Ventrículo_microjornal de contos_01

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VEN TRÍ CULO microjornal de contos

primeira edição// Agosto, 2019


Ventrículo é uma câmara de contos cuja função é bombear letras para a circulação sistémica da literatura e de utopias.

Ventrículo – Microjornal de Contos I ventrículo.letras@gmail.com I +258 84 48 46 486 Edição: Agosto, 2019 I Direcção: Mélio Tinga I meliotinga@gmail.com I Design: BROKEN – Agência Criativa I Colaboram nesta edição: Jorge Eduardo Araújo Lima, Poeta Militar e Pedro Vale I Maputo - Moçambique


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NOITE

Jorge Eduardo Araújo Lima, Brasil

N

o suporte de madeira, todo ornado, o incenso estava a queimar. Eu estiquei meu corpo, levantando os braços até o interruptor, pressionando-o para apagar a luz que emanava da lâmpada. E fiquei sentado, com as pernas cruzadas, sobre a cama, observando aquela pequena brasa, que pouco a pouco caia e se tornava cinzas desfalecidas na madeira. Me deitei, abraçando o travesseiro que vestia uma fronha floral linda. Olho para os lados, mesmo sem conseguir distinguir algo com precisão naquela pequena imensidão que era meu quarto escuro. Vejo as apostilas jogadas, o filtro dos sonhos em formato de lua balançar na janela semiaberta, que agora era a porta de entrada de uma fraca luz lunar que cruzava o vácuo do espaço e chegava até os dedos de meu pé, que mexia com satisfação, tal qual uma criança. Me reviro no colchão e torno a pensar na dura mensagem de Antônio, com quem eu não falava a mais de três semanas. O esforço para não pensar em algo me pesava tanto quanto dissecar o mesmo pensamento. Antes que a lembrança de seu sorriso chegasse a dominar os espaços nulos de minha mente, torno a me sentar na cama. Tateio o escuro em busca de uma mesinha, que sabia, estava ali perto. Meus dedos batem em algo, que antes que eu percebesse, cai no chão e emite um barulho de plástico resistente. Sabia o que era, um brinquedo-boneco amarelo, com um sorriso desenhado a mão, com tintas preto e branca. Continuo tateando a superfície da mesa e encontro o que procuro, uma cartela de cigarros de papel e um isqueiro, que estava bem em cima deste. Quase como executar um ato natural, viro a cartela de cigarros para baixo, com os dedos na saída da caixa, esperando o cigarro escorregar para minha mão. Puxo-o e o levo à boca. Ao acende-lo, o som do papel sendo queimado domina meus sentidos e me dá uma sensação de tranquilidade. Ao final do trago, expiro a fumaça que eu segurava e parecia queimar parte do meu corpo, mas também dos meus sentimentos, das minhas angústias. O substrato dessa ação, a fumaça, me acalma, vê-la subindo, dançando como uma bailarina em uma pista de patinação, dando voltas e mais voltas até desaparecer na penumbra do quarto, acalenta meu espirito, mesmo sabendo que não à minha saúde.

Antes do final do terceiro trago, escuto um som, ruídos de uma conversa de pessoas que agora passavam na rua. Uma mulher falava: Eu não vou mandar mensagem para ele nunca mais, me recuso a aparecer naquela escola novamente! Os sons dessas palavras iam aumentando à medida que se aproximavam de minha janela. Antes de estarem o mais próximo possível da janela, um rapaz com uma voz fina responde a moça com um tom de descrédito: Renata, você está falando isso da boca para fora, não é a primeira vez que diz isso! E a medida que o barulho dos passos e da conversa desses desconhecidos se dissipa, eu, com o desconforto da cabeça mal entendendo, me coloco a pensar: Será que não sirvo para ser amado? A sensação de desconforto me domina, por mais que eu busque afasta-la. Levanto-me lentamente e coloco o celular nas mãos, com movimentos ágeis deslizo os dedos até o ícone de mensagens do celular e clico no lugar em que aparece o nome Antônio. Automaticamente, nossa última conversa chega aos meus olhos através daquele brilho intenso da tela. Nele, frases da última mensagem: Eu gostei de estar com você até agora, mas eu realmente não consigo mais. Não sei lidar com sua situação. Eu juro, eu entendo seu estado, mas você se tornou uma pessoa depressiva. É muito difícil essa sua transição


