Desde 1917 em defesa do direito autoral. Reconhecida como de Utilidade Pública Federal pelo Decreto nº 4.092 de 4 de agosto de 1920.
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sumário 2 6
Aderbal Freire-Filho Alcione Araújo Millôr Fernandes Ziraldo Alves Pinto
Simone Melamed
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Aderbal Freire-Filho Ana Velloso Regina Zappa Vera Novello SUPER VISÃO
Três É Editoração e Design Ltda.
Macksen Luiz
14 ARTIGO Teatro: educar para sentir, pensar e agir Alcione Araújo
18 TEATRO & CIA Trânsito livre entre teatro e cinema Daniel Schenker
DIREÇÃO EXECUTIVO FINANCEIRA
Bia Gondomar
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EDIÇÃO
Alcione Araújo Daniel Schenker Domingos Oliveira Júlio Calmon Lula Macksen Luiz Maria Luiza Franco Olga de Mello Renato Aguiar Simone Melamed
Uma relação de tensão e complementação Daniel Schenker
Regina Zappa COLABORADORES
Um autor à frente do seu tempo No começo do século XX, Renato Vianna incursionou por um universo dramático que anunciava uma nova dramaturgia para sua época
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CONSELHO EDITORIAL
Consciente e consequente Na contramão do circuito comercial, a Companhia do Latão se mantém fiel a uma pesquisa de linguagem ligada à tradição dialética do teatro de Brecht
CONSELHO DIRETOR
Órgão Oficial da SBAT – Sociedade Brasileira de Autores, inscrito na Ulrich’s International Periodicals Directory sob o registro ISSN 0102-7336.
PRÓLOGO
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Comparação entre cinema e teatro Domingos Oliveira
38 ENTREVISTA A inventora de um gênero
PESQUISA ICONOGRÁFICA
Dona de um jeito único de interpretar, Eva Todor trilhou longa carreira em teatro ao lado dos dois maridos, Luiz Iglesias e Paulo Nolding
Maria Luiza Franco
Daniel Schenker
REVISÃO
Maria Helena Pereira PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO
Mais Programação Visual
44 ENSAIO O primeiro Orfeu, no palco do Municipal
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Maria Luiza Franco
CAPA
Montagem com fotos do banco de imagens © Photl.com / Familca e de divulgação do Théâtre du Soleil CTP E IMPRESSÃO
WalPrint Gráfica e Editora
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SBAT inaugura oficinas de dramaturgia Olga de Mello
TIRAGEM
5.000 FOTOS DE ACER VO CEDIDAS PELA
50 OSSOS DO OFÍCIO Divina na cabeça Júlio Calmon
52 EPÍLOGO Recursos obtidos através do Convênio nº 732974/2010, celebrado entre o Ministério da Cultura e a Bambina Ação Cultural Associados Esta edição traz um encarte com a peça Atlântida de Ana Velloso e Vera Novello.
P R Ó L O G O
O teatro morreu,
viva o teatro “O cinema falado é o ponto de inflexão da história do teatro. Mudou o teatro, mudou a história, mudaram as artes, mudaram as ciências, mudou a cultura, mudou o mundo”
Filmes baseados em peças de teatro, espetáculos teatrais a partir de filmes, uso de técnicas cinematográficas no palco, influência da linguagem cinematográfica no teatro, Dogville, o filme, é ou não puro teatro, adaptações das peças de Shakespeare para o cinema – é bom discutir tudo isso. Mas uma questão fundamental é: o cinema falado é o ponto de inflexão da história do teatro. Mudou o teatro, mudou a história, mudaram as artes, mudaram as ciências, mudou a cultura, mudou o mundo. O homem mudou e mudou o Natal. Paro aqui e me pergunto se o certo é dizer mesmo ponto de inflexão, se falar em ponto de inflexão é dizer muito ou dizer pouco (ou dizer mal, tem essa hipótese também). Podia dizer que o cinema falado representa uma ruptura na história do teatro. Ou que, com o cinema falado, o teatro sofre a mudança mais radical de sua história. E acrescentar: uma mudança de outra natureza, em relação a todas as outras. Podia dizer ainda: com o cinema falado, o teatro morreu, viva o teatro! Este foi o tema da minha vida no teatro. Me tocou essa era, a prática me colocou diante dessa questão, ou procurar entendê-la ou nada. Claro, como cheguei depois, nasci quase 15 anos depois do primeiro filme falado – The Jazz Singer, de 1927 – e comecei a fazer teatro outros 15 anos depois, não sou o profeta desse tempo. Mas falo tanto disso nas minhas magras reflexões, e nesse desconhecido idioma, e encontro tão poucas produções, acadêmicas ou não, sobre o tema, que às vezes me vejo de barba pelas ruas (do Leblon?), com um cajado, vociferando e anunciando apocalipses.
Cenas do filme The Jazz Singer, de 1927
Não discuto minha incapacidade para o papel. É fato, não tenho a sabedoria, a cultura, a clarividência. Mas posso discutir o tempo e admitir ter idade para o papel, posso dizer que nasci antes da mudança, sem ter que adulterar minha certidão de nascimento. Porque o primeiro filme falado, de 1927, é o grande culpado da transformação, mas ainda ficam faltando seis dias para criar esse mundo novo, ou mundo do teatro novo, e dias bíblicos, que não duram vinte e quatro horas. (O relógio foi inventado no sétimo dia, no dia do descanso, invenção do demônio, que dá o bote e atazana, ratazana, no ócio.)
Nem preciso falar das respostas retóricas: cheias de ufanismos, o teatro nunca morrerá; cheias de obviedades, só no teatro é possível ver o ator ao vivo (em um dos meus zilhões de textos sobre o assunto, perguntei: pra quê? pra pedir autógrafo a ele?). Implicância. Imagino que tem gente me lendo agora e achando que isso foi ontem, está sendo hoje, ouvi fulano dizer isso numa entrevista assim assado. Pois é, falei que não aconteceu de um dia para o outro, saltei de 1927 para os anos 70, mas os dias da criação ainda não terminaram, para a grande maioria ainda estamos no ponto de ver um lado da questão, o ponto alcançado, como disse, nos anos 70.
Em poucas palavras: nos anos 50 e 60, a relação de linguagens cinema x teatro ainda é tranquila, cada um vai vivendo sua vidinha sem se importar muito com o outro. Especialmente do lado do teatro, pois o cinema falado está se descobrindo. Falo do teatro do Brasil, mas isso vale, com algumas variações, para o mundo quase todo. E nos anos 70, quando se começa a perceber a influência de um sobre o outro, só se vê uma parte da questão, ou seja, a morte do teatro, os repórteres perguntando aos artistas de teatro se o teatro ia morrer com o cinema. Nada, ainda, de viva o teatro.
São raros os Domingos Oliveira (embora esses dez, que fazem cinema, teatro, escrevem, filosofam, amam, bebem, têm amigos e ocupam o mesmo corpo, já sejam muitos), são raros os que veem as infinitas propriedades e especificidades e riquezas e possibilidades de cada uma dessas artes: o cinema, sétima arte, e o teatro, oitava (que é a segunda, turbinada; a primeira é a música, que todas as outras aspiram a ser, como diz Borges). Leia as iluminações do Domingos, aqui nessa mesma revista. Ainda sobre a consciência das mudanças no teatro a partir do cinema falado, que começa com a
consciência da “morte do teatro”, é fácil constatar como essa morte não é súbita. Os anos 50 e os primeiros 60 marcam talvez um dos períodos de maior fertilidade do nosso teatro: Teatro Brasileiro de Comédia, as grandes companhias (Maria Della Costa, Tonia-Celi-Autran, Teatro dos Sete etc). Não é ainda a fertilidade que já começa a existir hoje, do teatro post-mortem, do teatro que nasce depois do cinema falado. É a fertilidade do teatro antes de qualquer mudança. Os espetáculos, as encenações dos grandes diretores da época (Zimba e os italianos à frente) ainda são o que hoje se convencionou chamar de teatrão. Apuro, qualidade de interpretações, textos da melhor dramaturgia universal e nacional, mas um teatro, para dizer de outro modo, pré-brechtiano. Brecht, este sim, um profeta de verdade. Posso me alongar demais, se recomeço tudo desde Brecht. Mas digo que é o mesmo que diz Domingos, quando fala em um teatro só Stanislavsky. Vou em frente, então. Um teatro (um teatrão) que floresce já em plena era do cinema falado, como floresceu o teatro (teatrão) brasileiro, só prova que a questão, que já existia como uma bomba-relógio armada em 1927, ainda não tinha explodido. Assim caminha a humanidade: já estão dadas as condições de uma mudança e antes que ela se faça, antes da irrupção do novo, ainda acontecem florescimentos no campo que já não tem raízes, no mundo que vai acabar. Algum tempo depois, com a força de um subproduto do cinema, o teleteatro, acabam-se as companhias, o público começa a rarear, muitos sintomas assustam e essa velha arte começa a parecer inútil. Aos poucos, felizmente, o teatro moribundo dá lugar a uma nova arte, chamada... teatro. Porque, na verdade, o teatro que morreu foi o da linha dominante do seu suposto desenvolvimento, o teatro que quando a bomba-relógio CF (cinema falado) é armada, em 1927, é predominantemente realista. O cinema imita a vida em suas aparências, como o teatro realista não conseguia. Esse pobre imitador deve desaparecer, como o tílburi, o bonde... A Broadway, centro de conservadorismo, encantou por sua potência tecnológica, capaz de pôr em cena piscinas e avenidas. Mas mesmo a Broadway já começou a sentir a mudança, basta ver alguns musicais de hoje que tentam fugir das fórmulas cansadas.
Daí, o palco abre-se para todas as poéticas. Vou só citar um Brecht profético: “eles (os artistas de teatro) acreditam dominar um aparelho que na realidade os domina, que ainda pensam ser um meio de expressão para os criadores, mas que se transformou em um meio contra os criadores.” E Brecht começou, com seu teatro épico, a construir um novo aparelho. Pois o cinema falado nos obriga a isso, ao que previu o profeta, a construir novos aparelhos, a explorar o palco, a cena, para poder contar todas as histórias e não só aquelas dos dramas escritos nos últimos 100 anos e não só daquele jeito. Sem perceber todo o quadro, boa parte da crítica intitulou um tempo recente do teatro de “era dos encenadores”. Agora, começa a falar em “nova dramaturgia”. Como acasos, caídos do céu. Como se uns caras enjoados começassem a desconstruir os textos e depois outros começassem a escrever “diferente”, só isso, para recusar o que era feito antes, pura rebeldia. Salve Noel, na origem de tudo está o cinema falado. Assim como a fotografia explodiu a pintura figurativa, realista, gerando essa nova fase da história da arte que começa no século XIX, o cinema falado explodiu o teatro. E no teatro, naturalmente, os que estão com a mão na massa, os que trabalham no atelier – a sala de ensaio – são os primeiros a reagir, a buscar poéticas novas, daí a tal “era do encenador”. Quando a transformação começa a acontecer, vivemos em plena tradição do texto teatral, da literatura dramática. Nessa tradição, o palco pinta não a natureza, mas a natureza pintada no texto, um reflexo do reflexo, e o que acontece nesse primeiro momento, dito de outro modo, é que os diretores abrem o palco para textos fechados. É aí que começa a reinvenção do teatro. Então... Em todo lugar cabe uma digressão. Vou nessa: os autores que estavam presos a esse aparelho antigo, de que fala Brecht, e que, no entanto, se debatiam dentro dele, porque seu teatro era maior – e Thekhov é talvez o melhor exemplo – ganham o palco que esperavam e que merecem, o palco aberto. É o caso, no Brasil, de Nelson Rodrigues, considerando que o teatro brasileiro novo, nos anos 50, era velho. Então... os diretores, encenadores, como queiram chamar, abrem o palco para peças fechadas. Claro que, ao buscar novas poéticas, dão de cara com outras eras do teatro, que não a do restrito palco realista, ponto de chegada em que o cinema encontrou o teatro. Dão de cara com o palco elizabetano,
poderoso, de Shakespeare, com o palco livre (ao ar livre) da comedia dell’arte, outros. E essas referências são fundamentais para as novas poéticas. Segundo movimento: os autores começam a escrever peças abertas. E aí Beckett e a lista infindável que não paramos de conhecer (Vinaver, Bernhard, Sarah Kane, Lars Norén, Lagarce, Sinisterra, os argentinos, os brasileiros...). No varejo, a “era dos novos dramaturgos”. Posso sair daqui para 200 mil caminhos, como o Etienne Sourieau para suas situações dramáticas. Mas, como disse que esse é meu tema, minha obsessão, vou ao que também repito obsessivamente e que talvez resuma essa ruptura. Proponho para a compreensão do teatro, essa arte que nasceu depois do cinema falado, um paradoxo: quando o teatro foi reduzido à parcela, quando o cinema falado fez com que se dividisse o bolo em fatias, o teatro, agora uma fatia e não mais o bolo inteiro, em vez de diminuir, cresceu. Viva o teatro! Posso dar mil exemplos. Vou repetir um exemplo primário. John Gielgud, o grande ator shakespeariano, no seu livro Acting Shakespeare, diz da primeira cena na casa de Polônio, em Hamlet, que “o público tende a relaxar-se, em
especial no teatro moderno (sic) quando essa cena é normalmente feita diante da cortina (...) e o público sabe que atrás estão preparando algo surpreendente”. Pobre teatro “moderno”, que dependia de telões, preparações cenográficas atrás do pano etc. Pobre aparelho, pobre poética. Hoje, ao contrário, todas as cenas de Shakespeare podem ganhar vida, a vida que tinham no tempo dele. Também, nesses tempos sombrios de um teatro fechado, criavam-se normas, tabus, e determinadas culturas eram acusadas de não saber montar Shakespeare. Claro, não sabia fechar o pano e preparar atrás dele algo surpreendente. Como acabaram as regras, o que acontece hoje é que ainda não há críticos (ou há poucos) que saibam criticar as montagens vivas de Shakespeare. Poderia chegar a outro ponto essencial: a natureza da ilusão no teatro vivo. O que distingue cinema e teatro são ilusões de naturezas diferentes. Mas esse é o começo da nova história. Fico devendo. Bom filme. Boa peça. Bem-vindo à sétima e à oitava arte. Aderbal Freire-Filho
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Na contramão do circuito comercial, a Companhia do Latão se mantém fiel a uma pesquisa de linguagem ligada à tradição dialética do teatro de Brecht
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No final da peça Ensaio sobre o latão, encenada em 1997, a personagem se dirige para a cabine de iluminação e dispara: “Iluminador, um pouco mais de luz sobre o palco. Nós precisamos de espectadores despertos e atentos. Faça-os sonhar em pleno dia.” Inspirado no pensamento artístico do autor alemão Bertolt Brecht, exposto em A compra do latão, o espetáculo não só ajudou a dar um nome à Companhia do Latão, como a fala em questão também tem muito a dizer sobre o próprio grupo teatral paulista, que está prestes a completar 15 anos.
