CINEMA COM CARA DE QUADRINHOS: SIN CITY E 300
MICHELLE CAMPOS SESTERREM
Professor Orientador: Marsal テ」ila Alves Branco
Novo Hamburgo, novembro de 2007.
MICHELLE CAMPOS SESTERREM
CINEMA COM CARA DE QUADRINHOS: SIN CITY E 300
Centro Universitário Feevale Instituto de Ciências Sociais Aplicadas Curso de Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo Trabalho de Conclusão de Curso
Professor Orientador: Marsal Ávlia Alves Branco
Novo Hamburgo, novembro de 2007.
MICHELLE CAMPOS SESTERREM
Trabalho de Conclusão de Curso – TCC, submetido ao corpo docente do Centro Universitário Feevale, como parte necessária para obtenção do grau de Bacharel em Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo.
Aprovado por:
____________________________ Prof. Ms. Marsal Ávila Alves Branco Professor Orientador
____________________________ Prof. Ms. Cristiano Max Pereira Pinheiro Banca Examinadora
____________________________ Profª. Dra. Paula Jung Rocha Banca Examinadora
Novo Hamburgo, novembro de 2007.
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Dedico a Dinda Leça, que me deixou ser criança até hoje. Uhum, uhum, uhum.
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Agradecimentos Os sonhos se realizam porque acreditamos neles. Meus desejos abriram os caminhos da esperança e, na esperança está o sucesso. Agradeço aos meus pais que, além dos sonhos, acreditaram em meu coração. Obrigada por me deixar “ousar sonhar” e compreender que os passos que eu daria me levariam ao amanhã. Agradeço ao meu orientador, Marsal, pelos quadrinhos, pela madrugada e pela fé. Aos Sesterrem, aos Oliveira e aos amigos, todos, um a um, pela força, energia, alegria, amizade e carinho. Ao amor. Ao fifinho, por não me deixar só uma noite sequer. A Walt, por trazer um pouco de magia para minha vida. E as duas personalidades mais importantes e sem as quadis nada disso teria acontecido: eu mesma e Deus, o Grande Realizador de todos os nossos sonhos...
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Continue a nadar. Continue a nadar. Pra achar a solução, nadar, nadar... Dory
RESUMO
Este trabalho evidencia, dentro do cinema, o uso de semelhantes estratégias comunicativas e discursivas das histórias em quadrinhos. Analisa como operam dentro da narrativa e como compõem uma tendência emergente da produção cinematográfica atual. Deste uso de estratégias comum se forma um discurso fundado sobre constante diálogo com outras mídias. Propõe uma metodologia de estudo do cinema que possibilita abordar sua linguagem ressaltando as características híbridas de seus discursos, bem como seus modos de organização enquanto processo midiático.
Palavras-chave: Histórias em Quadrinhos. Cinema. Estratégia Comunicativa, Estratégia Discursiva, 300, Sin City.
ABSTRACT
This work shows, considering the cinema, the use of similar strategies communicative and discursive comics stories. It analyzes how they operate within the narrative and makes an emerging trend from the current film production. By this the speech based on constant dialogue with other media is shaped. It proposes a methodology for study of movie theater that enables addressing its hybrid language emphasizing the characteristics of their speeches as well as their modes of organization as proceedings of the media.
Keywords: Comics. Movies. Communications strategy. Strategy Speech, 300, Sin City.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 10 1.
