Revista de Teatro SBAT n.523

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Desde 1917 em defesa do direito autoral. Reconhecida como de Utilidade Pública Federal pelo Decreto nº 4.092 de 4 de agosto de 1920.

Av. Almirante Barroso, 97 / 3º andar – Castelo Cep: 20031-005 – Rio de Janeiro/RJ – Brasil Tels: +(21) 2240.7231 / 2544.6966 Fax: +(21) 2240.7431 www.sbat.com.br

sumário 2

PRÓLOGO Aderbal Freire-Filho

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Dissonância e (dês)integração Festivais de teatro por todo o Brasil rompem as fronteiras da linguagem e visão de mundo

CONSELHO DIRETOR

Aderbal Freire-Filho Alcione Araújo Millôr Fernandes Ziraldo Alves Pinto

Macksen Luiz

14 ARTIGO Arte, para quê? Alcione Araújo revistadeteatro@sbat.com.br bambinacult@gmail.com Órgão Oficial da SBAT – Sociedade Brasileira de Autores, inscrito na Ulrich’s International Periodicals Directory sob o registro ISSN 0102-7336.

18 DIREITO AUTORAL Quanto vale ou é por quilo? Na briga pelo direito autoral, em jogo, o capital Maria Luiza Franco

CONSELHO EDITORIAL

Aderbal Freire-Filho Ana Velloso Regina Zappa Vera Novello SUPER VISÃO

20 ARTIGO O novo dramaturgo brasileiro: em busca de uma técnica? Diego Molina

Três É Editoração e Design Ltda. DIREÇÃO EXECUTIVO FINANCEIRA

Bia Gondomar EDIÇÃO

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Regina Zappa

Daniel Schenker

COLABORADORES

Alcione Araújo Daniel Schenker Diego Molina Julio Calmon Lula Macksen Luiz Maria Luiza Franco Olga de Mello Renato de Aguiar

O inesgotável mundo dos bonecos

32 ENTREVISTA Tempo de celebração na vida e na arte Ítalo Rossi, um dos maiores atores brasileiros, chega aos 80 anos com uma carreira de mestre e os mesmos 54 quilos de sempre Olga de Mello

PESQUISA ICONOGRÁFICA

Maria Luiza Franco REVISÃO

Maria Helena Pereira

38 OSSOS DO OFÍCIO De olho nos festivais de teatro Léo Gama, produtor da Globo, garimpa atores em todas as regiões do país

PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO

Mais Programação Visual www.maisprogramacao.com.br

Julio Calmon

CAPA

Montagem com foto de Fernanda Chemale, do espetáculo Fausto, no Porto Alegre em Cena CTP E IMPRESSÃO

WalPrint Gráfica e Editora

40 ENSAIO Ítalo, Yara e Rubens: a vida nos palcos Daniel Schenker

TIRAGEM

5.000 FOTOS DE ACER VO CEDIDAS PELA

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Nova aventura no mundo dos clássicos Cia. Limite 151 planeja espetáculo a partir de Thérèse Raquin, de Émile Zola Daniel Schenker

Recursos obtidos através do Convênio nº 732974/2010, celebrado entre o Ministério da Cultura e a Bambina Ação Cultural Associados Esta edição traz um encarte com entrevista com Maria de Fátima Sousa e Silva

52 EPÍLOGO


P R Ó L O G O

Vou dizer poucas e boas. Poucas mesmo. Boas mesmo Está na hora de voltar para casa. Junto com o primeiro número da retomada desta revista começou também uma grande reforma na casa, a Sociedade Brasileira de Autores (Teatrais). Estamos tentando fazer essa reforma desde que aconteceu a renúncia da última diretoria eleita. Desde aquele momento, quatro sócios – Millor, Ziraldo, Alcione Araujo e eu – aceitamos integrar um conselho salvador, sem remuneração. E entendemos de saída que para recuperar a SBAT era preciso assumir sua vocação de centro cultural. Desenvolvendo-se por essa via, ela voltaria a crescer progressivamente como sociedade arrecadadora. Tentamos parcerias, caminhamos por várias estradas, demos voltas, nos perdemos – mas insistimos sempre. E em 2010 a SBAT-Cultural decolou. Primeiro, a Revista. Depois os cursos e seminários de dramaturgia. Em breve, um concurso nacional e muito mais. Paralelamente, uma renomada empresa de consultoria e gestão, a Láboris, desenvolveu um plano de reorganização da sociedade, em três etapas: levantamento, planejamento e implantação. Estamos na última etapa. Um vento saudável percorre as salas e corredores da velha sede. Juntam-se funcionários antigos e heróicos, que conhecem a história da sociedade, seus mecanismos, ao sangue novo daqueles que chegam agora. E todos exploram novas possibilidades operacionais. Alianças com sociedades estrangeiras começam a ser revigoradas. A presteza do atendimento é retomada. Em breve um novo site dará um atendimento completo ao associado. Outra vez, o autor brasileiro poderá respirar junto com sua história, sentir-se parte de uma tradição que vem de muito longe, “conviver” na mesma casa com Oduvaldo Vianna e Vianinha, com Dias Gomes, Plínio Marcos, com os pioneiros, Viriato Correa, Gastão Tojeiro, Armando Gonzaga, Joracy Camargo, Magalhães Júnior na casa idealizada por Chiquinha Gonzaga. Já está na hora de voltar. Os que chegarem agora se somarão a nós já nesse momento bonito em que as paredes são reerguidas, o fogo é novamente aceso. Os que preferirem esperar ainda um pouco mais, serão bem-vindos quando vierem. Nós sabemos que todos virão, a eterna sociedade brasileira de autores é única e é a casa de todos nós. Revelando a riqueza do teatro brasileiro, a Revista da SBAT dá uma mostra da capacidade de envolvimento da SBAT-Cultural com esse teatro. E o time está cada vez melhor. Editada pela campeã


Regina Zappa e já tendo em seu quadro de colaboradores craques como Daniel Schenker, Simone Melamed, Maria Luiza Franco, Olga de Mello, entre outros, a revista conta desde o número passado com Macksen Luiz, crítico de teatro que se formou ao lado do saudoso Yan Michalski, no Caderno B, marco da imprensa cultural brasileira. Macksen Luiz tem dedicado sua vida ao teatro, como crítico, repórter, redator, ensaísta e são poucos os que acompanharam tanto o moderno teatro brasileiro como ele. Procurando combinar análises aprofundadas com as exigências da crítica jornalística, Macksen criou um estilo próprio, indiscutivelmente sério e comprometido com a defesa do teatro vivo. Na Revista da SBAT, assinou no número passado um texto sobre o hoje esquecido dramaturgo Renato Vianna, que nos anos 1930 e 1940 batalhou pela modernização da nossa cena. Neste número faz uma reportagem ampla sobre os festivais de teatro que se realizam no Brasil. Ninguém como ele, que tem participado desses festivais, e sobre eles lança seu olhar experimentado, podia nos dar um panorama melhor. Uma das marcas da histórica revista da SBAT é a publicação do texto completo de uma peça teatral em cada número. Nesta retomada, esta prática continua, isto é, continuamos difundindo nossa dramaturgia. Optamos por fazer a publicação em forma de encarte, o que pode trazer muitas vantagens, uma delas uma futura tiragem suplementar dessas peças para distribuição em escolas, por exemplo. Com esta publicação de peças consolidada, decidimos publicar também textos e materiais teóricos, uma vez que a difusão da produção teórica sobre teatro, em forma de ensaios, entrevistas, estudos, reflexões etc. carece de espaços onde possa ser feita. E a partir deste número, vamos publicar encartes de textos que contribuam para a discussão de ideias no campo do teatro, alternadamente com os encartes de peças completas. A distribuição da revista da SBAT ainda não conseguiu atingir a qualidade que esperamos. Como a tiragem básica da revista não pode ser vendida, queremos encontrar os canais de distribuição que façam a revista chegar aos interessados nela. Entra aí uma equação: custos, gratuidade, distâncias, localização etc., que estamos tentando resolver. Se você tem ideias sobre isso, mande um e-mail para revista@sbat.com.br. A SBAT é de todos os artistas de teatro do Brasil. Aderbal Freire-Filho


T E A T R O

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C I A

DISSONÂN (DÊS) Apresentação do espetáculo Fausto, de Goethe, no Porto Alegre em Cena

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CIA E

INTEGRAÇÃO Festivais de teatro por todo o Brasil rompem as fronteiras da linguagem e visão de mundo

FERNANDA CHEMALE

Macksen Luiz

Os festivais de teatro ocupam, praticamente, todo o território

de espetáculos tenha a individualização necessária para

brasileiro. Regionais, nacionais, internacionais, provocadores, em áreas em que a atividade cênica

fazê-los únicos nacionalmente e marcantes em suas regiões. Muitos atrelados a Secretarias

é mais ativa, com maior ou menor identidade própria, reunindo curadorias em sintonia com

de Cultura, alguns com patrocínio de empresas públicas e privadas, integrando editais que os

a criação reflexiva, refletindo dúvidas sobre as perspectivas da linguagem, as mostras dei-

incluem como categoria passível de concorrer anualmente à distribuição de recursos, têm pre-

xam de ser apenas exibição de montagens para conquistar, em paralelo à sua incontornável mul-

sença na cena brasileira desde os anos 1960. O mais longevo, o Filo (Fes-

tiplicação territorial, espaços de dissonâncias e (des)integração de meios expressivos.

tival Internacional de Londrina), se mantém, sem interrupções significativas, há 45 anos. Nas-

De janeiro a dezembro, o calendário deixa poucas datas disponíveis para que os festivais

cido como plataforma política, enfrentou o período da ditadura, resistência cultural que pos-

não se atropelem e que a grade

sibilitou a fundação do grupo

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PAULO BERTON

A falecida, de Nelson Rodrigues, na versão de Antunes Filho apresentado há dois ano no Festival de Teatro de São José do Rio Preto Calígula, na versão de Gabriel Villela, no Festival de Curitiba de 2009

Proteu, em torno do qual surgiram outros coletivos, como o Armazém. Fiel à sua origem, o Filo sustenta a vocação para uma cena de viés político, com o convite renovado a cada ano para que se apresentem tradicionais elencos da América Latina na cidade paranaense. Igualmente veterano, pelo menos em anos, o Festival de Teatro de São José do Rio Preto chega em 2011 à sua 42ª edição. Não poderia ter surgido de modo mais tradicional, pois os

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HENRIQUE ARAÚJO

primeiros tinham caráter competitivo e amador, e somente há


DIVULGAÇÃO

Comida alemã, presença chilena nas mostras Tempo, do Rio, e Fiac, de Salvador

10 anos adquiriu abrangência internacional e incorporou crescente captura de outras pulsões

diversificação de tendências e a pluralidade cultural. “Na última edição, o Fiac trouxe a Salvador

de teatralidade. O mais jovem, o Festival de Artes Cênicas da Bahia, com

a maioria de grupos da América do Sul, mas conectados com o mundo. Mais do que reflexos de

apenas três edições, ainda está em busca da sua impressão digital, mas desde a partida de-

realidades regionais, estão ligados à inquietude estética”. O Festival de Curitiba, que

monstra que não pretende ser somente reprodução regionalizada de outras mostras. Nehle

desde a sua primeira edição, em 1992, acrescentou ao formato tradicional a utilização do marke-

Franke, um de seus curadores, classifica de “inquietante” o caráter que imprime à programação.

ting cultural, foi pensado pelo trio de jovens empresários que o organizou como um “negócio”.

