas com o universo temático. O pensamento é nossa opinião sobre o tema e o assunto, e deve ser claro, não dogmático. O artista não tem que explicar tema e pensamento; eles devem se explicar sozinhos ao longo do espetáculo. Como diz o heterônimo de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro, no poema O guardador de rebanhos: “As coisas não têm significação: têm existência.” E a função da dramaturgia é dar existências às coisas, mostrar ao público, pelos eventos, o que vai na nossa cabeça. A explicação, o significado nasce do encontro desses eventos com o público. Como diz a sabedoria popular, “os fatos falam por si”. Enfim, dramaturgicamente falando, a estrutura de um espetáculo de rua é a soma da adequação ao espaço, do tema escolhido, do nosso pensamento sobre ele, de como queremos mostrá-lo, de quem vai participar na criação e apresentação do evento, da proposta estética dos participantes, e tudo mostrado de forma intencional. Mas, para que tudo isso funcione, é essencial ter o público, mesmo contando com o imponderável das apresentações na rua, como foco. O principal objetivo não é nosso umbigo, nossa grande ideia, nossa refinada estética e apuradas performances, mas mostrar algo que interesse, sirva e agrade ao público, seja pelo riso, choro ou pelo prazer de encontrar novos conhecimentos. Amir Haddad, ao dar instruções durante um ensaio ao qual assisti, disse que os atores precisavam saber quando a música ia terminar, quando o fim se aproximava. Tentando parafrasear o mestre, uma música tem um início no momento em que você entende o ritmo e seu clima, um desenvolvimento com o qual você se envolve e vive o êxtase, e um fim que transforma você em uma nova pessoa. O final, na música, é anunciado durante o desenvolvimento, e o dançarino tem de vivenciar sua proximidade durante o êxtase. 24
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Música é dramaturgia, estrutura, e deve servir de orientação e inspiração para o trabalho dos dramaturgos. O empenho em cumprir essa missão encontrará muitos obstáculos no caminho, porém, esse processo dolorido, essa tensão criativa é que vai nos possibilitar criar uma obra de arte. E ser uma obra de arte, criação do homem para o homem, com uma função artística, é o que deve nortear a criação de um espetáculo de rua ou de quaisquer outros espetáculos. p
Movimento Escambo – Cabeça de Papelão (grafite) Foto de Augusto Paiva
Movimento Escambo – Cabeça de Papelão. Foto de Augusto Paiva
Introdução às análises críticas e um pouco de história por Alexandre Mate3
De modo semelhante à edição anterior da MOSTRA DE TEATRO DE RUA LINO ROJAS, todos os espetáculos da 4a edição foram avaliados criticamente pelos 16 estudantes-pesquisadores que compõem o atual conjunto de articulistas críticos. Nesta edição, entretanto, há uma novidade: para cada texto crítico publicado, nos casos em que os integrantes dos grupos participantes tenham demonstrado interesse, pode haver uma réplica, igualmente crítica. Em tese, foi proposto aos grupos, em carta a eles enviada na primeira semana de fevereiro de 2009, que o texto crítico apresentasse brevemente a trajetória do grupo, suas motivações, interesses e processos utilizados na construção dos espetáculos apresentados. Em seguida, a leitura crítica e, nos casos pertinentes, a réplica dos criadores comentando a leitura do espetáculo. Por intermédio de uma proposição triangular dessa natureza, o conjunto de artistas teria a possibilidade de revisitar os objetivos iniciais, verificar o que foi apreendido pelo espectador e voltar à própria obra. Evidentemente, quanto mais contundente é a leitura crítica maior a probabilidade de diálogo. Assim, além de se construir documentos acerca de um evento importante, abre-se, ao mesmo tempo, um espaço para a interlocução crítica. Por este formato, podem-se descortinar caminhos e picadas capazes de romper com uma histórica e bem urdida trama – evidentemente ideológica – segundo a qual os fazedores de teatro, especialmente os de rua, não conseguem dialogar criticamente sobre suas obras. No formato ora buscado, intentando o diálogo em diversos níveis, tem-se o desenvolvimento de um procedimento cujo modo de produção é práxico (prática e reflexão articulam-se e se completam). Por intermédio de Mikhail Bakhtin, nessa trajetória, tem-se o dialogismo do artista: múltiplas são as vozes presentes no processo de criação e de apreciação, ajudando-o a revisitar o objeto criado por ângulos e atitudes novas. 3 Professor do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), pesquisador de teatro e integrante dos Núcleos Nacional e Regional (SP) de Pesquisadores de Teatro de Rua.
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Atualmente, na cidade de São Paulo, inúmeros criadores de teatro de rua, de modo contundente e efetivo, têm se envolvido em processos de organização coletiva. Para além do grande trabalho dispendido para a produção de um espetáculo, o conceito benjaminiano – apresentado em O autor como produtor, segundo o qual tão importante quanto produzir objetos artísticos é a organização dos produtores –, tem, e de modo ampliado, reunido as forças individuais em projetos que abriguem nacionalmente os sujeitos da criação. Desse modo, dentre outras ações, merece destaque a reunião organizada pelos grandes batalhadores do teatro de rua: Jussara Trindade e Licko Turle, ligados ao grupo Tá na Rua, do Rio de Janeiro. Jussara e Licko, que têm aceitado convites e viajado incansavelmente por todo o Brasil, sempre interessados em acompanhar a produção de rua, ainda encontram tempo para organizar eventos e desenvolver curadorias. Em maio de 2009, dentre outras atividades, o querido casal convidou algumas pessoas para acompanhar o XIV Encontro de Teatro de Rua de Angra dos Reis (RJ), ocorrido naquela bela cidade. Nesse evento, houve uma reunião no Hotel Acrópolis com Jussara Trindade, Licko Turle, Zeca Ligiero, Adailton Alves, Renata Lemes, Marcos Pavanelli, Ana Rosa Tezza, Harlei Nóbrega e Alexandre Mate. Nessa reunião, fundou-se o Núcleo Nacional de Pesquisadores de Teatro de Rua, que se soma ao Movimento de Teatro de Rua (MTR), como os únicos movimentos de dimensão nacional entre os artistas de teatro. Naquela reunião no Hotel Acrópolis, depois continuada em barzinho do porto (embarcadouro de turistas), ficou claro para o grupo (ao qual se somou Michelle Cabral, do Maranhão) o quanto de militância e de esforço a formação de tal agrupamento demandaria. Ficou determinado, então, que se concentrariam esforços na elaboração de avaliações crítico-documentais dos eventos dos quais participasse cada integrante ali presente (e associado) e no esforço para ampliar as ações teatrais desenvolvidas na rua. Decorrente disso, várias ações organizacionais têm sido desenvolvidas. No Estado de São Paulo, fruto de muita luta (até onde se sabe), merecem registro: Mostra de Teatro de Rua de Sorocaba; Encontros Teatrais de Mauá de 2009, nos quais foram lançadas as pedras fundamentais para a criação do I Festival Nacional de Teatro de Rua de Mauá; I Festival Nacional de Teatro de Rua de Ilha Comprida; Tropé – 1o Festival de Teatro de Rua de Itapira... O teatro de rua tem hoje visibilidade e alcance jamais experimentados nacionalmente, mérito que deve ser creditado aos artistas, organizadores e articuladores do trabalho coletivo. * * * Os gregos da Antiguidade clássica, que sabiam muitas coisas, inclusive conferir sentidos aos vocábulos, quando criaram a palavra crítica atribuíram à ação pressuposta por aquela atividade o conceito de crise. Desse modo, o termo crítica – cuja raiz é criten e contempla o ato de filtragem, de peneiramento – transita com o ato de apreciação e exposição de julgamento. Assim, além de certo domínio do objeto de análise, o crítico precisa atravessar a doxa (senso comum) e ultrapassar o “imenso deserto” da repetição esvaziada de “gostei” e “não gostei”. O trabalho crítico como atividade de mediação faz-se por cotejos: do repertório do sujeito consigo mesmo, do objeto a ele apresentado... Mergulhado em estado de crise, o crítico precisa romper com a confortabilidade da repetição e do consagrado e apresentar um ponto de vista pessoal acerca do objeto em julgamento. Em nossa cultura – não me refiro a quem busca prestígio por meio desse fazer – assumir o estado de crise e colocar-se em evidência não é fácil. Em uma sociedade articulada por todo tipo de atravessamento próximo ao chamado 26
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“deixa que eu deixo!”, o exercício crítico é difícil e fundamental. Mostrar uma face singular e crítica, dissonante daquelas de contornos mais definidos e consagrados, é tarefa que demanda coragem... Desse modo, dentre outros aspectos, este preâmbulo pretende louvar a coragem de jovens estudantes ao assumir o desafio por mim proposto: tornar públicas suas apreciações críticas acerca de um determinado espetáculo de rua. Ao longo de 33 textos, o leitor terá acesso a exercícios críticos, fundamentados em diversas abordagens teórico-crítico-apreciativas. As reflexões críticas revelam diversos estilos e discursos. Em alguns textos o objeto pode ser visto com chaves mais verticais; entretanto, se se pensar o conceito de conteúdo como tudo aquilo que tem lugar e destaque no tempo, todas as críticas contemplam esse aspecto.
traindo beleza da crueza cotidiana de uma grande metrópole como São Paulo. À semelhança do ano anterior, o trabalho é militante (ninguém recebeu cachê). Portanto, a ida aos espetáculos dependeu de possibilidades individuais e dos horários disponíveis de cada um. Na mesma semana, além da entrega de trabalhos finais nas instituições de ensino, foi desenvolvido o importante evento Dramaturgia: as tessituras da cena, no Instituto de Artes da Unesp, nos dias 11, 12 e 13 de novembro de 2009. Vários estudantes estiveram realmente divididos entre o desejo de assistir aos espetáculos da MOSTRA e o de participar do evento, sobretudo porque o assunto lhes interessava vivamente. A simultaneidade dos eventos contribuiu para que alguns espetáculos tivessem apenas uma leitura; outros, até três. Por isso, neste ano, optou-se pela publicação de todos os textos.
Cortejo de abertura – Foto de Augusto Paiva
Os textos aqui apresentados foram produzidos por estudantes da graduação e da pós-graduação do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp). Dois estudantes da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/ USP) também compuseram o quadro inicial. Vários textos, especialmente escritos pelos artistas, não continham título. Depois de uma leitura atenta, tomei a liberdade de nomeá-los. A ordem das leituras críticas aqui presentes corresponde àquela da apresentação dos espetáculos ao longo da 4a edição da MOSTRA. As leituras críticas privilegiam diferentes estilos: da crítica à quase crônica. Em muitos dos textos revelam-se imagens do ato de troca pressuposto pelo teatro, apresentado poeticamente, ex27
Qualquer que seja a área do conhecimento, a apreensão crítica é exercício bem complexo. Em um amplo sistema de apreensão cognitiva, cujos embates entre a cultura e os gostares pessoais estão permanentemente em conflito, um espetáculo, dependendo de como seja articulado e montado, apresenta-se em finas camadas: a obra, na condição de objeto, provoca o eu; o eu, (ir)refletidamente, ainda, estabelece um juízo crítico provisório; distanciado das primeiras impressões, o eu coteja as diversas camadas de apreciação provisórias tomando as partes que constituem um todo, que é o espetáculo teatral. Se esse eu conseguir romper com um comportamento pautado em simpatias ou antipatias e vir criticamente, de fato, o objeto como ele se mostra e se propôs a fazê-lo, existe aí um confronto a um repertório solidificado. Se o olhar transitar com a dialética, mesmo que o eu não goste do objeto, poderá perceber a importância da obra, seu significado estético, histórico, coletivo. Criticar, portanto, é bem difícil. Criticar pressupõe sensibilidade, espírito aberto, estar conscientemente infenso aos preconceitos e grande propensão à flexibilização. Estudantes universitários analisaram espetáculos apresentados na rua, compreendendo obras organizadas por meio de temática, expedientes ou características estéticas, interpretação, utilização de objetos acessíveis e desenvolvidos largamente por coletivos de rua. Considerando que esse tipo de teatro, bem como seu modo de produção e seu alcance, não ter sido objeto de discussão em universidades, nem mesmo ter passado por revisão crítica, certamente os estudantes terão muito mais dificuldade para entendê-lo. Portanto, a menos que o trânsito pelas formas populares esteja sendo trilhado, o universitário tende a se chocar com a aparente simplicidade pressuposta pelo popular, que caracteriza a obra de rua. Em boa parte dos espetáculos populares apresentados na rua, o simples instaura-se a partir de uma escolha que corresponde a uma grande sofisticação, sobretudo por meio de alegorias mais facilmente apreensíveis. A sofisticação da forma não repousa sobre enigmas, por conta de o tempo de permanência do espectador depender de uma série de coisas, a saber: ele não paga ingresso e, não raras vezes, está em trânsito. A nova obra, erigida a partir de múltiplos códigos, conhecidos e desconhecidos, por meio de nova roupagem, pode aturdir o espectador crítico. A infinda complexidade da sofisticação demandada pelo simples exige outro olhar, outro modo de apreensão. Portanto, os pontos de vista aqui apresentados expressam modos e singularidades de olhares. Movimento Escambo:Intervenção - Foto de Augusto Paiva
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Como o espetáculo apresentado na rua requer uma relação de extrema proximidade (pela ausência de quartas paredes) e por despertar uma memória coletiva, ele intenta uma forma relacional mais próxima ao que se poderia nomear rito social. A obra pode se caracterizar em um cerimonial participativo físico-emocional, agregando ludicidade, emoção e apreensão crítica, revivificando uma memória seminal (de origem, atávica). Como a cultura hegemônica desdenha do infantil, da criança, da ludicidade, uma obra que promova o entusiasmo por meio de aparentes soluções simples tende a causar espanto. O grande dramaturgo, de tantas poesias intentantes da felicidade reflexiva, Luís Alberto de Abreu, em entrevista a mim concedida no Instituto de Artes da Unesp, em 15 de janeiro de 2008, afirmou: Eu gosto muito da análise que Mikhail Bakhtin faz do riso e da vitória do riso. O riso popular, regenerador, ambivalente, que vai se transformando até chegar à sociedade burguesa. Ele se transforma em uma forma de insulto, principalmente. De características e de particularidades humanas, ele se transforma em um instrumento de classe. É disso que se trata quando se diz que um espetáculo é preconceituoso: sobre gay, mulher... Quando o espetáculo é tão somente preconceituoso, que se extrai o riso daí, me parece que o ser humano se transforma em objeto, objeto de rebaixamento. Então, ele perde a característica. Com Bakhtin, a gente aprende que o riso tem de ser regenerador, grosseiro mas, ao mesmo tempo, tem de ter a qualidade poética, espiritual bastante acentuada. Claro, porque ele é ambivalente. Quando se elege uma forma de fazer teatro, nada contra o TBC, não, mas quando se elege uma forma, em detrimento de toda uma tradição brasileira, toda a tradição circense brasileira, isso acaba por me parecer como uma aberração. Quer dizer, esse tipo de coisa vai contra uma multiplicidade, que é característica da cultura popular. (...) Minha opção pelo popular é sobretudo em decorrência de uma visão de mundo, em que exista também a ambivalência representada pela divisão de importância da relação homem-mulher e a renovação expressada pela criança. Eu prefiro me colocar dentro da cultura popular, que é uma cultura múltipla e que contempla as situações todas. O que me interessa saber se o indivíduo é homossexual ou não? A cultura popular não é classificatória como a cultura patriarcal e burguesa. Tudo interessa. As pessoas múltiplas, contraditórias. Eu quero falar da construção, não da desesperança, do ceticismo. Para mim, o mundo vai durar até o ano três milhões. Um olhar técnico, racional, trágico sobre a vida não me interessa. (...) Não estou interessado na última estética, na moda, se é para gay, para loura burra... Isso, realmente, não me interessa. Me interessa trocar experiência como artista. Quando eu digo não, não é negar as coisas que estão aí. Eu aproveito tudo, mas a partir de um procedimento de troca expressiva e simbólica. Como artista, eu estou muito mais interessado em afirmar do que negar.
Reiterando e redimensionando os princípios apresentados por Abreu, o teatro e os espetáculos de rua correspondem a um permanente processo de tensão: atores e espectadores, independente de o local público ter sido transformado em espaço propício para trocas decorrentes do simbólico, “disputam a posse daquele território” transformado. De todas as críticas aqui apresentadas, isso fica mais evidente naquelas relativas à Companhia do Miolo, na Ladeira da Memória: artistas e meninos de rua, durante todo o tempo de apresentação da obra, disputaram a atenção do público e, ao mesmo tempo, demarcaram os espaços conquistados. Os estudantes de teatro, “convocados ao chamamento crítico”, de diferentes modos, corresponderam à tarefa que lhes foi confiada, apresentando olhares críticos sobre obras, cuja estética, às vezes, se lhes afiguravam desafiantes. Os artistas de rua, como sempre, estiveram presentes e fizeram a festa para os que quisessem, principalmente para aqueles que sempre ficam de fora, impedidos por todo tipo de cordão de isolamento. Função cumprida: estamos fazendo história! p 29
Leituras críticas
Impressões do público na abertura da 4a edição da MOSTRA DE TEATRO DE RUA LINO ROJAS por William Rosa4
Uma explosão sonora e visual corta algumas ruas da cidade de São Paulo, sob forma de um cortejo artístico, anunciando a abertura da 4a edição da MOSTRA DE TEATRO DE RUA LINO ROJAS. O cortejo parte das escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, sem dar muitas explicações – com cantoria, dança, buscando expandir sua alegria contagiante –, atravessa o Viaduto do Chá, passa pela Praça do Patriarca e desce para o Vale do Anhangabaú. Todos que participam da festa andante, contaminados por estar entre iguais, espalham alegria e anunciam a possibilidade de uma forma melhor de se viver. No caminho, olhares curiosos de quem está trabalhando ou apenas passando de um lado para o outro. Caminhantes em folga, trabalhadores com pressa, motoristas afobados, catadores de sucata, moradores de rua, homens e mulheres contribuintes e “mal contribuídos” param, mesmo que por um instante, como para receber o convite para o cortejo que segue... Tantos dentre os convidados sorriem desconcertados, como se precisassem de uma licença especial para participar da folia. Em uma cidade em que para quase tudo é necessária a protocolização, a autorização... Diversão coletiva... devem pensar tantos: quanto custaria? Os catadores de sucata, em tantos aspectos mais livres do que nós, seguem o cortejo alegremente e, sem medo, acompanham a comitiva como quem caminha pela cidade com um amigo visitante. Um deles, cúmplice no ato, entendendo aquele coletivo espontâneo, afirma: “Tô gostando e vou até o fim. Tô na caminhada. Estamos aí, lado a lado, eu cato latinha, trabalho com reciclagem. Tô na caminhada junto com eles.” No cortejo segue, carregando seu carrinho, cheio de tantas-coisas-latinhas balançando o corpo ao ritmo da música e cumprimentando as pessoas que passam. Senhoras e senhores “distintos” param por algum tempo, contemplam aquela espécie de alegoria e seguem seus caminhos. Alguns, é verdade, depois daquele contato, com alguma tímida e diferenciada alegria no olhar, como se essa experiência lhes tivesse trazido o prazer de uma lembrança de outrora. Crianças pulam e dançam sem medo, seguiriam o cortejo até o fim não fosse o braço do adulto puxando-os para a função do dia a dia. Alguns adolescentes também esboçam um querer pular, caminhar, cantar... chegam a fazê-lo e permitem a vida circulante tomar seus corpos e almas, dançando pelo centro, tão mais próximos daquilo que se poderia nomear liberdade. Outros, ainda podados por algum molde social de “adequação”, não se arriscam, contemplam apenas: encostados em postes ou dentro de lojas, tantos dentre esses não conseguem esconder leves sorrisos denunciantes de desejo pela possibilidade de estarem lá. Para finalizar, muitos passam sem nem mesmo observar o que acontece. Ator, professor de teatro e de arte nas redes pública e particular de ensino; mestrando em arte pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), com pesquisa sobre o “grotesco” como elemento da comicidade na representação cênica. 4
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Revista do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (MTR-SP)
Em meio a toda aquela paisagem arquitetônica e humana, o Movimento Escambo Popular Livre de Rua prepara-se para apresentar o espetáculo Cabeça de papelão. Antes mesmo de o cortejo deambular pela trajetória já anunciada, os integrantes do Movimento Escambo Popular Livre de Rua transformavam-se para a apresentação: sem camarim, sem cortina, sem coxia. Nesse processo preparatório, a céu aberto, o pré-espetáculo teatraliza e epiciza a rua e a cena, revelando algum acontecimento. A banda, com zabumba, triângulo, caixa, violão e prato, típica das tradições populares, ensaia, afina-se e, com os atores que se preparam, ajuda na divulgação do que está por vir. Algumas cadeiras ao redor do espaço de apresentação, talvez para delimitar a cena, são ocupadas por transeuntes muito antes da hora anunciada.
Os atores e músicos cumprimentam os transeuntes, chamam-nos, dialogam com alguns deles. Com a aproximação do cortejo, os artistas apresentam cantorias e estabelecem interações com o público. Em determinado momento, os artistas da praça declaram que as pernas de pau foram esquecidas no hotel. Então, por conta disso, a aproximação entre os artistas e o público, como deve ser, se dá de modo muito mais efetivo. O cortejo, ao chegar, é recebido com palmas por aqueles que já estavam no espaço de apresentação. Os representantes dos grupos participantes da Mostra erguem seus estandartes, festejam juntos, anunciando o início da apresentação.
Cortejo de Encerramento – Cidade Tiradentes Foto de Augusto Paiva
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O espetáculo Cabeça de papelão – criado pelos integrantes dos grupos que compõem o Movimento Escambo Popular Livre de Rua, que também são os homenageados da Mostra – é uma adaptação feita por Junio Santos de texto de João do Rio. O assunto de Cabeça de papelão propõe algumas reflexões a respeito da vida social do cidadão, da importância de sua participação política na sociedade e de como essa participação é prejudicada por “vícios e hábitos cultuados” pela cultura da (in)justiça brasileira. Na obra, apresenta-se a saga da personagem Antenor (que se caracteriza em retrato do cidadão comum), de sua situação de desempregado até a ocupação de uma função ambiciosa, seduzido pela ideia gananciosa de trabalho fácil, em que utopias e sonhos são apresentados como “coisas de vagabundos”. Difícil mensurar a assimilação dos discursos ideológicos, políticos, sociais e sexuais propostos pela apresentação; entretanto, mesmo sem a pretensão de realizar uma análise crítica do espetáculo – e atendo-me ao solicitado por Alexandre Mate –, apresento aqui algumas observações, fruto de um olhar atento acerca da recepção da obra. Pode-se afirmar serem duas as situações predominantes por intermédio das quais Cabeça de papelão se organiza: cenas estruturadas a partir de questões político-ideológicas e relações entre identidade, poder e opressão; cenas cuja tônica são marcadas por conotação sexual, e suas relações com a realidade social (em que o grotesco ou escatológico aparecem como símbolo de revolta contra a opressão indicada). No primeiro eixo, por intermédio de intenso lirismo, poesia e narrativas versadas ou cantadas, desenvolve-se a trajetória de Antenor. O público é convidado a acompanhar a trajetória da narrativa ou a se manifestar, como é característico do espetáculo popular, espontaneamente. Em uma das primeiras cenas do espetáculo ouve-se a poesia: Morreu fulano de tal! Morreu fulano de tal, nas portas da multinacional. Onde o letreiro dizia: Não há vagas. Não insista. Não perturbe. Não persista. 32
Revista do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (MTR-SP)
Movimento Escambo – Cabeça de Papelão
Da plateia, como que para si mesmo, um cidadão comenta: “Se não tem [emprego], fazer o quê? Fica sem trabalhar”. A manifestação conformada, e isso está dito no material de divulgação do grupo (release), parece caracterizar certo modo de aceitação do que ocorre socialmente. Desse modo, apontam os criadores da obra no material de divulgação que tais reações tendem a caracterizar “Modelos de democracia e de sociedade com regras definidas e manipuladas pelas elites”. Tanto o documento escrito como o espetáculo expressam, de certa forma, com o que concordo, que o processo de conscientização política e social necessita de continuidade e de uma relação permanente pautada na dialética do aprendizado. É inquestionável que manifestações culturais como o teatro de rua contribuem e justificam seu papel na for-
mação política, social e humana do homem, nesse caso, de todas as classes, porque ninguém, em tese, é segregado. O segundo caso “costura” o espetáculo, buscando uma relação voltada aos aspectos da comicidade, do riso que contrasta e ironiza a situação de Antenor. Faz uso do grotesco, da hipérbole, da ironia, do trocadilho de palavras e está presente em toda a construção estética do espetáculo: figurinos, caracterização, maquiagem, adereços e na fisicalidade corporal.
Foto de Augusto Paiva
Cada cena narrada do espetáculo, portanto, explicitamente épica, é contrastada por uma dança ou canto, que busca a interação com o público. Em um desses momentos, alguns atores usam como amuleto preso ao pescoço falos (pênis) gigantes. O adereço do órgão sexual masculino representa uma gravata; os sacos escrotais, sacos de dinheiro. Trata-se de interessantíssima e jocosa representação do “engravatado”. As reações, quando os atores caminham e interagem com o público, são diversas, predominando o repúdio e, tantas vezes, certo riso puritano. Quando um homem da plateia aceita beijar o falo a reação de gozação é imediata, mas quando outras pessoas, entre elas uma senhora, passam a tocar no órgão, o tabu sexual convencional é desmistificado. Mais uma vez o grupo provoca estranhamento no público e, a partir da hipérbole e do cômico, induz ao questionamento de relações sociais construídas com base no preconceito, na hipocrisia, na sociedade patriarcal e machista.
Trocadilhos de palavras com o nome do prefeito da cidade são rapidamente assimilados pelo público. Em uma cena, Antenor, sob a pretensiosa titularidade de governante, vai discursar, mas há uma superposição de falas. Junio Santos ironiza a cena e dialoga com a plateia, comentando a situação. A personagem apresentada por Junio Santos pede aplausos para nosso herói e também que ele discurse. Antenor, num gesto exagerado, diz, em tom empolado: “blábláblá”. Atores e músicos aplaudem, propondo certa adesão do público ao jogo. Após o segundo discurso, também composto por blablação, Junio Santos elogia ironicamente Antenor e, evoluindo foneticamente, afirma: “Esse cara sabe, esse cara sabe, (...) esse cassabe, esse cassabe...”5 O trocadilho é rapidamente assimilado pelas pessoas, que aprovam a comparação e aproveitam para se deleitar com a oportunidade de manifestação pública. Essa “permissão” gerada pela comédia, de certo modo, compensa explorações e manipulações sofridas pela sociedade. No final da apresentação, coleto algumas impressões do público, com o auxílio de um grande amigo, o professor de educação física Rubens Rodrigues da Silva, que gravou em áudio alguns relatos. A maioria das impressões apresenta o conceito de arte apenas como forma de entretenimento. A ideia de uma manifestação artística como ambiente de discussão política, oportunidade de troca e de construção de identidade coletiva, é também um processo lento, porém possível. Desse modo, concluo o texto com as palavras de uma espectadora: “Hoje tem tanta coisa de graça, e a gente não tem acesso ou não aproveita. Estou vendo agora um tempo que as coisas melhores, assim, estão de graça, na rua...” p 5
Alusão ao atual prefeito da cidade de São Paulo, Gilberto Kassab.
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Resistir para existir por Josy Rouse6 Regar o jardim, para animar o verde! Dar água às plantas sedentas! Dê mais que o bastante. E não esqueça os arbustos, também Os sem frutos, os exaustos E avaros! E não negligencie As ervas entre as flores, que também Têm sede. Nem molhe apenas A relva fresca ou somente a ressecada: Refresque também o solo nu.
Regar o jardim. Bertolt BRECHT.
A convite de Alexandre Mate7, tive a oportunidade de acompanhar a MOSTRA DE TEATRO DE RUA LINO ROJAS. Encantaram-me tantas criações, tanta expressividade rigorosamente “colocada a serviço” de uma plateia de transeuntes, que ora parava e assistia ao espetáculo, ora passava pela cena indiferente ao que acontecia. Transeuntes distraídos por conta de tantos afazeres impostos pela grande metrópole. Assisti a sete espetáculos. Em todos eles, a participação de negros (como artistas e também como plateia) foi bastante expressiva. Considerando todas as manifestações culturais às quais Atriz e estudante do curso de Licenciatura em Arte – Teatro no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp). 6
7 O convite me foi feito por conta de eu estar desenvolvendo, no momento, um projeto de pesquisa que pretende verificar a participação dos afrodescendentes em determinados momentos e aspectos da história da cultura no Brasil.
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Revista do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (MTR-SP)
Oi Nóis Aqui Traveis: O Amargo Santo da Purificação Foto de Joca Duarte
tive oportunidade de assistir até então, quase não me lembro de tê-los visto nessas manifestações. Hoje, por conta de minha pesquisa, sempre que vou ao teatro convencional, procuro perceber se há a participação de negros no espetáculo ao qual estou assistindo. Como negra que sou, sempre me faço a pergunta: Onde estão os negros de teatro nesta cidade conhecida como a cidade da diversidade? Ao observar a significativa participação de inúmeros negros no movimento de teatro de rua, espaço marcadamente democrático, no qual não cabem preconceitos nem segregacionismos característicos do teatro
hegemônico, pode-se, sim, falar em certa forma de resistência. Os negros, principalmente os do teatro de rua, os que se envolvem com formas populares e os que participam de cursos de teatro desenvolvidos em comunidades, estão lutando, buscando canais de expressão. É no espaço da rua que nos expressamos livremente e revelamos nosso comprometimento social. Para romper o paradigma segundo o qual no Brasil não há preconceito racial, é necessário um processo de tomada de consciência que seja capaz de transformar profundamente a sociedade. Por isso, o teatro de rua não pode ficar à margem desse processo, sobretudo porque ele é feito na rua e para a rua, com todos os seus mendigos, camelôs e todos os demais marginalizados que bravamente sobrevivem na grande metrópole. Nessa medida, todos estamos (negros ou não) em constante processo de luta que seja capaz de transformar essa sociedade que vive à sombra de uma elite que manda e desmanda. Abdias do Nascimento8, ao idealizar o Teatro Experimental do Negro (TEN), no Rio de Janeiro, declarou que o objetivo era criar: [...] um organismo teatral aberto ao protagonismo do negro, onde ele ascendesse da condição adjetiva e folclórica para o sujeito e herói das histórias que representasse. Antes que uma reivindicação ou um protesto, compreende a mudança pretendida na minha ação futura como a defesa da verdade cultural do Brasil e uma contribuição ao Humanismo que respeita todos os homens e as diversas culturas com suas respectivas essencialidades.9
Foi esse respeito mencionado por Abdias do Nascimento que senti nos dias em que assisti aos espetáculos da 4a edição da MOSTRA DE TEATRO DE RUA LINO ROJAS, da qual participaram grupos da periferia da cidade de São Paulo e de cidades vizinhas, do Rio Grande do Sul, do Rio Grande do Norte, e também do homenageado Movimento Escambo Popular Livre de Rua, composto de vários grupos de rua de diversos Estados brasileiros. É essa sensação de congraçamento que ficou depois da experiência tão significativa e, ao mesmo tempo, de muitas inquietações. p
Cortejo de Encerramento – Cidade Tiradentes - Foto de Augusto Paiva
Ativista pan-africanista, professor emérito da Universidade de Nova Iorque (EUA), fundador do Teatro Experimental do Negro (1944-1968) e do Museu de Arte Negra, deputado federal, senador e secretário do Governo do Estado do Rio de Janeiro. 8
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Elisa Larkin NASCIMENTO. Sortilégio da cor – identidade, raça e gênero no Brasil. São Paulo: Selo Negro Edições, 2003, p.322.
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Circo Nosotros (São Paulo/SP)
Circo Nosotros: O Salto Mortal - Foto de Augusto Paiva
E com vocês, o salto mortal! por Jackeline Stefanski10
Agitação diferente numa manhã chuvosa de domingo na Praça Padre João Bosco Penido Burnier, no Jardim Julieta, na Zona Norte da cidade de São Paulo, que abrigava também uma feira livre. Algumas pessoas montam uma arena de circo! Um aglomerado de gente na praça: de muitas janelas dos prédios ao redor, moradores aguardavam em seus “camarotes” que a apresentação começasse. Gente circulando de um lado a outro, sobretudo perto da Kombi que, naquele momento, servia de camarim aos atores e aos músicos. Próximo de o espetáculo começar, maquiagem e vestimenta já pareciam prontas para dar início à apresentação, e o burburinho se amplia. Apesar de o domingo ser um pouco invocado (muito nublado e com uma fina garoa) e de o início da apresentação estar atrasada, ninguém arredava o pé dali. Espetáculo com pastel, caldo de cana e caixotes de madeira espalhados pelo chão, que serviram de “poltronas” para os espectadores: boa pedida para a diversão. Homens, mulheres, crianças e velhos, bêbados, cachorros, moradores de rua... Todos ansiosos para assistir ao espetáculo O salto mortal. O grupo paulistano Circo Nosotros existe há nove anos e há um ano preparava O salto mortal, especialmente para estrear, caso fossem selecionados, como aconteceu, na 4a Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas. O espetáculo tem como base divertidos esquetes circenses, apresentados por Kapilé e Pinguinho, vividos por Marcelo Milan e Sandra Saraiva, e conta com dois músicos, que apresentam toda a trilha ao vivo: Otávio Ortega e Daniel Camilo. Desde o início, as contradições e contrastes da dupla de palhaços: a pequena e frágil Pinguinho: esperta e perspicaz assistente do grandão e forte, porém atrapalhado Kapilé. A dupla de palhaços, de acordo com a melhor tradição, interage o tempo todo com a plateia, criando um acordo de confiança e intimidade. Atriz e professora de teatro. Atualmente cursa Licenciatura em Artes – Teatro no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp).
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Todo o resto é gargalhada. Travessuras e enganos colocam a mocinha e o vilão – nem tão vilão assim – em situações divertidíssimas, como em um número de mágica forjado por Kapilé para enganar sua parceira. A trapaça é descoberta pela ajuda do público, especialmente das crianças que, de prontidão e ligadas ao espetáculo, denunciam toda a trapaça.
que concorria com eles o barulho da praça, da feira e o som dos instrumentos que, por vezes, se sobressaíam à voz dos dois.
A música ao vivo, com efeitos sonoros que sublinhavam as tensões e intenções de cada situação, merece destaque. O trabalho de criação musical apresenta uma atmosfera um tanto mágica que funciona até mesmo para distanciar tantos espectadores daqueles momentos do nosso ordinário cotidiano. De repente, por intermédio da música, era possível se esquecer de tudo e fincar o espírito naquele momento em que, o que não é pouco, ria-se muito.