METODOLOGIA DE ANÁLISE......................................................................... 14 Remediação........................................................................................................... 14 1.2 Estratégia......................................................................................................... 17 1.2.1 Estratégias Comunicativas ........................................................................... 18 1.2.2 Estratégias Discursivas................................................................................. 19 1.3 Lugar de Ação das Estratégias ........................................................................ 20
2. HISTÓRIAS EM QUADRINHOS ........................................................................... 24 2.1 Linguagem dos Quadrinhos ............................................................................. 26 2.1.1 Arte Seqüencial ............................................................................................ 26 2.1.2 Tempo........................................................................................................... 31 2.1.3 Enquadramento ............................................................................................ 37 2.1.4 Cores ............................................................................................................ 38 2.1.5 Linhas e Traços ............................................................................................ 42 3. QUADRINHOS NO CINEMA ................................................................................ 47 4. CINEMA COM LINGUAGEM DE QUADRINHOS ................................................. 52 4.1 Sin City: Apresentação e Descrição ................................................................ 52 4.1.1 HQ e Cinema: Estratégias Discursivas Compatrilhadas em Sin City ............ 56 4.2 300: Apresentação e Descrição ....................................................................... 68 4.2.1 HQ e Cinema: Estratégias Discursivas Compatrilhadas em 300 .................. 70 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 80 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 82 OUTRAS REFERÊNCIAS......................................................................................... 84
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES
FIGURA 01 02 03 04
CAPÍTULO 02 02 02 02
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06 07 08 09 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37
02 02 02 02 02 02 02 02 02 02 03 03 03 03 03 04 04 04 04 04 04 04 04 04 04 04 04 04 04 04 04 04
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LEGENDA Mesmo um abajur tem sua própria anatomia. Cada quadro é uma forma geométrica e possui um ponto focal. Onomatopéias e balões. Movimento nos quadrinhos. O contorno do balão representa a entonação da voz ou um pensamento. Alteração (aumento) do tempo através dos requadros. O poder icônico das cores. A expressão através das cores. Cores, forma e composição. A expressão de cada linha. Chester Gould, Carl Barks, R. Crumb e Krystine Kryttre. Kirbyl Sinnott, Rob Liefeld, Nick Cardy e Jules Feiffer. José Muñoz, Joost Swarte, Spiegelman e Will Eisner. Representação do invisível. Representação das emoções. Nemo: primera HQ a chegar ao cinema Cartaz do filme de Buck Rogers Cartaz do filme de Dick Tracy Cartazes dos filmes Sin City e 300 Cartaz de divulgação da estréia de Watchmen Capa do livro “A Dama de Vermelho”. Capa do livro “A Cidade do Pecado”. Capa do livro “O Assassino Amarelo”. Capa do livro "A Grande Matança". Semelhança entre o ator e o personagem. Comparação de enquadramento dos quadrinhos e do filme. Falta de referência do quarto. Roark Jr. Tem a pele amarela. Fotografia alterada por computação gráfica. O contraste destacando os adereços. Quatro dos 17 quadros realizados em 25 segundos no filme. Costura das tramas em Sin City Computação gráfica evidente. O uso do Chroma key nas captações. O contraste reforça a semelhança do enquadramento da HQ e do filme. Uso evidente do quadrinho como storyboard. Quadro realizado em 14 segundos no filme. O tempo no filme não é relativo ao tamanho do quadro da HQ, e sim a seu conteúdo. Utilização literal do diálogo dos quadrinhos no filme.
PÁGINA 29 30 31 33 34 35 39 40 41 43 44 44 45 45 46 48 49 49 50 51 53 53 54 54 57 58 60 61 63 64 66 68 71 73 74 75 76 77 79
INTRODUÇÃO
Cada vez mais presente nas produções atuais, a adaptação dos quadrinhos para o cinema tem contribuído para a análise sobre o diálogo entre as mídias. Questões sobre as peculiaridades de cada linguagem surgem a partir das alterações de sentido que decorrem deste processo em função de fatores como tempo, construção de personagens e elementos visuais.
Embora os quadrinhos tenham causado um impacto muito maior décadas atrás, hoje ganham espaço graças a outras mídias, como as séries televisionadas de animes 1 que deram visibilidade aos mangás, ou o cinema em que são fonte de inspiração para este mesmo meio de comunicação. As adaptações de argumentos originais de HQs para as telas crescem a cada ano, arrecadando fortunas nas bilheterias. Além disso, são lançados brinquedos, jogos eletrônicos, produções televisivas, sites, revistas especializadas, eventos, cursos, exposições em espaços de arte, trabalhos científicos, etc. Pode-se levantar a hipótese que os quadrinhos estão exigindo de volta seu lugar de destaque em nossa sociedade e dificilmente se poderia dizer o contrário, dado que se trata de uma mídia com a mesma idade que o cinema e é uma das indústrias editoriais mais rentáveis do universo impresso.