O que é plenamente constatável pela seleção, que privilegia a

A linha curatorial seguia paralela à ideia de “promoção” e de

“Na última edição, o Fiac trouxe a Salvador

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a maioria de grupos da América do Sul, mas conectados com o mundo” Nehle Franke

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P. VICTOR

divulgação da própria mostra como produto teatral. A conceituação temática para cada ano obedecia a generalidades, como “os encenadores”, “o espetáculo”, para abrigar os nomes mais Bob Wilson apresentou a sua versão de Quartett no Poa em Cena há três anos, com a francesa Isabelle Huppert

sonantes da década de 1990. Gerald Thomas, Antunes Filho, Moacyr Góes, Gabriel Villela, Eduardo Tolentino foram a Curitiba com suas produções, divulgando e consolidando a imagem do FTC. Com o acréscimo do Fringe, que reproduz a mostra paralela inspirada no Festival de Edimburgo (no primeiro ano foram sete espetáculos, e

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em 2010, 350), Curitiba ganhou mais musculação, ao menos numericamente. Leandro Knopholz, diretor geral, afirma que “o festival lança tendências do que virá no segmento de cultura e entretenimento. Somos o prêtà-porter da cultura”. Curitiba parece estar sedimentando sua vocação inicial e apesar de ter excluído espetáculos internacionais a partir de 2005, quando apresentou o radicalismo de François Tanguy e seu Thêatre du Radeau, procura um ponto de inflexão para essa vertente. Knopholz pretende


DIVULGAÇÃO

Os Reis do Iê Iê Iê, de Gerald Thomas, no Festival de Curitiba de 1997

“O festival lança tendências do que virá no segmento de cultura e entretenimento. Somos o prêt-àporter da cultura” Leandro Knopholz

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DIVULGAÇÃO

“buscar o inusitado” e inserir a capital paranaense no circuito de festivais internacionais, além de promover um “grande show de música e competição de fogos de artifício” ao longo dos próximos festivais. Porto Alegre em Cena está integrado ao circuito internacional dos festivais pela sofisticação com que seleciona a participação estrangeira nos seus 18 anos de existência. A cidade já se habituou a ter à disposição cartela refinada de opções que variam de Peter Brook a Pina Bausch, de Ariane Monouchkine

ELENIZE DEZGENISKI

Juliana Carneiro da Cunha e Shasha em Les éphémères pelo Thêatre du Soleil, apresentado no Porto Alegre em Cena de 2007

Vida, síntese cênica da obra de Paulo Leminski: presença impactante do último Festival de Curitiba

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a Einuntas Nekrosius, de Bob Wilson a Patrice Chereau, do

porânea de Brasília, Festival de Recife e o Janeiro de Grandes

Volksbühne Theater ao La Fura dels Baus, de Isabelle Hupert a Norma Aleandro. Luciano Ala-

Espetáculos, também de Recife, são vitrines para a produção local, que se enquadra com o

barse, coordenador do Poa em Cena, pela proximidade com os países do Mercosul, expande a

que vem de fora, não apenas comparativamente, mas como

FOTOS: PAULA KOSSATZ

ação internacional ao teatro da Argentina, do Uruguai e, mais recentemente, do Chile, que complementa com coerência e critério espectro cênico diversificado. Sem voltar as costas para o mundo, tanto que trazem espetáculos de variadas latitudes, mostras como o Cena Contem-

Aqueles dois, baseado em texto de Caio Fernando Abreu, levou grupo mineiro a participar de várias mostras por todo o país

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FERNANDA CHEMALE

diálogo entre formas e processos de trabalho. O curador Guilherme Reis diz que nos seus 20 anos do Cena ampliou-se a relação com o público da cidade e ganhou-se maior intimidade com “outras linguagens artísticas, em especial música e vídeo”. Na vanguarda das mudanças e na refração das possibilidades que a cena propõe atual-

Fausto, no Porto Alegre em Cena

mente, o Festival de São José do Rio Preto e o caçula Tempo, do Rio, levam mais adiante as questões em torno das linguagens e até mesmo do formato diante da explosão de conceitos

ARQUIVO - FESTIVAL DE CURITIBA

Carmem: A Pequena notável sob a ótica de Antunes Filho no Festival de Curitiba de 2005

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e das variantes da recepção. São José, que vinha experimen-

de meios. Para Bia, o festival se justifica com “uma curadoria que

tando trilhas alternativas para atribuir significados ao esvaziamento da convenção, tem arra-

ofereça o espaço para a criação e a confrontação de visões, apresentando obras em que os

nhado incógnitas teatrais, em busca de captar a “impermanência” e os impulsos laborato-

artistas partilham suas visões pessoais do mundo e buscam ampliar novas percepções des-

rias do ato de provocar em cena. Em 2010, partiu para nova aposta: o teatro pós-dramático.

se mesmo mundo. Um mundo cosmopolita, complexo, onde conceitos de fronteiras, nação,

Bia Junqueira, um dos três curadores do Tempo, amplia significativamente o conceito de

cultura, real, verdade, entre outros, estão em plena mutação. Obras híbridas, simples, docu-

festival para conduzi-lo ao novo plano de realização e de reações ao confronto com a pluralidade

mentais, ficcionais, próximas, globais, seja pelo tempo real como pelo virtual”.

THIAGO SABINO

Obscena Senhora D., baseada em Hilda Hilst, apresentada em 2009 na mostra Cena Contemporânea de Brasília por grupo local

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Arte, para Alcione Araújo

“A arte é indispensável, se ao menos soubéssemos para quê!” – disse Jean Cocteau, num fecundo paradoxo que impõe um silêncio desapontado aos que conhecem a emoção da fruição estética e não a sabem explicar ou se recusam a explicar por meios inadequados ou insuficientes como é, às vezes, tratar com palavras experiências que escapam às palavras. Do prosaico prazer de cantar no banheiro à audição da mais elaborada dodecafonia de Schönberg, da apreciação lúdica do desenho infantil à emoção de um quadro de Kandinsky, do apaixonado poema de adolescente ao verso de Ezra Pound, a fruição, singela ou complexa, é, mais que singular e pessoal, intensamente subjetiva. É a subjetividade desta percepção que a torna plural e dificulta, se não impede, dizer com objetividade e clareza para que, afinal, serve a arte. Só pelo mistério da magia pode-se intuir o impulso que levou o homem da caverna a inventar tintas e pincéis para desenhar nas pedras de Altamira. Antes de iniciar uma obra, Michelangelo vagava pelas montanhas de Carrara certo de que ela dormia no mármore, à espera do entalhe. Ideia que Picasso reciclou como blague: indagado como conseguia esculpir um cavalo num bloco de pedra, disse que bastava extrair o que não era cavalo. A visão reducionista da arte que, em vez de percebê-la como obra de criação, quer vê-la como reprodução da realidade, teve didática resposta de Matisse. Por um dos seus quadros, foi questionado: “Não existe mulher de cabelo verde”. E ele: “Mas isso não é uma mulher, é um quadro.” A criação transita pelos insondáveis

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labirintos do imaginário, e as obras, sujeitas aos códigos simbólicos, se oferecem a qualquer percepção e interpretação. Preservando o seu mistério, transita com desenvoltura pelos tempos. A máquina a vapor, do século XIX, é hoje uma relíquia da história da tecnologia, sem novidades nem segredos; um romance de Dostoievski da mesma época permanece com a inteireza da sua misteriosa emoção, que pode ser fruída e usufruída por qualquer jovem. Ler um livro é um processo complexo. Uma palavra liga-se à anterior, numa linear acumulação que vai à frase, ao parágrafo e ao capítulo. O texto do autor é apenas um estímulo que aciona a imaginação, a experiência existencial e o conhecimento do leitor. A percepção será, afinal, a síntese das sugestões do escritor e as vivências do leitor, que é, sempre, coautor. A história lida inclui, necessariamente, sua contribuição. Livros que não agradaram na adolescência – por falta de vivências – são redescobertos na maturidade – quando a vida acumulou experiência e adensou a percepção. Ou o contrário: a história que eletrizou aos 20 anos, fica banal aos 40. Se os livros não mudam a história, a vida muda a percepção – do que se lê ou vê. Sempre a subjetividade. Avaliações estéticas não se formulam apenas pela razão. Originam-se no subconsciente com contribuições neurofisiológicas. Ao emergir, compõem-se com os consensos sócio-histórico-culturais, que não excluem o circunstancial e a moda – e nos induzem sempre ao conhecido. Em arte, reagimos, em princípio, contra o novo, o que nos leva para o reconhecido e arrasta a arte para a homogeneidade. A atribuição


quê? de valor permanente e a canonização de uma obra advêm de complexas interações alheias à obra: relações de poder, ideológicas, pedagógicas, políticas e comerciais. Porém, o tempo – agente oculto do processo – torna a valoração da obra passível de correções, revisões e reversões. Para o ajuste histórico, a discordância, por mais excêntrica, bizarra ou escandalosa, deve ser acolhida. Nada há de errado com quem afirma, sinceramente, que Beethoven foi incapaz de compor uma melodia. E sem qualquer demonstração – embora a cultura eduque a sensibilidade, a fruição é subjetiva. Daí a os laços entre fé religiosa e crença estética – suas origens repousam na magia da caverna e no berço comum da religião e da cultura –, ambas surgidas nas profundezas desconhecidas do espírito. E espero ter atendido os inúmeros leitores – artistas, professores – que há tempos pedem opinião sobre a arte. A civilização que glorifica a razão produtiva e a lógica utilitária não só impõe objetivos prefixados como usa sua régua para avaliar custo/benefício do que há entre céu e terra. Desconfia do mistério humano e quer descobrir sua utilidade talvez para torná-lo produtivo. Acha o amor dispensável se a utilidade vem da reprodução. Para afirmar a razão, anuncia a inutilidade do que escapa à razão. Porém, amor, arte, subjetividade, metafísica e transcendência são indispensáveis; não sabemos por que existem, nem para o que servem. São parte do insondável mistério que constitui o horror e a alegria de ser humano. O poeta disse que amar se aprende amando. Penso que viver também se aprende vivendo e fruir a arte se aprende fruindo.

