Enfrentando a Esclerose Sistemica - lições de vida

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ORGANIZADOR

COORDENAÇÃO E EDIÇÃO

Dr. Percival Degrava Sampaio-Barros

Roberta Miller www.grupoexpressao.com.br

DEPOIMENTOS (PACIENTES E FAMILIARES)

REDAÇÃO

Ana Lúcia Ceccato Ana Malard Veloso Ester Joana Anderman Ratke Strautmann Gabriel Soares de Pinho Geraldo Roberto Cogo Joaquim Bernardes Jozete Marina da Silva Maria do Rosário Costa Mauger Monaliza Silva Ribeiro

Simone Goldberg

Alba Valéria, mãe de Monaliza

Rosemeire de Oliveira Vasconcelos Rita de Cássia Gouveia Sônia Maria Pequeno Tessari Valdinéa Nascimento Araújo Lucila Fernandes Nogueira (in memoriam) Lucileide, irmã de Lucila Luciére, irmã de Lucila Milton, pai de Lucila Cristiano, cunhado de Lucila

Solange Maria Serafim Althoff (in memoriam) Dr. Antônio Carlos, viúvo de Solange Maria

PRODUÇÃO E REVISÃO

Amanda Raiter e Joana Carvalho PROJETO GRÁFICO

Mais Programação Visual www.maisprogramacao.com.br CAPA

‘Border’, 1938, 37 (D 17) de Paul Klee ©KLEE, Paul, “Border, 1938” / Licenciado por AUTVIS, Brasil, 2009. Fundo – grafismo baseado sobre esta obra. FOTOS MIOLO

Arquivos particulares GRAFISMOS MIOLO

Arranjos tipográficos sobre foto de David Edwards / CGTextures IMPRESSÃO

Walprint Gráfica e Editora TIRAGEM

1.000 exemplares

DADOS INTERNACIONAIS PARA CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

S192e Sampaio-Barros, Percival Degrava, 1962Enfrentando a esclerose sistêmica : lições de vida / organizador e realizador Percival Degrava Sampaio-Barros. – 1. ed. – Rio de Janeiro : Grupo Expressão, 2009. 80 p. ; 23 cm. ISBN 978-85-63060-00-6 1. Escleroderma sistêmico – Pacientes – Cuidado e tratamento – Brasil. I. Título. CDD – 616.54400981 Ficha Catalográfica elaborada pela bibliotecária Lioara Mandoju CRB-7 5331


INTRODUÇÃO O objetivo deste livro, antes de mais nada, é o de apresentar aos pacientes diferentes modos de enfrentar a Esclerose Sistêmica (ES), para melhor tratá-la e, consequentemente, conseguir ter melhor qualidade de vida em todos os sentidos. E este ensinamento vem através do depoimento de portadores de esclerose sistêmica e de alguns familiares que, corajosamente, descrevem as difíceis situações pelas quais passaram (as dores, as limitações, as perdas pessoais, a depressão, o medo e a angústia) e como conseguiram enfrentar estas dificuldades e progredirem em suas vidas, agora mais maduros e fortes. Este livro tem depoimentos de homens e mulheres, jovens e adultos, de diferentes níveis de escolaridade e de classes sociais, para mostrar que a ES pode afetar a todos. É fato comum em diversos depoimentos que não se trata de uma doença muito conhecida no meio médico, e que isto pode levar a um importante atraso no diagnóstico e posterior tratamento. Também fica patente o quanto a ajuda sincera da família e de amigos auxilia no tratamento e no enfrentamento da Esclerose Sistêmica. Há também depoimentos in memorian, feitos por familiares de pacientes falecidos, descrevendo a luta de seus entes queridos para enfrentar dignamente a ES e deixarem um legado para a posteridade. Agradeço sinceramente a coragem e o desprendimento dos pacientes e familiares que compartilharam suas ricas experiências de vida. Também agradeço aos colegas reumatologistas Branca Elena Gomes Rios Bica e Roger Abramino Levy, do Rio de Janeiro, e Eutília Andrade Freire, da Paraíba, que gentilmente indicaram pacientes para participar deste livro. No século XXI, o Século da Evolução Tecnológica, estamos iniciando uma nova fase da Esclerose Sistêmica no Brasil. Considero a publicação desse livro e a inauguração oficial do site www.abrapes.org.br,


da ABRAPES – Associação Brasileira de Pacientes com Esclerose Sistêmica –, uma nova fase de conhecimento e mobilização acerca da Esclerose Sistêmica. O site trará informações sobre a doença em seus diferentes aspectos a partir de textos produzidos pela Scleroderma Foundation nos Estados Unidos e traduzidos e revisados por médicos brasileiros, permitindo assim, que pacientes e familiares possam instruir-se melhor, além de esclarecer dúvidas comuns. É evidente que o site não tem o objetivo de substituir o médico reumatologista, que é quem conduzirá o tratamento da doença. E, em menos de um ano, teremos mais dois importantes eventos em torno da doença: a realização do l Congresso Mundial de Esclerose Sistêmica, em fevereiro de 20I0, na Itália, e a criação do Dia Mundial de Luta contra a Esclerose Sistêmica, a ser celebrado em 30 de junho, data da morte do pintor modernista alemão Paul Klee (1879-1940), um dos mais ilustres portadores de ES. Desejo por fim que o conhecimento e a fraterna ajuda de parentes e amigos, mais estes sinceros depoimentos, possam auxiliar a tornar mais leve o caminho dos pacientes esclerodérmicos que estão por vir! Dr. Percival Degrava Sampaio-Barros Médico Assistente e Chefe do Ambulatório de Esclerodermia da Disciplina de Reumatologia da Universidade de São Paulo (USP). Coordenador Nacional do Gepro (Grupo de Esclerose Sistêmica do Projeto Pronuclear) da Sociedade Brasileira de Reumatologia. Presidente do Conselho Científico da Associação Brasileira de Pacientes com Esclerose Sistêmica (Abrapes). Presidente do Grupo de Estudos de Esclerose Sistêmica da Liga Panamericana de Associações de Reumatologia (Panlar).


PREFÁCIO A esclerose sistêmica (ES) é uma doença difícil, tanto para o paciente e sua família e amigos, quanto para o médico que conduz o tratamento. Para o paciente, a ES é difícil por causa dos principais sintomas que acarretam, as perdas de função (notadamente nas mãos) e dores. As famílias a consideram difícil por causa da crescente limitação e angústia que seus entes queridos desenvolvem após o início da ES. Os médicos a consideram difícil tanto no diagnóstico quanto no tratamento, já que não existe uma medicação que cuide de todos os sintomas, bem como ainda não há cura. Tem sido cada vez mais observado que as pessoas que resolvem lutar contra uma doença difícil cursam com uma melhor qualidade de vida que aquelas que simplesmente desistem de lutar. Estudos científicos têm revelado que as atitudes, o suporte familiar e médico, bem como um maior conhecimento sobre a doença e sua evolução, contribuem para uma melhor qualidade de vida. Um estudo 1 mostrou que as pessoas que são mais espiritualizadas (como aquelas que atendem missas ou cultos, fazem meditação etc.) experimentam sentimentos mais positivos e podem apresentar um melhor ajuste emocional e resistência às dificuldades. Isto significa que elas não deixaram a doença tomar conta de suas vidas. Outro estudo observou a capacidade de enfrentamento e a qualidade de vida de pacientes com lúpus eritematoso sistêmico (LES), uma outra doença reumática tão agressiva como a ES. A pesquisa mostrou que uma atitude passiva contribuía para diminuir a qualidade de vida e aumentava as dores2. Outro estudo, também com pacientes 1

Bartlett SJ et al. Spirituality, well-being, and quality of life in people with rheumatoid arthritis. Arthritis Rheum. 2003; 49(6):778-83

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Rinaldi S et al. Influence of coping skills on health-related quality of life in patients with systemic lupus erythematosis. Arthritis Rheum. 2006; 55(3):427-33.


lúpicos, mostrou que os pacientes que participavam de programas psicossociais em grupo (com outros pacientes) foram capazes de compartilhar seus problemas, experimentar mudanças positivas em sua autoestima e melhorar seu ajuste social, como participar de atividades com familiares e amigos 3. Em uma recente revisão de literatura que estudou os mecanismos de ajuste às doenças crônicas, os autores recomendaram aos pacientes: a) permanecerem o mais ativo possível em suas atividades; b) compreender e expressar suas emoções de uma maneira que lhes permita ter o controle de suas vidas; c) administrar sua doença dentro de um programa de contínuo aprendizado e educação; e d) tentar sempre focar nos aspectos positivos que a evolução de sua doença está apresentando. Os pacientes que utilizaram estas estratégias apresentaram maiores chances de se ajustar adequadamente às modificações que uma doença crônica pode acarretar 4. Como este livro demonstra através de suas histórias e depoimentos, a esclerose sistêmica é um grande e duro desafio para os pacientes e aqueles que os amam e tomam conta deles. Mas, onde há vida há esperança! As histórias que vocês lerão neste livro mostram como diferentes pessoas podem interagir com sua doença utilizando a esperança, a espiritualidade, formando uma rede de carinho em torno delas. Através de seus dramas pessoais vocês descobrirão como enfrentar a enfermidade, conhecendo-a melhor, e com a indispensável ajuda de familiares e amigos, outros pacientes e seus médicos poderão também lutar por uma melhor qualidade de vida. Vocês não estão sozinhos! As histórias deste livro comprovam a vocês isto! Recebam meu sincero carinho e admiração! Elaine A. Furst, RN, BSN, MA Ex-Presidente da Scleroderma Foundation, EUA.

3

Ng P, Chan W. Group psychosocial program for enhancing psychological well-being of people with systemic lupus erythematosis. J Soc Work Disabil Rehabil. 2007; 6(3):75-87.

4

de Ridder D et al. Psychological adjustment to chronic disease. Lancet. 2008 Jul 19;372 (9634):246-55.


ANA LÚCIA CECCATO ANA MALARD VELOSO ESTER JOANA ANDERMAN RATKE STRAUTMANN GABRIEL SOARES DE PINHO GERALDO ROBERTO COGO JOAQUIM BERNARDES JOZETE MARINA DA SILVA MARIA DO ROSÁRIO COSTA MAUGER MONALIZA SILVA RIBEIRO ROSEMEIRE DE OLIVEIRA VASCONCELOS RITA DE CÁSSIA GOUVEIA SÔNIA MARIA PEQUENO TESSARI VALDINÉA NASCIMENTO ARAÚJO LUCILA FERNANDES NOGUEIRA SOLANGE MARIA SERAFIM ALTHOFF

8 14 20 26 30 36 40 42 46 52 56 60 64 70 76


ANA LÚCIA CECCATO 32 ANOS PEDAGOGA SÃO BERNARDO DO CAMPO/SP

EMBORA O DIAGNÓSTICO DA ESCLEROSE SISTÊMICA SEJA CLÍNICO E FÁCIL DE SER REALIZADO QUANDO A DOENÇA ESTÁ ESTABELECIDA, BASEADO NO ESPESSAMENTO DA PELE – QUE PODE SER RESTRITO ÀS EXTREMIDADES OU DIFUSO –, O FATO DE SER UMA DOENÇA RARA FAZ COM QUE MUITOS MÉDICOS NÃO PENSEM NELA QUANDO ESTÃO ANALISANDO SEUS PACIENTES. O ARROXEAMENTO DOS DEDOS, QUE PIORA COM O FRIO, CARACTERIZANDO O FENÔMENO DE RAYNAUD, É O MAIS FREQUENTE E PRECOCE SINTOMA DA ESCLEROSE SISTÊMICA. SUA PRESENÇA DEVE ALERTAR PARA A INVESTIGAÇÃO DE ALGUMA DOENÇA, PRINCIPALMENTE A ES. O DIAGNÓSTICO PRECOCE FACILITA O TRATAMENTO E EVITA MUITAS TENSÕES CAUSADAS POR INFORMAÇÕES INADEQUADAS OU MESMO ERRÔNEAS SOBRE A DOENÇA.

