Revista de Teatro SBAT n.525

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Desde 1917 em defesa do direito autoral. Reconhecida como de Utilidade Pública Federal pelo Decreto nº 4.092 de 4 de agosto de 1920.

Av. Almirante Barroso, 97 / 3º andar – Castelo Cep: 20031-005 – Rio de Janeiro/RJ – Brasil Tels: +(21) 2240.7231 / 2544.6966 Fax: +(21) 2240.7431 www.sbat.com.br CONSELHO DIRETOR

Aderbal Freire-Filho Alcione Araújo Millôr Fernandes Ziraldo Alves Pinto

sumário 2

Aderbal Freire-Filho

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Órgão Oficial da SBAT – Sociedade Brasileira de Autores, inscrito na Ulrich’s International Periodicals Directory sob o registro ISSN 0102-7336. CONSELHO EDITORIAL

Aderbal Freire-Filho Ana Velloso Regina Zappa Vera Novello

"Sei que vou continuar" Augusto Boal Alcione Araújo

32 revistadeteatro@sbat.com.br bambinacult@gmail.com

PRÓLOGO

“Através do teatro se enxerga melhor a vida” O Teatro do Oprimido rompendo barreiras Olga de Mello

36 ENSAIO Boal, em nome do ser humano Maria Luiza Franco Busse

SUPER VISÃO

Três É Editoração e Design Ltda. DIREÇÃO EXECUTIVO FINANCEIRA

Bia Gondomar EDIÇÃO

Regina Zappa COLABORADORES

Alcione Araújo Lula Maria Luiza Franco Olga de Mello Renato de Aguiar PESQUISA ICONOGRÁFICA

Maria Luiza Franco REVISÃO

Maria Helena Pereira PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO

Mais Programação Visual www.maisprogramacao.com.br CAPA

Montagem com fotos de Renato de Aguiar e do banco de imagens CG Textures CTP E IMPRESSÃO

WalPrint Gráfica e Editora TIRAGEM

5.000 FOTOS DE ACER VO CEDIDAS PELA

Recursos obtidos através do Convênio nº 732974/2010, celebrado entre o Ministério da Cultura e a Bambina Ação Cultural Associados Esta edição traz um encarte com a peça Nonono nononono nononono nononono nonononoononon.

48 ENTREVISTA Memória à deriva Cecília, viúva do diretor, luta para que o Instituto Augusto Boal consiga manter seu acervo no Brasil Olga de Mello

52 EPÍLOGO


P R Ó L O G O

São dois prólogos por um. Ou duas lembranças – uma alegre, outra triste – gravadas em umas palavras de admiração. Se elas não dão o tamanho dessa admiração, outras não dariam. Repito o dito e o dito, não há palavras que. Em 2007, a Sociedade Brasileira de Autores completava 90 anos. Para celebrar a data, o Conselho Diretor da SBAT decidiu prestar uma homenagem a um autor brasileiro. Unanimemente, escolheu Augusto Boal. Foi talvez o último prêmio que Boal recebeu em vida. Não era o merecido Nobel da Paz, para o qual foi lembrado. Era, no entanto, o reconhecimento que talvez melhor celebre a vida de um homem, aquele que é prestado por seus pares. Aqui, algumas das palavras ditas na entrega da placa que formalizava a homenagem. A SOCIEDADE BRASILEIRA DE AUTORES TEATRAIS, ao completar 90 anos, celebra esta data prestando uma homenagem especial a um autor brasileiro, AUGUSTO BOAL. AUGUSTO BOAL, no começo dos anos 50, criou na cidade de São Paulo um Seminário de Dramaturgia, que é considerado hoje um marco na história do teatro brasileiro. Desse Seminário saíram os dramaturgos que compuseram a mais notável geração de autores de teatro do país, uma geração marcada pela preocupação social expressa nos temas de suas peças. AUGUSTO BOAL já era então um mestre, não só oferecendo àquela geração as ferramentas do seu ofício como orientando a todos no caminho de uma temática libertadora. Com o Teatro do Oprimido, a dramaturgia de AUGUSTO BOAL desenvolveu-se no sentido de uma participação mais e mais democrática. A intervenção dos espectadores na criação da dramaturgia do Oprimido, caracteriza um teatro aberto, do espectador-autor, um teatro solidário, de todos. Tanta importância tem AUGUSTO BOAL para o Brasil que, ao homenageá-lo, a SOCIEDADE BRASILEIRA DE AUTORES TEATRAIS ganhou mais, foi ela que se beneficiou, tornou-se uma sociedade de todos os brasileiros, pois AUGUSTO BOAL faz de todos, autores de teatro. Em maio de 2009, a despedida. Para o jornal Folha de S. Paulo, em uma página dedicada a Boal, escrevi essas outras palavras. O teatro brasileiro no mundo tem um nome: Augusto Boal. Vá a Amsterdã, entre numa livraria e peça um livro de Augusto Boal. Você não vai conseguir ler, a menos que saiba holandês. Boal está traduzido muito além do espanhol, do francês e do inglês. Mas não estou aqui para falar dos livros, quero falar do homem. E começo ouvindo esse homem falando, o ritmo da sua fala, a música que vai juntando frases harmoniosamente, com um pensamento claro, com fluência, a cadência das palavras, uma respiração que você sente buscada no fundo do peito para uma frase mais e, depois, quando o raciocínio se completa, um volteio e um final em que todos os temas se fecham, com extraordinária clareza.


Estou ouvindo uma explicação que me deu sobre um seminário seu com atores da Royal Shakespeare Company. Ali, o teatro ainda tem a força dos seus melhores tempos, se você abre o programa de uma peça da companhia, vai encontrar duas páginas inteiras com os nomes de quem faz aquele teatro existir, começando com os de sua patrona e de seu presidente, Sua Majestade a Rainha e Sua Alteza Real o Príncipe de Gales e indo até os contrarregras e o pessoal da maquiagem, passando pelos atores, o centro de tudo. Isto é, ali está a Inglaterra inteira. Pois estava claro para aquela companhia que seus atores precisavam conhecer mister, dom Augusto Boal, um artista capaz de fazer um teatro mais aberto para a sociedade do que qualquer outro, capaz de transformar o espectador em ator. E levaram Boal para conviver com eles, treinaram suas técnicas, seus métodos, sabendo que assim iam chegar mais perto ainda do povo, como chegava o cidadão William Shakespeare. E digo cidadão Shakespeare pensando na frase de Boal, dia desses na Unesco: “cidadão não é aquele que vive em sociedade, é aquele que a transforma”. O Alcione Araújo me telefona, “não vou esquecer meu diálogo com o Boal para uma revista, a propósito da sua autobiografia”. Geraldinho Carneiro me escreve, “as célebres façanhas poéticas e conceituais do Boal, o teatro invisível, o teatro do oprimido”. Era preciso muitos fôlegos, por trás da voz mansa e da fala cadenciada, para ter tanta presença no teatro do Brasil, do mundo, do seu tempo, de todos os tempos. Pode-se dizer muito dele. Prefiro escolher nesse abraço a lembrança de uma ação nacional, que talvez não tenha muita valia na sua cotação internacional, mas, céus, como enriqueceu o teatro brasileiro. Em meados dos anos 50, Boal organiza o seminário de dramaturgia do Teatro de Arena, marco da história da nossa cena e forma uma das nossas mais brilhantes gerações de autores, em que despontam Oduvaldo Vianna Filho, Gianfrancesco Guarnieri. Nunca esqueci da sua Revolução na América do Sul, o teatro brasileiro moderno nascendo, sua geração botando o dendê popular no caldo que Nelson Rodrigues tinha começado a preparar. E Arena Conta Zumbi, conta Tiradentes, outros brechts pelo mundo, lembro de Santiago Garcia, da Colômbia, e ouço Eugenio Barba dizendo “é o brecht deles”, foi nosso brecht o Boal. Nos encontramos pela última vez na sala de espera do consultório do Flávio, para tratar dos nossos corações, era véspera da sua viagem a Paris, onde ia receber o título de embaixador mundial do teatro. E me disse, “na volta vamos tomar um vinho lá em casa”. Não sabíamos que entre esse encontro e o vinho prometido “ia passar o famoso rio Aqueronte, o insuperável”. Mas imagino que ao lado de Cecília, tua querida e admirável companheira, a única voz que ouço te chamar de Augusto (quase todos te chamamos sempre Boal), diante do mar do Arpoador, visto da janela do teu acolhedor apartamento, tomas essa taça de vinho, imortal Augusto Boal. Aderbal Freire-Filho


“CONTINUAR SEI QUE VOU

Alcione Araújo

Em fevereiro de 2000, a revista Palavra me propôs escrever um texto sobre Augusto Boal, que lançava a sua autobiografia, O filho do padeiro. Acertei com os editores, que, em vez de artigo, faria uma entrevista. E, como não sabia, e sigo sem saber, interrogar ou entrevistar, seria uma conversa que levasse o Boal a falar – o que não é difícil. Ótima revista de cultura, Palavra permitiu e nos concedeu a oportunidade de conversar em voz alta. A dele, muito mais alta que a minha. Pouco depois, a revista deixou de circular – grande perda, e sinal de tempos áridos para a cultura, que o Boal denuncia. Nove anos depois, em maio de 2009, o próprio Boal partiu. Se estivesse vivo, neste maio de 2011 teria completado 80 anos. A certa altura da nossa conversa, ele diz “Eu sei que vou continuar”. Relembrar essa conversa é uma forma de Boal continuar entre nós.

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O lavrador do mar Ele recebeu da Unesco o prêmio Pablo Picasso para artistas que deram contribuições excepcionais à arte. Ganharam esse prêmio o próprio Picasso e Stravinsky, entre outros. Assim como os do Instituto de Teatro de Barcelona e da Association for Theatre in Highter Education – este dado pela primeira vez a personalidade não norte-americana. Professor da Sorbonne e Doutor Honoris Causa pela Columbia University, é um brasileiro que nem o Brasil que o conhece parece tê-lo na justa medida. Seu nome é Augusto Boal. Profissão: dramaturgo, diretor e pensador teatral. A França cedeu-lhe o Theatre de L’Opprimé, no qual atua o ramo parisiense do seu grupo. No ano passado, a britânica Manchester University promoveu o seminário “A globalização de Augusto Boal”. Nossa conversa foi na sede do Centro do Teatro do Oprimido, uma sala ampla e duas menores nos altos do Teatro Glauce Rocha, numa tarde de verão carioca. O ronco do ar refrigerado incomoda menos que o calor. À mesa onde nos sentamos há garrafas de água gelada e copos. À volta, estantes com livros, araras com figurinos, caixas, arcas, baús, partes de cenários, um bote metálico. Máscaras teatrais de várias partes do mundo espiam das paredes, entre cartazes, fotos e bandeiras. Nosso encontro não é uma novidade – cruzamos quase toda manhã na caminhada do calçadão entre o Arpoador – onde ele mora – e o Leblon – onde moro eu, e somos contumazes em debates e mesas-redondas. Intuímos afinidades, cultivamos respeitosa e afável amizade. Eu o admiro, ele se esforça para retribuir. Sou amigo da família – único reduto que o trata por Augusto. Finjo de entrevistador, ele de entrevistado, e começamos do começo.

FOTOS: RENATO DE AGUIAR E ACERVO FUNARTE

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Origem “Nas décadas de 10 e 20, o norte de Portugal era uma região muito pobre. Todos sonhavam vir ganhar a vida no Brasil. Um dos meus tios já vivia aqui – era um exilado econômico. Nessa época, meu pai tinha 20 anos, e minha mãe, 12. Ele trabalhava para o meu avô, pai dela. Buscava lenha, carregava água, tratava dos animais. Um dia recebeu do irmão a ‘carta de chamada’, o salvoconduto para entrar no país. Comunicou a minha mãe ‘Vou pro Brasil. Ganho dinheiro e volto para te buscar. Você me espere.’” A Penélope lusitana esperou sem pintar nem bordar. Cada navio que aportava, corria, o coração aos pulos, a ver o desembarque dos ‘brasileiros’ – como eram chamados os portugueses que retornavam, supostamente ricos – e voltava, coração murcho de decepção. Assim se passaram seis, oito, dez anos, sem ela ver-lhe o rosto, sem olhá-lo nos olhos ou beijar-lhe os lábios. Sem notícias, sequer um recado. Uma vez no Brasil, José Augusto Boal trabalhou feito imigrante. Fez de tudo. Exceto mandar notícias a Portugal. Foi recompensado. Em dez anos comprou uma padaria em São Cristóvão. Doze anos de espera, já órfã de pai e mãe, o restante da família pressionava: “Aquele gajo não volta

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mais. Você precisa casar, já fez 24 anos! Arranja um noivo!” – é assim que Boal, sorriso crítico e tom complacente, reproduz o diálogo que nunca ouviu. Logo o rosto é só ternura: “Mamãe era bonita! Linda mesmo! Ainda tenho fotos dela.” Devia ser mesmo, a julgar pela filha Aída, sua irmã, e as netas Angela e Luciana. Penélope cede às pressões e fica noiva de outro, com casamento marcado para 10 de setembro. Tudo certo: noivo, igreja, festa e convidados. No início de setembro, porém, aporta navio do Brasil e se espalha que chegara um “brasileiro” – ‘Tão rico, que tem um dente de ouro!’ Penélope, não resiste à curiosidade de espiar a novidade, nunca vista por ali. Boal reconta a cena que lhe contaram: “Mal chega ao porto, ela vê que o ‘dente de ouro’ era meu pai – que ainda não era meu pai, claro. Ele estava então com 32 anos; ela com 24. Vencido o embaraço inicial, ele sorriu mostrando o ouro do vitorioso: ‘Eu disse que vinha; e vim. Vamos casar.’ E ela, aturdida: ‘Esperei doze anos e você aparece na véspera do meu casamento!’” Boal sorri, maroto; talvez imaginando a cena no palco: “Ele não queria conversa”. ‘Honrei minha palavra. Fui e venci. Agora, você casa.’ Apavorada, ela procura o vigário. Suplica duas mudanças


Infância no casamento. Uma é a data. O padre reluta, e cede. ‘E a outra?’, quis saber. ‘Bem’ – ela hesitou atemorizada – ‘O noivo.’ Casaram-se e vieram para o Brasil. Boal sofre com implacável coriza, misto de resfriado e rinite alérgica. O nariz está túmido e vermelho, tanto o esmaga, esfrega e aperta com o lenço de pano que dobra e põe no bolso de trás. As pausas e o desconforto prejudicam sua loquacidade e o deixam levemente ansioso. A esta altura, esquecemos os papéis de entrevistador e entrevistado. Ele fala com as mãos esvoaçando pelo espaço à volta, reforçando uma teatralidade tão incorporada que se tornou espontânea. Às vezes, enfia os dedos pelas madeixas da basta cabeleira branca, que lembra vagamente Castro Alves. A determinação dos que têm fé, a esperança juvenil, e a palavra que flui sem as hesitações de quem teme se comprometer dão transparência às intenções e ao seu caráter. É loquaz, a coriza incomoda, mas é agradável ouvi-lo. Não fala tentando agradar, nem busca cumplicidade com o olhar. O humor, o sorriso quase constante, a voz levemente rouca, e a maneira de vestir ocultam sua verdadeira idade. A jovialidade e o carisma fazem suas ideias ficarem contagiantes.

Nascido em 1931, Augusto Pinto Boal – sem o José do pai e, segundo ele, com o Pinto da mãe – é carioca da Rua Lobo Júnior, Penha, zona norte do Rio: “Cresci na Penha. Estudava e, dos 11 aos 18 anos, também trabalhava na padaria do meu pai, que era perto do Curtume Carioca. O curtume exalava um fedor que, se ventava, empesteava o ar. A padaria parecia armazém. Vendia pão, bala, manteiga, queijo, cachaça, fumo de rolo etc. A Penha e a padaria foram fundamentais para despertar a minha sensibilidade social. Quando eu substituía algum empregado, tinha que ir cedo. Coincidia com a hora dos empregados do curtume. Eu ouvia as conversas, e me dava conta do sofrimento. Meu pai não era rico, mas tinha mais do que a vizinhança. Volta-e-meia alguém pedia dinheiro emprestado. E ele emprestava. Às vezes, sabendo que não o teria de volta. Minha vida era escola, padaria e futebol. Até os 18 anos eu não conhecia Copacabana. Mas a cidade não era tão estratificada como é hoje. Você podia viver na Penha e ser da classe média. Às vezes até de classe média alta. Meu pai teve o primeiro telefone daquela região. O sonho dele era que todos os filhos fossem doutores. Podíamos escolher a profissão, mas tinha que ser doutor.” Há sempre curiosidade sobre a idade em que a criança começa a manifestar interesse pela arte, e como o ambiente doméstico a influencia. Até então, nenhum Boal expressara pendor artístico “Eu gostava de teatro. Meu pai costumava comprar um camarote e levava toda a família, uma, duas vezes por ano, para ver revistas musicais na Praça Tiradentes. As revistas tinham certa influência portuguesa. Como, aliás, o teatro também. E tinha a Beatriz Costa, de quem meu pai gostava. Víamos as Revistas do Ano, que eram os principais fatos do ano que passara em revista, em cenas curtas, sucessivas, entrecortadas. Vi revistas que tinham ‘cortinas’ políticas, sempre com violentas críticas ao Getúlio. Parecia até sabotagem ao grande presidente.” Era, então, apenas espectador. O pendor não se manifestara. Quando foram ouvidos os primeiros sussurros do chamamento teatral? “Eu tinha 9, 10 anos, minha mãe recebia histórias em fascículos, tipo o Conde de Montecristo e outras. Ela nos contava as histórias que lia, e a gente – eu e meus irmãos – encenava. Eu distribuía os papéis entre irmãos e primos. Nunca entrava como ator. Só dirigia. No domingo, dia de ajantarado, vinham umas 30 pessoas, tudo família, e nós apresentávamos a peça para eles.”

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Adolescência Quando a vocação parecia clara, era hora de entrar para a Universidade – os irmãos já lá estavam –, atender à vontade do pai e ser doutor. Não havia doutores no teatro. Boal assoa o nariz, vermelho como pimentão, sem parar de falar: “Eu estava apaixonado – aliás, sou uma pessoa apaixonada – por uma moça chamada Renata (o nome é falso; ele teme perturbar a ex-namorada meio século depois!), que se preparava para estudar Engenharia Química. Foi o que bastou para eu fazer o vestibular de Engenharia Química. Estudei feito louco.” Pobre Renata: o amor juvenil pagou por uma escolha que estava feita. O teatro atraíra o coração do filho que temia frustrar os sonhos do pai. “Veio o desastre: eu passei, e ela não. E me vi sozinho na Universidade. Pensei: agora, mesmo sem a Renata, tenho que ir até o fim!” Rimos da coincidência: eu também fui até o fim no curso de Engenharia Elétrica. E também me tornei dramaturgo. Como disse o dramaturgo Edward Albee: “Às vezes é preciso percorrer um caminho relativamente longo para se alcançar um ponto relativamente próximo”.

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Universidade “Com a Universidade, na Praia Vermelha, o mundo cresceu. Como eu não estava mesmo querendo fazer Química, os outros alunos tinham mais facilidade do que eu, que estudava mais para aprender as mesmas coisas. Mas era aplicado. Até o final, nunca fui reprovado. Como não havia muito o que fazer na Universidade, ia sempre ao Serviço Nacional de Teatro, assistir às aulas sobre o método Stanislavski de interpretação. Nunca fui matriculado, mas me deixavam entrar. Por isso acabei convidado para ser diretor cultural do diretório. Pensei: nesse cargo eu tenho que fazer cultura. Então, vou ligar para quem eu quero conhecer e dizer: ‘Olha eu sou diretor cultural etc...’ Foi assim que falei com o Nelson Rodrigues. Liguei para o jornal, não lembro qual, e consegui me encontrar com ele. Perguntei se poderia fazer uma conferência. Ele ponderou: ‘E vai gente?’ Vai, eu disse. Vai porque vou divulgar e tal. Garanti que teria umas 300 pessoas. Lembro até da cara desconfiada do Nelson dizendo: ‘Não é melhor a gente vir aqui, no Vermelhinho, e eu faço a conferência tomando uma média com pão e manteiga?’ No dia, apareceram sete gatos pingados. Foi uma tragédia.”

“Eu estava apaixonado – aliás, sou uma pessoa apaixonada”

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Iniciação teatral “A partir daí, ficamos amigos. Ele me dava peças para ler, e me apresentou ao Sábato Magaldi, que me ajudou muito antes de mudar para São Paulo. Ele era do Diário Carioca, sabia muito, e lia tudo. Grifava frases, anotava nas margens. Foi aí que comecei a escrever sobre as coisas que via, sobre o pessoal da Penha, do Curtume Carioca. Eu dava para o Nelson, que lia, fazia anotações, comentava comigo, chegou a escrever sobre essas peças, que nunca foram montadas. Ele me estimulava, falava coisas, eu concordava sem concordar. Quando dizia: ‘Você tem que fazer a realidade deformada’, eu achava que a questão não era bem deformar a realidade. Para mim, o teatro não é a realidade. É uma representação do real. Não é o real, nem a deformação do real. A palavra deformação, para ele, tinha um sentido fortemente subjetivo, porque ele era expressionista.” Eu não diria exatamente expressionista. O Nelson disse bem, ele deforma a realidade. É consenso entre estudiosos e dramaturgos que Eugene O’Neill foi grande referência para o Nelson. O Sábato diz com sutileza que Senhora dos afogados é uma paráfrase de Mourning becomes Electra, do O’Neill. Convivi um pouco com o Nelson, mas não creio que tenha posto os olhos em qualquer das minhas peças. Do Sábato, fui discípulo remoto lendo Aspectos da dramaturgia moderna. Seus ensaios foram um passaporte para o meu contato com a dramaturgia contemporânea. Mais tarde tornamo-nos amigos. Incrível como o Sábato é referência para várias gerações, não acha? “É verdade. Mas o Nelson foi referência e influência para mim. O engraçado é que ele era um mentor por oposição. Eu não concordava com ele, gostava demais dele, mas politicamente nunca concordei. E na época da ditadura ele não mudou radicalmente como alguns pensam. Ele apenas revelou o que já pensava.”