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D I R E I T O

A U T O R A L

QUANTO VALE OU É POR QUILO? Na briga pelo direito autoral, em jogo, o capital Maria Luiza Franco

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A política é a arte de administrar as diferenças. E não é sem recorrência que o manejo dessa nobre atividade se depara com circunstâncias que demandam habilidade para situar os interesses de cada classe, grupo ou indivíduo, com a realidade que se apresenta. No caso, a reforma da Lei do Direito Autoral. Com o uso da Internet, nossa democracia representativa abriu espaço para o exercício da democracia direta e durante meses do ano de 2010 realizou consulta pública para ouvir a sociedade sobre o que deve ou não ser aprimorado, modificado ou suprimido

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no texto de revisão da Lei do Direito Autoral encaminhado pelo governo com o objetivo de fazer da mudança uma política de Estado. Foram mais de oito mil contribuições depositadas no site do Ministério da Cultura, instituição que fomentou o processo. O passo a seguir seria enviar o projeto ao Congresso Nacional, para ser votado já com todas aquelas vontades organizadas. É essa quantidade de participação, empenho e esforços que a ministra Ana de Hollanda tem agora sob sua administração. Um patrimônio político importante, sem dúvida.


Na bica de ser encaminhado ao Congresso, a ministra reteve o movimento. Pediu à Casa Civil que devolvesse o documento ao seu gabinete. Isso causou apreensão em alguns segmentos. Ainda é incerto o rumo da história, mas considera-se que a nova titular da pasta da Cultura queira conhecer melhor o projeto deixado pela gestão anterior. A revisão da Lei do Direito Autoral toca muitas frentes e implica uma não menor quantidade de atores sociais. Desde o próprio criador da obra, passando pelo pessoal organizado no movimento da chamada cultura digital,

até o herdeiro a quem cabe responder pelo espólio do artista. Na superfície discute-se a função social da propriedade intelectual e o equilíbrio no uso da produção individual que garanta o acesso coletivo, amplo e democrático, à informação e ao conhecimento, e ao mesmo tempo preserve a liberdade do autor sobre o que fazer com o seu trabalho. Mas na base, no núcleo duro, o problema não foge à questão crucial que perpassa as sociedades desde os fins da Idade Média: o capital. Dizendo de modo mais específico, a remuneração e as alternativas de remuneração, nesse caso quando se trata das mídias digitais que chegaram desorganizando o sistema e dando tiros no próprio pé do capitalismo. Quem paga quanto e o quê a quem? Nessa perspectiva, os agentes em disputa querem estabelecer o limite do direito de cada um. Só que agora o enfrentamento ético se desenrola no espaço da democracia plural e polifônica em que a margem para a exclusão é quase nenhuma e causa muito barulho quando provocada. E, desta vez, isso serve para todos.

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O novo dramaturgo brasileiro: em busca de uma técnica? MONTAGEM SOBRE FOTO DO BANCO DE IMAGENS © PHOTL.COM – STUDIO CL ART

Diego Molina

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Com o declínio do teatro ligeiro e musicado na década de 1930, o Brasil perdeu talvez sua maior referência de modelo dramatúrgico. Depois disso, ao mesmo tempo em que tentávamos descobrir uma prática teatral verdadeiramente nacional, também o autor procurava entender seu lugar e seu ofício. Portanto, falar da técnica do dramaturgo brasileiro é um problema antigo e tão complicado quanto falar da formação dos nossos atores, diretores e demais profissionais das artes cênicas. Não existe aqui, hoje, uma tradição dramatúrgica, nem um mercado de referência que indique um modelo para o autor contemporâneo exercer uma técnica. Não no teatro. Diferentemente da televisão e do cinema, por exemplo,


nos quais, por condições do mercado, percebemos carpintarias específicas para a criação de suas obras. A maior prova disso são os diversos manuais e livros – nacionais – sobre o assunto, e a quase inexistência de escritos sobre processos de dramaturgia. Pensar uma formação, consequentemente, torna-se algo altamente subjetivo. E, sem uma formação ou modelos claros, é necessária a técnica? Parece-me que, com frequência, nós dramaturgos, especialmente os surgidos ao longo da década de 2000, temos feito essa pergunta. E a resposta que reflete em nossas obras é clara: não. A prática teatral atual no Brasil é tão vasta, em termos de mercado, que o aprendizado de uma técnica tem se mostrado absolutamente dispensável. Seria a comédia nosso grande referencial mercadológico? Mas o que é escrever uma comédia no Brasil? Que referências utilizamos? Elas chegam a constituir um conjunto reconhecível? Seria, então, o teatro-musical nosso referencial? Justo ele que, pelo menos neste momento, tem sido seduzido pelas remontagens de espetáculos internacionais? No entanto, logo nos damos conta de que a questão não se restringe a um problema de mercado. Basta pensarmos que, de alguns anos para cá, com o crescimento das leis de incentivo e patrocínio, a bilheteria de um espetáculo tem se mostrado irrelevante na relação de sustento financeiro do artista cênico. Portanto, com a indefinição de modelos no teatro brasileiro contemporâneo, a falta de técnica é exatamente um problema? Parece-me que, hoje, o desejo de aprendizado ou de aplicação de uma técnica tem se tornando estritamente uma opção. E falar do nosso processo de escrita acaba sendo, mais do que nunca, algo tão específico e idiossincrático quanto falar de nosso gosto por música, comida ou filmes preferidos. E se você tem dúvidas, é só perguntar para algum dramaturgo na faixa dos 30 anos: qual exatamente é seu processo de escrita? Diego Molina é dramaturgo, roteirista, diretor, ator e professor de teatro. Dá aulas na SBAT dentro do Projeto de Dramaturgia

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SIMONE RODRIGUES

A Cia. PeQuod, dirigida por Miguel Vellinho, estreitou vínculo com o cinema em Filme noir

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O inesgotável mundo dos

bonecos Daniel Schenker

O terreno do teatro de bonecos é um campo vasto, completamente distante de formatos pré-concebidos. Não há como precisar os limites do seu alcance. Muitos grupos se afastaram de uma conexão direta com o universo infantojuvenil. Outros surpreenderam ao partir para a encenação de textos clássicos. A contracena entre atores e bonecos vem sendo repensada – e talvez uma das tendências diga respeito à ocultação cada vez menor da presença do ator/manipulador no palco. Fundado em 1987 por Luiz André Cherubini, Sandra Vargas e Miguel Vellinho, o Sobrevento enveredou por uma dramaturgia sólida, com destaque para Samuel Beckett, em Ato sem palavras 1 e Beckett (reunião de peças curtas do autor – Ato sem palavras 1, Ato sem palavras 2 e Improviso em

Ohio). Buscou também inspiração em obras de Alfred Jarry, Karen Blixen, Ferenc Molnár, Baldomero Lillo, Manuel Rojas, Jonathan Swift, Mandana Sadat, Ariosto e até mesmo em extratos de textos de Antônio Conselheiro. “Somos leitores ávidos e nossas encenações tomam diferentes pontos de partida. Muitas vezes, enamoramo-nos de textos que lemos e eles geram um espetáculo. Em outras, os textos terminam por cruzar com pontos de partida variados, em estágios avançados de montagem. Em outras ainda, a literatura nos serve só de base para a discussão de questões que levam à criação de textos próprios”, afirma Cherubini. Mas, segundo ele, os bonecos não se prestam à encenação de qualquer texto clássico. “Os bonecos oferecem possibilidades e

limitações. Não dá para falar da dúvida de Hamlet com um fantoche. Fantoches não têm dúvidas. Não dá para falar do vazio existencial de Fausto com uma marionete, mesmo sabendo que a peça nasceu dos muitos Faustos que o teatro de marionetes apresentava nas ruas da Europa. O poema de Goethe encenado por marionetes dirá algo diferente se encenado por atores. E o contrário acontece: se o namoro de dois cachorrinhos coloridos de pelúcia em um retábulo nos enternece, dois atores de 1,70m vestidos de pelúcia só servem para atrair compradores de carros para concessionárias e postos de gasolina, ou para tirar fotos com crianças assustadas, na busca de promover produtos comerciais”, acrescenta. Não significa que o Sobrevento se conforme com um suposto

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alcance limitado do teatro de bonecos. Ao contrário: transita por diferentes técnicas, como o bunraku e o fantoche de luva chinês, e exercita o contato entre o teatro e outras manifestações artísticas, como a ópera. “O Sobrevento é um grupo de pesquisa do Teatro de Animação e sente necessidade de buscar diferentes técnicas” – diz Cherubini. – “Um grande bonequeiro chinês, Yang Feng, uma vez nos perguntou como poderíamos nos aprofundar numa técnica se mudávamos a cada espetáculo. Tendo dedicado sua vida à manutenção de uma tradição familiar de cinco gerações, ele não conseguia entender que nosso teatro não busca aprofundar as possibilidades técnicas de uma forma teatral, mas valer-se de elementos dessas formas para criar diferentes espetáculos que