Se não para todos, mas para um bom número daqueles que se encontravam naquela praça, o espetáculo representou uma experiência revigorante!
Apesar de a apresentação ter sido longa, o grupo manteve um bom ritmo e o tom “pastelão”, que lembrava os tempos idos de O Gordo e o Magro, conseguindo fazer das confusões grande fonte de diversão. Até mesmo quando finalmente chegara a hora de apresentar o número de “o grande salto mortal”, que dá nome ao espetáculo, percebemos todos que o aludido salto não aconteceria: não se poderia esperar por ele. De outro modo, não houve o salto, mas muita alegria.
A apresentação, tendo em vista a dramaturgia se organizar a partir de números bastante conhecidos, pode-se dizer, e no melhor sentido, era despretensiosa, cheia de comunhão e conseguia surpreender. Espetáculo criado a partir daquela ingenuidade gostosa do circo que hoje não se vê muito.
Circo Nosotros: O Salto Mortal - Foto de Augusto Paiva
Já ao final do espetáculo, em um número de duas lavadeiras, quando pensamos que os palhaços jogariam água no público, recebemos uma chuva de confetes, ao som de pratos de bateria e muita festa. Apesar do esforço do público para acompanhar cada detalhe do espetáculo, era difícil compreender tudo o que os palhaços diziam, por37
Circo Nosotros: O Salto Mortal - Foto de Augusto Paiva
Hoje tem marmelada por Roberta Ninin11
Avenida do Poeta, Jardim Julieta, Zona Norte da cidade de São Paulo. Aparentemente, um local tranquilo na metrópole paulista. À frente do local indicado, um campinho de futebol. Mais à direita, outro campinho. À esquerda, mais outro. Crianças, jovens, adultos e velhos, talvez “poetas e Julietas”, andam nas ruas carregando sacolas com frutas e verduras. É a feira do domingo. Nesse dia, um pedaço do céu estava plantado no chão da Praça João Bosco Penido Burnier, encostado à feira. O picadeiro do Circo Nosotros, de lona azul com estrelas brancas, ao ar livre, como um arejado palco de tradição popular, foi destinado aos moradores do bairro e aos espectadores que ali se aproximavam; acomodados em pé, no chão e em caixotes emprestados dos feirantes. Convidados, primeiramente, por um som gravado e, posteriormente, pelo som da anunciada “Grandiosa Orquestra”, composta por bateria (Otávio Ortega), sanfona (Daniel Camilo) e violino (palhaço Kapilé/Marcelo Milan). O palhaço, com a ponta do nariz pintada de vermelho, usando uma camisa sem manga, de suspensório, evidenciando os fortes braços, pedia ao público para se aproximar porque “O circo chegou!”. Palmas do público. Inicia-se o espetáculo: O salto mortal. Uma cadeira azul, no centro do picadeiro, servirá de trampolim para a satirização de um dos fundamentais exercícios presentes nos números de acrobacias no espetáculo do circo: o salto mortal. Parodiar o número que, a princípio, se configura em ridicularizar o saltador circense, é deslocar o foco para a comicidade e para as atrapalhadas dos palhaços. Para tanto, Kapilé, que significa bebida composta de xarope, portanto doce – e de doce ele não tem nada!; é, sim, um tipo cômico antipático e altivo –, chama em alta voz, com a ajuda do público, sua parceira de picadeiro, a delicada palhaça Pinguinho (Sandra Saraiva) que, apesar das duas inocentes chiquinhas nos cabelos, vai aprontar muito com Kapilé. Objetivo principal: fazer o público rir. Atriz e arte-educadora, graduada em Educação Artística – habilitação em Artes Cênicas; mestra pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) – Título da dissertação: Projeto Comédia popular brasileira da Fraternal Companhia de Arte e Malas-Artes (1993-2008): Trajetória do ver, ouvir e imaginar.
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Abandona-se a cadeira azul. Com maestria, o repertório desenvolvido pelos palhaços, repleto de esquetes ou entradas (semelhante aos canovacci da commedia dell’arte, roteiros resumidos de intrigas) tradicionais do circo brasileiro, servia de mote às improvisações cômicas de Kapilé e Pinguinho. Um exemplo disso é a reprise denominada “As lavadeiras”, uma entrada, sem o uso da palavra e ao som dos músicos, em que cada palhaço retira de seu caixote adereços e vestem-se de lavadeiras, com seios enormes e lenço na cabeça. Em suas bacias, começam a lavar roupas. Kapilé, mais brusco na esfregação da roupa, espirra água no público. De olho no balde de água e no sabão da lavadeira Pinguinho, Kapilé rouba-os. Ela vai cobrar de Kapilé e iniciam uma hilariante briga, com direito a furo dos fartos seios (de bexiga) das lavadeiras. Pinguinho corre de Kapilé, que joga, no público, o balde cheio de... confete. Ufa! Gargalhadas. Mais esquetes e números circenses foram apreciados pelo público. O corpo, principal instrumento espetacular da dupla cômica, foi central na comunicação com a plateia, tendo em vista a competição desleal com a dissonante polifonia da feira. A exploração do sublime ao desafiar as leis naturais esteve presente nas acrobacias dos treinados palhaços, no malabarismo com facas realizado por Kapilé e pelo baterista da orquestra, mais a ilustre presença de um corajoso voluntário da plateia entre os malabaristas. Tensão e risco: Pinguinho em pé equilibra-se na cabeça de Kapilé. Logo, a descontração domina o picadeiro, novamente por meio do grotesco das trucagens e falcatruas dos palhaços. As crianças deliravam, torciam animadamente para Pinguinho, e um homem, um tanto embriagado naquela manhã de domingo, para Kapilé. A autoridade do palhaço Kapilé, somado à sua masculinidade exposta em seus dotes musculares, se sobrepôs, intencionalmente em alguns momentos, à fragilidade do esperto corpo miúdo da Pinguinho. Tensão cômica: abstração da hierarquia da sociedade de classes. Fraco versus Forte. Quem é o forte? E o público? Festa: manifesta festa. p Circo Nosotros: O Salto Mortal - Foto de Augusto Paiva
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Bando La Trupe (Natal/RN)
O Bando La Trupe por ele mesmo O Bando La Trupe desenvolve ações culturais que priorizam especialmente setores periféricos de Estados do Nordeste, com o objetivo de socializar bens culturais populares, saberes, pensares e produções num constante diálogo com a arte contemporânea e suas vanguardas. Além disso, os integrantes do grupo buscam ressignificar o teatro livre de rua e desenvolver ações nas chamadas frentes de alfabetização estética e artística por meio de oficinas e ações artísticas nas redes de ensino formal e informal. Milita na promoção de políticas públicas que fomentem a produção cultural e a promoção, atenção e respeito aos direitos humanos universais. Ao apresentar espetáculos e performances com temáticas sociais cotidianas pertinentes, o grupo pretende, também, estimular a formação do espectador crítico, afinado com seu tempo e espaço histórico-sociais. Nos espetáculos, são utilizadas técnicas e resultados de pesquisas realizadas por integrantes do Movimento Escambo Popular Livre de Rua, tomando-se por referencial as personagens das feiras populares, os camelôs, os vendedores de banho de tejo e os mestres populares do Nordeste, apropriando-se, assim, das histórias do povo, para, por meio do teatro livre da rua, ressignificá-las, propiciando e estimulando a atitude reflexiva. Nos espetáculos, são utilizados expedientes e técnicas do teatro épico brechtiano, cujo objetivo principal centra-se na criação de obras que provoquem o espectador como sujeito histórico e crítico. Desse modo, pretende-se que o espectador analise a ação cênica, atue sobre ela e que participe ativamente da ação teatral como ator dos desmembramentos que o espetáculo provoque. 40
Revista do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (MTR-SP)
Bando La Trupe: Alice e Severino Foto de Augusto Paiva
Ao acreditar na capacidade transformadora e crítica da arte, o Bando experimenta permanentemente novas soluções cênicas, transformando velhos códigos estéticos do teatro para apresentar novos pontos de vista sobre fenômenos sociais por meio dos quais a reflexão dos conflitos seja redimensionada. Após inúmeras experiências artísticas, o Bando La Trupe sente a necessidade latente de abordar a temática universal do amor de modo diferenciado. Volta-se para o entorno e depara-se com o texto poético teatral Alice e Severino, surgido de uma pesquisa sobre a metodologia de criação de textos teatrais, intitulada antropoteatria, uma das metodologias estudadas pelo grupo em um determinado momento e que se caracterizou como uma primeira experiência com a antropoteatria, na cidade de Janduís (sertão do Rio Grande do Norte), em 1989. Essa pesquisa foi orientada pelo poeta e autor Ray Lima, e contou com a contribuição dos pesquisadores João Bosco Gurgel e Irene Lopes Galdino. Desse processo, duas personagens reais da cidade de Janduís foram priorizadas:
Alice da Vaca e Severino da Velha. O texto é uma construção lírica e poética que enfoca o amor na velhice, propõe reflexões sobre a realidade cáustica da seca e expõe as (im) possibilidades do amor. Por absoluta crença em uma arte livre que possa ser desenvolvida em qualquer lugar e a qualquer hora, sem restrições de classe social, gênero ou grupo étnico, surge, em 2004, o Bando La Trupe, que tem brincado pelas ruas e praças do Brasil. O espetáculo Alice e Severino estreou no XXIV Escambo Popular Livre de Rua, em Janduís (RN), em março de 2009, e já foi apresentado em: • junho de 2009, em Umarizal (RN) e região do médio-oeste do Estado do Rio Grande do Norte: Caraúbas (RN), Martins (RN) e Parnamirim (RN); • em setembro de 2008, em São Miguel do Gostoso (RN); • em maio, junho, julho, agosto e outubro de 2009, em diversos locais da cidade de Natal (RN), com destaque para a Rua do Meio: Rua do Bando La Trupe; • em novembro de 2009, com apresentações durante a 4a edição da MOSTRA DE TEATRO DE RUA LINO ROJAS, em São Paulo (SP); • em dezembro de 2009, no Festival de Teatro de Rua do Recife (PE).
Bando La Trupe: Alice e Severino - Foto de Augusto Paiva
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Alice e Severino – Quem sabe um dia, um outro jeito de viver por Daniela Giampietro12
Novembro de 2009. Cinco horas da tarde de um domingo nublado. No Parque Santo Antônio, extremo sul da cidade de São Paulo, um grupo prepara-se para a função. Trata-se do grupo teatral Bando La Trupe, que apresenta aos espectadores seu espetáculo de rua Alice e Severino. Neste dia, a Brava Companhia, companhia teatral paulistana sediada no espaço público Sacolão das Artes, deu abrigo a um dos inúmeros espetáculos da 4a MOSTRA DE TEATRO DE RUA LINO ROJAS. O clima instável da capital sugere à trupe, vinda do Rio Grande do Norte, apresentar do lado de dentro do Galpão. Após o anúncio do espetáculo pela caixa de som que fica do lado de fora da sede, formou-se um cortejo que saiu pelas ruas do quarteirão, ao som e ao ritmo dos músicos participantes do Movimento Escambo Popular Livre de Rua. Pelas casas simples e vielas apertadas, o cortejo desperta a atenção de moradores que, curiosos, aparecem, mas resistem seguir os artistas. Na estreita travessa Jetulina, um morador, incomodado pelo barulho, ameaça os músicos e os participantes do cortejo, que são obrigados a voltar às pressas. Em frente à sede da Brava Companhia, uma ciranda improvisada “desanda” devido à precariedade do espaço, tornando visível a contradição entre o urbano e a forma de ocupação da boa e velha festividade popular. Já do lado de dentro, músicos e atores a postos convidam os espectadores a “adentrar o sertão e o mar”, que caracterizariam aquele espaço de representação, deixando para trás a loucura da cidade. Estudante do curso de graduação em Artes Cênicas – Teatro da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), é educadora do curso de teatro infanto-juvenil da Fundação das Artes de São Caetano do Sul e faz parte da Companhia Estável de Teatro.
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Revista do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (MTR-SP)
Bando La Trupe: Alice e Severino Foto de Augusto Paiva
Com estrutura fragmentada, o espetáculo narra o amor entre duas personagens que, cansadas, deparam-se com a velhice e com tantas formas de abandono. O passado de amor de Alice e Severino vem à tona pelas intervenções narrativas das personagens, entrecortadas por músicas e versos que assumem função épica e lírica no espetáculo. Elementos da cultura popular, como o uso de perna de pau, brincadeiras diretas com a plateia e o próprio registro da interpretação dos atores – sobretudo na bufonaria dos palhaços e nas alusões e tratamento das festas populares brasileiras – ficaram um pouco prejudicados pelo fato de a representação ter ocorrido em espaço fechado. Completando a poética da cena, o cenário, feito de retalhos de redes artesanais, e o figurino, simples e criativo, ajudaram o espectador a jogar com o universo dessas personagens, conscientes de suas mazelas e de sua solidão. p
Grupo Teatral Nativos Terra Rasgada (Sorocaba/SP)
Grupo Teatral Nativos Terra Rasgada: Zorobe: ouviu-se um lamento - era o som de um jumento - Foto de Augusto Paiva
A busca e o trabalho por um teatro popular, histórico e crítico O Grupo Teatral Nativos Terra Rasgada está situado em Sorocaba, uma cidade de porte médio no interior do Estado de São Paulo, a aproximadamente 90 km da capital. Com cerca de 610 mil habitantes e recolhimento anual de 1 bilhão de reais, dos quais 8 milhões são destinados à pasta da Secretaria da Cultura. Criado em janeiro de 2003, o grupo foi constituído por jovens estudantes de escolas públicas da cidade. Em seu processo de formação, os jovens participaram de oficinas de arte patrocinadas pela Prefeitura, oficinas culturais, cursos técnicos e superior em Teatro e Arte-Educação pela Universidade de Sorocaba (Uniso). Sempre ligado politicamente aos acontecimentos da cidade, o grupo assumiu, em 2006, a diretoria da Associação Teatral de Sorocaba, aproximando-se, assim, dos diálogos e das deliberações que envolviam políticas públicas culturais na cidade. Nesse mesmo ano, optou por se tornar um grupo de pesquisa, dando início a um trabalho de campo em feiras, centros de aglomeração popular e escolas, a fim de identificar os anseios da população com relação a sua necessidade estética e artística. O grupo apóia sua pesquisa na cultura popular, descentralização e despolarização do teatro em Sorocaba, pois entende que a aproximação e identificação dos populares com as propostas do grupo são intermináveis e oportunas, na medida em que seus integrantes se identificam com a necessidade de aprimoramento estético, social e político do grupo e da sociedade civil, que pode se organizar a partir de estímulos dessa natureza. O grupo foi contemplado pela Lei de Incentivo à Cultura (LINC) de Sorocaba, em 2006, 2007 e 2008, com os respectivos projetos e peças: “Teatro – Ataque Popular”, realizando 24 apresentações da peça A romaria: milagre na Manchester Paulista, em 12 bairros da cidade 43
(essa foi a primeira peça de rua do grupo); “Sorocaba Nossa Terra”, com 25 apresentações da peça Zorobe – ouviu-se um lamento: era a história de um jumento, apresentada em 25 bairros, graças à verba da LINC, e mais 45 outras em projetos por cidades de todo o Estado; e, por fim, “O Teatro Público: Vivência e Identidade pelos Bairros de Sorocaba”, com a participação de 45 moradores de comunidades da Zona Norte da cidade, processo que resultou na montagem da peça Vila à vista! Foram cinco meses de trabalho e seis apresentações realizadas no centro comunitário do bairro. O grupo acredita na capacidade de humanização do teatro, e que isso possa ocorrer de modo mais intenso nas comunidades em que esses coletivos venham a desenvolver suas ações. Assim, com investimento e insistência, os integrantes do grupo acreditam que a arte parida e dialogada com os integrantes da comunidade tenderão a transformar o teatro em manifestação verdadeiramente popular. Hoje, o grupo encontra-se em fase de expansão de sua pesquisa e busca estabelecer nexos com acontecimentos históricos e geográficos que possam promover alterações em nossa formação cultural. Assim, por meio de ensaios em espaços abertos, pretende recolocar a cultura popular em seu lugar de origem: um teatro voltado aos populares, com conteúdo crítico e político.
Grupo Teatral Nativos Terra Rasgada: Zorobe: ouviu-se um lamento - era o som de um jumento - Foto de Anelise Camargo
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Revista do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (MTR-SP)
Bela música em volume muito baixo por José Cetra Filho13
O simpático e jovem grupo de Sorocaba tem oficialmente sete anos de vida, e a origem de seu nome vem de sua cidade (Sorocaba, em tupi-guarani, significa terra rasgada). O grupo declara-se regionalista, procurando, em seus espetáculos, contar histórias relativas à sua cidade. Assim acontece com Zorobe..., que conta a história de um jumento vindo do Rio Grande do Sul, trazido por tropeiros para ser leiloado em Sorocaba (SP). As aventuras de Zorobe durante a viagem são contadas com recursos simples por cinco atores. Cada um deles traz consigo um caixote do qual saem todos os adereços necessários para apresentar as personagens da história.
mais altos. Isso aparece no texto (de Ramon Ayres e Daiana Coelho, integrantes do grupo; na direção (de Ramon Ayres e Tom Ravazoli) e na interpretação dos atores, que não conseguiram seduzir o público, apesar da interessante história do desditoso muar (mula). A sensação era aquela de estar ouvindo uma bela música num volume muito baixo. O espaço dramático pouco definido, assim como a imensidão do Vale (desconhecido pelo elenco) talvez tenham se caracterizado em fatores que contribuíram para o espetáculo não ter entusiasmado o público. Os Nativos Terra Rasgada fundamentam suas pesquisas estéticas no teatro popular e na democratização da arte teatral na cidade de Sorocaba. São jovens muito bem intencionados e possuidores de uma bagagem intelectual que permite vislumbrar um promissor futuro para o grupo.
Grupo Teatral Nativos Terra Rasgada: Zorobe: ouviu-se um lamento - era o som de um jumento Foto de Augusto Paiva
Várias cenas do espetáculo são ambientadas em locais de Sorocaba, como o Largo da Matriz, por exemplo. Entretanto, para quem não conhece a cidade, tal informação passa despercebida. Se espaços e locais são importantes em certas obras, e esse é o caso de Zorobe..., sua omissão caracteriza-se em problema dramatúrgico. O final aberto do espetáculo (em que Zorobe termina sua travessia?), ao transferir ao público a responsabilidade pelo destino da personagem, expressa uma interessante solução de desfecho. Talvez o maior problema do espetáculo esteja em certa e apreensível timidez dos integrantes do grupo, e em certo receio de arriscar voos Pesquisador de teatro, com pesquisa de mestrado no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), cuja problematização está ligada ao espectador teatral.
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Uma viagem pelo imaginário sorocabano por Narah Neckis14
O Grupo Teatral Nativos Terra Rasgada, do município de Sorocaba, marcou presença na 4a MOSTRA DE TEATRO DE RUA LINO ROJAS com o espetáculo Zorobe – ouviu-se um lamento: era a história de um jumento, dirigido por Ramon Ayres e Tom Ravazoli. O poético texto infanto-juvenil de Ramon Ayres e Daiana Coelho conta a história da formação da cidade de Sorocaba sob o ponto de vista de um jumento. À procura do pai, Zorobe, o guerreiro valente, vive muitas aventuras: participa da Feira de Muais, da construção da Catedral de Sorocaba, da Cavalhada (competição entre cavalheiros mouros e cristãos realizada no Largo da Matriz de Sorocaba), entre tantas outras, recuperando, assim, parte da história do chamado ciclo tropeiro, da cidade e da região. A encenação é cuidadosa, o cenário é simples e funcional. Caixotes, espumas e tecidos criam diferentes paisagens, instigando a imaginação do público por meio de estímulos e de narrativas criadas e socializadas pela oralidade e imaginário populares, a partir das quais se vivencia certo surgimento de Sorocaba. Outro ponto a ser ressaltado é a maquiagem – leve e muito bem elaborada –, responsável por evidenciar os tipos das personagens. Zorobe, por ser curioso, é apresentado com grandes olhos; o tio Piri, por ser extremamente racional, tem uma enorme mancha na cabeça.
personagens dirigem-se para o público e cantam uma canção que explicita uma eterna necessidade humana: a amizade. Em um dos refrões, quase bordão, a canção solicita: “Amigo, amigo, vem ser meu amigo”.
O grupo é composto por jovens atores que ainda não apresentam técnica apurada. Entretanto, percebe-se neles amor e disponibilidade para o fazer teatral. Embora o texto não permita grandes improvisações, os atores jogam constantemente com a plateia. Um momento de grande afeição e de conquista do público é exatamente quando as
Apesar de o espetáculo ainda exigir alguns acertos, sobretudo por se inserir na estética da rua, o grupo conseguiu, mesmo com a chuva que caía sobre a cidade, sensibilizar transeuntes e moradores abandonados do centro da cidade.
Atriz formada em Teatro pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) e em Direito pela Universidade Mackenzie. É integrante do Grupo de Pesquisa Teatral Nativação.
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Grupo Teatral Nativos Terra Rasgada: Zorobe: ouviu-se um lamento - era o som de um jumento Foto de Augusto Paiva
Revista do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (MTR-SP)
O “esparramento” das raízes de uma árvore plantada em uma terra rasgada (réplica) Conseguimos, enfim, mostrar nosso trabalho na capital do Estado de São Paulo, no Vale do Anhangabaú que, para nós, filhos da terra rasgada, é um gigante e assustador Vale. Vivenciamos com prazer a 4a MOSTRA DE TEATRO DE RUA LINO ROJAS, especialmente porque o grupo pretende expandir seus trabalhos sempre ligados aos fatores culturais que nos identificam como seres sociais em suas diversas formas de reconhecimento e distinção. Em Zorobe..., texto, conteúdo abordado, expedientes estéticos... tudo se relaciona diretamente com Sorocaba e região, sendo que toda a criação é de autoria do grupo. É uma peça que pode, em alguns momentos, solicitar ao espectador uma relação mínima com o caipirismo típico do interior do Estado, mas que, para os caipiras artistas, representa uma abordagem estética que transcende tais limites. Por meio das poesias imagéticas e textuais, vistas pelo viés de um dos inúmeros jumentos que carregaram Sorocaba nas costas, surgem narrativas de outros espaços, num processo de “esparramento” de nossas raízes culturais.
Na peça, são utilizados vários recursos visuais confeccionados pelo grupo, tais como bonecos gigantes, cavalos típicos das cavalhadas e objetos da imaginação de Zorobe, o jumento contador de histórias. Imagens e sons dialogam a fim de recriar lugares físicos e imaginários, situações reais e lúdicas, contemplando uma única lógica, a da beleza estética e histórica, da qual nos alimentamos culturalmente. A peça propõe um clima aconchegante, mas a dimensão do Vale do Anhangabaú revelou outro norte para os atores, e isso foi determinante, pois os atores se perdiam na imensidão tentando competir com o Vale, sobrando, assim, uma simples narrativa em meio às pessoas que se encontravam naquele local. Sentir-se em casa para falar sobre nossas questões talvez tenha sido o maior desafio, vencido pelos Nativos de Sorocaba, pois entendemos claramente nossa ligação com a cidade de São Paulo, e por isso mesmo nos sentimos em casa mesmo estando fora dela. p
Grupo Teatral Nativos Terra Rasgada: Zorobe: ouviu-se um lamento - era o som de um jumento Foto de Augusto Paiva
O cenário de Zorobe... é feito com caixotes de madeira, a exemplo dos utilizados pelos tropeiros até o início do século XX, dispostos em um raio de 2,5 m, com o objetivo de aproximar espectadores e atores, como se fazia em rodas de prosa e fogueiras. 47
Grupo Manifesta de Arte Cômica (São Paulo/SP)
O manifesto do grupo Manifesta O grupo Manifesta tem 20 anos de formação. Sua única peça é O manifesto, montada por conta da necessidade de uma dupla de palhaços cansados de reprisar esquetes clássicos. Nossa motivação era, é e sempre será a de dar o nosso recado por meio do simples embate deflagrado entre duas personagens: o Homem sério e o Palhaço. Para quem nos conhece (Sérgio Khair e Carlos Biaggioli), sabe que dialogamos com o público e conosco, pois nosso objetivo é a permanência dessa mesma motivação. Nosso exercício de fé pode ser apreendido nesse tal Manifesto.
o grupo desconhecer o significado da palavra patrocínio.
Quando levamos a peça para o teatro, com todos os recursos disponíveis na mágica caixa preta, brincamos de questionar, dentre outras coisas, o próprio templo do teatro: o palco italiano. Após alguns anos, assumimos de vez nossa origem de palhaços de rua, e partimos para a construção do Fuscalhaço, na utopia da itinerância (à semelhança do bando do filme de Cacá Diegues, Bye, bye Brasil).
Não importa se somos levados pelo Fuscalhaço ou se o empurramos. O que conta mesmo é que esse tipo de palco ambulante tem presença cênica marcante, principalmente nos centros urbanos onde essas máquinas dominam a paisagem. Chegamos à conclusão que dialogamos com a cidade no momento em que nos fixamos em um determinado local ou quando estamos em movimento. O grupo Manifesta deseja esse diálogo e acredita que o teatro de rua é uma forma de diálogo direta e saudável com todos os moradores da cidade.
Adaptamos um fusca amarelo, ano 1972, e nele criamos um palco sólido, com espaço para acoplar som e luzes de enfeite. Com escada de acesso por dentro do veículo, os palhaços podem alcançar o palco situado no teto do carro. Muitas vezes, preferimos outros caminhos alternativos, já que a peça se desenrola fora, dentro e sobre o Fuscalhaço. Como obra inacabada, houve inúmeros erros nessa mecânica toda, que prejudicaram a sequência do trabalho do grupo. Por exemplo, para não poluir tanto o ar paulistano, colocamos cilindro de gás natural veicular (GNV), o que deixou mais pesado ainda o frágil e idoso veículo, bem como exigiu demais do motor. Resultado: tivemos de parar o Fuscalhaço para manutenção, concertos e trocas do motor e de acessórios. Enfim, isso custou caro, sobretudo pelo fato de 48
Revista do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (MTR-SP)
Vale, entretanto, o prazer de levar o próprio teatro e de ser levado por ele. E para quem faz teatro de rua, esse prazer se amplia ainda mais na medida em que utilizar um veículo em cena pode estimular a exploração de uma gama de possibilidades teatrais. O Fuscalhaço está prestes a receber nova roupagem e voltar às ruas, agora se utilizando do grafite.
Acreditamos no riso: somos palhaços, oras! E simplificamos assim nosso ofício, nos apropriando das palavras do célebre palhaço Karl Adrien “Grock” Wettach (1880/1959): “Para saber o que é humor, as pessoas precisam saber o que é a vida.” A vida passa e a fila anda. São 20 anos de encontro entre dois palhaços quarentões, com filhos, mulher e ex-mulher, sonhos a realizar e ilusões desiludidas.
Nossa peça carrega esse caminhar. Mesmo sem modificarmos o texto, sabemos que o tempo o modificou. Nosso teatro é uma grande e séria brincadeira: é uma celebração, pois a dupla se encontra ali, em cena (não ensaiamos mais). Nossa disciplina é indisciplinada. Nossa crítica tem temperos de ironia, acidez e a necessidade de tirarmos nossa máscara quando nos pintamos de “caras meladas”. Sobre nosso processo de produção, a crítica ao sisteminha em que vivemos é tamanha que deixamos rolar, deixamos acontecer. Às vezes, jogamos o jogo; às vezes, vemos a banda passar, o edital passar, o fomento passar... Apreciamos os grupos bem organizados, e sabemos que os meios hão de justificar os fins. Sendo assim, não nos queixamos, pois quando estamos em cena é porque “vale a pena”. Grupo Manifesta de Arte Cômica: O Manifesto - Foto de Joca Duarte
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As ruínas do Cine Cairo, o Fuscalhaço e a loteria por José Cetra Filho15
Um fusca amarelo, caindo aos pedaços, circula pelo Vale do Anhangabaú. Estaciona quase em frente às ruínas do bonito prédio onde funcionava o Cine Cairo. Do Fuscalhaço, com chapa BNS 2237, de Jaguariúna, sairão não só as duas personagens, o Homem Amargurado e o Palhaço, como também todos os adereços necessários para a realização do espetáculo. Tudo, por intermédio dos dois atores, é muito simples e engraçado. Espetáculo criado para a rua, endereçado não apenas ao cidadão que parou para ver a história, interessou-se e virou espectador, mas também ao transeunte que, envolvido carinhosamente pelos atores, participa efemeramente, mas de maneira espontânea, do delicioso espetáculo. Louve-se a grande interatividade do espetáculo e a maneira como os atores envolvem o público, fazendo-o participar da cena sem se sentir ridículo. A história é muito simples: um Homem Amargurado e mal-humorado (Carlos Biaggioli) reclama aos céus uma mudança em sua vida caótica. O Criador lhe envia um Palhaço (Sérgio Khair) para levantar seu ânimo. As peripécias giram em torno desse mote básico, e um dos momentos mais poéticos e bonitos ocorre quando o Homem tenta recuperar a alegria perdida do palhaço, recolhendo tesouros entre o público e colocando numa caixinha, tais como o sorriso de uma menina bonita e a sabedoria de um homem idoso. A dinâmica do espetáculo lembra as comédias de Max Linder e fundamenta-se no eterno e decisivo embate entre Augusto e Branco. O tema dramatúrgico, basicamente, resume-se aos questionamentos: Por que pensar na doença, se posso pensar na saúde? Por que pensar na tristeza, se posso pensar na alegria? Talvez simplório e ingênuo diante do mundo caótico em que vivemos (vide a triste realidade do Vale, com seus Pesquisador de teatro, com pesquisa de mestrado no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), cuja problematização está ligada ao espectador teatral.
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mendigos, suas prostitutas e as emblemáticas ruínas do Cine Cairo), mas no meio de todo esse caos é possível partilhar um pouco de alegria: isso o grupo Manifesta sabe fazer muito bem. Que o diga o público que foi chegando devagar e ali se entregou à obra: risos, gargalhadas e emoção contaminaram aquele pequeno espaço, em um pequeno período de tempo, no meio de uma imensa cidade. O encanto permaneceu até os dois balões/personagens desaparecerem no céu azul da cidade. Como última pedida, que tal, então, jogar na loteria os números da placa do Fuscalhaço? 2237 é um bom palpite. Vem impregnado de muita alegria!
O manifesto da Manifesta por João Alves16
Segunda-feira, 9 de novembro de 2009, Vale do Anhangabaú. O dia está parcialmente nublado e há indícios de chuva próxima. As pessoas seguem seus itinerários, seus prazos e deveres. Sob o Viaduto do Chá, olhos mais atentos podem ver, por intermédio de vários tons de amarelo, a imagem do Fuscalhaço SP Jaguariúna BNS-2237, com seu espelho de “buzão” e mágicas estruturas de teatro. Graduando em Licenciatura em Artes – Teatro na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) e ator da Quadrilha de Teatro Notívagos Burlescos. Atualmente, realiza pesquisas em direção teatral, iluminação, atuação e linguagem audiovisual.
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Dois seres coloridos, Sérgio Khair e Carlos Biaggioli, cuidam dos últimos preparativos. Um deles dá a partida na “máquina teatral” (alusão aos antigos carroções dos artistas populares, sobretudo da Idade Média) e o outro se posiciona precariamente sobre o para-choque traseiro da “máquina”. Juntas, as duas personagens “rasgam” o cotidiano do Vale soltando bolhas de sabão. Por intermédio de música circense, os dois atores convidam os passantes a se aproximarem porque a apresentação vai começar. Fazem preces à Nossa Senhora da Periquita Azul e oferecem a todos aqueles que assistirem ao espetáculo, diretamente das mãos do Prefeito Kassab, o sorvete de quiabo com cobertura de beterraba e recheio de jiló. Juntos há 20 anos, os dois atores, Sérgio Khair e Carlos Biaggioli, formam o grupo Manifesta de Arte Cômica, que investiga a linguagem do humor em relação intervencional com o público. Tendo por aliados os transeuntes que pararam naquele local, contam a jornada de um homem amargurado que reclama do caos por que passa sua vida. Apiedado dele, Deus vislumbra uma solução: um palhaço. Como condutor da mudança nas cenas seguintes, o palhaço guiará a personagem pelas suas obstinações financeiras, religiosas e morais. O público, sempre em relação às duas figuras, também é guiado e levado ao questionamento: Qual é essa nossa posição perante a vida? O Palhaço consegue contornar todos os problemas da vida do Homem Amargurado e levá-lo a transformar-se em um ser despreocupado com a vida: surge daí outro palhaço. Acidentalmente, o palhaço que veio em socorro morre e é ressuscitado pelo riso do público.
O manifesto convoca as pessoas a ver a vida com outros olhos. Olhos cheios de pasta d’água, lápis de olho, inocência e alegria perante as desventuras da vida. Os olhos do palhaço são os olhos do fenômeno, do acontecimento, olhos que não podem deixar barato para depois ficar reclamando. Esses olhos levam à subversão, à solução dos problemas, ao prazer e à alegria frente às dores e tristezas que nos acometem. Esse “programa” estético de vida é colocado para o público sempre no tête-à-tête, no aqui e agora. A todo instante, os espectadores são convidados a entrar no espetáculo e a criar com os dois atores situações teatrais propostas por eles. Nessa medida, o espectador passa a ser atuante e parte importante da peça. O maravilhamento de estar no espetáculo faz com que o espectador volte para casa como se estivesse suspenso, em estado de palhaço, flutuando no caos da vida.
