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Miguel Pavão, bastonário da Ordem dos Médicos
Falamos com...
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Quatro meses depois de ter assumido as “rédeas” da Ordem dos Médicos Dentistas (OMD),
Miguel Pavão constata que uma estrutura que manteve os mesmos ciclos de governação e liderança durante 20 anos “demora bastante tempo” a gerar uma nova agenda e modo de atuar. O novo bastonário considera, porém, que a OMD já começou a mostrar sinais da prometida mudança, e aproveita o embalo para lançar um apelo a toda a classe profissional no sentido de “ser parte ativa” do processo (de viragem) em curso. Na primeira entrevista que concede à MAXILLARIS desde que iniciou o seu mandato, o versátil médico dentista - que no passado recente fundou e presidiu a organização de voluntariado Mundo A Sorrir - faz o ponto da situação das grandes questões que marcam a atualidade da profissão: dos danos da pandemia ao deficiente panorama da saúde oral em Portugal, passando pelo desfazamento do número de licenciados ou a complexa reconversão do congresso deste ano num evento virtual e imersivo, entre outros temas.
Comecemos pela pandemia: que medidas e/ou apoios fundamentais considera que ainda estão por tomar (pelas entidades competentes) para mitigar os danos provocados pela atual crise de saúde pública na classe dos médicos dentistas?
Desde logo, mostrar que os médicos dentistas sempre se manifestaram, que deviam ter sido priorizados pelas vacinas da gripe sazonal. Tal foi pedido atempadamente em agosto e inicialmente foi-nos indicado que seria possível, mas tal não se veio a confirmar. Apenas os médicos dentistas que estão inseridos no Serviço Nacional de Saúde (SNS) estão contemplados. Para nós, esta é uma das medidas que deveriam ter contemplado obrigatoriamente os médicos dentistas e soubemos à posteriori que os lotes de vacinas disponíveis e adquiridas no mercado internacional são negociadas com um ano de antecedência. Já assumimos o nosso compromisso de não deixar de lutar por este direito no próximo ano. Por outro lado, era importante também que os médicos dentistas fossem sempre integrados naquilo que são as campanhas dos profissionais de saúde porque o nosso contributo tem sido sempre solidário e de colaboração, de tentar ajudar no combate à pandemia.
A proteção individual dos profissionais de saúde oral face ao novo coronavírus é uma questão que já está devidamente assegurada ou ainda suscita alguma preocupação no seio da OMD?
A questão dos EPI mostra como os médicos dentistas se sabem proteger e se sabem defender daquilo que era um vírus com um potencial de exposição e de risco considerado muito elevado para a nossa classe profissional, pela proximidade com os pacientes e por trabalharmos também nas vias respiratórias, e neste caso mais concretamente na via bucal. Passados sete meses do início da pandemia, sabemos que a nossa confiança e a taxa de infeção nos médicos dentistas tem sido realmente muito baixa (menos de 0,5%). No entanto, pela especificidade e o caráter completamente novo deste vírus há ainda muito para se descobrir, quanto à sua propagação, permanência e latência. Neste sentido, há que ir acompanhando permanentemente a investigação científica para que os médicos dentistas possam estar devidamente informados e adaptar sempre a melhor das suas eficácias. Ao fim de sete meses, a nossa proteção individual está muito mais robusta, com muito mais certezas, com uma confiança muito maior do que foi obviamente no início. Por outro lado, estamos preocupados relativamente à garantia das reservas logísticas dos EPI e por isso fazemos um apelo à classe para que se prepare para períodos que possam eventualmente ser mais difíceis em termos de acesso aos equipamentos de proteção individual, com reservas logísticas e de stock. E também à preocupação de continuar a haver muita especulação para os preços que são pedidos por estes materiais.
Ainda no contexto pós-Covid-19, tem defendido novas soluções e mudanças nos programas de saúde oral que estão sob a alçada da Direção-Geral da Saúde. Quais são os fundamentos desta sua tomada de posição?