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cinema de terror e da literatura gótica. Como seria natural, preservou na PeQuod algumas características do Sobrevento, como o vínculo com outras artes – especialmente o cinema, a julgar também por Filme noir. “Tenho um olhar midiatizado que ajuda a imprimir no palco certas peculiaridades que a linguagem cinematográfica possui. Vejo que Marina, a sereiazinha foi mais um capítulo que se junta a Sangue bom e Filme noir, dois projetos anteriores que tinham como tônica a aproximação com o cinema. Em Marina, exploramos os campos de enquadramento com os planos gerais e o zoom, elementos não usados nos espetáculos anteriores”, sublinha Vellinho, ao citar Marina, uma adaptação do conto de Hans Christian Andersen,

Em Marina, a PeQuod exercitou a técnica de teatro aquático de bonecos do Vietnã

FERNANDA THURNER

SIMONE RODRIGUES

O cinema de terror e a literatura gótica nortearam a criação de Sangue bom

estabeleçam comunicações diversas com o público. Se os pupi sicilianos, bonecos grandes de varão, mostram a violência de batalhas, as marionetes de fio têm uma vocação lírica e uma delicadeza particulares; já os mamulengos, uma incrível capacidade de interação com o público, e daí por diante. Mas nossa pesquisa não tem um caráter antropológico, e sim teatral. Busca diferentes formas de comunicação com o público, para falar sobre hoje à gente de hoje.” A Cia. PeQuod de Teatro surgiu de uma dissidência do Sobrevento – mais exatamente no momento em que Miguel Vellinho desistiu de se mudar para São Paulo, na segunda metade dos anos 1990. Vellinho inaugurou o novo grupo com a montagem de Sangue bom, em 1999, com nítida influência do


SIMONE RODRIGUES

O elo entre o teatro de bonecos e a dramaturgia clássica despontou na encenação de Peer Gynt, de Ibsen

o mar. Ao mesmo tempo, esses materiais precisavam atender às exigências artísticas da manipulação. Houve uma preparação em relação às adversidades que a água poderia nos proporcionar”, relembra Vellinho. Criado, na década de 70, por Álvaro do Apocalypse, o Giramundo, de Minas Gerais, valorizou, em seus primeiros espetáculos, temas da cultura brasileira, buscou elo criativo com as artes plásticas e com a música erudita e enveredou pela produção de vídeos de animação. Como o Sobrevento, o grupo não se fixou, ao longo de todo esse tempo, em técnicas determinadas de manipulação. “Desde o início, a companhia revelou uma curiosidade permanente pela pesquisa de sistemas de manipulação. Não seria exagero dizer que foi a que mais contribuiu para o avanço de soluções mecânicas de construção e manipulação de bonecos no Brasil”, assinala Marcos Malafaia, que conduz a companhia ao lado de Beatriz Apocalypse e Ulisses Tavares. O grupo também desenvolveu uma articulação entre teoria e prática a partir da conexão com o ambiente acadêmico, a julgar pelo vínculo com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) ao longo dos anos 1980. “A relação entre o Giramundo e o meio acadêmico, ou do Giramundo com o contexto

SIMONE RODRIGUES

A sereiazinha, mesclada à técnica de teatro aquático de bonecos do Vietnã e às canções praieiras de Dorival Caymmi, apresentada nas versões infantil e adulta. Outro ponto de contato entre a PeQuod e o Sobrevento é o apego ao texto clássico. A montagem de Peer Gynt, de Ibsen, foi uma das mais bem-sucedidas da PeQuod. “Durante o processo de Peer Gynt, notei que os bonecos eram incapazes de dar conta das complexidades expostas por Ibsen. Por outro lado, os bonecos e outros recursos do Teatro de Animação eram perfeitos para concretizar várias ideias do autor. Percebi que não restava alternativa. Tínhamos que inserir os atores no drama, aproveitando a dubiedade do protagonista como mote para essa bifurcação – a de bonecos e atores no mesmo espaço. Essa chave despertou-nos outras possibilidades de pareamento, que exploramos nos espetáculos seguintes: A chegada de Lampião no inferno e Marina”, afirmou Vellinho, ao anunciar o projeto de montar A tempestade, de Shakespeare. Entretanto, a PeQuod desenvolve pesquisas próprias desvinculadas dos rumos do Sobrevento – e uma evidência disto está na investigação do teatro aquático que norteou Marina. “Descobri as marionetes aquáticas do Vietnã num festival nos anos 1990. Depois, veio o desafio imposto por um personagem de O velho da horta, que ficava com água pela cintura. Eu me perguntava: e se mergulhássemos este boneco? A partir daí, passei a colecionar situações até encontrar uma história que propiciasse essa experimentação. E estava em Andersen a chance de falar da materialidade da água em cena e todas as possibilidades poéticas que isso poderia gerar. Tivemos que pesquisar diversos materiais para criar bonecos resistentes à água, já que boa parte da ação se passa dentro de grandes aquários que emulam

A história do cangaço foi resgatada na montagem de A chegada de Lampião ao inferno

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A fábula do Chapeuzinho Vermelho foi apresentada em versão sem palavras

Encenado desde 1994, Em concerto se tornou um clássico do grupo Contadores de Estórias, de Paraty

cultural da Escola de Belas Artes, fez com que o grupo transformasse seus espetáculos em laboratórios para experiências teóricas ligadas à composição de linguagens do teatro de bonecos. Assim, a ‘importação’ de teorias da história das artes plásticas e referências sobre o trabalho e perspectivas de artistas e correntes se transformaram na marca metodológica do Giramundo”, explica Malafaia. Projetos não faltam na agenda do Giramundo. O próximo deverá ser Alice no país das maravilhas. “Completará a trilogia do mundo moderno composta pelas montagens anteriores de Pinocchio e Vinte mil léguas submarinas. A encenação pretende desenvolver a pesquisa sobre as relações entre técnicas tradicionais e novas tecnologias, como a motion capture e a modelagem 3D de bonecos, integrando teatro de sombra, vídeos, bonecos de madeira, balcão, luva, vara, gigantes e de manipulação tradicional, como os de marionetes a fio”, informa.

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Outro grupo fundado na década de 1970 que permanece em atividade é o Contadores de Estórias. Como seria de se prever, em se tratando de uma companhia tão longeva, o trabalho passou por fases diferentes. Nos anos 70 priorizou espetáculos ao ar livre, com bonecos gigantes; nos 80 apostou em montagens intimistas, sem palavras, com bonecos pequenos, destinadas ao público adulto; e nos 90 buscou integração com a dança e a instalação performática, como em Museu Rodin vivo, apresentado em 1995, nos jardins do Museu do Ipiranga. Sediados há cerca de 30 anos em Paraty, o Contadores de Estórias já esteve fincado em pontos diversos do mundo. Marcos e Rachel Ribas decidiram unir forças em Nova York, aproveitando a influência de grupos, como o Open Theater, egresso do Living Theater. Adotaram, porém, como foco temático inicial uma história brasileira de tradição oral considerando a técnica adquirida em Pirenópolis.

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Passaram por Hoorn, pequena cidade da Holanda, antes de desembarcar no Rio de Janeiro (onde mostraram Oooopa! num Teatro Ipanema “incendiado” pela febre de Hoje é dia de rock), no Norte de Minas Gerais e, finalmente, em Paraty. “Olhando para trás, dá para perceber que a linguagem é a mesma, quer o trabalho seja com bonecos gigantes ou minúsculos, bailarinos ou atores. O grupo busca o máximo de emoção com o mínimo de gestos. Tudo é feito na frente do espectador, às claras. E a música tem relevância determinante”, diz Rachel. Cabe esmiuçar algumas características separadamente, a começar pela interação entre bailarinos e bonecos. “Movimento sem palavras já é quase dança. Várias cenas do trabalho do grupo são coreografadas com pessoas antes de serem transportadas para os bonecos. Juntar bailarinos e bonecos num mesmo espetáculo cria um jogo de foco que está presente no nosso trabalho desde sempre. Em geral, os bonecos funcionam como vírgulas, como passagens de uma cena com bailarinos para outra. E algumas vezes contracenam, criando um interessante efeito de perto e de longe”, explica. O Contadores de Estórias assume o desafio de realizar espetáculos sem apoio da palavra. “Não perseguimos o teatro sem


FOTOS: DIVULGAÇÃO

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palavras, mas, quando acontece, festejamos. Costumo dizer que a palavra leva a uma percepção cerebral. Gostamos de nos comunicar diretamente com a emoção das pessoas”, salienta Rachel Ribas. Vale destacar ainda a escolha de diferentes pontos de partida para o processo de criação – como as esculturas de Rodin, que geraram o espetáculo Rodin, Rodin. “As esculturas e os desenhos de Rodin foram estudados a fundo. Toda a movimentação dos bailarinos e dos bonecos passava por essas imagens. E por trás dessa forma havia a história de dois casais”, conta Rachel. O próximo projeto do grupo é um trabalho a partir das gravuras japonesas Ukiyo-e. Sem perder de vista as suas especificidades, a Pia Fraus, de São Paulo, também apresenta plataformas comuns com outros grupos – em especial, o vínculo do Teatro de Animação com manifestações

artísticas variadas e com a dramaturgia de autores consagrados. “As artes plásticas estão na raiz de todo o Teatro de Animação, que é quase uma instalação. Nossa linguagem pressupõe o ator sempre em cena e com pouco uso da linguagem verbal. Então, sua movimentação deve ser repleta de significados – daí, a dança. Já com o circo, a aproximação se deu no início dos anos 1990, com a chegada ao grupo de Domingos Montagner”, explica Beto Andreetta. Ao longo de 26 anos, a Pia Fraus investigou textos de autores como Sófocles, Miguel de Cervantes, Federico García Lorca e Nelson Rodrigues. Segundo Andreetta, “na companhia convivem o desejo e a prática entre dramaturgias clássicas (em releituras livres) e uma produção textual própria, interna.” Outro dado marcante é a parceria com diretores (José Rubens Siqueira, Francisco Medeiros, Naum Alves de Souza, Hugo Possolo, Ione de Medeiros), muitos sem vinculação direta com o campo da animação. “Como a pretensão do grupo é interligar linguagens, sempre nos pareceu coerente trazer artistas conectados com linguagens diversas”, ressalta. Não se pode esquecer o elo entre a Pia Fraus e o grupo Plastician Volant no espetáculo Ópera Mundi, realizado no estádio do Maracanã, sob a direção de Carlos Padrisa, da La Fura Dels Baus. “Observamos de perto a técnica de infláveis gigantes. Este curto convívio refletiu em nossa linguagem, pois

