Caderno de Trabalho I - Buraco d'Oráculo

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O H L A B A R T E D CADERNO

o c a r u B o l u c á r d’O


Buraco d’Oráculo se o coração ainda indaga e se indigna a cabeça não empoça não mofa nem estagna se o olho ao alvo mira e clara reluz a sina cumpre-se à mão cega destino que se designa Akira Yamasaki – 30/12/2009

Foto de Sueli Kimura :: Apresentação Ser Tão Ser / Re-Praça / Jd. Das Oliveiras / agosto 2011


CADERNO DE TRABALHO Buraco d’Oráculo

2011


Organização Adailtom Alves Teixeira Colaboração Alexandre Mate, Áurea Karpor, Celso Nascimento , Iná Camargo Costa, José Manuel Lazaro e Ivanildo Lima. Editor de arte e diagramação Mauricio F. Santana Foto capa Romisom Paulo Buraco d`Oráculo Adailton Alves, Edson Paulo Souza, Johnny John, Lu Coelho, Romison Paulo e Selma Pavanelli

Caderno de Trabalho - Narrativas de Trabalho / organização Adailtom Alves Teixeira; Ilustrações Mauricio F. Santana, São Paulo : Grafnorte, 2011. 64 p.: Il. ISBN 978 - 85 - 61343 - 05 -1 1.Teatro. 2. Teatro de Rua. 3. Trabalho I Alves, Adailtom. II Santana, Mauricio, III Título CDD – 792.028

Esta publicação foi produzida com recursos públicos do programa de Fomento ao Teatro Para a Cidade de São Paulo, Lei 13.279/02. E faz parte do projeto “Narrativas de Trabalho” desenvolvido pelo Buraco d`Oráculo no período de julho/2010 à novembro /2011.


Sumário Agradecimentos

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Apresentação

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Narrativas de Trabalho: continuidade de um processo

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TEATRO: DO TEMA À PRÁTICA

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Dramáticas re-significadas, agires comunicados

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O gesto, o gestual, o gestualizável...

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POLISSEMIA

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Uma narrativa sobre nosso trabalho

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Em busca de um corpo acreditável

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Que teatro buscamos?

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No contra tempo do capital

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Muito mais que narrativas

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Narrativas de trabalho

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Amar se aprende amando, viver se aprende vivendo e atuar se aprende atuando

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CRIAÇÕES

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Agradecimentos

Foto de Sueli Kimural :: Apresentação Ser TÃO Ser / Jd. Das Oliveiras / Agosto 2011

Na realização de um projeto são muitos os apoios recebidos, nomear tantas pessoas, grupos, entidades é sempre um risco, pois podemos esquecer alguém. Mesmo correndo o risco de cometermos alguma falha queremos agradecer Adelina Maria Martins, Akira Yamasaki, Alexandre Mate, Áurea Karpor, Celso Nascimento, Cida Almeida, Ednaldo Freire, Elizete Gomes, Elizete Joventino, Emerson Paulo, Fernando Mastrocolla, Hamilton Leite, Helio Froes, Idevanir Arcanjo, Iná Camargo Costa, Ivanildo, J.E Tico, Jô Freitas, José Manuel Ortecho, Juliana Prado e Alicio Amaral, Juliano Espinho, Junio Santos, Luis Carlos Checchia, Luiz Carlos Moreira, Marcio Silveira, Mauricio F. Santana, Melissa Maranhão, Ray Lima, Silvana Salgado, Solita Pavaneli e Sueli Kimura, Marisabel Lessa e Maria do Rosário Ramalho.

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Aos grupos, Brava Companhia, Cia. As Marias, Cia. Do Miolo, Cia. Dos Inventivos, Cia. Forrobodó de Teatro Popular, Circo de Trapo, Circo Teatro Rosa dos Ventos, Circo VE, Fraternal Cia. de Artes e Malas-Artes, Grupo Luz de Luna, Grupo Motototi, Mamulengo da Folia, Movimento Escambo popular Livre de Rua, Núcleo Cênico Projeto BaZar, Nucleo Pavanelli de Teatro de Rua e Circo, Pombas Urbanas, TIA, Trupe Arruacirco, Trupe Irmãos Atada, Trupe Lona Preta, Trupe Olho da Rua e Trupe Sinhá Zózima.

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Nosso muito obrigado também a todos os moradores da região de São Miguel Paulista e Itaim Paulista que acompanharam a nossa programação.

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In memorian ao poeta, músico e compositor Raberuan, que nos deu o nome “Re-Praça”


Apresentação O Caderno Narrativas de Trabalho, fruto do projeto de mesmo nome, realizado pelo Buraco d`Oráculo com recursos do Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, está dividido em três seções: Teatro: do tema à prática; polissemia e; criações. A primeira seção apresenta diversos textos de pensadores e professores com objetivo de tornar mais claro o universo pesquisado. Dentre os autores estão Iná Camargo Costa, que aborda a arte no capitalismo; Alexandre Mate que apresenta o conceito brechtiano de gestus; e José Manuel Ortecho Ramirez que apresenta as transformações dramatúrgicas de Aristóteles à contemporaneidade. A segunda seção apresenta textos dos envolvidos diretamente ao longo do processo, são os atores e atrizes do Grupo, professores, convidados e lideranças comunitárias que receberam parte do projeto em suas comunidades. O objetivo é apresentar diversos pontos de vistas sobre o projeto, de maneira a tornar claro sua abrangência. A terceira e última seção é dedicada à apresentação de uma pequena parte do processo criativo do projeto, no qual vem à luz músicas, pequenas cenas e roteiros de intervenção. É evidente que um caderno jamais dará conta da dimensão de um projeto de um ano e meio de duração e que contou com aperfeiçoamento técnico, debates, criações cênicas, circuito teatral e uma mostra teatral; e nem dará conta das transformações dos envolvidos nesse processo, seja enquanto indivíduos ou como grupo. Entretanto, por meio do material aqui apresentado, é possível ter uma vaga ideia do impacto de um projeto como o Narrativas de Trabalho para aqueles que o realizaram e também para aqueles que o receberam por meio da programação e dos materiais produzidos, beneficiando os cidadãos e a cidade de São Paulo. Fica claro também, que um projeto desse porte, só é possível graças a um programa público como o Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo. Adailtom Alves Teixeira

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Narrativas de Trabalho: continuidade de um processo O Buraco d`Oráculo finalizou o projeto Narrativas de Trabalho, uma continuidade de um processo que vem sendo realizado desde 2002, na região de São Miguel Paulista, zona leste da cidade de São Paulo. Explicando em linhas gerais. Em 2002 o Grupo, que desde sua formação em 1998, atuava muito na região do Brás, encaminhou-se ao bairro de São Miguel, onde estreou o espetáculo O Cuscuz Fedegoso, com o qual realizou diversas temporadas na Praça do Forró, que oficialmente recebe o nome Praça Padre Aleixo Monteiro Mafra (atualmente são proibidos eventos nesse local, a não ser aqueles realizados pela igreja). Ainda naquele ano, foi realizado também a I Mostra de Teatro de São Miguel.

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Depois, em 2003, o Grupo desenvolveu uma circulação pela mesma região, chamada de Buraco nas Praças, em que foram apresentados os espetáculos do repertório no calçadão da Rua Serra Dourada e outras praças de São Miguel. A cada local visitado o Grupo recebia solicitações para visitar outras comunidades e outras praças. Pedido que, por contingências da vida, só foi atendido depois. Em 2004, juntamente com outros grupos de música e dança, numa parceria com a Casa de Cultura de São Miguel, o Grupo participou do projeto Ateliê, direcionado aos jovens, tendo como resultado a encenação da história de São Miguel na Praça do Forró.

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Em 2005, com recursos do VAI – primeiro prêmio público ganho pelo Grupo – foram visitados seis conjuntos habitacionais, onde foram apresentados espetáculos e onde se ministrou uma vivência de teatro de rua para os jovens. Essa foi a maneira encontrada para se atender aos pedidos anteriores. O que encontramos? Muitos jovens querendo vivenciar o teatro e centenas e centenas de pessoas que nunca haviam presenciado um espetáculo teatral. Nesse projeto foi constatado um sério problema: os estrangeiros em sua própria cidade. Pessoas que desconhecem a cidade onde moram, restringindo suas vidas ao seu bairro ou ao bairro vizinho. Outro ponto importante: diversas histórias eram contadas aos integrantes do Grupo: histórias das pessoas e dos lugares.

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No ano seguinte, 2006, contemplado pela primeira vez com o Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, com o projeto Circular Cohab`s, que teve a duração de um ano e meio, o Grupo passou por dezoito comunidades apresentando o seu repertório teatral, além de espetáculos de grupos convidados; também foram ministradas oficinas com maior duração (seis meses), das quais saíram três grupos – Nascidos do Buraco, Teatristas Periféricos e Trupe Arruacirco –, o último continua em atividade. Ainda nesse projeto deu-se continuidade ao Café Teatral e iniciou-se a publicação de A Gargalhada, que em 2011 chegou a 24ª edição. Com o Circular Cohab`s atingiu-se um público de mais de trinta mil pessoas.


Foto de Edson Paulo :: Apresentação Aqui Não Senhor Patrão / Núcleo Pavanelli / Re-Praça / junho 2011

Nessas comunidades os integrantes do Buraco d`Oráculo continuaram a ouvir histórias das pessoas: de onde vieram, quando chegaram, o que faziam etc.; e dos lugares: como eram, como foi sua transformação etc. O que levou os atores a seguinte questão: invés de trazer espetáculos, por que não criar espetáculos a partir das histórias deles e para eles? Levar para a cena aqueles que apenas assistiam aos espetáculos mudou a forma de nos relacionarmos com essas comunidades, bem como o nosso próprio trabalho. Em 2008, contemplados pela segunda vez com o Fomento, o Grupo focou o trabalho em seis comunidades de São Miguel Paulista e Cidade Tiradentes, nas quais, por meio do Café Teatral, se passou a registrar as histórias desses lugares e das pessoas. Ao mesmo tempo o Grupo realizou um aperfeiçoamento artístico com alguns profissionais convidados. O resultado desse processo foi o espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem, que tomou como mote a frase de Guimarães Rosa, “o sertão está em toda parte”, e outra de Tolstói, “fala de tua aldeia e serás universal”. Esse foi o mote, no entanto, o espetáculo trata da realidade dessas comunidades por onde o Grupo passou e dos sujeitos históricos que as transformaram. Em 2010, contemplados pela terceira vez com o Fomento, o Grupo continuou pelas comunidades, nos bairros de São Miguel e Itaim Paulista, apresentando os espetáculos em repertório: A Farsa do Bom Enganador e Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem. Além disso, por meio de cenas, performances e intervenções, discutiu a precarização do trabalho, partindo do material já coletado no projeto anterior e outros materiais a que, no decorrer do processo, os atores tomaram contato. Em paralelo, foi realizado o estudo teórico sobre o épico e deu-se continuidade ao estudo do canto e da percussão. No processo, se somou mais um profissional para realizar um trabalho corporal com os integrantes. No projeto foi realizado também a 6ª edição da Mostra de Teatro de São Miguel, ocorrida em dezembro de 2010. O projeto possibilitou também a manutenção da Casa d`Oráculo, sede do Grupo, conseguida após doze anos de existência; manutenção do sítio eletrônico; a troca artística com grupos convidados e parceiros de outros Estados; continuidade do Café Teatral; publicação de A Gargalhada e esse caderno, que fecha o projeto. Para ficar mais claro tudo que foi realizado ao longo desses quinze meses, dentro do projeto Narrativas de Trabalho, apresentaremos a seguir os diversos tópicos explicando de forma sucinta cada item:

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Foto de Edson Paulo :: Apresentação Aqui Não Senhor Patrão / Núcleo Pavanelli / Re-Praça / junho 2011

Mostra A Mostra de Teatro de São Miguel Paulista é realizada desde 2002 e chegou a sua 6ª edição. Foi realizada nos dias 03, 04, 05, 11, 12 e 13 de dezembro de 2010 na Praça do Casarão (Vila Mara) e sob o Viaduto da China (Jd. Maia), comunidades do bairro de São Miguel Paulista. Estava previsto dez espetáculos, mas foram realizados ao todo treze espetáculos e diversas intervenções, contando com a presença internacional do grupo Circo Ve, da Argentina, bem como grupos de outros Estados, além dos grupos da capital, do interior e do litoral paulista. Quanto ao público, uma média de 300 pessoas por espetáculo. Circuito Re-Praça Quarenta e quatro espetáculos apresentados em comunidades dos bairros de São Miguel e Itaim Paulista, contou com uma média de público de 250 pessoas por espetáculo, somando onze mil espectadores. Além disso, estavam previstos apenas onze grupos convidados e extrapolou-se em muito essa quantidade, o que significa que quem ganhou foi o público que pode assistir a uma programação diversificada. Em um dos espetáculos foi fundamental a parceria com o Pombas Urbanas, que trouxe o grupo colombiano Luz de Luna e que participou também do Re-Praça. Além disso, cabe destacar a presença dos gaúchos Mototóti, do Movimento Escambo do Ceará e Rio Grande do Norte e da Fraternal Cia. de Artes e Malas-Artes.

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Intervenções

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Diversas intervenções foram criadas, algumas foram levadas a público, outras ficaram na sala de criação. Diversos foram as formas, os lugares e as linguagens: trens, itinerantes, local fixo, videográficas etc., utilizaram poemas, músicas, imagens ou tudo ao mesmo tempo.

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Trocas artísticas Participamos de vivências e muitas conversas com diversos grupos que participaram da Mostra e do Circuito Re-Praça, de maneira a entendermos melhor a prática e a organização de cada um, assim, saímos muito enriquecidos desse processo.


