VEN TRÍ CULO microjornal de contos
segunda edição// Setembro, 2019
Ventrículo é uma câmara de contos cuja função é bombear letras para a circulação sistémica da literatura e de utopias.
Ventrículo – Microjornal de Contos I ventrículo.letras@gmail.com I +258 84 48 46 486 Edição: Setembro, 2019 I Direcção: Mélio Tinga I meliotinga@gmail.com I Design: BROKEN – Agência Criativa I Colaboram nesta edição: Eduardo Sabino, Mauro Brito e Márcia Barbieri I Maputo - Moçambique
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O MORTO
Eduardo Sabino, Brasil
C
hegamos ao cemitério no final da tarde, mamãe segurando meu pulso com muita força, arrastando-me por entre as sepulturas. Eu nunca tinha estado num cemitério e achei que o lugar seria idêntico ao campinho do clube não fossem as placas de metal em toda parte. Quando chegamos ao coreto onde as pessoas estavam, mamãe de repente travou, respirou fundo e depois foi abrindo caminho até o morto. Era o primeiro que eu via fora da tevê e achei-o decepcionante. Nos filmes de terror os mortos eram sempre assustadores. Aquele lembrava titio dormindo, só faltava roncar. Então mamãe disse, bem alto: Esse aí é o seu pai, meu filho. As pessoas se afastaram do caixão na hora, menos a mulher de preto, que arrumou uma gritaria danada e tentou vir para cima de mamãe. O padre entrou no meio e levou a doida para longe. Depois retornou, sozinho e disse a mamãe: não demore, por favor. Olhei com mais atenção o morto. Seu nariz pontudo e fino parecia com o meu, e não me vi mais: nem nas sobrancelhas, nem no cabelo liso, nem na boca pequena e esbranquiçada. Você não disse que eu não tinha pai? Mamãe levou as mãos ao rosto e notei que elas tremiam. Foi a primeira vez que a vi chorar. De minha parte, não sabia como reagir. Se ela tivesse me contado antes, a escola nem precisaria me liberar no Dia dos Pais e eu nem teria chutado a árvore com os trabalhos no corredor. Agora papai estava ali. Eu poderia lhe contar um segredo mas ele não escutaria, eu poderia lhe dar um abraço mas ele não me abraçaria de volta. É uma coisa inútil, um pai morto. Vai ver por isso iriam enterrá-lo.
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OUVIDOS DE MERCADOR
Mauro Brito, Moçambique
U
amusse lia que não se cansava, era guloso por livros, um dois, três, quantos pudesse. Constituía a sua actividade principal, enquanto de hora em hora, atendia ao entra e sai do prédio Nr. 13 da Rua das Orquídeas, onde desempenhava as funções de porteiro. Quem o via sempre com os livros no regaço, ia perdendo a conta de quantos ele já tinha consumido até aquele momento, zangavam-se, irritavam-se com isso, julgavam ser chato aborrecível, sentar num canto qualquer, na rua, no machimbombo, em casa e ler. Viajar sem sair do lugar, dia sim dia sim - é a minha mania, vocês têm a vossa não é? Não peguei a ninguém e nem mal fiz. Cuidem da vossa vida mazé. Ripostava quase raivoso e com poucas palavras. Os seus colegas cochichavam continuamente, até chegaram a ameaçá-lo de desligarem-se dele. Ao contrário dele, estes, jogavam dama, varriam o pátio, ouviam ao rádio, sobretudo nos dias de partidas de futebol, fosse o Moçambola ou outro campeonato. Certa vez, aí foi a gota de água, fartaram-se, a novidade correu como vento; tinham lhe chegado às mãos uma porrada de livros, entre romances, crónicas e poesia. Obra de uma vizinha inquilina, que se mudava e quis desfazer-se de alguns títulos que tinha, foram 10 duma vez. -Vá lá, fique com eles, vai gostar, para além de que os livros são caros, bem o Sr. Uamusse sabe. Lá recebeu sorridente e com muitos obrigados. No cesto da bicicleta que guiava nas idas e vindas, só cabiam livros, trazia sempre dois, junto com o pitéu que a sua esposa preparava. Sem mais nem menos decidiram em contratar um jovem agente, lá da zona, para investigar e ver se havia ali matéria para alguma subversão. Com essa atitude- estás mesmo a perder teu tempo sabes? Isso não te vai levar a nada, e vais acabar sozinho e sem nada, comentavam. Uamusse não se inibia, tivesse alguma nota solta sem destino certo, atirava-a à mãos dos livreiros das esquinas. Com eles tecia uma grande amizade. Pouco a pouco ele se desligava das conversas banais e preferia os livros, e continuou tranquilo e ciente daquilo que diziam e anunciavam, sem ter necessidade de carregar as baterias dos livros que lia. Os livros pelo contrário ajudavam-no a recarregar as energias para a vida.
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MEMÓRIA DA PEDRA
Márcia Barbieri, Brasil
Dedicado a todos aqueles que não vingaram
E
ele era tão bonito! O corpo tão macio e molenga! As bochechas tão rosadas! Mas, chorava tanto! Mas, chorava tanto! Se esgoelava dia e noite. E a boca então, mexia sem soltar ruídos, como aqueles peixes pequenos e dourados dentro dos aquários, ornamentando as salas.
Já se passaram mais de trinta anos... Por que voltar agora? Não acho que seja necessário. Remexer em coisa morta? Coisa morta fede! Faz tanto tempo! O melhor seria enterrar essa história de uma vez! Esses terapeutas tem cada ideia estapafúrdia! Pensam que porque leram Freud, Jung, Lacan e Charcot podem salvar o mundo do desespero.