A riqueza da fauna brasileira imperou nos esquetes que integram Bichos do Brasil, da Cia. Pia Fraus

O espetáculo de rua Gigantes do ar: inspiração no universo do circo-teatro

A encenação de Primeiras rosas foi diretamente inspirada no livro Primeiras histórias, de Guimarães Rosa

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Experimento: transapiens – performance de ficção científica que mescla teatro e artes plásticas

passamos a criar infláveis – hoje, uma característica importante do grupo”, sublinha Andreetta. Também fundada em São Paulo, há aproximadamente 20 anos, a Cia. Truks envereda por universo temático contundente. “Falamos da perda da identidade, da relevância dos sonhos e das aspirações individuais”, diz Henrique Secchin. Preocupada em firmar um repertório, a Truks vem conciliando espetáculos destinados ao público infantil e adulto. “Hoje, em nosso repertório de 11 espetáculos, três são destinados aos adultos. Começamos este ‘movimento’ em 2006 com Big Bang, no qual satirizamos a história da humanidade. Em 2008, fizemos Isto não é um cachimbo, dando vida às imagens do pintor surrealista René Magritte e, em 2009, História

A Cia. Teatro Lumbra utilizou um balão de nylon, inflado através de uma turbina compacta, em Bolha luminosa

de bar, construído a partir da linguagem do Teatro de Objetos, com os elementos do dia a dia substituindo as personagens da trama”, explica Secchin, que salienta a importância do Teatro de Objetos. “Certa vez, numa oficina que ministramos, solicitamos aos alunos fazerem uma cena de amor em que os protagonistas não fossem atores de carne e osso. Construíram, então, o romance impossível entre uma vela e um cubo de gelo”, rememora. Mesmo transitando por diferentes técnicas, a Cia. Truks realizou, no decorrer do tempo, uma apropriação do bunraku. “Nós nos inspiramos neste gênero teatral japonês, mais especificamente no boneco animado por três atores à vista do público. Mas creio que o mais interessante foi a construção de uma técnica própria que, hoje,

dizemos apenas ter sido influenciada pelo bunraku. Na arte japonesa, os animadores dos bonecos ficam totalmente neutros, ainda que visíveis ao público. Animam os bonecos sem expressar reação. Nós até tentamos isso durante dois anos. Mas um belo dia, um dos animadores, acidentalmente, cruzou o seu olhar com a Bruxinha, boneca de um dos nossos espetáculos, e... sorriu! Sorriu um sorriso sentido. A plateia reagiu com um sonoro e igualmente sentido ‘ohhhh!’. Gostamos daquele ‘momento verdade’, daquela troca de energia com o público. Passamos a interagir com os bonecos para, depois de algum tempo, escolher os momentos de interação do ator de carne e osso com a criatura animada. Para nós, esse jogo torna o boneco ainda mais vivo. Sabemos

Mantendo vínculo com o universo brasileiro, a Lumbra recontou a lenda do Sacy Pererê

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FOTOS: ARQUIVO CLUBE DA SOMBRA / TEATRO LUMBRA

As origens do povo gaúcho vieram à tona em A Salamanca do Jarau, montagem inspirada no conto homônimo de João Simões Lopes Neto


que o fluxo da vida está nos humanos, e não nos objetos inanimados. Então, quando um boneco interage com um ator em igualdade de condições, a vida invade o boneco de tal maneira que surge um momento mágico”, acrescenta Henrique Secchin. Se o bunraku serviu de base para a Truks, a Cia. Teatro Lumbra, de Porto Alegre, mergulhou no Teatro de Sombras, com ênfase no elo entre espetáculo e espectador. Alexandre Fávero explica: “Parto do princípio de que a matéria-prima é o escuro. Um processo que pretende duvidar, descobrir, contradizer e servir como pretexto para entender melhor a arte e o ato criativo. A dramaturgia que me interessa pesquisar é aquela em que a imagem da sombra projetada desponta como a protagonista da narrativa. As imagens tornam-se legíveis e ganham sentido diante das pupilas dilatadas de seus espectadores quando o sombrista, que opera as luzes e os objetos que geram as sombras, forma imagens e signos possíveis de serem decodificados e compreendidos como uma narrativa ou símbolos isolados. Segundo Fávero, “durante as experiências entre sombrista e espectador os múltiplos sentidos que ambos colocam à disposição se desenvolvem ao longo do tempo dramático, sugerindo emoções através do estranhamento, do encantamento, do medo e de outras sensações que ocorrem nessa troca. O que é visto nas projeções se completa ao ser interpretado e sentido pelo espectador.” No que se refere ao universo temático, é perceptível o apego da Lumbra aos temas regionais. “A cultura brasileira relaciona a sombra apenas ao alento da proteção do sol escaldante das regiões entre o trópico e a linha do Equador. Nosso país desconhece qualquer tradição da sombra como arte e não tem registros nos costumes dos nossos ancestrais indígenas. O que existe por aqui é uma

A história bíblica do nascimento de Jesus foi recontada em Auto luminoso de Natal através de técnicas do teatro de sombras

memória afetiva e de resíduos no inconsciente. Quase tudo produzido e reproduzido pelos colonos europeus, por não ter passado, presente ou futuro, toma a forma que desejarmos. Acredito que o mais próximo de nós, quando tratado adequadamente pela mente criativa e pela estética consciente da arte, passa a ser globalizado e universal”, justifica. O teatro artesanal encontra mais uma representante na Tato Criação Cênica, de Curitiba, na qual os integrantes, Dico Ferreira e Katiane Negrão, criam bonecos a partir de partes do corpo (principalmente as mãos). Não foram poucos os que se emocionaram com a primeira criação da companhia, fundada em 2004, intitulada Tropeço, apresentada à luz de velas, e elogiaram a

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“Passamos a interagir com os bonecos para, depois de algum tempo, escolher os momentos de interação do ator de carne e osso com a criatura animada” |

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SÁVIO UCHÔA E CARLA DENISE SÁVIO UCHÔA E CARLA DENISE

Os personagens João Minhoca, João Redondo e Cassimicoco, de Babau

Babau, personagem-título do espetáculo Babau ou a vida desembestada do homem que tentou engabelar a morte, do grupo Mão Molenga

segunda, E se... Dico Ferreira conta que o trabalho da Tato surgiu da falta de recursos. “Tornou-se natural transformarmos as condições escassas em proposta estética. De início, não pensávamos em priorizar as mãos, o que acabou acontecendo em virtude da minha experiência com a mímica.” A Tato se prepara agora para dois projetos solos – um de Ferreira, centrado numa investigação da figura do bufão, e outro de Katiane Negrão, que incluirá trabalho corporal em sintonia com sua formação de bailarina. A Cia. Carroça de Mamulengos também faz teatro “à moda antiga”. Recupera o termo mambembar, já que vem desbravando o Brasil com seus espetáculos. E é uma

Capirota, Capiroto e a morte do mamulengueiro: personagens e cenas de Babau

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companhia familiar, formada por pai (Carlos Gomide), mãe (Schirley França) e oito filhos (Maria, Antonio, Francisco, João, Pedro, Matheus, Isabel e Luzia, todos Gomide). Foi com Carlos Gomide, em 1975, que começou toda essa jornada, voltada, em grande parte, para o teatro de bonecos. “Meu pai começou a fazer teatro em Brasília, onde conheceu minha mãe. Ele nunca parou de viajar e incluiu os filhos, à medida que iam nascendo, na companhia”, conta Maria, a mais velha, de 25 anos, sobre o grupo, atualmente sediado em Juazeiro do Norte e no Rio de Janeiro. Ao longo do tempo, a família viajou de carroça, jipe e também de avião. Há 12 anos adquiriu um ônibus que nomeou de Brasilino. Seguem palmilhando o país, perpetuando o aprendizado de Carlos Gomide com o mestre Antonio do Babau (sobrenome que indica o modo como o mamulengo é chamado na Paraíba). “Meu pai foi incluindo os filhos nos espetáculos através da criação de bonecos. Construiu a Burrinha, figura


SÁVIO UCHÔA E CARLA DENISE

CARLA DENISE

presente em manifestações como o Cavalo Marinho e o Bumba meu Boi, que vesti desde que tinha um ano. Quando ficou pequeno, fez outro boneco para mim – o Cabrito”, lembra Maria. A companhia utilizou diversas formas diferentes de bonecos em seus trabalhos: boneco de luva, de vara, o que fica amarrado no corpo do brincante de modo que os pés e as mãos permaneçam livres, etc. “Os bonecos, às vezes, têm possibilidades que o ator não possui, principalmente no que se refere ao caráter lúdico”, garante Maria. E o público carioca teve a oportunidade de conhecer o trabalho da Cia. Carroça de Mamulengos através de Felinda, espetáculo assinado por Alessandra Vannucci, diretora vinculada às raízes do teatro popular, sobre uma mulher que sonha fugir com o circo. Como o próprio nome indica, o grupo Mão Molenga, fundado há 24 anos e estabelecido em Pernambuco, valoriza a herança dos mamulengos, sem deixar de apostar numa apropriação. “Em Pernambuco é muito expressivo o mamulengo, o teatro de bonecos tradicional. Nosso trabalho se inspira em características desse legado, em particular na técnica da improvisação. Contudo, damos vazão a outras práticas e influências”,