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Afinal, com uma pesquisa de linguagem interessada numa reflexão crítica sobre a sociedade atual, que alia a investigação do teatro épico com técnicas de encenação brechtianas, a companhia busca um público disposto a abrir mão da relação passiva com a arte, sendo também corresponsável pela narrativa. Mas o primeiro ato desta história teve início no ano anterior, quando um grupo de atores, ainda sem a alcunha do latão, começou a trabalhar na adaptação de A morte de Danton, do dramaturgo Georg Büchner. “O que movia Ensaio para
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Visões Siamesas
Ensaio para Danton
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Danton era o desejo de fazer um teatro reflexivo. Tudo era mostrado como ensaio, tanto no sentido de um exercício teatral como de uma reflexão crítica. As cenas eram repetidas de modos diferentes, o ator dizia o título da cena como se fosse a legenda de um livro. As estruturas da caixa do palco, suas varas e refletores, eram manipulados à vista do público. O que mais importava, além da história de um momento contraditório da Revolução Francesa, era a exposição dos limites e da força do trabalho teatral como símbolo das dificuldades de uma transformação política. Ali começou o projeto de pesquisa em teatro dialético que dá sentido ao Latão”, relembra o dramaturgo Sérgio de Carvalho, diretor da companhia. Este viés político, que dá sentido ao grupo, está muito bem plantado no DNA de cada uma das mais de dez montagens realizadas pela premiada companhia, com relevância tanto na cena contemporânea brasileira quanto na internacional. Um teatro, aliás, muito diferente daquele criticado, certa vez, pelo inesquecível diretor e cenógrafo de origem italiana Gianni Ratto: “Vinte anos de ditadura destruíram no público a capacidade de avaliar as coisas. O público de hoje acha que
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o espetáculo é exclusivamente uma diversão. Uma espécie de ritual de passagem para a pizza.” A declaração foi feita em entrevista para a revista Vintém, editada, assim como o jornal Traulito, pela Companhia do Latão, abrindo espaço para debates sobre arte e política do ponto de vista da crítica da mercantilização dos processos culturais. “O velho clichê de que todo o teatro é político se mostra verdadeiro quando fica visível a qualidade da visão política que está em jogo. O teatro da pizza corresponde a uma certa visão política. Seu pressuposto é que o legítimo direito ao
Auto dos bons tratos
entretenimento deve ser um privilégio de quem pode pagar caro, de que o público deve ser posto na posição de um consumidor passivo de mercadorias reconhecíveis, de que ainda existem gêneros canônicos. Seu simbolismo maior não está só nos assuntos banais, que naturalizam estereótipos do pensamento dominante, mas na própria organização produtiva, baseada no estrelismo, na divisão do mundo entre protagonistas e coadjuvantes, nas energias voltadas, em abstrato, para o efeito, seja cômico ou emotivo”, analisa o diretor. E é por estar mais interessada no efeito transformador da experiência
O nome do sujeito
artística, que começa na sala de ensaios até chegar no espectador, que a Companhia do Latão, iniciou, em 1998, a sua produção dramatúrgica coletiva. “Essa ênfase na invenção dramatúrgica está em todos os trabalhos, mesmo naqueles em que havia uma peça na origem dos ensaios. O nome do sujeito foi nosso primeiro trabalho de escrita coletivizada e nasceu de um longo período de ensaios. Até hoje costumamos fazer do mesmo jeito. De início, elegemos um campo temático para a pesquisa. Naquele caso, o mito do Fausto. Realizamos leituras, conversamos com palestrantes
Mercado do gozo
Equívocos colecionados
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O círculo de giz caucasiano
A comédia do trabalho
convidados e esse material teórico se combina à experimentação prática dos atores, com cenas e música. Essa pesquisa conduz a um fechamento do assunto e, às vezes, a seu deslocamento. Daí costuma caber a mim organizar um esboço dramatúrgico. Mesmo nessa etapa de roteirização existe colaboração. O nome do sujeito foi planejado com a ajuda de Márcio Marciano. É a fase em que passamos dos sonhos aos planos. Ela exige reinvenção e, por vezes, traição do material da sala. E os ensaios a partir desse esboço geram mais reescrituras do texto, conforme as necessidades da cena,
Santa Joana dos matadouros
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da música, dos atores ou de um melhor diálogo com o público”, explica Sérgio. Assim, mesmo depois de uma estreia o grupo segue reinventando e transformando o texto até o fim da temporada. Em cartaz com o espetáculo Ópera dos vivos – estudo teatral em 4 atos, que combina teatro, música e cinema, para refletir sobre a produção cultural e a mercantilização do trabalho artístico desde os anos 1960, enquanto os atores fazem a plateia sonhar, ou acordar, durante suas três horas e meia de duração, um espectador devidamente desperto e atento nota que o diretor, sentado a um canto, faz incontáveis anotações em seu caderninho. “A Ópera dos vivos é meu amor atual. Ela acabou de estrear e vai nos acompanhar por um bom tempo. A pesquisa para este espetáculo foi um momento marcante, assim como as apresentações de Santa Joana dos matadouros e da Comédia do trabalho, para o MST, e a palestra que dei na Casa Brecht, de Berlim, sobre o trabalho do grupo, entre outros. São ocasiões em que o teatro se revela mais do que teatro, sendo uma possibilidade de mudança de referências para a vida e aprendizado comum”, avalia o diretor.
Ópera dos vivos – estudo teatral em 4 atos
O poder do palco: militância teatral no Brasil Nos anos 1960, o chamado Teatro Épico, criado por Bertolt Brecht, ganhou inúmeros adeptos em terras brasileiras. Desde as montagens de Augusto Boal no Teatro de Arena, passando pelas peças do Teatro Oficina, sem contar as dramaturgias de Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Vianna Filho, não era difícil encontrar espetáculos que abordassem conflitos sociais tratados sob uma ótica marxista, aliados a uma encenação que usava o método do distanciamento, como propunha o dramaturgo alemão. Com o passar dos anos, o gênero ainda foi atualizado e revisitado por algumas companhias teatrais, mas foi minguando e perdendo o destaque que havia conquistado. Porém, não sem deixar herdeiros. Legítimo representante do teatro crítico e engajado, a Companhia do Latão, ainda hoje, encontra na obra de Brecht o seu modelo artístico, mesmo nesses tempos em que muitos consideram ultrapassado, ou fora de moda, encenar peças com temas políticos, como o mais novo espetáculo do grupo. “Ópera dos vivos corresponde a um esforço do nosso grupo de olhar para o passado como motivação para um trabalho futuro. Eu detestaria fazer uma peça nostálgica sobre o teatro político dos anos sessenta ou um catálogo de imagens do passado dispersas de modo pós-moderno. Queremos aprender com práticas artísticas diferentes da nossa, torná-las produtivas para os dias de hoje, época que nos apresenta problemas semelhantes mas diferentes”, diz Sérgio de Carvalho, diretor da companhia.
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Renato Vianna prenunciou mudanças no teatro brasileiro de maneira indireta, se avizinhando da transformação radical e do determinismo renovador. Foi um catalisador que reunia informações que anunciavam mudanças, ainda que não fosse agente direto da maioria delas. Reflexo de seu tempo, irradiador do que supunha ser um novo teatro para sua época, Vianna dominava, pelo menos em teoria, as técnicas europeias da cena das primeiras décadas do século XX, e tateava a escrita dramática que intentava a reavaliação dos costumes. Nas suas primeiras peças, com títulos que “explicam” muito do seu conteúdo (Na voragem, Salomé e Os fantasmas) e integraram o repertório da Companhia Dramática Nacional, em que pontificava a atriz Itália Fausta, seguia a cartilha dramatúrgica vigente no final dos anos 1910. Cortejado pelos primeiros atores e donos das companhias que ocupavam os teatros do Rio, que precisavam ser abastecidos permanentemente com textos, já que as temporadas eram curtas, e a rotatividade das montagens, às vezes, se media em dias, Renato Vianna escreveu a comédia Luciano, o encantador para o todo-poderoso Leopoldo
anças ças mu anças danças ças muda s Fróes. Já nessas investidas, o autor iniciante registrava, a partir das rubricas, as referências a seus conhecimentos do que tratavam as teorias de Max Reinhardt, Stanislavski, Meyerold, Jacques Copeau e Antoine. Sua produção dramática não refletia, de modo concreto, o que os teóricos apontavam como outras perspectivas para a arte cênica. Vianna mimetizava, pelo menos nesses primeiros textos, o que o mercado determinava, utilizando-se da hierarquia funcional das companhias e do limitado universo teatral para estabelecer relações que impulsionassem este início de carreira. A convivência com intelectuais que gravitaram pela Semana de Arte de 1922, em São Paulo, como Ronald de Carvalho e Villa-Lobos, permitiu-lhe até ter a sua Salomé transformada em ópera, por Villa. De certa forma, Renato Vianna pode ser considerado um homem de teatro que viveu contradições dissociativas entre pensamento e criação. Com atividades na vida política, tanto no Rio (onde nasceu, em 1894) como no Nordeste, onde passou parte da infância, viveu as alternâncias da convivência de compadrio tão comum na prática da política de balcão. Assim, se aproveitou da proximidade do poder para criar movimentos capazes de dar vazão às suas inquietações teatrais. É resultado desses impulsos a eclosão da Batalha da Quimera, movimento surgido em 1922, baseado no Futurismo, que, como assinala Jacob Guinsburg, foi a primeira tentativa no Brasil de um “teatro de síntese, de aplicação da luz e do som com valores dramáticos, da importância dos silêncios, dos planos cênicos e da direção”. Uma análise deste movimento e da obra de Renato Vianna está no livro de Sebastião Milaré, A Batalha da Quimera, edição Funarte. A Colmeia, em 1924, dois anos depois da Quimera, deu continuidade à efervescência por empreitadas teatrais, forma de prosseguir na verificação de seus conceitos para o espetáculo. E foi sucedida
pelo Teatro da Caverna, que, por sua vez, antecedeu ao Teatro de Arte, que prenunciou o TeatroEscola. Em pouco mais de uma década, essa sucessão de grupos e movimentos refletiram fracassos históricos, dificuldades com “grandes atores” (Procópio Ferreira e Jayme Costa) e atritos com as autoridades da cultura. O Teatro-Escola se configura como a empreitada de maior ressonância, não só pela imposição de métodos desconhecidos, como pelas reações que provocou. Os mesmos monstros sagrados, como Ítalia Fausta, Jayme Costa e Olga Navarro, estavam, como no passado recente, ao lado de Vianna, além de nomes que despontavam como Rodolfo Mayer e Zilka Salaberry. E foram eles que reagiram às formas de trabalho de Vianna, que aparecem, ruidosamente, desenhando função quase desconhecida até aquele momento: a de encenador no teatro nacional. O Teatro-Escola encerraria suas atividades de maneira tumultuada, mas possibilitou a Renato Vianna criar outros tantos filhotes dessa ideia mater. Assim surgem Lições Dramáticas (1935 a 1941), Escola de Arte Dramática do Rio Grande do Sul (1942), Teatro Anchieta (1944) e a atual Escola de Teatro Martins Pena, no Rio, da qual foi diretor a partir de 1948. Duas das suas mais famosas peças, Sexo (1934) e Deus (1935), em que pese a intenção inovadora que Vianna pressupunha ter acrescentado à dramaturgia daquele momento, parecem irremediavelmente condenadas a figurar como produtos de um teatro que se debatia em suas próprias limitações. Renato Vianna, quando morreu em 1953, como diretor de uma escola de teatro, estava cumprindo sua vocação de “agitador cultural”, numa terminologia atual, papel que desempenhou com mais ousadia do que imaginou interpretar com sua dramaturgia. Como escreve Sábato Magaldi em Panorama do Teatro Brasileiro, “o que obnubila para a posteridade o pioneirismo de Renato Vianna é a fraqueza irremediável de sua dramaturgia”.