Mini-curso Ainda que não estivesse previsto no projeto, sentimos a necessidade da realização de um curso introdutório sobre o marxismo, já que nosso tema era a precarização de trabalho, para tanto convidamos Luis Carlos Checchia, historiador e diretor teatral. O curso teve por objetivo uma introdução aos conceitos de Karl Marx. O desdobramento foi a criação de uma apostilha com diversos textos sobre o assunto. Café Teatral Foram nove encontros com pessoas da mais alta relevância para nossa pesquisa, abordando questões dramatúrgicas, o teatro épico, a produção teatral em uma sociedade cindida em classes, a organização em grupo, forma e conteúdo, entre outras questões. Estiveram presentes pesquisadores: Iná Camargo Costa, Alexandre Mate, José Manuel Lázaro Ortecho; diretores: Ednaldo Freire, Luís Carlos Moreira e Cida Almeida. Aperfeiçoamento técnico-artístico Continuamos o trabalho de voz com Melissa Maranhão e de percussão com Celso Nascimento. Além disso, foi acrescentado um treinamento corporal, a cargo de Elisete ... No projeto constava também a realização de workshops com profissionais especialmente convidados, como Hamilton Leite do grupo Oigalê, Junio Santos e Ray Lima do Movimento Escambo que desenvolveram um trabalho de cenopoesia e, por fim, Alício... da Cia. Mundorodá, que trabalhou com o Grupo passos do cavalo marinho, dança rural pernambucana.

Manutenção Depois de doze anos de existência, o Grupo conseguiu ter sua sede, um pequeno galpão no bairro de Cangaíba, zona leste da cidade de São Paulo e que denominamos de Casa d`Oráculo, local de nossos ensaios e da realização do Café Teatral; sua manutenção foi realizada com recursos do projeto. O sítio eletrônico também teve sua manutenção incluída no projeto. Publicações Veio a público nove edições de A Gargalhada, com tiragens de três mil exemplares cada, somando vinte e sete mil jornais. Além disso, as mesmas edições foram disponibilizadas em nosso sítio eletrônico (www.buracodoraculo. com.br), de maneira a que pessoas de outros Estados tenham acesso; outros textos produzidos foram publicados em nosso blog: www.buracodoraculo.blogspot.com.

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Parcerias realizadas Reforçamos parcerias antigas e realizamos novas, com instituições e com moradores das comunidades por onde passamos. Das antigas cabe destacar o Ponto de Leitura do Vila Mara, por meio da pessoa de dona Adelina Maria Martins, que sempre nos recebe; Akira Yamasaki, IPEDESH (Instituto de Pesquisa em Desenvolvimento Humano e Social), Pombas Urbanas, Trupe Lona Preta, Subprefeitura de São Miguel. Das novas: Ivanildo Lima e a Associação dos Moradores de Cidade Nova São Miguel e Idvanir Arcanjo da Associação dos Moradores Jd. das Camélias. Números A Mostra, o Re-Praça, os Cafés e as intervenções, que somaram 83 atividades, foram compartilhadas por 18 mil pessoas. Entre aperfeiçoamento técnico-artístico, workshops, mini curso e trocas artísticas foram mais de 600 horas somados à nossa experiência. 22 duas pessoas estiveram ligadas diretamente ao projeto e muitas outras de forma indireta, como grupos convidados, motoristas, gráficas, parceiras das comunidades, somando algumas dezenas de pessoas. A produção gráfica foi impressionante: 2.700 exemplares de A Gargalhada, 1.000 cadernos, 15.000 folders e 2 banners. Além disso, milhares de fotos e muitas horas de gravação em vídeo. Diante de imensa produção, não tem como sair de um projeto como esse da mesma maneira que se entrou, as transformações pessoais são imensas, mas sobretudo o ganho artístico é extraordinário, por fim, quem mais ganha é o público da cidade de São Paulo, que recebe cada vez mais espetáculos diversificado e de alta qualidade.

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Teatro:

Do Tema à Prática

Sobre o Trabalho Adailtom Alves Teixeira1

O sociólogo José de Souza Martins (1978), tomando o pressuposto de que o modo capitalista de produção cria um modo de pensar capitalista, lançou um pequeno livro com quatro ensaios, dentre os quais destaco Tio Patinhas no centro do universo, no qual apresenta cada personagem daquela estranha família como um elemento do capitalismo, sendo, portanto, um divulgador do sistema, ao mesmo tempo, uma demonstração da alienação. Todos os personagens se constituem tomando como referência o Tio Patinhas, mas “[...] cada personagem é, antes de tudo, mercadoria, que se vende e se compra” (MARTINS, 1978: 4). Donald é o trabalhador, empregado do seu tio, sempre humilhado, seja pelo baixo salário, seja pelas artimanhas para mantê-lo ativo no trabalho. Donald vive sonhando com uma riqueza que não pode desfrutá-la. Os seus sobrinhos, Huguinho, Zezinho e Luizinho, são de uma nova geração que sabem que não se enriquece pelo trabalho, suas ideias são aos pedaços, enquanto Donald as têm por inteiro. Os seus sobrinhos, “Não nasceram para produzir o universo, mas para reproduzi-lo” (MARTINS, 1978: 7). E onde vão buscar suas idéias? No manual do escoteiro, fonte inesgotável para todos os problemas. Donald não vê sua condição de explorado e nem a riqueza que produz, por isso sonha com a riqueza que um dia, supostamente, herdará. Margarida também explora Donald e é a futilidade em pessoa. E assim Martins vai passando por cada um dos personagens, como Gastão e seu pé de coelho da sorte, bem como o Tio Patinhas com sua moeda número 1, ambos os talismãs representam o componente mágico para justificar os escolhidos ou um direito natural. Mesmo 1 Graduado em História, Mestrando em Artes pelo Instituto de Artes da Unesp, membro do Núcleo Brasileiro de Pesquisadores em Teatro de Rua e ator do Buraco d`Oráculo.

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os inimigos do Tio Patinhas, não são contra o sistema, mas tão somente diferem no modo de obter a riqueza, como os irmãos Metralha, que querem se apossar do que já está acumulado. “Em suma, os amigos de Patinhas são amigos do capital. Os seus inimigos são inimigos das formas institucionais e dos mitos de sustentação do capital, embora na verdade sejam amigos do capitalismo” (MARTINS: 1978: 15). Se compararmos aos industriários, banqueiros ou ao crime organizado, veremos que não é muito diferente: apenas diferem na prática de explorar. Mas os tempos são outros, afinal o ensaio de José de Souza Martins é da década de 1970 e vivemos hoje sob o signo do neoliberalismo, uma nova forma de acumulação do capital, muito mais voraz e global, em que tudo é regulado pela ótica do mercado (SANTOS, 2005). No Brasil o neoliberalismo chegou pela via federal com Fernando I e foi radicalizado com Fernando II – Fernando Collor de Melo e Fernando Henrique Cardoso. Evidente que a política de ambos foi continuada depois pelo homem de barba do ABC: Lula. Isso já faz alguns anos, pois Fernando I foi eleito em 1989, após 29 anos sem eleições diretas, governou por apenas dois anos, mas fez grandes estragos. As privatizações foi uma das principais formas encontradas por esses políticos, aquilo que, em outros tempos, se chamou de entreguismo. Para se ter uma ideia, segundo Francisco de Oliveira, no fim do primeiro mandato de FHC, enquanto o governo anunciava [...] uma entrada de R$ 85 bilhões por conceito de venda das estatais, o próprio Estado brasileiro renunciou a receitas, subdisiou as compras, pagou por indenizações trabalhistas, deu crédito do próprio BNDES [Banco Nacional do Desenvolvimento], investiu para ‘sanear’ as empresas num montante subavaliado de R$ 87 bilhões (2005: 150).

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O que na época representava 15% do PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro, por isso Oliveira entende que foi um processo de “auto-imolação”.

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A vitória do neoliberalismo em todo o mundo tem criado uma nova sociabilidade, na qual a fuga é a vida privada que clama sempre por segurança, pois o medo do outro é constante, permanente. Vivemos, como afirma Bauman (2009), uma mixofobia. Só no Estado de São Paulo, os efetivos de segurança, isto é, a polícia privada, segundo dados apresentado por Oliveira, já superou as duas polícias: a civil

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Foto Arquivo do grupo :: Intervenção Cenopoética / Vila Mara / setembro 2010

e a militar. O processo só não desemboca em um fascismo, ainda segundo Oliveira, porque um político de direita como Paulo Maluf (diga-se de passagem, procurado em diversos países, único lugar em que não pode ser preso é justamente o Brasil), tem como principal eleitorado os pobres da periferia: “Eles não podem ser o ‘bode expiatório’ que o fascismo sempre construiu” (2005: 151). Para complicar ainda mais a vida daqueles que produzem riquezas, isto é, dos trabalhadores, o neoliberalismo, que torna quase tudo supérfluo, tem investido para que as centrais sindicais se tornem também elementos supérfluos, e a disputa entre elas tem demonstrado que o sistema tem obtido resultado. Enquanto isso, o trabalhador, que também tem sido apresentado como supérfluo, é cada vez mais explorado, não pode escolher o que fazer e nem a forma de trabalho. Afinal, “As distinções entre trabalho formal e informal já não fazem sentido: a precarização é a pedra de toque de alto a baixo da escala do trabalho” (OLIVEIRA, 2005: 165). Estamos vivendo uma crise generalizada do emprego. O desemprego em massa atinge diversos países, tornando o trabalhador ainda mais pobre. Enquanto isso, “[...] o rendimento de 1% da população mais rica equivale a 40% daqueles que estão em um patamar mais inferior” (MÉSZÁROS, 2006: 29). Para Mészáros a situação do desemprego pode ser ainda pior, pois o autor acredita que os dados, inclusive nas economias ditas avançadas “[...] podem estar sendo falsificados” (2006: 29). Por isso mesmo, entende que “A globalização do desemprego e da precarização, até o momento, não pode ser remediado sem a substituição radical do sistema capitalista” (2006: 32). Nessa nova lógica, flexibilidade e desregulamentação são os slogans do capital e soam interessantes para os negócios e para a política. Aliás, um necessita do outro. O Estado tem se tornado o grande feudo do capital financeiro. Ainda que o ideário neoliberal apregoem um Estado mínimo. Mas nunca o Estado foi tão intervencionista, claro que em favor do capital, sobretudo em seu aspecto político, nas reformas trabalhistas, pois só há “[...] um caminho para tentar alargar as margens contraídas da acumulação de capital: às expensas do trabalho” (MÉSZÁROS, 2006: 38). Para este autor vivemos um retorno à mais-valia absoluta. 15


Flexibilização e terceirização em todos os campos do trabalho, da indústria automobilística à cultura. Aliás, nessa última, a cada dia são criadas diversas OS (Organização Social) para gerir o que é função do Estado. Por sua vez, as demais áreas sofrem com a flexibilização – que nada mais é do que barateamento do trabalho – como a criação de bancos de horas, pelos quais não se recebe em dinheiro, mas sim com outra hora não trabalhada. Para demonstrar o abismo de precariedades a que estamos nos direcionando, Luciano Vasapollo lembra “[...] que 80% da população mundial vive no Terceiro Mundo e tem à sua disposição menos de 20% da riqueza mundial, e que, a cada ano, mais de 14 milhões de meninos morrem antes de chegar aos 15 anos” (2006: 53). É de se perguntar: não estamos pagando uma conta alta demais? Em relação ao Brasil, o economista Mário Pochmann (2006) afirma que a crise do desemprego ocorreu nas duas últimas décadas do século XX, não por acaso, coincide com a chegada do neoliberalismo. O desemprego atingiu todos os seguimentos sociais, com queda acentuada dos postos de trabalho formal, com carteira assinada, quanto aos empregos criados, houve completa destruição dos melhores postos de trabalho: “Entre 1992 a 2002, por exemplo, o desemprego passou de 6,7% para 9,3% do total da população economicamente ativa, o que significa um aumento relativo próximo a 40%” (POCHMANN, 2006: 62). Não tivemos acesso aos dados mais recentes, mas ainda que tenha havido o crescimento de postos de trabalho é possível questionar sobre sua qualidade, pois nessa crise generalizada, até os mais escolarizados vem sofrendo: “Ao contrário do que prevê a teoria do capital humano, a análise revelou que os mais escolarizados, no Brasil, são os mais penalizados no interior do mercado de trabalho” (POCHMANN, 2006: 66). Outro ponto importante: se muitas empresas têm aportado no Brasil, há uma clara explicação, pois a tal da competitividade brasileira está calcada na renúncia fiscal oferecida, como já dito acima e na vasta mão-de-obra barata e qualificada. “O diferencial de competitividade brasileiro concentrou-se, portanto, no custo do trabalho, que caiu de US$ 3 a US$ 4 por hora na indústria de transformação na década de 1980 para US$ 1 em 2003” (POCHAMNN, 2006: 71).

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Finalizando essa questão, cabe ressaltar a inovação de empresas em seu sistema flexível na produção e na organização, com a implementação automatizada, por exemplo, mas que, no entanto, “[...] ao invés de autonomizarem, sujeitaram ainda mais as operações manuais ao ritmo imposto pelas máquinas” (PINTO, 2006: 80).