de humor, com essa tristeza crescente, que de manhã me ama e a noite me odeia... Me assusto com o piscar, aparentemente involuntário, da lâmpada, retorno o olhar para a celular, e antes de apertar o botão de bloqueio de tela, vejo uma última frase na mensagem: Espero que fique bem! Reclino meu corpo, torno a apertar o interruptor e me jogo no colchão sem vida. Deitado, olho ao redor, as apostilas impressas em folhas verdes soltas no chão e na mesa; os mapas impressos e desenhos feitos a mão colados na parede; os sapatos revirados em diversos lugares, as peças de roupas soltas pelos cantos. Então, reflito: porque minhas peças de roupas têm esses tons tão neutros? Talvez eu devesse usar roupas coloridas, quem sabe as pessoas gostassem mais de mim, mas, que roupa usar para parecer ser uma pessoa feliz? Retorno o olhar para a parede repleta de gravuras e me atento aos espaços. Sempre tratei de criar uma metodologia para o processo de colagem de figuras na parede dos quartos das casas que já morei, contudo, olhando agora, percebo que colei imagens sem uma grande precisão e que bem no centro da parede na qual a cama se encostava, um grande vazio. Isso significa um vazio para mim? Penso em escrever algo, uma resposta a Antônio, uma lembrança para mim, mas o simples pensamento da ação já morre em mim, assim que me reviro novamente na cama. Voltado para a janela, percebo os primeiros sinais de que o dia está para nascer, as nuvens no céu começam a ganhar cores laranja e roxo e os braços escuros das nuvens parecem me indicar um caminho, ignoro e volto meu corpo para a parede. Fecho os olhos e clamo pelo sono, afinal, qual solução melhor, que não dormir? Os primeiros sinais de vida parecem ganhar lugar a rua, o vizinho liga o rádio e o locutor com uma voz de animação forçada proclama o horário, são 6:30 da manhã. Em seguida, uma dupla sertaneja, qual as que meu avô escutava na minha infância, canta sobre os desalentos do amor. Essa lembrança parece querer me dar forças, me banha como um adorno da certeza, mas agora já era tarde! O sono chegou, e a simples ideia de não pensar em algo me acalenta e me entrego.


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O DIÁRIO INÚTIL

Melio Tinga, Moçambique

Quinta-feira, 22 de Junho

S

ão seis e cinco. Nervos à pele. Sento-me na cama. Estou nu. O frio é intenso. Treme o fundo do abdómen. A língua. O quarto está escuro. Sinto dor nas articulações. Tudo é sombra. O sentimento é pesado e tormentoso. Caminha pelos próprios pés. É tropel. Acabara de ter pesadelos. Deito-me. Levanto-me. Isso repete-se. Fecho as pálpebras como quem encerra as portas das trevas. Experimento pensamentos invulgares; uma vontade de incendiar as roupas, sair nu, andar pela estrada, gritar até à última força das cordas vocais e atirar-me ao chão e deixar-me minguar como saliva na boca. Vibra o celular. Viro-me. Arrasto o corpo. Desbloqueio o aparelho. Quem será? As vezes tenho a sensação de ter sido esquecido por todos. Vibra o celular. Imagino que um ser de outro planeta se tenha lembrado de mim. O ecrã bloqueia. Penso nas nuvens e mais nada. Doem-me as articulações. Todas. Doe-me também a cabeça. Dois homens altos tinham-me rebentado com paus e ferros, imagino. É pura imaginação. Uma alucinação, quase. Se me tivessem rebentado com paus e ferros não estaria aqui, vivo. Miro as paredes. Um sentimento de ódio brota de qualquer parte; dos ventrículos, pulmões, veias, vesícula, … não sei muito bem de onde nasce o ódio, mas foi lá de onde veio. O celular. Desbloqueei. Fui para a caixa de mensagens. O aparelho começou a vibrar com uma estranha força nas minhas mãos. O coração quase caía, se não fosse a caixa torácica que o protege. Era minha mãe a ligar. Ao final de dois minutos deu por terminada a conversa. Voltei à tarefa. Haviam duas mensagens. A primeira dizia: Tivemos uma noite maravilhosa. Estou muito ansiosa pela próxima. Espero que tenhas a melhor de todas as manhãs. Não te esqueças de retornar logo que puderes. Te amo com tudo que posso. Não me lembrava de nada e não sabia o que responder. A segunda dizia em letras garrafais: SINTO MUITAS SAUDADES TUAS, GOSTARIA DE PODER ESTAR CONTIGO O MAIS BREVE. QUANDO ME PODES VER, POR FAVOR? QUASE QUE ME ARRASTO. ESTOU NAS TUAS MÃOS, VENHO ONDE QUISERES E FAÇO O QUE QUISERES. SOU INTEIRAMENTE TUA! TE AMO DE TODAS FORMAS. Desliguei a tela do celular e pus-me deitado ao lado da minha depressão. Esqueci-me que um dia haveria novamente o amanhã.