O fio mágico: história de um menino que manipula o tempo devido à dificuldade de lidar com a ansiedade diante do futuro

afirma a jornalista, dramaturga e atriz Carla Denise, chamando atenção para o nome do grupo. “O mamulengueiro deve ter a mão mole. A flexibilidade é uma característica fundamental”, enfatiza. Carla e o professor, diretor, ator e mestre em teatro Marcondes Lima diferenciam o teatro de bonecos realizado no interior e na cidade grande. “No interior, os mestres seguem uma tradição. Os bonecos são feitos de madeira (em Pernambuco utilizam o mulungu). As apresentações contam com a presença fiel de um grupo de músicos regionais (percussão com zabumba, triângulo e sanfona). A estrutura dramatúrgica é episódica, aberta ao improviso e transmitida oralmente por gerações. Cada quadro é chamado pelos Mestres de ‘passagem’. O espetáculo, em si, é chamado de ‘brincadeira’. Já na cidade, o

cenário revela ecletismo. As influências da tradição local e de outras origens (dos meios de comunicação via TV) se misturam, resultando numa diversidade maior de propostas”, compara Marcondes. O Mão Molenga vem empregando várias técnicas em seus espetáculos. “Fizemos um espetáculo experimental, O Sem nome, onde exploramos técnicas e dimensões variadas de bonecos com estética inspirada no pintor Hieronymus Bosch”, sublinha Carla Denise. Outras importantes companhias poderiam ser mencionadas, como o InBust, do Pará, e o XPTO, de São Paulo, de modo a trazer à tona facetas específicas do teatro de bonecos. Mas é difícil reunir num único texto todos os grupos que ajudam a enriquecer esse universo, cuja vastidão vem sendo comprovada nos palcos brasileiros.

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FOTOS: RENATO DE AGUIAR

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Tempo de celebração

na vida e na arte

Ítalo Rossi, um dos maiores atores brasileiros, chega aos 80 anos com uma carreira de mestre e os mesmos 54 quilos de sempre Olga de Mello

O olhar de Ítalo Rossi sublinha cada um de seus gestos discretos, acompanhando a voz grave, a flexão inconfundível. É o início de uma tarde sufocante, típica do verão carioca, e Ítalo prepara-se para receber em casa um grupo de atores amadores. “Eles me pediram para ajudar na leitura de uma peça. Estão começando a fazer teatro”, explica, acrescentando que seu tempo “é escasso”. Por isso, não tirou folga naquele dia quentíssimo, mesmo sendo seu aniversário de 80 anos. “A comemoração é à noite, no lançamento do livro”, diz, referindo-se à biografia Isso é tudo, que Antônio Gilberto e Ester Jablonski prepararam para a Coleção Aplauso (Imprensa Oficial – São Paulo). “Um lindo presente de aniversário, a melhor celebração que imagino. Não sou festeiro. Oitenta anos são 80 anos. Faz pelo menos 30 que deixei de frequentar a noite. Há tempo para tudo na vida”, comenta o ator.

Ítalo Rossi REVISTA DE TEATRO

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Paulista de Botucatu, nascido em uma família italiana “pelos dois lados”, Ítalo Balbo Di Fratti Coppola Rossi deixa a exuberância para seus personagens. Em outros tempos, posou nu para promover o monólogo Se eu me chamasse Raimundo. Explica que jamais teve pudor ao atuar, citando Fernando Pessoa: “Se ousares, ousa. Em tudo que és, sê”. Hoje, no entanto, confessa seu constrangimento quando reconhecido nas ruas. Sua última aparição em televisão, no humorístico Toma lá, dá cá, como “seu Ladir”, criado especialmente para ele por Miguel Falabella, não combina com a personalidade reservada.

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“Sou muito caseiro hoje em dia. O personagem tinha um bordão: ‘é mara!’, e quando estou no mercado, ouço com frequência alguém repetindo isso e sorrindo para mim. Não é que o assédio do público incomode, mas tenho uma certa timidez em relação à vida pública. Por isso, saio muito pouco de casa”, diz. Os pais estimulavam os quatro filhos meninos a conhecerem música e a representarem óperas italianas, mas nunca sonharam que um deles subiria aos palcos profissionalmente. Ítalo se interessou em participar de um grupo de teatro amador, que ensaiava ao lado de um prédio, na capital paulista, onde fora buscar


informações sobre um curso de inglês – abandonado antes mesmo da matrícula. “Eu sabia que não poderia ser lixeiro, cafetão ou ator, pois minha família exigia que eu tivesse um diploma. Acabaram aceitando minha escolha e fui trabalhar no escritório do meu pai, que só me recomendou que eu fizesse o melhor possível no palco. Eu não tinha sido um aluno muito dedicado no colégio, mas abracei o teatro com seriedade, com amor!”, lembra. Começava a trajetória de workaholic assumido, que ao longo de 60 anos de carreira atuou em 41 peças teatrais (quatro amadoras), 22 filmes, 34 novelas e seriados, dirigiu 15 espetáculos e participou de 450 adaptações teatrais para a televisão. Ítalo não pretende parar de trabalhar. “O teatro é uma paixão, é minha vida. Não se deixa de viver. Este ano devo estrear um espetáculo. Esther Jablonski está escrevendo um texto e há também outro, uma peça. Estou aguardando a tradução para começar a pensar na montagem. São comédias, mas com toques de amargura”, diz. Definir seu gênero teatral preferido, o papel mais marcante, o espetáculo que mais gostou de fazer é impossível. Recorda de Sakini, personagem de Casa de chá do luar de agosto, que lhe rendeu o primeiro prêmio – como ator revelação – da Associação Brasileira de Críticos Teatrais, em 1956, sua estreia no Teatro Brasileiro de Comédia. No ano seguinte, era premiado como melhor ator por Os interesses criados. O terceiro prêmio ABCT

veio com O mambembe, o primeiro espetáculo do recém-criado Teatro dos Sete, que fundou com Fernanda Montenegro, Fernando Torres, Gianni Ratto, Alfredo Souto de Almeida, Luciana Petrucelli , depois do fim do TBC. A eles e a outros artistas com quem contracenou, como Walmor Chagas, Sérgio Britto, Nathalia Timberg, Jardel Filho, Dina Sfat e Marieta Severo, atribui boa parte de sua formação profissional. “Não tenho a menor pretensão de ser a história viva do teatro. Aconteceu de eu estar lá, sendo dirigido por Ziembinski. Não sou contra a escola de teatro, ao contrário. Mas existem noções que vão além da técnica.

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“O teatro é uma paixão, é minha vida. Não se deixa de viver”

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“Sou bastante eclético, gosto do que é bom, que vai de Shakespeare ao besteirol”

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E atuar começa pela leitura do texto, no encontro com o personagem. Eu preciso de horário de trabalho, tempo para concentração, chegar uma hora e meia antes do espetáculo para verificar a luz. Teatro requer mais do que talento”, afirma Ítalo. Para ele, a perda do público de teatro se deve ao fim das companhias teatrais brasileiras: “A companhia garante uma continuidade de padrão que os trabalhos avulsos não permitem. Aquelas plateias que nos assistiam esperavam esse padrão, essa qualidade de espetáculo. Vendemos antecipadamente todas as entradas de O mambembe para um Theatro Municipal lotado, uma

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temporada inteira. E isso sem patrocínio algum”, afirma. Os registros de diferentes fases da vida estão por todo o apartamento no bairro do Flamengo, Zona Sul do Rio de Janeiro. Muitas fotografias da família, algumas de trabalho. Solteiro e sem filhos, abre um sorriso ao contar o nascimento do primeiro “sobrinhobisneto”. Em cada parede há pelo menos uma pintura, algumas de amigos, outras de artistas conhecidos, como Jorge Guinle Filho, autor de duas telas que estão na sala. A coleção já chegou a ter 48 peças, mas a casa atual não comporta. “Morei em um apartamento imenso, com pais e irmãos. Não preciso de muito espaço. Lar


é onde posso me instalar com meus livros”, comenta. A leitura não lhe toma tempo, é essencial para viver, como a música, principalmente Mozart e Mahler. Pouco vai a cinema, prefere assistir a filmes em DVD. “Sou bastante eclético, gosto do que é bom, que vai de Shakespeare ao besteirol. Mas aqui, tranquilo, em casa”, diz, enquanto tira de cima do aparelho a capa de O inocente, de Luchino Visconti. Na estante do quarto, em frente a livros sobre teatro, estão os quatro prêmios Molière recebidos por sua atuação como protagonista em A noite dos campeões (1975), Quatro vezes Beckett (1985), Encontro com Fernando Pessoa (1986) e O encontro de Descartes e Pascal (1987). Depois que contou, no programa de Jô Soares na televisão, que jamais aproveitara as quatro passagens aéreas para Paris (que integravam a premiação), pois estava sempre trabalhando, foi procurado pela Air France com um novo bilhete cobrindo o mesmo percurso. Só então pôde fazer a viagem. O tempo “escasso” é pautado por horários determinados. Além dos ensaios e da leitura, diariamente se entrega a uma hora de exercícios físicos. “Eu gostava de nadar, mas agora tenho uma tendinite que me afastou da piscina. Academia, não consigo frequentar. Então, tenho um orientador que me indica o que fazer, o que preciso fortalecer”, diz, acrescentando que não segue qualquer dieta alimentar específica. “Conservo os mesmos 54 quilos há milênios”, brinca.