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Sou Pedagoga e atuo como Orientadora Educacional de jovens do Ensino Fundamental II ao Ensino Médio numa escola particular de São Bernardo do Campo. Moro nesta mesma cidade com meus pais e minha avó materna, tenho também meu irmão, minha cunhada e meu sobrinho que são minha grande família. Aos 17 anos comecei a sentir os primeiros sintomas de que algo estranho estava acontecendo com meu corpo. Sentia dificuldade nos movimentos de cotovelos e mãos, as pontas dos dedos estavam roxas. Depois de algum tempo, essa tonalidade arroxeada se espalhou rapidamente para as mãos por completo e depois para os pés. Procurei ajuda médica, passei por várias especialidades, mas só diagnosticavam síndrome de Raynaud e me indicavam mudar para cidades quentes. Durante um longo período contei com a sensibilidade de uma médica acupunturista que cuidava muito bem de mim, embora não tivesse resultados efetivos com a terapia das agulhas, e realizei inúmeros exames. Certo dia, uma médica amiga e um plantonista que trabalhava com ela, me fizeram uma pergunta: ‘você já

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procurou saber se tem Esclerodermia Sistêmica?’. Sem resposta, pude buscar ajuda de um especialista e chegar ao diagnóstico. Por mais que os reumatologistas se esforcem, é preciso mais conhecimento, mais informações, mais estudos, mais pesquisas e para isso é preciso que estejam abertos e contem também com a ajuda dos pacientes. Às vezes bate o desespero, que é gerado pela insegurança da falta de conhecimento das ciências médicas. Tudo é novo, tudo é estudo, nada é 100% garantido, há estudos que provam e depois ‘desaprovam’. A Esclerodermia Sistêmica é mais comum do que imaginamos e, no entanto, muitos ainda a desconhecem. E eu sou prova disso. Foram muitos os profissionais pelos quais passei e que não conheciam, ou sabiam superficialmente alguma coisa sobre o assunto. Assim, eu era obrigada a mudar de profissional a todo momento por muito tempo. No início, assim que soube da doença, eu neguei a informação, convivia com os incômodos, mas não era nada que pudesse amarrar a minha vida e nem me paralisar (e não é até hoje!). Simplesmente sabia o que tinha e ia vivendo sem cuidar muito como devia. Minha família se preocupava mais comigo do que eu mesma. Mas depois de alguns anos, resolvi encarar e entrar

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AGORA QUE A ESCLEROSE SISTÊMICA É UMA DOENÇA MAIS CONHECIDA, E TEM PROTOCOLOS DE INVESTIGAÇÃO VISCERAL E TRATAMENTO ESTABELECIDOS, TAMBÉM É HORA DE SE CRIAR INSTRUMENTOS COMO LIVROS E SITES CIENTÍFICOS QUE POSSAM DAR INFORMAÇÕES MAIS DETALHADAS SOBRE A DOENÇA, E REDIGIDAS NUMA FORMA ACESSÍVEL PARA LEIGOS NO ASSUNTO. A INTERNET É UM EXTRAORDINÁRIO MEIO DE COMUNICAÇÃO DE MASSA, MAS SUAS PESQUISAS DEVEM SER CUIDADOSAMENTE REALIZADAS, JÁ QUE EXISTEM MUITOS SITES QUE OFERECEM INFORMAÇÕES ERRÔNEAS E DISTORCIDAS.

na internet. Foi então que me desesperei ao saber o quanto ampla é a ES. Depois daquele choque percebi como a internet era perigosa nas informações e que nem tudo que li era verdade, embora não pudesse ignorar por completo. Com o apoio do meu irmão fiz outras pesquisas que me ajudaram a compreender a realidade da doença. Essa busca e o envolvimento do meu irmão me ajudaram a não paralisar. Pelo contrário, o acesso a informações corretas e o amor e interesse de minha família, me ajudaram a mudar para melhor, a entender a minha circunstância e a ter forças para encarar o futuro de forma positiva. Com isso, pude, finalmente, ter consciência da minha saúde e adotar condutas que melhorassem minha qualidade de vida,

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A AUSÊNCIA DE UM DIAGNÓSTICO DEFINITIVO, COM CONSEQUENTES INFORMAÇÕES SOBRE A EVOLUÇÃO DA DOENÇA E PROPOSTAS REALISTAS DE TRATAMENTO FAZ COM QUE O PACIENTE ENTRE EM DEPRESSÃO E MUITAS VEZES NÃO PROCURE MAIS POR TRATAMENTO. NESTAS HORAS DE DESCONSOLO, O APOIO DA FAMÍLIA É FUNDAMENTAL PARA QUE O PACIENTE NÃO DESISTA DE VIVER.

entre elas, tomar os medicamentos da forma indicada. Tomo vários remédios e confesso que muitas vezes dá uma canseira tomá-los, mas é preciso. E esse é o maior desafio atualmente. Acreditar que é preciso me tratar mesmo sem sentir necessidade. Acho que é muito importante conhecer os limites de nosso organismo, pois a nossa medicina é fragmentada. Cada profissional da saúde está preocupado com o estudo específico da sua especialidade e no caso da ES, nós portadores, precisamos de um estudo aprofundado de cada sintoma, de cada órgão, o que naturalmente envolve diferentes áreas médicas. Não é possível cuidarmos na superficialidade cada sintoma. Todos eles, isoladamente, fazem parte de uma única doença e de um único corpo. Eu e minha família procuramos estar sempre bem informados e quando temos acesso a um dado novo, seguimos em busca da veracidade dos mesmos. Isso também faz com que eu estabeleça relações que me ajudem a superar os desafios e a encontrar soluções para possíveis desconfortos da doença.

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Felizmente tenho uma vida normal, a doença está controlada e, até o momento, todas as manifestações foram de simples soluções. Atualmente o que mais me incomoda são as telangectasias no rosto. Tenho várias e isso me causa certa tristeza. Mas estou sempre querendo saber se há algo novo sendo estudado para resolver esse problema, se algum dermatologista já se interessou por isso. Às vezes, penso no futuro, sobre a possibilidade de precisar de um cuidador e como será. Já ouvi colegas portadores contarem como é comum a família subestimar os sintomas e as dores, e achar que as queixas são exagero. Contudo, recomendo a alguém que se descobre com ES, que assuma essa revelação como um desafio, como uma barreira a ser superada, e sugiro que aposte no prazer de se superar e de estimular os outros a se superarem também.

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ANA MALARD VELOSO 29 ANOS ADVOGADA BRASÍLIA/DF

A ESCLEROSE SISTÊMICA É UMA DOENÇA “INCURÁVEL”. MAS, HOJE EM DIA, DESDE QUE TRATADA NO INÍCIO DAS SUAS MANIFESTAÇÕES GRAVES, A ES PODE FICAR BEM CONTROLADA, PERMITINDO QUE MUITOS PACIENTES TENHAM UMA BOA QUALIDADE DE VIDA. PASSADO O SUSTO E A DEPRESSÃO QUE PODE SURGIR, INICIALMENTE, POR CONTA DO PESO DA PALAVRA “INCURÁVEL”, COM O APOIO DA FAMÍLIA E DOS AMIGOS, O PACIENTE PODE AJUDAR FIRMEMENTE EM SEU TRATAMENTO. É IMPORTANTE NÃO SE DEIXAR ABATER E DEIXAR DE FAZER SUAS ATIVIDADES. QUANDO O PACIENTE DECIDE CONTINUAR VIVENDO, EM GERAL, CONSEGUE APRESENTAR BONS RESULTADOS E UMA BOA QUALIDADE DE VIDA. ESTE É O EXEMPLO DA JOVEM ANA, QUE RESOLVEU TRANSFORMAR O TRATAMENTO DE SUA DOENÇA EM MAIS UMA ATIVIDADE DE SUA MOVIMENTADA AGENDA, OBVIAMENTE ADAPTADA PARA NÃO AGRAVAR SEU ESTADO DE SAÚDE. COM SUA FORÇA DE VONTADE, E O VITAL APOIO DA FAMÍLIA E DOS AMIGOS, ESTÁ VENCENDO A DOENÇA.

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Jamais me entreguei à doença. É claro que o diagnóstico de ES abala, entristece e amedronta. Ser portadora de uma doença como a ES traz uma série de implicações. O frio, as dores, o medo, os remédios, as consultas e exames nunca me deixam esquecer que tenho um visitante indesejado dentro de mim. Mas por outro lado, não me impedem de viver uma vida normal. Desde o dia do diagnóstico até o presente momento, a minha rotina diária sempre foi a mais normal possível. Passado o susto de receber a notícia e, mesmo durante meu tratamento, eu continuei trabalhando, viajando, estudando e me divertindo. Fui encorajada pelos meus médicos e por minha família a viver normalmente. Viajo, saio com meus amigos, pratico atividade física, faço meu curso de pós-graduação e mantenho minha rotina diária de trabalho. O segredo é saber conviver com a doença. Eu convivo com a Esclerose Sistêmica. Sigo o tratamento prescrito e realizo os exames de acompanhamento, da mesma forma como mantenho meu trabalho, meus estudos e me divirto. Enfim, aceitei a minha

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condição e com isso, levo uma vida com todo o pique e energia possíveis. Não permito que minha vida gire em torno da doença, nem tampouco me sinto doente. Pelo contrário, tenho fé no futuro e acredito na evolução da medicina. Hoje sou advogada e sócia de um escritório especializado em Direito Empresarial, mas na época em que comecei a sentir os primeiros sintomas ainda não era formada. Tudo começou em 2003, durante o meu último semestre de faculdade. Notei algumas manchas no rosto e, durante o inverno daquele ano, senti muitas câimbras e formigamentos nos braços, nas mãos, pernas e pés. Resolvi então me consultar com um angiologista que me prescreveu ansiolítico, massagens e o uso de bolsas d’água quente. Naquela época, os médicos acreditavam que eu devia estar com estresse ou depressão causada pela enorme pressão que eu sentia com a chegada da formatura e o início da vida profissional. O tratamento indicado aliviava a dor, mas os sintomas não desapareceram. E em março de 2004, durante uma viagem ao exterior, percebi que alguma coisa séria estava acontecendo com meu corpo. Depois de alguns dias visitando um país gelado comecei

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a notar o surgimento de enormes manchas vermelhas em meu corpo, a pele do rosto ficou extremamente enrijecida e, de repente, ao menor contato com o frio, minhas mãos e pés ficaram roxos. Lembro que senti muito cansaço, e pequenas caminhadas ao ar livre me deixavam ofegante e dolorida. Assim que retornei, meu pai que é médico, me levou a um reumatologista e vários exames foram realizados, dentre eles uma biópsia de pele. Durante os dias dedicados a esses exames, escutei papai comentar algumas vezes que os médicos estavam suspeitando ser Esclerose Sistêmica. Contudo, estava tão resistente a acreditar que poderia estar doente, que não quis pesquisar nada sobre o assunto. Cerca de 30 dias depois da minha consulta com o reumatologista recebi o resultado da biópsia. Lembro-me até hoje do dia em que abri o envelope e li aquele laudo. A sensação de receber um diagnóstico como o da ES é tão forte e assustadora que não se consegue esquecê-la. Lembro-me de cada detalhe daquele dia. Lembro do lugar onde estava quando abri o envelope, e até mesmo da roupa que estava vestindo. Lembro de ter ficado apavorada e correr para o computador com

