7 minute read

socIedade

Next Article
Observação

Observação

Um café para conservar o sabor da natUreza

Depois da Guerra Civil e do mais recente conflito foi o abate descontrolado de árvores a ameaçar a Serra. Mas, o projecto do Café da Gorongosa quer inverter o sistema, criando uma marca de desenvolvimento sustentavél

Advertisement

o projecto desenhado em

2010 pelo Parque Nacional da Gorongosa para a reflorestação dos locais afectados pelo abate das árvores não teve grande sucesso junto da população, uma vez que os pequenos agricultores não obtinham daí qualquer rendimento. Era então preciso mudar de estratégia e criar um plano com mais impacto que servisse dois pontos essenciais: reflorestar e gerar renda. Em 2014 teve início a planificação do Gorongosa National Parks’ Coffee Agroforestry Under Shade, um projecto piloto de cultura de café Arábica à sombra, de forma a conhecer a sua viabilidade, uma vez que em Moçambique não havia histórico da cultura deste arbusto da família das rubiáceas. Era necessário saber se uma montanha coberta por uma floresta tropical iria receber bem esta nova cultura que ajudava à reflorestação e, simultaneamente, agregava valor aos rendimentos dos agricultores que ali habitam. Depois de conferida a viabilidade, que teve apoio de especialistas na cultura de café, oriundos da Universidade Federal do Espiríto Santo, no Brasil, foram reunidos os líderes comunitários que abraçaram a ideia e hoje existem muitas famílias produtoras de café como revela à E&M Matthew Jordan, responsável pela iniciativa. “O Café da Gorongosa está actualmente a trabalhar com mil famílias que vivem na Serra mas temos planos para chegar às três mil muito em breve. Estamos todos alinhados numa relação integrada entre o uso sustentável da terra, o desenvolvimento comunitário e a manutenção da biodiversidade”. Através da implementação de práticas agrícolas mais sustentáveis os pequenos produtores aprenderam a semear em fileiras e, ao mesmo tempo, verificaram que podem tirar partido da rotação de culturas, entre cada fila de cafezeiros. Assim não perdem milho e legumes o que também se traduz em rentabilidade para o solo, uma vez que ajudam a produzir nitrogénio mantendo a terra fértil, reduzindo a necessidade de procurar novos locais de cultivo, e por isso mesmo, evitando o corte e a queima da floresta tropical. Ao mesmo tempo torna-se possível travar a erosão dos solos, fazendo a retenção da água das chuvas.

moçambique na rota do café Sem se alterar a natureza, foi assim criado na Serra da Gorongosa um viveiro onde se aproveita a sombra das ár-

3

mil famílias “O Café da GOrOnGOsa está aCtualmente a trabalhar COm mil famílias que vivem na serra mas temOs planOs para CheGar às três mil muitO em breve”

vores que já existem, para que os agricultores possam ter formação e treino de modo a saberem fazer as respectivas mudas. Matthew Jordan explica que “a primeira equipa modelo começou a trabalhar com a comunidade para promover a cultura junto de outros produtores, uma vez que os resultados começaram a ser visíveis. Em pouco tempo foi gerado um mosaico sustentável de arbustos de café e hoje podemos observar cerca de trezentos mil pés plantados, numa extensão de perto de 100 hectares.” Mas estes arbustos não estão sozinhos. Como era necessário realizar o reflorestamento de muita da área abatida nos últimos anos, têm sido plantadas, à razão de 10% do plantio de café, árvores nativas (cerca de três mil árvores até ao momento). O objectivo, diz-nos, “é crescer em cerca de duzentos mil arbustos por ano, ao longo dos próximos cinco anos, para alcançar um milhão de pés de café plantados e continuar a expansão ao longo desse período de tempo”. A safra registada este ano, a primeira desde o final da fase piloto do projecto, chegou às dez toneladas de grãos de Arábica de qualidade superior. E se tudo se confirmar, na próxima década, é esperado um rendimento anual a ron-

sociedade

dar as 800 toneladas, o que fará com que Moçambique venha a ter alguma expressão junto dos países produtores de café da região. Mas para que nada falte ao Café da Gorongosa, até porque o seu aroma único está a isso directamente ligado, toda a cadeia de valor acontece ali mesmo na zona da Gorongosa, da secagem à torrefacção, finalizando no empacotamento. Tudo realizado no Parque Nacional da Gorongosa, onde ainda foram criadas as áreas da comunicação, vendas e distribuição. E assim as bagas vermelhas do Arábica recém colhidas mantêm a identidade que se bebe e onde se sente Moçambique na sua essência.