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Todo esse processo é o que Richard Sennett (2006) chamou de A cultura do novo capitalismo (2006). Sennett explica que essa mudança cultural (em sentido antropológico) apresenta três desafios: tempo, cada vez mais rápido, em que migramos de “[...] uma tarefa para outra, de um emprego para outro, de um lugar para outro” (2006: 13); o talento, em que fazer bem feito uma coisa, já não serve, é o fim do que chamou de “ideal do artesanato” e; o terceiro, é o “[...] abrir mão, permitir que o passado fique para trás” (2006: 14). O que sobra disso tudo é a cultura do consumidor. É evidente que se trata de uma cultura do supérfluo, em que os menos aptos ficarão para trás. Vivemos a era das paixões consumptiva, “[...] uma paixão que se extingue na própria intensidade” e ao utilizarmos as coisas nós estamos consumindo-as, ocorre que, “[...] nesse caso, a imaginação é mais forte na expectativa, tornando-se cada vez mais débil com o uso” (2006: 128). Ou seja, eu desejo, mas a medida que eu tenho e uso, perco o interesse, isso já ocorre no dia-a-dia e tem deslizado para o campo

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da política e do trabalho. No caso do trabalho já não há mais a perícia, fazer bem feito por fazer, isso “[...] combina cada vez menos com instituições dominadas pelos processos e a ação em rede. Em vez disso, as organizações valorizam sobretudo capacitações portáteis, a capacidade de trabalhar em vários problemas com um plantel de personagens constantemente mudando, separando a ação do contexto” (2006: 131). Estamos vivendo um período de total precarização e coisificação do homem. No atual sistema capitalista tudo tem se tornado supérfluo: coisas e pessoas. Esse modelo, que Sennett chama de sistema mp3, chegou ao campo da política e abriu campo para as [...] cinco maneiras pelas quais o consumidor-espectador-cidadão é afastado da política progressista, em direção a [um] estado mais passivo. (...) o consumidor-espectador-cidadão é (1) convidado a aprovar plataformas políticas que mais parecem plataformas de produtos e (2) diferenças laminadas a ouro; (3) convidado a esquecer a ‘retorcida madeira humana’ (como se referia a nós Immanuel Kant) e (4) dar crédito a políticas de mais fácil utilização; (5) aceitar constantemente novos produtos políticos em oferta (2006: 148). A precariedade a que estão submetidos os trabalhadores se completa com a cultura do medo: o estrangeiro, o outro, é motivo de ansiedade, de medo de perda do emprego e de tornar-se inútil. Por tudo isso, os elementos reacionários cada vez mais vêm à tona, daí o aumento de poder por parte da direita em todo o mundo. Mas não esqueçamos que esse medo veio sendo imposto por meio da ideologia perversa dominante, que perpassa todas as classes sociais, pois se o capitalismo vive uma tremenda crise, é preciso esconder para aqueles que estão na parte de cima da pirâmide não perca seus privilégios. No entanto, a propaganda não pode esconder tudo para sempre, como afirmou Bertolt Brecht em Necessidade da propaganda: É possível que em nosso país nem tudo anda como deveria andar. Mas ninguém pode negar que a propaganda é boa. Mesmo os famintos devem admitir Que o Ministro da Alimentação fala bem. (...) Mesmo assim: bons discursos podem conseguir muito Mas não conseguem tudo. Muitas pessoas Já se ouve dizerem: pena Que a palavra ‘carne’ apenas não satisfaça, e Pena que a palavra ‘roupa’ aqueça tão pouco. Quando o Ministro do Planejamento faz um discurso de louvor à nova impostura Não pode chover, pois seus ouvintes Não têm com que se proteger.

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Bibliografia BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Trad.: Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. BRECHT, Bertolt. Poemas: 1913-1956. Trad.: Paulo César Souza. São Paulo: Brasiliense, 1986. MARTINS, José de Souza. Sobre o modo capitalista de pensar. São Paulo: Hucitec, 1978. MÉSZÁROS, István. Desemprego e precarização: um grande desafio para a esquerda. In: ANTUNES, Ricardo (Org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2006. OLIVEIRA, Francisco. Quem canta de novo l`Internationale? In: SANTOS, Boaventura de Souza (Org.). Trabalhar o mundo: os caminhos do novo internacionalismo operário. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. PINTO, Geraldo Augusto. Uma introdução à indústria automotiva no Brasil. In: ANTUNES, Ricardo (Org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2006. POCHAMNN, Márcio. Desempregados do Brasil. In: ANTUNES, Ricardo (Org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2006. SANTOS, Boaventura de Souza (Org.). Trabalhar o mundo: os caminhos do novo internacionalismo operário. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. SENNETT, Richard. A cultura do novo capitalismo. Trad.: Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2006.

NARRATIVAS DE TRABALHO

VASAPOLLO, Luciano. O trabalho atípico e a precariedade: elemento estratégico determinante do capital no paradigma pós-fordista. In: ANTUNES, Ricardo (Org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2006.

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Foto de Edson Paulo :: Café Teatral com Iná Camargo / dezembro 2010

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Desafios ao Teatro Iná Camargo Costa2

Quando se pensa de modo subjetivo nas relações entre arte e capitalismo, não se levam em conta aspectos que são fundamentais para materialistas empedernidos. Um deles é o desenvolvimento das forças produtivas e as possibilidades que ele abre para as práticas artísticas. Ainda neste capítulo, já está mais que na hora de começar a pensar em um mundo onde ninguém entre 25 e 50 anos precise trabalhar mais do que doze horas SEMANAIS e todos os que estão aquém ou além dessa faixa etária NÃO PRECISEM TRABALHAR PARA GANHAR A VIDA porque ela já estará assegurada pelos demais. Digamos que a bandeira seria democratizar o ócio que hoje é privilégio de menos de 1% da população mundial. Pensemos então no que seria um mundo em que praticamente não se precisa trabalhar (doze horas semanais dá pra liquidar em um dia por semana; ou três horas em quatro dias; dois dias de seis e assim por diante!) porque o desenvolvimento das forças produtivas assim o permite. Vamos ter que inventar o que fazer, não é mesmo? Olha aí a função dos artistas em um mundo em que todo mundo pode ser artista! Ajudar os que até agora não tiveram oportunidade de fazer arte a descobrir e desenvolver as suas capacidades criativas. E isso pode ser considerado um trabalho muito valioso. Não vale a pena pensar nisso?

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Mas deixemos de lado o sonho (pelo qual vale a pena lutar, bem entendido) e vamos olhar mais de perto e sem subjetividade para o que foi feito da arte e dos artistas no atual estágio do capitalismo.

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A Indústria Cultural, tal como a conhecemos, surgiu ao final da Primeira Guerra Mundial, com a transformação dos equipamentos de transmissão e recepção de rádio em meios de produção (os equipamentos de transmissão) e mercadoria (os receptores) para consumo em larga escala. A explicação materialista é simples e verdadeira: até então esses equipamentos eram de uso exclusivo das Forças Armadas e, com o fim da guerra, houve a habitual tragédia do encalhe para a indústria que os produzia (RCA, entre outras). Para 2 Professora Aposentada da USP.

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transformar prejuízo em lucro, o governo americano e os industriais inventaram, a toque de caixa, um “modelo de negócio” que até hoje funciona também para televisão e internet: o Estado entra com a infraestrutura e o Capital explora o negócio da “comunicação/informação” e do “entretenimento”. E como o rádio-meio de produção não correspondia a nenhuma necessidade socialmente estabelecida, desde logo ele se desenvolveu como parasita dos acontecimentos sociais: as emissoras PRIVADAS transmitiam acontecimentos PÚBLICOS das várias esferas, como óperas, concertos, comunicados do poder, jogos e competições esportivas, bem como o noticiário dos jornais do dia. Com o tempo e o desenvolvimento da indústria fonográfica, o rádio acrescentou a essas funções a da divulgação (propaganda) do novo produto – os discos –, até porque ele mesmo se transformara também num poderoso meio de propaganda das demais mercadorias. Em paralelo a este processo, o cinema foi devidamente açambarcado pelo capital financeiro, que passou a pautar seus métodos de produção e arregimentação de trabalhadores – além dos técnicos, os artistas de teatro. O capítulo seguinte é a televisão, geralmente considerada como uma espécie de síntese entre rádio e cinema, o que não deixa de ser verdade, uma vez que ela parasita acontecimentos sociais como o rádio, produz o equivalente aos filmes em seus programas próprios e é antes de mais nada um veículo de publicidade (hoje é impossível distinguir, numa edição de jornal televisivo, a notícia da propaganda). Assim é que desde o início dos anos 20 do século passado a indústria cultural se apropriou em caráter abertamente parasitário de todas as modalidades de arte até agora produzidas pela humanidade e, naturalmente, ao arregimentar todos os artistas, definiu a sua função: eles são veículos de propaganda dos valores do capitalismo: novidade, moda, concorrência, inveja, ostentação/encenação de status ou sucesso (sempre de vendas), sentimentalismo barato, infantilismo, mau gosto, autoritarismo. Tanto faz se o trabalho é peça de publicidade ou “obra” (música, vídeo etc.): sua função é sempre reiterar os valores necessários ao funcionamento do capitalismo e estimular o crescimento das vendas. Mas, como já explicou um profundo analista do funcionamento do capital, seu movimento é contraditório o tempo todo. Um dos resultados mais constantes das suas contradições é a produção de população supérflua, ou candidatos a trabalhador (com a devida formação técnica) que não conseguem se integrar à força de trabalho. Este é o caso dos artistas que, após anos e anos de estudos, descobrem que não há mercado para as suas especialidades. Mas não se trata de caso especial: em todos os setores da economia a produção de população supérflua acontece com regularidade matemática desde a chamada “revolução industrial”. A “revolução digital” deu mais um passo neste sentido e, combinada com o fim do chamado “socialismo real”, criou a situação político-ideológica que permitiu ao capital eliminar a maior parte dos direitos duramente conquistados pelos trabalhadores ao longo do século XX. Assim como a produção de trabalhadores supérfluos, a chamada “precarização do trabalho” é expressão da força da classe dominante no estágio atual da luta de classes. Agora a palavra de ordem do capital é o empreendedorismo. Tradução: não se faz mais contrato de trabalho; quem quiser trabalhar tem que virar pessoa jurídica e, se quiser ter acesso a antigos direitos como saúde, educação e aposentadoria, que trate de comprar planos de saúde, pagar pelo ensino dos filhos e aderir aos programas de especulação bancária chamados de “renda complementar”, pois os direitos foram degradados à condição de serviços e, como tais, passaram a ser explorados como mercadorias às quais só tem acesso quem tem poder aquisitivo. Precarização do trabalho é isto: trabalhador despojado de quaisquer direitos. 21


A saída encontrada pela categoria dos trabalhadores das artes cênicas foi a formação de grupos, a opção por se apresentar em ruas e praças das cidades ou em espaços abandonados e, mais recentemente, lutar por políticas públicas para a cultura, isto é, bater às portas do Estado para assegurar ao menos a sua sobrevivência física com dinheiro proveniente do fundo público. Mas já está claro que o capital também explora, entre outros, o ramo das artes cênicas através das leis de renúncia fiscal e não vai largar esse osso com facilidade. Até o momento, a concorrência está ganhando de goleada...

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Mas se os trabalhadores precários das artes cênicas quiserem ampliar seus horizontes, um próximo passo seria passar à denúncia do estado de coisas que vale para o conjunto dos trabalhadores já nos próprios trabalhos que desenvolvem. Em seguida, começar a reivindicar o acesso aos meios de distribuição realmente relevantes da produção artística e cultural, como a televisão e os espaços bem equipados. Até porque o discurso artístico contra ideológico precisa ter a ambição de alcançar no mínimo uma audiência do tamanho da televisão aberta; por menos que isso, ele não tem sentido. E sem a perspectiva de conquistar o direito de todos serem artistas, esta briga nem vale a pena.

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Foto de Edson Paulo :: Café Teatral com Iná Camargo / dezembro 2010

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Dramáticas Resignificadas Agires Comunicados José Manuel Lázaro3

Segundo Aristóteles, o drama era um dos gêneros literários, além do épico e o lírico. Essas estruturas tinham em comum uma coisa: a imitação de uma ação. Só que cada gênero o fazia de maneira diferente. No entanto, o cerne da interpretação cênica se sustentava na ideia da imitação. E essa espécie de transcrição do ato humano significava, na maioria dos casos, numa ação “agida por imitação” em tempo presente. O drama na sua inicial concepção ocidental implicava contar uma história através de uma ação representada. Tais ações estavam constituídas de conflitos gerados por ações em oposição ou situações adversas. Assim, ainda nesse caso, a ação estava amarrada à ideia de uma ação encadeada na situação do enredo apresentado. Como nos mostra Sábato Magaldi, as acepções sobre o teatro passam por transformações na história ao longo de épocas e culturas diversas. Suas definições vão sendo variadas e divergentes. Teatro está relacionado ao edifício constituído de palco e plateia onde se apresenta um espetáculo, ou talvez simplesmente ao lugar ou espaço onde essa reunião entre criadores cênicos e receptores acontece. Também está relacionado ao encontro do que Magaldi define como a tríade essencial: ator, texto e espetáculo. A contemporaneidade traz uma reformulação do conceito de texto cênico, em que o material literário é apenas um dos subsídios de um texto maior composto pelo conjunto de elementos que constituiriam o espetáculo e sua linguagem (atores, espaço, vestuário, cenografia, luzes, som... etc.). Percebemos assim, como na história da arte e da cultura, convivemos desde sempre com uma multiplicidade de definições. Conseguir enxergar essas mudanças, no presente, sempre foi uma tarefa difícil, porém, necessária. No texto a seguir, apresentaremos sinteticamente um panorama que mostre as convenções recebidas sobre teatro e dramaturgia, além de suas principais transformações em andamento nessa movimentada contemporaneidade.

3 Doutor em dramaturgia pela ECA-USP; professor de Graduação e de Pós-Graduação do Instituto de Artes da Unesp.

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Desde sempre, porém, sob o olhar de hoje: o que é teatro? Mantendo a percepção histórica e chegando a um conceito contemporâneo, podemos entender que definitivamente o teatro sempre foi um meio de comunicação. Talvez o mais primitivo deles. É com o interesse de resgatar essa função básica e primária do teatro que retornamos a essa definição para, nela, reencontrar novos objetivos, percepções e assim algumas definições que nos permitem compreender os paradoxos nesse começo de século. Como mencionamos, o teatro, desde suas origens, foi um importante meio de comunicação social, fruto de uma necessidade humana, em que se transmitia o drama ao receptor. E aqui entenderemos o drama como a comunicação de “ação” em suas diferentes manifestações. Desde as festas dionisíacas e os ritos dedicados aos deuses; vemos como surge um coro e posteriormente um ator agindo num espaço que com o tempo se tornaria edifício cênico. Pode-se dizer o mesmo a partir dos ritos indígenas, encontrando-se o primeiro comunicador de ações cerimoniais no chaman que conduzia a experiência; e de como esses ritos se transformaram em dramas primitivos e tradicionais na América Latina.

O que é drama-turgia? Como entender essa liturgia do drama em permanente crise (sobretudo no ocidente)? Posto que a dramaturgia não é um formulário para a realização de boas peças, filmes, roteiros, mas sim um conjunto de técnicas para se organizar eficientemente um texto, podemos dizer que o ponto de partida para a feitura de um bom texto dramático é a existência de um conteúdo a ser expressado, veiculado. (PALLOTTINI, 2005: 15) Pallotttini valoriza de maneira instigante a importância de resgatar o conteúdo dentro de nós mesmos; dentro de nosso universo pessoal, ela dá especial relevância ao encontro com aquela substância interna que vai se formando com as nossas ideias, emoções, sensações, lembranças, pontos de vista e observações. Ou seja, o encontro com aquele “querer dizer algo” que nos movimenta. Nada mais importante nos tempos das imagens e da tecno-estética em que se perde, por dispersão, o substrato comunicativo do discurso. A partir daí, ninguém melhor do que Renata Pallottini pôde descrever com tanta clareza e simplicidade a ideia básica de dramaturgia e os principais elementos nela contidos: Esse conteúdo, sua existência e o fato de ser um são as condições que garantem a unidade do trabalho, a única unidade, dentre as que Aristóteles apontou, que verdadeiramente vale a pena. Essa unidade que se pode chamar de Unidade de Ação, nos é dada pela Idéia Central, a qual, por ser central, é forçosamente uma.

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A ação principal é conseqüência da idéia Central (estamos sempre lidando com o conceito de unidade) e tende a ser uma porque persegue um objetivo. Objetivo é aquilo que o protagonista da peça, o personagem que mais faz coisas, o que mais age, procura obter. E segue lutando para isso, mas vai encontrando, no seu caminho, obstáculos. [...]

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Essa caminhada do personagem principal em busca de alguma coisa que ele deseja, os obstáculos que ele encontra, os esforços que faz para vencer esses obstáculos, tudo isso é ação dramática. (PALLOTTINI, 2005: 16-7)

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O universo conceitual da dramaturgia, pelo menos aquele construído no ocidente até a modernidade, se sustentava na ideia da escrita de um texto literário com condições específicas para que ele seja representado e não apenas lido. Essa construção cultural foi se desenvolvendo a partir das noções aristotélicas. No entanto, o real estabelecimento das bases conceituais, para uma dramaturgia, foi aquela gerada pelos estudos e explanações que foram sendo levantados pelos estudiosos da Poética aristotélica a partir da Renascença até a modernidade. Essa construção histórica teve um percurso particular no ocidente se sustentando, dependendo da época, em pontos de vista elaborados, às vezes, muito livremente, a partir de Aristóteles (ainda mais sabendo que o texto original desse autor, A Poética, é bastante lacunar e fragmentado). A discussão principal esteve continuamente baseada no entendimento e na aceitação do uso das famosas “unidades dramáticas principais”: ação, tempo e espaço. No decorrer da modernidade, procurou-se a autonomia do criador no uso das unidades de tempo e espaço, deixando acontecer um livre desenvolvimento narrativo. A unidade de ação era a última a ser defendida. No entanto, nessa contemporaneidade das décadas recentes, nomeada de pós-moderna (seja ela também entendida como modernidade líquida, hiper moderna), a intocada unidade de ação passou por vários questionamentos e reformulações. Estrutura do drama convencional Vejamos sumariamente os principais elementos da dramaturgia e como eles se tornaram tópicos fundamentais para a estruturação de um drama, com convenções adequadas que fossem subsídios para elaborar uma obra com os termos de qualidade idealizados em cada momento. Pensamos nos seguintes ingredientes principais: a) Sustentar a unidade dos elementos dramáticos: ação – tempo – espaço Como mencionamos, a Ação é um elemento fundamental da estrutura dramática. Ela é à base da comunicação teatral, nesse caso, narrativa. Ela tem de ser concebida, estruturada com outros elementos importantes como os objetivos que a movimentam e os obstáculos que a paralisa ou elimina. A dramaturgia convencional sustenta uma ação principal que é construída com uma rede de sub-ações que, juntas e de maneira encadeada, constituem uma história, um enredo. Assim, a dramaturgia poderia se entender como a arte de saber contar uma boa história. Desse modo, a ação

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está elaborada a partir de uma função especificamente “narrativa”. Precisamente, a quebra dessa narratividade gerou novas formas de entender a ação no drama contemporâneo. No que tange às unidades de Espaço e Tempo, elas estavam muito em função do efetivo desenvolvimento da ação e do enredo. O romantismo já tinha discutido uma recuperação da liberdade no uso dessas unidades (como já acontecia na Renascença), se emancipando da influência neoclássica francesa que impunha apenas um único espaço e lugar na elaboração do enredo no drama. Já no século XIX colocava-se a quantidade de espaços e tempos suficientes para a efetiva narração da história da peça. Essa tendência continua até os dias de hoje, ainda mais sob a influência das estruturas cinematográficas. b) Estrutura do texto Dramaturgia basicamente sempre significou escrever um texto literário com uma determinada construção. Assim, esse texto principal estava estruturado por falas compostas em formas de “diálogo” ou “monólogo”. Existe ainda outro tipo de escritura, menor, que corresponde às rubricas, que complementam essas falas ou estabelecem indicações de ação sem fala. Esses textos foram organizados em atos (entre 3 a 5) que por sua vez se dividiam em cenas. Atualmente se sustentam apenas a divisão por cenas (se não for o caso de uma cena única), sem se estabelecer uma quantidade determinada para a elaboração da peça. Nessa estrutura, o peso da ação dramática se sustentava pela eficácia das falas do texto. c) O Personagem: identidade; fala

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São os condutores das ações dramáticas. Estão determinados por descrições inicias do autor no início da peça e pelas próprias falas e rubricas a eles conferidas. Os personagens devem ter uma determinada unidade, no sentido de possuírem uma ação específica na peça, com objetivos esclarecidos. Além disso, eles estão constituídos por uma personalidade única e verossímil. Posteriores discussões a partir dessas últimas duas características serão elaboradas na contemporaneidade.

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Teatro hoje O teatro manteve o estatuto convencional, ou digamos melhor, continuou a ser mantido por uma estrutura de mercado pós-moderno. No entanto, a partir de 1960 e especialmente nas décadas mais recentes, houve uma forte e incessante procura pela renovação das estruturas da linguagem cênica. De um lado, cresce o desenvolvimento de outra dramaturgia vinda de escritores que experimentam se revoltando contra as estruturas estabelecidas e impostas para o “bom e aceitável” escritor de teatro. Indo além das novas dramaturgias, encontramos as manifestações de encenadores que experimentam outras formas de experiência cênica, pesquisando em diversas estruturas possíveis de linguagem teatral para encontrar práticas cênicas de renovada originalidade. Novos espaços, novos tipos de atores e formas de interpretação, novas cenografias, interações cada vez mais variadas com o público, por mencionar alguns dos rumos experimentados. Mas, além das grandes renovações dos artistas individuais, é prioritário mencionar as contribuições geradas pelos coletivos que aparecem com força na segunda parte do século XX. Grupos com processos de criações coletivas geram dramaturgias, encenações e atores criadores com uma força muito determinante na história do teatro das últimas décadas. A força dessas manifestações cênicas é ainda intensificada com a assimilação das experiências de happening e performance além das incorporações de elementos vindos da dança contemporânea e do circo. Com essa recente herança, o século XXI se depara com a necessidade de reconstruir e repensar não só os estatutos da encenação e a dramaturgia, mas sobretudo repensar o que significaria ação dramática nesse momento e quais são as suas novas maneiras de comunicá-la. Saindo das convenções: em direção a uma dramaturgia contemporânea A dramaturgia contemporânea está construindo e reformulando seus arcabouços conceituais. Isso por causa, precisamente, de não haver mais uma estrutura norteadora, um cânone único e específico. As manifestações culturais, relacionadas ao momento pós-moderno, pós-narrativo, pós-dramático (Hans-Thies Lehmann) ou teatral-performático (Josette Fèral), trouxeram questionamentos e deram respostas diferentes a cada um dos conceitos relacionados à construção do drama. Assim, ampliou-se o leque de opções para elaborar uma estrutura teatral, não podendo se falar mais de dramaturgia e sim de “dramaturgias”. Mantém-se a estrutura convencional do drama como uma opção a mais. Porém, as dramaturgias de propostas épicas e líricas trouxeram novas alternativas de elaboração dramática. Não acreditamos, como muito vem se afirmando, que tenha se estabelecido um “vale-tudo”, mesmo aceitando que há muita confusão disseminada. Cogitamos simplesmente que os conceitos mudaram, ampliaram suas opções e modelos; as linguagens dramáticas se diversificaram, atingindo linhas díspares. Assim, vemos como os diferentes elementos dramatúrgicos são usados de várias maneiras, adquirindo cada um deles um determinado tipo de desconstrução ou transformação. Não teríamos espaço aqui para mapear os diferentes caminhos abertos por essas transformações. No entanto, é importante esclarecer que os códigos convencionais não são eliminados. Eles se sustentam e mantém sua validade, mas sem ser colocados como cânones absolutos. Ou seja, a dramaturgia convencional é um código a mais, “uma das” dramaturgias convivendo com as novas linguagens. Inclusive, vemos como linguagens renovadas se misturam com as convencionais, gerando categorias híbridas (que não poderíamos mais contabilizar). 27


Existem pelo menos quatro elementos que já são características estabelecidas na arte contemporânea, identificadas por diferentes estudiosos da estética e sociologia da arte atual: Hibridismo, Intertextualidade, Metalinguagem e Fragmentação. Obviamente, todos estão fortemente conectados, interagindo de maneira tão íntima e natural que dificilmente se consegue ver a diferença. No Hibridismo, vemos como linguagens diversas desenvolvidas, em cada uma das artes, começam a se misturar e entrelaçar. O jogo consiste em criar algo (não mais “novo” e sim) diferente, único e até estranho. A proposta experimental propõe gerar uma linguagem inusitada, trazendo formas e conteúdos impensados por meio desse processo. Na Intertextualidade, vemos como textos de diferentes fontes são incorporados ou explicitamente citados numa mesma escrita.4 Em princípio pensávamos em estruturas literárias, no entanto, esse próprio estatuto foi ultrapassado no jogo intertextual. Segmentos de textos vindos de diferentes peças e autores se juntam numa expressão só; estratos de romances, contos ou poesias convivem numa única escrita; escutamos trechos de música e/ou imagens de alta referência cultural, interferindo no texto principal. A Metalinguagem traz a linguagem que se expõe e se discute a si mesma. No caso, a arte cênica e a dramaturgia recebem a importante herança de Bertolt Brecht. A partir das propostas do Teatro Épico, a cena contemporânea começa a desenvolver um particular jogo “metateatral” de bastante complexidade. Para finalizar, temos o elemento da Fragmentação na arte atual. Essa característica, também muito relacionada à herança do Teatro Épico, não se preocupa mais com a rigorosa unidade (relacionada a uma uniformidade distinguível) na linguagem da obra. Expõe os fragmentos que a compõem e pode ser capaz de relacionar frações cênicas vindas de outros vocabulários. Além disso, é possível criar uma dinamicidade particular na estrutura da obra, elaborando uma espécie de collage em que as diferentes partículas dramatúrgico-cênicas sejam suficientemente rápidas e intensas como para gerar leituras complexas e instigantes.

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A tudo isso cabe acrescentar a enorme influência da Performance na cênica de nossos tempos. Essa rica manifestação cultural, que se afirma na segunda parte do século XX, traz novas maneiras de investigar o espaço cênico fora do edifício teatral; gera uma pesquisa sobre a ação cênica, transpondo os limites da representação, além de provocar novas maneiras de interação com o público.

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4 Isso tem gerado a polêmica sobre os direitos do autor.

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Vejamos agora, novamente, os principais elementos da dramaturgia e como eles se transformaram para erigir a estruturação de um drama de convenções renovadas. a) Os elementos dramáticos básicos (antes entendidos como unidades): ação – tempo – espaço Na atual cultura cênica, a matéria-prima do drama, Ação, se transforma, passando por estatutos metateatrais; questiona sua verossimilhança na própria cena (de Luigi Pirandello a Roberto Castellucci). Novas investidas na pesquisa trazem a recuperação da essência da ação no drama (drama é ação), porém desligando ela da necessidade de pertencer à estrutura de um enredo. Ou seja, ela não está mais ao serviço da construção de uma história a ser contada, tornando-se pós-narrativa. Finalmente podemos acrescentar que a ação se instaura “em ou além” da representação, tomando em conta as experiências vindas da performance. No que tange aos elementos de Espaço e Tempo, eles estão ainda muito em função do efetivo desenvolvimento da ação, porém, não necessariamente ao de um enredo (seja qual for a proposta, poderia não existir). Como mencionamos, o Espaço sai do edifício convencional teatral, ou pelo menos quebra a estrutura italiana de palco-plateia. Os chamados espaços não-convencionais e a rua serão lugares onde as manifestações cênicas se firmarão. Assim, podemos ver como o espaço se fragmenta (a cena acontecendo em vários ambientes de um hospital desativado); se espalha em diferentes lugares (cenas performáticas acontecendo em díspares sítios do mundo, conectadas simultaneamente por câmeras), ou se torna simbólico (uma Igreja passa a ser o recinto onde um espetáculo questiona a existência humana e sua relação com Deus). Da mesma maneira que o espaço, o Tempo se torna múltiplo, adquirindo diversos planos paralelos (no caso de várias cenas acontecendo ao mesmo tempo); se comprime mais do que nunca (o tempo dramático sempre foi uma síntese do real); ou se expande, tornando-se simbólico e desligando-se do real (criando outro tempo imaginário, vivenciado só na própria cena). b) Estrutura do texto Como mencionamos, Dramaturgia deixa de se restringir à escrita de um texto literário com uma determinada construção de convenções. A própria noção de texto cênico se amplia; e nesse patamar o elemento literário é mais um ingrediente entre os outros que constituiriam o real “texto da cena”. Mesmo assim, o próprio esqueleto literário do texto dramático se modifica com renovações de autores que questionam as estruturas e escrevem peças que dêem um novo olhar aos elementos dramatúrgicos. Assim, o texto ainda se estrutura por falas compostas em formas de diálogo ou monólogo. No entanto, aparecem formas híbridas com “diálogos – monólogos” onde dificilmente distinguimos um do outro (Heiner Müller, Bernard-Marie Koltés). O diálogo contemporâneo se torna também mais lacônico, minimalista e ambíguo (David Mamet, Sarah Kane). O discurso não parece estar mais nas próprias falas, e sim sob elas (Harold Pinter, Michel Vinaver). O silêncio (vindo da dramaturgia Beckettiana) se instala no texto. Mas há outra consciência, um conceito atingido e recuperado na contemporaneidade que dá outra importância à escrita dramática: Texto é Ação, mas não necessariamente fala. É a partir dessa 29


percepção que uma parte do texto, antes muito relegada, começa a ter uma presença fundamental: as Rubricas. É com elas que se fortalece a imagem no texto e também, o que é muito importante, se fortalece a ação física ou a ação cênica, sem precisar da fala para existir. A partir de então, a dramaturgia consegue instaurar um texto em que a composição da sua matéria-prima, as ações, não se sustente unicamente nas falas. É importante ressaltar que, nesse sentido, o texto dramático constrói ações a serem comunicadas; isso termina sendo o fundamental. Se elas são transmitidas através de falas ou rubricas, portanto, terminaria sendo uma questão secundária. c) O Personagem Em muitos casos o personagem perde a sua unidade (ou construção unilateral) ao longo da peça. Há circunstâncias em que aparece a desconstrução da sua identidade. Relacionado ao tema anterior (sobre o texto), percebemos que o personagem existe por estar presente, ou simplesmente por agir em cena. Ou seja, o desenvolvimento de sua ação não se determina mais pela existência ou não de falas adjudicadas a ele. De outro lado, às vezes, o ator traz só fragmentos de (uma ou várias) figuras dramáticas. O personagem pode se quebrar (na sua fragmentação), mostrando a Persona (ou o próprio ator) que a encarna; intensificando assim o jogo meta-teatral. Aparece também o fortalecimento do coro (esse antigo e importante personagem grupal).