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o laudo nas mãos. Precisava urgentemente conhecer aquela doença que havia invadido meu corpo. Digitei o nome da doença em um site de buscas, e na primeira página que abri sobre o assunto, uma palavra em negrito me aterrorizou: INCURÁVEL. Então eu chorei. Chorei muito. Achei que havia recebido uma sentença de morte. Experimentei a sensação horrorosa de achar que a minha vida tinha chegado ao fim. Algumas semanas depois comecei a fazer sessões brandas de quimioterapia, a chamada ciclofosfamida, ou simplesmente ‘ciclo’, em Campinas. No primeiro dia de tratamento, estava longe de casa, da minha mãe, dos meus irmãos e dos meus amigos. Nunca esqueci nenhum detalhe daquela minha primeira

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sessão de ciclo. Aquele dia ficou marcado como o primeiro dia da minha nova vida. Ali nascia uma outra Ana. Compreendi que nenhum médico ou tratamento conseguiria me ajudar se eu mesma não me ajudasse. Eu estava nas mãos de Deus, do meu médico, e dependia essencialmente da minha própria força e vontade de viver. Foram dois anos de ciclo, internações, noites mal dormidas, náuseas e pesadelos. Milhares de exames, centenas de consultas médicas, intermináveis horas com aqueles remedinhos gelados entrando pelos meus braços e percorrendo meu corpo. Mas foram 24 meses de muitas conquistas também. Descobri dentro de mim uma força que jamais imaginei que possuía. Tive o apoio imensurável e incansável da minha família e dos meus amigos. Vibrávamos e comemorávamos juntos cada batalha vencida. Fui tratada por médicos atenciosos e humanos, que me apoiaram e comemoraram comigo cada etapa superada e cada bom resultado alcançado. Aprendi a conhecer o meu corpo, a respeitar e aceitar os meus sintomas e as minhas limitações. Aconselho a todos os portadores de ES a buscarem apoio em suas famílias e amigos. Conversar sobre a doença e falar abertamente sobre nossos sentimentos, medos e angústias traz alívio para a alma e consolo para nossa dor. Também recomendo a terapia, meditação e oração. A fé e o autoconhecimento são importantíssimos para ajudar a não sucumbirmos. Não é possível enfrentar uma batalha árdua como essa sozinho. E viver intensamente cada novo dia, deixando que a doença seja apenas um simples detalhe e não um fator que impeça a felicidade.

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ESTER JOANA ANDERMAN RATKE STRAUTMANN 46 ANOS PROFESSORA APOSENTADA NOVA ODESSA/SP

ALGUMAS PESSOAS SÃO SURPREENDIDAS POR DOENÇAS CRÔNICAS E POTENCIALMENTE INCAPACITANTES NO AUGE DE SUA VIDA E DA ATIVIDADE PROFISSIONAL. INTERAGIR COM A INCAPACIDADE E AS MUDANÇAS QUE OCORREM COM SEU CORPO NÃO SÃO COISAS FÁCEIS. MAS AQUELE PACIENTE QUE PASSA A TER UMA ATIVIDADE PRÓ-ATIVA, DESCOBRINDO OUTRAS ATIVIDADES E DRIBLANDO AS EVENTUAIS INCAPACIDADES, É UM PACIENTE QUE INVARIAVELMENTE RESPONDE MELHOR AO TRATAMENTO.

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A coisa que eu acho mais importante que uma pessoa pode descobrir é que, apesar de ter uma doença difícil – e no meu caso é pior porque afetou muitos órgãos o que me faz ‘matar um leão por dia’ –, devemos valorizar a vida e viver um dia de cada vez. É preciso aproveitar o presente. Sou professora e por causa da doença tive que me aposentar. Não posso mais lecionar, o que sempre me deu muita satisfação. Mas, por outro lado, hoje tenho tempo para me comunicar e trocar experiências com pessoas que me procuram através das comunidades de Esclerose Sistêmica na internet. Compartilhamos a dor, as inseguranças, mas também vibramos com cada vitória que conquistamos. Como a esclerose sistêmica é uma doença com forte componente psicossomático, é muito importante estar otimista, ter esperança. Cada um deve procurar fazer alguma coisa que ache que vai ajudá-lo como, por exemplo, realizar um trabalho social, fazer um curso, descobrir um hobby. Eu descobri que posso ajudar, consolar e ouvir as pessoas porque, muitas vezes, a família não tem paciência para fazer esse papel.

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Parte do meu dia atualmente é dedicada a responder os e-mails das pessoas que me procuram. Perdi algumas coisas, mas não o bom humor. E quando vejo que estou ficando deprimida, saio para pintar o cabelo, compro uma lingerie nova, enfim, dou a volta por cima. O importante é não se entregar ao sentimento de autocomiseração. Considero-me uma pessoa privilegiada por ter uma família participativa que me apoia o tempo todo. Conto muito com o amor, paciência e ajuda permanente de meu marido Eli, meus filhos Ricardo e Natalia, e me alegro muito com a minha netinha Sophia, de dois anos. Quando os sintomas surgiram, meus filhos eram adolescentes e não entendiam o que estava acontecendo. Lembro que às vezes nos reuníamos na sala para conversar e eles choravam, porque tinham medo da doença e temiam pelo meu futuro. Com o tempo, os tratamentos foram dando certo, tive uma melhora muito grande. Não só os remédios ajudaram, mas a vontade de viver e de ver meus filhos se tornarem adultos, pessoas de valor e realizadas, formando suas próprias famílias. Tudo isso me dava força para prosseguir. Além é claro, da fé em Deus que também me sustenta. Tudo mudou na minha vida dois anos após o diagnóstico, que foi quando resolvi que também era chegada a hora de parar de chorar e reclamar. Percebi que a alegria estava dentro de mim, apesar de tudo, e eu queria compartilhar minha experiência com outras pessoas que estavam sofrendo. Quando não estou bem,

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ÀS VEZES, CONSEGUIMOS VENCER UMA DOENÇA CRÔNICA, MAS AO FINAL ESTAMOS INCAPACITADOS PARA NOSSAS ATIVIDADES PROFISSIONAIS HABITUAIS. MAS, NA MAIORIA DAS VEZES, NÃO ESTAMOS INCAPACITADOS PARA A VIDA, E PODEMOS PARTIR PARA NOVAS CONQUISTAS E ATIVIDADES. O ESSENCIAL É NÃO DESISTIR DE VIVER!

fico quietinha no meu canto. Mas quando estou boa, faço tudo o que tenho direito. Sei que ainda posso conquistar muitas coisas.

Tento ver o lado bom de tudo, e sempre valorizo as pessoas que estão à minha volta e, que me amam, assim como considero o tempo precioso. É importante não se isolar das pessoas, e participar mais da vida comunitária porque é gostoso se sentir integrado e útil. Claro que para chegar até aqui, e conseguir ter a percepção que hoje tenho da vida, vivenciei uma longa e dura jornada, que começou há nove anos. Os primeiros sintomas foram dores pelo corpo e um cansaço sem fim. Suspeitou-se de fibromialgia. Após alguns exames de sangue, em julho de 2000 foi diagnosticada Doença Mista do Tecido Conjuntivo. Mista porque são três: esclerose sistêmica, lúpus e miosite. Com o tempo, percebemos que só a ES estava em atividade. Comecei então a pesquisar sobre a doença e chorei muitas vezes na frente do computador. O prognóstico era sombrio. Estatisticamente, 73% dos óbitos eram por insuficiência respiratória, num prazo de cinco anos. Na época, eu dava cursos para professores da rede municipal de Nova Odessa e fazia faculdade

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de Pedagogia à noite. Estava no auge da ascensão profissional. Nos finais de semana, tocava piano e teclado na igreja. Em março de 2001, as dores ficaram tão intensas que foi necessário me licenciar. Nessa época, fui hospitalizada várias vezes. Passei dois anos na cama, só levantando para comer, tomar banho e ir ao médico. Não foi possível voltar a trabalhar, assim como também não dava mais para tocar piano por causa das feridas dos dedos. Mesmo com curativos, doíam muito e, aos poucos, fui perdendo a agilidade. Eu chorava muito e me perguntava: ‘por que eu?’. Emagreci drasticamente e da cintura para baixo meus músculos atrofiaram me deixando com as pernas muito finas. Tive problemas no esôfago (refluxo), coração (derrame pericárdico), intestino

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CONHECER SUA DOENÇA E SEUS SINTOMAS NÃO É COISA FÁCIL PARA O LEIGO, MUITO MENOS ANALISAR ESTATÍSTICAS DE SOBREVIDA DE QUALQUER DOENÇA, PRINCIPALMENTE A SUA. O CONHECIMENTO DA EVOLUÇÃO DOS SINTOMAS E COMO DEVEM AGIR AS MEDICAÇÕES É IMPORTANTE PARA QUE O PACIENTE POSSA COMPREENDER MELHOR A EVOLUÇÃO DE SUA DOENÇA E ASSIM TENHA CONDIÇÕES DE CONTRIBUIR PARA SUA MELHORA.

(diarreia), pulmão (fibrose e hipertensão arterial pulmonar, o que me obrigou a usar doze horas de oxigênio por dia), nos ossos (osteoporose), e no sistema circulatório (flebite e ulcerações nos dedos causadas pelo fenômeno de Raynaud que atinge veias de pequeno calibre), além de uma importante calcinose nas coxas. No começo, o tratamento era à base de corticoides e não apresentava melhoras significativas. Surgiu então a pulsoterapia com ciclofosfamida que controlaram bem a doença por uns três anos. Quando a doença começou a evoluir novamente, passei a tomar outro imunossupressor, que funcionou bem por mais três anos. Mas houve uma queda grande na imunidade e o organismo ficou suscetível a infecções. Recentemente, comecei a fazer uso de um vasodilatador e estou muito confiante no resultado.

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GABRIEL SOARES DE PINHO 19 ANOS ESTUDANTE MONTES CLAROS/MG

DESENVOLVER UMA DOENÇA CRÔNICA É ALGO MUITO DIFÍCIL DE SER ASSIMILADO PELOS ADOLESCENTES. ENQUANTO OS AMIGOS ESTÃO PRATICANDO ESPORTES, NAMORANDO E SE DIVERTINDO NAS MUITAS FESTAS DA JUVENTUDE, OS PACIENTES ESTÃO RESTRITOS ÀS SUAS CASAS E IMPEDIDOS DE FAZER ESTAS ATIVIDADES CORRIQUEIRAS DA SUA IDADE. MUITOS ENTRAM EM DEPRESSÃO OU FICAM COM RAIVA DE TUDO E DE TODOS, ENQUANTO OUTROS AMADURECEM E PASSAM A VER A VIDA COM OLHOS DIFERENTES, SENDO MAIS PARTICIPATIVOS E DISCIPLINADOS NO SEU TRATAMENTO.

