NIRVANA Obra original por: Manuel Conde CAPÍTULO 01 – KALI Título:
Nasci na Índia. Não o país retratado em outras culturas como ostentador de grandes palácios com belos jardins e odaliscas dançando de um lado para o outro. Não o país que esbanjava dinheiro desde exportação de tecidos até avanços tecnológicos. Não esse país. Nasci na Índia que ninguém quer ver. Nasci na Índia que a mídia esconde, onde as mulheres lavam suas roupas junto aos cadáveres que boiam pelo Rio Ganges. Ah, aquela ali sou eu, caída ao chão. Quase não dá para se ver em meio à poeira. Minhas roupas já tão desbotadas que se misturam despercebidas à sujeira da rua. Sim, essa não é a história da minha vida, mas sim a da minha morte. De como fui terminar ali, estendida ao chão. Minha boca não tinha forças para suplicar ajuda, e mesmo que tivesse, duvido muito que alguém me ajudasse. As pessoas não olhavam para mim. Era quase uma coisa. Acredito que tenha deixado de ser vista como humana há algum tempo, quiçá desde nascida. Tudo bem, acredito que será necessário explicar um pouco a minha origem. Dizem que quando se está à beira da morte se relembra a vida toda. Será essa uma forma de buscarmos alguma solução por não querermos morrer? Ou será uma forma de buscar algum fato onde por a culpa pelo momento que nos acomete? Ou será mesmo que eu não ansiava por isso?
Nasci em uma das regiões mais pobres da Índia, onde até mesmo hoje em dia ainda prevalece o sistema de castas. Basicamente este sistema funciona da seguinte maneira, se você nasce rico, você terá uma vida boa até o fim. Se você nasce pobre, terá uma vida miserável até o fim. Ascenção social ou financeira não é cogitada. Somos chamados de dalits, aqueles que não devem ser tocados. Sim, as pessoas evitavam até mesmo pisar em nossas sombras ao caminhar pelas ruas. Vivíamos à margem da sociedade, em casebres, barracos, próximos a esgotos ou lixões. Sabe aquela descrição que eu fiz no início, sobre a Índia que a mídia retrata, bonita e cheia de ouro? Eu nunca vi. Só soube graças aos poucos livros que consegui ler e ao que me contavam. Mas nunca cheguei a ver. Também não poderia, além de não ter condições financeiras e sociais, o que me obrigava a permanecer na periferia, nasci sem pernas. Lembra que eu mencionei que as pessoas não olham para os que estão na rua? Imagina para alguém deficiente. Parece fazer doer os olhos daqueles que querem continuar enxergando suas ilusões. Acredito que se tivesse tido melhores condições eu teria sido uma moça muito bonita. Minha pele tinha um tom moreno forte, e meus cabelos ondulados estavam sempre bem penteados e preços à altura do pescoço. Minhas roupas por mais simples que fossem, ou até mesmo rasgadas, me alegravam vestir, em especial uma combinação de salwar kameez avermelhados com um dupatta azul, isto é, uma camisa longa sobre uma calça com um xale. Se não fosse pela minha desnutrição e a ausência das pernas, eu seria linda. Minha mãe sempre dizia que eu tinha um olhar profundo e que meus olhos castanhos bem escuros eram como duas pérolas negras. Ah minha mãe, que saudades que sinto de você. Era ela que me vestia, me alimentava, me dava banho, fazia tudo. Seu nome era
Ananya, e mesmo tendo sido abandonada ainda grávida de mim pelo meu pai o qual eu nunca vi, não deixou se abater um momento se quer. Acordava cedo, me arrumava, cuidava de tudo o que podia antes de ir para o trabalho. Ela sabia que eu ficaria bem, pois não ficaria sozinha muito tempo, pois logo meu amigo viria me ver, ele vinha todos os dias. E após um dia cansativo limpando e varrendo a casa dos outros, minha mãe chegava a casa para novamente cuidar de mim. Às vezes à noite, quando me ajudava a me deitar, eu podia ouvi-la finalmente conseguindo fazer algo para si. Ela possuía um móvel pequeno que guardava a escova de cabeço que compartilhávamos, e esse móvel sempre fazia um barulho terrível ao abrir. Ela então o abria de noite para escovar seus longos cabelos grisalhos. Minha mãe já não era jovem, tinha por volta de sessenta anos, mas sua feição era tão maltratada, se olhassem dariam oitenta tranquilamente. Como eu gostaria que ela tivesse tido mais tempo para si. Lembro-me de uma vez em que ela estava cozinhando alguma coisa, e me chamava atenção, dizendo que não queria que Ravi me visitasse, pois ele se metia com coisas erradas. É engraçado como me lembro dessa cena. Minha mãe usava um vestido azul e por cima um dupatta roxo. O sol entrava por umas frestas e iluminava o ambiente escuro, quase como uma aura em torno dela. Que saudades da minha mãe. Nessa ocasião eu já tinha percebido um hematoma em seu braço, mas não me recordo ao certo porque não indaguei a respeito. Mas não tinha como deixar de ser amiga de Ravi, nos conhecíamos desde pequenos. Ele era conhecido por ser um verdadeiro gatuno, roubava tudo o que podia, inclusive nos conhecemos em uma tentativa de roubar minha casa, mas quando me viu lá dentro, algo chamou sua atenção. E ele ficou me olhando. Não sei quem estava