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O S S O S

D O

O F Í C I O

De olho

nos festivais de teatro Curitiba, Porto Alegre, Salvador, Belo Horizonte, Brasília, São Paulo, Rio ou São José do Rio Preto. Ninguém sabe onde vai surgir a próxima estrela para a novela das oito ou para aquela série campeã de audiência. Para apostar em um ator novato, é preciso garimpar, conhecer e avaliar. Um trabalho longo de pesquisa realizado por Léo Gama, coordenador dos produtores de elenco da TV Globo, que cadastra em média 2.500 promessas no banco de dados da emissora por ano. Com sua equipe de 18 profissionais, ele se esforça para manter uma rede de observação em todas as regiões do Brasil. E os festivais de teatro são passagens obrigatórias. “É no palco que a gente percebe todas as ferramentas do ator. É onde ele fica mais à vontade, normalmente. E o festival dá oportunidade de vermos gente de outros lugares”, comenta. Aos 44 anos, a vida profissional de Léo Gama é totalmente ligada à emissora – viu nascer o Projac e as últimas gerações de atores. Apesar de já ter contribuído em peças de teatro e filmes para o cinema, é na TV que ele se firmou. Publicitário de formação, começou sua carreira na agência da empresa em 1987. Desde então, ocupou muitos cargos até migrar da publicidade para a dramaturgia. Hoje, além de outras coisas, é o responsável por informar à emissora o surgimento de novos atores, diretores e outros profissionais de bastidores. Nem tente comparar seu trabalho de pesquisa de atores com o de olheiro de futebol. Sem querer entrar em conflito com o pessoal dos gramados, ele quer valorizar os pesquisadores de talentos nos palcos. “Fica parecendo um tiro a esmo. E não é. Trata-se de um trabalho de pesquisa e estudo mesmo.

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Léo Gama, produtor da Globo, garimpa atores em todas as regiões do país Julio Calmon


É preciso ter conhecimento. A maioria de nós tem formação. São pessoas que têm conhecimento de teatro, direção e do trabalho do ator em geral”, diz Léo. Não é sempre que o coordenador consegue estar ao vivo em todos os festivais, por isso mantém uma equipe numerosa, que se divide para ir aos eventos. Mas, se alguém estiver atuando ou de passagem pelo Festival de Curitiba, no fim de março, é quase certo esbarrar com Léo Gama. Porto Alegre em Cena, Festival de São José do Rio Preto, de Brasília, Salvador ou Belo Horizonte também estão no roteiro. “Em São Paulo e no Rio é mais fácil acompanhar os atores. Mesmo assim, os festivais estudantis são importantes para revelar novos talentos”, comenta. Bons produtores de elenco são reconhecidos por sua capacidade de fazer as escolhas. Mas nem sempre o resultado sai como esperado. Muitos atores que foram bem avaliados no palco fracassaram em frente às câmeras. “A gente tem expectativa o tempo inteiro, mas o veículo tem suas próprias características. É uma renovação constante. Já vi muita gente entrar e sair. A câmera atua de forma invasiva e muda o trabalho do ator. Às vezes, eles são geniais no palco, mas não são na TV”, explica. A escolha da protagonista do seriado Maysa, por exemplo, foi acertada. Léo conhecia o trabalho de Larissa Maciel por já ter visto peças dela em Porto Alegre, além de trabalhos com a RBS TV – filiada à Rede Globo. Indicada pelo coordenador, a atriz bateu mais de 200 candidatas e encantou o autor e diretor Jayme Monjardim. “Porto Alegre é uma cidade muito rica. Além do teatro, é um polo de cinema e publicidade muito importante. Vale a pena acompanhar a cena local”, afirma Léo Gama. Segundo o coordenador, às vezes o caminho inverso também acontece. Em vez de indicar atores com determinadas características para os papéis propostos, os próprios diretores pedem que Léo apresente uma relação de atores para que eles comecem a trabalhar a partir da divisão de elenco. Foi assim com Luiz Fernando Carvalho, quando montou a série A pedra do reino, obra do paraibano Ariano Suassuna, radicado em Pernambuco. Trabalharam cerca de 50 atores nordestinos escolhidos em grupos teatrais locais. “Ele quis que a gente apresentasse um leque de atores para montar o seu próprio universo”, lembra Léo. Mesmo vivendo no meio do espetáculo, esse trabalho de garimpo dificilmente chega ao conhecimento do grande público. Isso, porém, não o incomoda. Sua satisfação é justamente ver o ator iniciante, ainda com cheiro de palco, vingar na emissora. “A gente trabalha para isso. É uma via de mão dupla. Eles (os atores) querem estar na TV Globo e nós os queremos aqui. É claro que a nossa função é atender as necessidades da programação, mas também nos sentimos realizados quando os atores se saem bem”, assegura Léo Gama.

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E N S A I O

ร talo,Yara e

a vida nos

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ACERVO FUNARTE / FREDI

ACERVO FUNARTE

Daniel Schenker


Rubens:

palcos

As novas biografias de Ítalo Rossi, Yara Amaral (1936-1988) e Rubens Corrêa (1931-1996), da Coleção Aplauso, lançada pela editora Imprensa Oficial, fazem justiça a três dos mais importantes

ACERVO FUNARTE / MARCO ANTONIO CAVALCANTI

atores brasileiros que integraram destacados grupos e movimentos de teatro do país. REVISTA DE TEATRO

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Ítalo

FOTOS: ACERVO FUNARTE

, 80 anos recém-completados, teve sua trajetória documentada por Antonio Gilberto e Ester Jablonski no livro Isso é tudo, título evocativo do excelente espetáculo dirigido pelo ator a partir da junção de textos curtos de um dos dramaturgos que mais admira, Harold Pinter. Trabalhou no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), companhia fundada pelo industrial italiano Franco Zampari e estrelada por Cacilda Becker. O TBC foi um empreendimento que se notabilizou por uma dupla e bem-vinda internacionalização: colocou os atores em contato com uma ampla dramaturgia estrangeira (ainda que conciliando com textos comerciais para equilibrar os custos) e com diretores, também estrangeiros (italianos, em sua maioria), que desembarcaram no Brasil durante os tumultuados anos da Segunda Guerra Mundial. No TBC, Ítalo participou de espetáculos como A casa de chá do luar de agosto, de John Patrick, sob a direção de Maurice Vaneau. Com Alberto D’Aversa fez Panorama visto da ponte, de Arthur Miller, Vestir os nus, de Luigi Pirandello, e Pedreira das almas, de Jorge Andrade. Na volta para o Rio de Janeiro, foi um dos fundadores, em 1959, do Teatro dos Sete, ao lado de seus amigos e parceiros de cena Fernanda Montenegro, Fernando Torres e Sergio Britto. O grupo contava ainda com as presenças de Alfredo Souto de Almeida e Luciana Petruccelli. Na condução, Gianni Ratto, que tinha acumulado experiência como cenógrafo na Itália em espetáculos do Piccolo Teatro de Milão e, no Brasil, como diretor no Teatro Popular de Arte (TPA), companhia de Maria Della Costa e Sandro Polônio, e no TBC. O Teatro dos Sete ficou conhecido pelo rigor na escolha do repertório. Após o lendário espetáculo de abertura – O mambembe, de Artur Azevedo, comemorando os 50 anos do Theatro Municipal –, montaram textos de autores como Bernard Shaw (A profissão da Senhora Warren), Cervantes, Molière, Martins Pena (reunidos em Festival de Comédia), Goldoni (Mirandolina) e Pirandello (O homem, a besta e a virtude).

Os veranistas, Teatro dos Quatro, 1978

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Com Jardel Filho em Senhor Puntilla e seu criado Matti

Com Fernanda Montenegro

Com Fernanda Montenegro em Frankel

Com Aldo de Maio


ACERVO FUNARTE / CLAUDIA FERREIRA

ComREVISTA José deDE Abreu em O | beijo da mulher aranha, 1982 44 TEATRO Nº 523

ACERVO FUNARTE / XICO LIMA

Rubens

Corrêa, que acaba de ter sua carreira evocada por Sérgio Fonta no livro Um salto para dentro da luz, esteve à frente, juntamente com Ivan de Albuquerque, do Teatro do Rio. A partir de 1959, fizeram montagens como O prodígio do mundo ocidental, de John Millington Synge, A falecida, de Nelson Rodrigues, Espectros, de Ibsen, O círculo vicioso, de Somerset Maugham, A escada, de Jorge Andrade, e Diário de um louco, de Gogol. Com a mudança para a rua Prudente de Moraes, Rubens e Ivan rebatizaram a iniciativa de Teatro Ipanema, na segunda metade dos anos 1960. O Ipanema foi palco de encenações de sucesso, norteadas pelo vigor libertário da época, como O arquiteto e o imperador da Assíria, de Fernando Arrabal, lembrada até hoje pelas interpretações de Rubens e José Wilker, e pela cenografia, que, nos primeiros momentos, dava a sensação de uma densa floresta, feita de folhas de jornal. Hoje é dia de rock, de José Vicente, registro da travessia de uma família do interior do Brasil rumo à cidade grande, percurso durante o qual cada filho encontra seu próprio caminho, permanece como o espetáculo mais marcante. Espectadores assistiram à peça repetidas vezes e até hoje se lembram do cenário em formato de estrada, de Luís Carlos Ripper, e das músicas de Cecília Conde. O impacto foi tamanho que no último dia de apresentação não houve como encenar o espetáculo, devido ao grande público que se aglomerava na porta do teatro. Solução: dirigiram-se todos, elenco e público, à praia de Ipanema para cantar as músicas da montagem. A China é azul, peça de Wilker, e Ensaio selvagem, novamente José Vicente, também deixaram lembranças, ainda que a segunda não tenha conquistado a plateia – uma injustiça, de acordo com muitos. Além de Rubens e Ivan, o Teatro Ipanema sobreviveu graças à dedicação de parceiros como Leyla Ribeiro, José Wilker, que chegava do Teatro Jovem e do Grupo Opinião, e Klauss Vianna, que, responsável pela preparação corporal, atuou como ator em Hoje é dia de rock.