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O ano era 2007. Era sexta-feira, véspera de meu aniversário (10 de março), lembro que pedi a minha mãe autorização para ir a uma Micareta. Eu já havia notado que minhas pernas estavam inchadas, mas resolvi não falar nada, pois sabia que ela não me deixaria ir se achasse que eu não estava bem. A permissão dela foi o meu presente de aniversário. Alguns dias depois, o caseiro de nosso sítio foi almoçar em nossa casa na cidade, e reparou que minhas pernas estavam inchadas. À noite, quando minha mãe chegou do trabalho, e me viu no computador, reclamou muito e fez aquele discurso todo de que eu deveria estar me preparando para o vestibular. Nesse momento resolvi dizer a ela que precisava ir ao médico por causa das pernas, e contei que não tinha mais a mesma mobilidade. Na mesma hora ela me levou ao Pronto Atendimento. Lá receitaram um remédio para o inchaço, mas não souberam dizer qual era o meu problema. No dia seguinte, após fazer exames de sangue e urina, continuava sem nenhuma suspeita de doença que pudesse explicar os meus sintomas. Isso nos deixou preocupados, pois sabíamos que alguma coisa estava errada. Consultei-me com praticamente todos os médicos da minha cidade, até que um

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deles, cardiologista, disse suspeitar que eu estava com Esclerose Sistêmica. Ele nos indicou um reumatologista que, depois de realizar uma biópsia, confirmou o diagnóstico. Até aquele momento sempre tive uma vida normal como a de todos os adolescentes da minha idade. Ia à escola e praticava esporte. No meu caso, jogava basquete, que sempre foi meu passatempo preferido. Quando recebi a notícia de que tinha ES e passei a entender do que se tratava, fiquei muito sentido. Minhas atividades foram restringidas. Cheguei a perguntar a minha mãe se eu havia me tornado um incapacitado, pois me sentia um vegetal, já que não podia mais jogar basquete, ir ao clube e fazer mais um monte de coisas que gostava. Minha mãe, percebendo a minha angústia, soube, através de minha tia, de um especialista em Campinas. Fomos consultá-lo. E esse dia foi muito especial para mim, pois ele me disse que eu poderia levar uma vida normal, fazer tudo o que eu conseguisse, mas que deveria estar atento, compreender e respeitar as minhas limitações. Após um ano de tratamento minha ES está controlada e atualmente faço acompanhamento de controle. Uma das coisas que acho que a doença proporcionou foi a união da minha família, fez nos apegar ainda mais uns aos outros. A minha vida religiosa também mudou muito. Desde o início, sabia que não conseguiria lidar com a realidade da doença sem a ajuda do Nosso Senhor. Eu tinha muito medo. Hoje, passado o susto, só tenho a agradecer aos familiares, aos amigos, meus professores e o diretor do colégio que eu estudava, que sempre estiveram ao meu lado.

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DEPOIS DE DIAGNOSTICAR A ES, SENDO LEVE OU AGRESSIVA, É IMPRESCINDÍVEL QUE O PACIENTE TENHA UMA BOA ADESÃO AO TRATAMENTO, QUE O LEVE REALMENTE A SÉRIO, E INTERAJA COM SEU MÉDICO SOBRE TODOS OS SINTOMAS DA DOENÇA. ESTES FATOS CERTAMENTE O TORNARÃO MAIS FORTE EM RELAÇÃO A QUALQUER PROBLEMA QUE APAREÇA, ESTANDO OU NÃO ASSOCIADO À SUA DOENÇA. O APOIO FAMILIAR E ESPIRITUAL TAMBÉM CONTRIBUI DECISIVAMENTE PARA O SUCESSO DO TRATAMENTO.

Graças a esse apoio, no final do terceiro ano, passei no vestibular e fui estudar administração na Faculdade de Belo Horizonte, onde morei durante seis meses. Como não consegui me adaptar à cidade, comecei a ter depressão e isso estava afetando meu tratamento. Resolvi trancar a faculdade e voltar para Montes Claros, onde me sinto bem. Atualmente trabalho na padaria da minha família, e nos finais de semana faço trilhas de moto e outros passeios.

Futuramente penso em fazer um novo vestibular. Sei que isso vai ser muito importante para mim. Acho que já está na hora de meus pais descansarem, e eu, junto com meus irmãos, tocarmos os negócios. Uma coisa importante que aprendi nos últimos dois anos de tratamento contra a ES é que não devemos ser mal agradecidos. É importante perceber que existem outras pessoas em situações tão delicadas ou mesmo pior do que a da gente. No meu entender não devemos reclamar da vida que temos.

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GERALDO ROBERTO COGO 63 ANOS PEDIATRA CAMPINAS/SP

ESTAR DOENTE É UM PROCESSO QUE IRÁ ATINGIR A TODOS NÓS, EM DETERMINADOS MOMENTOS DE NOSSAS VIDAS. E QUANDO A DOENÇA AFETA UM PROFISSIONAL DE SAÚDE, QUE ENTENDE MELHOR QUE OS LEIGOS SOBRE OS MECANISMOS DE DOENÇA E SEUS RISCOS POTENCIAIS, ESTE PROCESSO É MAIS INTENSAMENTE SENTIDO, ESPECIALMENTE QUANDO SE TRATA DE UMA DOENÇA CRÔNICA. MAS OS PRINCÍPIOS DE TRATAMENTO, O APOIO DA FAMÍLIA E DOS AMIGOS NESTES MOMENTOS DE ANGÚSTIA SÃO OS MESMOS QUE DEVEM SER OBSERVADOS EM QUALQUER PACIENTE. TODO SER HUMANO NECESSITA DE MUITA SOLIDARIEDADE PARA CONSEGUIR ENFRENTAR UMA DOENÇA.

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Solidariedade e apoio dos amigos e da família. São esses os dois fatores fundamentais que confortam um doente, diante das adversidades de ordem física e emocional e que dão forças para seguir adiante. Por isso, gostaria de relatar um fato que marcou muito, não apenas por ter me beneficiado, mas por me fazer ainda acreditar no ser humano. Uma vez, quando eu não estava conseguindo obter um medicamento de alto custo através do Estado, pois este não chegava ao local de distribuição, minha filha Marina, que mantém contato com portadores e com associações de esclerodermia, perguntou, via internet, aos demais portadores, se haveria alguma outra forma de obtê-lo. Em resposta, uma pessoa desconhecida da gente, a Cristina Pelizari, de Pernambuco, que também é portadora da doença e usuária da mesma medicação que eu, tinha um frasco do remédio e no momento não poderia utilizá-lo. Por e-mail ela disse que me mandaria o remédio. E assim o fez. O medicamento chegou naquela mesma semana, coincidentemente, no dia de

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meu aniversário. Acho oportuno registrar nesse livro a minha sincera gratidão à Cristina. Após um período terrível, que durou até julho de 2007, levo atualmente uma vida mais tranquila, já que a doença está sob controle. Mas chegar até aqui foi uma longa e dolorosa caminhada. Moro em Campinas com minha esposa Lourdes e minhas filhas Paula e Marina, e onde sou médico pediatra há 33 anos. Trabalho num hospital da cidade e no meu consultório. O diagnóstico da minha doença foi feito há mais ou menos quatro anos. Os primeiros sintomas foram arroxeamento das mãos e pés, principalmente nos períodos de frio, assim como vermelhidão constante dos antebraços e mãos. A conclusão do diagnóstico foi bastante demorado e difícil, pois a doença é ainda relativamente desconhecida. Por muito tempo, sem saber o que eu tinha, a minha rotina foi muito difícil e de extrema preocupação, pois sabia que apresentava alguma patologia relativamente rara, já que não se enquadrava em roteiros de diagnósticos simples. Continuava exercendo minha profissão, mesmo com os sintomas, mas como não sabia o que tinha nem como tratar ficava constantemente preocupado.

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ESTE DEPOIMENTO REVELA QUE, MESMO PARA UM EXPERIMENTADO PROFISSIONAL DE SAÚDE, O DIAGNÓSTICO DE ES FOI DEMORADO, DEVIDO À APARENTE RARIDADE DA DOENÇA, E DO DESCONHECIMENTO DE MUITOS MÉDICOS SOBRE SUA EVOLUÇÃO. ESTA DEMORA DIAGNÓSTICA SOMENTE SERÁ SOLUCIONADA COM O CRESCIMENTO DA REDE DE INFORMAÇÕES SOBRE A ESCLEROSE SISTÊMICA.

Quando finalmente foi feito o diagnóstico, com biópsia e exame histológico, tal hipótese já havia sido aventada por outro colega dermatologista da cidade. A notícia foi recebida com muita apreensão, pois havia a expectativa de que o quadro fosse brando. Como minha condição já estava avançada, a minha primeira reação foi de medo, mas não havia opção. Era preciso enfrentar todas as adversidades que iriam vir. E ser médico, neste momento, me ajudou no sentido de ter noção acerca dos problemas que era preciso enfrentar. Apesar de ter ciência das possíveis complicações, iniciou-se em janeiro de 2007, um dos piores períodos. Tive dores terríveis

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UM PROBLEMA SÉRIO VIVIDO PELOS PACIENTES ESCLERODÉRMICOS É QUE ALGUMAS MANIFESTAÇÕES POTENCIALMENTE GRAVES E MUITO SINTOMÁTICAS, COMO AS ÚLCERAS ISQUÊMICAS DESTE PACIENTE, TÊM TRATAMENTO BASTANTE CARO. UMA POLÍTICA DE SAÚDE QUE FACILITE O FORNECIMENTO DESTAS MEDICAÇÕES DE CUSTO BASTANTE ELEVADO PARA OS PACIENTES QUE REALMENTE A NECESSITAM SE FAZ NECESSÁRIA, TANTO PARA AS DOENÇAS BASTANTE CONHECIDAS COMO A AIDS, QUANTO PARA AQUELAS QUE SÃO MAIS RARAS E DESCONHECIDAS COMO A ESCLEROSE SISTÊMICA.

nos dedos, principalmente dos pés, e aparecimento de úlceras nestes locais. Estas dores eram de muito difícil controle e tinha de tomar drogas analgésicas que provocaram o aparecimento de arritmias cardíacas sérias. Isso me levou, por quatro ocasiões, a internações em UTI. Para o alívio da dor, havia outros métodos combinados às drogas, como a ablação de terminações nervosas por radiofrequência e aplicação de toxina botulínica em alguns dedos dos pés, onde o desconforto era insuportável e os espasmos arteriais já estavam levando à necrose destes membros.

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A evolução destas necroses resultou em inevitável amputação de dois dedos dos pés. Logo após estas amputações, sobrepondo a tudo isto neste período, fui ‘premiado’ com um quadro de dengue hemorrágica, que mais uma vez me levou a frequentar uma UTI. Nesta fase, diante de todas estas intercorrências, foi proposta a introdução de uma medicação de alto custo, que mantenho até os dias de hoje, e que me trouxe um grande alívio, não só em relação à dor, que foi a pior experiência de toda esta trajetória, assim como mais força emocional resultando uma melhor qualidade de vida.

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JOAQUIM BERNARDES 54 ANOS MECÂNICO APOSENTADO AMERICANA/SP

QUANDO SE TEM UMA VIDA AGITADA E EM CONSTANTE MUDANÇA, O DIAGNÓSTICO DE QUALQUER DOENÇA CRÔNICA SE TORNA MAIS DIFÍCIL, PELA DIFICULDADE DO PACIENTE EM SE FIXAR NUM MÉDICO OU INSTITUIÇÃO DE SAÚDE QUE POSSA TRATAR, DE FORMA ADEQUADA, A DOENÇA DE BASE. E ESTES PROBLEMAS SE TORNAM AINDA MAIORES QUANDO SE TRATA DE DOENÇAS POUCO FREQUENTES, COMO A ESCLEROSE SISTÊMICA.

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Antes da ES, eu era mecânico socorrista. Viajava bastante por vários estados, tinha uma vida bem agitada. Mesmo com dores eu continuei trabalhando, pois como não tinha o diagnóstico da doença, o INSS não quis me afastar. Saber o que eu tinha foi bastante difícil. A doença começou com dores nas juntas, há uns sete anos. Minhas mãos ficavam ressecadas e constantemente geladas. Como estava sempre viajando a trabalho, eu acabava tendo que procurar ajuda onde estivesse por conta das fortes dores. Gastei muito dinheiro em consultas, com exames complexos, quase todos particulares, e com medicamentos, sem obter nenhum resultado. Foi essa a minha dolorosa rotina até conseguir o diagnóstico e começar o tratamento na Unicamp. A essa altura eu já não tinha mais condições de trabalhar e precisei me aposentar.