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Anime, animê ou animé é qualquer animação produzida no Japão. A palavra anime tem significados diferentes para os japoneses e para os ocidentais. Para os japoneses, anime é tudo o que seja desenho animado, seja ele estrangeiro ou nacional. Para os ocidentais, anime é todo o desenho animado que venha do Japão. A origem da palavra é controversa, podendo vir da palavra inglesa animation ("animação") ou da palavra francesa animée ("animado"), versão defendida por pesquisadores como Frederik L Schodt e Alfons Moliné. Ao contrário do que muitos pensam, o anime não é um gênero, mas um meio, e no Japão produzem-se filmes animados com conteúdos variados, dentro de todos os gêneros (comédia, terror, drama, ficção científica, etc).
11 O presente trabalho é um estudo sobre estratégias discursivas típicas das histórias em quadrinhos. Por mais que as adaptações de quadrinhos para o cinema sejam objeto de estudo de centenas de pesquisadores 2, principalmente na área da comunicação 3, ainda existe muito a ser elucidado. Muitos trabalhos analisam isoladamente as linguagens pertinentes a cada uma dessas mídias e todas essas pesquisas são, indiscutivelmente, fundamentais, porém poucos observam as relações e semelhanças existentes entre as linguagens dessas duas mídias e como elas se relacionam.
Certas obras cinematográficas apresentam-se mais suscetíveis a tais análises, demonstrando afinidade maior não somente nos aspectos temáticos e de personagens, mas também de técnica, narrativa e mesmo de linguagem entre a obra original e a adaptada para as telas. Entre os filmes contemporâneos que se destacam na maneira como lidam com essa adaptação de meios estão Sin City e 300. Esse é o principal motivo pelo qual essas obras foram escolhidas como objeto de estudo na pesquisa que se segue.
Entre as justificativas deste estudo, encontram-se o fato de que além de Hollywood demonstrar total conhecimento da capacidade dessas adaptações de gerar lucros e levar milhões de pessoas até os cinemas, Sin City e 300 servem como exemplo de estudo para a caracterização do cinema como interface de diferentes tipos de mídia.
Mais do que apenas sucesso de público e crítica, Sin City e 300 acabaram se tornando motivo de debate em diferentes campos, principalmente em relação à “fidelização” da adaptação. Há quem acredite que Sin City é uma revolução cinematográfica. Um exemplo disso é este trecho da crítica muito otimista escrita por Bernardo Krivochein para o site Zeta Filmes4: “Então temos ‘Sin City’, a mais fiel e impressionante transição de quadrinhos para o cinema já feita. O filme é um marco e por um bom número de razões. (...) E em ‘Sin City’ ocorre não apenas uma 2
Ao colocar os termos “quadrinhos e cinema” na busca da Plataforma Lattes são encontrados 671 pesquisadores. Busca feita no site http://lattes.cnpq.br/ em 22 de novembro de 2007. 3 O refinamento para a área de comunicação baixa de 671 para 274 pesquisadores. Busca feita no site http://lattes.cnpq.br em 22 de novembro de 2007. 4 http://www.zetafilmes.com.br acessado em 22 de novembro de 2007.
12 reverência, mas uma renovação do gênero film noir para revolucionar o cinema digital. Quando eu digo ‘transição’, é no sentido máximo da palavra: ‘Sin City’ não parece ‘adaptado’ ao cinema. (...) A sensação dada é que o filme é justamente a materialização do processo de leitura dos quadrinhos.” E 300 não deixa a desejar em nada para seu predecessor, como mostra a crítica feita por Érico Borno para o site Omelete 5: “A exemplo de Sin City - Cidade do Pecado - também uma adaptação da obra de Miller -, cada frame de 300 é arrancado das páginas dos quadrinhos e convertido em imagem em movimento. Traços e cores aquareladas fiel e lindamente emulados”. Dessa forma, a própria inovação cinematográfica também colabora para que o objeto seja elevado a um nível de discussão acadêmica.