Terça-feira, 18 de Julho A lua espreita por uma fresta no cortinado. Acabáramos de fazer amor. Corpos estirados. Silenciosos. Ouvia-se a respiração, quase como um alto e contra-alto combinados. O sentimento por aquelas paredes brancas era distinto. São vinte e duas e trinta e dois. Levanto-me. Puxo as calças e saio dali.


Sábado, 22 de Julho Como uma aeromoça de vinte e seis anos chega à terra, todos podemos imaginar. Como ela pôde encontrar o meu número de celular, só os anjos o podem dizer. Talvez pouco importa. Era linda e simpática. Depois de quase duas semanas da sua primeira ligação, fizemos amor num hotel próximo ao aeroporto, antes do milésimo voo dela para as nuvens. E nunca mais voltamos a falar. Ainda hoje guardo o seu número de celular num velho bloco de notas, onde também tenho anotado o seu nome completo, cor dos olhos, cabelo, idade. E parece que oiço sua voz sempre que vejo um avião.

Sexta-feira, 25 de Agosto Estou sentado no Café, próximo ao Hospital Santa Cruz. O vapor da água quente sobe lento e demoradamente. Quase que empurrado por uma mão oculta. Imagino com quantos graus estará a água. É algo inútil, eu sei. As vezes me dou conta a pensar nesse tipo de coisa. As vezes a pensar na idade do leitor deste texto. Se é gordo ou magro. As vezes a me questionar sobre a invenção do ar. Geralmente não há resposta para esse tipo de coisas. Mas é o que dá sentido à vida que levo.

Sexta-feira, 01 de Setembro Sempre que chega Setembro, imagino que o mundo vai acabar. O vento é forte. A chuva mais irregular. As vezes dá vontade de ter um filho. Isso só ocorre em Setembro. A vontade de anotar tudo no diário parece acabar. Costumo caminhar beira-mar. Vejo as ondas baterem na margem. Não sei por que carga de raio isso acontece. Imagino que não haja resposta. Isso é uma daquelas coisas absurdas que por vezes caiem como uma descarga eléctrica. E não posso controlar.


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O MARIDO DA NOITE DA AUGUSTA

Poeta Militar, Moçambique

A

li está a Augusta. Pela justiça dos olhos parece uma moça normal. É uma ruína humana escura habitada por corvos de incerteza e fungos de medos. Pela manhã, a Augusta, lava o branco da sua dentadura com intervalos de uma escova, borda o rosto com o colchete das suas tintas, esconde a gordura das bochechas com pequenos remendos de sorrisos, prende o tecto do seu cabelo com pregos de rolos, pinta com um pincel a rolo as paredes dos lábios e desenha interjeições nas suas sobrancelhas; e vai à casa do namorado.

Em casa do namorado ouve “Olhos Sonhadores” de Doppaz enquanto ele rasga-lhe suavemente os seios com as unhas de desejo. A cama do namorado é um mar; seus corpos barcos perdidos sem tripulantes. O corpo da Augusta nu é a ração humana que alimenta o leão que vive nos gemidos do namorado. Os brincos dela amassam-se na cabeceira com o tic-tac do relógio; o seu sutiã adormece no ronco do chulé das peúgas do seu namorado. Amam-se de dia porque de noite Augusta entrega as latitudes da sua nudez a um geógrafo oculto. Já é noite. Augusta sela o seu sorriso com um beijo no portão da casa do namorado. Assim toda a inspecção masculina, na rua, não terá espaço. Chega à casa; a avó ajuda-lha a arrumar-se: limpa os dentes com raízes secas, as lágrimas são os pincéis que limpam a maquilhagem no rosto, suas bochechas calçam rugas de amargura, prende o cabelo com um pedaço de um tecido vermelho, os colares caiem e amuletos crescem nos seus pulsos e enfeita o pescoço com um colar de ossos e moedas com sangue. A batucada cresce dentro dela. “Minha neta uma dia isso vai acabar”. Avança Augusta para a palhota com lâmpadas de escuridão. Semi-nua arranja a esteira velha com o lençol lavado pela curandeira. Varre o quarto enquanto entoa as canções que o seu marido da noite gosta. Lembra-se que os mortos têm pressa. Deita o seu corpo e faz sonho com seus bocejos de impaciência. Seus seios são duas gotas de cera descendo na vela do seu corpo. Dorme enquanto aguarda o seu marido espiritual.


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Pedro Vale, Portugal

U

ma menina metafísica caminha e a história comete um crime e ela chega a uma casa serrada três quartos e pensa que todo o mundo é feito de lama e salta da falésia e cai no chão coberto de vidro e grita e foge e corre ao pa trás e o grito ecoa e acredita que sim até ao fim mas não - a história assassina tinha razão - pum!


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