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A EXISTÊNCIA DE ASSOCIAÇÕES DE PACIENTES É MUITO IMPORTANTE PARA QUE MUITOS PACIENTES COM DOENÇAS CRÔNICAS POSSAM PERCEBER QUE NÃO ESTÃO SOZINHOS EM SUAS DÚVIDAS E SEUS MEDOS. APÓS UMA EVENTUAL FASE INICIAL DE DEPRESSÃO, O PACIENTE ESCLERODÉRMICO PRECISA PERCEBER QUE SUA MELHORA ESTÁ LIGADA AO TRATAMENTO ADEQUADO E A UMA POSTURA PESSOAL DE ENFRENTAR OS PROBLEMAS COM SERENIDADE E, QUANDO POSSÍVEL, COM BOM HUMOR.

Foi muito difícil aceitar a notícia de que estava com ES. Eu não tinha conhecimento da doença e ouvir dos médicos que não tinha cura foi muito duro, pensei que fosse morrer. Então entrei em depressão profunda. Mas depois me explicaram que apesar de não ter cura, havia um tratamento que controlava a doença e que eu poderia levar uma vida normal. Apesar de passar por momentos difíceis, que incluem uma cirurgia do coração – quando eu fiz essa cirurgia, fiquei em coma por 30 dias –, úlcera abdominal, eu não perdi a alegria de viver.

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Hoje eu passeio muito. Gosto de ir pescar, assistir a jogos de futebol, visitar amigos na firma em que trabalhei e onde atualmente faço palestras sobre segurança do trabalho. Minha família me apoiou muito. Uma coisa importante e que me ajudou a ter um olhar positivo sobre a minha nova vida, que me ajudou a encarar o futuro de maneira otimista foi a Abrapes – Associação Brasileira dos Pacientes de Esclerose Sistêmica. Lá na Associação, eu me dei conta de que não estava sozinho. Conheci várias pessoas com a mesma doença que são alegres e levam uma vida normal. Formamos um grupo bastante unido e estamos sempre amparando um ao outro.

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JOZETE MARINA DA SILVA 51 ANOS VAQUEIRA VALINHOS/SP

TER UMA DOENÇA CRÔNICA JÁ É DIFÍCIL PARA AS PESSOAS QUE TEM CONDIÇÕES DE PROCURAR UM DIAGNÓSTICO E UM TRATAMENTO ADEQUADOS COM MÉDICOS OU CENTROS DE SAÚDE QUE SÃO REFERÊNCIA. IMAGINEM QUEM NÃO TEM NADA A NÃO SER A FÉ EM FICAR BOA, NUMA CIDADE PERDIDA POR ESTE BRASIL DESIGUAL NAS SUAS POTENCIALIDADES E OPORTUNIDADES! ESTE É O CASO DE JOZETE, HUMILDE VAQUEIRA DE OURICURI, SERTÃO DE PERNAMBUCO. SEM CONDIÇÕES FÍSICAS E FINANCEIRAS, CONSEGUIU VIR PARA SÃO PAULO, E LUTOU BRAVAMENTE PARA FAZER SEU TRATAMENTO COM MEDICAÇÕES QUE NÃO TINHA CONDIÇÕES FINANCEIRAS DE COMPRAR. APESAR DE TODA A IMENSA ADVERSIDADE, NÃO PERDEU A ESPERANÇA DE MELHORAR, E ESTÁ MELHORANDO, MESMO QUE LENTAMENTE (PELAS CONDIÇÕES IRREGULARES DE TRATAMENTO).

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Há dez anos eu estava sentindo um inchaço no corpo e percebia a cada dia que estava perdendo a força nos braços. Procurei o Posto de Saúde da minha cidade, no interior de Pernambuco, onde eu morava e trabalhava como vaqueira. Os médicos locais não sabiam o que eu tinha e um dia me recomendaram ir para São Paulo, pois lá não tinham condições de diagnosticar minha doença, nem mesmo suspeitavam o que poderia ser. E assim, minha ES foi diagnosticada, em 1999, em São Paulo. Desde então, tomo injeções que estão me ajudando a melhorar. Ocorre que, desde o Natal de 2008, comecei a sentir dificuldades para andar, por conta das articulações dos meus joelhos. Tenho ficado mais em casa por causa disso e, quando posso faço curtas e lentas caminhadas. Vivo em Valinhos com minha cunhada, viúva de meu irmão, e minhas três sobrinhas. Como minha cunhada trabalha fora uma parte do dia, são as meninas que cuidam de mim quando ela não está. Muitas vezes me sinto profundamente triste e tento não perder a esperança. Nessas horas busco me distrair vendo televisão – adoro assistir ao telejornal. Em outros momentos, minha fé me invade e me dá a certeza de que vou ficar boa, de que vou melhorar, de que voltarei a caminhar e que voltarei a cuidar das minhas coisas. Tenho muito desejo de voltar para a minha casinha, para minha terra no interior de Pernambuco, para cuidar do meu pai que ficou lá.

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MARIA DO ROSÁRIO COSTA MAUGER 50 ANOS ARTISTA PLÁSTICA CAMPINAS/SP

TER O DIAGNÓSTICO DE UMA DOENÇA CRÔNICA É SEMPRE UMA EXPERIÊNCIA DURA PARA QUALQUER PACIENTE. PRINCIPALMENTE QUANDO SE TEM UMA DOENÇA POUCO CONHECIDA, E COM TRATAMENTO AINDA NÃO ACESSÍVEL A TODOS OS PACIENTES. MAS, TODAS ESTAS DIFICULDADES PODEM SE TRANSFORMAR EM FORÇA MOTRIZ PARA ENFRENTAR A DOENÇA E DEPOIS AINDA AJUDAR OUTROS PACIENTES A TAMBÉM ENFRENTÁ-LA.

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Meu quadro de ES teve início em 1987, com dores nas juntas, estreitamento do esôfago e fenômeno de Raynaud. Por volta do ano 2000, foi diagnosticada também a hipertensão arterial pulmonar. Mas, não foi nada fácil descobrir o que eu tinha de fato. O diagnóstico final foi muito demorado, só veio dez anos depois de eu começar a ter as primeiras manifestações, dores e outros indicativos. Isso porque a ES é uma doença ‘relativamente nova’ e com sintomas semelhantes aos de outras doenças autoimunes. Num primeiro momento, quando descobri que tinha Esclerose Sistêmica f i q u e i m u i t o re v o l t a d a . Sempre fui uma pessoa muito dinâmica e vaidosa. Tinha uma loja de roupas e viajava quinzenalmente para São Paulo e Rio de Janeiro para fazer compras. Frequentava academia diariamente, e acompanhava o desenvolvimento dos meus dois filhos, na época adolescentes. Além disso, fazia muitas viagens a passeio.

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ACEITAR A DOENÇA PARA MELHOR CONSEGUIR VENCÊ-LA É UM PASSO IMPORTANTE NA CONDUÇÃO DO TRATAMENTO DO PACIENTE ESCLERODÉRMICO. O PACIENTE, EMBORA NÃO ESTEJA FELIZ COM SUA NOVA CONDIÇÃO, NECESSITA ENCONTRAR FORÇAS PARA NÃO SE SENTIR DEPRIMIDO A PONTO DE PARAR DE APROVEITAR SUA VIDA.

Com a doença, eu tive que me adaptar a uma nova vida, num ritmo bem mais devagar. Ao longo do tempo fui reduzindo as minhas atividades até chegar a um estágio em que precisei abrir mão de minha loja e não conseguia mais fazer ginástica. Enfim, vivia de uma forma mais calma, com menos afazeres, e poucos compromissos. Lembro bem que não foi fácil superar o choque, saber da notícia de que eu tinha ES, mas, como sou muito forte, pensei: ‘Vou superar essa doença. Ela não vai acabar comigo’. Senti que precisava dessa força emocional, e que era

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O APOIO FIRME E INCONDICIONAL DA FAMÍLIA PERMITE AO PACIENTE ENCONTRAR FORÇAS PARA SE CONCENTRAR NO TRATAMENTO, INTERAGINDO POSITIVAMENTE COM OS MÉDICOS PARA CHEGAR A UM MELHOR RESULTADO TERAPÊUTICO.

necessário acreditar para que meu tratamento tivesse resultado. Foi nesse momento que consegui dar o passo mais importante: aceitar a doença e acolher a minha nova condição. Meu marido sempre me apoiou e foi em busca de tudo que pudesse me ajudar. O amor de minha família foi o que me deu forças para seguir em frente de uma forma positiva. Outro fator importante nessa trajetória foi poder estar sendo acompanhada por um especialista de nível internacional. Hoje voltei a ser aquela pessoa dinâmica de antes, com muitos planos, projetos e sonhos a realizar. Costumo fazer longas caminhadas com meu cachorro, viajo, pinto minhas telas e, firme e forte, sigo vivendo a vida.

Tenho muitos planos para a Abrapes – Associação Brasileira dos Pacientes de Esclerose Sistêmica –, da qual sou presidente desde fevereiro de 2007. Quero me dedicar ao estudo do inglês e do espanhol para promover intercâmbio da nossa associação com grupos internacionais. O principal objetivo da Abrapes é ajudar a todos os portadores brasileiros da ES a ter uma vida digna. E para isso, é necessário acessar e difundir informações sobre a doença e sobre os avanços no tratamento da ES.

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MONALIZA SILVA RIBEIRO 22 ANOS TÉCNICA DE ENFERMAGEM MESQUITA/RJ

A ESCLEROSE SISTÊMICA É UMA DOENÇA FREQUENTE EM PESSOAS ADULTAS, SENDO RARA EM CRIANÇAS, QUE GERALMENTE APRESENTAM A FORMA LOCALIZADA DA DOENÇA. DESENVOLVER SINTOMAS SISTÊMICOS DA ESCLERODERMIA NA INFÂNCIA, COM TODAS AS LIMITAÇÕES QUE A DOENÇA E SEU TRATAMENTO ACARRETAM, NÃO É FÁCIL NEM PARA AS CRIANÇAS NEM PARA SEUS PAIS.

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A Esclerose Sistêmica é uma enfermidade e quem tem precisa aprender a conviver com algumas limitações. Eu pensei que se Deus colocou esse obstáculo na minha vida é porque ele sabe que, mais do que qualquer outra pessoa, sou capaz de superar e sou forte o bastante pra seguir em frente. No meu caso, a ES está presente na minha vida desde criança. Comecei a desenvolver a doença com apenas três anos e meio. Minha mãe percebeu que eu tinha algo de diferente em relação às outras crianças da minha idade. Meus dedinhos das mãos e dos pés estavam sempre gelados e roxos. Além disso, podia estar fazendo calor que eu sentia muito frio e nunca suava. Ela resolveu então conversar com a minha pediatra que me encaminhou para o Hospital do Fundão onde a ES foi diagnosticada. Minha mãe conta que foi complicado chegar ao diagnóstico na época, já que a ES não é uma doença comum em crianças e, portanto, demoraram para suspeitar.

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EM ALGUNS CASOS NÃO RESPONSIVOS AO TRATAMENTO CONVENCIONAL, EM PACIENTES COM ACOMETIMENTO VISCERAL GRAVE, UMA DAS ALTERNATIVAS TERAPÊUTICAS É O TRANSPLANTE DE MEDULA ÓSSEA, PROCEDIMENTO QUE REQUER PREPARAÇÃO E GERALMENTE TEM UMA LONGA RECUPERAÇÃO. É UM PROCEDIMENTO DE RISCO QUE DEVE SER MUITO BEM ESTUDADO E ASSIMILADO PELO PACIENTE E SUA FAMÍLIA.

Como cresci convivendo com a ES, sempre soube que era uma doença incurável e cuja causa não tem explicação. A única vez que me senti profundamente abalada foi quando cheguei na adolescência e, ao pesquisar sobre a doença, pude compreender o que significa ter ES. Meu tratamento é contínuo desde criança. Recentemente, há cerca de sete meses, passei por um transplante de células-tronco. Foi um processo bastante complicado e doloroso. Além de ficar meses em outro Estado, longe de casa, fiz sessões de quimioterapia muito fortes que dão mal-estar e abalam o estado psicológico.