Grupo Manifesta de Arte Cômica:O Manifesto Foto de Joca Duarte
Nesse exato momento, o céu do centro de São Paulo muda do cinza para o azul, e o sol desponta por entre algumas nuvens, como se o universo conspirasse para a riqueza e detalhamento do espetáculo. Dois pássaros passam voando acima da estrutura do Fuscalhaço, por entre os dois atores, no momento do renascimento do palhaço. Logo em seguida, dois balões com cara de palhaços sobem ao céu da cidade para que mais pessoas se transformem em palhaço e saiam pairando pela vida desta cidade. 51
Cri-cri: a crítica da crítica (réplica) A primeira vez que li a crítica de João Alves sobre nosso trabalho, sobre nosso Manifesto, me emocionei. É uma crítica muito generosa, que trouxe mais poesia ao nosso intento de poetizar a vida por meio do teatro de rua. Quando atuamos para um público passante, como o da cidade de São Paulo, corremos o risco de termos nossas fantasias desmascaradas por uma realidade em que a graça está há muito escondida, senão perdida. Pior do que isso, só se formos ignorados, ou perdermos o público curioso, que para e nos vê, deixando de perceber a hora passar. Quando há alguém que tem a incumbência de criticar um trabalho, pode-se esperar qualquer coisa, pois há preceitos e teorias maiores e mais severas do que nossa viciada autocrítica. João Alves começa e termina seu texto salientando o excesso, ou a falta de nuvens no céu. Parece até falta de assunto, conversa do tipo “Acho que vai chover.” Mas quem trabalha na rua, ou depende de “São Pedro, o padroeiro do céu” para realizar seu trabalho, precisa olhar para cima, sim! Naquela bela tarde de 9 de novembro, optamos pelo risco de nos molharmos e rejeitamos a segurança de ficarmos sob o viaduto do Chá, tomando-o por guarda-chuva. João, ao registrar a placa do Fusca – BNS 2237, de Jaguariúna –, revela a crueza de seu olhar, sem se encantar por um teatro sobre rodas. Nesse Fusca, o encanto até poderia ser gerado, excitado, estimulado. Enfim, nesse Fusca, o teatro de rua do grupo Manifesta se manifestaria. João exibiu seu olhar de palhaço, semelhante ao nosso, ao afirmar: “Flutuando no caos da vida.” Não é à toa que a personagem Delfino, antes de ter um embate com o Palhaço, na peça, desabafa no início da trama: “Minha vida está um caos, um caos!” E como flutuar no caos? A gente se pergunta diariamente. Como transformar bosta em adubo? Eis a questão! Mas, para finalizar, queremos dizer que é muito bom conversar com um aliado. Isso motiva. Isso é motivo. Ontem, nos apresentamos novamente com O manifesto em um parque da cidade e... não parei de trocar olhares apaixonados com quem estava diante de mim, ali, se disfarçando de plateia. p Grupo Manifesta de Arte Cômica: O Manifesto - Foto de Joca Duarte
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Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz (Porto Alegre/RS)
Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz: O Amargo Santo da Purificação - Foto de Joca Duarte
Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz 32 anos de utopia, paixão e resistência A Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz realizou suas primeiras interferências cênicas na rua inseridas em manifestações políticas. Estas se desenvolviam como uma parada, um cortejo, uma informação visual, que se deslocavam pelo centro da cidade. As primeiras intervenções cênicas nas ruas de Porto Alegre datam de 1981, com encenações curtas em manifestações ecológicas e antimilitaristas contra o uso indiscriminado de energia atômica. Desde então, a Tribo vem promovendo intervenções cênicas sistemáticas em momentos de mobilização política, em atos de repúdio à injustiça social e à violência institucionalizada. Em meados dos anos 1980, iniciou-se um processo de investigação de como levar os espetáculos para a rua. A primeira encenação aconteceu como uma performance, cuja temática era o genocídio dos indígenas da América pelos europeus. O espetáculo utilizava-se de uma linguagem performática, e o diálogo com as artes plásticas era evidente. Inspirado no Bread and Puppet, Teon (morte, em tupi-guarani) era apresentado como um rito, como uma prece aos milhões de índios mortos em toda a América. A vida comunitária, a religiosidade, o contato com o homem branco, as doenças, a escravidão e o aniquilamento da cultura indígena eram mostrados numa sequência de oito quadros plásticos. Em sua primeira peça de rua, o Ói Nóis “prendeu” as pessoas pela via sensorial. Em 30 minutos, não se ouvia texto, mas se via um conjunto de dança, canto e pantomima. Com a composição das máscaras e indumentárias aliadas à coreografia, os atuadores pretenderam transformar-se em esculturas vivas e envolver o público como em um sonho – um sonho que falasse da natureza grupal do ser humano e da sua vulnerabilidade. 53
Santos amargos17
Teon deu início a toda uma experimentação de linguagens para o teatro de rua, que vai do ritual às técnicas da comédia e do circo, passando pelo teatro épico, por meio de criação de uma dramaturgia própria. Para seu mais novo trabalho de pesquisa de teatro de rua, a Tribo escolheu a história do revolucionário brasileiro Carlos Marighella, que viveu e morreu durante períodos críticos da história contemporânea do nosso país, protagonista na luta contra as ditaduras do Estado Novo e do Regime Militar. O amargo santo da purificação apresenta uma visão alegórica e barroca da vida, paixão e morte do revolucionário Carlos Marighella. A encenação coletiva para teatro de rua conta a história de um herói popular que os setores dominantes tentaram banir da cena nacional durante décadas. Na sequência de cenas, o público assiste a momentos importantes dessa trajetória: origens na Bahia, juventude, poesia, ditadura do Estado Novo, resistência, prisão, democracia, Constituinte, clandestinidade, ditadura militar, luta armada, morte em emboscada e a recuperação histórica, buscando um retrato humano do que foi o Brasil no século XX. Trata-se de uma história de coragem e ousadia, perseverança e firmeza em todas as convicções. A coerência dos ideais socialistas de Carlos Marighella, em nossa montagem, atravessa uma vida generosa e combatente, de ponta a ponta. Marighella não abdicou ao direito de sonhar com um mundo livre de todas as opressões. Viveu, lutou e morreu por esse sonho. A dramaturgia elaborada pela Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz parte dos poemas escritos por Carlos Marighella que, transformados em canções, caracterizam-se no fio condutor da narrativa. Utilizando a plasticidade das máscaras, de elementos da cultura afrobrasileira e figurinos com fortes signos, a encenação cria uma fusão do ritual com o teatro-dança. Por meio de uma “estética glauberiana”, Ói Nóis Aqui Traveiz traz para as ruas da cidade e para o campo uma abordagem épica das aspirações de liberdade e de justiça do povo brasileiro.
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Revista do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (MTR-SP)
por Paulo Bio18
[…] O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer. Sobre o conceito da história. Walter BENJAMIN.
Em O amargo santo da purificação, a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz revela seu olhar sobre nossa história recente. Tal como pede Walter Benjamin, imobilizam um instante, uma reminiscência: Carlos Marighella e seu assassinato pelo aparato repressivo da ditadura militar brasileira. Dessa imagem, os integrantes do grupo extraem estilhaços de esperança. Ói Nóis Aqui Traveiz tem 31 anos de história. Surgiu em 31 de março de 1978, momento histórico de reorganização das forças de resistência ao regime ditatorial brasileiro e, simbolicamente, a data de aniversário do golpe militar de 1964. Sua atuação artística foi desde o início um ato de resistência à política opressiva, aos discursos dominantes e ao status quo. Desse modo, O amargo santo da purificação capta e sublinha uma reminiscência, pouco a pouco apagada e silenciada A crítica aqui apresentada retoma aspectos e trechos da anterior, publicada na revista Cavalo Louco. Rio Grande do Sul: Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, ano 4, no 7, dezembro de 2009, p.39-43. 17
Estudante de bacharelado em Artes Cênicas, com habilitação em Teoria do Teatro, na Universidade de São Paulo, e colaborador crítico da revista virtual Bacante.
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por aqueles recolhidos nos porões da história, e faz do ato teatral uma ação política de contraponto ao escancarado processo de revisionismo histórico operado pelas classes dominantes hoje (as mesmas, diga-se de passagem, de ontem) – cujo maior exemplo foi o perverso neologismo criado pelo jornal Folha de S. Paulo, às vésperas da “comemoração” dos 45 anos do golpe, ao caracterizar o totalitarismo militar brasileiro de “ditabranda”. A exaltação, no final do espetáculo, pela abertura dos arquivos da ditadura, demarca de forma enfática a posição política de luta e resistência ostentada pelo grupo. Sua intervenção teatral, com Carlos Marighella, conclama o Brasil à urgência de reviver seus mortos; abre – conforme poema do revolucionário – “[...] uma clareira, em meio ao bosque”. Há de se destacar, fundamentalmente, a estrutura da peça em relação a sua temática. A manifestação de espetáculo configura-se como a superação de um teatro de rua simplista e de proporções delimitadas. O amargo santo da purificação impõe-se no espaço público urbano e realiza um acontecimento de enormes proporções em meio à rotina cosmopolita. Desde o início do espetáculo, investe-se numa ação que impossibilita a pura contemplação estática da cena: a peça começa, por exemplo, com dois grupos (italianos e africanos) em pontos distintos, numa dança que os impele ao encontro “miscigenador” e que dará à luz Carlos Marighella. Como público, ficamos encurralados no meio desse movimento e obrigados a “escolher” um dos coletivos para seguir. Adiante, a enorme máquina do progresso e da opressão invade o tradicional círculo do teatro de rua e transforma toda a perspectiva do público obrigando-nos,
novamente, a nos posicionar e a “escolher” um novo ângulo de observação frente a essa nova configuração proposta. Ademais, a fragmentação da narrativa, a teatralidade popular, a musicalidade constante, a justaposição de vários tempos cronológicos e estímulos de encenação, e a relação com o público – determinada por uma proximidade imanente da presença, do ardor da realização e, mais importante, do olho no olho – propõem uma poética intensa que sublinha a manifestação teatral enquanto encontro entre público, atuadores e espaço. Surge daí um acontecimento público, artístico e político, que não deixa o mundo ao redor incólume. Cada paragem de O amargo santo... guarda até hoje, em algum recôndito, vestígios de sua passagem.
Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz: O Amargo Santo da Purificação Foto de Joca Duarte
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No entanto, seria impossível intervir publicamente com o teatro em ruas e calçadas tão diversas sem transformar o fenômeno em si mesmo. Desse modo, as apresentações do espetáculo na cidade de São Paulo criaram relações bastante singulares de relação com a obra. Em outubro de 2008, o grupo apresentou-se em uma praça de Campo Limpo, Zona Sul de São Paulo; no início de 2009, voltaram à cidade e ocuparam a caótica Praça da Sé – epicentro fisiológico das artérias paulistanas; por fim, no final desse mesmo ano, fizeram duas apresentações: uma no estacionamento do Memorial da Resistência (antigo DOPS, região central da cidade); outra, no Vale do Anhangabaú, como parte da Mostra de Teatro de Rua Lino Rojas. No Vale do Anhangabaú, em São Paulo, por intermédio do espetáculo, abriu-se mais uma clareira de Marighella, e a cena ficou espacialmente imensa, gigantesca. Assim, em um desses milagres de concreto armado, São Paulo silenciou... A impressão pode ser falsa, meramente fruto de uma imaginação cansada. No entanto, a imagem foi a de que quando representada a cena em que Marighella é encurralado na Alameda Casa Branca todo o Vale do Anhangabaú silenciou: skates pararam, os caminhões da prefeitura desligaram o motor, cessaram as sirenes da polícia circundante... Por alguns segundos, São Paulo viveu um instante “esmagado entre o passado e o futuro”...
Depois voltaram os trabalhadores, as crianças imundas, os moradores embriagados do Vale, os policiais e suas sirenes, os executivos de passos assustados, as nuvens negras, a chuva intermitente, as filas esmagadas no Metrô, o trânsito sem respiração, as horas aceleradas, a opressão atmosférica do capital. Mas a Alameda Casa Branca mudou de nome. Por alguns instantes. Entre o passado e o futuro...
Espetáculo excelente... pena que tão belo por José Cetra Filho19
Tarde paulistana ensolarada e quente. O público, a princípio disperso, vai se concentrando em torno dos dois blocos que caminham um em direção ao outro pelo Vale do Anhangabaú. Figurinos e máscaras belíssimos, músicas envolventes. Durante um longo tempo, os blocos movimentam-se e, para aqueles como eu, que desconheciam as origens afroitalianas de Carlos Marighella, aquilo tudo era muito, mas muito bonito mesmo; entretanto, carente de significado. Esta sensação de estar acompanhando um belíssimo desfile de uma competente escola de samba me acompanhou em vários momentos do espetáculo, principalmente quando se considera o espectador da rua, que deve ser o alvo do grupo, e que, como toda a população, poucas referências possui sobre o fazer teatral e sobre a importância de Carlos Marighella para a história recente do País. Esse talvez seja o Pesquisador de teatro, com pesquisa de mestrado no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), cuja problematização está ligada ao espectador teatral.
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Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz: O Amargo Santo da Purificação Foto de Joca Duarte
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calcanhar de Aquiles desse esplendoroso trabalho do engajado e longevo (31 anos) grupo de Porto Alegre, Oi Nóis Aqui Traveiz. Desculpo-me pelo excesso de adjetivação, mas a estética do espetáculo me deixou boquiaberto. Não há a menor dúvida sobre a importância do grupo, do espetáculo e de suas intenções ao denunciar as mazelas de regimes autoritários, que torturaram e mataram cidadãos que se opuseram a esses regimes. A despeito da importância do grupo e da escolha do assunto, penso, o resultado “ofusca-se” pela beleza do espetáculo. As qualidades da obra são evidentes: o tema é pertinente e atual; a interpretação de Tânia Farias merece destaque; os figurinos, as músicas, as máscaras e os adereços são precisos. Mas há uma grande dúvida: o público-alvo do espetáculo consegue captar a denúncia nele exposta? A excessiva beleza do espetáculo não edulcora uma realidade tão grave e trágica? Talvez a simbologia mais forte, direta e eficiente do espetáculo seja aquela em torno da explosão do aparato militar, jogando pelo ar e espalhando pelo chão milhares de “santinhos” com o nome de mortos e de desaparecidos pela ditadura militar. O espetáculo termina. Os atuadores agradecem. Enquanto algumas pessoas recolhem alguns “santinhos” do chão, surpreendendo-se com a quantidade de vidas ceifadas naquele período, outras vão embora sensibilizadas pela beleza do espetáculo. E quanto aos milhares de “santinhos” que quedaram no chão? O vento levou... Por último, mas não menos importante, o programa do espetáculo é esclarecedor. Não seria o caso de distribuí-lo antes do início da apresentação?
O amargo santo da purificação – um espetáculo extravagantemente épico por Narah Neckis20
O grupo Oi Nóis Aqui Traveiz, de Porto Alegre, apresentou-se na 4a edição da MOSTRA DE TEATRO DE RUA LINO ROJAS com o espetáculo O amargo santo da purificação, transformando o Vale do Anhangabaú em um lugar mágico e ritualístico. O espetáculo narra a história de Carlos Marighella, revolucionário socialista assassinado na época da ditadura militar brasileira (1964). Marighella é, sem dúvida, um símbolo de luta e resistência política contra todas as formas de opressão. “Extravagantemente épico”, o espetáculo começa de forma processional. Assiste-se, no prólogo, à fusão de duas culturas: a italiana e a africana. O início é marcado por um grande ritual de vida, sem nenhuma fronteira espacial. Todos participam de uma grande festa. Após esse rito primeiro, o público acompanha a narrativa da vida de Carlos Marighella: seu nascimento, sua origem, seu amor por Laura e, finalmente, seu papel social como revolucionário. Marighella é apresentado como símbolo de todos os brasileiros que lutaram ou que viveram as inúmeras repressões políticas brasileiras. Antes de ser “um herói”, ele rememora Atriz formada em Teatro pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) e em Direito pela Universidade Mackenzie. Integrante do Grupo de Pesquisa Teatral Nativação.
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uma época de tortura, de autoritarismo e de injustiça. Percebe-se na encenação influência do realismo grotesco, de acordo com teses de Mikhail Bakhtin, apresentadas no livro A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais21: O porta-voz do princípio material e corporal não é aqui nem o ser biológico isolado nem o egoísta indivíduo burguês, mas o povo, um povo que na sua evolução cresce e se renova constantemente. Por isso, o elemento corporal é tão magnífico, exagerado e infinito. Esse exagero tem um caráter positivo e afirmativo.
As personagens que simbolizam o autoritarismo são apresentadas de forma caricata, provocando, na maioria das vezes, o riso. A companhia trabalha, ainda, com o zoomorfismo na cena dos militares, apresentados numa mistura de ser humano e de macaco, produzindo no espectador estranhamento e distanciamento necessários à reflexão. Inúmeros são os pontos que merecem destaque, mas é fundamental sublinhar o desfecho da peça: os atores, na condição de narradores, dirigem-se à plateia e cantam: “[...] é preciso ter coragem para dizer”. Nesse momento, de certo modo tocado pelo grito de oposição às ditaduras, o público vê-se também “forçado” a pensar no que foi encenado. Para concluir, a apresentação da peça O amargo santo da purificação foi, sem dúvida, bastante significativa para a 4a MOSTRA DE TEATRO DE RUA LINO ROJAS, por seu rigor técnico, embasamento teórico e caráter fortemente contestador. Enfim, um espetáculo necessário!
Rastros de liberdade (réplica) Acreditamos que é intrínseco ao teatro de rua o repúdio à alienação e à exclusão cultural. Nesse tipo de teatro, a identidade da maioria da população e os princípios libertários são valorizados, e em cuja expressão arte e política se fundem. Isso é possível porque a rua se transforma em palco de um teatro que assume para si uma reflexão constante sobre a sociedade em que vive. E isso é vital no momento histórico em que vivemos, porque a grande maioria da população brasileira, por inúmeras carências econômicas e culturais, não tem acesso às salas de espetáculos. Por essa razão, o teatro de rua assume um papel fundamental na democratização da arte. A rua é espaço de encontro, de troca, de comunhão. Não é apenas o espetáculo que importa, mas também, e principalmente, a relação que se estabelece entre as pessoas. Por isso o teatro de rua deve ter sempre um caráter de acontecimento, que recupera o lúdico e a tradição, que rompe com o cinzento da ansiedade, que valoriza a rua e seus transeuntes. A via pública impõe uma estética, que é, em primeiro lugar, a do ar livre. Esse ar repele a “caixa ótica” e a ilusão naturalista. O teatro de rua, enquanto modalidade particular de teatro, propõe uma estilística nova, bastante peculiar. Peter Schumann, fundador do Bread and Puppet Theatre, recolhe da prática alguns ensinamentos: “(...) na rua, as pessoas não são sensíveis a um teatro realista; é preciso 21 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 2a ed. São Paulo/ Brasília: Hucitec/Editora Universidade de Brasília, 1993.
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criar metáforas, fantasias, espetáculos bruscos, violentos, sem psicologia; condensar toda uma história em alguns gestos, em algumas palavras; ou então organizar longas paradas, desfiles, cortejos.”
da Casa Branca. Não sem antes convocar à luta. Luta que é preciso continuar, pela resistência cultural, na procura incessante de uma linguagem teatral que confirme o teatro como lugar de encontro, como ritual do presente, do “aqui e agora”, rememorando nossa história comum.
Logo nos primeiros espetáculos, Peter Schumann percebeu que a figura humana se perdia entre os grandes edifícios nova-iorquinos. Tornava-se necessário ampliá-la, dar-lhe volume, cor, relevo.
Marighella, se estivesse vivo, estaria com o povo lutando por pão, terra, trabalho, saúde, educação, cultura... lutando por liberdade e pela alegria de todos. Se o sonho continua vivo, animando nosso coração e nossos passos, é por força de gente como ele. p
O teatro de rua requer, portanto, uma pesquisa estética levada às últimas consequências, na qual surgem elementos como máscaras e bonecos de grandes proporções, pernas de pau e música, canto e dança, figurinos e adereços criativos e coloridos. O ator do teatro de rua precisa desenvolver diferentes técnicas expressivas que ampliem seu gesto e sua voz, e estar predisposto para lidar com todo tipo de imprevisto. O cenário da rua exige gesto ampliado capaz de prender a atenção de cidadãos que acorrem casualmente, formando a roda da brincadeira teatral. Diz-se, seguramente, não haver manifestação mais contundente do que ganhar a rua, encontrar as pessoas por intermédio de um teatro divertido e lúcido, repartir com elas a indignação com a injustiça e a esperança em um mundo mais solidário. Acreditamos que o teatro é um modo de vida e espaço de veiculação de ideias, que pode deixar rastros, exemplos de liberdade. O espetáculo de teatro de rua O amargo santo da purificação é dedicado à memória de todos os mortos e desaparecidos que lutaram contra a ditadura militar brasileira. Marighella foi assassinado em uma emboscada, na simbólica Alame-
Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz: O Amargo Santo da Purificação Foto de Joca Duarte
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Companhia Raso da Catarina (São Paulo/SP)
Companhia Raso da Catarina: O circo chegou - Foto de Augusto Paiva
E o palhaço, o que é? por Roberta Ninin22
Próximo ao horário do almoço de uma terça-feira de novembro, transeuntes, trabalhadores, curiosos que circulavam pelo centro de São Paulo – uns mais apressados que outros –, não conseguiam desviar o olhar de uma roda de espectadores que se aglomeravam cada vez mais. Estariam a observar os truques realizados por algum mambembe que, não raro, perambula pelo centro da cidade em busca de sua sobrevivência? Estariam a ouvir a pregação de algum pastor? Não. Em torno de um alaranjado tapete redondo, observavam e ouviam a viola caipira, a sanfona e a percussão, interpretando músicas do repertório popular brasileiro. Da semiarena composta pelos espectadores avistavam-se os músicos e, mais ao fundo, um painel grafitado (já instalado no local antes mesmo da chegada desses artistas); pode-se perceber, nesse cenário, a manifestação popular musical de origem rural acolhida pela manifestação popular urbana e visual, o grafite. Instaurado o espaço cênico, adentram no tapete de lona dois palhaços e uma mulher, a cigana. Atriz e arte-educadora, graduada em Educação Artística – habilitação em Artes Cênicas; mestra pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp). Título da dissertação: Projeto Comédia popular brasileira da Fraternal Companhia de Arte e Malas-Artes (1993-2008): Trajetória do ver, ouvir e imaginar.
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“Bom dia!”, saúda o público, ao microfone, o palhaço Charles (Alessandro Azevedo), elegantemente vestido de preto, sapato quadriculado em preto e branco, com uma gravata curta vermelha, o nariz preto e o rosto enfarinhado, realçado pelo contorno preto na boca e nas sobrancelhas. Manejando um bastão e já demonstrando a pinta de apresentador do espetáculo, Charles chama o palhaço Tchutchuco (Renato Paio), que aparece deslizando em seu sapato com rodinhas, vestido de azul e amarelo e, vermelho, no nariz, no chapéu e na exagerada gravata borboleta. Desde a indumentária e maquiagem à primeira aparição ao público, explicita-se a caracterização de cada palhaço; Charles, o imponente e centralizador; Tchutchuco, o ingênuo e desajeitado. Para atrair mais olhares à transformação do tapete de lona ao picadeiro do circo, a cigana (Gabriela Hess), vestida de branco e vermelho, com babados e flor no cabelo, é convocada a embelezar o picadeiro, segundo o apresentador. Posteriormen-
te, outras atrações são convocadas: o mágico (Jefferson Cardoso), o malabarista (Bruno Edson) e os acrobatas da Frente Acrobática Raso da Catarina (FARC); mescla de dança de rua e acrobacia. Pronto! O circo já estava em pé. Toca-se o berrante (tocado pela cigana, pouco audível, apesar do microfone).
nos – artistas ambulantes – desde o século XVIII, percorreram cidades brasileiras e muito contribuíram com espetáculos circenses durante as festas religiosas. Contudo, por mais que a Associação Raso da Catarina se proponha a valorizar a cultura popular brasileira, “recuperando a identidade do povo”, a abordagem dessas culturas ficou a desejar devido ao ínfimo recorte dado, sem nexo, em meio às outras atrações circenses.
O circo chegou! – sarau do Charles, o espetáculo de rua da Associação Raso da Catarina (2006), criada pela Companhia Raso da Catarina (1998) e antecedida pelo Sarau do Charles (1996), é nutrido por esta experiência, de mais de uma década, de reunião de bailarinos, poetas, palhaços, atores, malabaristas e músicos, organizado pelo mestre de cerimônias Charles. O fato de reunir no espetáculo diversas modalidades artísticas, números de acrobacia, de mágica, de dança e de música, absorvendo diferentes formas de entretenimento, aproxima essa experiência aos móveis pequenos e médios circos brasileiros. O mágico fascina o público com seus movimentos sutis, atando e desatando os nós dos lenços que dançam em suas mãos. Uma espectadora é convidada a fazer o mesmo. Ela tenta realizar os feitos do mágico, até que, em determinado momento, seu nó não desata. Só com mágica! O malabarista, apresentado como artista circense, de 60 anos de tradição, equilibra taças sobre uma bola e esta, por sua vez, sobre a ponta de uma faca presa à sua boca. Cai! Não cai! Ai! Aplausos.
O que poderia dar mais vida às atrações e, consequentemente, ao espetáculo como um todo? Que figura torna-se central nos espetáculos dos pequenos e médios circos? O palhaço! Apesar da sua indumentária extravagante, Tchutchuco ficou, muitas vezes, apagado no picadeiro e, Charles, cumprindo a função de apresentador, dedicou-se a rápidas interferências, mais descritivas e menos improvisadas. Nesse sentido, contrariamente aos pequenos e médios circos, o palhaço não prevaleceu perante as diferentes atrações e números circenses. No entanto, um breve deleite: durante o desempenho acrobático da FARC, um dos palhaços desafia a imaginação do público: “O que é que é redondo... tem um furo no meio... e solta som?” E, seguro do time da piada, após a risada do público, ele responde: “O CD! E deu problema! Teremos que congelar a cena dos acrobatas”. Daí, até solucionar o problema, Charles e Tchutchuco travaram duelo de piadas deliciosamente maliciosas.
Próximo ao terreno romântico, base dos espetáculos circenses do século XIX, O circo chegou!... objetivou apresentar um pequeno panorama da cultura brasileira e trouxe à cena a representação do boi do Maranhão e da dança cigana. E por que a cultura cigana? Importante saber que os ciga-
Companhia Raso da Catarina: O circo chegou - Foto de Augusto Paiva
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No sol a pino, alguns que por ali circulavam poderiam crer que esse espetáculo de rua era mais um dos empreendimentos culturais voltados à comercialização da cultura popular – não que o distinguissem conscientemente – pois, infelizmente, no modo de produção atual imperam a concorrência e a relação clientelista com o público. Porém, esse não é o propósito da MOSTRA DE TEATRO DE RUA LINO ROJAS: “Retirar, ainda que por um lapso de tempo, os cidadãos de sua correria, permitindo-lhes rir, sonhar e serem críticos e fazer com que a arte seja parte de suas vidas; caracteriza-se em um dos alvos primordiais das diversas ações ligadas ao Movimento de Teatro de Rua de São Paulo” (programa da Mostra). E o som da viola, sanfona e percussão se despedem...
Adeus, adeus, não chore não... por Natália Siufi23
“Não deixem de perder... Só se fala em outra coisa!” O espetáculo: O circo chegou! – sarau do Charles foi anunciado da mesma forma descontraída com que foi conduzido. A estrutura arquetípica do teatro de entretenimento, que se caracteriza principalmente pela sequência de apresentações de números independentes, é uma excelente alternativa para o teatro de rua, pois permite que o espectador chegue e saia a qualquer momento, e se divirta, sem que haja necessidade de uma fábula que costure as atrações. A mistura de ritmos e de culturas parecia uma temática central: hip-hop, baião, música cigana, viola caipira, berrante... Até o boi apareceu para dançar no meio do picadeiro, numa festa que ressignificava o circo, sem se preocupar em seguir suas regras ou formatos tradicionais. No entanto, os elementos eram mostrados sem aprofundamento mínimo: a dança cigana e o berrante, o boi que entrou e saiu, tudo rápido, sem contextualização, cabendo às aparições citadas a função precípua de ilustrar, sem laços interativos mais significados. Sem a lona circense, o sol forte e o atraso para o início do espetáculo incomodaram, mas não impediram que a maioria dos espectadores acompanhasse cada número do show. O ponto alto foi o malabarista Bruno Edson, de 69 anos, Formada em Licenciatura em Artes – Teatro no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp). Fundadora e integrante do Grupo Teatral Parlendas.
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60 de circo, que, com toda simpatia e graça, fez muitas brincadeiras com a plateia, equilibrando copos, pratos, argolas, bolas, e dando até um espetáculo de embaixadinha, que foi muito aplaudido. A mágica de Jefferson Cardoso surpreendia e encantava, pois o também experiente artista sabia como dominar a plateia, convidando-a para a execução de cada truque, o que os tornava mais interessantes e dinâmicos. Os jovens acrobatas da Frente Acrobática Raso da Catarina (FARC) inovaram ao misturar circo e hip-hop, de maneira um pouco tímida, mas bem executada. Os músicos, todos excelentes, alegraram a plateia do início ao fim, mas poderiam, sem dúvida, dar conta de todo o espetáculo, sendo desnecessário o uso do CD em alguns momentos. E como não podia faltar: os palhaços, presenças indispensáveis em qualquer circo, eram os mestres de cerimônia ou mestres de pista, que anunciavam os números e entretinham a plateia. Charles, de roupa mais elegante e aspecto mais sério, em contraste com Tchutchuco, mais colorido, com seu nariz vermelho mó-
vel, tênis de rodinhas e outros aparatos no vestuário, que poderiam ter sido mais explorados. Pelo figurino, a dupla parecia representar a oposição clássica circense entre o Branco e o Augusto. No entanto, o jogo estabelecido pelos dois não deixou isso tão claro. No circo, a figura do palhaço é a grande alegria do picadeiro, aquele que quebra a sublime execução de cada número com seus desajustes e trapalhadas grotescas, propondo o riso e o relaxamento após a tensão e o suspense provocados pelos demais artistas. Tido historicamente como o primeiro circo, o de Astley, inicialmente, apresentava números equestres, e o palhaço era o cavaleiro que entrava após essas apresentações, montando de cabeça para baixo, desajustadamente, parodiando os desempenhos anteriores. As histórias acerca dos palhaços retratam-no como um ser ingênuo, atrapalhado, bobo, que age a partir de
certa lógica peculiar, diferente daquela considerada eficiente e tão veementemente defendida pelo capitalismo. No caso da dupla Branco e Augusto, Branco representaria a aristocracia e a elegância em contraste com o camponês rude e ingênuo, representado por Augusto. Os palhaços da companhia, se se considerar tal contraste, estavam ainda tímidos nas funções, mas apresentaram os variados números com muita energia e conseguiam fazer a plateia rir. No momento em que os acrobatas tiveram um problema com o som e a plateia ficou agitada, os dois tomaram conta do picadeiro, mas com piadas textuais e por vezes carregadas de malícia, às vezes quase apelativo e característico da cultura de massa. Tchutchuco poderia ter aproveitado mais os momentos em que ajudava o malabarista ou modificava os cenários, atrapalhando-se, derrubando as argolas ou mesmo incomodando Charles, que teria de agir como Branco, colocando-o “em seu devido lugar”. Em processo de circularidade, o espetáculo termina de modo narrativo, e os artistas despedem-se, deixando saudades e anunciando: “Adeus, adeus, não chore não... Para o ano eu voltarei, pra cumprir nova missão”. p Companhia Raso da Catarina: O circo chegou - Foto de Augusto Paiva
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Grupo Pombas Urbanas (São Paulo/SP)
Grupo Pombas Urbanas: Histórias para serem contadas - Foto de Rhadamés Sant’Ana
Um grupo de teatro cuja realidade semeia asas a tantas Pombas Urbanas Em outubro de 2009, o grupo Pombas Urbanas completou 20 anos de existência. Nasceu a partir do projeto Semear Asas, concebido pelo diretor Lino Rojas, com o objetivo de formar jovens de São Miguel Paulista, na Zona Leste da cidade de São Paulo, em atores e técnicos para o teatro. Por intermédio de seu fazer teatral, o grupo busca reconhecer e expressar sua cidade e seu tempo. Seu processo de formação e de preparação de atores parte do reconhecimento de cada jovem ator sobre seu corpo e seus movimentos, da compreensão de sua história, de suas raízes étnicas e culturais e do meio em que vive para encontrar uma poética pessoal, ao mesmo tempo singular e histórica, e desenvolver sua expressividade cênica. Por esse processo, o grupo pesquisou, de distintas maneiras, o território humano da cidade de São Paulo; criou e montou um repertório de 12 espetáculos em diferentes linguagens: de teatro de rua, para palco italiano, destinado ao público infantil, jovem e adulto... Além da pesquisa e da produção de espetáculos, o grupo sempre desenvolveu ações que aproximam o teatro de populações marginalizadas da cidade – dedicação coerente com sua própria origem. Ao se estruturar como uma companhia profissional, sempre buscou criar oportunidades de acesso, dedicando-se intensamente à transferência de seus conhecimentos para outros jovens da periferia, e realizando apresentações e temporadas de seus espetáculos em regiões sem acesso ao teatro. Durante anos, esteve à procura de um espaço na Zona Leste da cidade de São Paulo, onde pudesse pesquisar, ensaiar e desenvolver um intenso processo teatral e comunitário com jovens. Em janeiro de 2004, a Companhia conseguiu da Companhia Metropolitana de Habitação (COHAB-SP), em regime de comodato por 20 anos, podendo ser renovado, a cessão de um galpão no bairro Cidade Tiradentes. Desde então, o grupo promove e mantém, no local, o Centro Cultural Arte em Construção, um espaço de arte caracterizado pelo profundo vínculo entre artistas e comunidade. 64
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Na Cidade Tiradentes, o grupo mergulhou no universo da exclusão social e da deterioração dos valores humanos básicos em busca de sobrevivência. Durante 3 anos, dedicou-se intensamente à estruturação do Centro Cultural Arte em Construção, que em 2009 beneficiou mais de 30.000 moradores da região com o acesso à arte. Em 2007, realizou a montagem de um novo espetáculo, Histórias para serem contadas, que deu voz a muitas das histórias e conflitos semelhantes àquelas que o grupo, vivendo no bairro Cidade Tiradentes, acompanhou de perto. É dessa forma que os integrantes do grupo Pombas Urbanas compreendem e exercem sua condição de artistas: situando sua pesquisa e produção teatral junto à sociedade com o desenvolvimento de propostas práticas e concretas de acesso à arte, desenvolvimento de conhecimentos e ferramentas para que populações, historicamente marginalizadas, possam produzir teatro e refletir sobre sua realidade por meio da arte.
Homem – cachorro – banguela por Roberta Ninin24
Há 20 anos, o Pombas Urbanas alça voos. Voos que partiram da Zona Leste de São Paulo, de São Miguel Paulista, para a grande São Paulo, Brasil, Peru, Chile, Cuba, Venezuela, Uruguai, Colômbia, Espanha. E, mais desafiador, alça voo por intermédio da linguagem teatral de rua e popular. Um dos impulsionadores do grupo teatral, o peruano Lino Rojas (1943-2005), percebeu que Semeando Asas25 de jovens pertencentes àquela região periférica paulistana e estreitando os laços com a comunidade que os acolhia, poderia construir uma base sólida para desbravar outros terrenos cimentados, aparentemente impermeáveis. Dessa vez, na 4a MOSTRA DE TEATRO DE RUA – a qual leva o nome do “semeador” Lino Rojas –, o Pombas pousa no centro da sua cidade natal com o seguinte recado: “Boa Tarde/ Somos os Pombas Urbanas/ Trazemos São Paulo nas Asas”; apresentam o título do espetáculo: Histórias para serem contadas; e, arrematando o grau de relação que pretendem estabelecer com o público, os integrantes do grupo sugerem: “Depois da festa, quem quiser sua história contar...” O pouso seguro ocorre num terreno preparado com os materiais de cena: figurinos em araras, caixotes e objetos. O público em torno da lona no chão, ouvindo músicas populares nordestinas, desvia seu olhar para o bando que chega cantando e tocando bumbo, sanfona, coco, chocalho e violão. Os Pombas, em coro, contam que as histórias tratariam de “gente como nós”... E quem é/somos “nós”? Primeiro: pressupõe-se uma relação não hierarquizada com o público e, segundo, que Atriz e arte-educadora, graduada em Educação Artística – habilitação em Artes Cênicas; mestra pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp). Título da dissertação: Projeto Comédia popular brasileira da Fraternal Companhia de Arte e Malas-Artes (1993-2008): Trajetória do ver, ouvir e imaginar.
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Nome do projeto de teatro desenvolvido por Lino Rojas na Oficina Cultural Luiz Gonzaga, em São Miguel Paulista, em 1989, dando origem ao Pombas Urbanas. O projeto Semeando asas é até hoje desenvolvido na sede do grupo, no Centro Cultural Arte em Construção, na Cidade Tiradentes.
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Grupo Pombas Urbanas: Histórias para serem contadas Foto de Rhadamés Sant’Ana
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tanto os atores como os espectadores e as personagens pertencem à mesma classe social. O Camelô com dor de dentes e o Homem-cachorro. Trabalhadores que, de diferentes formas, vendem sua força de trabalho para manterem-se no modo de produção capitalista, no qual o humano encontra-se mal cuidado, estagnado e em retrocesso. Primeira história: “Vamos falar de uma dor humana... Dor de dente”. A princípio, quando se fala em dor humana, um clima trágico se instaura, mas, ao dizer dor de dente – alívio e risos – a dor é materializada, corporalmente localizada. Quem não teve dor de dentes? As personagens são distribuídas entre os atores, personagens-tipo de imediata identificação: o Camelô com um abrigo e maleta preta com suas mercadorias, a Mulher de vestido e avental, e o Dentista de jaleco branco e luvas. O Camelô sai vendendo suas mercadorias. Seu dente dói cada dia mais, impossibilitando-o de trabalhar. O Dentista não irá, como acontece na vida real, tratá-lo devidamente por falta de recursos econômicos daquele. Pela recusa, o Camelô cai desfalecido. Segunda história: “Eletricista! Pintor! Sabe latir?... Não há vagas!”. Depois de muito pelejar, o homem arranja um emprego: cão de guarda. Ouve-se em gravação a música-tema de Ayrton Senna. Campeão? As características do Homem-cachorro são bem evidenciadas por meio do corpo e da maquiagem. A casinha do cão é modelada para encaixar na cabeça do homem. Este vai se transformando em cachorro, na maneira de dormir, comer, relacionar-se com a mulher, latir. Ao final, a mulher grávida (de cachorro?) presenteia o marido com uma coleira. Ambas as histórias sofrem interferências narrativas das personagens, em primeira e terceira pessoas. Cenas são congeladas para que as personagens possam narrar seu ponto de vista ou mesmo determinados aspectos da cena. Outro recurso utilizado, de extrema importância épica na estrutura do espetáculo, foi o coro. Coro que multiplica a personagem do camelô e suas dores de dentes, ampliando as vozes em número e em qualidade. É o coro que, cômica e corporal66
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mente, resolve situações cênicas; ora é a cadeira do dentista, ora o metrô lotado. Porém, a função ilustrativa do coro prevalece em relação ao seu poder de comentário crítico, de intervenção na trajetória dramática, individual, do camelô e do homem-cachorro. Inquietações: A princípio, identificar-se com um animal, no caso o cachorro, é absurdo, risível até; no entanto, persistir com o quadrúpede até o final da história é doloroso. Por que isso acontece? Será sempre assim? É a sina? Um sinal? “Toda prontidão é pouco! Porque se ainda não aconteceu com você, um dia pode acontecer!” (trecho da sinopse no Programa da Mostra). Será que não aconteceu e já estamos vacinados? Que o grupo, por meio de seus integrantes e de seus trabalhos, continue a semear asas!
Pombas que, por meio do jogo, provocam mudanças (réplica) O Pombas tem sua origem em São Miguel Paulista, Zona Leste de São Paulo, isso porque Lino Rojas apostou no potencial dos meninos e das meninas do bairro (em sua maioria descendentes de nordestinos) em desenvolver um teatro que partisse da poética do jovem da periferia de São Paulo. Durante 15 anos, o grupo pesquisou um processo de preparação do ator, fundamentalmente coletivo, de pesquisa do ator, linguagem e dramaturgia que resultou na criação e montagem de espetáculos que buscavam refletir sobre determinados aspectos da cidade, com direção e textos de autoria de Lino Rojas.
Em 2007, após 3 anos sediados em Cidade Tiradentes – maior conjunto habitacional da América Latina a quase duas horas do centro – nasce o espetáculo Histórias para serem contadas. Pela primeira vez, em seus 20 anos, o grupo levou à cena um texto “já pronto”, escrito há mais de 50 anos pelo dramaturgo argentino Osvaldo Dragún. Esta opção se deu pelo fato de os integrantes do grupo reconhecerem no texto uma atualidade viva, com diversos elementos presentes no dia a dia de Cidade Tiradentes. No bairro, a presença de uma comunidade de mais de 400 mil homens e mulheres fortes que enfrentam com criatividade as limitações impostas pela grande cidade. Jovens que trabalham desde cedo e lutam para estudar e criar condições de uma vida mais digna e de um futuro melhor. Mulheres que são ditas, benditas e malditas, representam pai, mãe, filhas e amigas em suas casas. Apartamentos de menos de 40 m2 que abrigam duas, três ou quatro famílias. Índices altos de desemprego e de violência contra a mulher, a criança, a juventude... Que nos fazem pensar em qual Brasil vivemos, no dos bairros abastados ou no das favelas e morros do imenso País? Nesse contexto, desde sempre, o grupo quer e tem necessidade de desenvolver um teatro que estabeleça um diálogo de iguais e que represente nossa realidade. Desse modo, seguimos de praça em praça e, na grande maioria desses espaços, a dura realidade, por um determinado período, torna-se diversão e apreensão do dia a dia desse viver. São João, Praça da Sé e do Patriarca, Calçadão de São Miguel, Guaianazes, e tantas outras. O riso surge no público que se envolve abertamente ao ver aspectos de
seu dia a dia em forma de jogo. Algumas das dores, injustiças e lutas apresentadas na obra, por si só, despertam a consciência e a alegria de as pessoas se sentirem representadas no espetáculo. Além disso, em alguns momentos, a realidade revelada na obra provoca, acompanhadas do riso, suspiros e lágrimas. Há espaços em que a obra, ao ser apresentada, choca, questiona, toca duramente, tão desiguais e diversos são os contrastes e as relações em nosso País. Cúmplices da vida, os atores ali estão, dispostos a ouvir, a conhecer e a contar, com a esperança de que a partir de um espelho-reconhecimento, fundamentados em certa realidade, seja possível criar processos de identificação mais identitárias. Por meio desse procedimento, os atores revisitam também seus viveres e estares na vida, redimensionando a si e seu trabalho. De cada apresentação, voltamos preenchidos pelo calor da rua e com a alegria de termos contado essas histórias tão nossas. Que o espetáculo seja o do reconhecimento e da apropriação. Que o público reconheça sua própria voz, seus conflitos e sonhos. Assim como em Cidade Tiradentes, onde o grupo desenvolve o teatro em comunidade, no Centro Cultural Arte em Construção, a transformação nasce do reconhecimento e da apropriação de nossos valores mais humanos, potentes e criativos. A partir desse jogo, recriamos nossa esperança de imaginar e provocar mudanças. Vai começar! Vai começar! p
Grupo Pombas Urbanas: Histórias para serem contadas Foto de Rhadamés Sant’Ana
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Como Lá em Casa (São Paulo/SP)
Um grupo na garimpagem de nitrato de prata a fim de revelar seu retrato O Como Lá em Casa - que faz parte do Movimento de Teatro de Rua São Paulo (MTR/SP) - foi criado em 2004 por Noemia Scaravelli e Beto Rodrigues a fim de facilitar as atividades teatrais que aconteciam sob a coordenação do Beto Rodrigues, na cidade de Piraju, interior de São Paulo, e para viabilizar um projeto de teatro para espaço convencional por meio da montagem de As gavetas, de Beto Rodrigues, que buscava captar recursos por intermédio da Lei Rouanet. Mesmo sem ter conseguido recursos, valeu para organizar o coletivo. O Como lá em Casa foi para a rua a fim de ir ao encontro da experiência e da história profissional de Noemia Scaravelli, que, de 1978 a 1988, fez parte do grupo de teatro de rua Abre + Que Agora Vai. O Grupo foi criado com Ana Paixão (ambas recém egressas da EAD) e buscava alguma forma de expressão em teatro que pudesse, ou ao menos tentasse dar conta da angústia e da insatisfação, decorrente da situação política em que se vivia naquele período. Daquele torvelinho político institucional, pós ditadura, que esgarçava tantos sonhos e desmanchava perspectivas, o teatro possibilitava a perspectiva de manter acesas a fé de nossas almas. Essa esperança gerou o Abre +. Durante dez anos, o Grupo realizou trabalhos explosivos, únicos, autofágicos, quase happenings. Nos últimos anos, Ana Paixão leciona em oficinas de arte na cidade de São Paulo; oficinas cujo tema gira em torno de danças folclóricas, arte e teatro popular. O bumba meu boi que foi um de seus trabalhos reconduziu-nos, agora, a reeditar a antiga parceria e ganhar novamente as ruas. 68
Revista do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (MTR-SP)
Como lá em casa: Bumba-meu-Boi Foto de Rhadamés Sant’Ana
O grupo participou em 2006, com o espetáculo Bumba meu Boi do projeto Recreio nas Férias da Secretaria da Educação do Município de São Paulo, e em 2008 da “IV Overdose de Teatro de Rua de São Paulo“. Em 2007, Rogério Munhoz veio fazer parte do Grupo e trouxe no currículo o circo, dividindo este conhecimento com os demais, criamos um espetáculo para a rua com palhaços e outros expedientes do circo. Em 2009 experimentamos este trabalho pelas ruas de Guarulhos, como parte da divulgação do Projeto Orçamento Participativo da atual gestão política daquela cidade. A Ana Paixão esteve conosco de passagem com seu Boi que foi nosso também. Agora, ela segue com suas pesquisas em cultura popular e nós estamos garimpando nitrato de prata a fim de revelar nosso retrato. O Beto segue enlouquecido remando seu barco no Paranapanema, escrevendo, pensando e fazendo teatro. Trocamos muitas figurinhas, daquelas lindas e coloridas, que vão preenchendo as páginas dos álbuns das nossas idéias e criação. Internet, celular, skype, etc andam mais rápido que as pombas do Anhangabaú para trocar idéias e criarmos juntos. Texto revisado por Noemia Scaravelli
O espetáculo do grupo Como Lá em Casa se dispõe a narrar um dos folclores tradicionais brasileiros: o bumba-meu-boi, que dá nome ao espetáculo. A fábula é simples e pueril: conta a história do vaqueiro Mateus, que mata o boi Estrela, rês do Coronel Juvêncio, devido ao desejo de grávida de sua mulher Catarina em comer um coração de boi. Quando vê a obra do marido, no entanto, Catarina se arrepende e passa a mobilizar todos para a ressurreição do boi. Todavia, há uma distância significativa entre a tradição original do bumba-meu-boi e os jovens paulistanos que se propõem a contar um de seus folguedos. A concepção do espetáculo beira o simplório e nada ali parece, de fato, fazer parte da vida e do corpo dos artistas – desse modo, a tradição popular é retratada de forma cristalizada, estéril e museológica, devido, principalmente, à inexistência de relação real e histórica com os caracteres originais. A impressão é a de um “empacotamento” de determinada tradição, o bumba-meu-boi, para demonstração oficial e digestiva da suposta riqueza da cultura popular brasileira. Como lá em casa: Bumba-meu-Boi Foto de Rhadamés Sant’Ana
A tradição e a petrificação por Paulo Bio26
Há, decerto, uma dificuldade em falar sobre as categorias de cultura popular no trabalho crítico. O conceito é controverso, fruto de imensas discussões e catalogações. Haja vista, por exemplo, a ambiguidade do termo popular, que pode remeter tanto à democratização da cultura como também a uma arte que pretende investigar as tradições populares de determinada região – e uma coisa não pressupõe a outra. Estudante de bacharelado em Artes Cênicas, com habilitação em Teoria do Teatro, na Universidade de São Paulo, e colaborador crítico da revista virtual Bacante.
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No entanto, a despeito da anteriormente apontada difícil apreensão do termo popular, deve-se dizer que aquilo que se define por “tradições populares brasileiras” possui história, contexto social e complexidades imensas e formativas. Por exemplo, o maracatu não é apenas um ritmo musical forte, diz respeito à relação irônica do povo pernambucano com a corte; a capoeira não é apenas uma dança bela, mas uma luta de sobrevivência num contexto histórico de mercantilização de vidas humanas durante o sistema escravagista, e assim por diante. O grupo Como Lá em Casa, ao retirar de um contexto a tradição do bumba-meu-boi deturpa a própria tradição, que não vive sem sua conjuntura, sua relação visceral com seu povo e sua história, e a representa, portanto, já “morta e vazia de si mesma” – o que sobra é apenas uma “historinha” de desenrolar óbvio apresentada no caótico centro urbano de São Paulo.
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Um olhar nublado sobre Catarina
Como lá em casa: Bumba-meu-Boi
por Daniela Giampietro27
Poderia ser uma tarde como outra qualquer. Mas, hoje, o Vale do Anhangabaú sabe que ganhará novas cores. A todo momento, o espetáculo Bumba-meu-Boi, do grupo Como Lá em Casa, é anunciado pela caixa de som. Falta pouco para o início do espetáculo, e a voz que anuncia o evento cuida para que o público permaneça no local. Um ator com perna de pau aproxima-se e, ao som de uma música contagiante, outros brincantes, cantando e dançando, tratam de delimitar o espaço cênico. Um garoto, aparentemente um dos milhares de moradores de alguma rua próxima ao Vale do Anhangabaú, aproxima-se e senta-se na plateia. Seu olhar cinza, significativo, contrasta com a explosão de cores do figurino dos atores do espetáculo. O narrador em pernas de pau destaca-se do coro e anuncia algumas das personagens mais conhecidas da cultura popular nordestina: Catarina, Mateus, o Patrão, o Médico, o Curandeiro e o próprio Boi que, num primeiro momento, desfilam com seus gestos e trejeitos tradicionais. A companhia apresenta um recorte, uma versão aparentemente simplificada do folguedo Bumba-meu-Boi. Obedecendo à estrutura das danças dramáticas brasileiras, o enredo é contado por meio de narrativas, jogos com a plateia, músicas e cenas dramatizadas. Curiosamente – o que explicita a escolha que talvez transcenda o simplesmente estético – no recorte apresentado pelo grupo, a miséria de Mateus e a relação com seu patrão mostram-se enfraquecidas, quase inexistentes. Fazem-se presentes, ou são realçados no espetáculo, os elementos míticos de vida, morte e ressurreição do Boi. Para a ressurreição que, tradicionalmente, marca o fim da representação, a plateia é chamada a intervir diretamente no andamento da obra. Estudante do curso de graduação em Artes Cênicas – Teatro no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), é educadora do curso de teatro infanto-juvenil da Fundação das Artes de São Caetano do Sul e faz parte da Companhia Estável de Teatro.
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Revista do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (MTR-SP)
Por conta do exposto, parece não haver dúvidas de que devemos louvar toda e qualquer forma de resistência – ato significativo, resistimos como seres culturais – e recuperar nossa tradição. Mas a presença daquele menino de olhar nublado, que continuou na plateia até o fim do espetáculo, apontava ao grupo e a todos os presentes que quisessem ver uma questão fundamental: Quem são e o que querem os tantos Mateus de hoje? Se Catarina se arrepende de ter desejado o que não era seu, convém perguntar às tantas Catarinas de nosso tempo: Por que é tão pouca a parte que lhes cabe no mundo? Quando quis falar ao menino sobre este meu pensamento, notei que ele já havia “sumido” pelas ruas de São Paulo, sabe-se lá com quantas e tantas outras questões.
Foto de Rhadamés Sant’Ana
folguedo, como outros também o fizeram, e o transformamos em nosso. Somos nordestinos, paulistas, paulistanos, brasileiros com direito de nos apropriarmos da nossa cultura, reinventando-a de múltiplas formas. A cultura é viva, é dinâmica e, entendemos que da mesma forma, o que a ela pertence. Sendo assim, entendemos que não pode ser peça de museu uma brincadeira de boi de qualquer canto deste País; assim como também não o seja qualquer trabalho artístico que dela se aproprie ou nela se inspire. Fazemos o teatro que podemos neste País de tantas e imensas restrições. Fizemos o teatro que podíamos naquele momento, e, como diz a Ana Paixão - nordestina de Regalia, Rio Grande do Norte, pesquisadora de cultura popular e idealizadora do trabalho - “demos tudo de si”.
Uma incessante busca pelo encantamento recíproco (réplica) Em que pese o conhecimento e a erudição de Paulo Bio acerca de conceitos da cultura popular, do popular e história de algumas dessas manifestações, a impressão que fica da crítica feita por ele ao nosso trabalho é de que ele saiu de casa com uma moldura para tentar encontrar um quadro que coubesse nela. Evidentemente, pela riqueza de procedimentos no fazer do teatro de rua, o crítico não encontrou, ao assistir o espetáculo Bumba meu boi, uma moldura que lhe coubesse. Somos parte de um País cujas manifestações culturais nos atravessam mesmo quando não somos parte das comunidades que as produzem. De fato, não somos brincantes, somos artistas de teatro que nos apropriamos deste
Quanto à escrita lírica de Daniela Giampietro, não passa a mão em nossas cabeças, nos compreende em nossa medida, a de um grupo de artistas que constrói seu teatro a partir de um folguedo popular, o Bumba meu Boi e opta por não fazer grandes malabarismos com as enumeras possibilidades de dramaturgia que poderiam surgir da nossa escolha. O foco no campo mítico da tríade vida, morte e ressurreição, que remete quase que automaticamente a idéia de resistência. A cultura popular que resiste com a participação de todos, representados pelo público que é chamado a ajudar na ressurreição do boi. Resistência a nossa como artistas que produzimos o nosso trabalho com as sobras da economia doméstica de cada um e cada botão pregado naqueles figurinos passou por nossas mãos. Encanta-nos saber que naquela tarde cinza de quase chuva suscitamos questões com nosso trabalho, questões que faria Gabriela ao garoto de olhar cinza que contrastava com as cores do que assistira. Cada um ouve dentro de si o som de nossa fala, e a reverbera a seu modo, segundo sua história. O garoto de olhar cinza sumiu na cidade antes que pudesse ser ouvido sobre suas reverberações. E nós!?... Agrademos aos olhares de nossos críticos que remetem a olhares que não olhamos enquanto fazemos. Erros e acertos daquela tarde, igualmente cinza, prestes a se tornar chuva. Dançaríamos mais com a cidade, não fossem os primeiros pingos que “dissolveram” nosso encanto numa praça que, rapidamente, se espalha. Fazemos teatro para isso, para encantar e sermos encantados. p Texto revisado por Noemia Scaravelli 71
Grupo Namakaca (São Paulo/SP)
Grupo Namakaca: É nóis na xita - Foto de Augusto Paiva
Os palhaços Cara de Pau, Montanha e Cafi: Namakaca! Após trabalharmos por mais de sete anos com os maiores grupos de circo contemporâneo de São Paulo, como Fractons; Nau de Ícaros; Parlapatões, Patifes e Paspalhões, entre outros; em 2004, criamos os palhaços Cara de Pau, Montanha e Cafi para, juntos, formarmos o grupo Namakaca. Depois de muito tempo carregando equipamentos pesados, montando trapézios e toda a parafernália do circo tradicional, decidimos criar um espetáculo prático, de fácil montagem, sem necessidade de contrarregras, que pudesse ser realizado em qualquer espaço – ruas, parques... O sonho comum dos três artistas-palhaços era montar um espetáculo de rua e viver dignamente dele, tendo como focos o olhar do palhaço e a música ao vivo. Durante os anos de formação especializamo-nos em fazer apresentações em eventos empresariais para plateias de alto poder aquisitivo. Apesar de tal ação ter nos possibilitado conhecer grandes casas de espetáculos e vários resorts do Brasil, existia algo que nos motivava a levar nossa arte a quem realmente precisava dela, a locais com pouco ou nenhum acesso a linguagens artísticas. Começamos o processo de montagem do espetáculo nos autodirigindo, mesclando rotinas técnicas já existentes com novas criações. Os primeiros resultados foram interessantes, mas logo ficou claro que um outro olhar era necessário. O chamado foi atendido por Alê Roit, que assumiu estusiasmadamente a função de diretor. Depois de revirar a estrutura já existente, sugeriu alguns números, ajudou na criação de outros; enfim, deu outra cara para o espetáculo. E tudo feito em pouquíssimo tempo, com baixíssimos investimentos financeiros e sem apoio ou patrocínio de nenhuma instituição. 72
Revista do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (MTR-SP)
A ajuda dos amigos também foi imprescindível para a montagem. A trilha sonora foi composta por André Caccia Bava, músico profissional do mais alto gabarito; as fotos de divulgação foram tiradas pelo experiente Zarella Neto e o design gráfico ficou a cargo da competentíssima Mariana Carvalho. Sempre atentos à autossuficiência, buscamos uma estrutura técnica que nos permitisse carregar o circo. Durante os 5 anos de apresentações daquele primeiro espetáculo, reinvestimos parte do lucro das apresentações. Adquirimos uma carreta reboque, equipamento de som portátil, microfones, materiais circenses, figurinos e cenários. Nessa caminhada, também desenvolvemos habilidades para além do palco, como produção executiva, cenografia, marketing, visagismo, zeladoria, mecânica...
Grupo Namakaca: É nóis na xita - Foto de Anelise Camargo
É nóis na xita!!! É Namakaca!!!
O resultado foi o espetáculo É nóis na xita, que recebeu prêmios importantes, foi contemplado em editais, apresentado mais de 270 vezes, inclusive com participações em importantes festivais nacionais e internacionais. Enfim, tudo isso para falar do nosso orgulho em poder democratizar o acesso à cultura, garantindo sempre apresentações com entrada franca, levando nosso circo de bolso até as populações desfavorecidas... E o que recebemos em troca? Experiências incríveis e aprendizados que levamos para toda a vida, pois nos parece que é assim que se forma um palhaço, com tempo e dedicação.
por Cláudia Funchal28 Ó raio, ó sol, suspende a lua viva o palhaço que está na rua...
E o palhaço o que é? Dispensando a caracterização clássica do nariz vermelho e da cara pintada, os integrantes do grupo Namakaka provam que a essência do palhaço encontra-se no corpo e no jogo cômico com a plateia. A brincadeira começa durante a montagem e organização do espaço da cena: despojada e com bom humor, gradativamente contagia o ir e vir daqueles que se cruzam a rua. “É nóis na xita! É Namakaca! É nóis na xita! É Namakaca!...” Assim repete o coro da plateia, sob a regência divertida de Cafi, Cara de Pau e Montanha. O É atriz, mestranda em Artes Cênicas no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) e atualmente pesquisa a improvisação cômica dos palhaços de tradição circense.
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trio lança mão de habilidades acrobáticas, malabarismo, música, esquetes clássicos de palhaços e improviso para criação do espetáculo. Quem tem pressa não pode mesmo parar, mas não resiste, e ao menos diminui o ritmo da caminhada para conferir se Montanha vai mesmo tirar a roupa para mergulhar em um copo d´água, para admirar as habilidades acrobáticas e de equilíbrio do sempre elegante Cafi, para se render à irreverência de Cara de Pau. O jogo desinteressado caracteriza-se mesmo no ponto central de tudo. Como num bom espetáculo de palhaços, o que menos importa é o roteiro fechado. O “desinteresse” aqui nos remete à teoria de Johan Huizinga, em seu livro Homo Ludens, segundo a qual o jogo pertence à vida comum, e não está vinculado a uma utilidade direta na vida cotidiana. O jogo, segundo o autor citado, teria uma finalidade autônoma, e sua satisfação se daria no próprio momento de sua realização. Dentro dessa proposta, o espetáculo funciona e conduz a brincadeira com saudável seriedade. A composição das personagens favorece o jogo. Cafi retoma a elegância e autoconfiança do tradicional Branco, enquanto Montanha, no extremo oposto, sempre leva a pior, e se atrapalha na execução de qualquer tarefa – um Augusto. Esta personagem, no entanto, ainda perde boas oportunidades quando leva muito a sério o papel de vítima. Cara de Pau, a terceira personagem, lembra o que Fellini define como contre-pitre: “[...] parecido ao augusto, se aliava ao patrão. Era o vigarista de rua, o espião, alcaguete da polícia, o liberado a se mover nas duas zonas, a meio caminho da autoridade e do delito”. Cara de Pau é construído com audácia, e é ele quem traz a subversão para a cena. É seu corpo o que mais se aproxima do corpo fictício, grotesco e hiperbólico de que fala Mikhail Bakhtin, no livro A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Segundo o filólogo russo, Cara de Pau revela uma potência por intermédio da qual o mundo aproxima-se e aloja-se no homem. Desse modo, sua “loucura” confere o inesperado, a surpresa e a irreverência ao espetáculo. 74
Revista do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (MTR-SP)
O improviso verbal é um aliado importante: se o campo da ação física é delimitado no espaço, a voz amplia o alcance do jogo, pois se movimenta em função dos que passam: os palhaços chamam quem está mais longe, gritam, fazem propostas... Quem já se sentou para assistir ao espetáculo também tem de olhar para fora da cena – para as meninas bonitas, o “cara” da bicicleta, o carro-forte que passa ao lado. São três palhaços no meio da rua, “soprando irreverência no ar” no meio do sempre útil e dito horário comercial. Enfim, uma festa vestida de festa, com brincadeiras simples, como a escada que vira porta, para abrir e fechar: entre tapas, quedas e gargalhadas. p
Grupo Namakaca: É nóis na xita Foto de Augusto Paiva
Trupe Artemanha de Investigação Urbana (São Paulo/SP)
Trupe Artemanha de Investigação Urbana: Brasil, quem foi que te pariu? - Foto de Augusto Paiva
14 anos de Artemanha, um grupo que saiu da tranquilidade da caixa para o atropelo das ruas Mais importante do que falar de um projeto artístico, é preciso comentar sobre a resistência e persistência que vem acontecendo em bairros da periferia de São Paulo, com coletivos teatrais que desenvolvem um trabalho de provocação política, em regiões bastante afastadas do grande centro financeiro e de mandonismo. Vários coletivos, por meio de sua arte, cujas propostas estéticas nascem durante o processo de criação, têm caminhado na contramão do chamado bem cultural mercadológico. A Trupe Artemanha vem desenvolvendo seu projeto na Zona Sul da cidade de São Paulo. Desde 2005, a Trupe realiza um importante movimento teatral com apresentações de espetáculos, organização de mostras, palestras e oficinas abertas ao público em geral, aos artistas e aos estudantes. Fundado em 1996 em Taboão da Serra, cidade em que o grupo trabalhou por 8 anos e dedicou-se a apresentar espetáculos, especialmente para o público estudantil, realizando um importante processo de formação de plateia no município. Nesse período, foram mais de 300 apresentações dos espetáculos produzidos até 2002, dentre os quais se destacam: Palhaços, de Timochenco Wehbi (1999); Boombástico, criação do grupo (2000) e Soltando o verbo, de Zecarlos de Andrade (2001). Com essas montagens, o grupo atingiu cerca de 60.000 espectadores, em grande parte estudantes da rede pública de ensino. 75
Com a ausência de políticas públicas de incentivo à cultura no município de Taboão da Serra, o grupo migrou, em 2005, para o bairro de Campo Limpo, uma vez que já realizava algumas ações artísticas na região sul da cidade de São Paulo. Nesse mesmo ano, a Trupe Artemanha iniciou a pesquisa para remontagem do texto Boombástico, que mostra marginalizados e excluídos em guetos suburbanos. Esse processo desdobrou-se em materiais que serviram de combustível para o desenvolvimento de uma nova etapa de pensamentos do grupo, dando origem à pesquisa Investigação urbana. Em 2007, a Trupe Artemanha deu continuidade aos estudos teóricos e às pesquisas práticas com as experimentações cênicas que possibilitaram a criação de personagens e diálogos compartilhados com o público em ensaios abertos e debates durante o II Festival Nacional de Teatro do Campo Limpo (FESTCAL). Dessas vivências surgiu o texto Maria de Rua, Maria Guerreira, Maria Medeia!, que discute o abandono de mulheres que vivem à margem da sociedade, tendo por ponto de partida o mito de Medeia.
versos elementos cênicos do circo, da commédia dell’arte, que acentuam o grotesco e ressaltam características típicas de cada personagem. As danças e os variados ritmos musicais, como o forró, o samba, o maracatu e a ciranda, que enriquecem o espetáculo, transportam o público para dentro de uma grande farsa fragmentada da História do Brasil, com personagens históricos e atuais, em uma dramaturgia atemporal. A Trupe Artemanha iniciou uma nova pesquisa teatral – Vi Macunaíma na rua! –, que dará continuidade ao processo de pesquisa para a construção de uma dramaturgia para a rua, inspirada na obra Macunaíma, de Mário de Andrade. A proposta é continuar discutindo o contexto histórico brasileiro, ampliando, assim, a relação artística do grupo com a população.
Com a reunião de materiais de pesquisa, e os relatos de pessoas que moram e trabalham nas ruas, foram criadas algumas cenas compartilhadas com o público em espaços abertos, o que motivou o grupo a se apropriar da rua e dividir tais experimentações com a população. Essas ações e pensamentos desencadearam diversas questões, dentre elas: Como aproximar moradores e alargar diálogos, estimular reflexões, tomando o teatro como o espaço privilegiado para essa troca? Foi assumido pelos integrantes do grupo o desafio, como parte da pesquisa, de realizar pela primeira vez uma encenação de rua, visto que o grupo sempre trabalhou em palcos ou em espaços alternativos. Seria importante, naquele momento, buscar a aproximação desse público, de pessoas que estivessem permanentemente fora das ações governamentais. O espetáculo de rua Brasil, quem foi que te pariu? é decorrente desse processo. Nele, há di76
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Trupe Artemanha de Investigação Urbana: Brasil, quem foi que te pariu? - Foto de Augusto Paiva
Brasil, quem foi que te pariu? Um olhar para as histórias que constituem os Brasis por Daniela Landin29
Alguém que se envolve com determinado fenômeno teatral no espaço público, atuando diretamente ou participando de outras formas, é convidado, em primeiro lugar, a aguçar os sentidos para se lançar em uma experiência sensorial. Às camadas de significado que o próprio espetáculo de rua propõe somam-se aquelas que o local de apresentação descortina, oferecendo inúmeras possibilidades de leitura e de experimentação no que se refere a uma inserção na manifestação cênica. Em diversos momentos, a intervenção realizada pelo espetáculo ilumina características do espaço e, em tantos outros, é o ambiente que, com seus elementos paradoxais, evidencia as contradições do próprio trabalho a ser apresentado. A síntese produzida a partir desse embate – espaço e cena – parece ser inicialmente sentida pelo corpo, percebida pelos sentidos para, depois, ser decantada, elaborada. Repleta de nuances sensoriais foi a experiência proporcionada pelo Brasil, quem foi que te pariu?, da Trupe Artemanha, naquele início de tarde no Vale do Anhangabaú. A percepção de quem se propôs a compreender aquele evento de teatralidade foi tocada pelo primeiro indício da intervenção: no chão, um grande losango amarelo, com um círculo azul ao centro, em alusão à bandeira brasileira. Estávamos na iminência de experienciar um trabalho que pensa o País. No entanto, o aspecto desse elemento cenográfico sugeria que o ponto de vista escolhido não era o do discurso oficial. A “bandeira” que delimitava o espaço cênico não continha as habituais estrelas, tampouco o questionável e positivista lema “Ordem e progresso”. Foi então que um cortejo passou a integrar aquele universo, rasgando a sonoridade do local, destacando-se em meio a tanta polifonia, a tanta polissemia. O prólogo explicita o que vai ocorrer dali por diante: uma narrativa que dê conta da história do Brasil. Mas não a História registrada nos livros, reproduzida de acordo com os interesses de quem a escreveu. O que se propõe é que a história nacional seja contada por um viés popular. Essa apresentação é feita por dois arlequins-narradores, que pontuam com comentários burlescos todo o espetáculo. O legado da commedia dell’arte se presentifica com força na figura do Arlequim, um tipo de servo paspalhão, rudimento do clown. O desempenho dos atores, caracterizado por trabalho corporal expressivo e ritmo sincrônico impresso no jogo, assim como os efeitos dos elementos da encenação, causam impacto no público. Uma das respostas mais contundentes não demora a chegar e surge em forma de ruído revelador do espaço coletivo. Vozes que convergem. “Teatro de rua é melhor que teatro de rico. Dá de mil a zero”, afirma um homem corpulento, verborrágico, muito à vontade em suas inserções no espetáculo, revelando domínio sobre o espaço e consciência de pertencimento. Foram inúmeras as intervenções. O momento mais exemplar desse tipo de relação ator-público ocorreu em uma cena de julgamento, em que um senhor aparentemente embriagado foi diretamente incorporado ao espetáculo, após um sem-número de comentários que fez diante das falas dos atores. Ao tornar-se parte do elenco, ao menos naquele instante, como “assistente do juiz”, passou a repreender aquele primeiro homem que se manifestaEstudante do curso de Licenciatura em Arte – Teatro no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) e jornalista formada pela Faculdade Cásper Líbero.