A Covid-19 e a pandemia vão-nos obrigar a mudanças, desde logo a obrigatoriedade de gerirmos melhor os recursos que temos e, nesse sentido, é fundamental que se reavaliem e redesenhem as políticas de saúde oral. O cheque-dentista é exatamente uma dessas medidas. É preciso garantir uma eficiência maior, que não tem sido conseguida até à data. A saúde, e neste caso a saúde oral, tem enorme importância nesta pandemia. É essencial priorizar as políticas e o investimento em saúde. É uma lição que a Covid-19 nos trouxe e que será certamente uma aprendizagem. Não podemos descurar a saúde nem podemos descurar os profissionais de saúde. Acima de tudo, não podemos também subvalorizar o fator das carreiras e da progressão dos profissionais de saúde e dos médicos dentistas. Os profissionais de saúde têm de estar alicerçados naquilo que são carreiras e progressões na sua atividade profissional. Neste sentido, aquilo que tem sido o nosso apelo é que se aproveite o momento crítico e agudo que vivemos durante a pandemia para uma aprendizagem que permita definir uma nova estratégia. Tem sido este o nosso grande apelo.
Quatro meses depois de ter assumido o cargo de bastonário, presumo que já teve tempo de “arrumar a casa”. Considera que a “engrenagem” da OMD já se adaptou à sua forma de trabalhar?
O tempo de “arrumar a casa” é contínuo e faz-se em todo o mandato. São quatro anos em que se define e consolida uma estratégia e um programa de ação para o quadriénio. Obviamente que numa estrutura como a OMD, que não mu-
O novo bastonário da OMD tomou posse no passado mês de julho, em Braga, numa cerimónia marcada por restrições impostas pela pandemia.
dou os seus ciclos de governação nem as suas lideranças durante 20 anos, demora bastante tempo para criar uma nova agenda e uma nova forma de atuar. No entanto, diria que a OMD já começou a mostrar sinais desta prometida mudança e diria, também, que na forma de trabalhar todos os dias há um crescendo. Não há uma situação já definida, mas há uma situação de evolução permanente e não há um limite com o qual nos devamos satisfazer. Queremos manter uma situação de evolução permanente ao longo deste mandato e não nos satisfazemos apenas por já termos mudado algumas coisas.
À margem da atual conjuntura de pandemia, que tarefas prioritárias traçou para esta fase inicial do seu mandato?
É impossível fugir ao impacto da pandemia até porque nos obriga a estar focados em muitos aspetos que outrora não estaríamos. Nomeadamente questões novas como a integração de médicos dentistas na Linha SNS 24, como um contributo numa postura sempre permanente daquilo que é o reforço para a pandemia. Mas à margem da pandemia, não podemos esquecer que há situações que seriam de normalidade, como é o caso do congresso que, este ano, trouxe um esforço adicional a toda a Ordem dos Médicos Dentistas, desde a Comissão Organizadora ao Conselho Diretivo e à Comissão Científica, para que nos adaptássemos a uma nova realidade. Contudo, sublinho que todas as prioridades são dadas para a reflexão de temas que outrora não eram tão discutidos, nem eram tão prioritários. Desde logo, a qualidade do ensino na profissão, nomeadamente com entidades como a A3ES (Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior), temos uma postura mais próxima com a Direção-Geral do Ensino Superior, onde a OMD está preocupada relativamente ao futuro da profissão. A área da fiscalização e inspeção em saúde, nomeadamente com o IGAS e ERS, que são fundamentais a estreita relação com a OMD. Depois, há áreas como a sustentabilidade ambiental, que outrora não eram trabalhadas, nem faladas e com as quais queremos também já priorizar. E também naquilo que são outras áreas de intervenção, nomeadamente, com aquilo que é a reflexão sobre os seguros, a gratuitidade, a subvalorização do ato médico. Criámos grupos de trabalho que estão já definidos e em campo, a produzir documentos para priorizar áreas que são pontos fortes do nosso mandato.
Definiu como objetivo global do seu programa “mudar o rumo da profissão”. Em que medida este desígnio já está a ser (ou vai ser) levado à prática?
Está a ser levado à prática desde o primeiro momento. Não se muda o rumo da profissão apenas carregando numa tecla ou num botão mágico, como se fosse um ato simples. Faz-se por pequenas medidas, pequenas posições, pequenas inter-
Para Miguel Pavão, os profissionais de saúde têm de estar alicerçados naquilo que são carreiras e progressões na sua atividade profissional.
venções, que no seu todo resultam numa mudança global de paradigma. Precisamos que cada colega, médico dentista, o faça também, seja parte ativa desta mudança. Desde a nossa tomada de posse isto ficou bem vincado: aquilo que são a fundamentação de alguns regulamentos, a introdução de novas propostas, nomeadamente de criarmos intervenções de competência linguística, de criarmos novas áreas de intervenção, de termos uma postura mais próxima da classe, com a integração da Via Verde Bastonário, com a possibilidade de termos uma proximidade e disponibilidade constante à classe, de respostas com entidades parceiras e a nível da administração governativa. Este é um tempo em que se começa a mudar o rumo da profissão, mas que não se muda em apenas dois ou três meses, há um mandato para cumprir, há uma nova tónica para o exercer. Este desígnio está a ser levado à prática desde o primeiro dia, mas que é naturalmente um processo contínuo.
É preciso mostrar que este excessivo número de licenciados não serve nem Portugal, nem os portugueses
Quais são as suas expectativas relativamente à edição 2020 do congresso da OMD, tendo em consideração o inédito formato virtual que foi adotado?
Num ano de pandemia em que houve periodos únicos, excecionais e de grande dificuldade para toda a classe, em que os médicos dentistas sofreram consequências muito diretas, este congresso é um ato de esperança e de otimismo para contrariar as consequências negativas deste ano. É uma atitude de quem não desiste e de quem não baixa os braços. As expectativas são positivas, até à data (mês prévio ao congresso), já temos cerca de 2.500 médicos dentistas inscritos e 300 assistentes dentários, há quase 20 empresas a colaborarem na Expodentária, um congresso em língua portuguesa, a valorizar os laços culturais e as relações entre a comunidade da CPLP e a valorizar a saúde oral em Portugal, num periodo que é difícil. Demonstra uma atitude de não ser um ano perdido. É um ano em que nos devemos readaptar, tornar mais flexíveis e aceitar algumas mudanças. Como se costuma dizer, em periodos em que os ventos são contrários há quem desista e luta contra o vento e há outros que ajustam as velas para o vento a favor. Foi isso que a OMD fez, adaptar as velas para novos ventos, novas tendências e não esmorecer. Teremos um congresso presente de novembro até fim de janeiro de 2021, uma vez que os conteúdos estarão disponíveis para todos os inscritos até essa data.
Qual é o ponto da situação relativamente à criação da carreira de médico dentista na Administração Pública?
Este é um ponto muito importante para nós. Neste momento e até à data do congresso não nos vamos pronunciar porque temos estado em conversações com a tutela e vamos deixar para o pós-congresso aquilo que será a posição da OMD e ainda a minha enquanto bastonário. Não me quero precipitar, mas jamais deixarei de falar aquilo que será a verdade e as expectativas criadas por uma carreira que há muito tempo é ambicionada, que foi prometida em capas de jornais e que até à data não há sinais dela. Deixaremos para uma próxima oportunidade esta resposta.
Os anos passam sem que haja uma solução para um velho (e persistente) problema: o excessivo número de licenciados em Medicina Dentária. Qual é a sua proposta para contornar esta questão?
A primeira abordagem é perceber e identificar se este é ou não um problema. Até ter chegado à OMD este não era um problema assumido. Para a atual OMD, o excessivo número de licenciados, mais do que um problema, não é só identificá-lo como um problema, é dizer que ele não está a trazer soluções à população portuguesa. Não é por aumentarmos o número de médicos dentistas que estamos a melhorar o acesso e as condições de saúde oral em Portugal. Bem pelo contrário. Começamos a ter situações de concorrência que põem em causa a saúde pública. A proposta aqui é se este é ou não um assunto sobre o qual a OMD se deve responsabilizar também. Esta OMD assume que este é certamente um assunto em que ela tem uma palavra a dizer e que não pode deixar as decisões à tutela, nomeadamente ao Governo, ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. É preciso mostrar que este excessivo número de licenciados não serve
A equipa liderada por Miguel Pavão pretende manter uma situação de evolução permanente ao longo deste mandato.