A imagem da entrada da cidade é devastadora, uma pedreira desativada, um deserto coberto por minérios dinamitados, quando eu tinha uns cinco anos meu pai comentava que todas as pessoas da vila viviam da pedra, não passavam fome porque pedra não faltava e eu, criança boba, acreditava piamente nisso. Meu inconsciente foi forjado nas rochas. Eu pensei que nunca mais pisaria lá... aqui... A cidade está tão diferente, tanta loja, tanto prédio, tanta gente metida à besta, empinam os narizes e andam como se tivessem o rei na barriga. Antes havia apenas dois edifícios na cidade inteira, minha mãe costumava dizer que era lugar bom de homem se esconder. Hoje é uma cidade velha, cansada, é a tal da especulação imobiliária, cedo ou tarde ela chega. As árvores nas calçadas foram substituídas por samambaias nas varandas. Os cachorros grandes foram trocados por pets pequenos e barulhentos, se por um lado não impedem a entrada dos ladrões, por outro lado, cagam menos. Os senhores cheirando a tabaco foram trocados por dondocas fedendo Coco Chanel. Quanto a mim, me afeiçoo com facilidade aos papagaios, de todos os animais eles são os únicos que imitam com rigor a imbecilidade humana, são capazes de falar por horas, como nós são tolos e verborrágicos. Quase tudo mudou, no entanto, a casa continua do mesmo jeito, tão assustadora quanto antes e exatamente com a mesma aparência, fora o desgaste natural da tinta, o negrume nas calhas por causa das constantes chuvas de verão, as rachaduras devido ao leve tremor do solo ao longo dos anos e a ferrugem das dobradiças. As janelas continuam trancadas, desde aquele dia nunca mais abrimos as venezianas, agora provavelmente seria inútil tentar abri-las, já se acostumaram à escuridão. E a minha mãe? Exatamente a mesma, impassível feito uma estátua de cera, a mesma cara, as mesmas roupas, o mesmo corte de cabelo, a mesma cor (eu li que os cabelos dos afrodescendentes demoram mais para embranquecer, deve ser verdade, minha mãe tinha todos os motivos do mundo para ser grisalha, no entanto, seu cabelo continuava extremamente preto), o mesmo peso, o mesmo desdém em relação à vida, se perguntarem se prefere uma maçã com canela ou um elefante ao molho pardo ela balançará os ombros,
não é capaz de tomar decisões. Se eu mesmo não tivesse tomado a iniciativa de abrir sua boca e constatar que sua língua continua lá dentro, juraria que tinha sido devorada pelo silêncio. Sabe, minha mãe admirava os crocodilos, não faço ideia do motivo, não tive tempo de perguntar, talvez fosse por causa da sua coloração, talvez fosse por causa do seu parentesco com os dinossauros ou talvez porque possui uma mandíbula forte e admirável. Não sei. O lixo continua se acumulando na cozinha, a cada quinze dias uma vizinha recolhe por caridade, diz que nunca viu um filho tão desnaturado, que deixa a mãe vivendo às minguas enquanto se esbalda na cidade grande, as pessoas do povoado imaginam que a metrópole é um paraíso a céu aberto, não percebem que somos engolidos pouco a pouco por suas engrenagens e suas bocarras de aço. Essa boa mulher não sabe de nada, eu queria visitá-la com mais frequência, eu juro, não consigo.
E ele era tão bonito! O corpo tão macio e molenga! As bochechas tão rosadas! Mas, chorava tanto! Mas, chorava tanto! Se esgoelava dia e noite. E a boca então, mexia sem soltar ruídos, como aqueles peixes pequenos e dourados dentro dos aquários, ornamentando as salas.
Depois da tragédia daquela manhã nunca mais ouvi nenhum ruído vindo da casa, nem os mais costumeiros como os de louças sendo lavadas ou banhos sendo tomados ou gente escutando rádio, a casa virou um túmulo, parece que o velório nunca terminou, ainda posso ver as mulheres com os véus nos rostos e os terços nas mãos, a ladainha interminável, as velas espalhando um cheiro de morto ao redor dos corpos, o caixão branco e pequeno. Sabe, sempre achei estranho famílias grandes, cheias de irmãos. Nunca senti necessidade desse traço de consanguinidade, sozinho me bastava, irmãos ocupam espaços que não devem ser habitados. Nem por isso os afogaria, eu não faria mal a uma mosca, se tivesse mais irmãos, deixaria que eles vingassem. Os homens das antigas pedreiras são perversos. Até hoje me olham de esguelha. Me culpam pelo desaparecimento progressivo da minha mãe e pela morte lenta do meu pai. Será que eles não desconfiam que naquele dia eu também me enterrei um pouco? Eu era apenas uma criança, não tinha juízo! Ninguém percebe que não fiz de propósito? Eu me nego até mesmo a exterminar baratas, como seria capaz de matar um bebê indefeso? Ele se esgoelava tanto, minha mãe estava no fundo, quarando a roupa, o que eu poderia fazer? Só tentei acalmá-lo, naquele momento a única coisa que me veio à cabeça foi a fala do meu pai: “aqui, nessa vila, as pessoas não morrem de fome por causa das pedras”. Então, fiz o que me pareceu mais lógico, peguei alguns pedregulhos e enfiei na boca daquele ser chorão e rosado. Como eu poderia saber que bebês não engolem pedras?
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CAPTURA_0001
Mélio Tinga, Moçambique
V
ia girar, arder, naquele silêncio, todas as coisas. Com a mesma força com que se crava um punhal, de olhos fechados via passar as coisas mais sublimes, os aromas e os sons memoráveis.
Estirado, o corpo era pedra. Dois tiros cravados como flexas no peito. Imerso na poça de sangue. O coração tinha sido perfurado. Sem pulso. A expressão no rosto era de um estranho sorriso. Trinta segundos para o oxigénio da reserva evolar-se.
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