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va recorrentemente. Ralhava com ele ao mesmo tempo que atuava de acordo com sua nova “personagem”. E em meio àquela profusão de vozes e intenções, um terceiro homem inicia uma cantoria desajeitada: “Perguntaram pra mim... se ainda gosto dela...”. O aparente caos encontra lógica e legitimidade no contexto do teatro de rua, cuja teatralidade se caracteriza justamente pelas múltiplas camadas de texto e de subtexto. Além disso, merece destaque a discussão suscitada em torno da ideia de progresso, que permeia a concepção positivista de história. O espetáculo, que pensa o encontro entre indígenas, portugueses e africanos, critica o pensamento que parte do pressuposto de que o Brasil evoluiu de uma condição selvagem para a civilização, personificada pelo homem branco inserido no mercado de trabalho. Esse posicionamento crítico acerca da ideia de civilidade é também relacionado à Igreja católica e à Rede Globo, apresentadas em forma de alegoria. No entanto, a relação entre esses dois elementos, arraigados de maneira perversa em nossa cultura, poderia ser mais bem problematizada, dada a complexidade do assunto. A Trupe Artemanha existe há 14 anos. Durante esse tempo vem pesquisando as linguagens do circo, da commedia dell’arte, do palhaço, da dança e da música, relacionando-as a um modo de fazer teatro voltado à reflexão em torno da história do Brasil. O grupo realiza ações artísticas no bairro do Campo Limpo, na Zona Sul da capital paulista, desde 2005, cumprindo importante papel naquela região. Trupe Artemanha de Investigação Urbana: Brasil, quem foi que te pariu? - Foto de Augusto Paiva
Trupe Artemanha (de investigação urbana): A voz que deve ser escutada por Juliana Arapiraca30
Em mais uma edição, arte e resistência na rua foram muito bem representadas pela Trupe Artemanha, que completou 13 anos. No espetáculo de criação coletiva Brasil, quem foi que te pariu?, pode-se assistir ao trabalho de um grupo maduro e definido em relação ao próprio processo artístico e clareza ideológica, abarcando, ainda, o didático e o lúdico, organizados de modo dialético. A trupe, formada por seis atores, mostra claramente um trabalho de preparação e pesquisa em clown, commedia dell´arte, dança, circo, canto e percussão, com grande competência e habilidade em todos os expedientes utilizados para criação do espetáculo. A fábula épica conta a “história verdadeira” da formação da cultura brasileira e do Brasil de maneira descontraída, apresentando-a de modo bem diferente daquele apresentado nos livros de história. A peça apresenta ao público símbolos e signos muito bem representados para a encenação de suas personagens: o padre de perna de pau, com o cedro dourado e emblema da Rede Globo, arlequins de escravos-tigres, o juiz “bandeirante” etc. Durante a apresentação do espetáculo, a trupe demonstrou grande malícia ao se relacionar com o públiAtriz, com Licenciatura em Artes – Teatro pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp).
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co, aspecto este que apenas os verdadeiros grupos de rua conseguem desenvolver e segurar o tempo todo. Um morador de rua interferiu de modo contundente do início ao fim da peça; porém, o conjunto de atores, em momento algum, o ignorou ou o repreendeu. Ao contrário, sempre que havia possibilidade, o elenco buscava modos de inseri-lo na peça sem perder o jogo de cena. Dos bons momentos da obra, um dos mais significativos ocorreu quando – durante a cena em que o juiz bandeirante fazia suas considerações de quem era culpado: o índio ou o homem branco – um segundo espectador, espontaneamente, entrou no espaço de representação. De
modo bastante natural, os integrantes da trupe colocaram-no em jogo, na condição de “assistente do juiz”. Por esta solução, o público que acompanhava o espetáculo vibrou. Por intermédio da apresentação de Brasil, quem foi que te pariu?, ocorrida durante a 4a edição da MOSTRA DE TEATRO DE RUA LINO ROJAS, pode-se afirmar que se ouviu, em vários momentos, a voz do povo das ruas. Ao final da encenação, dançou-se uma grande ciranda, representando a força e a união do País, que precisa saber do que se trata e de quem seria a liberdade que desafia o nosso peito a própria morte. Reiterando: Dos filhos deste solo és mãe gentil, Pátria amada, Brasil!
A nossa visão de uma outra história na rua (réplica) A Trupe Artemanha pede passagem e, com muita alegria, considera-se como mais um grupo de teatro que verticaliza a pesquisa na rua por opção, partindo de inquietações que giram em torno do conceito de urbanidade e da pesquisa da história do Brasil. Os autores dos livros sobre essa história impuseram, de maneira determinante, uma visão acerca dos acontecimentos. Por essa razão, a Trupe resolveu assumir outro olhar. O espetáculo Brasil, quem foi que te pariu? retrata a história de forma alegórica, bem humorada e musical, colocando no centro da cena dois escravos-tigres como narradores e fazedores de história, por meio dos quais retomam algumas questões esquecidas, como a indígena. A rua é um campo de possibilidades, fonte inesgotável de inspiração, um grande palco que abriga diversidade de acontecimentos, pessoas singulares, espaço aberto para a criação, um conjunto de pluralidades polifônicas que formam, conformam, desformam, ampliam o caos em sua plenitude. Esse ambiente democrático por excelência serviu de cenário para a 4a edição da MOSTRA DE TEATRO DE RUA LINO ROJAS. Como os ditirambos na Grécia da Antiguidade, que tomavam as praças, o Vale do Anhangabaú foi ocupado por estandartes coloridos e alfaias retumbantes soando em ritmo de maracatu: a Mostra inicia-se com um grande cortejo com todos os grupos participantes. À tardezinha de 11 de novembro de 2009, a trupe monta uma arena ou um território em forma de losango amarelo e, nele, um círculo azul no Vale do Anhangabaú, alusão direta 79
à bandeira nacional, sem as palavras positivistas “Ordem e progresso”, mas com um espaço vazio a ser preenchido. As personagens narradoras, com máscaras da commedia dell´arte e falas bem brasileiras, assumem o centro da arena, representando escravos-tigres. O jogo é instaurado. Ao ritmo de ciranda, um Pedro Álvares Cabral abrasileirado invade o território de cena e encontra-se com uma índia carnavalizada. Em um movimento antropofágico, misturam-se os dois dando origem a um samba-enredo, reproduzindo em cena o encontro do índio com o branco. Bandeirante e índio travam uma guerra por intermédio de elementos cômicos, e índias corrompidas pelo “progresso” trocam mercadorias. Um jesuíta carrega um cetro com o símbolo da Rede Globo e arma um circo de catequização: índio transformado em “homem branco civilizado” procura emprego. Negros acorrentados são libertos pela dança e pela capoeira. A Família Real
chega embalada pelo forró. E depois de tanta poeira levantada, em meio a certa rítmica animada pelo samba do crioulo doido, o impasse entre bandeirante e índio se apresenta. A justiça tenta resolver a questão com um julgamento aos moldes da corte. O público interfere ativamente, e logo um dos espectadores entra em cena e assume a personagem “assistente do juiz. O desfecho da encenação fica a cargo do participante inusitado, que dá o veredicto para o bandeirante. Essa foi uma das apresentações mais significativas do espetáculo. Ao final, o elenco fez uma invocação aos povos de todos os cantos que, pela incontinência e barbárie dos colonizadores, foram mortos, esquecidos... p
Trupe Artemanha de Investigação Urbana: Brasil, quem foi que te pariu? - Foto de Augusto Paiva
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Grupo Teatral Manjericão (Porto Alegre/RS)
Grupo Teatral Manjericão: O Dilema do Paciente - Foto de Augusto Paiva
A retomada pelo Manjericão de antigas tradições do circo-teatro O grupo formou-se em fevereiro de 1998, pela necessidade que seus artistas sentiam em apresentar as próprias ideias, conhecimentos e objetivos definidos pela companhia. Por meio de treinamentos ligados ao trabalho do ator e pela encenação, o grupo experiencia diferentes técnicas e linguagens do teatro popular como, por exemplo, o teatro de máscaras, o palhaço circense e a commedia dell’arte, sempre voltado à criação de novas formas e técnicas. As encenações têm a preocupação de inserir elementos da cultura popular às linguagens utilizadas, buscando, assim, mais empatia com o público, transpondo a barreira do discurso e da compreensão dos temas propostos e ampliando a relação ator-espectador. Em 12 anos de estrada, o Grupo Teatral Manjericão é considerado um dos grupos mais significativos do teatro de rua gaúcho, e já participou dos principais eventos brasileiros. No momento, a trajetória do grupo é objeto de pesquisa na Universidade Federal de Berlim (Alemanha). Dilema do paciente é um espetáculo concebido pela linguagem do palhaço circense, do circo sem lona. A estética e a linguagem utilizadas, escolhidas e trabalhadas com base nas experiências de Márcio Silveira e Anelise Camargo com o teatro de rua, partiram da pesquisa que o grupo vem desenvolvendo sobre o circo de antigamente na cultura gaúcha. 81
O Rio Grande do Sul sempre teve em sua história pequenos circos, mais conhecidos como circos-teatro, nos quais pequenas trupes circulavam pelo interior do Estado apresentando números de variedades e espetáculos de teatro com textos, que iam de William Shakespeare a ilustres anônimos. A maioria das trupes, formadas por dissidentes de circos maiores, tinha no “pano de roda” (lona) seu primeiro (ou último) degrau da carreira circense. A idade de ouro do pequeno circo-teatro foi “sepultada” entre os anos de 1930 e 1950, especialmente por conta do aparecimento da televisão. Contudo, isso não chegou a eliminar tal manifestação dramática popular, que ainda hoje circula pelas pequenas cidades com os mais variados números. Grupo Teatral Manjericão: O Dilema do Paciente Foto de Augusto Paiva
O Grupo Teatral Manjericão propõe-se a criar a partir desse estilo, mesclado à estética do teatro de rua e seus expedientes característicos. Por meio dessa junção, escolheu, ainda, encenar um texto que permita uma reflexão social na linha do circo-teatro, baseado em Federico Fellini, em que os números caracterizam-se em acontecimentos insólitos. Dentre esses números, podem ser destacados: a mulher barbada, que se enamora por alguém do público; a mulher com a maior teta do mundo, que executa o número das tetas boleadeiras; Herculino, o homem mais forte do mundo, e os palhaços acrobatas. Depois da realização dos números circenses, é a vez de os palhaços passarem a encenar o texto teatral dentro desse circo armado em que as pessoas são o pano de roda. A trupe exibe seus números circenses na praça. Logo, Brijela vê que está cheio de manchas azuis. Abandonado no picadeiro, inicia uma jornada em consultórios médicos. Diante de tanta falcatrua, perde a paciência e retorna ao circo em um desfecho tragicômico.
O dilema do paciente – ao público o que é do público por Daniela Landin31
Três artistas populares, oriundos de outras paragens, acontecem, enquanto fenômeno de teatralidade, no Vale do Anhangabaú, em um fim de tarde. Realizam um cortejo de chegada ao espaço de representação, que Estudante do curso de Licenciatura em Arte – Teatro no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) e jornalista formada pela Faculdade Cásper Líbero.
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será posteriormente ressignificado após a intervenção, com destaque para a bandeira que carrega o curioso nome do grupo: Manjericão. Trata-se de uma companhia formada há 11 anos pelos artistas Anelise Camargo, Márcio Silveira e Samir Jaime, todos atuantes na área de teatro e educação em Porto Alegre – Rio Grande do Sul. A presença do tradicional nariz vermelho evidencia um caráter do espetáculo: o trabalho com a linguagem do palhaço. Tem início, então, a apresentação de uma série de números circenses que resultam em pequenos esquetes. Um deles gira em torno de uma tentativa de levantamento de peso... feito de isopor. Outro se caracteriza por um risível exercício corporal de uma mulher barbada que flerta a todo instante com pessoas do público. A mesma palhaça, agora sem barba, executa o número das “tetas boleadeiras”. Ela protagoniza um dos melhores momentos de interação direta com o público, ao convidar dois homens para ajudar na demonstração do tamanho descomunal dos seus seios, que depois são utilizados para um número de malabarismo. O termo “boleadeiras” remete a esse movimento. A expressão, tipicamente gaúcha, faz referência a bolas. O prólogo é realizado a partir do desempenho de um dos palhaços, com um tambor acoplado ao corpo, o que garante boa parte da sonorização dos esquetes. Ele, como mestre de cerimônias, apresenta os números circenses. Os artistas aproveitam o momento para fazer piadas de todo tipo – de críticas à presença do SESC no Vale do Anhangabaú, que ameaçava a perda de espaço para os espetáculos da Mostra, a sátiras em torno do próprio sotaque gaúcho. Em meio à apresentação dos números, um palhaço se dá conta de que seu corpo está repleto de manchas, oferecendo-nos uma curiosa visualidade: saco plástico na cabeça, suspensório e braços e rosto povoados de pequenas bolas azuis. O palhaço, que até então era parte de uma apresentação clownesca, adquire outra trajetória, dando novo rumo ao espetáculo. Torna-se paciente. Dessa forma, é inserido o mote deste trabalho para ser discutido em público – a questão da saúde. O palhaço manchado cumpre, a partir daí, uma verdadeira saga e parte em busca de ajuda médica. A empreitada é totalmente frustrada quando se percebe diante de doutores charlatões. Um deles, ao anotar em sua ficha os sintomas apresentados pelo palhaço, pergunta: “Azul é com ‘s’ ou com dois ‘s’?”. O palhaço-paciente é encaminhado, por uma doutora, a um médico “de fama mundial”, com a seguinte orientação: informar que foi ela quem o recomendou – dessa forma, não perderia uma porcentagem do dinheiro que este ganharia com o caso. Ao chegar ao consultório, o “especialista” tenta aplicar um golpe no palhaço, cobrando valores astronômicos para um estranho tratamento. Diante de tanto embuste, o paciente denuncia em espaço público a exploração a que tanta gente é submetida, bem como a precariedade da saúde. Propor ao público um assunto de interesse coletivo mostra-se extremamente relevante, no sentido de pensar o teatro de rua como uma possibilidade para o debate, recuperando as relações ancestrais entre o teatro e a ágora. O teatro popular tem sua dimensão alcançada ao tratar de temas pertinentes, como é o caso da saúde pública. No entanto, apesar de o espetáculo se posicionar criticamente acerca do assunto, poderia explorar situações diversas pelas quais inúmeras pessoas, sobretudo das classes populares, passam quando necessitam dos serviços do sistema público de saúde. Por isso, penso que os artistas poderiam aprofundar ainda mais a discussão, destacando seu caráter genuinamente público e popular. p
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Companhia As Marias (São Bernardo do Campo/SP)
Histórico da Companhia As Marias A Companhia As Marias é um núcleo de pesquisa de diversas linguagens artísticas. Surgiu de uma necessidade de buscar e desenvolver uma poética própria, cujo resultado pudesse ser levado, principalmente, a espaços não convencionais. No concernente às artes cênicas, a Companhia desenvolve um trabalho centrado no corpo e em sua expressividade, com vistas ao aperfeiçoamento do intérprete-criador. O primeiro espetáculo da Companhia foi A saga do Zé da Fome, cuja estreia ocorreu em 11 de novembro de 2006, na Praça da Igreja Santa Filomena, em São Bernardo do Campo. Depois disso, foi apresentado em praças, feiras livres, centros culturais da região. Nesse primeiro trabalho, a companhia pesquisou a cultura popular tradicional e dela colheu elementos para seu espetáculo de rua, conciliando o trabalho do intérprete ao do brincante de folguedos populares. O espetáculo participou dos projetos “Caminhão-Palco”, “Cult Circuito” e “Mês das Mulheres”, todos inseridos na programação cultural da cidade de São Bernardo do Campo. Apresentou-se, ainda, na IV Overdose de Teatro de Rua de São Paulo (2007), realizado pelo Movimento de Teatro de Rua dessa mesma cidade. As comadres corcundas veio logo em seguida, tendo como proposta a investigação das feiras livres como espaço cênico. Este espetáculo é uma adaptação do conto Os compadres corcundas, recolhido pelo pesquisador Câmara Cascudo. A peça estreou em março de 2007, e até dezembro do mesmo ano percorreu feiras livres de São Bernardo do Campo e de Santo André. A moça que casou com o Diabo, o terceiro espetáculo do grupo, estreou em 9 de maio de 2009, no Jardim Silvina, inserido no projeto 84
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Companhia As Marias: A moça que casou com o diabo
“Cidade Viva”, da Prefeitura de São Bernardo do Campo. Nesse espetáculo, a pesquisa estética, iniciada na Saga do Zé da Fome, aprofundou-se, ganhando novas configurações, por intermédio de uma busca de diálogo mais efetivo com o espaço urbano e suas manifestações mais comuns. Para sua concepção, partimos de dois focos de pesquisa: o imaginário popular medieval europeu e o universo das danças e folguedos tradicionais brasileiros, com suas cores, sons, coreografias, tecidos, indumentária e signos arquetípicos, próprios de nossa cultura mestiça. Com base nesses dois universos, queremos estabelecer diálogos entre a figura do artista mambembe (figura que povoa o imaginário universal, presente em brincadeiras e festas profanas, com vários nomes e roupagens, mas tendo em comum habilidades artísticas diver-
Uma grande brincadeira por Mario Condor32
Na manhã ensolarada da quinta-feira, dia 12 de novembro de 2009, na cidade de São Paulo, em meio ao grandioso Vale do Anhangabaú, o elenco da Companhia As Marias apodera-se do espaço público, entoando em uníssono “vai começar a brincadeira”. A montagem de A moça que casou com o diabo é mesmo uma grande brincadeira. A dramaturgia e direção do espetáculo é de Cibele Mateus, preparação corporal de Cristiane Santos, cenografia e figurinos de Patrícia Janaína, composição das músicas de Anderson Gomes, e elenco composto pelas atrizes Cibele Mateus, Cristiane Santos, Patrícia Janaina, Mariana Vilela e pelo ator Anderson Gomes.
Foto de Augusto Paiva
sas: ele canta, dança, toca, sabe versar, é acrobata e contador de histórias) e os intérpretes dos folguedos brasileiros. Estes últimos, de acordo com certa tradição, recebem o nome de brincantes, cujas habilidades assemelham-se àquelas do artista mambembe, mas suas performances só acontecem dentro dos ciclos das festas (geralmente realizadas em regiões rurais) nos quais ritual, encenação e brincadeira misturam-se em um só ato, promovendo uma celebração. Durante o ano de 2009, contempladas com o projeto Ademar Guerra, da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, a Companhia As Marias inicia nova pesquisa sobre poéticas no espaço urbano (projeto Experimentações Urbanas), realizando diversas intervenções com dança, teatro e artes plásticas pelo centro da cidade de São Bernardo do Campo.
Expedientes da farsa e da commedia dell’arte fundem-se para contar a história de uma moça que, em sua ânsia por se casar, acaba dizendo que o faria até com o Diabo. É o que acaba acontecendo, sem que ela, a princípio, se dê conta do engodo em que se meteu. Tendo de sair de tal situação, com a ajuda de sua mãe, Dona Maroca, que lança mão de muita astúcia e malandragem, salpicada de bastante escatologia, para o delírio da plateia. Dos méritos do espetáculo, é fundamental destacar: a interação que se estabelece entre Dona Maroca e o público, que, desde o início, identifica-se sobremaneira com o jeito sovina, esperto e porcalhão dela; as letras das cantigas, que dialogam com o enredo, comentando a ação; a história que se conta claramente, defendida com entusiasmo por um elenco vigoroso; o momento do aparecimento de São Gonçalo, com resolução cênica muito simples, mas de grande efeito cômico, na qual o ator que o personifica coloca o rosto no telão onde está pintado o corpo Graduado em Direito (Faculdades Metropolitanas Unidas – FMU) e ator formado pelo Teatro-Escola Célia Helena. Atuou profissionalmente em mais de 20 espetáculos e em diversos programas de televisão. A partir de 2005, tem sido aluno especial em diversas disciplinas no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), na graduação e na pós-graduação.
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do santo; o casamento com direito a arroz e buquê para a plateia, que participa da cena como se fosse convidada do casório; e a apropriação do espaço de rua na própria cena, em que o ápice se dá no momento em que a jovem e a mãe estão em apuros com o Diabo e seu ajudante e um carro da Guarda Civil Metropolitana passa – ao acaso, à toda velocidade, com a sirene ligada, a uns dez metros das atrizes –, e elas, sem perder as características das personagens e do assunto ali apresentado, capitalizam o ocorrido e pedem socorro para os guardas com a intenção de serem salvas do Diabo. Como aspectos que merecem ser aperfeiçoados pela Companhia, podem-se citar a necessidade de mais precisão no trabalho corporal, seja na triangulação com o público, seja na coreografia das brigas ou na própria gestualidade cênica; mais projeção vocal de alguns artistas, além de um trabalho melhor de afinação quando as atrizes cantam em conjunto; a partir da cena em que Dona Maroca chega à casa da filha e do Diabo, há, na encenação, queda no ritmo do espetáculo, provocando a debandada de uma pequena parte do público a partir desse instante. De qualquer modo, entre os aspectos que precisam ser mais trabalhados e os inúmeros pontos positivos, a Companhia As Marias cumpre perfeitamente o que parece ser seu objetivo fundamental na encenação: divertir. Nesse sentido, o riso do público presente afiança os comentários críticos aqui apresentados. Companhia As Marias: A moça que casou com o diabo Foto de Augusto Paiva
Por uma brincadeira à brasileira (réplica) Mario Condor captou bem o princípio norteador do nosso trabalho: uma brincadeira na qual fundimos elementos inspirados na cultura medieval com manifestações populares brasileiras, especialmente a nordestina, e que pretendemos ainda agregar aspectos das chamadas tribos urbanas e do ambiente da cidade contemporânea. A apresentação que realizamos no Vale do Anhangabaú representou um grande desafio para a Companhia. Na trajetória de A moça que casou com o diabo jamais havíamos representado em espaço tão amplo. Sempre nos apresentamos em espaços menores, na região do ABCD paulista. Com a experiência do dia 12/11/2009, percebemos, como apontado pela crítica de Mario Condor, que algumas deficiências da peça, tais como projeção, afinação vocal e ritmo cênico, tornaram-se mais evidentes num espaço maior. A partir disso começamos a buscar outras maneiras de esse espetáculo dialogar com o espaço e suas interferências, pois ainda o consideramos em processo. Desse modo, o que mais desejamos alcançar é a intimidade com o público, capaz de tornar nossa brincadeira mais alinhada entre a espontaneidade e a técnica. p
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Grupo Forte Casa Teatro (São Paulo/SP)
Grupo Forte Casa Teatro: Arapucaia - Foto de Augusto Paiva
A Forte Casa Teatro: dos palcos para a rua – um breve histórico O Forte Casa Teatro nasceu em 2002, com a realização de uma pesquisa sobre a commedia dell’arte, que resultou na montagem da peça de rua O triângulo – elogioamoral. Desde então, a relação com a rua deflagrou no grupo o que é hoje seu principal objetivo: fazer teatro popular, que se comunique verdadeiramente com o público. O grupo foi convidado, em 2004, a ocupar o teatro Denoy de Oliveira; a partir daí, começou a desenvolver trabalhos para espaços fechados. Em 2008, decidiu voltar para o teatro de rua, ampliando, assim, as possibilidades de relação com diferentes espaços. O desejo do grupo é que a rua seja uma continuação do espaço por ele ocupado e que seja possível integrar as duas possibilidades nas próprias pesquisas. Com a sexta montagem – Arapucaia –, o processo de ocupação de espaços públicos é retomado. Arapucaia nasceu da vontade do grupo de trabalhar com o texto Ascensão e queda da cidade de Mahagonny, de Bertolt Brecht, bem como de voltar ao teatro de rua e de máscaras, primeiras referências da companhia. Nessa adaptação, utilizou-se o mote original: a história de três criminosos que, perdidos no meio do nada, fugindo da polícia e sem ter para onde ir, resolvem fundar uma cidade, a cidade dos prazeres – Mahagonny/Arapucaia. Essa cidade é um suposto paraíso terrestre, um lugar onde os homens, cansados de tanto trabalhar, podem desfrutar dos prazeres que o dinheiro pode pagar. Mas, aos poucos, ela se revela uma verdadeira arapuca. 87
A obra de Brecht – Mahagonny – foi escrita em 1929, época da grande depressão econômica. Há, no texto, duas questões-chave: primeira, a obra contempla a questão da arte pela arte, o prazer fácil e vazio, alienante, mercantilizado; segunda, coloca em discussão a falsa liberdade do homem em um mundo cada vez mais aprisionante. Hoje, depois de 80 anos da crise de 1929, no momento exato em que uma nova crise do capitalismo volta a colocar em xeque a estrutura dominante, é significativo retomar Mahagonny para mostrar que, apesar das mudanças históricas, as questões ainda continuam as mesmas. Arapucaia segue o roteiro de Mahagonny, com sua sequência dramatúrgica e suas principais contradições e questões discutidas em cada cena, mas com personagens e situações condizentes com nossa realidade, e linguagem mais adequada ao teatro popular de máscaras e de rua. A relação com o público na rua é fundamental para o desenvolvimento da peça, tanto pela linguagem de máscaras, que compartilha todo o tempo ações e reações com o público, quanto pela sua efetiva participação, que é convidado a cantar, a dançar e mesmo a intervir com o grupo em determinadas cenas.
Uma cidade, muitas armadilhas por Adailton Alves33 O teatro livre da rua, mais que virtual, é virulento – mobiliza e ativa o pensamento daquele que nunca leu. A título de paixão. Ray LIMA. Grupo Forte Casa Teatro: Arapucaia Foto de Augusto Paiva
A ópera Ascensão e queda da cidade de Mahagonny estreou em Leipzig em 1930 e, no ano seguinte, apresentou-se em Berlim (ambas cidades alemãs). A peça foi a última parceria entre Bertolt Brecht e Kurt Weill e, segundo fontes disponíveis, não alcançou a mesma popularidade de A ópera dos três vinténs. Nos últimos anos, em São Paulo, Ascensão e queda da cidade de Mahagonny já foi revisitada duas vezes, e ambas as montagens ocorreram na rua: pela Escola Livre de Teatro, sob a direção de Ana Roxo e, mais recentemente, pelo grupo Forte Casa Teatro, dirigido por Magê Blanques, apresentada na 4a edição da MOSTRA DE TEATRO DE RUA LINO ROJAS. É desta segunda apresentação que trataremos aqui. Licenciado em História pela Universidade Cruzeiro do Sul, mestrando no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), um dos fundadores do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (MTR/SP) e ator do grupo paulistano de teatro de rua Buraco d`Oráculo.
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A peça foi apresentada no dia 12 de novembro de 2009, no Vale do Anhangabaú, sob o sol forte das 14h. O espetáculo atraiu muitos transeuntes, que reservaram um tempo de sua rotina apressada para apreciar o aquecimento vocal dos atores, que cantavam músicas de Adoniran Barbosa, para, em seguida, apresentar a história de uma cidade fictícia, que bem poderia ser São Paulo, qualquer outra grande metrópole ou mesmo uma pequena cidade. Onze artistas em cena, três deles representando os criminosos em fuga – mote da peça original –, responsáveis pela fundação de uma cidade de nome bastante significativo: Arapucaia. A cidade, por intermédio de seus fundadores, anuncia-se como
o local em que todos os prazeres podem ser satisfeitos, e o maior crime, calote, isto é, o não pagamento daquilo que se deve. No início, a plateia é inquirida sobre o preço de cada prazer e, no final, é questionada sobre as escolhas. O desfecho é claro: já que somos bombardeados o tempo todo pela publicidade, só quem tiver clareza de que é preciso escolher, e tiver esta possibilidade, é que, de fato, escolherá.
ou “não” a cada pergunta formulada pelo tribunal. A magia denunciatória da cena apresenta-se, principalmente, pelo desvelamento das estruturas do sistema jurídico. A forma maniqueísta de “sim” ou “não” se caracteriza em embuste, já que o público tem de decidir por linguagem cifrada e excludente do sistema jurídico. Os três votos, apesar de dois “sim” e um “não”, condenam o herói. Enforcam um boneco no lugar de Pablo, pois, conforme o grupo anteriormente avisara, seria necessária a presença do ator para as próximas apresentações.
O nome da cidade deriva de arapuca, termo que significa embuste, engodo; é também uma armadilha para pegar pássaros; e, por fim, uma casa de negócios mal-afamada. Os três significados condizem com a cidade de Arapucaia, fundada sob o signo do espetacular e do exótico, que oferece prazer a todo cidadão que possa pagar. Lá, consumir é regra. Mas como tudo o que é oferecido em demasia satura, a cidade entra em crise e necessita reinventar-se. Pablo já satisfez todos os seus prazeres, e, motivado por certa chateação, propõe a desobediência civil: insta a todos a quebrar as regras. No fundo, a personagem parece apenas buscar mais prazer. A cidade, que está na rota de um furacão, acaba por abolir todas as regras, e Pablo torna-se herói. Mas o furacão não destrói Arapucaia, e Pablo precisa pagar por seus crimes: afinal, consumiu o que quis e não pagou.
Outro destaque são as músicas criadas e arranjadas por Luciano Carvalho, que também participa como músico do espetáculo. Como a encenação critica, também, a cultura de massa, há muitas inserções de obras que fizeram sucesso, em várias épocas, o que acaba por criar grande empatia com o público.
Uma das melhores cenas é a do julgamento de Pablo, em que o próprio público – mesmo recurso já havia sido utilizado na montagem dirigida por Ana Roxo – é convocado a salvá-lo doando dinheiro (por intermédio da passagem do chapéu). A contribuição financeira do público seria destinada ao pagamento das dívidas de Pablo. O mesmo público, ainda, seria “convocado” para absolvê-lo com um “sim”
Para apresentar a história, o grupo utiliza-se de máscaras, o que, por si só, provoca um distanciamento crítico. Entretanto, esse uso não se dá de forma tradicional, como na commedia dell’arte, por exemplo: os integrantes tiram e colocam as máscaras às claras, aos olhos da plateia. Para usar uma expressão característica daqueles que fazem teatro de rua: ainda falta ao grupo uma “pegada de rua”. No jogo direto com a plateia, as brincadeiras parecem ficar apenas dentro da roda, no espaço cênico, não permitindo a liberdade que a rua oferece. Prova da falta de percepção do que significa o estar em cena, na rua, ocorreu durante a dança dos atores com espectadores: o desconforto de muitos era visível. Arapucaia é o primeiro trabalho do grupo Forte Casa Teatro para a rua. Deve-se louvar a ousadia e o arrojo do grupo que, de saída, escolheu uma obra de Bertolt Brecht. O grupo é sediado no tradicional bairro do Bixiga (na Bela Vista), e, de certo modo, parece ter buscado o público mais característico daquele espaço; entretanto, trata-se de uma obra que pode dialogar em qualquer praça e rua desse imenso Brasil.
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Forte Casa contra os olhos baixos por Isabela Penov34 Com que inocência demito-me de ser Eu que antes era e me sabia Tão diverso de outros, tão mim mesmo, Ser pensante sentinte e solitário [...] Agora sou anúncio Ora vulgar ora bizarro. Em língua nacional ou em qualquer língua (Qualquer principalmente.) E nisto me comprazo, tiro glória De minha anulação. [...] Eu etiqueta. Carlos Drummond de ANDRADE. Grupo Forte Casa Teatro: Arapucaia
Um pequeno carnaval seduz os passantes do Vale do Anhangabaú. Sobre uma pequena lona circular, o grupo Forte Casa Teatro prepara-se, carnavalescamente, para iniciar o espetáculo Arapucaia, livremente inspirado no texto Ascensão e queda da cidade de Mahagonny, de Bertolt Brecht. Logo seus brasileiros Arlequins e Briguelas nos pegam pelas mãos para nos levar à cidade onde “tudo é permitido“. Viajamos profundamente para perceber que chegamos exatamente onde estamos: uma cidade de liberdades vigiadas, de sedutoras promessas, de anulação das individualidades pelo individualismo, da comercialização de tudo o que for humano, desumanamente. O grupo apropriou-se dos principais clichês com que nos bombardeia a sedutora mídia para, adotando importante indicação crítica de Brecht, desnaturalizá-la. As músicas do espetáculo são quase jingles (belíssimos, importa dizer), contendo as habituais promessas da cotidiana propaganda, e são tão verossímeis em sua absurdidade que acabam por nos seduzir, sim: seduzem-nos para a lucidez. A adaptação bem feita do texto recorre à commedia dell’arte, um teatro intrinsecamente popular, atemporal, de tipos sociais tão identificáveis Estudante do curso de Licenciatura em Artes – Teatro no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp).
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ainda em nossa sociedade que, por pouco, não tentamos tirar a máscara também ao final do espetáculo. A pesquisa vertical e competente desses arquetípicos personagens transparece no trabalho corporal vigoroso dos atores em seus tipos, que conseguem uma atenção legítima do público, transitando pelo humor como em seus quintais. O público é permanentemente convidado a compartilhar da ácida crítica do Forte Casa, confortável em seu lugar e dialeticamente distanciado e próximo à “cidade dos prazeres”. A atualidade e a pertinência da temática proposta em Arapucaia deixam-nos estarrecidos. Mais do que isso, em alerta. Para as manobras de uma ideologia que nos seduz para os caminhos que levam à falência absoluta da ética, baixando nossos olhos para que se acostumem à confortável visão de nossos umbigos. No entanto, é em nossos olhos que o olhar do Forte Casa Teatro se despede: levantando nossa visão para uma contemplação lúcida, potência de uma crítica (re)ação.
Quanta riqueza! Quanto prazer! É maravilhoso, os meus problemas esquecer. O grupo Forte Casa Teatro Vem direto do Bixiga até mim, até você Para nos levar muito mais longe que a TV.
Foto de Augusto Paiva
Arapucaia: Brecht nos trópicos por João Alves35
Naquela quinta-feira, 12 de novembro de 2009, quem esteve no Vale do Anhangabaú pode ver sobre uma lona azul os integrantes do grupo Forte Casa Teatro em alegre cantoria. Um dos músicos perguntou se dava para ouvir bem o som dos instrumentos. Os atores pegaram uma corda e convidaram o público para o aquecimento. Depois, iniciou-se um canto que deu início ao acontecimento cênico. Após um tempo, juntaram-se todos em circulo, fizeram uma saudação e avisaram que o espetáculo havia começado. Para esse começo, a ajuda do público foi indispensável. Juntos deveriam cantar o refrão da música inicial da peça, que epicamente explicitava algumas questões fundamentais da obra: Graduando em Licenciatura em Artes – Teatro na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) e ator da Quadrilha de Teatro Notívagos Burlescos. Atualmente, realiza pesquisas em direção teatral, iluminação, atuação e linguagem audiovisual.
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Saudaram Arapucaia, cidade dos prazeres, terra tropical que repete a maravilha brasileira de ser um lugar onde “em se plantando tudo dá”. O público foi questionado sobre o valor de troca num lugar onde tudo está à venda: Quanto vale seu sorriso? Quanto vale seu amor sincero? Nesse momento, irrompeu à cena uma vaca malhada disfarçando sob sua pele, três criminosos: Lucrécia Gavetão e os filhos Sem Eira e Nem Beira. Impossibilitados de avançar, por haver um rio perigoso, ou de recuar, porque a polícia os perseguia, resolveram ficar naquele local e fundar uma cidade para dar diversão e prazer às pessoas em troca de dinheiro. Fundam, assim, o novo paraíso terrestre, a cidade de Arapucaia: a cidade arapuca, com direito a propaganda-clichê, valorizando seus prazeres naturais e artificiais. A história da construção de Arapucaia desenrolou-se ao som de múltiplos barulhos das construções em torno do Vale do Anhangabaú e do fluxo contínuo de pessoas, comum àquele ambiente. Em recorte de tempo, Arapucaia não andava bem: “a alça da bolsa quebrou”, e um tufão, cuja cidade estava em sua trajetória, ameaçava a todos. Tratava-se de uma situação-limite. Como, segundo ao que se anunciava, “Deus é arapucaiano”, o tufão passou ao lado da cidade sem causar dano algum. Pablo, um dos homens atraídos pelas belezas e licenciosidade de Arapucaia, descontente com a quantidade de regras e taxas impostas pela administração da cidade, decidiu incitar a todos a gozarem de liberdade total. Os outros “desfrutadores da cidade”, também insatisfeitos com as regras e taxas, seguiram os princípios de Pablo, agora considerado herói. Todos aqueles que se entregaram aos seus irrefreados desejos chegaram a um fim desastroso. Daí o novo lema da cidade: “Morrer, mas aproveitar até o fim”. Pablo foi obrigado a fugir por não conseguir pagar a conta do que havia bebido. É capturado no mar, conduzido novamente a Arapucaia e leva91
do a julgamento. Mas antes é realizado um show (Pablo esperança) no qual ae angariam doações para salvar a personagem da morte. Como o valor arrecadado não se equiparou ao valor da divida, Pablo não pôde ser libertado. Levado a júri popular, perguntas mal-formuladas e dúbias endereçadas a três pessoas escolhidas entre o público, impossíveis de ser respondidas, levaram Pablo para a forca. Aquele que outrora havia sido considerado herói, morreu como criminoso.
da peça, da sequência de cenas, da construção da história e das personagens. Enfim, os elementos indicados por Brecht, como dramaturgo, guiaram-nos na construção de Arapucaia. Existem pouquíssimas palavras do original no nosso texto, talvez três ou quatro frases, mas as teses de Brecht apresentam-se nas entrelinhas, no modo de pensar e de construir a cena.
Nesse momento do espetáculo, o ator é substituído por um boneco na forca. A razão disso é muito simples: haverá outras apresentações da peça e, portanto, a participação desse ator será necessária. Mas deixaram claro que tal substituição não ia mudar o destino de Pablo, e o boneco foi enforcado. Arapucaia corresponde a uma adaptação de Ascensão e queda da cidade de Mahagonny, de Bertolt Brecht. Ao adaptar a obra, foram consideradas questões e comportamentos do público paulistano do século XXI, aproximando-a do conceito de traição. Nessa medida, Arapucaia caracteriza-se em ótimo exemplo de uma peça em que o conceito de traição foi observado.
Àqueles que acreditam na sacralização do texto, tal atitude nossa talvez possa se afigurar como uma espécie de descaso. Mas é importante afirmar que nunca tivemos medo de subverter a obra original.
A montagem questiona o consumismo desenfreado, a sede pelo simulacro de liberdade, a duvidosa e sempre parcial justiça, a sociedade do espetáculo... de forma contundente. Quem passou naquela quinta-feira pelo Vale do Anhangabaú e assistiu à Arapucaia, deve ter saído de “olhos cheios” com as escolhas estéticas do grupo e, também, formulado muitas questões básicas da vida em sociedade.
A sensação de missão cumprida: BB na Arapucaia (réplica) Admitamos: grande parte das qualidades de Arapucaia se deve a Bertolt Brecht. Cada tema proposto pela peça original foi amplamente debatido e repensado durante o processo de montagem, mas é bastante claro que inúmeros questionamentos nossos já estavam presentes em Mahagonny, por intermédio da estrutura 92
Revista do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (MTR-SP)
Transformamos totalmente o texto, não apenas as palavras, não raras vezes até mesmo a estrutura, adaptando-o tanto à linguagem de máscaras quanto ao teatro de rua, e, principalmente, ao universo brasileiro e contemporâneo. Mas, para nós, mais presente que Brecht como dramaturgo estava Brecht como pensador de teatro, que não separa estética de ética, para quem reflexão e consciência são eixos centrais do fazer teatral. E foi com esse pensamento que fizemos a livre adaptação, com o compromisso de levar ao público a discussão que ele suscitava em nós. Ficamos contentes em notar que nossa subversão deu bons frutos, principalmente porque a comunicação tem se estabelecido, a reflexão acontece e normalmente o público se envolve, se questiona, se reconhece. Temos, então, a sensação de missão cumprida. p
Buraco d`Oráculo (São Paulo/SP)
Buraco d’Oráculo: Ser TÃO ser - narrativas da outra margem - Foto de Joca Duarte
Histórico sucinto do Grupo seguido de notas acerca de Ser TÃO ser... O Buraco d`Oráculo nasceu em 1998, com o intuito de fazer um teatro que discutisse o homem urbano contemporâneo e seus problemas. Dessa forma, e desde o início, optamos pelo teatro de rua, pois esta foi a maneira mais efetiva que encontramos de compartilhar momentos de reflexão e de afetividade por meio de nossa arte. O trabalho do grupo está centrado em três pontos fundamentais: a rua, como local fundamental para promover o encontro direto com o público; a cultura popular e/ou os populares, como fonte inspiradora; e o cômico. Por isso mesmo, os espetáculos são protagonizados por pessoas comuns, afinal é a elas que se destina nosso trabalho. Pelas características e adesões apresentadas, nossos espetáculos levaram-nos ao encontro de um público diferente daquele que frequenta as salas de espetáculos. Assim, começamos a desenvolver os trabalhos de forma descentralizada, buscando democratizar o acesso do fazer teatral. 93
Desde 2002, atuamos na região de São Miguel Paulista, bairro da Zona Leste de São Paulo. A partir de 2005, graças a recursos obtidos por meio de prêmios públicos, temos ampliado nosso raio de atuação, realizando circuitos teatrais em diversos conjuntos habitacionais da Zona Leste para dezenas de milhares de pessoas.
vidualismo. Essas instâncias ocorrem nas ocupações, nas favelas e, por fim, nos conjuntos habitacionais, quando o Estado se faz presente, construindo as casas ao seu modo, empilhando as pessoas, criando outro território, que requer novas adaptações.
Também começamos a ouvir histórias de pessoas e das comunidades e passamos a acalentar sua transformação em dramaturgia, em espetáculo. Em 2008, com 10 anos de existência, fomos contemplados pelo Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo pela segunda vez, o que tornou possível a realização deste desejo. Assim nasceu Ser TÃO ser – narrativas da outra margem, que coloca em cena histórias de alguns moradores da Zona Leste. São indivíduos desterritorializados que deixaram para trás a terra de origem e muito de sua cultura, adaptaram-se e reconstruíram-se na cidade grande, enfrentando diversos tipos de violências.
O espetáculo é diferente de tudo o que já havíamos feito, pois trabalhávamos apenas com farsas. Nesse processo, as histórias também vieram à tona e fincamos ainda mais nossas raízes na parte Leste de São Paulo. Saímos transformados pelo processo criativo, e principalmente pelas histórias de vida desse povo aguerrido, massacrado pelo sistema cruel no qual estamos todos inseridos.
O espetáculo tem como fio condutor a moradia, o que nos permite revelar e discutir o processo de expansão da periferia paulistana. Passamos por três instâncias: a luta, a solidariedade e o indi-
Crescemos como seres humanos graças ao contato mais próximo com esses cidadãos. Tantos Joões, Marias e Josés trabalhadores desse Brasil, habitantes desses sertões, ressurgidos na periferia da grande metrópole.
Ser TÃO ser – narrativas da outra margem: um espetáculo de resistência, de luta e de esperança por Narah Neckis36
Fui assistir à peça Ser TÃO ser – narrativas da outra margem, do grupo Buraco d`Oráculo. Durante a apresentação, notei a presença de um menino, de trajes simples, aparência de alguém que, apesar de pouca idade, já conhecia muito da vida, postura forte e decidida que, por vezes, incomodava algumas pessoas que se sentavam ao seu lado. O que mais me chamou atenção foi o olhar dessa criança ao ver o espetáculo. Havia, naquele olhar, um brilho diferente; um brilho de identificação, de pertencimento. Vi em seus olhos, dentre tantos outros sentimentos, sonho e esperança. Ao final da apresentação, esse menino me disse: “Tia, escreve meu nome aí. Eles falam de mim, sabia? Escreve meu nome, eu me chamo Alex.” Durante a 4a edição da MOSTRA DE TEATRO DE RUA LINO ROJAS, o Buraco d`Oráculo apresentou-se com o Ser TÃO ser..., dirigido por Adailton Alves. Difícil apresentar por palavras a força transformadora deste espetáculo que, mesmo em meio ao caos do centro da cidade de São Paulo, conseguiu prender a atenção do público, levando-o à reflexão. Senti Atriz formada em Teatro pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) e em Direito pela Universidade Mackenzie. Integrante do Grupo de Pesquisa Teatral Nativação.
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Revista do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (MTR-SP)
uma pontada no estômago: sou também responsável pela desigualdade social do nosso país. Preciso tomar partido, agir, lutar...
Buraco d’Oráculo: Ser TÃO ser - narrativas da outra margem Foto de Anelise Camargo
A dramaturgia do espetáculo tomou por referência histórias de vida coletadas pelos integrantes do grupo, por meio de entrevistas com moradores residentes em diversos locais da Zona Leste da cidade de São Paulo. De certo modo, todas as personagens encontram-se em estado de partida, “[...] é hora de deixar o que é, e ser o que não se sabe.”
Ser – narrativas pertinentes
Iniciada a apresentação, permaneceu a sensação de espera. Esperamos o espetáculo e, quando nos demos conta, ele já estava acontecendo. Os retirantes caminhavam, cada um em canto do Vale do Anhangabaú, contando suas histórias a quem estivesse mais próximo. Em determinado momento, as personagens-retirantes encontraram-se e passaram a contar uma mesma história: o sofrimento das pessoas que não têm casa própria e não conseguem pagar aluguel. Interessante observar, ainda, o jogo estabelecido entre os atores e a plateia. Nesse sentido, duas cenas merecem destaque: a do casamento, momento em que todos participaram de uma grande festa; e a final, no instante em que o público, sensibilizado com os atores, ajudou-os a cantar: “Se o povo soubesse o valor que tem não aguentava desaforo de ninguém”. Quem assistiu ao Ser TÃO ser – narrativas da outra margem seguramente se dispôs à reflexão. Difícil permanecer alheio à obra e às suas histórias, porque todas elas nos dizem respeito. Trata-se de um espetáculo instigante, contundente... por meio do qual algumas mudanças podem ser divisadas.
por Isabela Penov37 Quando eu morrer, que me enterrem na beira do chapadão, contente com minha terra Cansado de tanta guerra, Crescido de coração Zanza daqui, zanza pra acolá Fim de feira, periferia afora A cidade não mora mais em mim Francisco, Serafim, vamos embora. Assentamento. Chico Buarque de HOLLANDA.
O território não diz respeito apenas ao ter, mas ao ser. Por isso, Ser TÃO ser – narrativas de outra margem, espetáculo do grupo Buraco d’Oráculo, até mesmo no nome, é, mais do que qualquer outra coisa, absolutamente pertinente. O grupo, particularmente atuante nos bairros da Zona Leste de São Paulo, especialmente nas Companhias de Habitação (COHABs), com ou sem os recursos obtidos pelo Programa Municipal de Fomento para o Teatro na Cidade de São Paulo, realizou uma pesquisa mais profunda com os integrantes dessas comunidades, colhendo relatos de vida, de sonhos e de histórias que se cruzaram em um ponto comum: a desterritorialização da mulher e do homem urbanos e “hegemonizados”. A reflexão sobre essas trajetórias deu origem ao espetáculo. Estudante do curso de Licenciatura em Artes – Teatro no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp).
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Sim, absolutamente pertinente, e desejaria conferir a essa talvez gasta palavra o caráter de extrema grandeza. Buraco d’Oráculo levou para a rua – território de todos e de ninguém – exatamente a reflexão sobre a condição dos desterritorializados. A peça transita em três diferentes situações ou territórios: um lugar ocupado, uma favela e uma COHAB, locais, diga-se com todas as letras, de total precariedade habitacional e alvos de preconceitos diversos encorajados pela mídia. Os trabalhadores representados não podiam perceber, por conta da árdua luta pela sobrevivência, a força que teriam se lutassem juntos por alguma transformação. Nessa perspectiva, fez falta alguma abordagem do problema dos moradores de rua, itinerantes do “lugar nenhum”, prisioneiros da luta cotidiana, intrinsecamente ligados à “paisagem” urbana como problema irremediável, e, naquele momento, certamente parte do público que assistia ao Ser TÃO ser... no Vale do Anhangabaú. Vale observar que, dada a competição sonora e visual inerente ao Vale, bem como a proposição de uma arena, a construção espacial definida pelo grupo não foi adequada. Ela impediu que ouvíssemos e víssemos o espetáculo da melhor maneira. Mas felizmente pudemos apreciar reflexivamente um espetáculo pertinente.
Buraco d’Oráculo: Ser TÃO ser - narrativas da outra margem Foto de Joca Duarte
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Revista do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (MTR-SP)
Apreciar, criticar, dialogar (réplica) O sujeito do conhecimento histórico é a própria classe combatente e oprimida. Sobre o conceito da história. Walter BENJAMIN.
O teatro de rua vive um momento feliz de sua história. Na cidade de São Paulo, uma das ações do Movimento de Teatro de Rua (MTR/SP) – a MOSTRA DE TEATRO DE RUA LINO ROJAS, encaminha-se para sua quinta edição, e desde a terceira vem realizando apreensões críticas dos espetáculos apresentados em sua programação, publicando-as na Revista Arte e Resistência na Rua, graças a tantos parceiros, dentre os quais Alexandre Mate, que, nesse particular, e por convencimento da necessidade de militância política, angariou novos parceiros para essa tarefa: registrar e produzir documentos acerca da produção teatral de rua. O Buraco d`Oráculo entende que essas apreensões críticas são fundamentais, ainda que de difícil realização porque, em primeiro lugar, não há tradição nesse segmento, pois, como já afirmou Renzo Vescovi, os críticos têm evitado, de forma meticulosa, escrever sobre teatro de rua (apud CRUCIANI; FALLETTI, 1999), e, em segundo lugar, porque na rua nada para de acontecer durante o espetáculo, e a qualquer momento uma interferência mais forte pode levar a obra à sua derrocada, afinal a vida é sempre mais forte do que qualquer arte. Dessa forma, na rua, a obra está permanentemente aberta, inacabada e permeável, dificultando a análise.
Buraco d’Oráculo: Ser TÃO ser - narrativas da outra margem - Foto de Joca Duarte
Apesar de o teatro de rua ser tão antigo, estamos todos (críticos e grupos) envolvidos em uma tarefa nova e nada fácil: dialogar, tendo o espetáculo como vértice dessa discussão, algo raro e talvez único na história do teatro de rua. E aqui aproveitamos para agradecer aos elogios de Narah Neckis e Isabela Penov ao espetáculo Ser TÃO ser – narrativas da outra margem, buscando não fazer desse diálogo uma justificativa para os apontamentos feitos. Inicialmente, é importante dizer que nenhuma obra consegue dar conta de tudo; portanto, faz-se necessário o trabalho com recortes. Nosso espetáculo partiu das histórias de alguns homens e de algumas mulheres que habitam comunidades no extremo Leste da cidade de São Paulo. Dessa forma, optamos pelos desterritorializados: indivíduos que deixam sua cultura e seu lugar de origem e tentam se adaptar e reconstruir a vida em outro lugar, nesse caso, em pequena parte da periferia da cidade de São Paulo.
Quanto ao uso da voz, a poluição sonora do local é prejudicial não apenas aos atores, mas, para nós, é um caso de saúde séria que precisamos enfrentar e discutir. Em espaço aberto, a voz se dispersa com facilidade. Quando falamos em uma roda, em geral, uma parte é privilegiada; outra, prejudicada. O Buraco d`Oráculo tem resistido ao uso de microfones, mesmo que a voz natural apresente falhas na recepção do público. Sabemos do desconforto em se fazer teatro na rua, em cidades cada vez mais barulhentas. Por isso, entendemos a importância política, para além do estético, de estarmos na rua. Saímos às ruas para nos comunicarmos, trocarmos experiências com pessoas que não têm acesso a essa arte e discutirmos temas não propostos em outras instâncias. Mas isso, claro, não elimina nossas deficiências, nem nossas responsabilidades frente aos problemas apontados... daí a importância da permanência do diálogo com a crítica, na medida em que ela pode apontar avanços e indicar retrocessos em nossas criações. p
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Trupe Olho da Rua (Santos/SP)
Os olhos de uma Trupe na rua
Alto dos palhaços e a desmistificação do natal por Kiko Rieser38
A Trupe Olho da Rua iniciou as atividades em 2002, tendo por norte uma utopia mambembe decorrente de uma viagem no melhor estilo mochila nas costas, de cidade em cidade. A partir dessa utopia efêmera vivida, o grupo centrou a pesquisa no fazer teatral na rua, buscando um olhar irreverente, político, que rompesse as paredes que impedem o livre jogo teatral com o público. Por esse caminho, o grupo construiu um repertório composto por seis espetáculos, apresentados ininterruptamente. Em 2005, a Trupe convidou o ator e diretor Miguel Hernandez para elaborar com todos os integrantes da companhia a concepção do espetáculo Alto dos palhaços, diretamente ligado ao Natal. O que se pretendia era colocar em discussão, em uma roda de brincadeira com o público, os valores burgueses-cristãos. Acreditava-se que esta proposta tenderia a romper a relação que o grupo desenvolvera com os palhaços em trabalhos anteriores. No Alto..., os palhaços apareceriam travestidos de personagens tipicamente natalinas: Papai Noel duplicado: um amarelo; o outro, laranja, ambos interpretados por palhaças; uma rena desprovida; um duende satírico, um anjo milico, uma insólita árvore de Natal, um Jesus irreverente. O desafio era extravasar a acidez satírica dos palhaços em contraponto ao bucolismo imposto por tantos interesses na manutenção da festa consagrada, com canções natalinas, figurinos e cenário simples, para atrair e ludibriar um público receptivo por manifestações que endossem os conceitos natalinos ditados pelo senso comum. O espetáculo é apresentado de novembro a dezembro. A cada ano o processo é revisitado e redimensionado dramaturgicamente pelo grupo. 98
Revista do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (MTR-SP)
A cultura, para muitos, ainda que tacitamente e dentro de limites tênues, pode ser dividida entre popular e erudita. Muitos daqueles contrários à arbitrariedade de tal divisão, ainda que acreditando em sua dicotomia, movem esforços artísticos para que as duas vertentes culturais se fundam, talvez por compreendê-las apenas como diferentes, não crendo que possam ser designadas como alta e baixa cultura, como costumam ser rotuladas, particularmente nos meios acadêmicos. A partir desse desejo de fusão de limites, surgem movimentos como o Armorial, encabeçado por Ariano Suassuna, que busca criar uma arte erudita a partir de elementos da cultura popular nordestina. Recentemente, o espetáculo A pedra do reino, de Antunes Filho, baseado no romance homônimo de Suassuna, levou aos palcos teatrais o cerne do projeto do Movimento Armorial. Outros artistas e coletivos, pela via oposta, se empenham em tornar popular a cultura erudita, levando obras clássicas para universos mais próximos e facilmente reconhecíveis. Parece, em certa medida, ser este o propósito da Trupe Olho da Rua, de Santos, em seu espetáculo Alto dos palhaços, Bacharel em Artes Cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Atualmente, é dramaturgo e diretor da Companhia Ao Pé da Letra, e tem muito apreço pelo debate crítico, tão desgastado na maior parte da grande imprensa.
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Trupe Olho da Rua: Auto dos Palhaços - Foto de Augusto Paiva
um auto contado por figuras híbridas, mistura de palhaços com personagens tipicamente natalinas. Baseando-se na técnica da paródia – explorada anteriormente em outros trabalhos do grupo, com um tom cômico apropriado à sedução necessária para espetáculos de rua e dominado com perfeição pelos atores –, o espetáculo, com concepção geral de Miguel Hernandez e direção coletiva, ironiza o natal (mesmo sem ser propriamente considerado como cultura erudita, se trata de um costume tipicamente burguês) dentro do universo popular. A temática e mesmo a formalização crítica já se materializam como sinédoques potencializadas na caracterização dos atores, aparecem como primeira imagem e percorrem toda a obra. São seis atores, todos com nariz vermelho, cara branca e demais adereços típicos de palhaço. Cada figurino, porém, representa, ao mesmo tempo, uma personagem tipicamente natalina: há dois papais-noéis (interpretados pelas duas únicas atrizes da companhia), um anjo, Jesus, uma
rena (os dois últimos interpretados pelo mesmo ator), um duende e até uma árvore de natal. O alvo da crítica é, acima de tudo, o aspecto mercantil do natal. Por isso, e por não haver melhor propaganda do que a associação a um ícone, o peito nu de Jesus contém a inscrição “anuncie aqui”. Da mesma forma, evidencia-se a comercialização do natal frisando a dimensão e a forma sensacionalista que ocupa na mídia, como na propaganda de certa marca estadunidense de refrigerante. Unindo-se as duas imagens, pode-se entender que, embora muito se fale do significado religioso cedendo lugar ao consumo, o problema é maior, pois, se a própria Igreja católica, há séculos, tem muitas vezes por fim principal o acúmulo de riquezas, talvez nunca tenha havido desvirtuação, e a festa de aniversário de Cristo sempre tenha tido seu fundo comercial. Vem para ilustrar essa ideia a história do nascimento de Jesus, que o espetáculo conclui com a fala “[...] por causa dos presentes dos três reis magos gastamos dinheiro no natal”. Seguindo a mesma linha, mostra-se que ditados e jargões típicos do conformismo, logo com caráter reacionário, têm significados e origens religiosos, como “Quem economiza sempre tem.” e “Olhem sempre o lado bom da vida.”. Se o lado 99
consumista do natal já é conhecido de todos, o espetáculo, além de evidenciar características não facilmente perceptíveis desse lado, desmistifica mesmo a face originária, ou seja, a religiosa, questionando e problematizando, portanto, todos os pilares sobre os quais a festa natalina se apóia. A montagem, no entanto, tem cerca de metade de sua duração dedicada a paródias de canções natalinas, que são executadas em ritmos típicos da cultura de massa, como funk carioca ou axé, para tornar risíveis as canções originais. Sua função paródica se restringe à sátira simples, sem que se lancem novos olhares para o objeto de estudo ou se proponham analogias. A exceção é O natal existe, cantada enquanto a rena e o duende se agridem, exaltando a contradição entre o amor falso e romantizado que a letra invoca.
Um “alto” de natal por Natália Siufi39 Trupe Olho da Rua: Auto dos Palhaços
Alto dos palhaços é uma miscelânea de canções de natal, com arranjos em batidas de rap e de funck. Em tom de grande brincadeira, o espetáculo critica os princípios das festas natalinas e, por extensão, certos valores da família, da propriedade e da religião. Tudo compartilhado de forma irreverente e espontânea com os espectadores, em grande e significativa troca lúdica. A simplicidade é a marca do grupo: poucos elementos cenográficos e quase nenhum cenário e, ao fundo, a paisagem do Vale do Anhangabaú. Durante o debate realizado à noite, parte da programação da 4a edição da MOSTRA DE TEATRO DE RUA LINO ROJAS, discutiu-se a diferença entre palhaço e ator-palhaço. Junio Santos, um dos criadores do Movimento Escambo Popular Livre de Rua, defendeu a tese de que é possível um ator fazer/apresentar um palhaço, mas lembrou que o palhaço dorme e acorda palhaço. Tal discussão se mostra pertinente ao se perceber a quantidade de “narizes vermelhos” Formada em Licenciatura em Artes – Teatro no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp). Fundadora e integrante do Grupo Teatral Parlendas.
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Revista do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (MTR-SP)
espalhados pela cidade, e mesmo em alguns espetáculos da própria MOSTRA. As renovações e reinvenções mostram-se fundamentais ao longo da história. Por essa razão, não se deve ficar preso a determinados modos do fazer teatral, mesmo considerando que alguns traços dessa cultura se percam em meio a tantas mudanças. Vale lembrar que tais transformações não decorrem exclusivamente do neoliberalismo ou da mercantilização da arte, posto que sempre houve preconceitos relacionados às formas populares. De volta ao Alto..., o nariz vermelho cabia perfeitamente à proposta da trupe que, mesmo sem utilizar os jogos da palhaçaria clássica, apresentou uma crítica pertinente. Se o palhaço, especialmente por
Os gestos escolhidos evidenciavam contradição em vários momentos (talvez seja possível pensar no conceito de gestus brechtiano), numa oposição entre o grotesco representado no corpo dos atores e o “sublime” presente nas canções natalinas. O público é levado, constantemente, a caminhar pelos extremos – sagrado e profano –, pois a Trupe Olho da Rua cria situações em que o clima de “paz e amor” do espírito natalino contrasta com as paródias e as sátiras, livres de pudor ou de qualquer culpa judaico-cristã. É o caso da cena em que a figura apelativa de um apresentador televisivo é acompanhada por um coro natalino, que canta suavemente o refrão da música: Jesus Cristo, de Erasmo Carlos e de Roberto Carlos. Na mesma cena, no momento em que o apresentador sugere as possibilidades de compra de presentes, conforme a situação financeira do comprador, ficam claros os objetivos e a crítica dos integrantes do grupo santista.
Foto de Augusto Paiva
sua ingenuidade, não cabe na lógica capitalista e na eficiência das máquinas, os atores-palhaços do grupo também não querem caber na mercantilizada festa natalina, que impõe o consumismo desenfreado. E de uma história de natal que troca o Espírito Santo pelo Espírito e pelo Santo, que não descem dos céus, mas de um armário embutido, tudo se pode esperar... Até uma estrela atrapalhada que, segundo os narradores, deve ter feito os reis se perderem muito, já que eles só chegaram em 6 de janeiro para o nascimento de Jesus, ocorrido no dia 25 de dezembro. Os presentes: ouro, incenso e mirra. Mirra? Pois é! Ninguém sabe o que é isso. Muito menos as personagens, que chegam à seguinte conclusão: gasta-se tanto no mês de dezembro por causa dos três reis magos (atrasados!) e dos três presentes (cujos significados são desconhecidos!).
As condições econômicas distintas, apresentadas daquela maneira, evidenciam a divisão da sociedade em classes, cujo acesso aos bens decorrem exatamente de seu poder econômico. Se algumas escolhas musicais e dramatúrgicas ligam-se ao senso comum, a energia dos atores preenche deliciosamente lacunas ou elimina excessos. Na verdade, pouco importa se eles são palhaços ou atores. O que conta mesmo é que o conjunto de artistas fez-se presente e inteiro no espetáculo. É importante dizer que o grupo conseguiu, na manhã em que se apresentou no Vale do Anhangabaú, trazer à tona questionamentos ligados à prática do artista de rua, bem como revelar a importância de seu papel no processo de conscientização para a transformação social. Para finalizar, em nova paráfrase cristã, durante a distribuição de panetone e de cidra para todos, os integrantes da Trupe Olho da Rua anteciparam a comemoração de natal, entre risos e cantoria.
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Paródias de nós ou coincidência do intestino (réplica) Em outros tempos, seguramente nós e os leitores críticos de nosso espetáculo estaríamos ardendo em alguma fogueira em praça pública. Jesus Cristo? Não nasceu no dia 25/12. Escolhido a dedo 200 anos depois, teve sua história escrita a partir da compilação de outras tantas histórias de profetas e de deuses antigos, pautada por um calendário religioso que se baseou em datas festivas pagãs, por uma instituição que visava ao poder global, em oposição a outras instituições que, com historinhas diferentes, visavam à mesma coisa. A cultura nos une como nação? Como vivemos, como nos relacionamos, os preceitos éticos e religiosos que norteiam nosso pensamento são evidenciados e revistos pela arte que fazemos? Estivemos em Recife graças ao projeto do Núcleo Pavanelli. Por coincidência, naquele momento, em nossa cidade (Santos), estávamos estudando da obra do Ariano Suassuna, munidos da ignorância sulista e envoltos na mítica criada pelo mestre Suassuna. Trupe Olho da Rua: Auto dos Palhaços - Foto de Augusto Paiva
Na capital de Pernambuco, deparamo-nos com parceiros de ofício, que se identificavam muito mais com Chico Science e com o Cordel do Fogo Encantado do que com João Grilo e seus pares. Em perspectivas diferentes, conseguimos distinguir o que é mais popular hoje? Vivemos, como disse Kiko Rieser, ao se referir à divisão do erudito e do popular, em “um limite tênue”, muitas vezes apropriado e usado conforme o interesse mercantil. Afinal, por mais que lutemos, ainda somos burgueses-cristãos e, portanto, em algum momento da vida, Papai Noel fez sentido. Ser ou não ser palhaço? Ser ou não ser cristão? Certa vez, o santista Dagoberto Feliz (do grupo Galpão do Folias) afirmou que depois de ter descoberto seu palhaço, ele havia se tornado um ator melhor. O princípio do jogo do palhaço tira o ator do centro de sua atuação e evidencia o jogo na relação com os espectadores. Nesse jogo com o público, livre de convenções parnasianas, pode surgir o popular. Num tempo em que até o pensamento crítico é incorporado pelo sistema vigente como válvula de escape, por vezes igualando-se à religião, (não) seria demasiadamente absurdo dizer que “futebol, religião e pensamento não podem ser discutidos”. O Natal, como placebo do amor, é uma realidade conhecida por todos. Parodiar, rir, ridicularizar o impulso emotivo, iluminado pelos pisca-piscas dos nossos pinheiros artificiais, é o que nos resta. Ter um espaço de interlocução por meio de um pensamento apurado e verbalizado por uma crítica escrita, que evidencia a troca generosa do olhar do crítico, é de suma importância. p
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Revista do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (MTR-SP)
Companhia dos Inventivos (São Paulo/SP)
Companhia dos Inventivos: Canteiro - Foto de Augusto Paiva
Companhia dos Inventivos, uma trupe que não pergunta mais aonde vai a estrada... Os Inventivos não se escolheram, foram escolhidos. Os integrantes se conheceram, em 2004, na Escola Livre de Teatro de Santo André (ELT). Eram colegas da turma na Formação 8. Inquietos e instigados pelas aulas do mestre Alexandre Mate sobre teatro épico, reuniam-se fora do horário de aula para aprofundar os estudos. A busca por uma linguagem direta fez com que os integrantes do futuro grupo começassem a investigar a formação da sociedade brasileira, tentando identificar uma dramaturgia com elementos do teatro épico que falasse do homem como ser social inserido neste mundo. Dessa inquietude artística nasceu a Companhia dos Inventivos, organizada em torno da revisita à cultura popular por meio da narrativa épica no espaço livre e de transeuntes que é a rua, palco das grandes manifestações históricas e também lugar de aproximação com a população. Em 2005, a companhia foi contemplada com o Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais (VAI) da Cidade de São Paulo com o projeto de pesquisa, montagem e apresentação do espetáculo de rua A história da morte de Maria Consorte, fruto de estudos iniciados no ano anterior. Por intermédio do VAI, durante o segundo semestre de 2005, o espetáculo foi apresentado 24 vezes, especialmente em feiras livres da cidade de São Paulo. Neste mesmo ano, o grupo participou do IX Festival Nacional de Teatro de Americana e conquistou os prêmios de Melhor Espetáculo de Rua pelo júri oficial e pelo voto popular. 103
Inquietos e provocados pelo teatro de rua, inúmeros questionamentos e vários desejos, o núcleo artístico da Companhia dos Inventivos, formado por Aysha Nascimento, Flávio Rodrigues e Marcos di Ferreira, convidou Alexandre Mate para um bate-papo acerca de uma próxima montagem de rua. Depois dessa conversa e de inúmeras provocações de leitura, os integrantes da companhia depararam-se com a importantíssima obra Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, e convidaram Edgar Castro para a direção. Apaixonados pela obra, que abarcava os desejos e a necessidades de cada integrante em dialogar com a sociedade naquele momento, redigiram o projeto para o Programa de Ação Cultural (PROAC) – Montagem/2008, da Secretaria de Estado da Cultura. Após a resposta positiva do edital, em janeiro de 2009, iniciou-se o processo de montagem. Depois da leitura do romance, o grupo começou a trabalhar a partir de um canovaccio criado por Alexandre Mate, e realizou, também, uma viagem a Ilha de Itaparica (BA), onde se desenvolve a narrativa. Algumas obras de Darcy Ribeiro também compuseram o material de estudo, relatos foram escolhidos e inúmeros treinamentos corporais foram experimentados para compor a pesquisa, com especial destaque para a dança (afro e jongo). Houve também uma roda de conversa sobre identidade brasileira com a professora Iná Camargo Costa. Em abril, com a montagem quase estruturada, a companhia encontrou-se com Rômulo Albuquerque – percussionista e construtor de instrumentos musicais percussivos. Esse encontro foi decisivo para a montagem porque Albuquerque trouxe a musicalidade do espetáculo e revelou o caminho hoje denominado “cenário musical”. Em julho de 2009, houve a apresentação de Canteiro, segundo espetáculo de rua da companhia, na Praça Cordélia, em frente ao terminal de ônibus e à estação de trem da Lapa, e próxima ao Tendal da Lapa, espaço que a companhia sempre utilizava para os ensaios, desde o surgimento do grupo. Por intermédio do PROAC, o espetáculo foi apresentado cinco vezes no interior de São Paulo, nas cidades de Dois Córregos, Américo 104
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Brasiliense, Lençóis Paulista, Jaú e Santo André. Cabe ressaltar que essa montagem foi decisiva para o trabalho da companhia, especialmente no que se refere à opção estética e à importância de estar na rua e de participar de movimentos como o MTR de São Paulo e a Rede Nacional de Teatro de Rua. Seus integrantes estiveram no Encontro Nacional de Arcozelo (RJ), em Rio Branco (AC) e no do Rio Grande do Sul. Desse modo, para além da consciência artística, os integrantes da companhia ampliam a consciência política sobre teatro, sobretudo o realizado na rua.
Canteiro – estrada adentro A Companhia dos Inventivos partiu para as ruas com o propósito de entender os motivos pelos quais parte significativa da população brasileira se viu obrigada a viver na periferia de nossas cidades. A rua, no início, não representava uma busca ideológica; caracterizou-se em significativa descoberta depois da realização de algumas de nossas apresentações. Desde os tempos de formação da companhia, as apresentações e a elaboração estética foram sendo desenvolvidas aos poucos, até que esta se revelasse em nossa caminhada. Nesse processo de descoberta das ruas, deparamo-nos com todas as suas personagens e a profunda complexidade de sua formação. A montagem e a apresentação de Canteiro nas cidades brasileiras é para festejar as manifestações populares, espetáculo este entendido não como uma ação solitária, mas, sim, como a concretização de um trabalho
realizado por um coletivo que privilegia o diálogo e se interessa pelas experiências trocadas com o público.
Inventivos sim, com muita ousadia por Natália Siufi40
Quem poderia pensar que um canteiro de obras, cheio de baldes, pás e demais elementos de trabalho, seria o cenário perfeito para um espetáculo que abarcava 300 anos da história do povo brasileiro? Só mesmo uma companhia de inventivos para embarcar nessa empreitada. Cada ferramenta era transformada pelas mãos dos atores em elementos cênicos pontuais, instrumentos musicais precisos ou signos repletos de significado.
Companhia dos Inventivos: Canteiro - Foto de Augusto Paiva
Estava provado. Teatro de qualidade pode ser feito apenas com bons atores e muita criatividade.
uma adaptação do livro Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, cujas histórias dos heróis de nossa gente forneceram o conteúdo necessário para a abordagem de inúmeras questões políticas e sociais pertinentes, fazendo com que o espectador se identificasse com as batalhas e as injustiças cometidas contra várias personagens.
Os elementos são os do cotidiano, o corpo é extremamente trabalhado e elaborado, e a criação de cada personagem dá o tom despojado à narrativa, prendendo a atenção dos espectadores.
Não é fácil condensar 700 páginas em uma hora de espetáculo, e essa preocupação se mostrou evidente em vários momentos, especialmente naqueles em que os atores perdiam oportunidades de jogo e de interação com a plateia para preservar a fábula.
O trabalho musical merece destaque. O músico, inicialmente tímido, reinventava sons a partir do cenário, criando belíssimas sonoridades. Trabalho encantador, preciso e empolgante, tanto nos ritmos enérgicos dos tambores e baldes quanto no som metálico das pás, escadas e ferros.
Preocupação desnecessária, já que as narrativas não precisam se unir em linearidade histórica (estrutura que proporciona uma visão mais abrangente, tornando as trajetórias atuais) e podem ser cortadas ou ampliadas sem grandes danos ao roteiro principal. Se o grupo assumisse o espetáculo como um roteiro aberto, passível de alterações, e não como dramaturgia fechada, talvez as cenas se tornassem mais leves e mais divertidas para a plateia, visivelmente cansada em certos momentos.
A dramaturgia revelou-se o maior trunfo do espetáculo e, também, seu maior problema. Trata-se de Formada em Licenciatura em Artes – Teatro no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp). Fundadora e integrante do Grupo Teatral Parlendas.
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Quando há muito a ser dito, em tempo reduzido, a escuta se ressente. Por isso, se a preocupação excessiva com detalhes da fábula 105
fosse abandonada, haveria mais espaço para a brincadeira. O teatro de rua caracteriza-se fundamentalmente em espaço de troca de experiência e potencializa a participação do espectador. Em Canteiro, viam-se em cena os operários; por isso, a afinidade e a liberdade para processos de troca ampliavam-se. Os espectadores do Vale do Anhangabaú interagiram como puderam, considerando que a estrutura da peça não privilegiava tais intervenções. Um dos momentos mais divertidos ficou a cargo de um rapaz que, faminto, não teve vergonha de pedir um pouco de comida da marmita de Aisha, uma das atrizes, legitimando, assim, uma das teses de Bertolt Brecht segundo a qual o estômago viria antes da moral. Ao final da peça (e no horário de almoço das personagens!), os operários e Marita (personagem engraçadíssima, que vendia marmitas aos trabalhadores) não sabiam o que fazer. As lembranças de cada um deles eram as histórias de nossa gente, oprimida e em permanente estado de injustiça. Como reagir a isso? Fazer justiça com as próprias mãos, como fez a personagem
Negro Leléu, que matou os homens que abusaram sexualmente de sua filha e a mataram? E a tensão permaneceu até o momento em que os atores, cantando, descobrem uma saída, que diverte e agrada a todos: “Vô botá o coroné num trem lotado pra trabaiá! Vô dexá ele doente, na fila do SUS, pra se tratá! Vô dexá ele com fome, só com feijão pra se alimentá...” Os espectadores deliciam-se ao ver as próprias dificuldades e misérias transferidas aos generais e coronéis de nossa história. Naquela tarde algo aconteceu. Não serão os mesmos os que assistiram àquele espetáculo nem os que o realizaram, pois houve troca. Grande invenção desses inventivos...
A manga e a amora em seus pés, a salada de frutas na mesa: uma devoração do povo... brasileiro (réplica) Quando li que queimavam as obras dos que procuravam escrever a verdade Mas ao tagarela George, o de fala bonita, convidaram Para abrir sua Academia, desejei mais vivamente Que chegue enfim o tempo em que o povo solicite a um homem desses Que num dos locais de construção dos subúrbios Empurre publicamente um carrinho de mão com cimento, para que Ao menos uma vez um deles realize algo de útil, com o que Poderia então retirar-se para sempre Para cobrir o papel de letras Às custas do Rico povo trabalhador. Realizar algo de útil. Bertolt BRECHT.
O comentário crítico de Natalia Siufi sobre o espetáculo Canteiro, apresentado na 4a edição da MOSTRA DE TEATRO DE RUA LINO ROJAS, em 2009, no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, abriu valiosas frentes críticas de percepção e de trabalho na permanente construção 106
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do projeto artístico desenvolvido pela Companhia dos Inventivos, talvez por se tratar de alguém que também enfrenta os problemas concretos do fazer teatral, distante da condição do tagarela George, o do poema de Brecht. Pode ser interessante, a título de esclarecimento, dizer que Canteiro não se propõe a condensar as 700 páginas da obra Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro. Na verdade (talvez esta seja uma informação pouco precisa no material de divulgação do espetáculo), apropriamo-nos de apenas quatro das inúmeras fábulas do livro, aproximadamente 1/3 da obra do escritor baiano, que são as histórias contadas pelos trabalhadores no espetáculo. A livre devoração da obra de Ribeiro pelos Inventivos terá prosseguimento com o próximo espetáculo da companhia, provisoriamente intitulado Bandido é quem anda em bando.
Atentos à questão suscitada no texto de Natália Siufi, compartilhamos a ideia de que “(...) o teatro de rua caracteriza-se fundamentalmente em espaço de troca de experiência e potencializa a participação do espectador”. Mas a estrutura dramatúrgica de Canteiro não é, por opção, uma estrutura que abre espaço para intervenções. Para nós, o mais importante é que as histórias suscitem perguntas e estimulem a reflexão do púbico. Isto, sim, pode ser uma forma interessante de participação, diferente (nem pior, nem melhor!) da participação nos chamados “espaços abertos à intervenção”. Evidentemente, sobretudo em se tratando do ator do teatro de rua, espera-se uma disposição para o diálogo inclusivo a partir das intervenções espontâneas, interagindo de forma produtiva com as manifestações do público. Nesse aspecto – o da instauração de um diálogo radicalmente democrático entre atores e público –, nós, da Companhia dos Inventivos, estamos em permanente aprendizado. Isto posto, parece-nos útil entender que se espera de um pé de manga que ele produza mangas, não amoras. E acreditar que o trabalhador tem o direito de escolher entre a manga e a amora. Ou de devorar uma deliciosa salada de frutas. p Companhia dos Inventivos: Canteiro - Foto de Augusto Paiva
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Companhia do Miolo (São Paulo/SP)
Companhia do Miolo: Amores no Meio-Fio - Foto de Augusto Paiva
Breve histórico do Miolo espraiando-se pelos espaços públicos até uma ladeira-memória da cidade A trajetória artística da Companhia do Miolo vem sendo, desde sua fundação, norteada pelo desejo de provocar o encontro. Foi a partir dessa necessidade que surgiu nossa vocação de trabalhar com o teatro de rua. Compreendemos a rua como um espaço público fértil e propício para o encontro, tanto estética como politicamente. Nesse sentido, entendemos que tal teatro pode criar fissuras, em lugares de passagem, gerar poesia e resistência que restabeleçam seu sentido de encontro, reflexão, sensibilização, troca e expressão. Assim, a companhia partiu de uma pesquisa sobre o teatro popular. Em 2000, montou O casamento suspeitoso, de Ariano Suassuna; em 2002, na rua, a companhia apresentou O burguês fidalgo, de Molière, com direção de Bete Dorgan. Surgiu daí a necessidade de um processo de treinamento e de pesquisa de uma linguagem corporal que dialogasse com os espaços urbanos. Em 2004, com a montagem de O doente imaginário, de Molière, a companhia aprofundou e intensificou a pesquisa sobre as possibilidades expressivas do corpo na rua, e desenvolveu sistemática de treinamentos voltados para lapidar o corpo como material expressivo do encontro teatral. Cuca Bolaffi, a diretora desta obra, contribuiu imensamente com sua experiência adquirida, sobretudo na escola LeCoq, em Paris (França). Com a mesma diretora, montou-se o infantil É de cantar e de brincar, dando sequência ao treinamento físico (tônus, ritmo, impulsos, qualidade de movimento, orientação no espaço, oposições, peso etc.). Em 2006, dirigido por Fábio Resende, Ao Largo da Memória, projeto contemplado pela Lei Municipal de Fomento ao Teatro na Cidade de São Paulo, viabilizou uma pes108
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quisa sobre urbanismo, cujo resultado – desenvolvido por intermédio de dramaturgia fragmentada –, apresentou uma coleção de flashes da cidade: espécie de álbum de fotografias. Em 2008, também dirigido por Fábio Resende, e iniciando uma investigação da cidade como cenário, a companhia montou Alice! Uma adaptação urbana da obra de Lewis Carroll, trabalho que recortava espaços da rua (cruzamentos, alturas etc.) como cenário e provocação de uma dramaturgia. Em 2009, inserido no projeto Poética da Cidade, contemplado pela Lei Municipal de Fomento ao Teatro na Cidade de São Paulo, iniciamos um treinamento pelos espaços da cidade, e escolhemos a Ladeira da Memória como um espaço que oferecia inúmeras possibilidades de experimentação corporal. As escadarias, os desníveis, os pequenos vãos se ofereciam como matéria apropriada aos desafios corporais por nós propostos. Paralelamente ao treinamento, queríamos falar do amor naquele momento, dos desencontros, dos amores desfeitos, da inadequação do amor romântico na contemporaneidade, das múltiplas maneiras de amar e das impossibilidades de fazê-lo. Coincidentemente, na ocasião, a cidade era invadida por uma frase bastante provocante: “O amor é importante, porra”. Concluímos, então, que iríamos falar de amor. A pesquisa que realizávamos também nos convidava a aprofundar a questão musical, cujo desenvolvimento no projeto se dava sob a coordenação de Gustavo Kurlat. Assim, em decorrência da junção de todos esses ingredientes – pesquisa do espaço, musicalidade e desejo de falar de amor –, surgiu Amores no meio-fio.
A pesquisa iniciou-se tendo como base o samba. Primeiro porque tínhamos uma relação apaixonada pelo gênero, segundo porque reconhecíamos no samba uma linguagem popular capaz de potencializar nosso encontro com o espectador na rua. Desse modo, iniciamos uma pesquisa com sambas das décadas de 1920 e 1930, levantando um repertório recheado de humor, conflitos e romantismo; avançamos por diversos sambas, inclusive de compositores mais contemporâneos; ampliamos, com a ajuda de alguns bons conhecedores do samba paulista, como José Scalacth (Zé do Buttina), nossa gama de sambas que traduziam os mais estranhos e cotidianos conflitos de amor. Descobrimos o Príncipe Pretinho, relembramos Aracy de Almeida e cantamos Batatinha. Do processo, selecionamos 20 sambas que nos serviriam, num primeiro momento, como base dramatúrgica. Junto aos sambas, trouxemos à tona histórias próprias; disso surgiram as cartas de amor. Escrever muitas cartas de amor, pesquisar outras tantas. Deparamo-nos com Amores difíceis, de Italo Calvino, e dali selecionamos algumas histórias de amores desencontrados. Com todo esse material, construímos uma dramaturgia junto às experiências no espaço.
Companhia do Miolo: Amores no Meio-Fio - Foto de Augusto Paiva
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No início, quando ocupamos a Ladeira da Memória, tivemos algumas dificuldades com os meninos e meninas que por ali ficavam cheirando cola o dia inteiro. O lugar não recebe espetáculos, como a Praça do Patriarca ou o Vale do Anhangabaú; portanto, era estranha nossa presença ali. Ao chegar, criamos uma fissura no cotidiano. Negociamos o horário de lavagem das escadas para que fosse possível a realização dos ensaios; ocupamos o imenso espaço da escadaria com objetos cênicos, movimentações, músicas e outras coisas próprias do teatro. Por se tratar de um espaço de ligação entre metro e ônibus, o fluxo do local é intenso. Insistimos, vencendo as dificuldades, e passamos a compor aquele espaço com nossa encenação. Em um primeiro momento, havia certa vontade de contrapormo-nos ao lugar. Fizemos algumas escolhas, como as cores dos figurinos, os arranjos musicais e a própria elaboração cênica, com o intuito de conferir delicadezas do amor àquele árido lugar. Mesmo em se tratando de desencontros, de cartas de amores perdidos, de restos e sobras de afetos, revelamos uma poética mais feminina ao espaço. Firmamos uma temporada na Ladeira e deparamo-nos com muitos desafios. Entre eles, nos avizinharmos de meninos e meninas que se violentavam a cola, diariamente. Por vezes, ficavam tão drogados que mal conseguiam ficar de pé. Mexiam e cuidavam das nossas coisas. Olhavam espantados, aproximavam-se, e, às vezes, nem se davam conta de que estávamos ali, vizinhos incômodos: o lugar era deles. Foi nesse ambiente que lançamos nossos amores, nosso “pequenino bloco de carnaval colorido” no cinza escuro e hostil da (Ladeira) Memória, por baixo da figueira imponente. Amores no meio-fio nasceu assim, do desejo de falar de amor, de ser uma poesia sussurada nos ouvidos cansados de quem passa. Nasceu dessa simbiose do amor com a beleza dura de uma ladeira, do som da clarineta que soa estranha e insistente numa insensatez. Nasceu do nosso cansaço também de gritar, espernear, esbravejar... Cantamos suaves, dissonantes aos sons da rua: “Lá vai meu bloco vai, só desse jeito é que ele sai”41. 41
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Verso da música Bloco da solidão, abertura do espetáculo.
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Companhia do Miolo: Amores no Meio-Fio Foto de Augusto Paiva
Meninos de rua também escrevem versos de amor por Isabela Penov42
Vagueando pelas ruas, casa de todos e de ninguém, num mergulho pelas lixeiras alheias, uma mulher cata restos para sobreviver. Em meio a frutas apodrecidas e nacos aproveitáveis, brilham os melhores desperdícios: cartas de amor, restos, também, da vida, do tempo, dos sonhos. A comida que presta é pouca, mas as cartas lhe dão um banquete. Logo ali ao lado, a poucos passos dessa mulher, um grupo de dez, talvez mais, meninos e meninas de rua observam-na. Enquanto abusam dos entorpecentes, escutam, com a atenção que lhes é possível, as histórias contidas nas amassadas cartas da catadora. Em volta deles, há um público assustado, dividido entre as lindas histórias e as crianças, que passeiam, donas, pelo seu espaço, pelo único espaço seu, que não lhes pertencem. Estamos na Ladeira da Memória. Os atores da Companhia do Miolo cantam o amor nas escadarias, com muita cor, com muito riso e também com lágrimas. O espaço tem seus Estudante do curso de Licenciatura em Artes – Teatro no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp).
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moradores – meninos e meninas da rua –, que transitam pela cena como se não admitissem mais um dono da rua. O amor acabado, iniciado, partido, feliz ou desfeito mistura-se nos meninos e nas meninas ao efeito da droga, até que se pode ver que alguns deles deixaram a cola de lado para apenas desfrutar dos contos de amor. Na plateia, vemos rostos ameaçados, de olho na conversa das crianças, olhando desconfiados. Como se ali, na Ladeira da Memória, não pudesse haver muito espaço para o amor. Mas há, sempre. Com muito samba e competência, os atores de Amores no meio-fio encantam. Bem preparados, corpo disponível para a rua, ocupam o espaço público com domínio e respeito. O espetáculo materializa as histórias contidas nas cartas, aquelas cartas da catadora, sem perder o ritmo nem a atenção do público, sobre uma dramaturgia sensível e consistente. Há no espetáculo muita poesia: musical, textual, corpórea e visual. Entretanto, em meio a tantas informações estéticas, os atores, não raras vezes, perdem o contato verdadeiro com o público, do olhar que vê. A própria construção apenas frontal do espetáculo se enriqueceria se o público estivesse mais incluído nas ações, nas danças e cantos ao longo do espetáculo. É difícil falar de amor quando tudo fala de amor e, principalmente, quando este parece ser uma preocupação imoral frente a uma realidade próxima tão devastadora. Porque há fome, violência... e, muitas vezes, é difícil pensar nisso como prioridade. Mas a Companhia do Miolo declara, numa tarde chuvosa e musical: meus amigos, falar de amor não é uma indecência. É uma necessidade.
Companhia do Miolo: Amores no Meio-Fio - Foto de Augusto Paiva
Queria tanto ver um sorriso... por Juliana Rocha de Oliveira43
“Queria tanto ver um sorriso.” Essa era a frase escrita em um pequeno bloco de notas amarelo claro que havia sido grudada ao meu corpo e que me acompanhou naquela sexta-feira, 13 de novembro de 2009, e nos dias que se seguiram, quando a Companhia do Miolo realizou a última apresentação do ano de Amores no meio-fio, na Ladeira da Memória. Com 10 anos de experiência e pesquisa sobre teatro popular, a Companhia do Miolo é um grupo paulistano, composto por cinco atores e dois músicos, que escolheu como tema para suas criações o espaço urbano. Por esse alvo, caracteriza-se em objetivo do grupo investigar a formação da cidade de São Paulo, sob a ótica de pessoas que viveram sua infância nas décadas de 1920, 1930 e 1940. Por conta desse processo de pesquisa, o grupo vem apresentando contribuições significativas no que se refere ao estudo da linguagem corporal para a rua. Pelo estudo sistemático, os integrantes do grupo buscam: o diálogo do corpo do artista com o público espontâneo das ruas; propor diretrizes por intermédio das quais seja possível o processo de desenvolvimento de formação desse público; e o estudo da linguagem e especificidades da criação teatral em espaços não convencionais. Atriz e arte-educadora, graduada em Educação Artística – habilitação em Artes Cênicas; mestra pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp). Título da dissertação: Tempo de jejuar e resistir – a presença do kung fu no treinamento do ator: a experiência extracotidiana no teatro vocacional em proposição épica.
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A Ladeira da Memória localiza-se na saída da Rua Xavier de Toledo, da Estação Anhangabaú do Metrô, e é uma mistura de história – abrigando o primeiro monumento público de São Paulo: um obelisco em forma de pirâmide erguido em 1814; de cheiro de cola e de esgoto; de boteco de cerveja e “sambão”; de sujeira; de policiais, vendedores ambulantes e cachorros; de menores abandonados; de muita gente passando; de teatro. Foi nesse cenário recheado de cores e odores que os avisados e os desavisados puderam experimentar Amores no meio-fio. Trata-se de uma obra, segundo o grupo, livremente inspirada em contos do livro Amores difíceis, de Italo Calvino, e do conto Gente decente, de Henrique Medina. A livre inspiração foi realizada pelos integrantes da companhia, composta pelos atores Alexandre Krug, Edi Cardoso, Lívia Lisbôa, Maíra Leme e Renata Lemes; os músicos Daniel Oliveira e Gabriel Longhitano, sob a direção de Gustavo Kurlat. Ocupante da escadaria da Ladeira, cujo pano de fundo é uma enorme figueira, a personagem que conduz a narrativa – uma catadora de papel –, naquela sexta-feira, 13, dividiu a cena com algumas personagens da ficção e também da vida real. O espetáculo que acontecia concomitante ao da Companhia ocupava uma espécie de plataforma na lateral da escadaria. Também havia, como personagens que narram a ação, pessoas da rua, possíveis catadores, não apenas de papel, mas do que encontrassem naquele lugar tão público e que, ao mesmo tempo, tornava-se tão privado. A ação do espetáculo paralelo não tinha texto, ou, se houvesse, era imperceptível; a personagem era coletiva e se manifestava por meio de um coro de cerca de 20 crianças, vestidas de rua, descalçadas, sem ação aparente, portando um pequeno saquinho ou uma garrafa de plástico nas mãos, “escondidas” sob o que, um dia, foram camisetas. Enquanto isso, os atores ao lado, munidos de pequenos microfones acoplados ao corpo, e separados do público pelos degraus da escadaria da ladeira que dava acesso ao monumento e à figueira, faziam chegar até nós as histórias de amor – encontradas nas ruas em meio a tantas outras coisas, pela personagem catadora; belas imagens, como 112
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a personagem-vento interpretada por uma bela moça, que com um vestido que parecia não ter fim cobria toda a escadaria; e a música da clarineta, do violão e da voz que, de tão lindos, massageavam os ouvidos em meio a tanto barulho. Como uma espécie de interpolação de ação e de discurso, as duas histórias eram contadas. Por vezes as crianças, em um movimento aparentemente descuidado, invadiam o espaço do teatro da rua. Elas possivelmente gostariam de fazer parte desse outro espetáculo, que era mais colorido, mais poético, mais alegre. O espetáculo parece agora ser protagonizado pelas crianças que atravessam a cena, rompendo a divisão imaginária que separa o espaço da encenação e o do público. Os atores também experimentam essa interação, descendo as escadas e colando em nossos corpos pequenos lembretes, desses que colocamos na geladeira para não esquecermos de algo tão sem importância que precisa ser anotado. Algumas das cartas encontradas são narradas pelas personagens deflagrando o universo de uma existência pouco ousada, bem comum a tantos de nós, e que produz imagens como: escolher uma blusa, passar creme no cotovelo, ver a novela, entre tantas outras. As crianças, alheias ao creme do cotovelo, à novela e ao bolo; em um embate corporal quase coreografado, acotovelam-se na disputa de uma grande espuma semelhante a um colchão que possivelmente lhes serviria de cama mais tarde. Em meio a tantas palavras, por vezes exageradas, já que o próprio contexto da rua não permitia a apreensão total delas, fazendo com que imagens falassem muito mais, alguns
momentos pareciam, de forma mágica, embalar todo o público, inclusive o coro das crianças, quando a clarineta, o violão e as vozes dos atores induziam nossos corpos ao movimento. Já quase no final do espetáculo, um grande tumulto é notado, é uma das crianças que anuncia a chegada de mais cola, e com uma garrafa cheia nas mãos, inicia a partilha. Dessa vez, a cola é tanta que até o cheiro é sentido, a cena é tão intensa que o fim da peça passa quase despercebido. Mas quem disse que o fim precisaria ser visto? Como em todo teatro de rua, não é “deselegante” chegar depois do início nem sair antes do fim, nem mesmo falar ao celular, ou conversar. Em Amores no meio-fio, a Companhia do Miolo apresenta um teatro que, em sua essência, dialoga, mesmo que de maneira fragmentada, com vários tipos de pessoas: as que vivem por lá, as que estavam de passagem, as que foram para registrar o evento. Antes de ir embora, um dos meninos aproxima-se de mim, olhando nos meus olhos bem de perto, querendo dizer algo. Pergunto se assistiu ao espetáculo. De modo muito sutil, esboça uma espécie de sim com a cabeça. Pergunto se ele se divertiu; não diz mais nada nem com palavras, nem com sinais. Não tenho ideia do que possa ter sentido o menino. Talvez, qualquer dia desses, lembre-se de que aquele não foi um dia comum. Foi um dia de teatro, lá na Ladeira da Memória.
Companhia do Miolo: Amores no Meio-Fio - Foto de Augusto Paiva
Amores logo ao lado (réplica) Os textos que nos foram enviados levam-nos a revisitar uma velha e insistente questão que sempre impulsionou o trabalho da Companhia do Miolo: como encontrar o outro nesse espaço-rua? Como olhar, como estar junto, como poetizar esse espaço? Como se aproximar, não temer, se achegar e deixar que o outro se achegue... com que linguagem, palavra, corpo, cor? A rua reflete essa substância misturada, como tão bem nos descreve Juliana Rocha: “(...) de cheiro de cola e de esgoto; de boteco de cerveja e “sambão”; de sujeira; de policiais, vendedores ambulantes e cachorros; de menores abandonados; de muita gente passando; de teatro.” Não tentamos nos impor, estamos lá, tentando também ser parte, assim como tantos, aplicando-nos a esta difícil tarefa humana: encontrar. As formas são múltiplas, assim como a rua. Nesse trabalho, diferente de outros da Companhia, debruçamo-nos sobre a proposta de realizar um espetáculo mais sutil, feito sedução amorosa, que falasse baixinho, mas de modo contundente. Claro que corríamos o risco de, por momentos, o público passar sem nos notar, e talvez, também sem ser notado, já que essa relação intensa entre ator e espectador só se dá em via de mão dupla. Mas as sutilezas na rua também compõem formas, falam do inesperado e comunicam, ainda que não de modo já conhecido. A companhia, também quando se aventura a dar esse tratamento ao trabalho e insiste no espaço árido da ladei113
ra, depara-se com o risco de perder “determinado protagonismo único, hegemônico” sob a vista dos espectadores, que deslocam o olhar e os ouvidos ao espetáculo da vida real, que acontece tão juntinho aos Amores no meio-fio. O espetáculo teve estreia em setembro de 2009, e realizou temporada nas escadarias da Ladeira da Memória. Um domingo, resolvemos apresentar no Bixiga, na bela escadaria entre a feira de antiguidades e a Rua dos Ingleses. Lugar de paisagem única. Silencioso e à espera de alguma presença oportuna que lhe ocupasse. No domingo, naquele lugar, deparamo-nos com muita gente passeando, sem pressa, deixando-se ficar atenta às palavras, excessivas às vezes, mas que vão falando de amor e ocupando sem atrito a escadaria do Bixiga. A poesia parece querer um lugar que lhe seja próprio. Mas, afinal, qual é o lugar mais apropriado para se poetizar? Não há resposta para essa pergunta quando se decide lançar-se ao teatro de rua. Os lugares são como as gentes, guardam sempre novidades... Depois da experiência no Bixiga, concluímos que Amores no meio-fio precisava insistir em suas falas, imagens e sons na Ladeira da Memória e nos espaços nos quais, de algum modo, permanecesse batendo na porta, meio fora de lugar. Reconhecemos o intenso trabalho nesse paradoxo: caber e, ao mesmo tempo, estar fora, juntar-se, desejando a contraposição. Os meses que se seguiram na Ladeira permitiram-nos compreender que o tênue fio que existe entre o ator e o público, entre a narrativa e a plateia na rua se faz e se desfaz constantemente ao sabor dos acontecimentos, e que a força desses acontecimentos atravessam cada palavra e gesto na cena. É preciso ser poroso para que esses atravessamentos nos transformem, e não se tornem impedimentos ao acontecimento teatral. Por isso, o trabalho do ator na rua é dobrado. A escolha de trabalhar com sutilezas na rua, buscando as delicadezas, falando inclusive de coisas privadas, como o amor a dois, é parte desse questionamento feito na companhia a respeito do encontro. As crianças protagonizam a Ladeira, sem dúvida. Muitos que precisam atravessar o lugar passam temerosos... mas por instantes algo acontece. Por instantes, não há 114
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segregamentos interpostos por certo protagonismo heroico. Ainda que no ínfimo segundo de tempo a clarineta que soa destoando do lugar, somando-se as cores, as narrativas do amor e o teatro, que não combinam com as cenas reais das crianças despertencidas e donas do lugar, convocam a todos a juntar seus restilhos e, quiçá, amar. Há mesmo um embate. Um embate de afetos, de sons, de acontecimentos. Quem dá mais? A quem pertencerá à Ladeira? Quem é o dono da rua? O embate entre o medo, o amor, a droga e as crianças lembra-nos que afinal a Ladeira pertence a todos e a ninguém: espaço público. Que a rua não é um espaço “preparado” para o teatro, mas que de fato é lá que ele precisa estar, perfurando o medo, a solidão, a hierarquia e, de algum modo, criando espaços de afetos, intervalos entre a droga e a infância, entre o ônibus e o metrô, entre pressas. Sempre disposta a descortinar uma linguagem que potencialize o encontro, a Companhia do Miolo aposta, por meio de Amores no meio-fio, em ficar no meio do caminho. Inúmeros são os que atravessam a Ladeira sem se dar conta. Fazem parte desse teatro de variedade da vida, ora surpreendidos, ora permanecendo apressados. Nós também, atores e passantes das ruas, estamos lá, sem saber muitas vezes como continuar a falar de amor em meio à força da barbárie. Seguimos, confrontados. Pelas crianças, pelo barulho, pela violência, pela dor diária de abraçar esses lugares, pela impotência diante da miséria e pela potência de vida que brota entre o teatro e a cidade. p
Atos Cenopoéticos
Cenopoesia: uma fusão de linguagens ou uma linguagem em busca da arte de ser com o outro? Cenopoesia Surgiu nos anos 1980, no Rio de Janeiro. Trata-se de uma espécie de linguagem híbrida que mistura teatro e poesia, conferindo leveza e lirismo ao espetáculo, mesmo ao tratar de temas salgados do nosso cotidiano. Ray Lima foi o primeiro a usar este termo para traduzir suas intervenções poéticas em diferentes espaços, produzindo centenas de intervenções e espetáculos cenopoéticos no Brasil, México, Argentina, Venezuela, Uruguai, Chile. Linhas cruzadas é o espetáculo que consolidou a cenopoeisa. Trata-se de uma montagem produzida pelo grupo Arribação, do Rio de Janeiro, em parceria com o poeta carioca Zé Cordeiro. A cenopoesia é transcênica! Ela nasceu da necessidade que a própria arte contemporânea tem em dialogar e interagir, com inteligência e respeito, com as mais diversas formas de linguagens. Seguramente isso não é um fato novo, mas só agora percebemos com mais clareza que qualquer linguagem artística depende da interação com as demais linguagens para poder se fortalecer e se sustentar. Assim, a linguagem acaba por ser reconhecida como singular em sua forma particular de ser, sem anular seu potencial dialógico nem sua relação de autonomia e interdependência com outras linguagens. São importantes também as constantes relações com tudo aquilo que é comum ao nosso tempo, independente de sua complexidade. A relação que propomos aqui deve considerar que todos sempre ganhamos quando unidos por uma causa, por um desejo de aprendizagem, pelo repúdio à exploração de qualquer natureza. Atos Cenopoéticos: Poemia do Mundo - Foto de Augusto Paiva
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Hoje, a cenopoesia é praticada, aperfeiçoada, relida e criticada por autores e atores como Mano Melo, Zé Cordeiro, Junio Santos, Amir Haddad, entre outros nomes expressivos do teatro e da poesia nacional, além dos artistas de diversos grupos do Movimento Escambo Popular Livre de Rua. Atualmente, essa forma de expressão poética está sendo cultivada e difundida na Argentina pelo próprio Zé Cordeiro, e em mais 34 países, por intermédio da Agencia de Noticias Culturales Libros y Letras, do escritor e jornalista colombiano Jorge Consuegra. A Cenopoesia, como obra aberta, permite ser praticada a partir de diversos caminhos, às vezes para além das traçadas e conhecidas possibilidades cênicas do teatro e das artes circenses formais. Dentre suas várias possibilidades transcênicas, podemos citar o espetáculo cenopoético Lâminas, do grupo Pintou Melodia na Poesia (CE), desenhado com base em um roteiro; a intervenção cenopoética, que procura dialogar Atos Cenopoéticos: Poemia do Mundo - Foto de Augusto Paiva
referenciada pela razão cenopoética, por meio de seminários, reuniões, rituais, congressos, protestos, simpósios acadêmicos, etc; e o desafio de repente, linguagem-espetáculo de improviso embasada no repertório criativo e cumulativo de um grupo ou de um cenopoeta, capaz de se inserir e interagir com quaisquer contextos, otimizando e potencializando os recursos cênicos, artísticos, culturais e intelectuais disponíveis no momento em que o espetáculo se realiza. A Poemia do mundo, assim como o espetáculo Pintou melodia na poesia, é um exercício fabuloso de linguagem cenopoética na modalidade desafio de repente. Uma “caravana” com cinco poetas-atores-músicos-cidadãos, ou simplesmente cenopoetas, pode aportar em sua residência, comunidade ou cidade e ocupar os espaços livres de rua ou os fechados, contendo na bagagem Atos poéticos – da poemia do mundo, em diversos estilos, formas, desempenhos e interpretações. Uma caravana única, formada por Junio Santos, Ray Lima, Joelson de Souto, Robson Cavalcante e Filippo Rodrigo, artistas comprometidos com o embelezamento e a construção permanente de “ninhos de reencantamento do mundo”. A caravana caracteriza-se em espetáculo diferente: ousado,
atrevido,
enxerido. Acompanhado de boa conversa sobre a vida da arte e a arte da vida, Poemia da mundo propõe o encontro e a interação com espectadores cidadãos, poetas, artistas em geral na celebração desse ato vital. 116
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Poemia do mundo Poesia dos sentidos por Daniela Landin44
A apresentação do espetáculo na 4 edição da MOSTRA DE TEATRO DE RUA LINO ROJAS, na Zona Leste de São Paulo, se deu um dia antes do seu encerramento, em um fim de tarde na Praça do Casarão, no bairro de Vila Mara. De volta ao local, um ano depois (participei como leitora crítica de espetáculo ali apresentado em 2008), o espaço mostrava-se mais colorido e alegre na iminência de mais uma apresentação. À experiência de 2008, a primeira em levar trabalhos teatrais a localidades descentralizadas, parece ter sido importante, ao menos no sentido da criação de uma expectativa para mais um espetáculo, e não só por parte dos moradores da região – compareceram também artistas que atuam em bairros próximos, por exemplo. Já na rampa da estação de trem Vila Mara – Jardim Helena, era possível avistar a movimentação em torno do local onde a cenopoesia iria aportar. a
Diversas crianças e famílias – algumas pessoas já estavam sentadas em banquinhos levados para a praça – ocupavam aquele espaço, o que atraiu vendedores ambulantes de alimentos dispostos a matar uma possível fome daqueles que aguardavam o início dos dois espetáculos que ali se apresentariam. Antes de os Atos cenopoéticos, que aconteceram ali, o público já havia assistido ao Alice e Severino, do Bando La Trupe, apresentado naquela semana em outra Estudante do curso de Licenciatura em Arte – Teatro no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) e jornalista formada pela Faculdade Cásper Líbero.