Estudos envolvendo o cinema são valorizados desde o início dessa mídia, ao contrário dos quadrinhos, que até hoje sofrem certa discriminação por muitas partes do meio acadêmico. Muitos estudiosos ainda acreditam que a indústria dos quadrinhos ainda sofre com o “rótulo” de ser considerada apenas uma forma de entretenimento, voltada para o público infantil.
Este trabalho é um esforço para reconhecer – dentro das histórias em quadrinhos – as estratégias discursivas compartilhadas especificamente entre quadrinhos e cinema. Isso demanda uma sistematização a partir da qual é possível estabelecer pontos de referência fundamentais no processo de compreensão dessas mídias.
No capítulo um, identifica-se a metodologia de análise, iniciando pelo processo de remediação descrito por Bolter e Grusin, descrevendo o processo no qual uma mídia se adapta a partir de outra. Em seguida se explana as estratégias comunicativas e discursivas. Na última parte desse capítulo, através do quadro teórico de Charaudeau, divide-se o ato comunicativo em partes distintas e se define em qual dessas partes opera a análise e onde, no processo de comunicação proposto pelos quadrinhos, destacam-se as estratégias discursivas.
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http://www.omelete.com.br acessado em 22 de novembro de 2007.
13 O capítulo dois concentra-se em algumas das especificidades das histórias em quadrinhos que, mais tarde, irão situar as estratégias comuns às HQs e ao cinema. Nesse processo se esclarecem algumas estratégias discursivas dos quadrinhos utilizadas no cinema. A partir daí, descrevem-se os modos como as estratégias agem no interior desses filmes.
O capítulo três apresenta a relação entre quadrinhos e cinema com foco nos filmes adaptados dos quadrinhos os quais, se apropriam da linguagem cinematográfica de forma a apresentarem personagens e narrativas próprios dos quadrinhos, porém de uma maneira comum aos espectadores de cinema.
O capítulo quatro trata da apresentação e descrição de Sin City e 300, desenvolvendo a análise das estratégias no discurso da história em quadrinhos.
1. METODOLOGIA DE ANÁLISE
Remediação
Sempre que uma nova mídia nasce trás consigo a polêmica da morte de sua antecessora. Em toda a história da comunicação este temor nunca se concretizou. A televisão não acabou com o rádio, a internet não acabou com os livros, o cinema não acabou com o teatro, e assim por diante. O que de fato acontece com o surgimento dessa nova mídia é a potencialização e multiplicação de possibilidades.
É preciso observar mais de perto a adaptação feita pelas novas mídias a partir de mídias já existentes. Por exemplo, a transição do meio impresso para o meio eletrônico é uma operação cuja complexidade e exigências cognitivas são enormes, pois requer uma cuidadosa reconfiguração intelectual dos conteúdos. Essa reconfiguração deve ser feita a partir de uma compreensão renovada da sua natureza, da sua genealogia, da sua contextualização cultural e dos objetivos. Os conteúdos devem ser reclassificados e reordenados com o intuito de assegurar uma nova eficácia simbólica exigida pela mídia emergente.
Quando uma mídia é ela mesma incorporada ou representada em outra mídia a isso se chama remediação, que é justamente essa representação de uma mídia em outra e significa a lógica formal pela qual as novas mídias remoldam anteriores formas de mídia.
15 Para abranger a complexidade desse fenômeno de adaptação de novas mídias a partir das já existentes Bolter e Grusin defendem a idéia da dupla lógica da remediação, diante da qual é possível identificar exemplos extraídos de produtos desenvolvidos para o meio digital, como por exemplo, a wikipedia, que é a adaptação digital da tradicional enciclopédia (salvo suas especificidades, como a credibilidade).
A primeira lógica de remediação é a immediacy ou transparent immediacy, equivale a imersão, um estilo de representação visual cujo objetivo é fazer o espectador esquecer a presença da mídia e acreditar que se encontra na presença dos objetos representados como, por exemplo, em um jogo de videogame. O que aqui se frisa é a representação transparente do real.
Na segunda, hypermediacy, a representação visual pretende tornar a mídia remediada explícita para o observador. Por exemplo, quando o apresentador do programa A Noite é Uma Criança, Otávio Mesquita, exibe vídeos da internet diretamente do monitor de seu computador, ou seja, tal e qual ele está na internet.
As novas mídias digitais oscilam entre a immediacy e a hypermediacy, entre transparência e opacidade. Esta oscilação é a chave para compreender como uma mídia remolda suas predecessoras e outras mídias contemporâneas. Embora cada mídia prometa reformar suas predecessoras ao oferecer uma experiência mais imediata ou mais autêntica, a promessa da reforma implica inevitavelmente uma consciência da nova mídia como mídia. Ao mesmo tempo, este processo insiste na presença efetiva, real das mídias na nossa cultura. As mídias têm a mesma exigência de realidade que os artefatos mais tangíveis: fotografias, filmes e aplicações para computador são tão reais como aviões ou prédios. Mais ainda, as tecnologias de mídias constituem redes que podem ser expressas em termos físicos, sociais, estéticos e econômicos. A introdução de uma nova tecnologia de mídia não significa simplesmente inventar um novo hardware e novo software, mas sobre tudo remoldar essa rede. A web não é meramente um protocolo de software, texto e arquivo de dados. É também a soma dos usos desse protocolo. Esses usos são tanto parte da tecnologia como o próprio software. Por essa razão, pode-se dizer
16 que as tecnologias de mídias são agentes na nossa cultura. As novas mídias digitais não são agentes externos que vem causar uma ruptura numa cultura inocente. Emergem do interior de contextos culturais e remoldam outras mídias que são inseridas no mesmo ou em similares contextos. Um exemplo claro é o portal, onde estão inseridas notícias em forma multimídia (podcast, vídeos, textos, galeria de fotos), de modo que uma mesma notícia pode ser anunciada com linguagens midiáticas diferentes no mesmo lugar: no portal.
A hypermediacy tem também dois sentidos correspondentes. No seu sentido epistemológico, a hypermediacy é explicitar – o fato de que o conhecimento do mundo nos chega através da mídia. O observador tem consciência de que está em presença de uma mídia e de que aprende através de atos de mediação ou então aprende sobre a própria mediação. O sentido psicológico de hypermediacy é a experiência de que se está em e na presença da mídia; é a insistência de que a experiência é o que junta as lógicas de immediacy e hypermediacy. Essa atração é socialmente construída, pois é evidente que não só indivíduos como vários grupos sociais podem ter diferentes definições de “autêntico”.
Ainda três aspectos especialmente importantes: em primeiro lugar, nenhuma mídia, hoje em dia, parece realizar seu trabalho cultural isoladamente das outras mídias, nem trabalha isoladamente das outras forças sociais e econômicas. Em segundo lugar, o que é novo nas novas mídias é o modo particular como elas se remoldam as mídias anteriores e o modo como as mídias anteriores se remoldam para responder aos desafios das novas mídias. Mais ainda, não há nada de estranho em uma mídia mais antiga remoldar uma mais recente, pois, em relação à immediacy, hypermediacy e remediação, as filiações históricas entre mídias têm uma inegável importância. Por fim, todas as correntes mídias adotam diferentes estratégias, que são testadas por profissionais de cada mídia (e por vezes de cada gênero dentro da mídia) e depois aceitas ou desencorajadas por forças econômicas e culturais mais amplas.
A remediação oferece uma resposta coerente e agregada de algumas questões constantes intrínsecas na oposição simplista entre o antigo e o novo. De
17 um lado, afastam posicionamentos radicais de ruptura absoluta entre antigas e novas mídias propondo o continuado e evolucionário em vez do descontinuado e revolucionário. A transição de uma mídia para outra não implica em morte súbita, pelo contrário, é apenas uma transição de fase.
O conceito de remediação não se refere simplesmente a uma apropriação de características de uma mídia por outra mídia, mas diz respeito à contínua e permanente reorganização das várias mídias, que vão se modificando sem que nenhuma desapareça. É inegável que os quadrinhos não foram extintos com a popularização dos desenhos animados televisionados e também sabemos que os primeiros programas produzidos pela televisão tinham no rádio, no cinema e no teatro suas principais referências. O fato é que uma mídia sempre se utiliza de outra para se caracterizar como tal.
1.2 Estratégia
A ciência de estratégia concebe um rompimento com certas implicações estruturalistas. Nestas, geralmente, a definição é sinônimo de uma opção que é alheia a qualquer regimento. No estruturalismo optar de maneira livre acerca-se da volta a um subjetivismo individualista na postura analítica. A busca por um método de análise e solução de problemas leva o estrategista a tomada de decisão baseada em dados e fatos ou por motivos particulares, como emoção, intuição, experiência de vida, etc. Em conseqüência, essa tomada de decisão será contrária a convenção coletiva, mas a estratégia, mesmo operando na condição da necessidade prática e individual, não se abstêm das exigências condicionadas pelo mundo social.
As estratégias dividem-se em dois grupos distintos: as estratégias comunicativas e as estratégias discursivas. Embora possam atuar de forma aliada não devem ser confundidos, pois representam universos distintos.
18 1.2.1 Estratégias Comunicativas
As estratégias comunicativas são aquelas que conduzem o produto midiático da indústria para o mercado. São deliberações organizacionais com o intuito de obter sucesso de determinado produto e, para isso, criam paradigmas a serem seguidos desde o processo de criação até quando a revista chega ao consumidor. Branco destaca o desenvolvimento das histórias em quadrinhos no interior das ações destas estratégicas:
Por estratégias comunicativas, entendem-se as decisões que norteiam o processo dentro do qual o produto midiático está inserido. Nesse nível, diversas lógicas estão permanentemente em atuação. São, por exemplo, lógicas de mercado ou tecnológicas, que respondem às necessidades envolvidas no gerenciamento de um produto midiático. Essas necessidades cobrem um importante leque de decisões que vão influir, de uma maneira ou de outra, na condução da história. São questões como a do conhecimento do público que visa atingir, o montante de capital envolvido, os objetivos do produto dentro da empresa, as questões que dizem respeito aos meios técnicos de produção, logística, tiragem, qualidade, etc. (BRANCO, 2005, p.42)
Independentemente do gênero ou estilo da HQ, ela vai atender a essas estratégias, pois é da estratégia comunicativa que vem a sustentabilidade da indústria de quadrinhos. Os parâmetros a serem seguidos são determinados pela alta direção e seguidos por autores, desenhistas, editores, produtores, distribuidores e demais pessoas envolvidas no processo.
Esses parâmetros são definidos com base em dados, fatos ou percepções, ou seja, exigências de mercado. Encontros de planejamento estratégico são realizados entre analistas de mercado e diretores para a apreciação dos fatores e tomada de decisão. Em seguida representantes da alta direção se reúnem com editores, autores e equipe de criação para discutir e adequar as decisões geradas no âmbito das estratégias comunicativas.
O monitoramento do mercado é constante e feito, por exemplo, através de pesquisas de popularidade dos personagens, estudo da concorrência e saturação do
19 mercado, possibilidade de lançamento de produtos derivados (brinquedos, games 6, desenhos animados, etc).
Embora a primeira vista a desmistificação das estratégias comunicativas possa parecer fria e mercenária, sua função é a minimização máxima dos riscos mercadológicos para os produtos midiáticos da indústria de quadrinhos e a busca por exceder as expectativas e/ou satisfazer os desejos e necessidades de seus consumidores.
1.2.2 Estratégias Discursivas
A definição das estratégias discursivas se dá a partir das estratégias comunicativas. As estratégias comunicativas vão dizer, por exemplo, o tamanho, número de páginas, periodicidade, se é em cores ou preto e branco, quanto tempo, receita e colaboradores estão disponíveis para a realização da HQ.
Em seguida as estratégias discursivas começam a se formatar definindo e estruturando o plot 7, os personagens, os cenários, etc. Mais objetivamente, as estratégias comunicativas dizem o que será mostrado e as estratégias discursivas dizem como será mostrado, ainda que uma dependência recíproca exista e possa ser difícil de detectar e/ou distinguir.