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Formação Sob os olhares atentos e amigos de um crítico e um autor consagrados, o jovem de vinte e pouquinhos anos começa a deslanchar a carreira de dramaturgo. Mas, além da orientação dos dois mestres, o que o Rio de Janeiro da época proporcionava à formação cultural, estética, intelectual? O que se lia? Que espetáculos de teatro, dança, ópera eram vistos? Que filmes, que exposições? Quais eram as referências intelectuais, nacionais e estrangeiras? “Eu lia tudo que via. Frequentava a Biblioteca Nacional. Li Machado de Assis, Castro Alves, Dostoievski, Tolstoi, Dickens, muitos mais. O primeiro grande espetáculo a que assisti foi Hamlet, com Sérgio Cardoso. Causou-me uma impressão imensa. E no dia que fui assistir, ele desmaiou. Eu ia ao Teatro Municipal. Vi muitas óperas, todas que eram montadas – ópera me apaixona. Vi muito balé, também gosto muito. No teatro, tinha a Bibi Ferreira, o Procópio Ferreira, o Jayme Costa, a Alda Garrido. Mais tarde surgiu Henriette Morineau, que me impressionava muito pelo rigor com que atuava. Era da escola europeia. Era o que havia. Eu via aquilo. Não comparava com coisa alguma. Eu gostava de teatro e estava num período de absorção, não perdia uma. Mesmo quando não gostava me estimulava. Lembro de um episódio extraordinário. Foi quando o Jaime Costa, que fazia peças superficiais, decidiu montar A morte do caixeiro

viajante, do Arthur Miller. O pessoal do Serviço Nacional de Teatro ficou indignado: ‘como um cara desses, habituado ao teatro de boulevard, vai aviltar a obra-prima de Arthur Miller?’ Organizaram um grupo para ir vaiar. Quando chegou lá, a peça estava emocionante. O pessoal subiu na cadeira e aplaudiu feito louco. Não que fosse uma grande interpretação. Era a sinceridade. Ele era meio atabalhoado, não se entendia bem o que falava, mas tinha uma sinceridade extraordinária. Foi uma ovação. Aquilo me marcou tremendamente. O Jaime Costa me conquistou. Porque o Procópio era engraçado, fazia aquelas brincadeiras dele, mas era coisa de histrião, que os americanos chamam de entertainer, e que não é propriamente um ator. Eu vi o Jayme Costa ‘vivendo’ um personagem. Foi uma explosão. Depois, começa o Nelson Rodrigues. Ele me chamava para ver ensaios de suas peças e queria saber o que eu achava. Acompanhei A falecida, com o Sérgio Cardoso. Vi todos os ensaios de Valsa número seis, com a Dulce, irmã dele. Eu era amigo do Santa Rosa e do Gláucio Gil. Formávamos um trio. Santa Rosa era muito inteligente. Tudo que falava dava o que pensar. E eu gostava de ouvir. Quando Di Cavalcanti, Djanira e Santa Rosa conversavam, eu metia o ouvidão lá. Sempre saía alguma coisa. Entre os europeus, que vieram pra cá na época da guerra, o Alberto

D’Aversa era o que eu mais gostava. Dele e do Ruggero Jacobbi, dois italianos superinteligentes. Para falar a verdade, o D’Aversa não era um grande diretor, nem autor, não era nada. Tinha a língua solta, era um espalha-brasa, jogava frase para todo lado. Do Ruggero, eu gostava da precisão. Fazia conferência fechadinha. Ele começava a falar e você sabia que iria ouvir um todo. Eu acho que tenho esse rigor, talvez pela minha experiência no curso de Química. O Ruggero ajudou também. “Nos livros que escrevo procuro sempre ser rigoroso, tentando expor com clareza o que penso.”

“Eu lia tudo que via. Frequentava a Biblioteca Nacional. Li Machado de Assis, Castro Alves,

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Dostoievski, Tolstoi, Dickens, muitos mais” |

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Decisão Em 1952, formado engenheiro químico, chega a sua hora da verdade. Eu vivi a mesma situação em 68, formado em Engenharia Elétrica. Tornei-me professor da Escola de Engenharia, fui estudar filosofia e continuei escrevendo. Você, uma vez doutor, satisfez seu pai. Mas não a você que, àquela altura, já se rendera ao teatro. Como foi isso? “Meu pai, um homem justo, disse: ‘Tuas irmãs fizeram cursos de cinco anos e o teu irmão de seis. Como o seu foi de quatro, você tem direito a mais um ano. Fora do Brasil, onde gostaria de ir?’ Eu tinha comprado um livro na Civilização Brasileira, Theories of the drama, que tenho até hoje. O último capítulo – dos autores americanos – tinha o John Gassner. Fiquei encantado. Resolvi mandar uma carta para ele. O Gláucio Gil, que falava inglês muito bem, me ajudou a escrever. O Gassner respondeu que me aceitava como aluno. Fui estudar dramaturgia com ele na Columbia University.”

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Columbia University e Actor’s Studio O diploma, que você nunca usou, deixou seu pai tão feliz que ele concordou em bancar seus estudos de teatro nos Estados Unidos! Era 1953, quando você saiu daqui, tinha escrito algumas peças, avaliadas pelo Nelson e o Sábato, e um círculo de relações na área artística. O que encontra em Nova York? “A biblioteca da Universidade de Colúmbia! Fiquei deslumbrado! Lia tudo. Começava às nove e só parava às seis. E tinha pessoas com grande conhecimento. O modelo americano de formação exige muito estudo. O Gassner conhecia o pessoal do Actor’s Studio e conseguiu que me deixassem assistir às sessões. Não era uma permissão definitiva, tinha que negociar a cada vez. O Actor’s Studio era um centro de preparação de atores, que implantava o método Stanislavski nos Estados Unidos. Porém, feito de uma maneira que a vida subjetiva da personagem tornava-se mais importante do que a objetividade da situação. Era como se criasse uma espécie de expressionismo realista. É uma contradição em termos, mas era o que eles faziam. Quando se

tem atores como Marlon Brando ou James Dean, que conheci lá, e que estão o tempo todo criando, tudo bem. Mas quando é um ator ruim, que começa a imitar aquelas lentidões, aquelas pausas, fica muito chato. O Actor’s Studio fez um grande avanço, criou um estilo que vai além do Stanislavski. Eles são voltados para cinema e, nos filmes, a vida interior da personagem é o que mais interessa. Hoje estou convencido – e eu nunca vi um espetáculo do Stanislavski – de que ele fazia espetáculos que primavam pela objetividade, e, claro, cada personagem tinha a sua subjetividade. Também fui convidado a fazer parte de um grupo, chamado Writer’s Group, formado por 11 jovens como eu, entre 22 e 28 anos. Era uma espécie de seminário, que discutia as peças que escrevíamos. Durante a semana, duas pessoas liam a peça antes e faziam as referências mais objetivas. A peça era lida no encontro, quando todos a conheciam. Em seguida, todos comentavam. Ficávamos reunidos o dia inteiro. Esse grupo foi muito importante. No fim do ano, quando fui me despedir do professor,

ele disse que eu tinha lhe dado muito trabalho porque estava sempre escrevendo peças. Fiquei orgulhoso. Ele, então, me confidenciou: You are a playwriter. Aí, pensei: ‘Agora eu não vou embora! E resolvi ficar mais um tempo por minha conta. Fui trabalhar como garçom em Atlantic City. No segundo ano do curso, ganhei o Prêmio da Universidade, que consistia na montagem da peça. Mas a Universidade se recusou a montar uma peça violenta sobre pescadores brasileiros. Então, o Writer’s Group resolveu montar. Os próprios autores dirigiriam – o que nunca tinha pensado na vida. Os atores seriam os próprios autores do grupo. E o cenógrafo seria um brasileiro, chamado Nilson Pena, que até hoje acho que anda trabalhando por aí. O Nilson, então, perguntou quanto dinheiro tinha. Não tinha nada. Ele disse que uma amiga daria o dinheiro. A amiga era Bidu Sayão, que deu 100 dólares. Era um bom dinheiro, na época. Eu vivia com uma mesada de 200. Foi a primeira vez que dirigi mesmo. Fiquei deslumbrado. Achei genial conceber e organizar um espetáculo!”

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A volta Em 1955, aos 24 anos, volta ao Brasil. Vários empregos o aguardam, inclusive o que seu irmão lhe arranja, de engenheiro, na Petrobrás, que estava começando. Você recusa todos. Não queria fazer química, e o teatro não era profissão. Fazer o que, então? “O Sábato Magaldi surge outra vez como um homem fundamental na minha carreira. O Zé Renato lhe dissera que precisava de um diretor para o Teatro de Arena de São Paulo. Ele me indicou. O Zé Renato, que estava morando lá, me telefonou perguntando se eu queria dirigir. Mas eu não era diretor. Ele disse: ‘Você já dirigiu em Nova York, vem cá e dirige. Vê se é ou não pelo resultado.’ Então, perguntei ao Nelson em que eu poderia trabalhar no Rio. Ele disse: ‘Você fala inglês, traduz, vai ser tradutor.’ Virei tradutor de uma revista de crime e violência, chamada X-9.Trabalhei nisso um ano e meio ano, talvez dois.”

Teatro de Arena Em 1955 estreia o Teatro de Arena de São Paulo, empresariado e dirigido pelo Zé Renato.1 No ano seguinte, você começa no Arena, dirigindo Ratos e homens, do Steimbeck. E em 1957, estreia como autor, Marido magro, mulher chata, que você mesmo dirigiu. Daí em diante, reveza com o Zé Renato na direção. Em fevereiro de 1958, estreia Eles não usam black-tie, do Guarnieri, saída dos históricos Seminários de Dramaturgia, que você coordenava, com método muito semelhante ao do Writer’s Group. Sou fascinado pela ideia de seminário de dramaturgia. Como funcionava o do Arena? “No seminário também davam aula Décio de Almeida Prado, Sábato Magaldi, Ana Paula Rosenfeld. Pessoas como o Jorge Andrade, que não eram do seminário, traziam suas peças para a gente ler. Outros só vinham para os debates. Apareceu muita gente. Então decidimos montar apenas autores novos. O primeiro foi o Guarnieri. Depois o Chapetuba Futebol Clube, do Vianinha, que dirigi. A terceira foi Quarto de empregada, do Roberto Freire. Depois, outra do Vianinha, Bilbao, via Copacabana; em seguida, Edy Lima com A farsa da esposa perfeita; Fogo morto, do Benedito Ruy Barbosa; Revolução na América do Sul, que escrevi e dirigi; Pintado de alegre, do Flávio Migliaccio; O testamento do cangaceiro, do Chico Pereira da Silva. O seminário corria paralelo às outras atividades do Arena, que era uma casa muito movimentada. Não parava nunca.”

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José Renato Pécora, de quem nos anos 80 vim a ser colega, como professor do curso de Direção Teatral da Escola de Arte Dramática da Universidade do Rio de Janeiro, morreu no dia 2 de maio deste ano de 2011, quando releio a conversa com o Boal.