mais assustado, eu por ter um moleque entrando na minha casa ou ele por ter sido pego em flagrante. Não tardou muito para que mamãe chegasse tacando os chinelos nele e o fazendo fugir. No dia seguinte, logo que minha mãe saiu, ele voltou à minha casa e devolveu o que havia afanado. Não era nada valioso, um broche antigo de mamãe, algo do gênero. Na hora em que ele apareceu e sem dizer nenhuma palavra colocou o broche no devido lugar, eu não senti gratidão, senti uma espécie de raiva, será que ele fez aquilo por pena de mim? Não, não era pena, acredito que ele apenas se viu em mim, alguém com necessidades também. Quem sabe se eu não tivesse pernas se não me tornaria uma ladra também? O tempo passou e Ravi se tornou um rapaz tão bonito. Usava seus cabelos negros arrepiados. Sempre a mesma camiseta branca e bermuda cinza encardidas. Mesmo com traços de desnutrição, ele tinha músculos bem aparentes, talvez por tanto correr em suas fugas. E seu sorriso era como o sol, mesmo meio desdentado. Ia todo dia à minha casa conversar comigo, me contar do mundo lá fora, me levava para passear, ou trazia livros ou até mesmo guloseimas que afanava por aí. Eu os escondia de minha mãe, pois ela não queria que eu ficasse com nada roubado, mas aqueles presentes eram muito preciosos para mim, foi graças a estes livros que aprendi muito sobre o mundo, e até mesmo melhorei minha leitura, meu aprendizado, ou acham que eu tive acesso à escola? Não, eu não pude estudar, não era assim que funcionava. Nem eu nem Ravi, e isso era apenas uma das coisas que tínhamos em comum. Com o passar do tempo, compartilhou muitos de seus segredos comigo. Ah se não fosse Ravi e seu sorriso para me iluminar, para tirar um pouco do peso que eu sentia em meu coração por tantas coisas. Eu sempre insistia para que ele buscasse um trabalho, qualquer um que fosse, mas que largasse
os roubos. Ele ria. Mal sabia eu que seu sorriso seria responsável pela sua morte. Eu estranhei que durante alguns dias Ravi não apareceu mais lá em casa. Mas eu não reclamei, já que ele havia finalmente me escutado e conseguido trabalho na casa de um comerciante, então eu acreditava que ele provavelmente chegasse cansado do trabalho em seu barraco e dormisse. Mesmo que uma parte de mim se sentisse esquecida outra se sentia bem, pois agora ele estava trabalhando em tese. Até que minha mãe entrou porta adentro com expressão chorosa me segurando pelas mãos e me contando que as lavadeiras acharam o corpo de Ravi boiando no rio. Eu não chorei. Algo em mim queria culpa-lo ou responsabiliza-lo por isso. Afinal, era o que se esperar de um ladrão. O que me chamava atenção era minha mãe chorosa. Ela reclamava tanto dele. Talvez soubesse o bem que me fazia, talvez gostasse do rapaz. Aquele choro que engoli desceu como um tampão, me deixando calada durante dias. Não comia quase nada e a magreza saltava aos olhos. Os meus inclusive não brilhavam mais. Minha mãe precisava trabalhar, e eu não recebia mais ninguém, então ficava o dia todo trancada em casa, relendo os mesmos livros. Alguns anos mais tarde, minha mãe saiu para trabalhar e não voltou. Preocupada, tentei com dificuldade ir atrás dela, mas não conseguia andar direito pelas ruas tortuosas. Minha cadeira de rodas era muito simples e dificultava a locomoção, mas era o que eu tinha. Alguma coisa apertava meu peito, aquela angústia, aquela dúvida que a cada centímetro avançado se tornava mais uma certeza. Após um bom tempo caminhando, encontrei o corpo de minha mãe tombado ao chão. Também tombei de minha cadeira e me arrastei até ela. Eu gritava tentando entender. Demorou cerca de meia hora para que