Juntamente com a definição das características básicas das estratégias discursivas outras decisões devem ser tomadas antes da produção da HQ. Elementos como espécies de cores, linhas, traços, o plano das figuras, roteiro, estilo artístico, literário, etc, devem ser definidos com antecedência. Branco defende que “qualquer decisão tomada nesse nível reflete no resultado final do produto midiático.” Isso pode ser evidenciado quando, por exemplo, se decide realizar uma história infantil com traços do estilo cartoon, curvas e linhas abertas e em cores brilhantes
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Jogos eletrônicos. Termo usado na indústria de quadrinhos, cinema e games para designar a estrutura de uma história. É a partir da generalidade dessa estrutura que os roteiros são montados e personagens construídos. 7
20 dando uma atmosfera alegre em comparação a uma história adolescente em preto e branco com linhas hostis e hachuras 8 que representam a ansiedade juvenil.
Tais decisões são analisadas e tencionadas no texto quadrinístico desenhando o mapa das estratégias discursivas, que devem estar de acordo com as estratégias comunicativas. É importante ressaltar que nenhuma das duas estratégias é “engessada”, ou seja, elas estão em constante negociação, fazendo com que análises e mudanças influam uma sobre a outra.
Essa influência se dá porque as estratégias comunicativas servem como diretrizes socioeconômicas para a execução das estratégias discursivas, que são intuitivas/pessoais/emotivas. Dessa forma, ainda que, neste trabalho, o foco de análise sejam certas estratégias discursivas dos quadrinhos aplicadas a adaptações quadrinhos/cinema, não se pode desconsiderar a atuação das estratégias comunicativas, pois a própria ação de realizar a adaptação de uma história em quadrinho para cinema já é, em si, uma estratégia comunicativa.
1.3 Lugar de Ação das Estratégias
Todos os processos envolvidos na geração de um produto midiático estão submersos na esfera das estratégias. Desde o planejamento tático da alta direção até a arte-finalização da história em quadrinho, as estratégias se mostram imprescindíveis. Sua atuação é tão fortemente presente que se faz necessário determinar em que fase se pretende efetuar a análise dessas estratégias. Como cada fase da vida do produto midiático possui características específicas e requisitos ímpares em relação à atuação de suas estratégias.
Não se pode analisar da mesma maneira as estratégias que operam no estágio de roteiro com as que operam dentro do discurso quadrinístico propriamente dito (o desenho finalizado). Devido a seu cunho regulamentador e objetivo as estratégias devem ser analisadas sem que se perca de vista em que etapa estão 8
Traços paralelos e eqüidistantes para dar efeito de sombreado.
21 arraigadas, “pois das necessidades, objetivos e práticas dessa fase específica, bem como das soluções encontradas em resposta a elas, é que surgem e se conformam, não podendo responder a nenhuma outra configuração”. (BRANCO, 2005, p.47)
Objetivamente, é preciso indicar precisamente onde, dentro do produto midiático, se fará a análise das estratégias. Essa demarcação rigorosa pleiteia um quadro teórico que estude o ato comunicativo e que balize cada uma das diferentes fases do processo.
Um quadro teórico dividido em três partes do ato comunicativo é proposto por Charaudeau.
Todo ato de comunicação é um objeto de troca entre duas instâncias, uma de enunciação, outra de recepção, cujo sentido depende da relação de intencionalidade que se instaura entre estas. Isso determina três lugares de pertinência: a instância de enunciação, chamada lugar das condições de produção; a instância de recepção, chamada de lugar das condições de interpretação; o texto como produto acabado, chamado de lugar de construção do discurso. (CHARAUDEAU, 1997, p.11)
A primeira parte que fala do lugar das condições de produção está arrolada a duas sub-partes, sendo uma correspondente às condições socioeconômicas e a outra às semiológicas.