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Micro-ações

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Sabemos que não há mais uma dramaturgia e sim um cúmulo de “dramaturgias”; linhas de linguagens cênicas em rumos diferentes e paralelos que vão se encontrando, hibridizando. Nesse trajeto do contemporâneo, não podemos mais balizar o drama cênico experimentado unicamente a partir de uma grande ação dramática. Se esta perde sua unidade norteadora, isso não quer dizer que a ação desaparece. Gerar uma dramaturgia e um espetáculo cênico sustentado numa única e grande ação dramática é uma iniciativa que ainda sustenta sua validade. Porém, não é mais a única opção. Como mencionamos, existe um processo de fragmentação, iniciado por Brecht, com a dramaturgia épica, que propõe a coexistência de micro-ações dramáticas que, na sua junção, mesmo não estando relacionadas, geram outra coesão dramática.

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Mas essa liberdade atingida talvez não seja mais suficiente. No confuso momento atual, depois da primeira década do século XXI, na era da multi-imagem, da hiper informação, das rápidas novas tecnologias e profusão da realidade virtual, talvez seja necessário procurar outro tipo de unidade no drama. Na fumaça dessa multiplicidade cultural dispersa, se afirma cada vez mais a necessidade de outra unidade dramática, talvez menos evidente e mais subliminar: a unidade do conteúdo. Aquilo que é e precisa ser dito, mesmo que por meio de ações diversas e estéticas múltiplas numa mesma criação. Assim, como já mencionou Renata Pallottini: [...] o ponto de partida para a feitura de um bom texto dramático é a existência de um conteúdo a ser expressado, veiculado. [...] Esse conteúdo, sua existência e o fato de ser um são as condições que garantem a unidade do trabalho, a única unidade, dentre as que Aristóteles apontou, que verdadeiramente vale a pena (2005: 15-6). Pensando no atual estágio de nossa contemporaneidade, cabe finalmente refletir com atenção a partir das palavras finais de Olga Consentino, e Pablo Zunino, quando fazem um balanço depois de analisar as diferentes manifestações terminado o século XX: Primeiro foi a crise da palavra, que já leva várias décadas. Depois veio o relevo por conta da imagem, que também parece estar esgotando seu deslumbrante reinado. Os espetáculos-eventos encenados para impressionar com o fascínio dos estímulos sensoriais percorreram um longo caminho desde as performances e os happenings dos sessenta até as instalações com profusão de recursos eletrônicos de última geração. No entanto, se é aceito que a saturação insensibiliza e adormece a capacidade de percepção, há de se concluir que não há forma, cores, luzes, sons ou texturas cênicas das quais não tenha se abusado até a banalização. Não parece ousado, então, imaginar que as iminentes buscas do teatro se encaminhem em direção daquilo que a imagem vem furtando ao sentido. Talvez, então, estejamos nos umbrais de alguma nudez inaugural, capaz de sugerir, precisamente, aquilo que tanta aparência esconde.” (CONSENTINO/ZUNINO, 2001: 166)5

5 A tradução é nossa.

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Bibliografia ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A Poética Clássica. Sao Paulo: Cultrix, 1992. CONSENTINO, Olga; ZUNINO, Pablo. Teatro del siglo XX – El cansancio de las leyendas. Buenos Aires: Editorial Paidós, 2001. ESSLIN, Martin. O Teatro do Absurdo. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968. ______. Uma anatomia do drama. Rio de Janiero: Zahar Editores, 1972 FÉRAL, Josette. Teatro, teoria y práctica: mas allá de las fronteras. Buenos Aires: Editorial Galerna, 2004. LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-Dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007. MAGALDI, Sábato. Iniciação ao teatro. São Paulo: Ática, 2002. PALLOTTINI, Renata. O que é dramaturgia. São Paulo: Brasiliense, 2005. PAVIS, Patrice. A encenação contemporânea. São Paulo: Perspectiva, 2010. ______. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2003. RYNGAERT, Jean-Pierre. Introdução à análise do teatro. São Paulo: Martins Fontes, 194 p., 1996. ______. Ler o Teatro Contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 1998. SARRAZAC, Jean – Pierre. O futuro do Drama. Porto: Campo das Letras, 2002.

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VASCONCELLOS, Luiz Paulo. Dicionário do Teatro. São Paulo: LP&M Editores, 1987.

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O Gesto, O Gestual, O Gestualizável... Experiências Estético-Sociais Alexandre Mate6 Não faças versos sobre acontecimentos. Não há criação nem morte perante a poesia. Diante dela, a vida é um sol estático, não aquece nem ilumina. As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam. Não faças poesia com o corpo, esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

Foto arquivo do grupo :: Café Teatral com Alexandre Mate / fevereiro2011

A procura da poesia. Carlos Drummond de Andrade.

Referindo-se ao prédio articulado à linguagem estética, teatro significa lugar de onde se vê, miradouro. Primordialmente, quando o teatro foi batizado com este nome (Antiguidade clássica grega), o objetivo do Estado, ao criar o espaço e ao definir o que deveria ser escrito (os textos teatrais participavam de festivais), centrava-se, sobretudo, na composição de assunto, cuja história oficial precisava ser preservada. Assim, pode-se afirmar, a despeito da qualidade das obras do período que chegaram até nós, que o teatro se caracterizaria, também, em um miradouro de preservação da história oficial. Expulsos da ágora, e proibidos de apresentar suas obras nos espaços oficiais, tanto por sua irreverência quanto pelos seus “textos” (ou por aquilo que diziam) não se alinhar à história oficial, os artistas populares encontraram na deambulação e na errância o único modo de conseguirem sobreviver e de se dedicar à sua arte. Os gregos não documentaram a produção popular, entretanto, e na medida em que houve muito trânsito entre gregos e romanos, a produção dos últimos serve de baliza e referencia ao que se produziu na Grécia. Os chamados flíacos ou mimos faziam comédia irreverente, rindo de modo iconoclasta (destruidor dos mitos e da história oficial) e, principalmente, dos mandantes do poder da vez. 6 Professor do Instituto de Artes da Unesp, pesquisador e militante do teatro de rua.

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De origem latina, espetáculo significa o que chama atenção, atrai e prende o olhar; assim, essa ação ocorre apenas quando o espectador assiste a obra, pressupondo, portanto, relação, troca. O espetáculo é um fenômeno estético-social cuja tríade essencial compreende: ator, público e texto. Durante o espetáculo, ator e público promovem uma relação fundamentada em jogo de decifração de símbolos, tanto enigmáticos (mais difíceis de serem traduzidos) e de alegorias (símbolos facilmente traduzíveis). A troca entre ambos (atores e público) ocorre quando o texto que intermedia essa relação, na condição de um “tecido simbólico”, transforma-se em gesto. Na condição de uma fratura do cotidiano, o espetáculo, que acontece no tempo e no espaço, compreende um grande arcabouço de gestualização estético-social. O gestual passa pelo corpo do ator que, na condição de ser social, irradia complexa e múltipla gama simbológica. O poeta francês Charles Baudelaire afirma, em um de seus textos, que a arte é uma “floresta de símbolos”, e que toda floresta é inexpugnável (na condição de organismo vivo e premida por mistérios ela não se dá a conhecer...).

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Normalmente, em nosso cotidiano, não prestamos tanta atenção aos gestos que fazemos, mas todo ser social incorpora ao seu corpo atitudes gestualizáveis - herdadas do contexto histórico-social - com a incumbência de provocar, de emocionar, de estupidificar, de enviar sinais, de promover uma troca... Nas artes da representação, o corpo potencializa sua capacidade expressiva, redimensionando-se a partir de gestualização totalmente elaborada. Dentre gama infinda, e em acordo com o gênero e a recepção, tudo, na condição de índice, passa a ser passível de ser interpretado... Aliás, a palavra intérprete e interpretação têm a junção (do latim) de inter (entre) + pretium (preço) = portanto, espécie de corretor, aquele que trata e atribui um preço, um valor a... Claro, o conceito ganha, ao longo da história outras conotações...

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O gesto corresponde a uma determinada atitude do corpo (que incorpora as determinações histórico-sociais, em seu sentido estrito e restrito). A literatura teatral, cuja essência pressupõe a organização de linguagem mediada por palavras escritas, em teatro, efetiva-se por meio de símbolos sonoros e duplamente gestuais (intenção por meio da qual a palavra se projeta) e atitude do corpo; então, o texto falado corresponde a uma linguagem corpóreo-sonora, cuja existência é traduzida gestualmente.

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“Vestido” ou não com a personagem, de modo a reproduzi-la crítica ou a decalcá-la verossimilhantemente (colocar-se em situação, como se fosse a personagem, apresentar uma cópia muito e tão próxima do original), o teatro é um jogo, fundamentado no ludibrio por meio do qual se pode enganar ou explicitar as regras e evidências ao espectador: tudo depende da parceria que se queira estabelecer. De qualquer modo, Bertolt Brecht afirma ser preciso mostrar a personagem, na condição de um experimento de natureza social! Ainda para o pensador e dramaturgo alemão, a exteriorização do gesto é, na maior parte das vezes, contraditória e complexa e dificilmente transmitida por uma única palavra. Insiste em que é salutaríssimo desconfiar de tudo o que pensamos e fazemos...


Em português, a manifestação corporal apreensível e materializada pela fala; pelo movimento – em si e no espaço (sentido estrito e restrito); por índices visuais (tatuagens...) é apresentada por uma única palavra. Em alemão, a múltipla e complexa atitude do ser social tornar-se um tecido simbólico é apresentada pelas palavras-conceito: gestisch corresponde a linguagem gestual; gesten corresponde a conjunto de manifestações corporais (um dançarino, uma multidão); gestikulieren corresponde aos gestos que acompanham a fala, quase sem intenção fática, espécie de movimento reflexo; gestik corresponde aos gestos que acompanham a fala ou não, com função fática, expressiva (alegorias). Por conta de Bertolt Brecht fazer thäeter (linguagem artística contrária ao, por ele chamado, teatro culinário), o gesto social caracteriza-se no atributo social e no conceito central de sua estética. Desse modo, ao refuncionalizar a palavra latina gestus, e por estar convencido de que por meio do gesto o ator, por inteiro se faria social, Brecht cria um teatro épico-dialético, também, na dimensão gestual. Gerd Bornheim afirma que gestus pressupõe: “[...] a expressão mímica e gestual das relações sociais, nas quais os homens de uma determinada época se relacionam” (1992: 281). Fredric Jamerson (1999) afirma, com relação ao conceito ser importante destacar que no trabalho do ator, o gestus corresponde ao resultado de um infindável exercício e experimentação de múltiplas hesitações até uma escolha do modo de mostrá-lo. Assim, em O método Brecht: “Não é exatamente indecibilidade esta hesitação interpretativa: ela não resvala para o informe; por outro lado, ela incita o espectador a reelaborar seus pensamentos e testá-los contra o evento inicial ou o acontecimento que lhes serviu de pretexto” (1999: 110). Ainda com Jameson, depois de substancial reflexão acerca da etimologia e do conceito de gestus, o conceito assim aparece: [...] gestus é o operador de um efeito de estranhamento no sentido próprio; e em particular que o estranhamento deriva da superposição de cada um destes significados sobre os demais, mostrando-nos, por exemplo, como um movimento involuntário de mão poderia, em certas circunstâncias [...] contar como um fatídico ato histórico, com conseqüências sérias e irreversíveis. [...] é uma superposição e um estranhamento que não apenas nos faz entender o elemento narrativo específico a uma luz nova e transformadora, mas também muda nossas ideias sobre o que é um simples gesto físico e sobre o que ao mesmo tempo conta como um acontecimento histórico (1999: 139). Para finalizar, na dimensão épico-dialética, o gestus, ao dividir a apreensão do espectador, provoca um conjunto de reflexões. Vê-se algo que, ao expressar variadas e contraditórias conotações, induz ao cotejamento, à contraposição de leituras. O espectador afasta-se do que vê para aproximar-se da vida que vive e, a partir daí, voltar à obra. Em movimento dialético, pode-se ver além do aparentemente apreensível.

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Bibliografia BORNHEIM, Gerd. Brecht: a estética do teatro. Rio de Janeiro: Graal, 1992. BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro. 2ª ed. Rio de Janeiro, 2005.

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JAMERSON, Fredric. O método Brecht. Petrópolis: Vozes, 1999.

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Foto arquivo do grupo :: apresentação Bang Bang a Pastelana da Trupe Irmãos Atada / Re-Praça / Vila Mara / março2011

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Polissemia

A Construção do Eu e do Nós ou da Geração de Afetos Edson Paulo Souza7 As coisas ficarão melhores no dia em que o Produto Interno Bruto der lugar ao índice de Felicidade Geral da Nação. Então, a acumulação privada de riquezas cederá vez à disseminação coletiva de direitos. Filha da justiça, a paz brotará. E esses tempos em que vivemos serão evocados como um passado tenebroso, em que nenhum animal era visto em público padecendo fome, exceto o bicho homem e o bicho mulher, o que provocou horror em Manuel Bandeira.

Frei Betto Quando idealizamos uma circulação pela zona leste com o nosso trabalho buscamos estabelecer uma relação direta com o nosso público. Percebemos que essa relação não se dava somente durante o espetáculo, mas sim no decorrer de todo o trabalho de montagem, de preparação dos atores e na desmontagem. O fato de estarmos nas ruas e praças de uma região em que a população não tem acesso aos bens culturais ou se sentem apartados de qualquer programação ocorrida na cidade, nos coloca em uma posição na qual não somos somente atores, mas agentes formadores de uma reflexão e propositores de uma atividade diferenciada do cotidiano de muito dos moradores da região. 7 Ator do Buraco d`Oráculo.

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Por conta dessa proposição de estarmos nas ruas realizando um diálogo direto é que as relações tornam-se afetuosas. A relação constante dada durante a presença do grupo no local transforma-se em diálogos, em que são colocados relatos de vida, conversa informais e até mesmo apontamentos sobre a passagem do grupo. Passamos a ficar atentos a esses relatos e a registrá-los, o que resultou na criação do espetáculo Ser TÃO Ser – narrativas da outra margem em 2009. Esses relatos formam um vasto material de trabalho, algo que não se esgotou com o espetáculo e que nos deu o tema para as nossas ações no projeto Narrativas de Trabalho, no qual abordamos a precarização do trabalho. A maioria daqueles que se aproximaram e nos contaram suas histórias, tinham como meta a busca de um meio de sobrevivência. Deixaram sua terra natal para ganhar a vida em uma terra “estrangeira”. Trocaram sua força de trabalho dentro de fábricas e foram engolidos por uma cidade que os jogou a suas margens. Identificamo-nos com esses relatos porque também somos frutos desse processo. A nossa história pessoal e a história de construção do grupo, tem muito do que ouvimos. Também trocamos nosso chão ou somos filhos daqueles que trocaram suas terras por condições melhores de sobrevivência. Entendemos que o nosso trabalho não é entretenimento, afinal nos colocamos a serviço de uma transformação. Mesmo que ela seja de um sujeito e não de todo um seguimento da sociedade. Mas acreditamos que a maneira que trabalhamos possibilitam transformações, e que essas transformações não são momentâneas, elas ficam enraizadas naqueles que vivenciaram uma troca efetiva de experiência. Essas transformações também estão em nós mesmos, somos modificados a cada encontro, a cada resposta que nos dada, a cada relato escutado.

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Possivelmente não veremos o PIB ser trocado pela “felicidade geral da nação”, nem o trabalho forçado pela satisfação da vida cotidiana. Mas lutaremos com nossa arte para que a vida seja menos dura e para que o homem lembre-se que, por meio de sua história, ele é homem.

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Foto de Romison Paulo :: apresentação Ser Tão Ser / Re-Praça / maio2011

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Foto Arquivo do Grupo :: Café Teatral com Luis Carlos Moreira / setembro2010

Uma Narrativa sobre nosso Trabalho Selma Pavanelli8

A palavra “trabalho” tem sua origem no vocábulo latino “TRIPALIU” - denominação de um instrumento de tortura formado por três (tri) paus (paliu). Desse modo, originalmente, “trabalhar” significa ser torturado no tripaliu. Quem eram os torturados? Os escravos e os pobres que não podiam pagar os impostos. Assim, quem “trabalhava”, naquele tempo, eram as pessoas destituídas de posses. A partir daí, essa idéia de trabalhar como ser torturado passou a dar entendimento não só ao fato de tortura em si, mas também, por extensão, às atividades físicas produtivas realizadas pelos trabalhadores em geral: camponeses, artesãos, agricultores, pedreiros etc. Tal sentido foi de uso comum na Antigüidade e, com esse significado, atravessou quase toda a Idade Média. Só no século XIV começou a ter o sentido genérico que hoje lhe atribuímos, qual seja, o de “aplicação das forças e faculdades (talentos, habilidades) humanas para alcançar um determinado fim”. Com a especialização das atividades humanas, imposta pela evolução cultural (especialmente a Revolução Industrial) da humanidade, a palavra trabalho têm hoje uma série de diferentes significados, de tal modo que o verbete, no Dicionário do “Aurélio”, lhe dedica vinte acepções básicas e diversas.” Fonte: www.portaldascuriosidades.com/forum/index php?topic=43442.0 Consultado em agosto de 2010.

8 Atriz do Buraco d`Oráculo.

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O projeto Narrativas de Trabalho veio como conseqüência de nossas atividades, de nossas pesquisas, de nossas conversas, discussões, de nossos cafés teatrais, de nossas apresentações, do contato com o público e com a comunidade, de nossas inquietações... O projeto anterior, que desembocou no espetáculo Ser TÂO Ser – narrativas da outra margem, mergulhamos fundo na nossa própria identidade, bem como em algumas comunidades na qual atuamos, onde encontramos uma luta em comum: a luta de todo trabalhador por melhores condições de moradia, de trabalho, de saúde, de educação etc. Durante o projeto Narrativas de Trabalho passamos por alguns processos de pesquisa teórica, de criação e de preparação vocal, corporal e musical, que apresento rapidamente. Pesquisa teórica: Criação de apostila com alguns textos de diversos autores, debates, seminários, filmes, entre outros. Criação: utilizando o tema precarização do trabalho foram criadas algumas intervenções, como A lavadeira, Trem-Fome, Vende-se um Trabalhador; criamos também algumas músicas, das quais destacamos A Lavadeira, Fitinha do Bonfim e Samba da Preservação. Preparação vocal, a voz para a rua, com a Melissa Maranhão. Estudamos formas de utilizar a ressonância, fundo de voz, projeção, nuances durante a narração e o canto, bem como a leitura de partitura etc., pensando não só no barulho que está cada vez maior nas ruas e praças de todas as cidades, mas também na falta de hábito da grande maioria da população, entender que a arte que fazemos é para todos.

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Percussão: O ritmo, o pulso que cria a ambientação, o clima para o que vamos falar. Celso Nascimento nos trouxe a descoberta do ritmo, do pulso coletivo, por meio de exercícios, da leitura rítmica de partitura, da composição musical; demonstrou também a importância da escuta em grupo, com o público e na vida, em nosso dia a dia. Como escutamos pouco! Ainda bem que a escuta pode ser aprendida.

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Preparação Corporal: A Elizete Gomes chegou para complementar, fechar o trio: voz, ritmo e corpo. Ela veio para suprir uma grande necessidade do grupo em ter um corpo mais presente, relaxado, mas com prontidão, sem os vícios do dia a dia. De ter um corpo que não seja engolido na rua. Que seja forte quando sozinho e um só corpo quando em grupo.

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Nesse projeto o grupo trabalhou muito a parte prática, pois se estamos nos propondo a dizer coisas que julgamos importantes, que fazem refletir, duvidar, discordar, precisamos falar de forma clara e firme, de maneira que o corpo e a voz se somem ao que estamos dizendo. Contamos ainda com a participação de parceiros, mestres, pesquisadores, grupos etc., nos Cafés Teatrais e tantos outros momentos de discussões e trocas, que contribuiu com a forma e o conteúdo de nosso trabalho, com nosso modo de nos organizarmos em grupo, em coletivo. A luta de classe é uma luta diária, desigual e perversa. Realizar criações tomando como tema o trabalho é muito complicado, pois a facilidade em deixar o trabalhador esteriotipado é muito grande. Primeiro, é necessário entender quem é a classe trabalhadora, que não diz respeito apenas a um cargo que se ocupa; segundo, cada vez mais, do trabalho braçal ao intelectual, todos têm sido massacrados, explorados, submetidos às exigências do capital, não restando tempo para mais nada, a não ser cumprir com “eficiência” e “dedicação” o que lhe é exigido e ainda é preciso agradecer por ter um “emprego”. A maior angustia que tive durante esse projeto foi (e ainda é) como encontrar uma forma de esclarecer o trabalhador acerca da exploração, dessa perversidade, dessa tal de mais valia... O sistema funciona de tal forma, que o trabalhador é levado a aceitar as condições impostas por questões mínimas de sobrevivência. A cada trabalho, a cada projeto, a cada apresentação, fica mais forte o nosso posicionamento político, é um caminho sem volta. Não sabemos como mudar esse sistema perverso, mas acreditamos que é possível, pois já nos organizamos de uma forma diferente, ainda que não seja ideal, afinal querendo ou não, vivemos dentro desse maldito sistema. Por fim, acredito que a arte é tão necessária quanto a saúde, a moradia e a educação. É uma necessidade básica, que auxilia na boa saúde física, mental e emocional de todos. Mas, o mais importante, é que pode informar, provocar e transformar o cidadão.

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Em Busca de um Corpo Acreditável Lucélia Coelho9

Quando iniciamos o projeto Narrativas de Trabalho, tínhamos por principio, criar por meio das trocas artísticas com os grupos convidados, um repertório físico, ao qual pudéssemos recorrer para nossos trabalhos futuros. Esse processo não se mostrou tão simples assim. Pois não bastava ter o repertório, mas saber o que fazer com ele. Como transformar jogos, brincadeiras em um sistema codificado do movimento do ator capaz de fazer perdurar o trabalho? Essa questão perpassa todo o projeto e vai além dele. Nossos primeiros convidados dentro do projeto foram Junio Santos e Ray Lima e sua proposta de Cenopoesia, ambos do Movimento Escambo Livre de Rua, presente no Ceará, Rio Grande do Norte e outros Estados. Junio nos trouxe o universo da brincadeira de roda, sons, imagens e movimento. Revisitamos a nós mesmos através desta vivência corporal, sensorial, afetiva e oral. Ray Lima, por sua vez, trouxe a palavra doce, afiada, transpondo o discurso e criando poesia: MASSA MASSA DE MANOBRA MASSA DE MODELAR MASSACRE (LIMA, Ray. Lâminas. 2009: 54)

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O Escambo traz uma liberdade que não estamos acostumados, uma liberdade que só foi conquistada com muita disciplina, apesar de parecer contraditório, liberdade não quer dizer libertinagem. Improvisar não quer dizer não saber o que fazer, mas manipular um repertório.

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Após a passagem do Escambo o projeto abre as portas para mais um grupo, o Oigalê do Rio Grande do Sul, 9 Atriz do Buraco d`Oráculo.

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representado na figura do diretor e ator Hamilton Leite. Hamilton trouxe um trabalho com precisão, atenção, um corpo decidido. Utilizando-se de jogos teatrais, fazendo uma ponte entre o jogo e situações possíveis na rua como momentos de caos que precisam ser resolvidos, somado a visão espacial da roda e consciência da ação. Estes exercícios são fundamentais para o trabalho em grupo, para equacionar a energia, perceber o nível de atenção no outro, jogar junto. Um exemplo de exercício proposto: Jogo: Pessoa no centro da roda joga a bola para a periferia e começa contagem. Após três tempos, nunca antes e nem depois, alguém diz fui e troca de lugar com aquele que está no centro. Desafio: não deixar a bola cair, manter o ritmo. Após um tempo, trocar de lugar sem dizer o fui. Dificuldades: como entrar e sair da roda; o como receber e mandar a bola influencia no tempo. Relação com a rua: visão espacial; onde jogar a bola; precisão e limpeza de movimentos. Encerrada a participação dos grupos convidados nesta primeira fase do projeto, ficamos com a missão de não só colocar este repertório em prática, como ampliar e desenvolver um próprio, criado pelo coletivo, que responda as exigências e limitações físicas apresentadas por este grupo. E um dos caminhos encontrados foi a integração cada vez maior do corpo, com a voz e com o tocar instrumentos musicais.

Nesse caminho a partir das aulas de voz, a Melissa trouxe a proposta da mimesis corpórea do trabalhador. Tínhamos como proposta, assistir a vídeos de trabalhadores – masculinos para os homens e femininos para as mulheres – durante o seu trabalho cantando. Como era o corpo deste sujeito? Quais partes relaxavam, retraiam? Devíamos “imitar” o mais perfeito que pudéssemos. Em um segundo momento, apresentávamos estas figuras para ela. Este estudo nos levou há uma maior percepção do corpo e sua relação com a voz. O canto/afinação está relacionado a espaços que abrimos ou não abrimos em nosso corpo. Por isso o aquecimento vocal não deve ser separado de um aquecimento corporal. Na boca, no rosto, tem músculos relacionados à voz que, como qualquer músculo, devem ser trabalhados. Foi interessante ver o resultado deste trabalho e perceber a importância da consciência corporal neste processo. 43


O treinamento corporal também trouxe avanços na música com o trabalho de percussão do Celso Nascimento, pois voltamos a utilizar o corpo mais ativamente com exercícios de percussão, de independência rítmica e leituras de partitura que contribuiu para a retomada deste corpo percussivo. Ao iniciarmos a segunda fase do projeto, tivemos a oportunidade de somar a este grupo de professores, Elizete Gomes, atriz e professora corporal que contribuiu para um trabalho mais especifico e continuo do corpo, o que nos ajudou a resolver questões no qual ainda patinávamos: Como conseguir um corpo mais acreditável? Como movimentar-se de forma crível? Como ficar imóvel? Através de um trabalho pautado, principalmente, no domínio do movimento, presente na obra de Rudolf Laban, Elizete trouxe contribuições visíveis para nossos espetáculos. Repensamos cenas a partir de conceitos como: peso (subdividido em leve, firme), tempo e duração da ação (que também pode ser contínuo-súbito; direto-flexível), buscando, assim, uma precisão nos gestos e lutando para abandonar nossos próprios automatismos. Claro que não resolvemos todas as questões apresentadas, mais estamos trilhando um caminho mais consciente. O treinamento pessoal tem ganhado mais força nesta reta final do projeto. O treinamento pessoal não quer dizer íntimo e individual, mas sim elaborado autonomamente; ele se faz necessário para que o coletivo avance. A partir do projeto Narrativas do Trabalho, encontramos um caminho para desenvolvermos nossa própria técnica corporal para a construção de um corpo acreditável, dilatado e comunicante, que vem sendo construído por meio das trocas artísticas entre os grupos, combinando corpo-canto-música-dança.

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Essa pesquisa não se iniciou neste projeto, mas alargou-se nele. No entanto, a mesma não se encerra nele, ao contrário, abre-se mais uma janela para um novo recomeçar.

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Foto arquivo do Grupo :: Treinamento Buraco d`Oráculo e Trupe Arruacirco

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Que Teatro Buscamos? Johnny John10

Queremos apenas viver de teatro ou lutamos contra o sistema por meio de nossa arte? Entendendo como somos transformados e como transformamos o outro, passamos a querer dizer coisas importantes com o nosso teatro. Assim, a teoria pode nos acompanhar de duas formas: no entendimento do mundo e do teatro que praticamos. Mas só caminharemos se soubermos responder que teatro buscamos. Nessa busca as descobertas são infindas. Narro a seguir parte da experiência vivenciada no projeto Narrativas de Trabalho. A arte de narrar não está em vias de extinção e as pessoas, como fonte de saber, ainda são escutadas por outras pessoas. E aí, a mão, de várias maneiras, ainda intervém com seus gestos, trazendo traços de seu trabalho, dando base ao que é contado, ao que é narrado. A oralidade está viva e mais forte do que nunca! Um exemplo é a Cenopoesia. Com a presença, em nosso projeto, de Junio Santos e Ray Lima, pudemos compreender mais do que se trata a Cenopoesia. A mesma, foi vivenciada por uma semana na Casa d`Oráculo, trata-se de uma mistura de poesia – com rimas afiadas –,teatro e cantoria. Na vivência, brincamos, improvisamos, criamos desafios de repente e após muita experimentação, os dois perguntavam: “O que é Cenopoesia? Podem falar, pois não vamos dar nada pronto. Vamos construir juntos a nossa Cenopoesia de cada dia”. 10 Ator do Buraco d`Oráculo.

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O que é a Cenopoesia? Digo que é a força e a beleza da poesia que estar dentro de mim, levada pelo meu corpo e com destino a outros corpos; rompe com a fala do que conhecemos, mas vai além de uma interpretação; o meu repertório pessoal, que eu não sabia que existia aqui dentro, tornado intervenção e que fora estimulado por uma simples pergunta: o que tem dentro de você? Eu tenho poemas, cantorias, um corpo que dança, um toque de zabumba, saberes... E tudo isso, na Cenopoesia, torna-se coletivo. Tudo que são deles, tudo que é seu, é meu também. Como se dar esse processo? Vejo como posso potencializar a expressividade coletiva com aquilo que sei e entro na roda. O que é que eu tenho que dialoga com isso que ele está falando, cantando, dançando? O que é que eu tenho para compartilhar? Um fragmento de um texto, para que o mundo saiba? O coletivo remexe, sacode isso para fora, repetindo, cantando, dançando, tocando, extrapolando a roda... e o público vai se relacionando com o espaço, com os artistas, intervindo também no que é dito e mostrado. Misturamo-nos, somos todos um, público e artistas e não se sabe quem é quem. Por que escolhi dizer isso e não outra coisa? O que é estar ali e não em outro lugar? Um turbilhão de perguntas e de respostas dadas na hora, a partir de meu repertório. Quem deu esse nó, não soube dar. Esse nó está dado, eu desato já. Ôh! abre logo essa rua, deixa o artista trabalhar ou brincar!

O repertório vai nos conduzindo a todos os assuntos e o que é do outro passa a ser nosso. Para se ter uma ideia, compartilho o texto abaixo, uma mistura de poemas, surgido dessas experiências (coloquem a imaginação para funcionar e saber como se daria tudo isso misturado a dança dos instrumentos e sonoridade dos corpos em movimento):

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Fulano saiu de casa quando nem bem amanhecia Cheirava sabão de coco morava no morro torto E tinha quatro cinco seis filhos E tinha uma esposa cujo nome era Sofia Que lava Que cozinha Que ouvia tudo que fulano dizia Morena eu não sei se vale a pena Trabalhar neste sistema Tomar banho em Ipanema e adiar o carnaval Morreu fulano de tal na porta da multinacional Onde havia uma placa dizendo Não há vagas Não persista Não há vagas Não insista

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Aqui no submundo há desemprego, assim como qualquer outro mundo, assim como qualquer submundo. As pessoas falam em dinheiro também, mesmo ele sendo em proporção inferior; as pessoas dão gargalhadas e não um simples sorriso, que nem é amarelo, é branco, desbotado, pálido de tristeza.

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E aquele homem ali escutava um bom e velho samba regravado por uma cantora dos anos 1970. Fumava um cigarro atrás do outro, sem tirar a caneta da mão, pois suas cartas saiam a cada momento, tendo como destinatário a ciência, o homem e principalmente, uma empresa. Certo dia, na primeira luta diária, escutou ruído de carros com motores enferrujados, gritos humanos, parecendo que naquele exato momento acontecia um assassinato. Retirou as roupas e nu ficou. Saiu pelas ruas do submundo bradando certezas e fragilidades. Morreu no primeiro não há vagas, que uma empresa lhe deu. Morreu o homem do submundo, como tantas e tantas vezes. Ter a liberdade de criar uma cena sozinho ou com os companheiros de grupo, sem que a mesma tenha sido previamente ensaiada11 ou mesmo combinada, usar trechos de um poema ou mesmo recriá-lo em um diálogo cênico ou, ainda, musicá-lo no jogo com o outro, isso é Cenopoesia.

Foto arquivo do Grupo :: Intervenção cenopoética Vila Mara / setembro 2010

11 Isso não significa que, enquanto repertório, a mesma não tenha sido criada e recriada em outros momentos.

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No Contra Tempo do Capital Adailtom Alves Teixeira12

Quando se está aprendendo música, sobretudo percussão, tocar um instrumento no contra tempo é sempre uma dificuldade, mas necessário para o bom desenvolvimento musical, afinal a música, entre outras coisas, é composta de tempos e contratempos. Em sendo a música um elemento essencial no teatro, ainda mais na rua, onde funciona como uma força agregadora das pessoas em geral (público e atores), faz-se necessário o aprendizado musical, de maneira a enriquecer o teatro que se faz naquele espaço. Os integrantes do Buraco d`Oráculo sabem da importância da música para o seu teatro, sabem também de suas limitações, uns mais outros menos, todos têm suas dificuldades. Por isso mesmo, temos priorizado em nossos projetos a aprendizagem desse elemento fundamental para o teatro de rua, de maneira a termos um ganho estético em nossos espetáculos. Mas o tempo do capital é veloz, é fulminante e não perdoa. Tudo precisa ser rápido, imediato. No entanto, todos que estão familiarizados com os processos artísticos sabem que, nessa área, o processo precisa ser mais lento, na contramarcha. A aprendizagem e o processo de desenvolvimento artístico ocorrem no contra tempo do capital. É dessa maneira que um programa público como o Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo funciona como uma cunha que abre uma fenda e onde se cria outro tempo-espaço, permitindo o contra tempo do capital. Mesmo assim existe certa cegueira13 por parte de muitas autoridades em reconhecer as benesses do Programa. Mas ao final de um projeto financiado pelo Fomento todos ganham: o grupo teatral, que cresce artisticamente; a população, que recebe melhores espetáculos (nada mais justo, já que se trata de dinheiro de impostos); ganha a cidade como um todo, por ter um Programa Público que permite que o teatro esteja em diversos lugares da mesma.

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No projeto Narrativas de Trabalho do Buraco d`Oráculo, realizado graças ao Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, os integrantes do Grupo se qualificaram musicalmente – todos sabem que ainda existe um longo caminho a percorrer – e o resultado dessa aprendizagem começa a aparecer nos trabalhos

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12 Ator do Buraco d`Oráculo. 13 Claro que a cegueira é, da maioria dos casos, plantada, de maneira que se finge não vê aquilo que irradia luminosidade.

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já existentes, mas sobretudo aparecerá nos trabalhos futuros, pois nesse projeto não houve criação de espetáculo, apenas (embora não seja pouco) intervenções, performances, pequenas cenas, todas experimentadas em salas e a maioria levadas à rua. Ou seja, o projeto nos permitiu ousar e errar (e a arte precisa do espaço do erro), o que nos leva de volta ao contra tempo do capital. Aprender, ousar e errar só é possível em outro tempo, diferente daquele que nos é imposto. No tempo do capital não há espaço para o erro, pois quem erra no capitalismo é sempre um fracassado. O ensino musical do projeto Narrativas de Trabalho foi realizado a quatro mãos por Celso Nascimento e Melissa Maranhão, o primeiro responsável pela percussão, a segunda pelo canto. Ambos nos acompanham na realização de dois projetos. No entanto, no primeiro, o de dez anos de Grupo, eles vieram muito dentro da perspectiva de resolver problemas cênicos, já que havia uma montagem em preparação, já nesse, vieram para qualificar. O que é uma grande diferença, pois não se trata mais de simples execução, mas de consciência dos aspectos técnicos em relação aos instrumentos percussivos e do canto.

Foto arquivo do grupo :: Intervenção Vide a Bula / Vila Mara / agosto 2010

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Muito mais que Narrativas... Celso Nascimento14

Seria um grupo de teatro? Seria fazer um trabalho musical? Seria ensinar? Seria aprender? Seria trocar? Seria tocar? Seria exercer? Seria compartilhar? Seria militância? Seria conviver? Seria, seria, seria, seria... Inúmeras perguntas, como estas elencadas acima, me vieram a cabeça durante todo esse período que comecei a conviver com os projetos desenvolvidos pelo Buraco d`Oráculo. Sim, conviver. Pois muito mais que um grupo de teatro o Buraco é um projeto de vida para o seu núcleo básico e nesta parceria só o exercício do ofício não é suficiente para dar sustentação ao trabalho, há que se ter muita cumplicidade também. Se em princípio o foco dos nossos encontros era uma orientação em percussão, aos poucos foram agregando outros contornos, como criação, atuação artística interna e externa, parceria de produções, compartilhamento de repertórios etc. Sempre cercado de muita camaradagem, respeito e sinceridade. Qualidades tão básicas e tão raras nos dias atuais. Neste território que começamos a construir no processo de criação do espetáculo Ser TÃO Ser e demos continuidade no projeto Narrativas de Trabalho, muitos campos e paisagens foram visitados e visualizamos que muitas outras ainda podem estar por vir. Pois a cada encontro descobrimos mais possibilidades de re-significação dos nossos ofícios para que estes não venham tornar-se um trabalho vinculado apenas com a sobrevivência e a sustentabilidade de um pensamento da escala produtiva que não respeita o tempo de decantação das ações artísticas.

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O projeto Narrativas de Trabalho, além de possibilitar um aprofundamento na qualificação musical do grupo, gerou e continua gerando também muita reflexão acerca da abrangência do trabalho artístico e o reconhecimento de sua potência como elemento de transformação social.

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Quando falo em transformação social não me refiro apenas às questões econômicas, mas sim, me reporto a valores como: o exercício consciente da cidadania, recuperação da auto-estima, valorização das próprias raízes, recuperação de valores éticos, re14 Musicoterapeuta, percussionista e professor, integrante da Cia. Lá em Casa.

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conhecimento do potencial criativo de cada pessoa e o trabalho como gerador e gestor de felicidade para o indivíduo e para a sociedade. Constato que a atuação do Buraco d`Oráculo junto as comunidades e a rede que o grupo vem construindo são disseminadores dos valores citados acima e que a parceria estabelecida entre nós e nossos ofícios estão a serviço de um fazer artístico que se propõe muito mais que um mero entretenimento.

Foto arquivo do grupo :: Aulas de percussão com Celso Nascimento

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Narrativas de Trabalho Aurea Karpor15 Todos devem mandar brasa de alguma maneira Mesmo que brasa não haja, mesmo que brasa não haja Devem por a mão na massa de alguma maneira Mesmo que massa não haja, mesmo que massa não haja Mesmo que sem sentido, mesmo que não for preciso Com vigor o trabalho deve ser cumprido. Trecho de música do espetáculo “Cabaré Paulista” inspirado no Manifesto contra o Trabalho do grupo Krisis. (Teatro de Narradores)

É muito interessante escrever sobre o projeto Narrativas de Trabalho, levando em consideração a forma como acabei me integrando a ele. Trabalho ou emprego? De acordo com a definição do Dicionário do Pensamento Social do Século XX, trabalho é o esforço humano dotado de um propósito e envolve a transformação da natureza por meio do dispêndio de capacidades físicas e mentais. Emprego é a relação, estável, e mais ou menos duradoura, que existe entre quem organiza o trabalho e quem realiza o trabalho. É uma espécie de contrato no qual o possuidor dos meios de produção paga pelo trabalho de outros, que não são possuidores do meio de produção. No ano de 2010, eu estava em um momento de total “desemprego”, sem nenhum trabalho que me desse algum sustento. Eu não estava vendendo minha força de trabalho e não era possuidora de nenhum meio de produção. Foi no 1º Fórum de Teatro de Rua do MTR/SP (Movimento de Teatro de Rua de São Paulo) que me aproximei do grupo Buraco d`Oráculo. O primeiro trabalho que realizei com o grupo foi a divulgação da VI Mostra de Teatro de São Miguel ainda em 2010. Minha situação como trabalhadora havia mudado para melhor.

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Desde então continuei acompanhando a trajetória do grupo até que fui convidada para integrar o projeto mais de perto em 2011.

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15 Mestre em artes pela Unesp, atriz, diretora, produtora e integrante do Núcleo Cênico ProjetoBazar.