Artaud, Teatro Ipanema 1989


ACERVO FUNARTE / ALAIR GOMES

Artaud, Teatro Ipanema, 1989

O beijo da mulher aranha

O beijo da mulher aranha

O beijo da mulher aranha

ACERVO FUNARTE / EMÍDO LUISI

ACERVO FUNARTE / EMÍDO LUISI

ACERVO FUNARTE / EMÍDO LUISI

Com José Wilker em O arquiteto, teatro ipanema, 1970

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Reveillon 46 REVISTA

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ACERVO FUNARTE / VANIA TOLEDO

Yara

Amaral, que ganha biografia (A operária do teatro) de Eduardo Rieche, foi uma atriz de presença mais que constante nas montagens do Teatro dos Quatro, sociedade firmada entre Sergio Britto, Mimina Roveda e Paulo Mamede, que vigorou entre 1978 e 1993. Norteada pelo desejo de viabilizar montagens de grandes textos com a nata dos atores brasileiros, a sociedade encenou obras de autores pouco difundidos no país, como R.W. Fassbinder (Afinal, uma mulher de negócios e As lágrimas amargas de Petra Von Kant) e Nikolai Erdman (O suicídio). Vale lembrar de Oduvaldo Vianna Filho (com Papa Highirte, texto até então proibido pela censura) e Samuel Beckett (das peças curtas reunidas em Quatro vezes Beckett, espetáculo assinado por Gerald Thomas). Nessa encenação, Ítalo Rossi e Rubens Corrêa contracenaram, sendo o primeiro encarregado da partitura de Julian Beck, do Living Theatre, já tomado pelo câncer na montagem novaiorquina. Yara, morta trágica e precocemente no naufrágio do Bateau Mouche, participou das encenações de Os veranistas, de Gorki, Rei Lear, de Shakespeare, Imaculada, de Franco Scaglia, Assim é se lhe parece, de Pirandello, A cerimônia do adeus, de Mauro Rasi, Sábado, domingo e segunda e Filumena Marturano, as duas últimas a partir de peças do autor napolitano Eduardo De Filippo. A atriz morreu durante a temporada de Filumena Marturano e foi substituída por Nathalia Timberg em menos de uma semana.


ACERVO FUNARTE ACERVO FUNARTE / RICHARD SASSO

Trilhas e armadilhas

Os veranistas, 1978, Teatro dos Quatro

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Nova aventura no mundo dos

clássicos Cia. Limite 151 planeja espetáculo a partir de Thérèse Raquin, de Émile Zola Daniel Schenker

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A Cia. Limite 151 investe num teatro de repertório a partir da encenação de textos de autores clássicos, na contramão da vertente do humor descartável encontrada nos palcos do Rio de Janeiro nos dias de hoje. Mas o grupo, que comemora 20 anos de atividade em 2011, não se preocupa propriamente em marcar oposição a certo panorama da cena contemporânea. “A escolha por textos clássicos decorre da formação dos integrantes do grupo. Eu sou uma bailarina clássica desviada para o teatro. Comecei a fazer balé aos oito anos e aprendi que o clássico é a base. Tanto que o estudo do balé moderno se dá a partir do quarto ano. Edmundo Lippi montava clássicos infantis e Wagner Campos era regente”, diz a atriz Gláucia Rodrigues, que fundou a companhia ao lado de Marcelo de Barreto e Cristiane D’Amato.

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Gláucia aponta fragilidades do ator brasileiro. “Temos carência de atores que saibam fazer as perguntas certas e encontrar as respostas certas para os personagens. Acho que isso se dá por falta de estudo dos clássicos”, afirma Gláucia, destacando lacunas de formação. “Dom Casmurro é leitura obrigatória em qualquer faculdade de Psicologia. É a investigação da consciência de um ser”, acrescenta, citando a obra de Machado de Assis. A atriz se refere ainda à importância da conquista de uma consciência corporal: “O balé continua essencial na construção das minhas personagens. Sei que se imprimir de cara um corpo limitarei a abordagem da personagem”. Agora, a Limite 151 partirá para a montagem de Thérèse Raquin (1867), a partir do livro de Émile Zola, encenado em 1948 pelo Teatro Popular


CHICO LIMA

CHICO LIMA

EMANUEL COUTINHO

Emilia Rey, Gláucia Rodrigues e Jacqueline Laurence em As eruditas, de Molière, direção de Jose Henrique

de Arte, companhia capitaneada pela atriz Maria Della Costa e pelo empresário Sandro Polônio, e transportado para o cinema em 1915 (sob a direção de Nino Martoglio) e 1928 (a cargo de Jacques Feyder). “Thérèse Raquin é um livro demolidor. Surgiu como um projeto do Wagner, que encomendou a tradução a João Bethencourt. Na época, Bethencourt exclamou, bem-humorado: ‘vocês são loucos. Não querem saber de plateia!’”, recorda Gláucia, aproveitando para contextualizar a obra de Zola, centrada na personagem-título, que se casa com o primo, conforme determinação de sua tia, mas acaba se envolvendo com um amigo do marido. “Zola inaugura o naturalismo. Mas não tem nada a ver com o arroz com feijão da televisão”, destaca. No elenco, confirmada a participação de Jacqueline Laurence, atriz que tem trabalhado

Cristiane D'Amato e Fábio Junqueira em A comédia dos erros, de William Shakespeare, direção de Claudio Torres Gonzaga

com a Limite 151, a exemplo de sua presença em O avarento (ao lado de Jorge Dória) e As eruditas, e da direção que imprimiu em Tartufo e O doente imaginário. A opção do grupo por encenar peças clássicas não deve, segundo Gláucia, ser interpretada como um apego a espetáculos convencionais. “O texto clássico atravessa o tempo. E a encenação clássica é aquela que não impõe uma autoria em relação ao texto. Nós sempre nos esforçamos para contar uma história da melhor forma possível, através da peça escolhida. Brincamos dizendo que o diretor não deve atrapalhar. Isto não significa investir em espetáculos tradicionais, que podem ser, inclusive, muito monótonos. Quando fizemos As malandragens de Scapino, decidimos que o protagonista seria interpretado por uma atriz. Foi uma encenação

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CHICO LIMA

Ida Gomes e Jorge Dória em O avarento, de Molière, direção de João Bethencourt

Gláucia Rodrigues em As malandragens de Scapino, de Molière, direção de João Bethencourt

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empréstimo bancário. Foi um sucesso, mas ficamos com dívidas. Fui fazer novela para pagá-las”, rememora Gláucia, que enveredou com a companhia por obras de autores como Tennessee Williams (À margem da vida) e Joe Orton (O olho azul da falecida), e pelo repertório brasileiro de Nelson Rodrigues (Os sete gatinhos), Jorge Andrade (A moratória) e Ariano Suassuna (O santo e a porca). Talvez seja possível traçar associações entre a Limite 151 e outras iniciativas lembradas pelo destaque ao chamado teatro de texto, como a sociedade que originou o Teatro dos Quatro. Quando a companhia de Gláucia foi fundada, no começo dos anos 1990, Sergio Britto, Mimina Roveda e Paulo Mamede viviam a fase final da sociedade, marcada pelas montagens de O baile de máscaras e Mephisto. “Marcelo de Barreto era espectador do Teatro dos Quatro. Não faz parte das minhas influências diretas. Eu morava em Bonsucesso e não frequentava teatro. Comecei a conhecer a história do teatro quando fui estudar na

Os sete gatinhos, de Nelson Rodrigues, direção de Marcelo de Barreto. Ovidio Abreu, Carlos Alberto, Isolda Cresta, Edmundo Lippi, Melise Maia, Rose Abdalah, Flavia Monteiro, Gláucia Rodrigues e Cristiane D'Amato.

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UniRio, onde tive aulas com Léo Juzi, Yan Michalski, Pernambuco de Oliveira, Barbara Heliodora e Nelly Laport”, conta. Outro vínculo pertinente é entre a Limite 151 e o Grupo Tapa, fundado no Rio de Janeiro, na virada da década de 1970 para a de 1980 e radicado em São Paulo desde 1985, voltado para a construção de um repertório dramatúrgico sólido. “Edmundo é produtor do Tapa no Rio. Sou amiga de Zecarlos Machado e Emilia Rey. Não há ligação direta entre os dois grupos, mas pertencemos à mesma turma”, observa Gláucia, que, contudo, não perde de vista a possibilidade de participar de um projeto bem diferente dos que realizou até agora. “Adoraria fazer algo como ‘A bao a qu (Um lance de dados)’. Não é uma proposta em sintonia com a minha companhia. Porém, talvez fosse possível

Flávia Monteiro e Ednei Giovenazzi em O mercador de Veneza, de William Shakespeare, direção de Cláudio Torres Gonzaga

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GUGA MELGAR

arriscada”, comenta. Gláucia se refere à montagem que marcou a parceria da companhia com João Bethencourt. Molière é um capítulo à parte no percurso da Limite 151, que montou As preciosas ridículas e os já citados O avarento, Tartufo, O doente imaginário e As eruditas. Shakespeare também tem lugar de destaque na história do grupo, a julgar pelas encenações de A comédia dos erros e O mercador de Veneza. “Não foi nada planejado. Os espetáculos surgiram como um projeto duplo de ocupação do Teatro Glauce Rocha. João Fonseca me propôs investir numa nova montagem de O mercador de Veneza. No entanto, não tenho mais um olhar inocente diante da vida para fazer Pórcia”, assume. A lembrança dos espetáculos transporta Gláucia para uma época em que era possível viabilizar a produção teatral de outra maneira. “Até gostaria de voltar a encenar uma peça de Shakespeare, mas exigiria um elenco muito grande. Montamos A comédia dos erros com


Silvio Kavinski, Gláucia Rodrigues, Edmundo Lippi, Theresa Amayo, Leonardo Villar e Amelia Bittencourt em A moratória, de Jorge Andrade, direção de Sidnei Cruz

CHICO LIMA

se tivéssemos uma preparadora corporal espetacular que propusesse uma investigação como essa”, diz Gláucia, mencionando o lendário espetáculo da Cia. dos Atores. Seja como for, projetos para 2011 não faltam. Além de Thérèse Raquin, recentemente contemplado com o Fundo de Apoio ao Teatro (Fate), o grupo planeja a montagem de O telescópio, de Jorge Andrade, uma turnê de O santo e a porca pelo Nordeste e uma revisita a O olho azul da falecida em co-produção com o ator Marcos Pigossi. Planos em sintonia com a plataforma da companhia. Só uma coisa permanece sem explicação: Por que o nome Limite 151? “Marcelo era apaixonado por Limite, filme de Mário Peixoto. Nós nos reuníamos na casa do Edmundo, na Av. Henrique Dumont 151. Era a nossa sede. Então, ficou Limite 151”, esclarece.

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CLAUDIA RIBEIRO

Elcio Romar e Gláucia Rodrigues em O santo e a porca, de Ariano Suassuna, direção de João Fonseca


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Desenho de Lula

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