Autor versus Diretor Você costuma dirigir suas próprias peças. Fiz isso algumas vezes e não gostei. A tendência é reproduzir no palco as mesmas emoções e imagens que se teve ao escrever. A encenação se enriquece com a colaboração da sensibilidade e percepção de outro diretor. Deixei de dirigir peças. As minhas e as de outros. Como compara as situações? “Eu dirijo minhas peças, mas também gosto que outros dirijam. Uma das melhores direções de A revolução da América do Sul foi do Zé Renato. Ele percebeu coisas que eu não tinha dado ênfase. Mas foi aquilo que o tocou. Sua peça feita por outros nunca é o que você escreveu. Fiz duas montagens da minha peça Murro em ponta de faca: na Áustria e em Paris. É diferente fazer com atores austríacos e com atores franceses. Eles não percebem exatamente as mesmas coisas. Os austríacos, por causa do nazismo, são muito a história da diáspora. Os franceses são mais cerebrais, raciocinam sobre tudo, nada passionais. Quando há outro diretor é a mesma coisa de elencos de países diferentes.” O Teatro de Arena era uma experiência inédita no Brasil. Havia alguma reflexão sobre o seu significado naquele momento do país? Alguma teorização que ampliasse a compreensão do que se passava, para criar estratégias contra a dispersão, desaparecimento de grupos; ou para não sucumbir à

exaustão da prática cotidiana? Vocês teorizavam sobre a própria linguagem teatral e sua adequação à singularidade brasileira? “No próprio seminário havia debates teóricos. Nas minhas aulas, por exemplo, eu falava sobre a poética, de Aristóteles. Não apenas contava como era a poética e o que significava, mas tentava mostrar o relacionamento coercitivo da tragédia, que não era o que todo mundo fala: Ah, a catarse! Catarse é o quê? É a purificação. Mas o que me interessa não é a purificação e sim o que é purificado. O que você expele com a catarse? E aí é que estava o caráter subversivo, no que era expelido. Então, eu mostrava que a forma aristotélica é uma forma extremamente coercitiva de fazer teatro. Havia outra forma de teorizar. Naquela época, O Estado de S. Paulo tinha um suplemento literário dirigido pelo Décio de Almeida Prado. (Não posso deixar de interromper para registrar uma lamentável coincidência. Mal acabo de digitar o nome do Décio, o telefone toca. É uma repórter do jornal, pedindo um depoimento sobre ele, que acaba de falecer.) Quando dirigi A Mandrágora, escrevi vários artigos sobre Maquiavel, publicados pelo Décio. Assim como em outros momentos sobre Brecht, Hegel, Aristóteles etc. Os seminários vão até 60, quando tentou-se fazê-los no Rio. Mas já não era a mesma coisa.”

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Subjetividade e Objetividade A experiência acumulada em Columbia é a do teatro dramático, realista, psicológico, intimista, e do Stanislavski no Actor’s Studio. Mas não foi o método que utilizou ao voltar ao Brasil. “O que eu gostava no Actor’s Studio era a pesquisa, o aprofundamento. E o que não gostava é o que eu disse, era tudo tão para dentro que tudo virava subjetivo. Eu nunca quis transformar atores e personagens em abstrações. E a objetividade da cena? Não falo de voltar à Idade Média em que o personagem é o anjo ou o diabo. Eu não quero o diabo. Eu quero o personagem diabólico. Eu quero que seja subjetivo, sim. Mas eu penso que a menor unidade social são dois seres humanos e não um só. Então, eu quero ver o que é este e aquele juntos. A teatralidade, para mim, está entre os dois. Não é um ou o outro. O exemplo que eu dou sempre é o amor. Você não ama sozinho. Amo. Amo a quem? A ninguém. Amo? Não. Você tem que amar alguém. Alguém tem que te amar. Tem que haver um encontro aí.” Toda aquela introspecção do início do Actor’s Studio, que levava atores como Marlon Brando ou James Dean à tal interiorização, que eles tinham até dificuldade de

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falar. A subjetividade engolia a teatralidade. Mas há uma visão de teatralidade que pode se dar até num ator só. A interpretação é uma forma de ser e mostrar ao mesmo tempo. A relação do ator com o seu personagem pode ser uma dualidade: um é a personagem que o ator mostra; outro é o ator que representa aquela personagem. Essa dualidade pode revelar duas “personagens”. É algo diferente da dualidade que, num monólogo, cria-se com a plateia, embora num monólogo você tenha a objetividade de estar falando com a plateia. Quando o ator não sucumbe à introspecção, ele pode ser crítico em relação ao seu personagem. O ator entra na personagem e o faz; no momento seguinte, o ator sai dele e o critica. Pode-se criar esse movimento permanente, que você diz que acha o ideal. Essa questão será retrabalhada no Teatro de Arena, de uma maneira que intuo alguns vestígios brechtianos. Você disse que só tomou conhecimento de Brecht nos Estados Unidos. Mas não leu todas as suas peças, não leu sua teoria, não viu nenhum espetáculo originalmente dirigido por ele ou à sua feição. Será que não existem alguns fios que aproximam o trabalho dele com o que você fez no

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Arena, e mesmo posteriormente? A invenção do “Coringa” – sei que Brecht nunca usou o “Coringa” – ou, mais recentemente, o Teatro do Oprimido? O círculo de representação, com cada ator representando dez, 15 papéis, eles não só entravam e saíam da personagem, como mudavam de personagem. Isso não seria a negação do que se via em Nova York? Não seria um desdobramento das teorias do Brecht? “Era a negação e, de certa forma, um avanço. No começo do Arena, você ia ao toalete e tinha gente fazendo laboratório lá. Te juro. Não estou exagerando. O processo fez a revelação. Foi a realidade mesma que me obrigou a fazer as coisas.” Então, nesse processo, o Arena prossegue e você com ele. À certa altura, o Arena começa a se multiplicar, Arena-I, Arena-II etc. O Arena vem para o Rio e se mistura com o CPC da UNE. Então, vem o golpe militar de 64. Como ele interfere na vida do Arena? “O que acontecia naquela época era o seguinte. Depois de fazer tanta peça de autor novo, a gente começou a sentir que se repetia. Primeiro os figurinos, depois as ideias, os enredos... Então, começamos com a parábola, a metáfora, a estudar peças estrangeiras,


os clássicos, e dar um valor brasileiro a essas peças. A ideia era buscar a nossa cara num outro espelho que não fosse o do realismo. Isso significava também certo amadurecimento dramatúrgico, aprender com os mestres... Mas, quando houve o golpe em 64, eu vim para o Rio de Janeiro. Como naquela época não havia computador, quem tinha a barra suja na polícia de São Paulo era anjo aqui, e quem estava aqui, ia pra lá. Havia muita troca de estado e você recuperava a virgindade policial. Eu estava pensando em fazer o Galileu Galilei, de Brecht. Já tinha até convidado o historiador Sérgio Buarque de Holanda, pai do Chico, para fazer o papel de Galileu. E ele quase aceitou.. Até hoje, quando encontro dona Amélia, ela ainda lembra disso. Também estavam no elenco o Ênio Silveira, o Carlos Heitor Cony, e todos que eu sabia que estavam sendo perseguidos. Mas não foi possível. Então, a gente teve a ideia de fazer entrevistas, para os cantores falarem de suas vidas. Eles falam, cantam e fazemos um show. Essa foi a origem do show Opinião, com a Nara Leão, o Zé Keti e o João do Vale. Depois surgiu a Maria Bethania. Aí, voltei para São Paulo.”

“Eu nunca quis transformar atores e personagens em abstrações. E a objetividade da cena? Não falo de voltar à Idade Média em que o personagem é o anjo ou o diabo. Eu não quero o diabo. Eu quero o personagem diabólico. Eu quero que seja subjetivo, sim”

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Arena conta, conta, conta “Então, surgiu a ideia: fazer uma peça, não de uma pessoa contando a sua vida, mas um grupo teatral, o Arena, contando o que nós pensávamos. Vamos dizer: o Arena conta a História. A peça começava assim: ‘O Arena conta a história pra você ouvir gostoso, quem gostar nos dê a mão, e ainda tem outro gozo.’” Daí veio a série: Arena conta Zumbi, Arena conta Bahia, Arena conta Tiradentes, Arena conta Bolívar e etc. Apesar de ter sido Brecht quem inaugurou, no Ocidente, a possibilidade de eliminar a ilusão, romper a continuidade dramática, evitar a catarse, narrar musicalmente, desmistificar a representação realista psicológica, utilizar o palco aberto, a luz branca, a troca de figurino em cena etc., você afirma que nas conquistas do Arena não houve influência do Brecht. Ainda menos do Gassner, é claro. Não importa. O que importa é que uma linguagem inteiramente nova surgiu naqueles espetáculos. Na maneira de escrever, de encenar, de representar, de narrar. As teorias se ajustaram ao imperativo da realidade, inaugurando uma prática sem precedentes no Brasil. E, para mim, o centro propulsor de tudo isso foi a retomada da narrativa. Zumbi me pareceu o mais feliz deles, mais redondo do que o Tiradentes, mais comunicativo, com belas músicas... “É verdade. O Zumbi foi um sucesso que nunca vi igual. E foi feito da maneira mais louca e apaixonada. Porém, foi menos consistente, ideologicamente. O Tiradentes foi mais ousado. Tinha até explicações, parava a cada momento. É claro que num sentido mais apaixonado, Zumbi foi mais feliz. Era feito no berro, na revolta. Mas no sentido mais racional, Tiradentes foi mais efetivo.”

“O Arena conta a história pra você ouvir gostoso, quem gostar nos dê a mão, e ainda tem outro gozo” 18

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Crise Esgotados os “Arena conta”, vieram Moliére, Maquiavel, Gogol, Lope de Vega, Brecht etc. Até que em 1968, com o recrudescimento da ditadura militar, o grupo entra em crise quanto aos seus rumos. Perplexo, não sabe mais o que fazer. “Se a gente fizesse uma peça de qualquer de nós, seria a opinião de uma pessoa. Então, decidimos fazer várias peças, várias músicas, artes plásticas à vontade. Um espetáculo mural que não seria a opinião de ninguém, mas a opinião de todos. Tinha Guarnieri, Plínio, eu, Edu, Caetano, Gil. E pintores e escultores, etc. Fizemos a Feira Paulista de Opinião. Foi a última manifestação que fizemos em liberdade. E a peça foi proibida. Então, começou a guerrilha teatral. Em três dias, todos os teatros de São Paulo estavam fechados, com polícia, Exército, Marinha, Aeronáutica! Aí, nós ganhamos um habeas corpus e fizemos o espetáculo. Eles revidaram com violência. Destruíram o Roda Viva, jogaram bomba de gás lacrimogêneo no Teatro Ruth Escobar. A gente veio para o Rio. Jogaram uma granada no palco do Teatro João Caetano. Fotografamos a granada. Era da Marinha e tinha o número da unidade a que pertencia. Aí foi violência aberta mesmo. Começaram a matar gente. Veio o AI-5, no dia 13 de dezembro de 68. No dia 14 de dezembro, eu embarquei clandestino para Cuba. Uma loucura! Dia 13, o golpe; dia 14, eu indo embora.”