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Meu cabelo caiu e fiquei assustada. Mas graças a Deus, o procedimento foi um sucesso e trouxe melhoras para minha condição. Acho que o fato de conviver com a ES desde muito pequena fez com que eu sempre levasse a vida da maneira mais normal possível. Meus pais lidaram muito bem com o problema, sempre cuidaram e ainda cuidam de mim, mas nunca impediram que eu vivesse, apesar de não ser igual aos outros e de ter limitações. Com isso, sempre pude estudar, ter meus momentos de lazer e diversão. Tenho muitos amigos, estamos sempre juntos, curtindo desde as baladas mais agitadas até as reuniõezinhas mais íntimas. A minha irmã também é muito companheira. Está sempre presente. O carinho dela é fundamental para que eu continue seguindo adiante. Uma coisa que sempre penso é que problema todo mundo tem e não é por isso que devemos parar de viver. Pelo contrário, temos que seguir em frente com mais perseverança. Minha mãe costuma dizer que Deus dá a cruz que a gente pode carregar e se ele nos escolheu, nos faz passar por essas coisas, é porque somos

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especiais e muito fortes. A fé é essencial. Já me peguei reclamando da vida e perguntando a Deus: ‘Por que eu?’. Mas, isso acontece nos momentos de angústia que toda pessoa sente em algum momento da vida. Faço muitos planos para o futuro. Me formei em dois cursos técnicos: enfermagem e informática, e no momento estou trabalhando para cursar minha faculdade, que é um sonho que sei que posso realizar. Atualmente sou assessora de vendas da rede Leroy Merlin. Meu dia-a-dia é de muito trabalho como o de qualquer um de meus colegas de trabalho.

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ALBA VALÉRIA SILVA RIBEIRO 47 ANOS MÃE DE MONALIZA

SER UM(A) CUIDADOR(A) DE UM MEMBRO DA PRÓPRIA FAMÍLIA É UMA ATITUDE DE AMOR E DOAÇÃO. QUANDO SE É CUIDADOR(A) DE UM(A) FILHO(A), MUITAS VEZES INDEFESO ANTE UMA DOENÇA CRÔNICA E POTENCIALMENTE GRAVE, ESTA DOAÇÃO GUARDA MUITA ANSIEDADE, ANGÚSTIA E MEDO DA EVOLUÇÃO DA DOENÇA. MAS ESTE TRABALHO TEM UMA FUNÇÃO PRIMORDIAL NA BOA RESPOSTA AO TRATAMENTO DOS SEUS ENTES QUERIDOS.

Descobrir e lidar com a informação de que um filho tão pequeno é portador de uma doença como a ES é muito complicado. No princípio, até que eu me adaptasse à situação, passei por muitas dificuldades. Era difícil aceitar que uma criança que nasceu com perfeita saúde, pesando 4,1 quilos e medindo 53 cm pudesse desenvolver um problema assim. Foram, pelo menos, dez anos de muitas dificuldades e sofrimento até eu conseguir me habituar, e a compreender a doença. Vi minha filha perder a infância em leitos hospitalares e isso é muito duro. Até hoje, mesmo após ela ter se submetido a um transplante de células-tronco com objetivo de controlar a progressão da doença, ainda sinto que não vencemos. Mas enquanto eu viver, vou continuar lutando porque tenho a companhia de Deus e desejo que minha filha tenha uma vida melhor.

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ROSEMEIRE DE OLIVEIRA VASCONCELOS 37 ANOS DOMÉSTICA RIO CLARO/SP

TER UMA DOENÇA CRÔNICA E COM MANIFESTAÇÕES GRAVES NÃO É SINÔNIMO DE INVALIDEZ E MORTE. DESDE QUE O PACIENTE FAÇA CORRETAMENTE O TRATAMENTO, MESMO COM OS EFEITOS COLATERAIS – NA MAIORIA DAS VEZES REVERSÍVEIS – QUE SÃO COMUNS QUANDO SE TEM DE USAR MEDICAÇÕES POTENTES PARA CONTER MANIFESTAÇÕES GRAVES E POTENCIALMENTE FATAIS DA ESCLEROSE SISTÊMICA. OS SONHOS E OBJETIVOS DE VIDA NÃO DEVEM SER ESQUECIDOS. POR VEZES, PRECISAM SER MODIFICADOS, MAS DEVEM SER MANTIDOS E ASSOCIADOS À VONTADE DE VENCER A DOENÇA. ESTE É O CASO DE ROSEMEIRE, QUE TEVE UM CASO INICIALMENTE GRAVE DE ES, SEGUIDO DE UMA TROMBOSE PORTA, QUE NECESSITOU DE UM TRATAMENTO AGRESSIVO E MUITAS INTERNAÇÕES. FEZ CORRETAMENTE TUDO QUE LHE FOI SOLICITADO, CONTRIBUIU COM OS MÉDICOS EM TUDO QUE ERA NECESSÁRIO, E CONTROLOU A DOENÇA. E, QUANDO A ES JÁ ESTAVA CONTROLADA, TEVE SEU FILHO QUE LHE TRAZ MUITAS ALEGRIAS.

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Hoje, mais de uma década depois que descobri que tinha ES, chego a pensar que tudo que passei aconteceu com outra pessoa, pois me sinto curada, embora às vezes ainda me pergunte como eu sobrevivi àquelas dores insuportáveis. Procuro só pensar no futuro, nos meus projetos de vida, com meu marido e meu filho Rafael. Me sinto privilegiada por poder ver meu filho crescer, ver que está se tornando um homem de bem, de caráter. Como todos os pais que amam seus filhos, dedicamos muito tempo para ele e queremos oferecer o conforto e as oportunidades que não tivemos, como poder estudar numa boa escola. Eu tinha mais ou menos 22 anos quando comecei a sentir dores nas articulações. Eram dores muito fortes. Às vezes não conseguia levantar o braço nem para pentear o cabelo. Meus dedos também ficavam duros e cheios de feridas. Procurei vários médicos que me mandaram fazer muitos exames. Os laudos sempre indicavam uma infecção, mas como não sabiam do que se tratava, prescreviam antibióticos que nunca resolviam a infecção. Com isso, as dores permaneciam e ficavam cada vez mais fortes.

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Em Rio Claro, onde moro, durante dois anos, passei por vários médicos até me encaminharem para um especialista de Campinas, onde foi feito o meu diagnóstico. Em tratamento na Unicamp fiz, por dois anos, pulsoterapia. Como não conhecia a ES e não entendia o que era fiquei apavorada. Quando eu via no ambulatório algumas pessoas deformadas, outras na cadeira de rodas, eu sentia muita angústia e medo. Pensava: ‘Meu Deus, eu vou ficar assim?’. No começo a pulsoterapia foi bem difícil. Sentia enjoo, o cabelo caiu e fiquei quase careca, o que me deixou desesperada. Eu era bem jovem e estava recém-casada. Mas meu marido me apoiou o tempo todo. Com o amor e dedicação dele somado a fé em Deus, pude me apegar ao tratamento e acreditar que ficaria boa com todas as minhas forças. Enfim, quando melhorei, resolvi que era a hora de realizar o meu sonho de ser mãe. Minha gravidez foi normal, tranquila, sem riscos e o Rafael nasceu lindo e saudável.

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Mesmo com a doença, eu trabalhei o tempo todo. Na época eu era doméstica na casa de uma pessoa muito boa e compreensiva que me ajudou bastante. Durante o dia eu passava bem. Mas quando chegava o final da tarde as dores intensas chegavam sem dó. Eu não aguentava. Eram insuportáveis, e como não sabia o que era e nada melhorava, sentia uma angústia muito grande. Depois, já em tratamento, percebi que se eu ficasse em casa não iria conseguir superar aquilo. O trabalho era importante, me tirava da angústia, me dava a sensação de estar viva, de ser útil. Só parei de trabalhar quando tive meu filho, pois optei por ficar com ele. Fiquei cuidando do Rafael por sete anos e, há três anos, voltei a trabalhar com a mesma pessoa. Já faz um bom tempo que não sinto dores e as minhas mãos, que estavam meio tortas, voltaram ao normal. Meu rosto que também tinha ficado deformado já está praticamente normal. Só quem olhar muito de perto e prestar muita atenção é que vai perceber o endurecimento do nariz e da boca. Fora isso, a única sequela que tenho é um problema no esôfago, que me faz sentir azia. Mas tomo uma medicação específica, a única que uso atualmente, e isso está controlado. Para quem descobre que tem ES digo que tem que lutar e ter fé. É preciso acreditar e fazer tudo direitinho: ir às consultas e cumprir o tratamento recomendado. Em nenhum momento eu deixei de ir ao médico. Continuo fazendo o acompanhamento e tenho, dentro de mim, a certeza de que estou curada.

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RITA DE CÁSSIA GOUVEIA 42 ANOS JORNALISTA CAMPINA GRANDE/PB

TER UMA DOENÇA CRÔNICA E POTENCIALMENTE INCAPACITANTE É MUITO DIFÍCIL DE SER METABOLIZADO INICIALMENTE PELOS PACIENTES E POR SUAS FAMÍLIAS. EMBORA A FAMÍLIA TENHA UM PAPEL FUNDAMENTAL NO SUPORTE PSICOLÓGICO DOS PACIENTES, NÃO É RARO QUE OS PACIENTES SEJAM ABANDONADOS POR SEUS CÔNJUGES E, EVENTUALMENTE, POR SEUS FILHOS, ENFRENTANDO SOZINHOS (OU COM POUCOS AMIGOS) OS MOMENTOS DIFÍCEIS.

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Descobri que era portadora de Esclerose Sistêmica em 1999, dois anos depois do surgimento dos primeiros sintomas. Eu estava inchada, tinha febre e muitas dores nas articulações. Comecei a me tratar aqui mesmo onde vivo, em Campina Grande. Mas os remédios prescritos no começo não surtiam efeito e eu fui ficando cada vez mais inchada. Isso me levou a um quadro de depressão severa, ao ponto de não conseguir me levantar da cama. Nessa época, um médico chegou a me dar poucos meses de vida. Sabendo da situação, um amigo que vivia em São Paulo veio me visitar e me sugeriu procurar uma médica mais experiente em João Pessoa. A essa altura a doença já havia evoluído e eu já tinha desenvolvido a síndrome de Raynaud. Aceitei a recomendação dele e, ao realizar os exames indicados, soube o que realmente tinha e qual o estágio que a doença se encontrava. Até então, eu não fazia ideia do que era ES e quando recebi o diagnóstico e soube do que se tratava sofri muito. Nessa época eu exercia a profissão de jornalista e gostava muito do meu trabalho. Mas havia uma grande incompatibilidade entre a doença e o ritmo exigido na redação. Resolvi então fazer um concurso público, para exercer uma atividade mais tranquila.

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Ocorre que mesmo mudando meu ritmo, a doença me pegou de jeito e nem na repartição pública tive condições de ficar. Para completar, eu, que estava casada há oito anos, fui deixada pelo meu marido. Ele não suportou a situação e foi embora. Para não ficar sozinha, já que precisava de cuidados, fui morar na casa dos meus pais, no interior do Estado. Mas da mesma forma que meu marido, a minha família ficou muito angustiada por conta da minha situação, o que acabava me deixando mais aflita. Acabei voltando para a minha casa. A partir daí, só contei mesmo com a ajuda de meus amigos e, em todos os momentos, de meu chefe, que sempre esteve presente e me ajudou muito. Fora eles, tive que ter forças para lidar com minha doença sozinha. Como fiquei muito deformada, evitava encontrar as pessoas, aos poucos me afastei de todo mundo. Hoje em dia, depois de cinco anos de tratamento contínuo, estou melhor. Faço o controle da enfermidade com medicação e exames de rotina. Eu acho que envelheci e que mudei. Mas graças a Deus recuperei vários órgãos internos que foram afetados pela ES. Ainda tenho estreitamento do esôfago, mas me trato e isso não é mais problema. Quem me conhece hoje não imagina o que passei nem que tenho uma doença tão séria. Me sinto curada. Sou muito

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religiosa e acho que o que aconteceu comigo, a minha recuperação, foi um milagre. E isso eu devo não só a Deus, mas a minha médica também. Ela sempre cuidou de mim, me atendeu e se dedicou ao meu caso com carinho, respeito, compromisso e responsabilidade. Sei que isso fez toda a diferença no meu caso. Acredito que recebi uma nova chance de viver e consigo fazer planos para o futuro. Estar viva me deixa feliz. Atualmente tenho uma vida normal. Viajo muito para a casa dos meus pais, no interior. Apesar de até hoje não entenderem a minha doença, eles estão felizes porque estão me vendo bem. Realmente me sinto ótima, ainda que não tenha a mesma disposição de antes. Vivo com meu namorado que é uma pessoa muito boa para mim e que entende que preciso ter uma vida regrada. Ainda tenho muitas sensibilidades. Por exemplo, se me aborrecer sinto logo a pele repuxando. Recentemente tentei voltar a trabalhar na repartição pública, mas não consegui porque o ambiente tenso me deixa nervosa e minha imunidade baixa. Quero voltar a trabalhar num lugar que não comprometa minha saúde e, de preferência, com alguma coisa que possa ajudar pessoas, que é uma coisa que me faz sentir muito bem.

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SÔNIA MARIA PEQUENO TESSARI 42 ANOS DONA DE CASA CAMPINAS/SP

AS DOENÇAS AUTOIMUNES ESTÃO ASSOCIADAS A DESEQUILÍBRIOS DA NOSSA IMUNIDADE. EMBORA FATORES GENÉTICOS E AGENTES INFECCIOSOS E AMBIENTAIS POSSAM ATUAR COMO FATORES CAUSAIS DAS DOENÇAS AUTOIMUNES, OS TRANSTORNOS QUE LEVAM AO ESGOTAMENTO PSÍQUICO SÃO FATORES IMPORTANTES NA GÊNESE DESTAS DOENÇAS. APRENDER A CONTROLAR OS PROCESSOS DE RAIVA, DEPRESSÃO, ANGÚSTIA, ANSIEDADE É UMA TAREFA ÁRDUA, MAS QUE CONSEGUE AUXILIAR MUITO NO TRATAMENTO DAS DOENÇAS AUTOIMUNES, NOS PACIENTES QUE FAZEM UM TRATAMENTO ADEQUADO.

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Durante uma viagem a passeio com a família, no final de 2004, minha irmã reparou que meu rosto estava inchado, principalmente em torno dos olhos. No começo de 2005, percebi que o inchaço estava piorando, e comecei a sentir dores musculares, os pés e as mãos ficavam roxos e dormentes, e a respiração difícil. Me dei conta de que meu cabelo também estava caindo e que minha pele estava escurecida. Fui ao posto de saúde próximo da minha casa, onde não solicitaram exames, e me indicaram tratamento com calmantes, pois achavam que o meu problema era estresse emocional. Como tenho hipotireoidismo, resolvi procurar meu endocrinologista. Ele suspeitou de reumatismo e me encaminhou a um especialista. Já na primeira consulta o diagnóstico foi doença do tecido conjuntivo. Fiz vários exames que mostraram acometimento no pulmão. Comecei então a tomar outros medicamentos e fui encaminhada para a Unicamp, onde comecei a terapia intravenosa, conhecida como pulsoterapia.

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Lembro que levei um susto quando entrei na sala de tratamento. Liguei imediatamente para o meu marido. Fiquei angustiada, pois me deparei com outras pessoas doentes e lutando pela vida. Hoje penso que esse fato, que me chocou inicialmente, acabou me dando forças para seguir em frente. O primeiro ano da doença foi difícil, pois tinha de ir com frequência fazer o tratamento e ao mesmo tempo cuidar dos meus filhos – hoje o menino com quinze anos e a menina com 7. Meu irmão me ajudava com eles. Ele buscava as crianças na escola sempre que eu precisava. Emagreci muito e meus familiares ficaram muito assustados, pois não compreendiam nada sobre a doença. E eu não conseguia acreditar e entender porque uma coisa assim – que nem eu entedia direito – pudesse acontecer comigo, justo quando meu filho especial estava na escolinha e indo muito bem. Atualmente me sinto melhor. O tratamento tem dado resultado e a esclerodermia está estabilizada. Só lembro que a tenho quando vou ao hospital para fazer avaliação. Sei que uma das coisas importantes que aconteceram foi a possibilidade de contar com acompanhamento psicológico. Acho que o fator emocional conta muito e é importante aprendermos a conviver com a doença.

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O DIAGNÓSTICO E TRATAMENTO PRECOCES PODEM EVITAR QUE OS ACOMETIMENTOS VISCERAIS APAREÇAM E PROGRIDAM COM SEQUELAS MUITAS VEZES IRREVERSÍVEIS PARA OS PACIENTES. E MAIS UMA VEZ É ENFATIZADA A IMPORTÂNCIA DO APOIO DA FAMÍLIA E DOS GRUPOS DE PACIENTES PARA QUE OS ESCLERODÉRMICOS REENCONTREM O SEU PRUMO E VOLTEM A VIVER SUAS VIDAS COM MAIS QUALIDADE E ESPERANÇA.

Mesmo no meu caso, em que a ES é leve e poderia ter sido ainda mais branda se eu tivesse tido o diagnóstico logo na primeira vez em que procurei ajuda médica. Esse apoio que tive na clínica onde meu filho faz terapia, somado a minha rotina doméstica, me ajudou a não desanimar. Eu pensava o tempo todo na minha família, que é a minha maior conquista, e o quanto era importante para mim cuidar dos meus filhos. Acho que os médicos, os profissionais de saúde em geral, não estão preparados para lidar com a ES. Eles não sabem reconhecer e nem tratar a doença. E, em função disso, muitos portadores de ES encontram dificuldades para obter auxílio-doença, ou mesmo a aposentadoria junto a Previdência Social.

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VALDINÉA NASCIMENTO ARAÚJO 32 ANOS RIO DE JANEIRO/RJ

POR MAIS QUE UMA DOENÇA POSSA AFETAR A SAÚDE DE UMA PESSOA, CAUSANDO INÚMERAS PERDAS (AFETIVAS, PESSOAIS, FAMILIARES, PROFISSIONAIS, FINANCEIRAS, E AÍ POR DIANTE), AINDA RESTARÁ A ESPERANÇA DE QUE UMA NOVA ETAPA DA VIDA, COM MAIS MATURIDADE E CIÊNCIA DAS LIMITAÇÕES E DAS POTENCIALIDADES, ESTARÁ ESPERANDO PARA SER VIVIDA. ESTE É O EXEMPLO DA BATALHADORA VALDINÉA, QUE VIU SUA VIDA PRATICAMENTE SER DESTRUÍDA PELA ESCLEROSE SISTÊMICA, MAS ENCONTROU FORÇAS INTERIORES PARA, CONSEGUINDO TRATAR-SE E E MELHORAR DE SUA DOENÇA, INICIAR UMA NOVA E PRODUTIVA FASE DE SUA VIDA, AUXILIANDO OUTROS(AS) PACIENTES QUE PASSAM PELO MESMO PESADELO A RECOMPOREM SUAS VIDAS.

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Sou uma pessoa a quem uma doença autoimune alcançou de forma brutal, a ponto de mudar completamente a minha vida. Em fevereiro de 1997, percebi, após um passeio à praia, que a minha pele estava com um bronzeado diferente. Na realidade, ela estava escura e mesmo depois de semanas, não voltou mais à cor natural. Eu tinha 20 anos, era recém-casada, e tinha muitos planos para o futuro. Em pouco tempo o problema de pele se agravou e com ele apareceram as dores articulares. Resolvi procurar um reumatologista que diagnosticou Esclerose Sistêmica. Leiga, pensei que o tratamento seria uma coisa simples e passageira. A falta de informação sobre a doença me fez ficar, por dois anos, me tratando com cremes para clarear a pele. O tempo, ingrato para os que não recebem o tratamento correto, me fez ver a mudança de meu corpo de forma cruel. Aos poucos fui deixando de fazer pequenas coisas diárias, como pentear os cabelos, abotoar minha blusa, deitar e me levantar da cama sozinha.

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Eu passava noites em claro imaginando o que ainda estava por vir. As terríveis dores me traziam medo e insegurança. Pensei que não havia solução para mim, olhava para o meu corpo e não acreditava na minha metamorfose. Uma febre repentina me acometeu por vinte dias seguidos e fui levada a uma clínica de emergência. Lá o médico de plantão me encaminhou para o Hospital Pedro Ernesto. Quando cheguei ao Pedro Ernesto, já não tinha praticamente nenhuma força para me locomover. As articulações já estavam comprometidas e o ar me faltava. No atendimento fui avaliada por uma equipe da clínica médica, onde foram feitos exames que nunca tinha ouvido falar. Meu corpo já estava completamente comprometido pelas lesões causadas pela ES: o esôfago e estômago foram afetados, minhas mãos tomaram forma de garras e o pulmão foi tomado pela fibrose pulmonar. Foi um momento de muita apreensão e tristeza.

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Naquele momento percebi que familiares de um paciente reumático nem sempre conseguem encarar a doença. E no meio dessa confusão na minha vida, vi meu casamento acabar. Durante seis meses passei pelo doloroso tratamento de pulsoterapia. Minha melhora foi surpreendente e meus movimentos aos poucos foram voltando. Passei novamente a ter esperança. Entre tantas lágrimas, sofrimentos e incertezas, surgiu uma alegria: descobri que estava grávida. A possibilidade da maternidade era a coisa mais importante naquele momento. Era o motivo da minha vida. Eu não sabia que a opção de gerar uma criança provocaria o agravamento da minha doença. A gravidez me trouxe energia e para uma portadora de ES no meu estágio, posso considerar que tive uma gestação normal, apesar do alto risco. Mesmo com todos os cuidados, entrei em trabalho de parto no sétimo mês. Meu bebê prematuro nasceu sem sequelas, mas veio a falecer de septicemia neonatal com quatro dias de vida. Eu não sabia dizer qual o tamanho da dor, nem qual

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dor era maior. A dor física ou a dor da perda. Entrei num processo depressivo e perdi a condição de saber o que era perda e o que era ganho. Quando abria os olhos e percebia que estava viva me perguntava se estar viva era perda ou se era ganho. Nessa época, tive a sorte de conhecer a ONG Lágrima Brasil, da qual me tornei voluntária. Fui salva pela solidariedade e amor ao próximo. Durante oito anos trabalhei com a Lágrima Brasil, no ambulatório do Hospital Pedro Ernesto. Atualmente realizo um trabalho humanitário de conscientização da doença autoimune no Gruparj – Grupo de Pacientes Artríticos do Rio de Janeiro. E percebo que, a medida que a fuga se transforma em aceitação, o tratamento fica menos doloroso. Hoje, é possível contar aos outros a minha experiência. Sei que tenho condições de ajudá-los a não desanimar. Sinto-me realizada no que faço e, apesar de tudo, estou sempre em busca dos meus sonhos. Tenho certeza de que o melhor remédio para amenizar

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qualquer dor é o amor. O amor dos meus pais, meus irmãos, amigos e todos aqueles que passaram a fazer parte da minha vida nos últimos anos foi e é a coisa mais importante para mim. Atualmente a minha vida é feita das minhas escolhas e priorizo sempre a minha saúde. Sei que a doença ainda pode me causar outras sequelas, embora me cuide o tempo todo para que isso não aconteça. Posso dizer que hoje abro os olhos, afasto os fantasmas e concluo que viver é um ‘ganho’.

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LUCILA FERNANDES NOGUEIRA IN MEMORIAN

TÉCNICA DE COMPUTAÇÃO SÃO JOSÉ DOS CAMPOS/SP ESCRITO PELAS IRMÃS LUCILEIDE E LUCIÉRE, COM A COLABORAÇÃO DO PAI, MILTON RODRIGUES NOGUEIRA, E DO CUNHADO CRISTIANO FERREIRA DA SILVA.

É IMPRESSIONANTE COMO ALGUMAS PESSOAS CONSEGUEM EXTRAIR DA EXTREMA ADVERSIDADE UMA FORÇA AINDA MAIOR PARA PROCURAR DEMONSTRAR ALEGRIA, APESAR DAS DORES E DA TRISTEZA. A JOVEM E PEQUENINA LUCILA, ENORME NA SUA CORAGEM E NA SUA VONTADE DE VIVER, FOI UM EXEMPLO DESTA EXTRAORDINÁRIA FORÇA DA NATUREZA. QUE SEU EXEMPLO SEMPRE PERSISTA E FRUTIFIQUE NO CORAÇÃO DAQUELES QUE LEVANTAM A BANDEIRA DA LUTA PELA QUALIDADE DE VIDA DOS PACIENTES ESCLERODÉRMICOS!

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Quando você nasceu todos sorriam e só você chorava, viva de tal maneira que, quando você morrer, todos choram e só você sorri. Este é um provérbio chinês que desde a adolescência a Lucila trazia consigo. Estávamos ao seu lado no hospital no último instante. Após nossas orações, presenciamos o seu falecimento e constatamos seu aspecto sereno. Lucila faleceu, aos 30 anos, no dia 19 de abril de 2007. Formada em Técnica de Computação, Lucila fazia estágio em uma loja de assistência técnica em computadores. Depois, com a enfermidade, ela passou a trabalhar com o meu pai em sua banca de jornal, por meio período. Minha irmã soube que estava doente em 1993, aos 16 anos de idade. Os primeiros sintomas foram perda de circulação nos dedos da mão, que ficavam roxos e esbranquiçados. A maior dificuldade era a falta de conhecimento sobre o que ela tinha. Vários médicos foram consultados e muitos exames foram feitos até ser diagnosticada a ES.

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Após a confirmação do diagnóstico, a primeira coisa que nos falaram foi: ‘Não tem cura, só tratamentos paliativos’. Desta maneira, ela ficou mais ou menos dois anos fazendo tratamento com fármacos para reumatismo. Mas como a doença foi piorando, meus pais solicitaram ao médico assistente uma indicação de um especialista na doença. Foi nessa época que ela começou a fazer uso da aplicação endovenosa de ciclofosfamida. Ter acesso aos medicamentos indicados não era muito fácil. Por dois anos, só conseguimos comprar os remédios, sem regularidade, por intermédio de amigos que estavam viajando. Até o dia que o Estado passou a fornecer. Lucila tomou remédios até o final de sua vida, por mais ou menos oito anos. Com todos os tratamentos realizados, ela conseguiu, talvez, estagnar a doença e mais do que tudo, conseguiu muita esperança e confiança para viver mais e, de certa forma, com qualidade. Nunca desistimos de oferecer o melhor para ela, que sempre foi uma jovem muito ativa. Estudava, trabalhava, namorava e tinha muitos amigos. Adorava ir a danceterias e sair para passear com os colegas. A sua vida mudou quando surgiram os sintomas da Esclerose Sistêmica, como a dificuldade de articular os joelhos e os dedos das mãos, e passou a sentir muitas dores. Ela e minha mãe ficaram bastante assustadas com a notícia da ES. Mas assim mesmo, em geral, Lucila não deixava transparecer o que estava sentindo e queria demonstrar, a todo momento, que estava bem. Era muito fechada, embora ao mesmo tempo fosse muito alegre e comunicativa. Lucila acreditava que nada de ruim iria acontecer e tinha a convicção de que conseguiria curar ou amenizar a doença.

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LUCILA E FAMÍLIA

No início acreditávamos que a doença da Lucila seria mais um problema como tantos a ser superado e que, através de nossa prática budista, iríamos transformar toda essa situação em benefícios e felicidade para nossa vida. E realmente, com a união da família e dos amigos, assim como o apoio dos membros de nossa religião, conseguimos ter forças para lutar junto com a Lucila até o fim. Por várias vezes, presenciava minha irmã aos prantos, mas sentávamos com ela para orar e jamais deixava que se sentisse sozinha. Com o intuito de experimentar novas medicações, Lucila passou por internações esporádicas. Em 2003, com a doença relativamente controlada, ela sentiu desejo de voltar a trabalhar. Então ajudamos a se aproximar de uma instituição que recolocava deficientes físicos no mercado de trabalho. No início ela teve

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dificuldade de ser aceita, pois seu caso não era considerado deficiência. Foi necessário apresentar laudos médicos atestando sua deficiência para que a instituição a aceitasse. Por alguns poucos meses trabalhou dentro da instituição e logo foi selecionada para atuar numa empresa de monitoramento de cargas de caminhão. Lembro-me de sua alegria ao nos contar sobre o emprego, em se sentir útil, e de poder receber seu salário e deixar de depender de nosso pai para comprar roupas e sapatos, essas coisas de que gostava. Ela ficou quase um ano neste emprego, até que em meados de 2005, o fenômeno de Raynaud começou a atacar fazendo com que ela perdesse a circulação nos dedos. As dores eram intensas e ela precisou se afastar para começar um novo tratamento. Para ajudá-la a se distrair colocamos um computador com internet em casa. E juntas, começamos a navegar e buscar grupos com ES. Na época, ficamos admiradas por não achar nenhuma comunidade de portadores de ES e foi aí que ela tomou a iniciativa de criar uma comunidade ‘Esclerodermia’ no Orkut. Em pouco tempo várias pessoas passaram a fazer parte do grupo e a compartilhar com ela as suas dificuldades e desafios.

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Na comunidade Lucila fez várias amizades e conheceu casos de ES que eram mais graves e complexos que o dela. A interação com pessoas que sofriam da mesma doença fazia ela se sentir importante. Por causa disso, quando minha irmã partiu, decidi dar continuidade à comunidade ‘Esclerodermia’. Lucila estava sempre disposta a enfrentar tudo. Quando ela ficava internada, meu coração se partia e eu só tinha vontade de ficar ao lado dela. Mas corajosa, dizia: ‘Não precisa, ficarei bem’. Fortaleza era seu nome. Em janeiro de 2005, quando minha mãe faleceu depois da quarta cirurgia cardíaca, a primeira coisa que ouvi de minha irmã foi: ‘Quem vai cuidar de mim? O que vai ser da minha vida?’. Respondi prontamente: ‘Fique tranquila, estou do seu lado e jamais irei te abandonar. Eu vou cuidar de você’. Minha mãe foi uma grande parceira da Lucila. Tudo o que fazia por ela era com uma grande satisfação. Não a deixava por um segundo. E foi com esse mesmo carinho e dedicação que cuidei de minha irmã. Recordo-me que Lucila me ajudou com todos os preparativos do meu casamento. Nessa época ela já não conseguia andar e eu a levava junto comigo para todos os lugares. Ela me ajudou a resolver tudo: do vestido ao salão da festa. No dia do casamento, ela estava lá, de cadeira de rodas e linda. Apesar da ES deixar sequelas na aparência física, Lucila sempre prezou pela vaidade e adorava se maquiar, fazia luzes e ‘chapinha’ nos cabelos. Casei-me em 17 de março de 2007, e um mês após meu casamento minha irmã faleceu por conta da Esclerose Sistêmica.

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SOLANGE MARIA SERAFIM ALTHOFF IN MEMORIAN BANCÁRIA CRICIÚMA/SC ESCRITO PELO MARIDO ANTÔNIO CARLOS ALTHOFF.

VIVENCIAR UMA DOENÇA CRÔNICA E POTENCIALMENTE INCAPACITANTE É UMA ARTE, TANTO PARA O PACIENTE QUANTO PARA SUA FAMÍLIA. NÃO DEIXAR QUE AS MUITAS MANIFESTAÇÕES DA DOENÇA INTERFIRAM EM DEMASIA NA HARMONIA DA CASA É UM EXERCÍCIO DIÁRIO DE DOAÇÃO QUE OS PACIENTES FAZEM PARA SUA FAMÍLIA E SUA COMUNIDADE. AO MESMO TEMPO, PROCURAR TER UMA VIDA FAMILIAR O MAIS NORMAL POSSÍVEL, INSERINDO O PACIENTE NA ROTINA DA CASA E NÃO PERMITINDO QUE SE SINTA UM FARDO, É UM EXERCÍCIO DIÁRIO DE SOLIDARIEDADE HUMANA QUE OS MEMBROS DA FAMÍLIA FAZEM EM PROL DE SEU ENTE QUERIDO DOENTE. ESTA HARMONIA, ALIADA AO TRATAMENTO ADEQUADO, VENCE QUAISQUER PROGNÓSTICOS ESTATÍSTICOS.

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Solange Maria Serafim Althoff, era minha esposa. Tivemos dois filhos: Beatriz e André, hoje médicos como eu. Juntos vivenciamos uma caminhada saudável, harmoniosa, incluindo os conflitos naturais de uma convivência a quatro, que sempre conseguimos resolver com bom senso. Toda nossa trajetória me vem a minha cabeça nesse instante. Casamos no dia 30 de julho de 1977. Ao descrever sua doença, que evoluiu durante treze anos, acho importante dizer que sou um reumatologista e que fui eu quem fez o seu diagnóstico. A tarefa de tratá-la ficou a cargo de outro colega. Foi possível eu acompanhála com amor e dedicação. A ES da Solange se iniciou com Raynaud nas mãos e, após quatro meses, foi definido o diagnóstico. Neste momento, ao ler sobre a doença e que a sobrevida era de cinco anos, Solange assustou-se e preocupou-se com o que nós – eu e nossos dois filhos – iríamos enfrentar por causa da sua doença. Foram treze anos sem trégua. A doença evoluiu com perda da função das

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mãos, múltiplas úlceras de pele nos membros superiores e inferiores que não lhe deram um momento de sossego, sempre infectadas, doloridas e de difícil processo de cicatrização. Felizmente não apresentou manifestações sistêmicas e, somente nos últimos anos, evoluiu com disfagia e teve a sua morte devido a um episódio de vasculite cerebral. A Solange tinha uma espiritualidade elevada, com uma fé inabalável em Santa Terezinha e, por ser uma pessoa especial, nunca permitiu que a doença ocupasse um lugar relevante no relacionamento familiar. Estava sempre preocupada com o que nós iríamos passar com ela, e não com o seu sofrimento por conta dos incômodos provocados pelas úlceras de pele e das dores generalizadas devido principalmente ao frio. O equilíbrio familiar foi preponderante para convivermos com a doença da Solange. Não permitimos que a ES fosse maior que os nossos relacionamentos e, dentro do possível, mantivemos os nossos compromissos sociais. Mas conviver com a ES exige, de

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SOLANGE MARIA E DR. ANTÔNIO CARLOS ALTHOFF

forma bilateral, renúncias e aceitações. A colaboração de ambos, de um para com o outro, com a intenção única do bem viver, permitiu uma caminhada mais equilibrada. Minha esposa nasceu no dia 2 de agosto de 1954 e faleceu em 5 de janeiro de 2009, devido a vasculite cerebral secundária à Esclerose Sistêmica. A fé, o amor presente, o se colocar no lugar do outro, foram preponderantes para mantermo-nos unidos nesses trinta e um anos de casados. A sensação de bem-estar gerada pelo dever cumprido permite uma paz interior que faz com que eu sinta a Solange presente.

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