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teatro é a imitação concreta do comportamento do homem e, por isso, suscita uma forma concreta de pensar as situações humanas. Até as crianças podem experimentar, e apreender, as funções que desempenharão na vida adulta – processo que os sociólogos chamam de internalização dos papéis sociais. Além de veículo de transmissão de normas de comportamento e valores para a vida, o teatro é um instrumento de reflexão, um meio de filosofar em termos concretos, um processo cognitivo, daí a sua importância para o homem. Sua ambição é a percepção da natureza da existência, a renovação das forças do indivíduo e a sua conscientização para enfrentar o mundo. O teatro é a mais
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social e socializada das formas de arte. A dramaturgia, base literária da expressão teatral, é ignorada pelos currículos acadêmicos, mesmo nos cursos de Letras, e raramente utilizada nos níveis médio e fundamental do ensino no Brasil. Renuncia-se, assim à sua utilização pedagógica como uma maneira de representar, interpretar e conhecer o homem e a sociedade criada pelos homens. A encenação teatral possibilita acumular vivências do que não se viveu. O brasileiro é familiarizado com as narrativas dramáticas, seja a telenovela, seja o cinema – ainda que exibido pelas emissoras de televisão, as histórias em quadrinhos. O que lhe é menos familiar é o teatro. Este
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A leitura de peças teatrais induz de maneira lúdica e natural à atitude intelectiva de compreender o que se lê para compreender o que acontece
projeto pretende introduzir as professoras – e, por meio delas, os estudantes – numa experiência teatral concreta e completa: a adaptação de um texto literário para a linguagem teatral e a sua posterior encenação. Além da experiência de escrever uma obra de dramaturgia, a encenação incluirá o trabalho individual de cada ator com a sua personagem, a relação singular de cada personagem com as demais – que é desenvolver o enredo da peça – a movimentação dos atores, o ritmo de cada cena e a harmonização entre as cenas, os figurinos das personagens, os cenários de cada ação, as músicas utilizadas para fazer fundo ou pontuar as situações dramáticas. No singelo exercício de descortinar uma fala, pode-se perceber o quanto o diálogo teatral oculta intencionalmente informações importantes para se entender as circunstâncias em que as personagens estão metidas, as necessidades, urgências e emoções que impulsionam a ação e as razões pelas quais as personagens agem. Compreender as razões que levam à ação é iniciar a descoberta da alteridade – a existência do outro, com
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seus sonhos e desejos, suas singularidades e seus direitos. Um aprendizado que se transfere para a vida real. Tendo o conflito entre as personagens como a condição da sua existência, e cada um tem boas razões para agir como age, a dramaturgia, na concretude das suas ações, ensina a conviver com a diversidade dos seres humanos e a divergência dos interesses. É nesta inevitável diversidade e inexorável divergência que se tornam urgentes os fundamentos do pacto de convivência social e se afirmam os valores da equidade, da equanimidade, do justo e do ético, os valores que instalam a cidadania. Além disso, encenação teatral é uma atividade tipicamente de grupo. Autor, diretor, atores, atrizes, cenógrafos, figurinistas, compositores, iluminadores, maquiadores, contrarregra e cortineiro – é indispensável que cada um faça a sua parte, e as partes encontrem sua harmonia, para que o conjunto funcione e o espetáculo aconteça. Sabemos que um grande problema vem preocupando os educadores brasileiros. Pesquisas realizadas com jovens que prestaram exame vestibular consta-
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taram que uma boa parte deles consegue ler um parágrafo de um texto simples, reconhece as palavras, as vírgulas e pontos, as frases. Porém, não consegue entender o que leu. É incapaz de repetir aquele conteúdo com as suas próprias palavras. Enfim, leu, mas não entendeu – fenômeno que vem sendo identificado como Analfabetismo Funcional. Pensar na superação de tal problema sugere que se detenha em cada frase do parágrafo, em cada palavra da frase, e se avalie, passo a passo, o grau de entendimento. A cada passo, então, deve-se tentar agregar novas faces do assunto ou aprofundar as conhecidas, de modo a consolidar, passo a passo, o entendimento o mais profundo e amplo possível. A leitura de peça teatral pode ser uma estratégia para avançar na compreensão do que se lê. Ao tentar compreender cada personagem e a situação em que está colocado, faz-se uma espécie de desconstrução de cada fala a fim de desvelar o que o dramaturgo, intencionalmente, ocultou e, assim, alcançar o entendimento do que está se falando, de quem está falando, do que está acontecendo. E repetir o procedimento a cada
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fala, de cada cena, de cada ato, de cada peça. Ao final, consegue-se saltar do código gráfico da escrita para a ação dramática e física – ou seja, apreendeu-se o que foi escrito. Enfim, o que se pretende é sugerir o uso do processo de trabalho em dramaturgia como estratégia para superar o analfabetismo funcional. A leitura de peças teatrais induz de maneira lúdica e natural à atitude intelectiva de compreender o que se lê para compreender o que acontece. As virtudes da utilização da dramaturgia não se esgotam por aí. Além de reforçar e renovar o prazer pela leitura, percebendo-se que, na sua especificidade e sem o palco, o texto teatral instiga a curiosidade, mantém a tensão e a expectativa, e estimula a imaginação a antever as ações num palco imaginário. Ler uma peça teatral é uma operação que se basta a si própria, independente da representação, pois dinamiza os processos mentais como ocorre em qualquer outra prática de leitura. Publicado em: Narrativas Dramáticas, da ONG Leia Brasil (Projeto Teatro)
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T E A T R O
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C I A
Trânsito livre entre
teatro e cinema É natural que, numa época marcada pela derroca-
Daniel Schenker
da das fronteiras entre as manifestações artísticas, profissionais de determinada área passem a expeMONTAGEM SOBRE FOTO DE © PHOTL.COM / FAMILCA
rimentar outras, promovendo, em maior ou menor intensidade, uma fusão de linguagens. No que se refere à interface entre teatro e cinema, o trânsito entre artistas de ambos os campos vem sendo constante: cineastas têm despontado como encenadores e estes, como diretores de cinema. 18
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Da tela para o palco A decisão de dirigir as montagens de Dois na gangorra, de William Gibson, Comendo entre as refeições, de Donald Margulies, e Hedda Gabler, de Henrik Ibsen, não inaugurou o vínculo de Walter Lima Jr. com o teatro. Muito pelo contrário. “Sempre gostei de teatro. Frequento desde a adolescência. Acredito que tinha natureza de ator. Era o que me levava ao teatro”, assume Walter Lima, que acompanha a cena brasileira desde os tempos do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), companhia fundada pelo industrial italiano Franco Zampari, que tinha Cacilda Becker como atriz principal. “Vi Cacilda em Pega-fogo e Maria Stuart, e Ítalo Rossi em A casa de chá do luar de agosto”, enumera, referindo-se às montagens do TBC. Walter Lima Jr. assistiu a Henriette Morineau em Jezebel, O pecado original e Ensina-me a viver, e a Maria Della Costa em O canto da cotovia e Gimba. Acompanhou as encenações do Teatro dos Sete, companhia fundada por Gianni Ratto, Fernanda Montenegro, Fer nando Torres, Sergio Britto, Ítalo Rossi, Alfredo Souto de Almeida e Luciana Petrucelli. “Lembro da montagem histórica de O mambembe”, cita, chamando atenção para o espetáculo realizado a partir da peça de Arthur Azevedo, escolhido para comemorar os 50 anos do Theatro Municipal. “Também vi raridades como
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Cristo proclamado”, lembra, evocando outra montagem do Teatro dos Sete a partir de texto de Francisco Pereira da Silva que não sensibilizou o público com sua temática social. Walter Lima Jr. continua frequentando teatro, ainda que não com a mesma constância de antes. “Antes, para mim, o teatro era como um filme em corpo presente. Acho que o teatro carioca de hoje valoriza demais as comédias e shows individuais. Muito da magia se desfez. Não vemos textos tão bons quanto antigamente. Talvez invistam em tantas adaptações de livros e contos por falta de uma dramaturgia mais viva”, opina. Restrições à parte, o diretor não cogita abandonar os palcos. Para o ano que vem planeja encenar uma versão brasileira e contemporânea de Senhorita Júlia, de August Strindberg, com Julia Lemmertz e Ângelo Paes Leme. O cineasta revela fascínio pelas especificidades do teatro. “O ator, no teatro, tem controle da cena, o que não acontece no cinema. No teatro, o encenador é um coadjuvante, mesmo que de alto nível. O risco e a adrenalina são dos atores. As teorias teatrais me ajudaram a compreender o ator. Além disso, o teatro vai pegando o ponto, aprimorando-se no dia a dia, diferentemente do cinema. Não há repetição: a relação com o outro, as circunstâncias, a presença do público – tudo muda”, observa.
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O também cineasta Hector Babenco, que dirigiu as montagens de Loucos de amor, de Sam Shepard, Closer, de Patrick Marber, e, agora, Hell, de Lolita Pille, garante que realizar um filme e um espetáculo teatral são experiências antagônicas. “Dirigir teatro é mais libertário que cinema. Por outro lado, pode soar maçante porque exige a destilação do repetido. Empregamos energias bem diferentes”, frisa. As três experiências foram distintas. Loucos de amor nasceu do interesse de Babenco pela obra de Shepard. “Eu tinha visto uma montagem de Criança enterrada. Conversei com Shepard, que não queria liberar os direitos de suas peças para o Brasil. Mandei um telex dizendo que me responsabilizaria e ele aceitou. Adoro Loucos de amor e queria abordar o universo rude do Oeste americano”,
Eles não usam black-tie, de Guarnieri, ganhou montagem de Marcus Vinicius Faustini
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relata. Closer surgiu de uma sugestão de Renata Sorrah. “Ela trouxe o texto, cuja montagem tinha recémestreado em Londres. Não quis assistir. Li a peça e, quando terminei, liguei imediatamente para Renata”, conta. Já Hell é uma adaptação literária. Babenco ganhou o livro de Barbara Paz. “Foi difícil fazer a transposição para o teatro. A partir de determinado momento, assumi o desafio e fui norteado pela importância em falar o desnecessário. Construí a ideia de um espetáculo sobre o nada, sobre a maldição que pode pesar sobre o fútil. É um conceito que está no livro, mas não de modo tão evidente”, explica. Babenco procura investir na coautoria do público. “Quero que o espectador reconstrua a compreensão do texto. Acho que o teatro pode mexer com o inconsciente de
cinema aquilo que filmamos, permanece”, diferencia. Em seus filmes, Tambellini se vale de procedimentos teatrais, como os ensaios – prática, aliás, cada vez mais constante no cinema. “Gosto de ensaios de mesa, de buscar com os atores o tom de cada personagem. Esmiuçamos as diversas camadas do texto”, afirma Tambellini, que, a convite de Otávio Martins, dirigirá a montagem de Tragédia, uma tragédia, de Will Eno.