agro-negócio de inclusão social com geração de renda Todo o projecto Café da Gorongosa foi pensado no bem-estar da comunidade, onde se incluem os beneficiários directos, milhares de pequenos produtores ou extensionistas e os beneficiários indirectos, que são os familiares de cada um. No que diz respeito aos produtores, estes foram capacitados com técnicas agrícolas, aprenderam gestão financeira através do programa Farm Business School e foram sensibilizados para a conservação das espécies. Para os beneficiários indirectos, a grande preocupação é a redução do absentismo escolar, principalmente das meninas. Por isso, foram criados clubes de sensibilização e construídas várias escolas para que possam frequentar as aulas perto de casa. Há também grandes campanhas de sensibilização sobre noções básicas de saúde e vacinação. E, como nos confessa Matthew Jordan, “tudo isto acontece em paralelo com a produção do café porque quando falamos em desenvolvimento sustentável, temos de avançar em várias frentes”. A capacitação é fundamental aqui. E para que ela possa ser

Projecto tem uma forte componente social e envolve centenas de famílias da região da Gorongosa

A entrada no mercado europeu está também prevista através de uma parceria com a Nespresso, em cápsulas próprias para as máquinas da marca

efectiva, foram criadas sinergias com a Universidade de Lisboa, a Cooperação Portuguesa, a Cooperação Brasileira e a Universidade de Espírito do Santo, no Brasil, o que levou até à Goronogosa dezenas de estudantes de agronomia moçambicanos e de outras nacionalidades ao longo dos últimos três anos, ali concluindo Teses de Mestrado e Doutoramentos no estudo da produção de café e conservação da biodiversidade em sistemas agro-florestais. E não é nada incomum o projecto ser visitado por inúmeros técnicos internacionais que, fascinados pela plantação de café de qualidade superior à sombra da floresta, chegam à Gorongosa para aprender e ensinar. O princípio de toda esta história começa com o filantropo Greg Carr que, através da Fundação com o seu nome e em conjunto com o governo da Noruega e o Global Environment Facility, que agrupa 183 países e instituições internacionais, conseguiram juntar fundos para contrariar a tendência de desflorestação e ajudar esta enorme comunidade de pequenos agricultores na província de Sofala.

contas e café As mudas e os serviços de extensão oferecidos aos pequenos agricultores têm um custo elevado, difícil de quantificar. Contudo, o investimento anual centra-se nos 500 mil dólares, sendo a parte que vai para os agricultores, operacionais de momento, é perto de mil dólares per capita. Aqui não estão incluídas despesas com os serviços de saúde, educação ou insumos mais complexos. Sabemos que o café é um commodity com preço variável que se situa hoje nos 2,5 dólares por quilo. Contudo, o Café da Gorongosa, por ser Arábica de qualidade premium e devido ao impacto social que abrange, pode chegar até aos sete dólares por quilograma. Feitas as contas ao café, as

a serra sagrada

Diz a lenda que a Serra da gorongosa é sagrada porque Deus viveu ali com os povos da montanha Naquele tempo, os seres humanos eram gigantes e passavam o tempo a pedir favores ao Criador. Cansado por ser importunado, ter-se-á, então, mudado para o céu. Mas mesmo assim, os gigantes não desistiram e subiram a montanha para continuar a fazer os seus pedidos. É então que Deus decide colocá-los na ordem e torna esses seres em homens comuns. terá sido aí que a vida começou a ficar difícil... para todos na Serra.

margens de lucro são encaixadas no Projecto Gorongosa para que exista uma continuidade na assistência à saúde e escolar. Aos produtores é pago um preço considerado justo por cada quilo de café no momento da colheita, de modo a constituir um incentivo para que as plantações sejam sempre de alta qualidade e ao mesmo tempo contribuam para a conservação e sustentabilidade da Serra da Gorongosa. Até 2024 é esperado um investimento de um milhão de dólares, e será esse, estima-se, o ano do break even do projecto.

partir para outras terras Em Moçambique, o Café da Gorongosa pode ser encontrado em dois tipos de moagem - uma para expresso e outra para cafeteira - em alguns supermercados, cafés e dentro do próprio Parque Nacional. Mas a vontade dos mentores do projecto é que os grãos da Gorongosa possam perfumar chávenas de café de grandes mercados internacionais, estando já em avançadas negociações para a entrada nos Estados Unidos da América onde até já é vendido no Boise Zoo, em Idaho. A entrada no mercado europeu está também prevista através de uma parceria com a Nespresso, em cápsulas próprias para as máquinas da multinacional suíça detida pelo grupo Nestlé. Em todas as cidades do mundo as pessoas sentam-se para saborear o café. E é por isso que não constitui surpresa que este aromático grão seja, hoje, a terceira bebida mais consumida do mundo, depois da água e do chá. A ideia é que, um dia, este fruto de Moçambique possa espalhar-se pelo mundo, contando a história da Serra da Gorongosa e das suas gentes.

texto Cristina Freire fotografia Brett Kuxhausen, GoronGosa Media

This article is from: