Revista Terra da Gente

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ÁTHILA BERTONCINI

Especial

Biodiversidade

O SENHOR DOS MARES E A PEDRA FUNDAMENTAL CAPÍTULO 6 TEXTO: JOSÉ BRITO CUNHA

ARTE: MATHEUS JEREMIAS FORTUNATO

Era final dos anos 1990 quando o professor Maurício Hostim Silva recebeu um comunicado urgente. Há poucos minutos, um grupo de mergulhadores havia avistado meros (Epinephelus itajara), próximos às estruturas flutuantes no mar usadas para descarregar óleo de navios a alguns quilômetros da costa de São Francisco do Sul, litoral norte de Santa Catarina. Conhecido como “Senhor das pedras”, o mero é um peixe de grande porte, que pode ultrapassar 2 metros de comprimento e pesar mais de 400 quilos. Parente do badejo e da garoupa, a espécie despertou a atenção de pesquisadores catarinenses e serviu de ponto de partida para a criação de um projeto hoje conhecido como Rede Meros do Brasil, mais uma entre as bem-sucedidas iniciativas de preservação da biodiversidade marinha. Patrocinado pela Petrobras, por meio do Programa Petrobras Ambiental, desde 2007, o projeto conta com a articulação em rede de diversas instituições de pesquisa em parceria com a sociedade civil, pescadores e lideranças comunitárias que, juntos, desenvolvem atividades de proteção e bom uso dos recursos do mar. “Nós fazíamos saídas de campo para pesquisar os meros e, como era muito difícil encontrá-los, contávamos com a ajuda dos mergulhadores que, de tempos em tempos, nos avisavam quando haviam avistado algum exemplar da espécie. A partir destes relatos informais, feitos pelos mergulhadores da Transpetro, ampliamos nossas atividades com os demais biólogos e oceanógrafos. A gente trabalhava com a pesquisa e preservação de outras espécies e foi com o aumento da incidência dos meros ao norte de Santa Catarina que o nosso foco mudou e intensificamos as pesquisas com os meros”, conta o professor Maurício, bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq e um dos fundadores do projeto Rede Meros do Brasil. Com o passar do tempo, os equipamentos utilizados em operações oceânicas se transformam em recifes artificiais. São locais protegidos e ricos para a reprodução de espécies marinhas, como a caranha e o mero, por

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MAURÍCIO HOSTIM

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exemplo. Sem a devida proteção, estes ambientes podem servir de armadilhas aos peixes. Em alguns casos, a vulnerabilidade é tanta que a captura pode ser feita com arpão ou até linha, sobretudo no verão, momento mais crítico, quando a agregação reprodutiva dos meros ocorre em períodos longos, entre 15 e 20 dias. Por toda a costa brasileira onde existe área estuarina pode-se encontrar o gigante dos mares, principalmente em águas tropicais e subtropicais do oceano Atlântico até o Golfo do México. No Pacífico, o mero habita um trecho que cobre do Golfo da Califórnia ao Peru. Atualmente, a Rede Meros do Brasil é composta por cientistas, técnicos e articuladores com formação e atuação diversificada em diferentes instituições de pesquisa, como a Univali, Universidade do Vale do Itajaí, em Santa Catarina. Além das parcerias elaboradas com a sociedade em escolas, colônias de pescadores, operadoras de mergulho, empresas e organizações não governamentais que garantem o envolvimento comunitário nos projetos de proteção da biodiversidade marinha. Toda essa articulação coletiva permite uma diversidade de olhares sobre o valor do conhecimento de moradores e pescadores no processo de tomada de decisões no âmbito da conservação marinha. Segundo

o professor Maurício, que hoje vive em terras capixabas e trabalha no Centro Universitário Norte do Espírito Santo – CUENES, “até o lançamento do projeto, peixe era só recurso pesqueiro. Depois, passou a ser entendido como fauna que precisa de conservação”. O início das atividades de pesquisa lembra a trajetória empreendedora, suada e emocionante de boa parte do movimento ambientalista ao redor do mundo. Panfletos e adesivos com mensagens informativas sobre fauna marinha para pescadores e turistas eram produzidos e distribuídos pelos próprios pesquisadores.

GESTÃO COMPARTILHADA

É dia de feira na cidade de Caravelas, Bahia. Perto da barraca de mel, Nivaldo joga conversa fora enquanto sua namorada, Lindaura, oferece potes da iguaria aos fregueses. Entre eles, Paulo Beckemkamp, apicultor forasteiro do sul do País que há pouco se mudara para a região. Clientela satisfeita, negócio fechado. Os três ainda não sabiam, mas ali se formava mais uma parceria do Projeto Meros. Pescador por ofício, Nivaldo, que na verdade é conhecido com Vádi, foi convidado por Paulo a conhecer um dos

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ECOMAR/PAULO BECKENKAMP

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COM A PALAVRA, O PESCADOR ARTESANAL “Camboa é um modo de pesca que a gente usa aqui no manguezal. Arma-se uma rede na beirada do mangue nas entradazinhas pra mariscar quando a maré tá cheia. Quando a área seca, a gente arma a rede pra dentro do mangue. Ao encher novamente, prendemos uma parte da rede embaixo e a outra parte do outro lado, formando uma boia. Uma parte permanece presa com os ganchos na lama e a outra fica solta com lama em cima pra maré não levantar. A gente vai acompanhando com uma vara durante um tempo. Quando a maré tá toda cheinha, a gente retorna pra esvaziar e aí vê o peixe que tem. Costuma dar tarapeba, robalo, taru, vermelho, tainha, xaréu...” (Depoimento de Nivaldo Euvira Nascimento, pescador e colaborador do Projeto Meros do Brasil, no município de Caravelas-BA)