nem Portugal, nem os portugueses. Está desfasado de outros países europeus, países europeus bem mais evoluídos, com uma riqueza muito maior, com índices de desenvolvimento societal mais privilegiados e desenvolvidos que Portugal. Países que não têm este rácio tão desigual relativamente à Medicina Dentária e a bastantes profissionais de saúde. É preciso uma reflexão profunda e começar a criar uma agenda com uma visão prospetiva relativamente ao futuro da profissão e àquilo que é uma mudança também dos cuidados de saúde, em que os profissionais de saúde que se formam hoje têm que estar preparados para o futuro e não com uma visão do passado e com uma estratégia que já não corresponde nem ao presente atual e muito menos ao futuro.
Que respostas preconiza para resolver os problemas de precaridade (p.e. em situação de subemprego, formação desvirtuada) e as práticas abusivas de publicidade, que também afetam os profissionais do setor?
Vamos separar estes dois assuntos porque são questões diferentes. Começando pelas práticas abusivas de publicidade, estamos a falar de práticas que devem estar reguladas, nomeadamente por aquilo que é a Lei da Publicidade em Saúde e em que os Conselhos Deontológico e de Disciplina das ordens profissionais, nomeadamente da OMD, têm que começar a atuar em duas vertentes, numa ação preventiva, numa ação de sensibilização aos médicos dentistas para que eles próprios percebam os limites e o fundamento para estas práticas abusivas de publicidade. E, por outro lado, numa ação disciplinar de forma concreta sobre quem incorre nestas práticas abusivas de publicidade. Outro assunto tem a ver com os problemas da precariedade e aqui, o tema não pode ser dissociado da má formação, da perda de qualidade do ensino, do excessivo número de médicos dentistas. Esta situação de subemprego também surge por uma situação de pouca sustentabilidade profissional e de pouco apoio ao nível da inserção no mercado de trabalho. É fundamental pensar-se também nas condições laborais às quais os médicos dentistas estão sujeitos. É preciso também que a OMD não se misture com instituições que têm essa competência, que a OMD não tem, nomeadamente, sindicatos, associações de caráter laboral, e que a OMD poderá fomentar, estimular para que essas associações apareçam, se tornem mais vigorosas e façam também elas a defesa da profissão das ameaças e problemas que enfrentamos na Medicina Dentária.
Acha que a solução de todos ou de alguns destes problemas passa pela revisão/introdução de legislação específica, no plano nacional e eventualmente à escala europeia?
A solução destes problemas passa por colocar em ação muitas das legislações que já existem à escala europeia. É fundamental que a OMD mantenha contacto com as suas congéneres europeias, nomeadamente com outras organizações europeias que defendem e têm uma ação lobista e uma ação de defesa da profissão, nomeadamente o Council of European Dentists, que têm uma intervenção importante e a FEDCAR que regula toda a legislação e vai mostrando também a questão da regulação do mercado na profissão.
Que leitura global faz das mais recentes estatísticas que constam do Barómetro de Saúde Oral? A evolução é positiva ou há indicadores preocupantes?
Apesar de haver alguns ganhos em termos de saúde oral, um dos fatores mais importantes é que os médicos dentistas continuam a ser um vínculo à população em termos de confiança. As pessoas acreditam e confiam nos seus médicos dentistas e esse é talvez um aspeto a destacar. Depois, obviamente que há dados que nos preocupam e que há muito para ser valorizado. Infelizmente, a situação da saúde oral em Portugal continua na cauda da Europa e não está a ser feito o devido investimento para a mudar. Nomeadamente num aspeto que é fundamental que são as questões de literacia e de valorizar mais a prevenção da população aos cuidados de saúde oral. Mais do que curativa é a vertente da prevenção que tem de ser valorizada. Convém referir que nesta falta de literacia, 35,7% da população não visita um médico dentista há um ano. Outro dado preocupante é que apenas 31% dos portugueses têm a dentição completa, ou seja, 69% dos portugueses não têm todos os dentes, ou lhes falta um dente ou mais do que um dente. E dentro destes que não têm dentes, 50% não tem substituição para os dentes que lhes faltam. Há muito trabalho a ser feito. Trabalho que tem duas vertentes; uma vertente de prevenção de literacia e uma vertente de reabilitação.