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Prisão “A viagem estava programada. Quase dei a volta ao mundo para chegar a Havana. Voltei dois meses depois. Estava quase impossível trabalhar. Em 1970, nós começamos uma turnê de Arena conta Zumbi pelos Estados Unidos, estabelecendo elos para ter apoio fora. Cruzamos os EUA e o México. A gente se metia em qualquer lugar. Fazia o espetáculo e denunciava a ditadura. Na volta, lembrei de uma ideia que tive com o Vianinha: ler os jornais pela manhã, ensaiar as cenas à tarde e apresentar à noite. Então, eu e alguns estudantes fizemos o chamado Teatro Jornal. Eram 12 técnicas de transformar notícias de jornal em cenas de teatro. A gente ia para as igrejas, sindicatos, escolas e ensinava a fazer. Criamos mais de 50 grupos de Teatro Jornal em São Paulo. A gente trabalhava escondido. Em 71, eu fui a um festival em Buenos Aires e depois ia ao Festival de Nancy. Nesse intervalo, eles me prenderam. Fiquei uns quatro meses preso. E havia acusações concretas. Duas pessoas, presas antes de mim, me acusaram. Fui para o pau de arara. Queriam nomes. Nunca dei. Nesse momento, em 71, a tortura estava comendo solta, mas não foram muitos os artistas torturados. Foi mais o pessoal da luta armada, intelectuais, estudantes, trabalhadores, militantes padeceram.” Você, com uma cultura humanista, formação de criador com preocupações sociais, que se manifestava mais no plano estético do que num nível concreto, partidário,

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político, que tipo de reflexão faz da espécie humana, sobre a qual escrevia, quando se vê rendido e entregue à ação de pessoas dessa espécie? “Quando você está preso, o problema é de espaço e de tempo. Se você tem espaço, não tem tempo pra nada. Lá não tem espaço, há tempo pra tudo. Foram momentos em que pensei intensamente.” Você tinha frieza intelectual e compreensão política para entender o papel deles? “Tinha. É por isso que eu falo tudo. Há essa compreensão, mas, ao mesmo tempo, você vê que é um filho da puta. Quando o cara dizia: ‘Olha, não tenho nada contra você, estou te torturando porque você caiu no meu horário.’ O cara me pendurava no pau de arara, e dizia: ‘Você difama o país lá fora, diz que aqui tem tortura.’ Eu achei graça. O cara botou o choque no máximo. Parei de achar graça. E falei: ‘Digo que tem tortura e é verdade. Você está me torturando aqui.’ Ele disse: ‘Tô te torturando, mas com todo o respeito. Você é artista, a gente te conhece.’ Sem respeito era apagar o cigarro, botar o fio no ânus, na uretra... Há pessoas que a prisão e a tortura mexem muito com elas. Sou uma delas. Encenei a minha tortura na Argentina, em Nova York, no Brasil, na Alemanha... “Há uma mudança na visão de mundo. Eu sempre tive um ideal, uma esperança. Isso não ficou abalado. Antes, a gente vivia um clima que, em alguns casos, beirava a irresponsabilidade. As pessoas não

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“Cruzamos os EUA e o México. A gente se metia em qualquer lugar. Fazia o espetáculo e denunciava a ditadura” entravam para a guerrilha; elas deslizavam para a guerrilha. Hoje, quando você entra para um partido, tem festa. Na guerrilha, alguém dorme na sua casa porque corre perigo. No dia seguinte, ela vai embora. Depois, pedem: ‘Guarda tal coisa pra mim.’ Num outro dia: ‘Preciso encontrar alguém, pode ser na sua casa ou no Teatro de Arena?’ Claro que pode. Então, você já está no meio da coisa. Não havia deliberação, recepção. Deslizava-se para a guerrilha. A maior parte das pessoas não imaginava a monstruosidade do inimigo. Eles humanizavam o inimigo. Essas coisas todas faziam as pessoas acreditarem que era um jogo. Você perdeu, perdeu. Vai começar de novo. Só que não era um jogo. A maior parte das pessoas não começou de novo. Aquele período me atingiu profundamente. E ainda acabei banido do país.”


Argentina “Fui para Nancy e de lá para a Argentina, onde vivi cinco anos. Cecília, minha mulher desde 66, que era atriz e hoje é psicanalista, tem família lá. Nos dois primeiros anos trabalhei muito, dirigindo teatro e escrevendo livros. Escrevi o romance A deliciosa e sangrenta aventura latina de Jane Spit Fire, espiã e mulher sensual, que fez muito sucesso. Criei o Grupo Hematita. Era gente que trabalhava comigo no Teatro Invisível. Mas eu trabalhava também no teatro profissional.” Então, foi na Argentina que surgiram as primeiras ideias do Teatro do Oprimido? “Não. Foi no Brasil. Eu estava em Santo André, fazendo um seminário de dramaturgia para operários. Um deles escreveu uma peça chamada A greve, que era quase uma reportagem sobre uma greve que tinha acontecido. Os personagens eram verdadeiros. Ele só mudava os nomes. No dia da estreia aconteceu uma coisa extraordinária. Um deles, muito gordo, era representado por um ator magro. Talvez escolhido até por causa disso, para disfarçar. E aí o gordo, modelo do personagem fura-greve, ficou indignado com a peça. E começou a berrar. A certa altura, ele subiu no palco. Outros subiram também. Chegamos a um acordo. Eu disse: ‘Vamos terminar a peça.’ E argumentei: ‘Se o que a peça diz é verdade, você tem que aguentar porque ele está falando a verdade. Se é mentira, então não é você.’ O gordo reclamava: ‘Eu sei que não é eu. Mas todo mundo vai pensar que é.’ Eu disse: ‘Então, o que você quer?’ E o gordo: ‘Eu vou deixar ele dizer o que quiser, mas eu vou ficar corrigindo.’ E ficou. Mesmo sem querer, esse foi o primeiro estágio do Teatro do Oprimido. Depois, foi o Teatro Jornal, que passava ao espectador uma intromissão. Nós não fazíamos, só ajudávamos. Por fim, veio o Teatro do Invisível, em Buenos Aires. Na verdade, eu queria fazer teatro de rua. Mas me advertiram: ‘Não faz, que você vai preso. Vão te deportar pro Brasil.’ Um cara sugeriu: ‘Vamos a um restaurante. Você senta no fundo e a gente faz a peça, fingindo que é de verdade. Você sabe quem é ator, quem não é.’ Fizemos a cena, que era sobre a fome. Na Argentina há uma lei que assegura a todo cidadão o direito de comer de graça, se não tiver dinheiro. Basta assinar a nota.

Essa foi a primeira peça do Teatro do Invisível. Era uma peça ordenada, com personagens. Tinha o garçom da nossa peça e o do restaurante, que falava as mesmas coisas que o nosso tinha aprendido. Tinha o nosso gerente e o de verdade, que chama a polícia. Parte do elenco improvisava e a outra parte era do restaurante, sem saber que era teatro. Mais tarde, fui ao Peru fazer Teatro do Oprimido. De repente, uma mulher entra em cena, no papel da protagonista (que era Cecília, minha esposa), e mostra o que ela faria naquela situação. Exultei! Aí, um cara me perguntou: ‘Por que não pega tudo isso e faz um livro?’ Fiz o livro Teatro do Oprimido e publiquei. Porém, a essa altura, eu não podia mais sair da Argentina. Ficara sem passaporte brasileiro. Fizeram para me sacanear. Aproveitei para trabalhar. Em três anos, escrevi nove livros e fiz um filho. Foram cinco anos na Argentina. Os dois últimos de terror. Terror mesmo. De lá fui para Portugal.”

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Portugal

Paris

“Trabalhei em Portugal de 76 a 78, convidado pelo governo português. Quando cheguei, já tinha mudado tudo. Não era mais a Revolução dos Cravos. Não foi um período bom da minha vida. Dirigi o grupo A Barraca, trabalhando com a Maria do Céu, que é uma atriz maravilhosa, com o Zeca Afonso, que é músico. Fiz a Feira portuguesa e Zé do Telhado. O Ministério da Educação incumbiu-me e a mais quatro professores, de fazer uma reformulação no Conservatório. Entregamos o trabalho. O ministro elogiou, deu biscoitinho. Quando a gente estava na porta de saída, ele disse: ‘Esqueci-me de dizer uma coisa: vocês estão todos demitidos.’ Aí eu recebi o convite para ser professor da Universidade de Sorbonne durante um ano, um professor se licenciara.”

“Aquele ano de 1978 foi decisivo. Eu dava aula no sábado, de três horas, e na segunda-feira de manhã, de uma hora e meia. Então comecei a trabalhar em outros países. Na Escandinávia, Alemanha etc. Os professores que me convidaram eram amigos meus, o Bernard Dort e o Richard Monet. Eles me conseguiram um horário que me permitia viajar pela Europa inteira.” Há incompreensão e polêmica em torno do Teatro do Oprimido. Além de tudo que você disse, gostaria que esclarecesse do que se trata, a que veio e a quem serve o Teatro do Oprimido. Esse trabalho, que você criou e difundiu pelo mundo, passou a ser identificado por muita gente com um método terapêutico, de liberação individual para atores e não atores, acidentalmente originário de um processo de criação cênica para atores. A percepção do senso comum sobre o Teatro do Oprimido é muito mais o de um laboratório com objetivos psicológicos do que o de uma investigação teatral aplicada. Pessoalmente, você continua um criador, como dramaturgo e diretor de espetáculos profissionais. A que você atribui essa confusão? Que exemplos você daria de aplicação artística do Teatro do Oprimido? “O Teatro do Oprimido não nasceu de um processo de criação cênica. Ele foi se alargando como um leque. O que eu fazia no início do Teatro do Invisível continuo fazendo de vez em quando. O Teatro Fórum, mais social e político, continuo fazendo também. Mas escrevi um livro sobre as técnicas introspectivas. Eu já usei essas técnicas na encenação da minha peça Carmen. Em Fedra, com a Fernanda Montenegro, usei o Teatro de Imagem. São técnicas e métodos que servem a todo profissional. Mais profissional do que a Royal Shakespeare Company? Eles são especializados em Shakespeare. Pois trabalhei com eles para ajudar na criação das personagens do Hamlet. E não era elenco de jovens, não. Alguns atuaram na famosa montagem do Peter Brook para o Sonho de uma noite de verão, há 30 anos. E eu trabalhei com essa gente usando os meus métodos. E em La Traviata, que estou adaptando, vou usar uma mistura desses métodos. “O Teatro do Oprimido é, antes de tudo, teatro. O ser teatro, que é o ser humano, é a capacidade que