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Trabalho e Exploração Pude entender que o projeto Narrativas de Trabalho é uma continuação da pesquisa que o grupo vem realizando ao longo de sua história e discute – por meio de cenas, performances e intervenções – as diversas formas de precarização do trabalho, que colocam o cidadão trabalhador em situação de exploração. Participei da cena As Lavadeiras – em que o universo que se apresenta é daquelas mulheres que lavam roupas e são exploradas pelos “doutores” patrões; lidando também com a questão da migração de trabalhadores para São Paulo na esperança de uma vida melhor. “Não tive sorte em São Paulo, trabalho e mais trabalho. Sou como boi amarrado, que não muda de lugar...” (trecho da música da cena As Lavadeiras)

Aperfeiçoamento do trabalho teórico/prático Acompanhando o projeto estavam profissionais como Celso Nascimento, Melissa Maranhão e Elizete Gomes, realizando preparações musical, vocal e corporal para a rua respectivamente. Pude vivenciar ainda discussões sobre temas do projeto nos Cafés Teatrais organizados pelo grupo: “Teatro na luta de classes” com Iná Camargo Costa, “Gestus” com Alexandre Mate, “Fabuladores” com Cida Almeida entre outros temas que surgiram em dias agradáveis de café e troca de experiências. Trabalho nas ruas O projeto conta ainda com a continuidade do Circuito de Teatro de Rua Re-Praça, que levou espetáculos do grupo Buraco d`Oráculo e de outros grupos de São Paulo, outros estados e até mesmo de um grupo colombiano, Luz de Luna, para as praças e ruas de São Miguel Paulista. Continuei auxiliando na divulgação das atividades do grupo, principalmente deste circuito, e o grupo do qual faço parte – Núcleo Cênico Projeto BaZar – foi convidado a apresentar na edição de setembro de 2011 deste circuito. Uma experiência única e privilegiada. Participar do projeto Narrativas de Trabalho foi um privilégio e colaborou não só para meu desenvolvimento profissional como atriz e produtora cultural, como também para outras pessoas com as quais convivi dentro e fora deste projeto, pois acabei atuando como multiplicadora dos ideais deste trabalho, reverberando, inclusive, no espetáculo criado pelo grupo citado no parágrafo acima. A MASSA JÁ ESTÁ PRONTA! Aquela massa, socada, sovada, manobrada, manipulada, estava pronta para ser comida. Aquela menina agora estava pronta para integrar o sistema. Nós? Somos só mais um grupo de pessoas querendo mudar o rumo das coisas. Encerramos por aqui, pois temos que sair correndo para explicar aos doutores com que direito contamos toda essa história pública que eles achavam que era de propriedade deles. O pior é que todo mundo se conforma. Se conforma? Trecho da dramaturgia do espetáculo “A Menina que foi Arquivada” do Núcleo Cênico ProjetoBaZar

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Amar se Aprende Amando, Viver se Aprende Vivendo e Atuar se Aprende Atuando. Ivanildo Lima16

O sentimento amoroso, esse lastro comum a toda humanidade, por vários tipos de conflitos, há tempos vem perdendo espaço nas mentes das pessoas. Mas continua vivo, pulsando, lá nas prisões, dentro dos calabouços escuros, pronto para cumprir o seu venerável oficio de nascimento. A trajetória de criar, morrer e renascer, só pode ser completa quando o afeto ocupa o seu lugar de destaque na sociedade, substituindo o eu pelo nós; a divergência pelo entendimento e o passageiro pelo perpétuo. O ensino e a aprendizagem desses nobres valores são princípios praticados nas praças dos centros urbanos desde a Antiguidade clássica, e atualmente a trupe de teatro Buraco d`Oráculo e seus convidados de fina estirpe, com suas chaves descerram as portas, iluminam e retiram o pó que encobrem as manifestações das emoções humanas nas comunidades por onde o grupo se apresenta.

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16 Líder comunitário de Cidade Nova, São Miguel Paulista.

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Foto Sueli Kimura :: apresentação Re-Praça / Jd. Das Oliveiras / agosto 2011

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Desde maio de 2011, Cidade Nova, em São Miguel Paulista, acolhe as apresentações do renomado grupo de teatro de rua. Atividade lúdica que exige a atenção e a espontaneidade, tanto de quem atua ou produz, como de quem assiste. Por meio do drama ou da comédia e de maneira harmoniosa, a criança, o jovem e o experiente, entendem a própria humanidade: seus erros, acertos e dificuldades no caminho da sua existência e evolução. Amar se aprende amando. Para colocar-se a disposição da comunidade, as companhias teatrais renunciam ao modelo superado das atuais relações de mercado, que tem pautado as relações dos seres humanos entre si, destes com a natureza e com a cidade. Os grupos teatrais compartilham os seus princípios de democracia, cooperação, centralidade do ser humano, valorização da diversidade, do saber local, autonomia, justiça social, solidariedade, entre outros. Viver se aprende vivendo. E como em muitos outros setores da economia, os trabalhadores das artes e suas famílias, também buscam melhores condições de trabalho, de renda, de respeito e inclusão social. Esses atores, cenógrafos, costureiras, sonoplastas e produtores de teatro de rua, vivem inúmeras aventuras, muitas pelejas; contudo, enfrentam o bom combate com elmo de cetim, espada de veludo e escudo de linho; com humildade pedagógica, são uma referência onde há ausência de diálogo e transformam as instituições e pessoas sombrias e tristes. Atuar se aprende atuando. Ao exibir os seus espetáculos de rua, a trupe Buraco d`Oráculo, se aperfeiçoa, mas nesse processo pensam em si, na rua (o seu palco), na família, nos amigos, nos bairros, nas histórias dos povos e das pessoas, enquanto atuam; fortalecem as relações, colaboram e prestam serviços. São humanos – trabalhadores –, intérpretes que estão ligadas a uma outra visão singular da vida; são, ao mesmo tempo, diferentes e comuns na proximidade; assim, eles estabelecem as reflexões sobre outros modos e realidades de vida, incompatíveis com as necessidades da atual sociedade, desejam e vivem uma outra qualidade de vida, com arte; e tudo isso requer solidariedade, felicidade, desenvolvimento de competências e habilidades. A presença do Buraco d`Oráculo mudou a Cidade Nova, pois tem uma forma acessível de expressão artística, para a Zona Leste de São Paulo. Sua trajetória ajudará a modificar o Brasil e o Mundo. Mas para melhor atender a companhia e as comunidades, faz-se necessário a elaboração de políticas públicas que possam favorecer a sustentabilidade do grupo e dos seus projetos, bem como modelos de sistemas financeiros dignos, que substituam ou modifiquem os mecanismos adotados pelas leis de incentivos culturais, e definam de maneira clara, democrática, e menos burocrática, os procedimentos, os deveres e as responsabilidades estabelecidas em leis municipais, estaduais e federais.

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Criações

Trem-Fome Cinco ou mais atores. Atores caracterizados da mesma maneira, portando objetos sonoros, porém discretos, ficam espalhados dentro de um vagão de trem, no horário de pico, junto aos demais trabalhadores. Após o trem iniciar o movimento começa a ser dito de diversas maneiras e intensidade: “Tem gente com fome! Tem gente com fome?”

Após certo tempo, alguém insiste: “Se tem gente com fome, dá de comer!” A fala é assumida pelo coro, que ganha mais intensidade. Um ator, espremido ao centro, grita: “Dá de comer!” Os demais atores, em rápido movimento abrem e pedem silêncio ao ator que grita. Perplexidade! Dispersão de todos em meio ao público transeunte.

Ao chegar na estação seguinte descem com os passageiros, mas devem sair antes da maioria. Portam-se na saída e começam a repetir a mesma frase: “Tem gente com fome!”

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Alguém sinaliza, todos se juntam em bloco, simulando grande aperto. Iniciam trechos do trupe (passos do Cavalo Marinho), repetindo juntos: “Tem gente com fome!”

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Sem parar a frase, um a um começa dizer nomes de estações de trem e metrôs de diversas cidades. A cada estação pronunciada o coro repete: “Tem gente com fome!” Foto arquivo do grupo :: Intervenção Trem-Fome / julho 2010

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Foto arquivo do grupo :: Intervenção Vende-se um trabalhador / maio 2011

Trabalho e dignidade Três atores. Uma dupla de atores se posiciona um ao lado do outro, porém mantendo certa distância. Mais distante ainda, um terceiro ator, em frente a um microfone prepara-se para ler algo. Toca o despertador. A dupla inicia os movimentos de higiene pessoal, como se estivessem levantando. Se direcionam ao trabalho, um de carro, outro de ônibus. Chegam ao trabalho e iniciam suas atividades. Tudo é realizado de maneira mimética, sem uso de objetos e todos os movimentos devem ser precisos, ritmados, deve haver certa alegria facial. Em dado momento uma ação entre ambos, como se dirigissem um ao outro, encerra o cotidiano de trabalho. Retorno à casa. Sempre em gestos mimados. Ao chegar e ficarem imóveis por dois ou três segundos, toca novamente o despertador e toda a movimentação se reinicia, exatamente igual. Após repetir algumas vezes as mesmas ações, a alegria some e fica certa melancolia e misto de cansaço, sem perder a qualidade dos movimentos.

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Durante a repetição o terceiro ator, de forma livre, lê para o público: Ah! O trabalho. É por meio do trabalho que o homem modifica a natureza. O trabalho dignifica o homem, não é verdade? Um homem sem trabalho não é nada! Na entrada dos campos de concentração nazista estava escrito: só o trabalho liberta! “O trabalho afasta de nós três grandes males: o tédio, o vício e a necessidade”. “Trabalha em algo, para que o diabo te encontre sempre ocupado.” (São Jerônimo) “Ser obrigado a trabalhar, e obrigado a fazer o melhor possível, cria em você moderação e autocontrole, diligência e força de vontade, ânimo e satisfação, e cem outras virtudes que o preguiçoso nunca conhecerá.” (Charles Kingsley - romancista) «Querer ser bem sucedido sem trabalhar duro é como querer colher sem plantar.» (David Bly – político americano) – Vocês já viram quantos trabalhadores bem sucedidos? «O trabalho é como barbear-se. Não interessa se você fez um ótimo trabalho hoje, terá que repetir a performance amanhã.” Nunca falte ao trabalho, pois é aí que o seu patrão pode ver que não precisa de você. “Pensar é o trabalho mais pesado que há, e talvez seja essa a razão para tão poucos se dedicarem a isso.” (Henry Ford) – Como pensar se somos moídos pelo trabalho? Mas tem frases melhores sobre o trabalho: “O trabalho é a melhor e a pior das coisas: a melhor, se for livre; a pior, se for escravo.” (Émile-Auguste Chartier, “Alain”) “Quando o trabalho é um prazer a vida é bela. Porém quando é imposto a vida é uma escravidão.” (Máximo Gorki)

NARRATIVAS DE TRABALHO

“É estranho que, sem ser forçado, saia alguém em busca de trabalho.” (William Shakespeare)

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“O que fazemos durante as horas de trabalho determina o que temos; o que fazemos nas horas de lazer determina o que somos.” (Charles Schulz)

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Fitinha do Bonfim Buraco d`Oráculo e Celso Nascimento Eu sou negão Eu sou neguinha E do Bonfim Eu sou fitinha

(2X) REFRÃO

Trabalhador do corcovado Que passa todo curvado Com o peso da mercadoria Que o gringo paga com mixaria

(2X)

REFRÃO (2X) As Iracemas já não são mais virgens Nem tem os lábios de mel Trocam suas curvas por dólar Ou lavam banheiros de hotel (2X) REFRÃO (2X) A procissão é minha sina O nosso pade Ciço Agora é made in China

4X

Foto de Edson Paulo:: Intervenção Vide a Bula / Vila Mara / agosto 2010

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Essa música, cantada em ritmo de samba reggae, foi criada após uma discussão apresentada por Celso Nascimento sobre a potência de um ritmo como modelo para vender tudo por meio da música. Assim, discutimos que a música baiana, em certa medida, servia para vender homens e mulheres brasileiras fora do País; a indústria do turismo se apropriava de uma célula musical e por meio dela vendia tudo. A letra passa pelos principais pólos turísticos do Brasil: Bahia, Ceará, Rio de Janeiro e um pólo religioso interno, Juazeiro do Norte-CE. Fica evidente, sobretudo, a venda do corpo ou a submissão aos trabalhos precários criados pelo turismo nacional e mundial. Samba da Preservação Buraco d`Oráculo e Celso Nascimento E o vendedor de quebra-queixo? O sistema mastigou E o leiteiro de Drummond? O sistema bebeu E a Maria parteira? O sistema abortou

Foto de Edson Paulo:: Intervenção Vide a Bula / Vila Mara / agosto 2010

E cadê o alfaiate? E o vendedor de quebra-queixo? E o leiteiro de Drummond? E a Maria parteira? E cadê o alfaiate? O alfaiate e o amolador de alicate... O sistema cortou O sistema mastigou O sistema bebeu O sistema abortou E como muda o danado do sistema? Quem conhece me apresenta (3X) Você conhece o sistema (2X) Isso é zica passa o rodo (3X)

NARRATIVAS DE TRABALHO

Chama a benzedeira! Pra uma reza derradeira (5X) E a arte de rua? (Várias vezes)

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O sistema calou!

BURACO D’ORÁCULO

Esse samba foi composto após uma discussão na qual levantamos diversas profissões que desapareceram ou estão em vias de desaparecer. Os meios de produção, pela própria dinâmica do sistema capitalista, sofrem mudanças cada vez mais aceleradas, fazendo desaparecer diversos ofícios, foi a partir dessa “lógica” que criamos esse samba.


Lavadeira Buraco d`Oráculo, Trupe Arruacirco e Melissa Maranhão Nem todos são filhos de Deus Vi uma lavadeira no chão Soluçando a reclamar Seus filhos pedindo pão Não tive sorte em São Paulo Trabalho e mais trabalho Sou como boi amarrado Que não muda de lugar Rosa, mão de obra braçal Na imensa cidade Perde seu viço sua força Trabalha Rosa piedade Se não entrego a roupa MULHERES Doutor não vai me pagar 2X Entregue a sua a roupa HOMENS Ou eu não vou te pagar 2X Se eu não entrego a roupa MULHERES Doutor não vai me pagar Entregue a sua roupa HOMENS Ou eu não vou te pagar Trabalha, trabalha, Rosa (Diversas vezes) Ou eu não vou te pagar

Essa é uma música com bastante variações, foi criado um arranjo bem interessante com o uso de violão e alguns instrumentos percussivos. A música foi composta a partir de diversos textos que foram levados às aulas de voz; está permeada a discussão da migração e da cidade grande que “se oferece” como um local apropriado para a melhora de vida, mas nem sempre se dá dessa maneira.

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55 11 8188.3670 / 8152.4483 / 2558.2598 www.buracodoraculo.com.br buracodoraculo.blogspot.com edson.paulo@ibest.com.br



Buraco d’Oráculo PELAS RUAS DESDE 1998

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