“Quero que o espectador reconstrua a compreensão do texto. Acho que o teatro pode mexer com o inconsciente de modo bem forte. É como querer compartilhar algo sagrado”
Do palco para a tela Entrar no Teatro Oficina é uma experiência única. Não há como reproduzir exatamente o impacto diante do palco-passarela, da estrutura que lembra a de andaimes, onde os espectadores são acomodados, da árvore, do lago e da parede espelhada que compõem o espaço concebido por Lina Bo Bardi. De qualquer maneira, José Celso Martinez Corrêa se esforça ao máximo para reproduzir a mesma disposição nas viagens do Oficina pelo Brasil. E, mais do que nunca, o grupo extravasa os limites da Rua Jaceguai, no bairro do Bixiga, e oferece ao público registros preciosos de seus espetáculos, principalmente da saga Os sertões
Hector Babenco
FOTOS: DIVULGAÇÃO
modo bem forte. É como querer compartilhar algo sagrado”, sublinha. E o teatro já tangenciou o cinema de Hector Babenco, que conferiu a montagem do Teatro Ipanema para O beijo da mulher aranha, de Manuel Puig, ainda que não tenha sido influenciado por ela na hora de fazer seu filme. “Quis destacar a individualização da sexualidade. Por que um homem não pode ser amado como uma mulher?”, questiona. Flavio R. Tambellini também tem vínculo antigo com o teatro. Produziu, há cerca de 20 anos, uma montagem de Ligações perigosas, de Choderlos de Laclos, protagonizada por Marieta Severo e Carlos Augusto Strazzer. “Mais recentemente, quando surgiu a possibilidade de dirigir teatro, queria um texto consistente. Soube da peça do Neil Labute, um profissional, aliás, de cinema”, diz Tambellini, acerca da recente encenação de Aquelas mulheres, sobre um personagem que percorre vários estados norte-americanos à cata das ex-namoradas. “No teatro, a dificuldade e o fascínio residem nos ensaios, que são exaustivos. É onde a criação acontece. Quando os atores atingem um nível bom precisam mantê-lo; já no
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– leia-se, os cinco espetáculos que integram a recriação cênica do livro homônimo de Euclides da Cunha. As montagens não foram “simplesmente” documentadas, mas filmadas por diretores diferentes – Tommy Pietra (A Terra), Fernando Coimbra (O homem 1), Marcelo Drummond (O homem 2), Elaine César (A luta 1) e Eryk Rocha (A luta 2). Vale lembrar que os espetáculos do projeto Dionisíacas em viagem – Taniko, o rito do mar, Estrela brazyleira a vagar – Cacilda!, Bacantes e O banquete, todos apresentados no Rio de Janeiro – também foram filmados, a cargo de Elaine César. “Os diretores que filmaram Os sertões se deixaram nortear pela música. Os filmes proporcionam uma qualidade de vivência”, elogia José Celso. Bia Lessa talvez seja a diretora que mais personifique o trânsito por manifestações diversas. Aclamada no teatro, migrou para as artes
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plásticas, a ópera, o cinema e a música. Em seus espetáculos surpreendeu com propostas estéticas arrojadas: a floresta em cima do palco de Cartas portuguesas, os figurinos de papel de Viagem ao centro da Terra, o espaço bombardeado de Medeia, só para citar alguns exemplos. Uma crise com o teatro suscitou sua migração para o cinema. “Fui para o documentário para reencontrar a vida. Achava que o teatro estava se distanciando do humano. Lembro que estive com uma pessoa que me pareceu bem e se suicidou dois dias depois. Se fôssemos representar essa pessoa, provavelmente faríamos como alguém triste. Mas a vida é mais complexa. Somos multifacetados. Dependendo da circunstância na qual estejamos inseridos, diferentes lados de cada um de nós podem ser revelados”, declara Bia Lessa, que fez o documentário Crede-mi
FOTOS: JOÃO CALDAS
Hell nasceu de um investimento de Hector Babenco na adaptação do livro de Lolita Pille para o palco
tomando Os eleitos, de Thomas Mann, como fonte de inspiração. Ainda no teatro, Bia Lessa realizou uma experiência singular: a peça/filme Casa de bonecas, a partir do original de Ibsen. “O texto pede uma estrutura realista. Mas o que o teatro tem de mais bonito é a possibilidade de voar acima dos significados literais de cada elemento posto em cena. Então, percebi que o cinema seria um meio mais eficiente e filmei a peça. Só virava teatro nos últimos momentos – quando Nora ganhava a liberdade e se fazia concreta, viva, inteira”, diz Lessa, sobre a protagonista do texto, que abandona uma estrutura familiar acomodada para usufruir de sua autonomia, de seu livre-arbítrio. A diretora não detecta a mesma obsessão naturalista em outro autor filiado ao realismo, Anton Tchekhov – de quem montou As três irmãs.
“A literalidade não é tão relevante nas peças dele. O que mais importa é o que se passa dentro de cada pessoa a impotência dos discursos”, diferencia. Recentemente, Bia Lessa filmou Formas breves, seu último espetáculo. “Quero mostrar no filme registros da mesma cena em dias diferentes. O espectador perceberá mudanças sutis. Afinal, por mais precisos que os atores procurem ser, não há como fazer igual a cada apresentação simplesmente porque o passado não volta. Aí reside a grandeza do teatro”, afirma. A diretora está envolvida também com outro projeto cinematográfico. “É um projeto ao qual venho me dedicando há 13 anos. De início, queria filmar uma mulher grávida. Soube que uma adolescente de 16 anos iria dar à luz. Na hora do parto, percebi que a mãe não ficaria com a criança, quando a
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A Companhia do Latão analisa a história brasileira durante as décadas de 60 e 70 em Ópera dos Vivos
irmã perguntou se já podia avisar e, depois, ao telefone, se viriam buscar o bebê no dia seguinte. A menina pariu e ligou as trompas. Filmei também pessoas diferentes, de faixas etárias diversas, e trabalhei na edição de modo a que pareça se tratar de uma única pessoa. Começaria pelo nascimento, mas decidi partir da morte”, adianta. Apesar de ter se notabilizado como diretor de teatro, Felipe Hirsch foi influenciado primeiramente pelo cinema, em particular por mestres como Ingmar Bergman e Luís Buñuel. “Costumo usar projeções em minhas montagens. Identificam como uma referência ao cinema. No entanto, tenho a impressão de que o vínculo com o cinema é mais presente em outras características do meu teatro, como a dramaturgia que escolho e os cortes rápidos de tempo e espaço”, explica.
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Hirsch realizou recentemente um filme, Insolação, com notada inspiração tchekhoviana, e uma peça, intitulada Cinema. O projeto do filme, assinado em parceria com Daniela Thomas, começou quando Hirsch apresentou um argumento a Will Eno (que acabou assinando o roteiro com Sam Lipsyte) após a encenação de seu texto, Temporada de gripe. Já a montagem de Cinema propunha uma inversão geográfica: os espectadores sentam no palco, no lugar onde estaria posicionada uma tela, e os atores permanecem na plateia como se fossem público. “Queria fazer um espetáculo que questionasse a nossa maneira de ver, como nos entregamos ao trabalho, tanto sob a perspectiva intelectual quanto emocional”, resume. Em alguns de seus espetáculos, Hirsch vem buscando a fusão de manifestações artísticas. “As fronteiras
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entre as artes estão borradas, desfocadas. Não sobre o amor é, ao mesmo tempo, teatro, cinema, literatura e artes plásticas”, exemplifica, acerca do espetáculo norteado pelas cartas trocadas entre os escritores Victor Shklovsky e Elsa Triolet. De acordo com Hirsch, não há mais como insistir em distinções antes tidas como inegáveis – o teatro enquanto manifestação do aqui/agora e o cinema consistindo na exibição de imagens previamente gravadas. “Hoje é possível fazer cinema ao vivo”, diz Hirsch, referindo-se à frequente captação de imagens durante as apresentações. Os processos de trabalho, porém, são distintos. “No cinema ficamos cinco anos flutuando até pousarmos. É mais suave. No teatro permanecemos seis meses mergulhados, querendo sair para ver a luz do sol. É mais exasperante”, opina.
Companhia especializada na dramaturgia de Bertolt Brecht e portadora de um vigor teórico evidenciado na qualidade da revista Vintém, a Latão tem estreitado relação com o cinema. Uma das quatro partes componentes do recente Ópera dos vivos, espetáculo no qual o grupo mergulhou no engajamento sócio-político das décadas de 1960 e 1970, é, não por acaso, um filme. O Latão já tinha feito uma instigante experiência cinematográfica, Entre o céu e a terra, na qual os atores ficavam encarregados de toda a sonorização ao vivo, aproximando, dessa forma, o cinema da experiência teatral. “Em Ópera dos vivos experimentamos uma linguagem cinematográfica teatralizada através de um afastamento do registro realista nas interpretações e do investimento numa relação dos atores com a câmera que chegava a ser coreográfica”, lembra Sérgio de Carvalho, diretor da Cia. do Latão. Uma das principais preocupações foi realizar um filme que investisse na autoria do espectador. “No teatro somos levados a imaginar tudo. Trabalhamos com o que não é visto, ao passo que o cinema revela mais. Por isso, seguimos algumas experiências de cinema de autor, marcadamente as de diretores como John Cassavetes, Rainer Werner Fassbinder, Jean-Luc Godard e Jean-Marie Straub”, cita. A conexão com o cinema é uma constante no teatro de Christiane Jatahy. A cada nova montagem, a diretora apresenta diferentes recortes da influência cinematográfica. Em Carícias, encenação do texto do catalão Serge Belbel, Jatahy priorizou as mudanças de ângulo do espectador em relação à cena. “O público sentava em arquibancadas móveis. O objetivo era valorizar um olhar voyeur, fornecer ao espectador a sensação de que vê algo que não está sendo mostrado para ele”, explica. Em Leitor por horas, encenação do texto de José Sanchis Sinisterra, a plateia foi incluída den-
tro da cena. “Dependendo de onde estivesse posicionado, cada espectador poderia assistir à cena a partir de diferentes pontos de vista. A diferença em relação a Carícias é que a cena fornece perspectivas diversas; não é o olhar do espectador que se move”, analisa. Em Conjugado, Christiane Jatahy procurou promover uma interação direta entre o caráter performático, de instalação, e a projeção de um documentário. “Antes do projeto da peça já existia o desejo de azeitar o diálogo do documentário com a cena. Também queria investir numa proximidade extrema entre o espectador e a cena, fazer com que algo fosse visto através das persianas que recobriam a cenografia”, conta Jatahy, assumindo certa influência de Janela indiscreta, de Alfred Hitchcoch. A diretora continuou investindo na interação com os espectadores em A falta que nos move... ou todas as histórias são ficção, montagem que rendeu uma transposição para o cinema, intitulada A falta que nos move. “Procurei fazer um espetáculo em tempo contínuo. Uma peça sem foco, como uma grande panorâmica. O espectador realiza seu próprio recorte”, destaca Jatahy, que buscou inspiração em determinados filmes. “Uma referência foi Festa de família, de Thomas Vinterberg, que dialoga com o teatro, principalmente em relação a Tchekhov”, acrescenta, mencionando um dos exemplares do movimento dinamarquês Dogma 95. “E bebi na fonte do cinema de John Cassavetes. “Ele levou a influência teatral para o cinema. Se o ator errasse durante a gravação, retomava a cena do início”, destaca. Já na versão cinematográfica, Jatahy procurou transmitir ao espectador experiência parecida com a da montagem. Filmou numa única locação, sem interrupção. “Registrei 13 horas sem corte. Depois editei, de modo a dar a sensação de continuidade”, explica.