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a gente tem de se observar em ação, que nenhum animal tem. Essa dicotomia é humana. Então, ser teatro é ser humano. E o ser humano é ser teatro. Alguns de nós fazemos dessa arte uma profissão. Outros continuam a fazer dela uma linguagem apenas. O Teatro do Oprimido, aí sim, é um conjunto de exercícios, de jogos, de técnicas, que ajudam a desenvolver aquilo que a gente já é. Quer dizer, o Teatro do Oprimido não dá nada a ninguém, traz para fora aquilo que está na pessoa. Ser ou não método psicológico ou psicanalítico, acho que há uma distinção. A psicanálise busca fazer surgir no inconsciente, mas por meio da palavra, por meio do discurso e das fraturas do discurso. Quando Freud dá um passo para trás do paciente, o paciente fica falando para o vazio. E começa a soltar o discurso. Na literatura seria o fluxo do inconsciente. Ele vai soltando, soltando. E o psicanalista fica de tocaia. Não para ouvir o que está sendo dito, mas para ouvir o que não está sendo dito, o que está faltando nesse discurso. A relação que se dá entre eles naquele momento é parte do processo. E o processo consiste essencialmente em descobrir o que não foi dito, a palavra que falta. “No nosso caso, não é psicanálise porque a gente faz o contrário. A gente faz pelo processo estético, sensorial. A gente procura entender através dos sentidos e não através do raciocínio, não através da

palavra. Eu vou fazer, por exemplo, a encenação dos desejos das personagens. Não na vontade expressa verbalmente, mas no desejo. Então, no final, todas as personagens querem que a Violeta morra. Porque convém a todo mundo que ela morra. Só que todos chegam e dizem: ‘Você está cada vez mais linda. Olha como está saudável. Que bochechas rosadas, querida. Você há de viver muito. O médico disse que você está ótima!’ Na minha encenação, eles vão entrar na cena final trazendo o caixão, vestindo-a de morta, pondo-a no caixão, jogando flores e dizendo: ‘Você está linda!’ Fecham o caixão e levam-no. Toda a encenação será a do desejo, que é o que eles estão querendo mesmo. Então, vai haver uma dicotomia permanente. “Há uma outra cena em que o pai do namorado dela quer convencê-la a afastar-se do filho. Mas como é que esse cara vai convencer aquela mulher apaixonada? Ela não vai aceitar isso. Se aceita, alguma coisa está na cabeça dela. Então, tem uma técnica que é Tira da Cabeça. E o que é? Eu estou falando com você, aparentemente sozinho. Mas na minha cabeça tem meu pai, minha mãe, minha tia, minha avó, mil pessoas, que me dizem: ‘Vá por aqui. Não vá por ali.’ Quer dizer, os mortos nunca morrem em você. Os meus mortos vão morrer quando eu morrer. Enquanto eu não morrer, estão vivos aqui dentro. A técnica é teatralizar o que vai na cabeça das pessoas, numa

cena concreta e objetiva o que existe de subjetividade naquela ação. É uma técnica elaborada, complexa, mas, em termos gerais, você faz as imagens desses personagens que estão na sua cabeça, sem explicar quem eles são. Você trabalha teatralmente, conflitando essas imagens com você, as imagens entre elas. Nessa cena, vou fazer com que todos os personagens que estão na cabeça dela e dele se materializem. Posso fazer isso porque eu decido/penso assim. É terapia, mas é teatro. Não quer dizer que eu não possa dirigir espetáculos profissionais nos famosos teatrões como o Schauspielhaus. Dirigi muitas peças na Alemanha, na Áustria, na Noruega. Dirigi coisas que não tinham muito a ver com o meu teatro. Uma peça do Cortázar, que é até surrealista. Dirigi, em Ruperthal, a primeira montagem na íntegra – antes eram só duas cenas – de Público, peça do Garcia Lorca. Quando voltei para o Brasil não pude mais. Para dirigir na Europa, você precisa ficar pelo menos dois meses e meio. “Agora, o Teatro do Oprimido está no mundo inteiro. Para você ter uma ideia, no ano passado houve três festivais internacionais que aqui não repercutiram nada: na Escandinávia, na Áustria e na África do Sul. O movimento do Teatro do Oprimido é tão grande pelo mundo, que só na minha casa tenho 16 títulos sobre esse tema publicados por outras pessoas. Afora os meus, que já tiraram 22 edições.”

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A outra volta

O Corsário do rei

De volta à França, você dá aulas na Sorbonne até que o professor volte. Sem a Sorbonne e dando cursos pela Europa, é nomeado Presidente do Festival de Nancy e funda o Centro do Teatro do Oprimido, em Paris. Mas, nem mesmo sendo amigo pessoal do ministro Jacques Lang, você conseguiu subvenção para que o Centro se desenvolvesse. Então, em 1986, você volta para o Brasil. “Culpa do Darcy Ribeiro. O Jacques Lang fez um congresso internacional com 200 intelectuais do mundo inteiro. Ele queria saber como poderia ser a cultura num país socialista. Do Brasil, éramos eu, o Darcy e o Celso Furtado, para quem eu contava o que estava fazendo na França. O Darcy, que tinha acabado de ser eleito vicegovernador, ficou deslumbrado e me convidou para voltar, e garantiu condições de trabalho. Agora, veja: eu tinha saído do Brasil corrido, tinha saído da Argentina corridíssimo, de Portugal não foi corrido, mas foi um ‘vá embora!’ Eu estava bem instalado em Paris, vou largar? A gente demorou a decidir. Quando decidimos, já era 86, o último ano do mandato do Darcy Ribeiro. Realizamos o primeiro Projeto Ciep. As plateias lotavam. Como a gente fez um projeto de longo prazo, e o Darcy perdeu as eleições, o Moreira Franco não deu mais nem um tostão. Os grupos ficaram por aí, trabalhando por conta própria, em São Gonçalo, Niterói, Angra dos Reis etc. Em 90, a gente participou da campanha do Lula e fizemos a peça Somos 31 milhões e agora?’ Porque ele tinha perdido por cerca de um milhão de votos. Apresentamos, com a plateia intervindo. Depois, teve Terra e Democracia, do Betinho. Viajei pelo Brasil inteiro. Encontrei um país resignado, menos articulado e mais pobre.”

Afastado há anos, você não sabia como andava a vida cultural brasileira. Sentiu algum impacto na volta? “Encontrei uma hostilidade muito grande. Mal cheguei, levei uma porrada violenta. Fiz uma peça, O corsário do rei, sobre a invasão francesa, com músicas do Edu Lobo e letras do Chico Buarque. Nanini foi o protagonista. Espalharam que o governo estava gastando mais de 200 mil dólares com a peça. Acontece que o governo não gastou um centavo. Quem bancou foi o Zé Luís Reis e Wallace não sei o quê, do setor privado. Darcy promoveu, mas o governo não deu um níquel. Criou-se uma onda contra. Como se eu tivesse voltado da França com privilégios, com 200 mil dólares! A produção era gigantesca, canhões em cena, navios, 15 músicos, 30 atores. Eu não queria fazer um espetáculo imenso. Escrevi para arena, para ter mesas que se transformavam em barcos, as toalhas em velas. Está na rubrica. O meu psicanalista francês deu uma explicação genial: ‘Você fica todos esses anos na França, depois volta com um espetáculo sobre um corsário francês que pilhou o Rio de Janeiro. Te confundiram com o invasor.’ E foi o que aconteceu. Me chamavam de estrangeiro. Teve gente que disse: ‘A peça do Boal não reflete a realidade brasileira.’ Eu ia ver, estava em cartaz Neil Simon, um dramaturgo que nunca pisou no Brasil. Com essa porrada, eu fui fazer o Teatro do Oprimido, marginalmente. Não deu certo. Depois do Corsário, fiquei desencantado. Eu lembro que, às vezes, a gente ficava esperando que os atores viessem. Mas eles não vinham...”

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Vereador E de onde veio a ideia insólita de se candidatar a vereador? Eu jamais faria uma loucura dessas. O que deu em você? “Eu estava desenvolvendo um trabalho chamado Arco-íris do Desejo. Em 92, resolvemos ajudar o PT a ganhar as eleições municipais. Não havia a ideia de candidatura. Acho que ela começou nesse momento. Eu não queria porque viajava o tempo todo para fora do país. Mas surgiam argumentos favoráveis, além da possibilidade de poder convidar o elenco do Teatro do Oprimido para me assessorar. Na minha lembrança, eu tinha vergonha de entrar num palco para fazer discurso.” Lembro que fizemos uma reunião eleitoral lá em casa. Nunca vi candidato mais constrangido para pedir voto. “Morria de vergonha. Comecei a querer quando pensei: se for eleito, vai

ser a primeira vez que uma companhia de teatro inteira vai entrar para o poder legislativo. A campanha tinha muita militância e pouco dinheiro.” Mas, uma vez eleito, você cria um tal de Teatro Legislativo. O que é isso? “No começo, a gente não sabia como ia ser. Nós formamos mais de 50 grupos; 19 permanentes. Grupos de comunidades, grupos temáticos, de igrejas, universitários negros, homossexuais, mulheres da Penha. Eles faziam as peças, nós ajudávamos, sem meter ideias na cabeça deles. A peça era apresentada primeiro para a comunidade. Uns viam

as peças dos outros. Entendiam que não eram os únicos oprimidos. Alguém fazia a súmula das intervenções: o que eles mostraram, o que discutiram e o que queriam. As súmulas vinham para o gabinete, que tomava as providências; poderia ser a preparação de um projeto de lei. Nós preparamos 33. Promulgamos 13. É fantástico! Treze leis sancionadas! Todas originadas no Teatro Fórum. A mais complexa teve a colaboração de juristas e delegados: a lei de proteção às testemunhas, a primeira no Brasil. E tudo pinçado na comunidade. Foi uma experiência vitoriosa.” E revela um desejo de participação que não se via em outras atividades. “Aí é que está o segredo. O problema da participação política hoje está exatamente no verbo. Discursos, sobre quaisquer temas, não interessam a ninguém. A gente faz uma peça sobre a globalização chamada O trabalhador. Em média, umas 700 pessoas assistem. Se a gente fizer discursos sobre o trabalhador diante da globalização, desemprego etc., não vão nem dez pessoas. Se você chamar uma pessoa para fazer uma lei, ela vai dizer que não sabe. Se for para uma discussão, ela diz que não pode. Se for para fazer teatro, diz que não é ator. Na verdade, quando a gente chega tem todo um trabalho de sedução. Então, o cara vai descobrindo, na prática, que pode. É um processo que vai do lúdico para o técnico e não do técnico para o lúdico.”

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A derrota Foram quatro anos produtivos para a comunidade e para o Centro do Teatro do Oprimido. Você acha que foi um excelente mandato e uma experiência vitoriosa. A que atribui a derrota na reeleição? “A gente nunca sabe por que não é reeleito. Mas eu atribuo a duas razões principais. A primeira foi a certeza de que seria reeleito. A eleição tem uma lógica, é quase uma ciência. Demoramos a decidir se íamos tentar a reeleição. Um político entra num mandato já planejando a reeleição. A gente também não teve malícia eleitoral de ir a um lugar e deixar o carimbo: ‘Esse trabalho tem um nome ao qual vocês ficam devendo o favor de votar.’ Nós contamos com a existência de algum exercício de cidadania, que não existe. A gente não trabalhava com formadores de opinião, trabalhava com a comunidade, que não era um multiplicador. A empregada não explica à patroa.” Você foi votado pela classe artística e cultural. Conquista um instrumento de poder municipal, cria o Teatro Legislativo, beneficiando despossuídos, mas não conquista a cabeça política deles. Pegando esse quadro desde a volta para o Brasil, a relação com a classe artística, com o quadro de políticos que você passou a conhecer e, por fim, não ser reeleito. Que avaliação você faz disso tudo? “Eu sei que vou continuar. Não sei até quando. Vou fazer 70 anos no devido tempo. Todo ano vou ao médico, ele diz que está tudo bem. Eu fui fazer Teatro Legislativo em Londres. Para mim tudo é continuidade.”

