Little shadow tales Melkio & Ana FĂŠrias
12 fotografias, 12 desenhos, 12 histórias. Fotos abstratas de Ana Férias, reinterpretadas por Melkio, que num exercício de imaginação dão origem a novas imagens e pequenas histórias. Fomos e somos todos crianças. Como crianças, observamos as nuvens no céu, encontramos dragões alados que cospem fogo, tartarugas deambulando lentamente, ternos e gentis gigantes, algodão-doce colorido em abundância. A nossa capacidade de imaginar é fértil e ilimitada. Melkio, ao ver os trabalhos de Ana Férias, imagina e reinterpreta os pequenos pedaços de plástico , colocados em composições aparentemente aleatórias, que ganham uma nova vida. Estes, transformam-se em jogos de sombra, como naquele em que se reinventa numa bailarina no São Jorge, domando o dragão ...
Pequenas histórias de sombras, de encantamento, histórias do imaginário das crianças, ainda que para todas as idades.
Bailarina A bailarina, surda de nascença, desconhecia a beleza das palavras. A sua vida era vivida em silêncio, sem vírgulas nem sotaques, saltando sobre a gramática ao ritmo de todas as línguas. Desconhecendo a beleza das palavras, a música e oralidade destas era para ela perfeitamente dispensável. Não era preciso nenhuma voz, para quem como ela falava com a alma.
Coragem Giulio era um desenho preguiçoso e medroso; um sossegado conjunto de linhas esboçadas num quadro campestre. Sorria, enquanto o pintor espalhava cores pela paisagem à sua passagem, consciente de uma paz , que finalizada a obra, seria eterna. Mas, de repente o cenário transformou-se. Fortes pinceladas esconderam os montes, cobertos agora por tintas escuras e esfumados disformes. Giulio, que tinha crescido dormitando no verde do prado, encontrou-se sozinho num fundo branco, frio, ao lado de um touro negro ardendo de raiva. Assim, passa a habitar este quadro chamado “Coragem”, nascido de um esboço de outrora, de um outro quadro, sem nome. Obrigado a adaptar-se, a esquecer o campo onde tinha nascido, entra no seu novo papel e num salto ágil sobe às costas do boi para domá-lo. Giulio, neste quadro nobre de traços corajosos, tem agora um olhar vivo, corrigido a lápis por dentro, mas que apesar do brilhozinho aparenta ainda muito muito sono e tanto medo...
Consciência - olho para ti e, não sei porquê, alguma coisa me diz que não devo fugir. Algo dentro de mim o sugere, alguma coisa que me conhece desde sempre, um amigo desconhecido que com atenção direcionou todas as minhas escolhas. É a consciência, rica pela sabedoria da experiência, nada mais posso fazer que escutá-la.
Destino - olho para ti e, não sei porquê, alguma coisa me diz que não devo deixar-te fugir. Alguma coisa dentro de mim, alguma coisa que me conhece desde sempre, um escritor silencioso que com atenção, direcionou todas as minhas escolhas. É o destino, cheio da luz do tempo, que o sugere e não posso fazer mais que escutá-lo.
O tenor e o morcego (1) António era um tenor e todas as noites saía de casa vestido elegantemente. Caminhava até que as luzes da cidade se tornavam em cor de escuridão floresta. E junto da margem do rio, dedicava uma canção à natureza, amiga generosa a quem devia a sua voz. Todas as noites, enquanto entoava esplêndidas árias, um morcego de grandes asas aproximava-se, parava e escutava-o. Ambos vestidos de negro, cada um fazia a sua parte: um a voz, o outro o ouvido, opostos necessários. Então o som tornava-se música.
O tenor e o morcego (2) Todas as noites, António, depois de cantar no bosque, voltava à cidade sempre mais duvidoso de si e do seu canto. Talvez não fosse assim tão bom como acreditava, talvez, dada a companhia que atraía, debaixo de uma máscara de luzes, estivessem escondidas as trevas, enredando-o cada vez mais . Como regressava a casa, a sempre demasiado cedo, não sabia que, graças ao seu cantar, em cada noite, o morcego se transformava numa doce rapariga.