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“No cinema ficamos cinco anos flutuando até pousarmos. É mais suave. No teatro permanecemos seis meses mergulhados, querendo sair para ver a luz do sol. É mais exasperante” Felipe Hirsch
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Em Corte seco, Jatahy encarregou-se de cortar, ao vivo, as cenas, reduzindo-as ou alongando-as a cada apresentação, procedimento que evoca o cinema, mas que realçou uma característica teatral no trabalho dos atores: a conexão com o aqui/agora, com as circunstâncias do momento, com a urgência da cena. “No cinema e no teatro o corte já foi feito. Mas a explicitação do corte leva a plateia a lembrar do procedimento, tido como cinematográfico”, esmiuça. O título do espetáculo remete a Short cuts, de Robert Altman. “No filme, os atores parecem não estar atuando. Falam uns por cima dos outros. Altman maneja este cinema sujo”, observa. Pode-se traçar ainda elo com o cinema através de sua recente encenação para O livro, de Newton Moreno. “O momento em que o personagem levanta o rolo de papel e
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Realizado no Rio Tietê, BR 3, do Teatro da Vertigem, rendeu dois filmes de Evaldo Mocarzel
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mostra a janela, permitindo ao espectador ver a cidade, é uma imagem de cinema. A vida desponta como cenário”, sintetiza. Apesar de ser formado em cinema pela ECA/USP, Rubens Rewald sempre gostou de teatro, campo que abraçou até em decorrência das dificuldades impostas pelo governo de Fernando Collor de Mello. Rewald ingressou no teatro através do multimídia. Ficava encarregado de produzir as imagens projetadas durante a encenação de Emilio di Biase para Dois perdidos numa noite suja, de Plínio Marcos. “Eu gravava o espetáculo ao vivo todas as noites. Era ‘o terceiro ator em cena’”, conta, evocando as interpretações de Marco Ricca e Petrônio Gontijo. Rewald começou a trabalhar com a conceituada diretora Cristiane Paoli-Quito na Troupe de Atmosfera Nômade e a desenvolver uma dramaturgia
colaborativa, ou seja, contaminada pelo processo de trabalho do grupo e não gerada a partir da criação solitária do autor em seu gabinete. Essa dramaturgia dessacralizada se transformou em objeto de estudo de Rewald, que lançou o livro Caos/Dramaturgia, resultado de sua dissertação de mestrado. “De acordo com as experiências que tive, fazia uma proposta textual ou desenvolvia uma proposta surgida a partir de workshops dos integrantes das companhias”, conta. Mas Rewald não assume uma postura radical. “Uma vez conversei com José Sanchis Sinisterra e ele me disse que Samuel Beckett nunca teria escrito Esperando Godot por meio de processo colaborativo”, relata Rewald, que chegou a começar a redigir a dramaturgia de Os sertões, do Teatro Oficina. Não por caso, Rubens Rewald levou a influência teatral para o seu cinema. “Antes de filmar, ensaio bastante com os atores. Proponho improvisações com o intuito de produzir estímulos na cena”, esclarece. Para Rewald, há uma contaminação mútua entre teatro e cinema. “Ao longo
do século XX, o teatro assimilou procedimentos do cinema, como o corte através de cenas fragmentadas e iluminação recortada. Já diretores como Fassbinder construíram seus filmes como espetáculos teatrais”, afirma. Diretor de O corpo, Rewald está, nesse momento, se dedicando ao seu segundo longa-metragem, chamado Super nada, sobre um ator que tenta se estabelecer no mercado de São Paulo. O elenco conta com nomes importantes do teatro, como Denise Weinberg, Marat Descartes e Lúcia Romano. Marcus Vinicius Faustini se formou na Escola de Teatro Martins Pena e capitaneou montagens bemsucedidas, como Capitu, de Machado de Assis, e Eles não usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri. Ainda assim nunca deixou de almejar o cinema, sonho que viabilizou com o documentário Carnaval, bexiga, funk e sombrinha, no qual evoca sua vivência no subúrbio carioca, universo que também bate forte no livro Guia afetivo da periferia. E foi a partir do Guia afetivo que Faustini decidiu desenvolver
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projetos simultâneos no teatro e no cinema. “Quero um ato teatral e um gesto cinematográfico. Na montagem haverá o fluxo do pensamento, ao passo que no filme, a pausa do pensamento, além de imagens que traduzam deslumbramento pelo Rio de Janeiro. No filme vou inserir imagens de arquivo e dramatizar algumas cenas e no teatro vários atores ficarão encarregados da narração. Nos dois casos decidi criar novas cenas a partir do livro”, assinala. Mesmo externando paixão pelo cinema, Faustini parece priorizar o teatro como arte. “O teatro fornece uma carpintaria melhor, porque a análise dos signos da representação é bem potente. O cinema, por sua vez, é muito centrado na imagem”, opina.
O teatro revive no cinema Evaldo Mocarzel é um caso à parte. Formado em cinema pela Universidade Federal Fluminense na primeira metade da década de 1980, trilhou carreira no jornalismo até passar a dirigir longas-metragens. “Desde os 13 anos sonho fazer filme de ficção e escrever peça de teatro”, conta Mocarzel. Nos anos 1980 fez cursos na recém-fundada Casa das Artes de Laranjeiras (CAL). No período Collor, foi confrontado, como muitos, com a inviabilidade de fazer cinema. Mergulhou no jornalismo, mais exatamente na redação de O Estado de S. Paulo. “Felizmente, eles pagavam cursos de reciclagem e fui estudar cinema na New York Film Academy durante três meses”, lembra acerca do período em que assistiu a 66 montagens teatrais. Fez um curta de final de curso, Pictures in the park, e começou a focar na questão do roubo da imagem através da realização de documentários voltados para temática social (a série À margem...). De poucos anos para cá, Evaldo Mocarzel decidiu registrar trabalhos de algumas das mais importantes companhias de teatro de São Paulo
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Em Cuba libre, Mocarzel registra o retorno de Phaedra D. Córdoba a Cuba depois de 53 anos
e também do Brasil. Com o Teatro da Vertigem – grupo conduzido por Antônio Araújo, marcado por atuação visceral do elenco e por encenações em espaços não convencionais (em igreja, Paraíso perdido; em hospital, O livro de Jó; em presídio, Apocalipse 1,11; Rio Tietê, BR 3) – fez, nada menos, que cinco filmes: dois a partir de BR 3 (um trazendo à tona a montagem propriamente dita e o outro, o processo), já lançados em cinema, em São Paulo; A última palavra é a penúltima, a partir de uma instalação cênica realizada pelo Vertigem numa galeria subterrânea, junto com outras duas companhias, a Zikzira, de Belo Horizonte, e a Lot, do Peru; um sobre O kastelo, espetáculo que assinou a dramaturgia e realizou durante as apresentações um visagismo ao acoplar nos corpos dos atores determinados dispositivos; e um sobre Bom Retiro, próximo trabalho do
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Vertigem, centrado no tradicional bairro de São Paulo, filme em que Mocarzel pretende desconstruir o espetáculo a partir de um registro detalhado do processo. Em relação a Bom Retiro, Evaldo Mocarzel vem se dedicando a entrevistas, como a feita com Jacó Guinsburg, que cresceu no bairro. Com Os Fofos Encenam, companhia do dramaturgo e diretor Newton Moreno, Mocarzel tem dois projetos cinematográficos centrados nos aclamados Memória da cana e Assombrações do Recife Velho. Releitura de Álbum de família, de Nelson Rodrigues, a partir de Casa grande & senzala, de Gilberto Freyre, Memória da cana inseria os espectadores dentro dos cômodos da casa de uma família dominada por pulsões de morte. Mocarzel acompanhou a criação do grupo durante um ano e meio e registrou o espetáculo levando em conta o
processo de trabalho. Já no que se refere a Assombrações, registrou as apresentações da encenação no próprio Recife Velho. Outro grupo com o qual Mocarzel estabeleceu parceria foi o XIX de Teatro, dirigido por Luiz Fernando Marques. O diretor fez um filme sobre Hysteria e outro sobre Hygiene, espetáculos apresentados em espaços não convencionais e calcados em propostas de relação com a plateia. Em Hysteria, as espectadoras, separadas dos espectadores, eram direcionadas para dentro da cena e levadas a interagir discretamente com as atrizes; em Hygiene havia, na primeira parte, uma proposta de itinerância. “Registrei a encenação de Hysteria em 18 locações históricas de Santa Catarina e levei as atrizes/personagens para espaços idílicos (praias, cachoeiras) sonhados no confinamento. Já Hygiene foi encenada na casa de um libanês, no Acre, um esforço do grupo em se apropriar de uma região antiga de Rio Branco. Vejo esse filme como uma homenagem ao teatro de resistência que diz não ao conforto da caixa fechada, do espaço italiano”, explica Mocarzel a respeito do grupo, atualmente sediado na Vila Maria Zélia, no Belenzinho. O terceiro projeto do diretor com a companhia
diz respeito à Festa de separação, encenação que, embora dirigida por Luiz Fernando Marques, não é considerada como pertencente ao repertório do XIX. “Os atores me chamaram para realizar um documento fílmico sobre a separação deles. Como transformar a dor da separação num ato de criação artística?”, questiona Mocarzel. Responsáveis pela revitalização da antes perigosa Praça Roosevelt, Os Satyros também ganham três filmes assinados por Mocarzel. Um deles, já pronto, é Cuba libre, centrado no retorno da transexual Phaedra D. Córdoba, integrante da companhia, a Cuba, depois de 53 anos. “Encontramos o palco onde Phaedra se apresentou pela primeira vez, aos 13 anos. E falo sobre a diversidade sexual ao flagrar o momento em que os homossexuais finalmente puderam assumir sua condição sexual”, destaca. Mocarzel também filmou Vila Verde, a partir da instalação dramática realizada pelo grupo no violento bairro de Curitiba. O terceiro filme aborda os 20 anos de trajetória de Os Satyros, marcados por espetáculos como De Profundis, A filosofia na alcova e 120 dias de Sodoma. Mocarzel garante que o contato com a Cia. Livre, de Cibele Forjaz, valeu como uma pós-graduação.
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“O movimento Arte contra a Barbárie mobilizou muita gente e gerou a Lei do Fomento, que possibilitou aos grupos dedicar-se a experimentações de linguagens a longo prazo” Evaldo Mocarzel
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Acalenta o projeto de documentar o próximo espetáculo da companhia, África Brasil. “O grupo está mapeando as nossas raízes arquetípicas. Cibele faz deglutições cênicas durante o processo e, no caso de África Brasil, realiza improvisações abertas ao público”, informa. O outro filme, sobre a Cia. Livre, abordará os dez anos de trajetória. “Durante seis semanas, Cibele reencenou todos os espetáculos do grupo no formato de leituras dramáticas. Traçarei uma panorâmica da companhia, as dificuldades enfrentadas para continuarem juntos e a discussão sobre o processo colaborativo”, diz Mocarzel. O grupo é conhecido pela qualidade da apropriação de determinadas obras – como Um bonde chamado desejo, de Tennessee Williams, e Toda nudez será castigada, de Nelson Rodrigues; pela produção de uma dramaturgia própria a partir do vínculo com um autor – caso de Newton Moreno, em Vemvai, Caminho dos mortos; e pela presentificação da história do teatro brasileiro – em Arena conta Danton. Vale lembrar que a encenação recente de Cibele Forjaz para O idiota, de Dostoievski, mesclou atores de companhias diferentes, o que talvez possa ser visto como uma característica desse momento. Para completar, Mocarzel se debruçou sobre a Cia. Estável, especializada em teatro político. “O grupo tem notada influência brechtiana. Costuma mostrar seus trabalhos no Arsenal da Esperança, no Brás”, diz Evaldo Mocarzel, que registrou apresentações de Homem cavalo & sociedade anônima. “Procuro discutir o teatro político possível nos dias de hoje”, resume Mocarzel. Ele deu partida a todos esses projetos ao constatar a efervescência da cena teatral de São Paulo. “O movimento Arte contra a Barbárie mobilizou muita gente e gerou a Lei do Fomento, que possibilitou aos grupos dedicar-se a experimentações de linguagens a longo prazo”, conclui.
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Uma relação de tensão e complementação Na última edição do Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto, um dos espetáculos mais comentados foi Os cegos, da Cie. Ubu Theatre, do Canadá, dirigido por Denis Marleau. Após uma travessia pelo teatro, o público se deparava com rostos recortados pela iluminação. Seriam atores ou projeções? Ao final, a revelação: os rostos eram todos projetados. Diante da inexistência de atores ao vivo, Os cegos pode ser “classificado” como teatro? Ou se trata de uma experiência cinematográfica?
Se o leitor/espectador concluir que a presença do ator ao vivo é uma característica essencial do teatro, Os cegos não pode ser considerado como tal. Por outro lado, Marleau consegue causar certo suspense ao instaurar a dúvida sobre a presença ou não de atores durante a sessão. O espectador não se sente protegido como no cinema e mesmo a revelação da ausência de atores não restabelece o conforto; ao contrário, gera uma sensação fantasmagórica (não por acaso, o subtítulo do espetáculo é Fantasmagoria tecnológica), algo sinistra. “O teatro envolve a partilha de tempo e espaço com o espectador e a dimensão de que a cada noite tudo pode mudar. Atores e espectadores estão sob risco. Já o cinema traz uma ‘vantagem’: o espectador sabe que nada sairá da tela”, afirma o crítico e professor de cinema da ECA/ USP Ismail Xavier.
Ariane Mnouchkine, à frente do Théâtre du Soleil, realizou um filme de teatro a partir da encenação de Tambours sur la digue
O lugar mais ou menos protegido que o espectador encontra no teatro e no cinema pode ser relacionado a um embate temporal entre as suas manifestações. Enquanto o teatro é a arte do presente, do instante imediato, o cinema costuma ser vinculado ao passado, ao registro prévio de imagens constantemente reprisadas diante do espectador. Mas essas distinções vêm sendo cada vez mais embaralhadas nos dias de hoje. Diversas montagens projetam imagens captadas ao vivo, conferindo um sentido de atualidade na interação com o multimídia. “Hoje somos filmados sem saber. Estamos sempre sob olhares, postos, conscientemente ou não, num limite de performance”, assinala Xavier. Teatro e cinema travaram relação conflituosa desde os primórdios. “No início, o cinema tinha o teatro como grande inimigo. Havia o temor de que o cinema se tornasse teatro filmado. Quando o cinema ingressou na fase falada, o medo aumentou. Afinal, a palavra trazia à tona o teatro”, explica. Ismail Xavier chama atenção, porém, para determinadas tensões que despontaram no campo teatral antes mesmo do surgimento do cinema. “Desde o século XVIII começa a se impor certa visão de teatro que se afasta da declamação do texto e caminha na procura por uma visualidade. Passaram a defender a encenação como geradora de emoções advindas de uma visualidade. No século XIX, surge o melodrama como teatro de ação que busca a emoção pelo impacto da cena, relegando menos importância ao texto. Essa perspectiva migra para o cinema e depois para a televisão. O cinema potencializa a visualidade e a TV banaliza, através da tela pequena e da concentração no rosto do ator, mas mantém a agilidade”, analisa. Xavier salienta a mudança, ao longo do tempo, no modo de se relacionar com o melodrama. “Hoje, algumas maneiras de atuar soam falsas. Na época do neorrealismo italiano, disseram: ‘estamos diante do real, do mundo’. Mas passamos a considerar melodramático um filme como Ladrões de bicicleta”, diz, referindose à obra de Vittorio De Sica. A professora de figurino da UniRio Ana Teresa Jardim se deteve sobre a interface entre teatro e cinema na virada do século XIX para o XX – portanto, nos primeiros anos do cinema. “O cinema surge como atração de feira, como o vaudeville, desvinculado de uma
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Obras como Tio Vanya em Nova York (1994), de Louis Malle, e Ricardo III (1996), de Al Pacino, também são mencionadas como filmes de teatro. Não insere no grupo, porém, filmes de Peter Brook, como o monumental O Mahabharata (1989). “O Mahabharata é um filme teatral, mas não um filme de teatro. Os filmes de Brook são muito cinematográficos e as peças, teatrais. Não percebo uma mútua contaminação”, justifica. Patrice Chéreau, encenador importante, reconhecido pela conexão com a dramaturgia de Bernard-Marie Koltès, também é um caso à parte. “Ele está em franca migração. Já disse que se pudesse não faria mais teatro, e sim cinema. Não acho que se dedique a filmes de teatro, a julgar por A rainha Margot (1994) e Intimidade (2000)”, opina. Gama deu continuidade à sua pesquisa através da dissecação dos espetáculos de Robert Lepage. Em relação a Lepage, valoriza a capacidade de síntese na
FOTOS: DIVULGAÇÃO
perspectiva artística. A mãe de Charles Chaplin foi atriz de vaudeville. Não por acaso, o gênero influenciou a sua filmografia. Georges Meliès, com Viagem à lua, foi o precursor do cinema de fantasia praticado por diretores como Steven Spielberg, chamando atenção para o fato de que o truque é muito mais visual no cinema do que no teatro. O espetacular no teatro esbarra em limitações técnicas, ao contrário do cinema, que é uma arte mais controlável – até por não ser ao vivo”, afirma Jardim, que considera D. W. Griffith o primeiro cineasta que vislumbrou uma narrativa. Ana Teresa Jardim potencializa questões sobre cinema a partir do contato com autores como David Bordwell e Denis Guénoun. “No livro Teatro é necessário?, Guénoun destaca que o cinema conseguia um grau de realismo que não era atingido pelo teatro. De fato, na passagem para a fase sonora, o cinema libera o teatro da obrigação de ser realista. O espectador passa a ter mais consciência da artificialidade do teatro”, destaca. Pode-se dizer também que a imaginação do público tende a ser mais estimulada no teatro, uma vez que todos os elementos da encenação não precisam ficar circunscritos aos seus significados literais. De qualquer modo, sua visão em relação ao futuro do cinema não é esperançosa. “Acho que está acabando. As pessoas – os jovens, em especial – gastam mais tempo em frente ao computador, mais até do que diante da televisão. Ainda assim, o cinema independente americano resiste sem investir em efeitos”, diz. O ator e teórico Ronaldo Gama vem estudando diretamente o entrelaçamento entre teatro e cinema, tendo por base sua conexão com o trabalho de Ariane Mnouchkine, diretora do Théâtre du Soleil, companhia sediada nos arredores de Paris (da qual foi um colaborador constante), conhecida pela conexão com o Oriente, pela apropriação de dramaturgia de autores consagrados e pela produção de textos próprios. Gama procurou identificar os filmes de teatro, seguindo conceito de sua orientadora, Béatrice Picon-Vallin. “Ao filmar Tambours sur la digue (Tambores sobre o dique), Ariane Mnouchkine realizou um filme de teatro. Quis que o espectador se imaginasse no teatro, filmando, porém, a partir de ângulos privilegiados para o público de cinema. Valeu-se de procedimentos cinematográficos, como travelling e close”, exemplifica.
utilização da tecnologia. “Ele usa com desenvoltura tudo o que a tecnologia permite, mas de forma descomplicada. Dá a impressão de que os elementos que insere em cena não poderiam ser aproveitados de outra maneira”, observa Gama, ao citar companhias especializadas na contracena entre teatro e multimídia, como o Wooster Group, fundado por Spalding Gray e Elizabeth LeCompte. A figura do diretor-criador nasceu mais ou menos na mesma época no teatro e no cinema. Se o cinema é uma manifestação jovem, surgida em 1895, o encenador teatral despontou na segunda metade do século XIX com Antoine, que impressionou ao inserir o elemento real em cena, rompendo com o artificialismo do cenográfico. A verdade cênica e a interpretativa foram colocadas em pauta, norteando o trabalho de
Tambours sur la digue (Tambores sobre o dique)
Stanislavski, cuja obsessão naturalista, em determinada fase, fez com que seu teatro ficasse conhecido como “ateliê de minúcias”. Stanislavski teve Vsevolod Meyerhold como discípulo, na época de fundação do Teatro de Arte de Moscou, em 1898. Ambos travaram vínculo passional, distanciando-se quando Meyerhold decidiu defender a corrente simbolista. Analisado em excelentes textos de Béatrice Picon-Vallin, Meyerhold influenciou decisivamente o cineasta Serguei Eisenstein. “Meyerhold defendia o uso de ferramentas do cinema no teatro”, confirma. Trazendo a discussão para território nacional, determinados cineastas tiveram suas filmografias esmiuçadas a partir de elos com o teatro. Foi o caso de Glauber Rocha, objeto de pesquisa da Mestre em Teatro Denise Duarte. “Quanto à teatralidade em Glauber, defino-a como a ação dotada de artifícios teatrais. Refiro-me, principalmente, ao corpo do ator e ao gestual, que ganham força em seus filmes devido ao uso da câmera e do espaço cênico quase sempre em continuidade, no intuito de captar o instante maior do ator. A teatralidade em Glauber contrasta, assim, com uma representação naturalista em cinema. O efeito é observado também quando da utilização de atores não profissionais contracenando com grandes atores”, afirma. Duarte toma Deus e o diabo na terra do sol como exemplo. “Na sequência que retrata a fé dos beatos em Monte Santo, moradores locais representam a si mesmos, numa clara influência do neorrealismo italiano. Mas enquanto a escola italiana trabalhava com atores não profissionais, com o objetivo de compor um naturalismo na representação, na busca por maior realismo, em Glauber, ao contrário, a teatralidade explode quando são dispostos, lado a lado, atores não profissionais e grandes atores como Othon Bastos, Yoná Magalhães e Geraldo Del Rey. Um jogo de contrastes entre naturalismo e exacerbação da encenação, que leva o cinema de Glauber a atingir picos de teatralidade pela ênfase na força do ator – graças a um trabalho de câmera, que enfatiza não somente a continuidade da ação como tomadas em planos próximos, e ao uso do espaço cênico em continuidade, no intuito de seguir o ator sem cortes”, discorre Denise Duarte acerca de Glauber, que assinou uma peça, Jango – Uma tragédia em três atos, escrita em 1976.
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Comparação entre 1
O cinema é o sonho do homem, sua filosofia, política e estética. Seu drama, farsa, ópera bufa, comédia, ética. O cinema é a aventura do homem, seu terror, seu mistério, seu medo, sua glória e muitas outras coisas mais.
5
O Teatro é completamente diferente. O Teatro é Real.
2 3 4
No Teatro, somente podemos ver o que os personagens falam ou fazem. No cinema, podemos ver o que eles pensam. O Cinema gosta de considerar-se uma indústria, denominação que ofenderia o Teatro. No Teatro, o assunto é só um: o Homem. Apenas o homem, nu, inteiro. O CINEMA tem mais recursos. Se a cena é chata, podemos sempre cortar para uma paisagem. Para o Ator de Cinema, basta saber o método Stanislavski (viver o papel). No Teatro é preciso o Stanislavski, e, além disso, MOSTRAR QUE SE ESTÁ FAZENDO TEATRO. Por isso é muito mais fácil representar no cinema. Basta o Stanislavski. Talvez com uma ponta de histeria (ou esquizofrenia), para fazer sucesso.
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No Teatro, o Risco é peça fundamental, como no circo. Terá aquela atriz fôlego para chegar ao fim? Será que aquele ator vai aguentar essa voz gritada? E o acesso de choro? Ou o frouxo de riso, poderá ser controlado? Será que Deus vai me conceder hoje a graça de fazer bem aquela cena? O risco é a estrela, como no Circo. No cinema, o risco é controlado, podemos sempre repetir o take.
6
Nesse ponto, o cinema é morto e o teatro, vivo. No Teatro, o espetáculo não é feito apenas pelos atores. É feito p e l o s a t o re s e e s p e c t a d o re s . Uma interação tão intensa quanto mágica, chamada Teatro, da qual quem não é ator não entende. O Ator é um especialista de um assunto muito particular. É aquele que entende o que acontece quando muitas pessoas se juntam. Quando muitas pessoas se juntam, acontece algo sério e misterioso, que não pode ser posto em palavras. Sensações e emoções cruzam o ar em todas as direções. As consciências declaram, mesmo sem verbalizar, suas profundas diferenças. Dissonam as
cinema e teatro Domingos Oliveira
individualidades, mais ou menos agressivamente, funcionando o Ator ao mesmo tempo como catalisador e parede refletora deste violento fenômeno. Creiam-me, não é nada sutil.
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A grande importância do cinema, na compreensão humana da Vida, vem da sua possibilidade de manipular o tempo, creio eu. O Tempo. O QUADRO PARADO fixa o instante eterno.
Já vi muitas vezes atores sendo derrubados (às vezes, literalmente) por um antagonismo da plateia, ou, ao contrário, quase levitarem de prazer, erguidos pela solidariedade dos espectadores. E não vai aqui nenhuma vaidade.
A CÂMERA RÁPIDA denuncia o turbilhão em que vivemos, o quão ridículos somos todos, formigas da Existência. A PRÓPRIA MONTAGEM, o corte cinematográfico que faz desaparecer um tempo que prendia inexoravelmente um momento ao outro...
HÁ UM MOMENTO NO TEATRO, raro momento, em que as consciências todas de atores e espectadores consonam. Este momento é sublime, inesquecível, um orgasmo do espírito.
São recursos alucinantes! Que descrevem com contundente objetividade algumas das manobras mais sutis da mente humana.
É também, porque não dizê-lo, transcendente OU ATÉ MÍSTICO. Ele prova que muitos homens podem, em determinadas circunstâncias, ser um só. Faz suspeitar de que talvez SEJAMOS UM SÓ.
E a CÂMERA LENTA? Que faz-nos perceber o mundo em todo seu largo mistério, permitindo-nos ver aquilo que teríamos visto se tivéssemos a atenção dos Deuses...
Alguém disse que a maior das artes, do ponto de vista da forma, é, sem duvida, a música. E do ponto de vista do conteúdo, a Arte do Ator.
E assim vai o cinema. Um lugar onde somos eternos. Dentro de latas, porém eternos. Jovens mesmo quando mortos há muito tempo. O CINEMA SURPREENDE A MORTE EM SEU TRABALHO.
Transcendências não faltam também à sétima arte (quais são as outras seis?).