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região descentralizada, extremidade da Zona Sul da cidade. Após a peça, então, fomos convidados a participar de Poemia do mundo. Trata-se de um trabalho singular em sua proposição de linguagem, com novas possibilidades para se pensar o teatro de rua. Mais do que uma peça teatral, o espetáculo caracteriza-se em grande sarau poético, musical e cênico inventado para ser vivenciado pelos sentidos. Uma profusão de canções e sonoridades, cores de figurinos que remetem à plasticidade das danças e manifestações populares, versos dos próprios e de tantos artistas que povoam o mundo. Tudo em estilo bastante performático, enquanto evento aberto de ocupação artística. Pela fusão de linguagens – uma música tocada e cantada, uma poesia dita por um dos artistas, uma cena de comédia popular –, os grupos que compõem o Movimento Escambo Popular Livre de Rua, coautores do trabalho com o público, realizam uma genuína ode ao artista popular, caracterizado aqui com um quê de sagrado. O Movimento Popular Escambo Livre de Rua, composto por coletivos de teatro de rua, dança, capoeira, artes visuais e poesia, existe desde 1991, representado no espetáculo pelos grupos Cervantes do Brasil (Icapuí/CE), Pintou Melodia na Poesia (Maranguape/CE), Arte Jucá (Arneiroz/CE), Bando La Trupe (Natal/RN), Companhia Arte & Riso (Umarizal/CE). Homenageado desta edição da MOSTRA, o Movimento percorre assentamentos, favelas, bairros populares, entre outras localidades do Brasil, promovendo ações artístico-educativas, trocando ideias e experiências, fomentando a mobilização social em âmbito regional. Artisticamente, uma das características do Escambo é a cenopoesia, linguagem híbrida que mistura poesia e teatro, e segundo seus criadores, teria surgido no Rio de Janeiro, nos anos 1980. 117
entoavam a cantiga, uma outra protestava ao microfone acerca da falta de apoio do poder público e discursava sobre a importância da MOSTRA, repleta de vivências sensoriais que este texto não é capaz de traduzir.
Vamos poematizar e não problematizar o mundo! por Jackeline Stefanski45
Atos Cenopoéticos: Poemia do Mundo - Foto de Augusto Paiva
Este tipo de intervenção se pretende significativamente sensorial em sua composição de sons, imagens e palavras. O público é convidado a ser participante-leitor e decodificador desses estímulos. Desprovidos de lógica linear, esses atos cenopoéticos, como são chamados pelos artistas, foram concebidos dialeticamente. Com isso, o espetáculo não é vivenciado em etapas, em momentos distintos seguidos de outros de modo a formar um caminho evolutivo. Entre canções e versos que fazem referência ao popular, um deles – Monólogo inacabado, de Zé Cordeiro –, apresenta: Morena, eu não sei se vale a pena trabalhar nesse sistema Tomar banho em Iracema E adiar o carnaval.
O público participa da ocupação cênica do espaço, cantando músicas, dançando, produzindo uma percussão espontânea com palmas e outros movimentos, compondo as cenas. Entre elas, um momento em que há uma troca de declarações de amor. Em outra, uma música é trilha sonora para uma simulação sexual entre um homem vestido de mulher – cabelo, maquiagem e seios postiços – e um dos atores. Uma grande ciranda, formada por artistas, crianças, cachorros e participantes em geral, circundando o espaço de intervenção, encerrou temporariamente o encontro, cuja vivência foi levada adiante pelos corpos, em processo ininterrupto de reelaboração que realizamos a partir de nossas experiências. Sobreposta às vozes que 118
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A tarde de domingo ensolarado na praça em frente à estação de trem Jardim Helena, na Zona Leste de São Paulo, veio acompanhada de muita gente, muito calor, carrinho de sorvete, bicicletas e um burburinho gostoso de espectador empolgado para assistir a uma apresentação ao ar livre. Todos preparados: crianças mais à frente, adultos em pé, senhores e senhoras em banquinhos improvisados, e atores e músicos organizando o espaço e afinando os instrumentos enquanto aguardávamos o início do espetáculo. Às 17h, assistimos ao espetáculo Alice e Severino, do Bando La Trupe (Natal/RN), ficando para depois das 18h a apresentação de Poemia do mundo, dos grupos Cervantes do Brasil (Icapuí/CE), Pintou Melodia na Poesia (Maranguape/CE), Arte Jucá (Arneiroz/CE), Companhia Arte & Riso (Umarizal/CE) e Bando La Trupe. Todos esses grupos pertencem ao Movimento Popular Escambo Livre de Rua, que existe desde 1991 e agrega artistas populares de Brasília, Ceará, Maranhão, Pará, Paraíba, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande Atriz e professora de teatro; atualmente, cursa Licenciatura em Artes – Teatro no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp).
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do Norte e São Paulo, com a intenção de democratizar conhecimentos e experiências da cultura popular. Este Movimento foi homenageado na 4a edição da MOSTRA DE TEATRO DE RUA LINO ROJAS. Poemia do mundo é um espetáculo de rua de intensa musicalidade, e seus atores e músicos trazem à tona temas filosóficos e questões existenciais de maneira simples e inteligível para todos os presentes. Os atores concentram-se ora na arena montada, junto aos músicos e seus instrumentos, ora caminhando entre os espectadores, apresentando poemas, falas de textos e cantos. A poesia estava, de fato, presente em cada fala, gesto, dança e canção, e o público demonstrou-se disponível o tempo todo... Talvez porque sempre ouvimos que “a música é uma linguagem universal”, que costuma unir as pessoas, apesar de tantas diferenças étnicas, econômicas. Os atores convocavam-nos a participar ativamente da apresentação. Em dado momento, uma senhora do público foi até a arena e realizou uma das cenas com os atores e, ainda, um homem entrou no espaço cênico: dançou e cantou, com notável emoção, com seu pequeno cachorro. A todo o momento, eles repetiam que devemos “poematizar e não problematizar o mundo”; creio que essa invocação à sensibilização e à poesia foi compreendida e aceita por todos os presentes. Houve comoção geral diante do chamamento ao lúdico e à contemplação das coisas simples. Ao final do curto espetáculo, todos deram-se as mãos e formaram uma grande roda, uma ciranda; cantaram e dançaram toda aquela poesia, celebrando a importância da união entre os seres humanos e chamando a atenção para a preciosidade contida no teatro de rua: grande comunhão entre artista e espectador. Espetáculo de emoções indescritíveis! p
Atos Cenopoéticos: Poemia do Mundo - Foto de Augusto Paiva
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Programação da Mostra
ABERTURA VALE DO ANHANGABAÚ – CENTRO (São Paulo/SP) 07/11/09 – sábado 13h00 – Concentração Escadaria do Teatro Municipal de São Paulo 13h30 – Cortejo artístico – Trajeto: Teatro Municipal – Praça do Patriarca Vale do Anhangabaú 14h30 – Apresentação: MOVIMENTO ESCAMBO POPULAR LIVRE DE RUA Espetáculo: Cabeça de papelão 16h00 Homenagem a Augusto Boal Local: Teatro Popular União e Olho Vivo (TUOV) Endereço: Rua Newton Prado, 766 Bom Retiro (São Paulo/SP) APRESENTAÇÕES DESCENTRALIZADAS 08/11/09 – domingo ZONA NORTE 11h00 – CIRCO NOSOTROS Espetáculo: O salto mortal Local: Centro Independente de Cultura Alternativa e Social (CICAS) Endereço: Avenida do Poeta, 740 Praça Padre João Bosco Penido Burnier Jardim Julieta (São Paulo/SP) Apoio local: Núcleo Pavanelli, CICAS e Sinfonia de Cães ZONA SUL 17h00 – BANDO LA TRUPE – Grupo do Movimento Escambo Popular Livre de Rua Espetáculo: Alice e Severino 120
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19h00 – Debate Local: Sacolão das Artes Endereço: Rua Cândido José Xavier, 577 – Parque Santo Antônio (São Paulo/SP) Apoio local: Brava Companhia APRESENTAÇÕES NO VALE DO ANHANGABAÚ – CENTRO (São Paulo/SP) 09/11/09 – segunda-feira 10h00 – GRUPO TEATRAL NATIVOS TERRA RASGADA Espetáculo: Zorobe – ouviu-se um lamento: era a história de um jumento 14h00 – GRUPO MANIFESTA DE ARTE CÔMICA Espetáculo: O manifesto 17h00 – TRIBO DE ATUADORES ÓI NÓIS AQUI TRAVEIZ Espetáculo: O amargo santo da purificação 19h30 – Debate Local: Hotel Terra Nobre Endereço: Rua Barão de Campinas, 146 Centro (São Paulo/SP) 10/11/09 – terça-feira 10h00 – COMPANHIA RASO DA CATARINA Espetáculo: O circo chegou! Sarau do Charles 14h00 – GRUPO POMBAS URBANAS Espetáculo: Histórias para serem contadas 17h00 – COMO LÁ EM CASA Espetáculo: Bumba-meu-Boi
19h30 – Debate Local: Hotel Terra Nobre Endereço: Rua Barão de Campinas, 146 Centro (São Paulo/SP) 11/11/2009 – quarta-feira 10h00 – GRUPO NAMAKACA Espetáculo: É nóis na xita 14h00 – TRUPE ARTEMANHA Espetáculo: Brasil, quem foi que te pariu? 17h00 – GRUPO TEATRAL MANJERICÃO Espetáculo: O dilema do paciente 19h30 – Debate Local: Hotel Terra Nobre Endereço: Rua Barão de Campinas, 146 Centro (São Paulo/SP) 12/11/2009 – quinta-feira 10h00 – COMPANHIA AS MARIAS Espetáculo: A moça que casou com o Diabo 14h00 – GRUPO FORTE CASA TEATRO Espetáculo: Arapucaia 17h00 – BURACO D`ORÁCULO Espetáculo: Ser TÃO ser – narrativas da outra margem 19h30 – Debate Local: Hotel Terra Nobre Endereço: Rua Barão de Campinas, 146 Centro (São Paulo/SP) 13/11/2009 – sexta-feira 10h00 – TRUPE OLHO DA RUA Espetáculo: Alto dos Palhaços 14h00 – COMPANHIA DOS INVENTIVOS Espetáculo: Canteiro 17h00 – COMPANHIA DO MIOLO Espetáculo: Amores no meio-fio 19h30 – Debate Local: Hotel Terra Nobre Endereço: Rua Barão de Campinas, 146 Centro (São Paulo/SP)
APRESENTAÇÃO DESCENTRALIZADA 14/11/2009 – sábado ZONA LESTE 17h00 – POEMIA DO MUNDO – Grupos do Movimento Escambo Popular Livre de Rua: Cervantes do Brasil (Icapuí/CE), Pintou Melodia na Poesia (Maranguape/CE), Arte Jucá (Arneiroz/CE), Bando La Trupe (Natal/ RN), Companhia Arte & Riso (Umarizal/CE) Espetáculo: Atos cenopoéticos Local: Praça do Casarão – Estação CPTM (Vila Mara – Jardim Helena) Endereço: Rua São Gonçalo do Rio das Pedras, s/n – Vila Mara (São Paulo/SP) Debate Após apresentação Local: Praça do Casarão – Estação CPTM (Vila Mara – Jardim Helena) Endereço: Rua São Gonçalo do Rio das Pedras, s/n – Vila Mara (São Paulo/SP) Apoio local: Buraco d`Oráculo ENCERRAMENTO 15/11/2009 – domingo Local: Centro Cultural Arte em Construção Endereço: Avenida dos Metalúrgicos, 2100 Cidade Tiradentes (São Paulo/SP) 15h00 – Núcleo Teatral Filhos da Dita Espetáculo: Os Tronconenses 17h00 – Cortejo artístico: Marakatu Porto de Luanda, Cordão Folclórico de Itaquera Sucatas Ambulantes, Marakatu Pombas Urbanas, grupos e artistas convidados 18h00 – Homenagem ao Movimento Escambo Popular Livre de Rua Apoio local: Instituto Pombas Urbanas Equipe de produção da 4ª MOSTRA DE TEATRO DE RUA LINO ROJAS: Aurea Karpor, Danilo Cavalcante, Noemia Scaravelli. Natalia Siufi, Rogério Munhoz, Romison Paulo e Selma Pavanelli. Coordenação Geral: Selma Pavanelli Idealização: Movimento de Teatro de Rua de São Paulo – MTR/SP.
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Grupos do Movimento Escambo Popular Livre de Rua e espetáculos Cabeça de Papelão e do Movimento escambo – Texto do escritor João do Rio, atualizado por Junio Santos. O texto propõe reflexões ideológicas, políticas, éticas e estéticas, com críticas severas à pedagogia da corrupção e da dependência, praticada pela classe política sob os auspícios da justiça e do sistema eleitoral brasileiro. Ao mesmo tempo, chama a atenção sobre a dualidade de comportamento do cidadão, quando este aceita passivamente tais modelos de democracia e de sociedade, com regras definidas e manipuladas pelas elites no decorrer da nossa história. FICHA TÉCNICA Autoria: Livre adaptação de Junio Santos a partir do conto Homem de cabeça de papelão, de João do Rio Facilitação cênica e músicas: Junio Santos Direção de arte/figurino/adereços: Cleydson Catarina Direção musical: Filippo Rodrigo Assessor de dramaturgia: Ray Lima Orientação pedagógica: Maria Josevânia Dantas Grafite: Loro do Grafiticidade Produção executiva: Mac Thiago Coordenação geral: Junio Santos e Cervantes do Brasil Elenco: Gilvan Souza, Mac Thiago, Micinete Mulhe, Henrique Lima, Francisco José, Magno Roberto, Edvania Ayres, Jonas de Jesus, Robson Cavalcante, Jocler Carvalho, Djaci José, Daniel Alves, Savia Augusta e Ricardo Furão Grupos: Cervantes do Brasil (Icapuí/CE); Pintou Melodia na Poesia (Maranguape/CE); Arte Jucá (Arneiroz/CE); Bando La Trupe (Natal/RN) e Companhia Arte & Riso (Umarizal/RN) Músicos: Junio Santos, Cleydson Catarina, Filippo Rodrigo, Loro, Joelson de Souto e Leandson Sampaio Equipe técnica: João Paulo, Ratinho, Dalvânio Silva e Ray Lima Duração do espetáculo: 50 minutos Emails: juniosantosteatro@hotmail.com; joaopaulo.roque@gmail.com; macthiago@gmail.com
ATOS CENOPOÉTICOS – Uma caravana única com seis poetas-atores-músicos-cidadãos ou, simplesmente, cenopoetas, que pode aportar em sua comunidade ou cidade e ocupar os espaços livres de rua ou os fechados, levando na bagagem ATOS CENOPOÉTICOS – DA POEMIA DO MUNDO, em diversos estilos, formas, performances e interpretações. Um espetáculo diferente, ousado, atrevido e enxerido. FICHA TÉCNICA Autoria: Poesias e músicas dos grupos e demais poetas do mundo Elenco: Junio Santos, Ray Lima, Joelson de Souto, Robson Cavalcante, Filippo Rodrigo e Johnson Soares Grupos: Cervantes do Brasil (Icapuí/CE); Pintou Melodia na Poesia (Maranguape/CE); Arte Jucá (Arneiroz/CE); Bando La Trupe (Natal/RN) e Companhia Arte & Riso (Umarizal/CE) Duração do espetáculo: 60 minutos Emails: filipporodrigo@hotmail.com; juniosantosteatro@hotmail.com; joelsonguitarra@hotmail.com; limafeliz@gmail.com
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ALICE E SEVERINO – Construção lírica e poética sobre o amor na velhice e reflexões acerca da realidade cáustica da seca, com as possibilidades e impossibilidades do amor. FICHA TÉCNICA Autoria: Ray Lima Grupo: Bando La Trupe – Natal/RN Adaptação e facilitação cênica: Filippo Rodrigo Músicas: Filippo Rodrigo e o Bando La Trupe Cenários: Temir Fogo Figurinos e maquiagem: Maurício Gomes, Cleidson Catarina e Bando La Trupe Elenco: Patrícia Caetano (Alice) e Emanuel Coringa (Severino) Ecos do mundo: Tatiane Tenório Músicos: Filippo Rodrigo, Temir Fogo e Joelson Souto Produção: Rose Lotte Duração do espetáculo: 40 minutos Emails: filipporodrigo@hotmail.com; bandolatrupe@hotmail.com; patycae@hotmail.com Site: www.bandolatrupe.blogspot.com
Grupos de São Paulo CIRCO NOSOTROS (São Paulo/SP) O SALTO MORTAL – É um espetáculo cômico, interpretado por uma divertidíssima dupla de palha-
ços; adaptado de tradicionalíssimos esquetes circenses, de uma maneira moderna, inteligente e simples, para qualquer lugar onde caiba muito amor. Tudo pontuado com um irresistível som produzido ao vivo. FICHA TÉCNICA Elenco: Marcelo Milan e Sandra Saraiva Músicos: Daniel Camilo e Otávio Ortega Figurinos: Inaldina Deolindo e Sandra Saraiva Direção: Marcelo Milan Produção: Sandra Saraiva Duração do espetáculo: 55 minutos Email: contato@circonosotros.com.br Site: http://circo.nosotros.vilabol.uol.com.br
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GRUPO TEATRAL NATIVOS TERRA RASGADA (Sorocaba/SP) ZOROBE: OUVIU-SE UM LAMENTO – ERA A HISTÓRIA DE UM JUMENTO – O espetáculo narra
o duro trajeto percorrido pelos tropeiros sob o ponto de vista de dois jumentos. Nele, expõe-se o sonho de Zorobe que, atraído pela ideia de encontrar o pai, foi parar em um lugar maravilhoso, não sem antes passar por diversas aventuras e perigos. FICHA TÉCNICA Autoria: Daiana Coelho e Ramon Ayres Direção geral: Ramon Ayres e Tom Ravazoli Direção e execução musical: Tom Ravazoli Cenário: Stefany Cristiny Figurinos: Adriana Sgrignoli Adereços e confecção de bonecos: Flavio Melo Maquiagem: Flavio Melo Produção: Jéssica Pedrosa Elenco: João Pereira Mendes Junior, Juliana Prestes, Rodrigo Rosa Zanetti, Stefany Cristiny Moreira Mello e Wellington Willian Ravazoli Duração do espetáculo: 50 minutos Email: nativos@nativosterrarasgada.com.br Site: www.nativosterrarasgada.com.br
GRUPO MANIFESTA DE ARTE CÔMICA (São Paulo/SP) O MANIFESTO – Era uma vez um Homem Amargurado... um médico obstinado por doenças e por
dinheiro. Um dia, ele se flagra solitário e angustiado num “beco sem saída” e pede a Deus que tire sua vida do caos em que se encontra... O Criador, então, envia-lhe um desajeitado Palhaço com a missão de fazê-lo olhar para a própria vida pela ótica do prazer e da alegria... FICHA TÉCNICA Roteiro e direção: Grupo Manifesta de Arte Cômica Elenco: Sérgio Khair e Carlos Biaggioli Fuscalhaço: Sérgio Khair Duração do espetáculo: 55 minutos Email: paulaisnard@uol.com.br
COMPANHIA RASO DA CATARINA (São Paulo/SP) O CIRCO CHEGOU! – Sarau do Charles – Inspirado no tradicional Sarau do Charles, realizado
desde 1996, o espetáculo reúne diferentes modalidades artísticas, apresentando um pequeno panorama da cultura brasileira mesclada ao bom humor e às artes circenses.
FICHA TÉCNICA Direção e concepção: Alessandro Azevedo Direção musical: Victor Batista Elenco: Alessandro Azevedo (Palhaço Charles), Renato Paio (Palhaço Tchutchuco), Jefferson Cardoso (Mágico), Bruno Edson (Malabarista), Gabriela Hess (Dançarina) e Anderson de Jesus e João Batista (Acrobatas da FARC) Músicos: Victor Batista (Viola), Pedro Mattana (Sanfona) e Ômulo Albuquerque (Percussão) Produção executiva: Tetê Balestreri Operador de som: Ana Catarina Romitelli Hold: Polyan Pereira da Costa Duração do espetáculo: 60 minutos Email: contato@rasodacatarina.com.br Site: www.rasodacatarina.com.br
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GRUPO POMBAS URBANAS (São Paulo/SP) HISTÓRIAS PARA SEREM CONTADAS – Tocando e cantando, um grupo de atores vai de cidade em
cidade, de praça em praça, representando o jogo da vida. Numa linguagem vibrante, eles contam histórias incríveis de pessoas comuns, como do homem que virou cachorro, e do camelô que ganhava a vida no grito e morria de dor de dente. Mesmo que essas histórias pareçam distantes de nós ou pura invenção, cuidado! Toda prontidão é pouca! Porque, se ainda não aconteceu com você, um dia pode acontecer! FICHA TÉCNICA Autoria: Osvaldo Dragún Direção: Hugo Villavicenzio Assistente de direção: Paulo Carvalho Júnior Direção musical: Marcelo Ribeiro Cenógrafo e figurinista: Márcio Tadeu Sonoplasta: Ellen Regina de Almeida Rio Branco Contrarregra: Paulo Maia Produção executiva: Cláudio Pavão Elenco: Adriano Mauriz, Juliana Flory, Marcelo Palmares, Marcos Khaju, Natali Santos, Paulo Carvalho Júnior e Ricardo Big Duração do espetáculo: 70 minutos EmailI: contato@pombasurbanas.org.br Site: www.pombasurbanas.org.br
COMO LÁ EM CASA (São Paulo/SP) BUMBA-MEU-BOI – Alegremente inspirado no folguedo da cultura popular, conta a história do
vaqueiro Mateus e de sua mulher Catarina que, grávida, deseja comer o coração do Boi Estrela, o boi de estimação do coronel Juvêncio. Arrependida, mobiliza a todos para fazer o boi reviver.
FICHA TÉCNICA Pesquisa, roteiro, direção e direção de arte, figurinos, criação e confecção de bonecos: Ana Paixão Elenco: Alana Estephan, Ana Paixão, Chico Américo Dourado, Fernando Matraga, Letícia Cruz, Luciana Rizzi, Noemia Scaravelli, Nyvi Estephan e Rogério Munhoz. Duração do espetáculo: 45 minutos Email: noemiasc@uol.com.br
GRUPO NAMAKACA (São Paulo/SP) É NÓIS NA XITA – Espetáculo infanto-juvenil que recorre intensivamente ao humor; descontraído,
dinâmico e cheio de variedades e atrações, mostra o convívio entre três personagens: os palhaços Cara de Pau, Montanha e Cafi, que disputam os aplausos do público, aceitando os próprios equívocos como fonte de inspiração e de improvisação. FICHA TÉCNICA Direção: Alexandre Roit Atuação, percussão, cavaquinho e vocal: André “Montanha” Carvalho, Cafi Otta e César “Cara de Pau” Lopes Cenário e figurino: Grupo Namakaca Produção: Carrapeta Produções Duração do espetáculo: 45 minutos Emails: carapetaproduções@hotmail.com; cafiotta@yahoo.com.br Site: www.namakaca.com.br
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TRUPE ARTEMANHA DE INVESTIGAÇÃO URBANA (São Paulo/SP) BRASIL, QUEM FOI QUE TE PARIU? – A partir da visão bem-humorada de dois escravos-tigres, embarca-se em uma viagem musical pela história de um Brasil que nunca se viu. De forma alegórica, o espetáculo celebra o encontro entre o índio, o branco e o negro.
FICHA TÉCNICA Autoria: Criação coletiva Elenco: Alexandre Mattos, Danielle Salibian, Éder Lopes, Eduardo Paiva, Eliete dos Santos, Lilyan Teles e Luciano Santiago Direção: Luciano Santiago Produção: Trupe Artemanha de Investigação Urbana Direção musical: Fábio Pinheiro Figurinos e adereços: Éder Lopes Coreografia: Danielle Salibian Cenografia: O Grupo Cenotécnicos: Alexandre Mattos e Eraldo Moura Maquiagem: O Grupo Composição musical (letras e arranjos): Fábio Pinheiro e Grupo Preparação circense: Gil Caetano e Rodrigo Racy Preparação musical: (percussão) Márcio Monjolo Preparação de dança afro: Kelly Anjos Clown: Plínio Augusto Commedia dell`Arte: Marcelo Colavitto Apoio técnico: Eraldo Moura Duração do espetáculo: 80 minutos Email: trupeartemanha@trupeartemanha.com.br Site: http://trupeartemanha.blogspot.com/2009/05/trupe-artemanha-de-investigacao-urbana.html
COMPANHIA AS MARIAS (São Bernardo do Campo/SP) A MOÇA QUE CASOU COM O DIABO – A peça conta a história de uma jovem que está doida pra
casar. Num ato desesperado, diz que se casa nem que seja com o Diabo. Diante disso, o Próprio aparece e realiza o desejo da moça. FICHA TÉCNICA Dramaturgia e direção: Cibele Mateus Preparação corporal: Cristiane Santos Cenografia e figurinos: Patrícia Janaina Músicas: Cibele Mateus (As Marias Chegou) e Anderson Gomes (Tema do Inferno) Produção e administração: Companhia As Marias Elenco: Anderson Gomes (Cantador e músico), Cibele Mateus (Brincante) e Cristiane Santos (Lera Maria), Patrícia Janaina (Brincante e Diabrete), Mariana Vilela (Brincante e Dona Maroca) Duração do espetáculo: 50 minutos Email: cia.asmarias@gmail.com Site: http://ciaasmarias.blogspot.com
GRUPO FORTE CASA TEATRO (São Paulo/SP) ARAPUCAIA – Narra a história de três criminosos: Lucrécia Gavetão e seus dois filhos, Sem Eira
e Nem Beira, que, perdidos no meio do nada, fugindo da polícia e sem ter para onde ir, resolvem fundar uma cidade, a cidade dos prazeres Arapucaia. FICHA TÉCNICA Direção: Magê Blanques Direção musical: Luciano Carvalho Elenco: Erika Coracini, Rebeca Braia, Wilson Mandri, Luíza Maia, Gabriel Villas Boas, Felipe Ormeni, Bruna Amado, André Telles, Adriana Mioni, Magê Blanques e Luciano Carvalho. Figurinos: Magê Blanques Criação e confecção de máscaras: Ivanildo Piccoli Duração do espetáculo: 70 minutos Email: fortecasateatro@yahoo.com.br Site: www.fortecasateatro.blogspot.com 126
Revista do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (MTR-SP)
BURACO D’ORÁCULO (São Paulo/SP) Ser TÃO ser – Narrativas da Outra Margem – É um espetáculo construído a partir das histórias de
vida dos moradores da região do extremo Leste de São Paulo. O grupo leva à rua o relato sobre o homem desterritorializado, jogado à margem de uma grande cidade. FICHA TÉCNICA Direção: Adailton Alves Autoria: criação coletiva do grupo e colaboração de Armando Liguori Elenco: Adailton Alves, Edson Paulo Souza, Johnny John, Lu Coelho e Selma Pavanelli. Figurinos: Marta Rosa Adereços: O Grupo Apoio técnico: Romison Paulo Preparação corporal: Paulo de Moraes Preparação musical: Celso Nascimento Preparação vocal: Melissa Maranhão Duração do espetáculo: 50 minutos Email: buracodoraculo@yahoo.com.br Site: www.buracodoraculo.com.br
TRUPE OLHO DA RUA (SANTOS/SP) ALTO DOS PALHAÇOS – É um auto de natal irreverente, com personagens fantásticos do universo
natalino, músicas natalinas em diversos ritmos executadas ao vivo, uma boa dose de bom humor e crítica. O espetáculo é realizado ao ar livre, propondo um espaço de comunhão nas praças públicas. Um olhar crítico e divertido sobre o Natal. FICHA TÉCNICA Concepção geral: Miguel Hernandez Direção: Coletiva Atores: Alan Plocki, Caio Martinez, João Paulo Pires, Raquel Rollo, Sergio Argento e Anna Paula Alonso Direção musical: Coletiva Cenários, figurinos e sonoplastia: Trupe Olho da Rua Produção: Caio Martinez e Raquel Rollo Equipe técnica: Anna Fecker Iluminação: Deus Duração do espetáculo: 45 minutos Email: trupeolhodarua@gmail.com Site: http://trupeolhodarua.blogspot.com
COMPANHIA DOS INVENTIVOS (São Paulo/SP) CANTEIROS – Durante o horário de almoço, em um canteiro de obras, trabalhadores estabelecem
um jogo teatral para falar sobre a possibilidade de se escolher o que se come. Por meio das histórias servidas ao público, criadas a partir de uma livre leitura da obra Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, o grupo presta uma homenagem aos brasileiros que constroem diariamente este País. FICHA TÉCNICA Direção geral: Edgar Castro Assistência de direção: Daniela Rosa Artistas-criadores: Aysha Nascimento, Flávio Rodrigues, Marcos di Ferreira, Maria Teixeira e Rômulo Albuquerque Dramaturgia: O Grupo Dramaturgista: Daniela Rosa Direção musical: Cristiano Gouveia e Rômulo Albuquerque Direção corporal: Kelliy Anjos e Verônica Nóbili Treinamento dança-afro e coreografias: Kelliy Anjos Treinamento jongo: Tom Conceição Cenografia e figurinos: Marcio Rodrigues e Rafaela Carneiro Produção: Aysha Nascimento, Flávio Rodrigues e Marcos di Ferreira Duração do espetáculo: 60 minutos Email: ciadosinventivos@hotmail.com Site: http://ciadosinventivos.blogspot.com 127
COMPANHIA DO MIOLO (São Paulo/SP) AMORES NO MEIO-FIO – Um bloco de carnaval cria sua alegoria: uma catadora de papel perambula
pelas ruas recolhendo tudo para trocar pelo seu sustento, e guardando as cartas de amor que encontra. A cada entardecer, ela lê uma carta diferente, cartas que falam de desencontros, de surpresas, como se nelas quisesse descobrir o segredo do percurso do seu próprio amor.
FICHA TÉCNICA Direção musical e direção geral: Gustavo Kurlat Dramaturgia: Companhia do Miolo, inspirada livremente em contos do livro Amores difíceis, de Italo Calvino e no conto Gente decente, de Henrique Medina. Preparação vocal: Joana Mariz Sonorização: Luciano Monson Técnico de áudio: Igor Monteiro Figurinos: Grasiele Sousa Elenco: Alexandre Krug, Edi Cardoso, Lívia Lisbôa, Maíra Leme e Renata Lemes Músicos: Daniel Oliveira (clarineta), Gabriel Longhitano (violão e voz) Duração do espetáculo: 50 minutos Email: ciadomiolo@terra.com.br Site: http://ciadomiolo.wordpress.com
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Revista do Movimento de Teatro de Rua de São Paulo (MTR-SP)
Grupos convidados TRIBO DE ATUADORES ÓI NÓIS AQUI TRAVEIZ (Porto Alegre/RS) O AMARGO SANTO DA PURIFICAÇÃO – Para seu novo trabalho de pesquisa de teatro de rua, a
Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz escolheu a história do revolucionário brasileiro Carlos Marighella, que viveu e morreu durante períodos críticos da história contemporânea do nosso País, sendo protagonista na luta contra as ditaduras do Estado Novo e do Regime Militar. O espetáculo é uma visão alegórica e barroca da vida, paixão e morte desse revolucionário. FICHA TÉCNICA Encenação coletiva: Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz Dramaturgia: criada coletivamente a partir dos Poemas de Carlos Marighella Roteiro, sonoplastia, figurinos, máscaras, adereços e elementos cenográficos: Criação coletiva Músicas: Johann Alex de Souza Atuadores: Paulo Flores, Tânia Farias, Pedro Kinast De Camillis, Clélio Cardoso, Luana Fernandes, Marta Haas, Edgar Alves, Roberto Corbo, Sandra Steil, Paula Carvalho, Judit Herrera, Eugênio Barboza, Roberta Fernandes, Lucio Hallal, Paula Lages, Déia Alencar, Danielle Rosa, Alex Pantera, Karina Sieben, Jorge Gil, Luciana Tondo, Carlo Bregolini, Renan Leandro, Alessandro Müller e Jeferson Cabral Locução do AI-5 e da descrição do clima da cena da morte: Nilson Asp Voz das lições de tortura: Giovana Carvalho Criação da cabeça de Getúlio Vargas: Alessandro Müller Criação e execução dos triciclos: Carlos Ergo (Ergocentro) Criação e execução do estandarte “Depor Podre Poder” e colares Iansã: Margarida Rache Confecção figurinos: Heloísa Consul Execução de crochê das cabeças Marighella: Maria das Dores Pedroso Preparação dos atores: Ed Lannes (Capoeira – Grupo Zimba); Nelsinho (Berimbau – Grupo Zimba); Zé do Trumpete (Saxofone); Taila dos Santos Souza (Dança Afro – Odomodê) Duração do espetáculo: 90 minutos Email: martitahaas@gmail.com Site: www.oinoisaquitraveiz.com.br
GRUPO TEATRAL MANJERICÃO (Porto Alegre/RS) O DILEMA DO PACIENTE – Uma trupe de artistas de circo vai exibir seus números circenses
na praça. Quando chega a vez dos palhaços acrobatas, descobre-se que um deles está cheio de manchas azuis pelo corpo. Ele vai se consultar com doutores, que não conseguem dar o diagnóstico. Diante de tanta falcatrua, “o doente” retorna para o circo. FICHA TÉCNICA Dramaturgista: Márcio Silveira dos Santos (inspirado em obra cinematográfica e dramatúrgica, respectivamente, de Groucho Marx e de Federico Fellini) Atores: Anelise Camargo, Márcio Silveira e Samir Jaime Figurinos, adereços e maquiagem: Anelise Camargo Música e sonoplastia: O Grupo Direção: Márcio Silveira dos Santos Duração do espetáculo: 40 minutos Email: grupomanjericao@hotmail.com Site: www.grupoteatralmanjericao.blogspot.com
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s e r o d e z a f se e r o d a s n e p das , s e ó t n n e e n u a q m o r ment a pe o c m o r o t d a r i t a r o na r d a n p a r s “A pa o t n s i o g m e i eun ém os r r b m , m a s a t e t s t o e r , m a s o i s c a da tas, ultur u l c s s a a i d , c n a m i ê t i s v i r s v c a s s , e a E s . a l s n no pági ultura c a m a u c i em s t i í l a s o a m p c i a i a t í r d r ó o c t s s s s i h ssa oce o r n p r o a o r d o n b a a l h acompan s a receber e a e a para todos.” aprendemo cultura digna e just prol de uma
MTR/SP: Brava Companhia, Cia. As Marias, Cia. do Miolo, Cia. dos Inventivos, Circo Teatro Rosa dos Ventos, Buraco d`Oráculo, Cia. Fola Fulia, Cia. Raso da Catarina, Como Lá em Casa, Grupo Teatral Parlendas, Mamulengo da Folia, Núcleo Pavanelli, Pombas Urbanas, Teatro Popular União e Olho Vivo, Trupe Artemanha e Trupe Olho da Rua.
Arte e Resistência na Rua
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Realização
Copatrocínio
Apoio
Apoio institucional
COORDENADORIA DA COORDENADORIA DA
JUVENTUDE JUVENTUDE
Projeto realizado com o apoio do Governo do Estado de São Paulo, Secretaria da Cultura
Companhia de Engenharia de Tráfego
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