Livro Ela comprou um livro na banca ao pé da estrada. “A história do marinheiro silencioso”, assim se chamava. O protagonista era gentil e solitário, prestando muita atenção aos outros, mas um pouco infeliz, assim como ela. Por isso sentia-o próximo, muito próximo… tanto que parecia que sentia a sua respiração. Ela não sabia que ele estava a viver na sua leitura e juntos, página após página, descobriram o final que a história lhes tinha reservado.
Il Mago O mago, no calendário do tempo não envelhecia. Permanecia imóvel, numa grande rotunda enquanto os dias giravam em seu redor. Sem idade, estava sentado envolto na distância, a ver as estações passar, as pessoas a crescer e a aproximarem-se dele, apenas por um momento, o tempo de uma magia, e assim num passe de mágica, desaparecerem rua abaixo. O mago tinha uma longa barba branca, guardiã de todas as histórias, recolhidas em cada encruzilhada. Assim a ponta da barba, recortada em pirâmide, a parte mais sábia da memória mais antiga, escondia o segredo de todas as magias. A do lenço que voa e a do seixo que se torna chocolate. A da abelha que transforma em flor tudo o que toca e a do raio de sol que acabava num frasco de compota. Uma magia simples, eficaz que deixava as pessoas, na roda do tempo extasiadas. Assim a ponta da barba de cor branca, um pouco mais branca, sabia que o segredo de todas aquelas magias, estava no desejo que todos tinham de se conseguirem ainda maravilhar.
Pensamentos Mil pensamentos atropelavam-se na sua cabeça: problemas, expectativas, escolhas, perguntas. Um olhar concentrado escrutinava dentro de si, na busca do fio do novelo, mas os pensamentos eram muitos, embrulhados e unidos entre eles. Apertados, fechados e sem espaço, os raciocínios sofriam encarcerados naquela cabeça demasiado pequena para eles. Então, agarrando-se às raízes dos cabelos, treparavam através da pele e, juntos na ponta dos cabelos descobriam o vento. Finalmente livres, respirando profundamente. Crescendo como ramos, eram sombra racional que cobria os seus passos.
Peixe Um peixe que nada livre nada... Sempre e sรณ, perto de sua casa; Um peixe que estรก no aquรกrio deve sentir falta do mar?
Robot Paolo o robot, feito de ferro e lógica, vivia há vinte anos ao serviço das pessoas que passavam à frente dos seus olhos matemáticos. Observava-as como criaturas misteriosas com comportamentos ilógicos. Equações com muitas variáveis em engrenagens líquidas com perspectivas impossíveis. Durante esses anos aprendeu a conhecê-las, mas renunciou a entendê-las e, abandonadas as perguntas, concentrou-se apenas no seu trabalho. Há poucos dias atrás, colheu de repente uma flor sem saber o porquê.
São Jorge Um oráculo disse-lhe que ficaria para sempre impresso na História se conseguisse matar um dragão. Assim, Jorge dedicou a vida à sua procura, atravessando bosques e florestas, mas nunca conseguindo encontrá-lo. O tempo passava, ele envelhecia e do dragão não havia sinal. Agora, já velho era a anedota da aldeia: “Jorge, o louco”, aquele que acredita em dragões, que não fala de outra coisa. E assim, sendo a bobo da aldeia, morreu. Foi grande a tristeza para os aldeãos. Todos o conheciam no fundo, todos lhe queriam bem. Para o seu funeral um pintor criou uma tela. Jorge finalmente lutava contra o dragão que tinha procurado toda a sua vida. Nos séculos seguintes o quadro tornou-se famoso e como previsto, ficou para sempre reconhecido na História.
12 fotografias 12 desenhos e 12 histรณrias. melkio.com cargocollective.com/anaferias