pontos focais do projeto no complexo estuarino do Cassurubá, onde cerca de 350 famílias sobrevivem do extrativismo e da pesca artesanal. “Depois do convite, que eu fui descobrir que o Paulo era coordenador da Ong Ecomar e trabalhava diretamente com pescadores e marisqueiros na Bahia. Tinha que dar certo”, conta Vádi ao telefone. Aos 46 anos, o pescador reconhece que o mero está em situação delicada, mas já esteve muito pior. O monitoramento da temperatura e da transparência da água foi um dos trabalhos realizados em conjunto por uma equipe multidisciplinar que contou com a atuação do pesquisador e do pescador no ano de 2007. O conhecimento acumulado ao longo da vida de um pescador é um dos principais trunfos da metodologia do projeto. Acreditar no saber tradicional, a ponto de envolvê-lo nos debates sobre os rumos da pesquisa, educação ambiental e da própria atividade pesqueira, tem se mostrado uma estratégia eficaz no caminho da recuperação das populações de meros em todo o mundo. “O pescador, cientista e gestor ambiental, cada um possui acumulado um conjunto diferenciado de conhecimentos. Alguns pensam de acordo com um paradigma mais cientificista, outros já defendem que nenhum conhecimento é melhor que o outro. Encontro-me no segundo grupo e minha função no projeto vem sendo pensar e coordenar ações que possam romper com o primeiro paradigma e promover o respeito aos diferentes saberes na gestão ambiental, estimulando o intercâmbio de conhecimentos entre os envolvidos com o projeto”, afirma Leopoldo Cavaleri Gerhardinger, pesquisador da Associação de Estudos Costeiros e Marinhos e Coordenador do Programa de Conhecimento e Práticas Locais da Rede Meros do Brasil.

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ECOMAR/HUGO M. TEIXEIRA

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Em Santa Catarina, estado onde as atividades do projeto Meros surgiram em 2001/2002, foi a partir dos princípios e valores de um pescador conhecido como Seu Jango que pesquisadores do projeto desenvolveram outra ação conjunta na Baía da Babitonga, um grande sistema estuarino com mais de 130 km2 de superfície e que envolve comunidades de seis municípios e, aproximadamente, mil pescadores. De acordo com estudos do projeto, o mero é capturado nas porções internas da Baía da Babitonga há pelo menos 60 anos. Com o apoio dos pescadores e moradores locais foram identificados dois grupos de pesca de espinhel e subaquática. A partir deste relacionamento, foi possível identificar um panorama sobre a espécie nessa localidade. O projeto desenvolve, ainda, práticas influenciadas pelo aprendizado com pescadores e outras pessoas que dependem dos recursos pesqueiros marinhos. “Tivemos diversas oportunidades de interação com pescadores, pensadas e executadas com o propósito de compartilhamento de conhecimento sobre problemas de conservação marinha. Por exemplo, primeiramente fizemos um esforço em cada um dos pontos de atuação, perguntando para os pescadores quem eles acreditavam serem os

principais ‘experts’ do conhecimento sobre os meros. Foram mais de 300 entrevistas, que resultaram na identificação de cerca de 40 especialistas. Estes especialistas foram então entrevistados e envolvidos no projeto para nos ensinar sobre a espécie e os ambientes marinhos”, conta Leopoldo Cavaleri.

DO DISCURSO À POLÍTICA PÚBLICA PELA MORATÓRIA

Outro bom exemplo foi a renovação da Portaria 42/2007 de moratória da espécie. O conhecimento adquirido dos pescadores sobre o grau de ameaça do mero foi importante na justificativa de proteção até 2012. Foi a primeira espécie de peixe marinho a receber uma portaria específica estabelecendo a moratória da pesca por um período de 5 anos, dentro dos quais existe a prioridade de estudos e pesquisas sobre os meros. Fatores como a caça indiscriminada, destruição do habitat e poluição do ambiente marinho são ameaças constantes aos meros e que resultaram na inclusão da espécie na lista vermelha das espécies ameaçadas de extinção da UICN – International Union for Conservation Nature. Hoje, o projeto atua em quatro áreas focais: Bahia, Pernambuco, Santa Catarina e São Paulo. “O

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projeto Meros do Brasil alcançou uma enorme repercussão entre as comunidades que atuamos com maior intensidade (São Francisco do Sul, SC; Cananéia-Iguape, SP; Caravelas, BA; Tamandaré, PE). A maioria dos pescadores de cada um destes locais se envolveu com o projeto em algum momento. Percebemos ainda que é preciso fortalecer ou até reconstruir uma nova identidade, já que os avanços da modernização e globalização vêm impactando a cultura local de maneira acelerada e sem dar tempo para adaptações justas”, comenta Paulo Beckemkamp, coordenador do projeto. Neste aspecto, associar a conservação da biodiversidade a manifestações artísticas como música, teatro, vídeos, é determinante para valorizar cultura e identidade locais entre crianças e adultos.

A atuação da Rede Meros do Brasil não se restringiu apenas à conservação de uma espécie criticamente ameaçada. Os integrantes da Rede tiveram papel fundamental na condução dos processos de criação de diversas Unidades de Conservação Marinha no Brasil, como: RESEX Rio Formoso, PARNAM Abrolhos, RESEX Cassurubá, RESERVA DE FAUNA Babitonga. Em todas estas ocasiões, o conhecimento dos pescadores contribuiu nas argumentações e justificativas de conservação do mero e também dos ambientes marinhos e costeiros. Expedições de pesquisa sobre o conhecimento ecológico local para outros estados como, Sergipe, Pará, Maranhão, Espírito Santo fazem parte dos planos de ampliação da Rede Meros do Brasil.

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