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O Teatro e o Cinema são a Vida sem as partes chatas
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Transcendente em sua essência técnica. Dizer que o Cinema é o sonho do homem está longe de ser uma metáfora. Aquela máquina inventada pelos irmãos Franceses da Luz reproduz, com uma fidelidade embaraçosa, O ATO HUMANO DE SONHAR. Um filme é realmente como um sonho, intocável, livre, ilusório, incontrolável, como somente um Sonho pode ser. O cinema não parece a Imaginação ou a Memória, embora possa retratá-las eficientemente. Porém parece muito com o Sonho. E assim sendo atinge-nos em veia profunda, pelo inconsciente, seja isso lá o que for. O Teatro atinge diferente. Sensorialmente, corporalmente, sensualmente, eroticamente. É possível, pelo menos em fantasia, viver um grande amor com uma daquelas atrizes. É possível que o teatro pegue fogo, que algum ator morra... Perdoem a hipótese, mas já aconteceu muitas vezes, de Cacilda a Molière. O Palco é um bom lugar para morrer. Tento dizer que, de alguma forma, é perigoso ir ao teatro, mesmo sem
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falar na falta de estacionamento e nos assaltantes eventuais. Você pode se emocionar demais, pode não conseguir sair no meio da peça. Não se vai ao Teatro tão impunemente quanto ao cinema.
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O Teatro é a grande máquina SIMBOLIZADORA. Um ovo colocado no meio de um palco passa a ser O OVO. Um ovo na tela traz apenas a suspeita de que há uma galinha por perto. NO CINEMA, você pensa, vive e sente o Momento, o plano. NO TEATRO você faz exatamente o mesmo, depois repete mil vezes até perder o Sentimento. E então encontra sua FORMA artística. O Cinema é o dionisíaco, o Teatro é o Dionisíaco feito apolíneo. Um tipo de Reflexão de outra ordem. No fazer do Cinema, importa o DETALHE. O processo, por sua dificuldade técnica, concede tempo até demasiado para a Reflexão sobre cada instante. No teatro não, o detalhe não importa (quem se importar com ele está perdido). No fazer do teatro importa o conjunto da obra, ou seja, seu conteúdo. Como a escultura, o bloco de matéria-prima vai sendo modelado aos poucos e igualmente.
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Quando uma parte estiver pronta, a escultura inteira estará pronta. No cinema, não. No cinema modela-se um dedo com perfeição, para daí deduzir como deve ser a mão e o braço.
>
Minha vida teria sido muito pior se não existisse o cinema. Quando estou triste, deprimido, querendo morrer – vou ao cinema ver um filme.
CONCLUINDO: No Cinema há o exibidor, o distribuidor, a ditadura da técnica, enfim muitos intermediários entre o autor e a obra. No cinema, o Ator é uma peça relativamente sem importância, diante dos poderosos fotógrafos e técnicos de som, diretores. No Teatro é diferente, sem intermediários. Você faz uma peça com cinco amigos, é um fracasso, vão 20 pessoas com entrada a 15 reais. São 300 reais. Os cinco vão na bilheteria, pegam a grana e dividem, ainda dão uma parte para o diretor. Fica cada um com cinquentinha. Dá para jantar bem.
Se não existisse o teatro minha alma seria muito mais pobre. O Teatro ensina o quanto a Vida é uma ilusão, como Platão queria. Somente possuímos uma vida, dizem. No teatro, várias. O Teatro tem o Tamanho da vida, é tão fugaz quanto ele. Um monte de panos e luzes que, uma vez terminada a função, tornam-se Nada, restando apenas na memória dos poucos que estiveram lá. Isto faz com que a gente do teatro seja uma gente humilde e isso é bom.
...outro dia fui ao cinema e fiquei olhando um close de uma moça bonita naquela tela enorme... e, de repente, pensei! Já vi isso antes! Esses rostos enormes, essa terra de gigantes! Foi na minha infância primeira. Era assim que eu via o rosto da minha mãe, quando me botava no colo.
O Teatro e o Cinema são a Vida sem as partes chatas.
O Cinema nos torna todos crianças, devolve-nos a inocência perdida. Viva o Cinema! Porém, como aventura humana, ou seja, como Arte, o Teatro é Maior.
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FOTOS: RENATO DE AGUIAR
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A inventora de um gênero É frequente os atores se especializarem em determinados gêneros.
Há os que têm vocação para a comédia; outros preferem o drama; um número menor envereda pela tragé-
dia. Mas não é nada fácil encontrar
uma atriz que simplesmente tenha criado um estilo. Eva Todor fundou o
chamado “gênero Eva”. “É um modo gaiato de representar”, resume a pró-
pria Eva. Talvez seja possível dizer um pouco mais sobre seu jeito de
interpretar personagens avoadas,
simpáticas e cheirosas, vividas por uma atriz portadora de um timing
irrepreensível. “Os espectadores
Dona de um jeito único de interpretar, Eva Todor trilhou longa carreira em teatro ao lado dos dois maridos, Luiz Iglesias e Paulo Nolding
costumavam perguntar na bilheteria: essa peça é do ‘gênero Eva’? Se a bilheteira dizia que não tanto, desanimavam”, afirma. A atriz começou a fazer “gênero Eva” desde que deu partida à carreira. Teve como empresário seu primeiro marido, Luiz Iglesias, com quem casou aos 14 anos. Na época, já tinha alguma experiência no balé,
Daniel Schenker
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“Eu soube
próprio Luiz Iglesias num período
envelhecer porque
chamarizes do espetáculo. Alguns
fui fazer logo
balhando diante da renovação do
as mais velhas.
de 1930, que culminou na emblemá-
Das jovens passei
Vestido de noiva, de Nelson Rodri-
para personagens
atuando de segunda a domingo,
de 70, 80 anos.
rador ficou mais de 20 anos. Marcou
Não interpretei
Copacabana e Maison de France.
as que estariam
tugal, onde chegou a permanecer
no meio do
das temporadas. Na África, passou
caminho, as damas galantes”
em que os atores eram os grandes não conseguiram permanecer trateatro brasileiro ao longo da década tica montagem de Ziembinski para gues. Eva Todor, porém, continuou ininterruptamente. Só no Teatro Serpresença nos palcos dos teatros Viajou com a companhia para Pordurante dois anos e meio em uma por cerca de 50 cidades. A atriz apostou num repertório que agradava seu público. “Quando Luiz Iglesias sentia que a montagem fraquejava, tirava de cartaz”, assume. Depois da morte de Iglesias, Eva Todor refez a vida ao lado
que começou a aprender aos quatro
portugueses Esther Leão (que a di-
de Paulo Nolding, que também se
anos, ainda na Hungria, seu país
rigiu em Feia, de Paulo Magalhães)
tornou seu empresário e influenciou
natal, e continuou, já no Brasil, com
e Eduardo Vieira. “Ele me ensinou
decisivamente para que passasse
Maria Olenewa, no Theatro Munici-
muito sobre teatro, quando eu ainda
a interpretar personagens mais ve-
pal, sempre estimulada pelos pais.
não dominava o português. Lembro
lhas. “Nolding disse: ‘Vamos parar
Graças ao jornalista Mário Nunes
que pedia para eu ‘fazer diferente’ e
com as personagens ingênuas’”,
foi parar no Teatro Recreio, onde
eu entendia que era para ‘fazer de
conta Eva, que se dedicou a um re-
conheceu Iglesias, que inaugurou
frente’”, recorda Eva, que, mais de
pertório formado por Senhora da
uma companhia de teatro, rebatiza-
80 anos depois de ter chegado ao
boca do lixo, de Jorge Andrade, e Em
da, em 1940, de Eva e seus Artistas
Brasil, continua falando fluentemente
família, de Oduvaldo Vianna Filho.
devido ao sucesso incontestável da
o húngaro, país para onde voltou
“Como diretora contratada, Dulcina
atriz nos palcos.
apenas uma vez, ao lado do segundo
(de Morais) me convenceu a fazer
Da companhia faziam parte mais
marido, Paulo Nolding. “Meus pais
Senhora. Ela era encantadora, en-
de dez atores – entre eles, Jardel
não deixaram que esquecesse a lín-
graçada. Fazia muito bem a alta co-
Jercolis, Elza Gomes, André Villon,
gua”, afirma a atriz, de 91 anos re-
média”, elogia.
Afonso Stuart e Henriette Morineau,
cém-completados, que contou com
O público se surpreendeu, mas
com quem viria a contracenar, mui-
o incentivo e a presença mais que
aceitou a transição no repertório da
tos anos mais tarde, na montagem
constante dos pais na plateia.
atriz, que não abandonou o “gênero
de Quarta-feira, sem falta, lá em casa,
Eva se especializou em perso-
Eva”. “Eu soube envelhecer porque
de Mário Brasini. Além de Iglesias,
nagens ingênuas e jovens em peças
fui fazer logo as mais velhas. Das jo-
Eva acumulou experiência com os
ocasionalmente adaptadas pelo
vens passei para personagens de
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70, 80 anos. Não interpretei as que
participaria da montagem de A pe-
estariam no meio do caminho, as
quena mártir de Cristo Rei, de Mi-
damas galantes”, conta. A atriz
guel Falabella e Maria Carmem
lembra o sucesso da montagem de
Barbosa, antes de se afastar
Em família, dirigida por Sérgio Britto.
do teatro. “Durante um bom
“Fazia uma personagem que tinha
tempo conciliei teatro e
em torno de 70 anos, muito mais do
televisão. Só depois da
que eu naquele momento”, sublinha.
morte de Nolding é que
Ao longo do tempo, Eva transitou
precisei optar. Afinal, não
entre comédias como Lily, Lily, de
sei escolher peça e nem
J. P. Grédy e Pierre Barillet, na qual
lidar com dinheiro. Só
se encarregava de duas persona-
entendo da ribalta para
gens, e uma dramaturgia mais am-
dentro”, admite Eva Todor,
biciosa, simbolizada, por exemplo,
cuja trajetória artística
por Cândida, de Georges Bernard
foi esmiuçada no livro
Shaw, e Carta, de Somerset Mau-
O teatro de minha
gham, textos que enfrentou já na
vida, de Maria An-
década de 1940.
gela de Jesus, lan-
Em De olho na Amélia, de Geor-
çado pela Coleção
ges Feydeau, mais aplausos, além
Aplauso, da editora
da conquista do Prêmio Molière. Eva
Imprensa Oficial, e
surpreendeu falando um palavrão.
homenageada com justiça
Mas sua peça preferida continua
na última edição do Prêmio
sendo aquela em que mais se dis-
Shell, no Rio de Janeiro.
tanciou do “gênero Eva”: O efeito dos raios gama sobre as margaridas do campo, texto de Paul Zindel, marcado por humor cruel, na qual interpretava uma mãe dominadora. Com a morte de Nolding, Eva passou por uma desestabilização maior que a vivida pela perda de Luiz Iglesias. “Quando Iglesias morreu, fiquei doida. Mas continuei. Quando Nolding morreu, disse em alguma entrevista que eu não tinha mais ninguém. Felizmente, Boni (José Bonifácio de Oliveira Sobrinho) soube e me chamou. Disse: ‘De hoje em diante sua família passará a ser a TV Globo’”, destaca. Abalada pelo falecimento de Nolding, Eva estreou Como se tornar uma supermãe em dez lições, de Paul Fuks. “Na noite da estreia, Wolf Maya me disse que seria um ensaio geral”, revela. A atriz ainda
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O primeiro Orfeu, no palco do Municipal Maria Luiza Franco Busse
Vinícius de Moraes encontrou muitas maneiras de saudar e reverenciar nossa ancestralidade africana. Orfeu da Conceição foi mais uma dessas homenagens do compositor, que gostava de se definir como o poetinha branco de alma negra. Bastou uma noite insone lendo sobre o mito do divino músico da Trácia para compor em três atos uma tragédia carioca que tem o Amor como protagonista. Melhor dizendo, as inquietudes do Amor, tendo a favela como o lugar da universalidade desse sentimento. Da Grécia para os morros do Rio, Vinícius cantou a história do infortúnio dos amantes Orfeu e Eurídice. Ao fugir do assédio de Aristeu, pastor fascinado por sua beleza, ela morre picada por uma serpente. Arrebatado pela dor da perda da esposa amada, Orfeu desce aos Infernos para buscá-la. Sua música adormece o cão Cérbero de três cabeças que guarda a entrada das sombras, enleva os espíritos e amolece Hades, o senhor das trevas. Ele deixa que Orfeu reconduza Eurídice à Terra com uma condição: só olhar para ela quando estiverem novamente na presença da luz. O Amor afoito não espera e, quase na porta de saída, Orfeu vira-se para se certificar de que Eurídice o acompanha. Então, ele a perde para sempre, nunca mais se recupera da dor e acaba assassinado pelas mulheres que rejeitara. “São demais os perigos desta vida para quem tem paixão”, anuncia o Corifeu de Orfeu da Conceição ao distinto público. Assim começa a peça de Vinícius. A estreia, em 25 de setembro de 1956, no Theatro Municipal do Rio, foi resultado de uma ação entre amigos. Todos de peso. Cenários do arquiteto Oscar Niemeyer, cartazes promocionais dos artistas plásticos Djanira,Carlos Scliar, Luís Ventura
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e Raimundo Nogueira, figurinos de Lila de Moraes, esposa do poeta, coreografia de Lina de Luca e parceria musical de Antônio Carlos Jobim, que orquestrou o prólogo e assinou com Vinícius cinco das seis canções do espetáculo dirigido por Leo Jusi. Haroldo Costa foi Orfeu e Dirce Paiva, Eurídice. Léa Garcia fez o papel de Mira e Abdias Nascimento o de Aristeu, a “serpente” armada de faca que tira a vida de Eurídice. Para ela, a negra mais linda, o virtuoso e contagiante sambista Orfeu dedicou toda a sua lírica. “Fez algum samba?”, pergunta Eurídice. “Fiz dois.” “Fez algum para mim, Orfeu?” “Tudo o que sai do violão é teu, Mulher...” Orfeu cantou para Eurídice Se todos fossem iguais a você. Desse modo, Vinícius traduziu em música o que já tinha declarado em texto: “esta peça é uma homenagem ao negro brasileiro, a quem, de resto, a devo; e não apenas pela sua contribuição tão orgânica à cultura deste país – melhor, pelo seu apaixonante estilo de viver que me permitiu, sem esforço, num simples relampejar do pensamento, sentir no divino músico da Trácia a natureza de um dos divinos músicos do morro carioca.” ORFEU Foi você que falou, violão? ou foi O nome dela no meu coração Que eu disse sem saber?... EURÍDICE Foi não, foi não! Foi o amor mesmo que chegou, Orfeu! Sou eu, neguinho...
Abdias Nascimento, como Aristeu, e Dirce Paiva, como Eurídice, no palco do Theatro Municipal
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Peça que já nasceu clássica, Orfeu da Conceição inspirou outras obras. Em 1959, o diretor francês Marcel Camus baseou-se nela para produzir o premiado filme ítalo-franco-brasileiro Orfeu Negro. Em 1999, foi a vez do diretor Cacá Diegues fazer o seu Orfeu, com Toni Garrido. Porém, a nova montagem teatral só aconteceu em 2010, quando o diretor Aderbal Freire-Filho estreou Orfeu no palco do Canecão, no Rio de Janeiro, mais de 50 anos depois da histórica apresentação no Municipal.
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O programa de Orfeu da Conceição, na estreia, em setembro de 1956.
Haroldo Costa, o primeiro Orfeu
Léa Garcia, que fez o papel de Mira, e Abdias do Nascimento
Abdias Nascimento e Dirce Paiva
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SBAT inaugura
oficinas de dramaturgia Olga de Mello
Revitalização do debate em torno da criação dramatúrgica, reunião de novos talentos e troca de experiências são alguns dos objetivos das oficinas oferecidas gratuitamente pela SBAT
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Estes são alguns dos objetivos que a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (Sbat) pretende atingir com as oficinas de dramaturgia iniciadas em sua sede, no Centro, em outubro – e que tiveram procura duas vezes maior do que o número de vagas oferecidas. “A Sbat está retomando um papel histórico, tradicional, de ser não apenas um fórum de discussão sobre o teatro, mas também de aglutinadora da atividade autoral”, diz a produtora Vera Novello, coordenadora do projeto Laboratório de Dramaturgia, que tem patrocínio do Ministério da Cultura (Minc). “A Sbat tem sua imagem vinculada apenas ao autor teatral, quando hoje existem outros espaços para a dramaturgia além do palco. A Sbat quer ser a casa de todos os autores que fazem dramaturgia, trazendo à discussão essas criações para televisão, internet, publicidade. As encenações tomam novos veículos. Existem novelas escritas especialmente
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para telefone celular. E há uma geração de escritores, nem sempre com uma formação específica em teatro, interessados em trocar experiências e ter um aprendizado técnico. Muita gente que escreve atua em outras áreas profissionais. Um dos inscritos nos cursos é sanitarista”, conta Vera. A veterana escritora Fátima Valença e a jovem autora Renata Mizrahi foram convidadas para estar à frente das duas primeiras turmas do laboratório. A escolha dos professores pretende ser bastante diversificada e que cada autor, dentro de sua experiência, estabeleça o campo que desenvolverá com a turma, explica Vera Novello. Com mais de 30 peças encenadas, entre elas os musicais Dolores e Eu sou o samba, Fátima Valença começou a escrever para teatro quando ainda se dividia entre a carreira de atriz e o jornalismo, na década de 1980. “Um dia me disseram para escrever um esquete para
Renata Mizrahi: “Existe muito curso de roteiro cinematográfico, mas poucos tratam da arquitetura teatral”
Fátima Valença quer transmitir aos alunos a ideia de que a cada novo roteiro é preciso encarar uma jornada árdua
quero transmitir aos alunos, embora eu seja uma aprendiz permanente, que a cada novo roteiro, a cada nova peça, encaro uma jornada árdua, longa. Passo a vida perseguindo essa tal de dramaturgia, buscando manter a plateia atenta. Escrever é sempre uma aventura, que exige horas de garimpo de um fio condutor de trama para depois lapidar, aprimorar o texto. Provocar comoção, raciocinar em cima da construção de cenas não é apenas uma aventura fortuita. Escrever é reescrever, tem 95% de trabalho para 5% de inspiração”, diz Fátima. Formada em Artes Cênicas pela Uni-Rio, Renata Mizrahi lamenta o pequeno número de oficinas de
FOTOS: RENATO DE AGUIAR
uma peça em que eu atuava. Não parei mais”, lembra Fátima, que se considera uma “operária ou uma artesã, jamais mestra” da dramaturgia. A escolha do título da oficina – “Para amantes da palavra cênica” – demonstra a relação de Fátima com a criação teatral. Cada uma das duas turmas vai criar uma peça coletiva, desenvolvendo argumento, enredo, personagens e diálogos sob a orientação de Fátima. “Nunca estudei para fazer teatro, mas compreendo que haja necessidade de algum conhecimento técnico. Como outros autores, eu fiz meu aprendizado sozinha, autodidata, seguindo indicações de alguns escritores. É esta prática que eu
dramaturgia. “Existe muito curso de roteiro cinematográfico, mas poucos tratam da arquitetura teatral”, observa a escritora, integrante da Cia. de Teatro de Nós e uma das fundadoras do blog “Drama Diário”, que propõe a criação de esquetes diferentes, todas as semanas, sobre um tema. Ao lado de outros nove autores cariocas, ela lançou o livro Cena impressa, que apresenta uma cena e o processo de criação de cada autor. Na oficina “A criação de cenas curtas”, pretende levar a turma a apresentar diversos esquetes, como já fez em outro curso que ministrou na Casa da Gávea. “Aprendi a escrever fazendo, pois me formei em interpretação. Acho muito importante a iniciativa da Sbat, pois a linguagem do teatro é única, sem uma fórmula para o roteiro, como existe no cinema. Mais do que uma aula, existe uma troca com os alunos, que são de teatro ou de outras áreas de formação, como Jornalismo e Letras. Eles querem escrever e sentem também falta deste conteúdo técnico que a universidade não oferece”, diz Renata. De início, os cursos se estenderão por até um trimestre, com um encontro de duas horas semanais. “Pode haver oficinas maiores, que cheguem a até um semestre inteiro”, informa Vera Novello.
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Divina na cabeça Júlio Calmon
No dia 6 de março, domingo de Carnaval, quando a Unidos de Vila Isabel despontar na Avenida Marquês de Sapucaí, todos os seus 3.800 componentes levarão um velho conhecido acessório sobre as cabeças: perucas, de todos os tamanhos e tipos, colorindo a festa pagã. Com o enredo “Mitos e histórias entrelaçadas sobre os fios de cabelo”, a agremiação conta com uma consultoria especial para produzir tantos adereços. Amiga da carnavalesca Rosa Magalhães há quase três décadas, a argentina Divina Lujan Soares é a responsável por coordenar a gigantesca produção. Com um currículo extenso numa área importantíssima para o teatro lírico, a chefe de peruqueria do Theatro Municipal, seção que ajudou a criar no fim dos anos 1970, terá um de seus maiores desafios. Embora viva no Rio de Janeiro há quase 40 anos, Divina não perdeu o sotaque castelhano. Quando fala com naturalidade sobre o Carnaval – e já se vão 25 anos desde sua estreia na avenida –, ela ainda deixa escorregar um trejeito de nossos hermanos. Desta vez, no entanto, sua tarefa é mais importante do que já foi em outros desfiles. “Antes eu fazia 1.500 peças, no máximo, isso somando o volume de várias escolas. Agora, é uma inteira só de perucas”, conta Divina. Sua relação com o mundo dos espetáculos começou ao ingressar no Instituto do tradicional Teatro Colón, em Buenos Aires, no início dos anos 1970, quando ainda era cabeleireira. Lá, estudou História da Arte e vários temas dos bastidores – entre eles, claro, peruqueria. Conheceu ali sua profissão e o passaporte para aportar em terras brasileiras. Em 1978, Hugo de Ana, então diretor artístico do Theatro Municipal, convidou 15 profissionais argentinos a trabalhar no Rio de Janeiro e montar uma central técnica de produção. Naquela época, tentava-se recuperar aquele tradicional espaço de cultura, que vinha sendo muito mais utilizado para bailes de carnaval e eventos afins. Adolpho Bloch era presidente da Fundação dos Teatros do Rio de Janeiro (Funterj) e foi quem iniciou a reformulação.
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Divina Lujan Soares, do teatro para o Sambódromo
“O Municipal tinha acabado de passar por uma reforma. Nossa proposta era permanecer por seis meses, apenas para criar uma escola de teatro. Se eu ficasse na Argentina, seria mais uma a trabalhar. Aqui era um desafio. Criei a peruqueria do Municipal e fiz minha vida no Brasil”, lembra Divina, que já chegou a produzir mais de 500 perucas para um só espetáculo. No início, a maior dificuldade era encontrar materiais de qualidade para fazer perucas. Aos poucos, com muita troca de informações inclusive com produções estrangeiras, Divina foi preenchendo o vazio de conhecimento sobre peruqueria e conseguiu encontrar fornecedores. Hoje, ela diz encontrar matéria-prima muito boa para fazer a cabeça dos artistas: “Estou sempre estudando. Quando não estou analisando material para compor uma determinada peruca, estou pesquisando indumentárias de época e possibilidades de novas peças. Para o teatro, é preciso certa leveza. Além disso, não podemos criar constrangimento. Muitos homens não gostam de usar elementos. Então, é preciso convencê-los com jeito”, explica Divina. Conhecimento em história é fundamental para o desenvolvimento de seu trabalho. Há dois anos, por exemplo, quando a escola de samba Imperatriz Leopoldinense apresentou na avenida o enredo sobre os 200 anos da vinda da família real portuguesa ao Brasil, ela ajudou na caracterização de alas importantes da agremiação, como a comissão de frente. Então, quando passavam sambistas vestidos de Luiz XV, Maria Antonieta ou Maria Leopoldina, lá estava, no topo, o trabalho de Divina. Além do teatro e de suas passagens carnavalescas, Divina também produziu para minisséries da Rede Globo e para o cinema. São dela, por exemplo, todos os penteados de época do filme Carlota Joaquina, de Carla Camurati. Entre todos os trabalhos, ela não pensa duas vezes ao revelar qual lhe dá maior prazer: “O Municipal é a minha casa. É lá que eu me sinto bem e tenho à disposição todos os materiais de que necessito. Fazer cabelos para um solista é diferente. É preciso muito cuidado com o tamanho e o ajuste, para o espetáculo ficar perfeito”, diz Divina. E foi no Municipal que ela teve oportunidade de trabalhar com grandes mestres. Lembra muito bem de quando o cenógrafo e diretor italiano Franco Zeffirelli se derreteu em elogios à equipe técnica do teatro na montagem de La Traviata, no início dos anos 1980. “Ficamos semanas produzindo o espetáculo. E ele nos ensinou muita coisa. Foi uma troca de experiências interessante”, lembra a hermana Divina, que também não esconde o orgulho de ter participado de outras montagens, como Turandot e Aida. Esta especialista na técnica de fazer perucas já formou uma geração de aprendizes. Muitos ex-pupilos de Divina espalharam-se por outros ramos do espetáculo. “Tem muita gente trabalhando na TV Globo, outros estão produzindo mais perucas para o Carnaval. Os meus assistentes acabam saindo para outros lugares quando têm melhores perspectivas. Tenho orgulho disso”, diz Divina Lujan Soares, uma argentina que gosta de cabelo, teatro e carnaval.
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