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Cultura Para tentar localizar algumas de suas razões, como você vê as leis de incentivo à cultura? “Em todos os tempos, sempre houve esta tentativa. Quem tem poder, quer exercê-lo hegemonicamente. Sempre foi assim. O maior que os outros quer ser hegemônico e globalizante. Hitler queria um império de mil anos. César, não tendo computador, demorava mais. Era mais lenta a ocupação do resto do mundo. Agora, mudam os métodos; as ideias, não. O que a gente está vendo é pior ainda por causa da rapidez. Veja a arte, por exemplo: a cultura foi privatizada. “Há dois anos houve uma reunião na Federação das Indústrias do Rio. Diante do ministro da Cultura, um empresário agradeceu porque, finalmente, ‘poderemos escolher os nossos artistas’. Isso me apavorou. No começo da minha carreira, eram as Comissões de Teatro – artistas, jornalistas, representantes do governo – que escolhiam os projetos que seriam subvencionados. Havia debate. Depois que ouvi o empresário, passei a me perguntar: ‘Será que o

Centro de Teatro do Oprimido, no Rio de Janeiro

gosto para escolher os ingredientes da feijoada serve para comprar o teatro? Qual será a companhia de pastas italianas que irá patrocinar A ralé, do Gorki, uma obra-prima da humanidade? Quando se privatizou a cultura, pôs-se o artista a serviço da marca registrada. O patrocinador está interessado em entretenimento. Em inglês tem até uma palavra diferente para ator e entertainer, que não é um artista. É alguém que faz coisas divertidas. O desmerecimento do autor faz parte do processo. É ele quem dá o conteúdo do pensamento. Pensamento traz decepção, dúvida. A dúvida traz a busca. E, para mim, teatro é quem escreve e quem interpreta. O artista sempre escapou dessas armadilhas. Mas o atual governo completou o processo, que veio do Sarney. Antes, podia-se exigir, debater, protestar. Hoje, quem vai dizer a um empresário: ‘Meu projeto é ótimo, o senhor tem que patrociná-lo.’ Ele, no máximo, dirá: ‘Não dou; o dinheiro é meu.’ Ele tem o direito de negar. O governo tinha que explicar por que negava.

Com a cultura privatizada, o artista só briga pelos seus interesses. A arte dele já não está à altura do país.” Eu temo que haja uma perversão mais profunda, o descompromisso do Estado com a cultura. Não se entende que o papel do Estado não é paternalizar o artista. É comprometer-se com o cidadão. Política cultural não é dar dinheiro a artista. É garantir o acesso ao cidadão. Se você não tem isso, se o Estado não entende a sua função como agente de desenvolvimento social... “Então, você vai fazer televisão e engordar sua conta bancária. Você fica com um teatro milionário, que é subproduto da televisão, onde as pessoas estão milionárias. E é um teatro miserável. A mentalidade do que se faz, na média geral, é deplorável. Fazem caça-níquel já tendo a produção paga. É a maior perversão. Se você faz caça-níquel porque está duro, tudo bem. Olha essa conversa está esvaziando a minha autobiografia. Estou com medo de quando lançar o livro o pessoal dizer: ‘Pô, já li isso em algum lugar!’”

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O lavrador do mar Morte E a vida, Boal? Tantas peripécias, a vida nos prega! Quantas outras, o Brasil nos esfrega. Aristóteles dizia que a vida é curta, longa é a arte. Você acha que a arte é um chamamento inexorável? Ligando passado e futuro, como você sintetiza o cidadão, o homem e o artista Augusto Boal? “Eu não sou o Bolívar. Não tenho a menor pretensão de parecer com ele. Mas numa coisa eu pareço. Ele falou que era um lavrador do mar. Lavra-se uma onda, mas tem sempre outra se aproximando. Estou chegando à conclusão de que a vida é mais ou menos por aí. Eu sou um lavrador do mar. Moro em cima do mar, quando olho, vejo que vou ter que lavrar tudo de novo... Mas, tem tanto lavrador do mar no Brasil, gente tão boa, maravilhosa, fazendo coisas. Nós somos um bando de lavradores do mar.” Eram seis horas da tarde quando encerramos a conversa. Olhamos pela janela dos altos do Teatro Glauce Rocha e, em silêncio, vimos lá embaixo o formigueiro de pessoas saindo apressadas do trabalho e se acotovelando para entrar no ônibus e ir para casa. A impressão era de que são poucos para lavrar aquele mar.

Na tarde fria de 2 de maio de 2009, pouco mais de nove anos depois da nossa conversa, recebi a notícia de que Boal havia partido. Fui tomado de uma tristeza silenciosa, não apática. Pensei que as lutas sociais e políticas o afastaram da expressão convencional da arte, e, ao sair de cena, deixava o palco triste, não vazio. Numa arte que tem o homem como sujeito, instrumento e objeto, Boal se perpetuará nos milhões de discípulos mundo afora. Mais que artista, foi um mestre. Assim como a grande obra de arte traz em si a discussão da sua própria gênese, a arte do mestre discute novas pedagogias de revelação do homem, da sociedade e do mundo. Morto, não deixa obra imortal, fica a memória do artista e o caminho que escolheu, que revela aos cidadãos o opressor, e às pessoas a opressão introjetada.

Viva o mestre Boal! Alcione Araújo Maio, 2011

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RENATO DE AGUIAR

Casarรฃo do Centro do Teatro do Oprimido, na Lapa, Centro do Rio de Janeiro


“Através do

teatro se enxerga melhor a vida” O Teatro do Oprimido rompendo barreiras Olga de Mello

Há quatro décadas, a intervenção teatral transformadora da realidade proposta por Augusto Boal surgia como resposta direta às situações opressivas de limitação das liberdades no Brasil. Desde então, o Teatro do Oprimido rompe barreiras sociais, econômicas e geográficas, globalizando a intervenção social com sua metodologia, que, hoje, alcançou mais de 70 países em cinco continentes. “O foco de Boal era a disseminação do método, capacitando os mais diferentes grupos de pessoas que sofrem opressão, sejam elas pacientes soropositivos, trabalhadores sem-terra ou vítimas de violência doméstica. O método é sempre igual. O que muda é a temática, partindo da necessidade de cada

grupo descobrir soluções para minimizar ou eliminar o sofrimento”, diz Helen Saparek, coordenadora-geral do Centro do Teatro do Oprimido (CTO). A metodologia começou a ser disseminada por Augusto Boal em plena ditadura militar no Brasil, quando a interação dos artistas com o público buscava não apenas uma reflexão sobre a situação, mas sua modificação,

lembra Helen. “Boal acreditava que todo ser humano é um ser teatral e que através do teatro se enxerga melhor a vida. Quando o conheci, quase 20 anos depois, eram outros tempos, mas a metodologia do TO continuava sendo aplicada, causando o mesmo impacto inicial, já que a opressão se apresenta de maneira diferente em qualquer época”, observa Helen.

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GEO BRITTO

“No mundo todo, os grupos de TO são formados por pessoas que acreditam no uso da arte para melhorar a qualidade de vida”

RENATO DE AGUIAR

Helen Saparek

Helen Saparek, coordenadora-geral do CTO

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O CTO ocupa um casarão na Lapa, no Centro do Rio de Janeiro, onde oferece cursos para divulgar a prática da metodologia criada por Augusto Boal. Segundo Helen Saparek, a instituição conseguiu, em 25 anos, cumprir o que seu fundador ansiava, tornando-se um centro internacional de formação das técnicas do Teatro do Oprimido. “Vem muita gente de outros países para se tornar multiplicador de TO. Aqui e em quase todos os lugares, quem faz Teatro do Oprimido não tem formação artística, vem da meio sindical, da área de saúde mental, dos movimentos sociais e ambientalista. O método não foi feito para atores profissionais. No mundo todo, os grupos de TO são formados por pessoas que acreditam no uso da arte para melhorar a qualidade de vida”, explica Helen. Atualmente, o Centro do Teatro do Oprimido subsiste da receita obtida com as oficinas de capacitação, que têm alunos das mais diversas origens, de professores a agentes penitenciários. Em todas as regiões do país há pessoas trabalhando com

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técnicas de TO, aplicadas em grupos sociais distintos, de quase todas as faixas etárias, incluindo crianças acima de 10 anos de idade. “É necessário ter alguma compreensão do real para a aplicação das técnicas. Crianças pequenas até podem participar dos jogos, mas não levantarão a discussão política. Meninos de 10 a 12 anos já conseguem aproveitar o TO, abordando problemas como o bullying e o preconceito”, esclarece Helen, enfatizando que as apresentações de Teatro do Oprimido, embora determinadas pelos interesses do público, exigem preparo e enquadramento nas propostas do método. “A técnica é simples e adaptável, porém é preciso ter objetivos delineados para alcançar os resultados. Boal, que era uma pessoa deliciosa, solidário e generoso a ponto de afirmar que sempre dependia do outro para construir qualquer obra, primava pela disciplina e responsabilidade. O improviso teatral é calculado, sempre. Qualquer projeto que montamos requer estudo, planejamento e embasamento teórico. Estamos sempre prontos a mudar o tema. Por exemplo,


HELEN SAPAREK

80% dos grupos de mulheres querem discutir machismo e violência doméstica, mas, em determinado dia, encontramos uma senhora que está mais incomodada com o esgoto correndo a céu aberto na porta de sua casa. O grupo de TO tem que conhecer um pouco daquela realidade antes de propor a transformação da realidade na montagem teatral”, afirma Helen Saparek. Ao longo dos anos, o Teatro do Oprimido se apresentou sob diferentes gêneros, sempre visando à interação da plateia. A primeira manifestação do TO foi o Teatro Jornal, uma resposta à censura do início dos anos 1970. Na época, fatos censurados eram mostrados por atores em absoluto silêncio. Ainda hoje a técnica é usada para denunciar e explicar as manipulações nos meios de comunicação. Atualmente, a técnica mais empregada no mundo todo é o Teatro Fórum, que derruba as barreiras entre palco e plateia, conclamando o público a dialogar sobre seus problemas, a fim de encontrar soluções. O Teatro Imagem, que dispensa a utilização de palavras, leva o público a compreender o problema

Processo de construção do Ser Humano no Lixo (Projeto TO nas Escolas, RJ)

ANDRÉA CEBUKIN

Processo de construção da Bandeira Coletiva (Projeto TO nas Escolas, RJ)

Ser Humano no Lixo e Bandeira Coletiva expostos (Projeto TO nas Escolas, RJ)

pela leitura da linguagem corporal. A técnica Arco-Íris do Desejo trata de questões pessoais, como traumas de infância, aliando a metodologia TO a procedimentos psicanalíticos. A técnica que condensaria outros gêneros e foi praticada por Augusto Boal quando se elegeu vereador pelo Rio de Janeiro era a do Teatro Legislativo, que recolhe os anseios do público e procura sua realização política, o que ele conseguiu com a aprovação de 13 projetos de lei.