alguém surgisse e nos levassem a um hospital. Minha mãe teve uma hemorragia interna. Parece que uma de suas costelas estava quebrada e tinha perfurado um de seus órgãos, algo assim, eu não conseguia entender, talvez não quisesse. Fiquei só. Não era pra eu sobrar. Porque eu tive que ser a única a continuar viva? Eu perdi tudo. Todos meus apoios, meus suportes. Nem os físicos eu tinha. Olhava para meus membros inferiores atrofiados e via que era impossível seguir adiante. Não empregavam deficientes. A única saída foi mendigar. Parei próxima a meu barraco e estendi meus braços. Ao final de um dia, as poucas moedas dariam no máximo para um pão, mas já não tinha forças para ir até o comércio, voltei para casa e dormi. Nos dias que se seguiram eu despertava, ia até o comercio, tentava comer alguma coisa, e voltava para meu local, onde esperava a generosidade dos outros. Que generosidade? Foi aí que percebi que tudo o que ensinam sobre esses sentimentos, caridade, generosidade, era tudo uma mentira. Sabe o que mais me magoava? Não era não receber esmola. Eram os olhares evasivos. Eram as viradas de cara. As pessoas não queriam olhar pra mim. Havia deixado de ser humana. Não tardou muito para que a desnutrição tomasse conta de mim. Meu olhar antes possuidor de um brilho tão único, seco, fundo. Minha boca seca. Minha pele quebradiça e unhas sujas. As moscas já me rodeavam. Não tinha mais forças nem pra falar, mas minha mão continuava estendida. Mas duvido que qualquer um que passasse ali me ajudasse. Duvido que me vissem. Já estava misturada à sujeira, à poeira. Por algum motivo, não sei se a fome, ou mesmo a força da gravidade, meu corpo tombou para frente, se desiquilibrando da cadeira e
caindo de cara no chão. Pude sentir o gosto salgado da água parada suja misturada com o gosto ferroso de sangue, devia ter quebrado um dente na queda provavelmente. Engraçado, mesmo com o gosto pútrido na boca, a hidratação nos lábios me refrescava. Usando essa sensação como força, tentei me arrastar por alguns metros. Quem sabe alguém me ajudasse. Não avancei nem dez centímetros. Via o céu escurecer à medida em que anoitecia, enquanto minha visão também enturvecia. Será que era sono? Será que era cansaço? Meu estômago já não sentia fome, apenas uma dor lá no fundo. Tudo foi ficando silencioso, como se as vozes que ouvia fossem se afastando lentamente. Comecei a entender. Meu coração estava cada vez mais fraco, e suas batidas ecoavam com meu peito de encontro ao chão. Minha respiração ficava mais fraca a cada segundo. Estava chegando a minha hora. As pessoas inventam tanta coisa sobre a hora da morte, luz no fim do túnel, paraíso, inferno. Que besteiras, no final só há o grande silêncio. Deve ser frustrante praqueles que se apegam a vida e querem que ela perdure, saber que simplesmente ali vai acabar tudo. Que um grande breu de silêncio arrebatador toma conta de tudo. Mas eu não estava assustada, pelo contrário, estava aliviada. Meu sofrimento tinha finalmente acabado. E cá voltamos ao início disso tudo, comigo caída ao chão. Em minha mente uma escuridão tão profunda reinava. Dava-me paz. Ausência de todas as coisas, tudo o que me frustrava. - Kali... Kali... Tinha alguém me chamando? Justo agora? Aquele era o meu momento! Pensei que alguém tivesse encontrado meu corpo à beira
da morte e estivesse me ajudando. Mas estranhamente uma luz começou a surgir em meio à escuridão. Com esforço abri meus olhos, que de tão ressecados ardiam até por abrir. Diante de mim, parada a pouca distância, uma planta brilhava. O que era aquilo? Será que estava tendo algum tipo de alucinação? Será que havia enlouquecido? Ao mesmo tempo em que me questionava isso, também tentava de alguma forma reconhecer que tipo de planta era aquela. Lembrei-me dos livros que Ravi me levava, e identifiquei como uma figueira, era uma muda de figueira. - Kali, está me ouvindo? A voz estava saindo daquela planta! Meus olhos se arregalaram ao perceber isso, estava de certo louca! E como aquela planta sabia quem eu era? - Q... Quem é você? – perguntei, já embarcando na loucura. - Ah, vejo que pode me ouvir. Eu sou Buda. Como assim “Eu sou Buda.”?! Eu ouvi aquilo e minha ficha parecia não cair. Uma planta na minha frente dizendo ser Buda, um ser iluminado? Não conseguia entender. - C... Como assim? – Continuei, ainda sentindo dificuldade para falar. - Isso mesmo, eu sou Buda, manifestação de tudo o que há de sagrado. - Não, você é uma planta falante fruto de uma alucinação minha... – balbuciei. A planta riu.
- De fato, eu sou Buda, o Sagrado, Deus, a Natureza Divina, Alucinação ou como você preferir chamar. O que você esperava? Um Senhor barbudo com um cajado? - De certo não esperava uma planta falante. - Kali, o sagrado não é nada. Mas não é por isso que vim aqui, vim para lhe fazer uma proposta. - Proposta? - Sim. Você aceitaria todo o meu poder? Você aceitaria herdar todo o poder de Buda? Ergui minha cabeça e encarei aquela planta brilhando na minha frente. Era real demais para ser uma ilusão. Sua luz quente chegava até minha face, e meus olhos se arregalavam com seu brilho, enquanto minha mente ainda duvidava do que acabara que ouvir.
Conceptart dos Personagens Ilustraçþes por: Manuel Conde