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E N S A I O

Boal, ser em nome do Maria Luiza Franco Busse

Os gregos não faziam teatro para entreter. Era para representar a tragédia da vida, o bode da existência. “Há muitas maravilhas, mas nenhuma é tão maravilhosa quanto o homem (...) e nada o surpreende sem amparo; somente contra a morte clamará em vão por um socorro, embora saiba fugir até de males intratáveis”, declama o Coro de Antígona, peça de Sófocles. Como todos os mortais, Augusto Boal estava certo de seu destino, só também não sabia como, onde e quando ele iria se dar. Na madrugada de 2 de maio de 2009, o criador do Teatro do Oprimido morreu no Rio de Janeiro. Tinha 78 anos de idade e 50 de militância artística, 23 dos quais dedicados a construir espaço junto com os que não encontravam lugar para suas histórias, aspirações e desejos. “Não é possível defender a multiplicidade cultural por meio de uma única estética”, afirmava o carioca nascido no subúrbio da Vila da Penha, filho de padeiro e de dona de casa. O teatro de Boal nasceu apostando na alquimia política da transformação a partir da mistura de arte e ação social. Formado em Engenharia Química pela UFRJ, em 1950 foi fazer especialização na Universidade de Colúmbia, Estados Unidos, onde também se inscreveu na School of Dramatics Arts, na mesma Universidade, e cursou direção e dramaturgia. De volta ao Brasil seis anos depois, passou a fazer parte do Teatro de Arena de São Paulo, a convite de Sábato Magaldi e José Renato, recém falecido. Seu primeiro trabalho como diretor, na peça Ratos e homens, de John Steinbeck, recebeu o prêmio Revelação da Associação Paulista de Críticos de Artes. Seus biógrafos e estudiosos são unânimes em reconhecer a importância de Boal na opção ideológica de esquerda tomada pelo Arena.

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Como criatura maravilhosa, sabia fugir dos males intratáveis. Preso, torturado e exilado pela ditadura que maltratou o país, em 1971 Boal pegou a família, Cecília e as crianças, e viajou pela Argentina, Peru, Equador, Portugal, até chegar a Paris em 1978, onde se estabeleceu e criou o Centre d’étude et diffusion des techniques actives d’expression (Ceditade). De volta do exílio trouxe a prática e a fundamentação teórica do seu Teatro do Oprimido, que fundou no Brasil em 1986. Sua arte de incluir para transformar está hoje em mais de 70 países. O Ministério da Cultura e da Comunicação da França o condecorou Officier de l’Ordre des Arts et des Lettres e, em 2009, a Unesco o nomeou Embaixador mundial do Teatro. Na Declaração de Princípios da Associação Internacional do Teatro do Oprimido, uma definição do encontro entre arte e vida em que Boal enxergou um modo de humanizar a humanidade: “O Teatro do Oprimido está sendo usado em dezenas de países de todo o mundo, aqui relacionados em Anexos, como um instrumento poderoso para a descoberta de si mesmo e do Outro; para clarificar e expressar os desejos dos seus praticantes; como instrumento para modificar as causas que produzem infelicidade e dor; para desenvolver todas aquelas características que trazem a Paz; para respeitar as diferenças entre indivíduos e grupos; para a inclusão de todos os seres humanos no Diálogo necessário a uma sociedade harmoniosa; finalmente, também está sendo usado como instrumento para a obtenção da justiça econômica e social, que é o fundamento da verdadeira Democracia. Em resumo, o objetivo mais geral do Teatro do Oprimido é o desenvolvimento dos Direitos Humanos essenciais”.


humano

Teatro do Oprimido no Teatro Cacilda Becker, Rio de Janeiro ACERVO FUNARTE

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Boal e o Centre d’étude et diffusion des techniques actives d’expression (Ceditade), Paris, França

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FOTOS: ACERVO FUNARTE

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HELEN SAPAREK HELEN SAPAREK

HELEN SAPAREK

Exposição da Estética do Oprimido – Projeto TO de Ponto a Ponto, Minas Gerais

Bandeira Coletiva – Projeto TO de Ponto a Ponto, Distrito Federal

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BÁRBARA SANTOS

Processo de construção da bandeira individual – Projeto TO de Ponto a Ponto, Angola

Ser Humano no Lixo – Projeto TO nas Escolas, Rio de Janeiro


FABIAN BOAL

BÁRBARA SANTOS

Ser Humano no Lixo – Projeto TO de Ponto a Ponto, Rio de Janeiro

BÁRBARA SANTOS

OLIVAR BENDELAK

Exposição da Estética do Oprimido – Projeto TO de Ponto a Ponto, Maputo, Moçambique

BÁRBARA SANTOS

Ser Humano no Lixo – Projeto TO de Ponto a Ponto, Bahia

Ser Humano no Lixo – Projeto TO de Ponto a Ponto, Guiné-Bissau

Ser Humano no Lixo – Projeto TO de Ponto a Ponto, Rio Grande do Sul

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FOTOS: REJANE MARCELINO

Coisas do gênero, espetáculo do Centro de Teatro do Oprimido, com direção de Helen Sarapeck. Angra dos Reis/RJ

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CAROLA PAGANI CAROLA PAGANI

É melhor prevenir que remédio dar, espetáculo com Grupo Pirei na Cenna

A princesa e o plebeu, espetáculo com o Grupo Arte Vida

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CAROLA PAGANI

ADRIANA MEDEIROS

Andanza, com a Compañía Puertorriqueña de Danza Contemporánea e direção de Rosa Luisa Márquez e Antonio Martorell, San Juan, Porto Rico, 2002

Quando o verde dos seus olhos se espalhar na plantação, espetáculo com o Grupo Marias do Brasil

Vicios, espetáculo com o Grupo Artemanha

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FOTOS: ROBERT VILLANร A

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Boal e o Centre d’étude et diffusion des techniques actives d’expression (Ceditade), Paris, França

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FOTOS: RENATO DE AGUIAR

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Memória à deriva Cecília, viúva do diretor, luta para que o Instituto Augusto Boal consiga manter seu acervo no Brasil Olga de Mello

Fotografias, cartazes, recortes de jornais, diplomas, além de fitas de vídeo com entrevistas e gravações de cursos e oficinas – registros e documentos, informais ou oficiais, da carreira de Augusto Boal – se amontoam em dezenas de caixas no apartamento onde ele viveu com a mulher Cecília, no Arpoador, na Zona Sul carioca, à espera de recuperação. Depois de ter parte catalogada pela Universidade do Rio de Janeiro (Uni-Rio), o material poderá ser incorporado ao acervo da biblioteca do Instituto de Teatro da Universidade de Nova York, ainda este ano. Cecília Boal prefere que o acervo permaneça no Brasil, mas não vê como obter recursos da ordem de R$ 500 mil apenas para a digitalização. “A Fundação Darcy Ribeiro se empenhou em conseguir financiamento, sem sucesso. O Instituto

Moreira Salles também pretendia digitalizar as fotografias, mas não tinha verba. E a Uni-Rio, que tem curso de Teatro e estava interessada em guardar o material, também não dispõe sequer de instalações adequadas, como salas com refrigeração, para abrigar os arquivos”, conta Cecília, que enfatiza os esforços das três instituições para preservar o acervo. Neste mês de julho, uma equipe de técnicos da Universidade de Nova York virá examinar o material coletado ao longo de mais de 50 anos por Boal. O contato com Cecília foi feito através de Doug Peterson, um professor de teatro da Universidade de Nebraska, que anualmente promove um encontro de pedagogos sobre Teatro do Oprimido. Peterson conversou sobre o acervo com a diretora do curso de teatro da Universidade de Nova

Cecília Boal REVISTA DE TEATRO

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York, Diana Taylor. A biblioteca da entidade tem um setor dedicado ao teatro latino-americano. “Diana falou comigo pouco depois da morte do Augusto. Mas naquela época eu não estava com cabeça para pensar no que fazer com as caixas. Agora, eles voltaram a me procurar. Por mim, nada sairia do Brasil, mas não vejo como manter tudo aqui. Os americanos já disseram que me devolverão o que eu quiser. Eles têm condições técnicas extraordinárias para criar um arquivo Augusto Boal aberto ao público”, explica Cecília Boal. Houve um tempo em que Cecília imaginava ser possível recuperar o material por conta própria e com doações dos amigos. O filho Fabian passou algumas fitas de vídeo para DVD e foram trocadas algumas molduras de quadros. “Logo percebemos que seria impossível verificar o que há de importante em mais de 50 caixas de recortes de jornais. É muito papel correndo o risco de perecer rapidamente, devido à proximidade do mar”, observa Cecília.

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Cuidar do acervo seria uma das atribuições do Instituto Augusto Boal, uma entidade que iniciou suas atividades, oficialmente, em março, com duas homenagens – uma no Rio, outra em São Paulo – aos 80 anos que o dramaturgo completaria este ano. Presidido por Cecília, o Instituto tem um escritório em Botafogo e o objetivo de preservar e divulgar a obra de Boal. “Hoje só existe uma sede administrativa, mas o ideal é que o Instituto seja um lugar vivo, ofereça diversas atividades, promova debates, cursos e apresentações de música. Não pretendemos que se enquadre apenas nas características de um centro cultural, e sim que se movimente com o dinamismo que sempre caracterizou a personalidade do Augusto”, diz Cecília. Enquanto o Instituto não se expande fisicamente, já existem projetos para valorizar como um todo a carreira de Boal, mostrando o que ele fez antes do Teatro do Oprimido, que, segundo Cecília, hoje é visto, praticamente, como sua única obra. Enfatizando que não pretende desmerecer a importância e o alcance do Teatro do Oprimido, Cecília Boal teme que a projeção da técnica tenha


esvaziado o conteúdo político e literário do teatro do marido. “Como Augusto queria, o Teatro do Oprimido tomou rumo próprio. No entanto, não é justo que toda a trajetória dele seja esquecida em função do Teatro do Oprimido. Boal foi um autor talentoso, o principal diretor do Arena. Mas está na hora de resgatarmos outras realizações dele, como a Feira Paulista de Opinião, de 1968, um espetáculo que reuniu autores de diferentes áreas tratando da situação do país na época, entre eles o Lauro César Muniz, Gianfrancesco Guarnieri, Jorge Andrade e Plínio Marcos. É um depoimento teatral com textos curtos, que merecem ser republicados e apresentados para quem não viveu aquela época”, acredita Cecília.

Entre os mais de 20 livros escritos por Augusto Boal, dois são autobiográficos: Milagre no Brasil, lançado em 1977, e Hamlet e o filho do padeiro, publicado em 2000. “O primeiro foi publicado pela Codecri e está esgotado. O Instituto deverá tratar de relançar esses títulos. Os livros do Augusto sobre teatro têm uma imensa procura, mas esses, que falam de suas origens, do que o levou a criar um teatro comprometido, político, ideológico, também interessam a seus leitores. Boal era um escritor cuidadoso, que amava a palavra, levantava o público quando fazia conferências. Mostrar esses outros lados é fundamental, para que ele não passe à história apenas como alguém que teve uma boa ideia”, diz Cecília.

“Como Augusto queria, o Teatro do Oprimido tomou rumo próprio. No entanto, não é justo que toda a trajetória dele seja esquecida em função do Teatro

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do Oprimido“

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E P Ă? L O G O

Desenho de Lula




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