Essa primeira sub-parte se reporta a fatores como economia, política e tecnologia. Fala sobre a administração organizacional, suas políticas e hierarquias. Diz respeito ao planejamento estratégico e a comunhão entre suas diretrizes e suas táticas. Nesse nível a inquietação incide menos sobre as ações operacionais do que sobre as estratégicas, táticas e executivas.
A segunda sub-parte refere-se ao processo operacional, ou seja, onde o produto é construído. Neste nível se está frente a parâmetros que dimensionam o produto midiático. Esses parâmetros podem não ser executados, mas dificilmente serão desconsiderados, como por exemplo, um editorial ou uma série televisiva. “É quando acontece a conceitualização do que será produzido em função dos meios técnicos de que se dispõe”. (BRANCO, 2005, P. 48)
22
A segunda parte ou lugar das condições de interpretação também se divide em duas sub-partes. Na primeira está o público idealizado e na segunda o público real. As condições de interpretação incidem em se questionar sobre a realidade do receptor. O importante nesse caso é não confundir as pesquisas e metodologias que procuram um público-alvo e aquelas que se preocupam com o público real.
A última parte, alvo deste trabalho, é o lugar de construção do discurso, ou seja, o produto midiático em si: a história em quadrinhos e o filme. Neste âmbito as atenções se voltam ao que de fato está sendo comunicado e isso é o que será analisado. Elucidar e ratificar esse ponto não significa que se ignora o fato de que outras forças exercem influência sobre o objeto de estudo, até porque essas forças andam junto com as estratégias discursivas.
Ato Comunicativo Lugar das condições de produção: Instância de enunciação Lugar das condições de interpretação: Instância de recepção Lugar de construção do discurso: Texto como produto acabado
Economia, política, tecnologia Processo Operacional Público ideal Público real Produto midiático
O lugar de construção do discurso é conseqüência de um propósito comum. Isso devido ao fato de por um lado redispor o lugar das condições de produção (produto midiático idealizado) e por outro o lugar das condições da interpretação (público idealizado X público real). O resultado é um produto fruto da redisposição que se situa entre o emissor e o receptor, ou seja, é o local do produto midiático, onde as argumentações das extremidades se tocam.
O cinema importa dos quadrinhos algumas estratégias discursivas e esse fenômeno se dá no lugar de construção do discurso. Traduz-se no desenho o discurso do filme: nos textos, enquadramentos, uso das imagens, etc.
Sendo assim, não é foco desta pesquisa a investigação dos motivos que levam o diretor a decidir pelo discurso que decidiu. Não importa se Frank Miller foi
23 contratado para dar ao filme uma fidelidade maior a história original do quadrinho ou para garantir uma fatia gorda da bilheteria gerada pelos fãs de HQ. Mas importa de que forma a história se mostra e que estratégias discursivas estão sendo utilizadas. Referente ao lugar das condições de interpretação, por outro lado, não interessa em absoluto se os espectadores distinguem essas estratégias discursivas remediadas. Ambas as inquietações se referem à outras linhas de indagações que, no momento, não dizem respeito às instâncias do trabalho aqui apresentado.
No entanto, mesmo que não seja do interesse da presente pesquisa, não se pode ignorar a presença e ação das instâncias da produção e da recepção, pois para demonstrar e abalizar as estratégias discursivas localizadas no lugar de construção do discurso, é preciso notar o conjunto. Essa observação acontece para que se possa entender como atuam as estratégias discursivas frente às esferas da produção (autor) e da interpretação (espectador), das quais são reflexos.
É preciso sancionar que realizar uma análise das estratégias é observar indícios deixados por personagens que não estão presentes. Mesmo que a intenção não seja decodificar os desígnios dos articulistas ou o feedback dos espectadores, não se pode esquecer que as estratégias estão conectadas intimamente.
2. HISTÓRIAS EM QUADRINHOS
Histórias
em
Quadrinhos,
HQs,
bandas
desenhadas,
comics,
arte
seqüencial, gibis, entre outras designações são uma das mais difundidas e populares mídias 9 gráficas do planeta. Elas possuem suas próprias estratégias, (tais como balão, onomatopéias, quadros, requadros, etc) bem como se apropriam de estratégias características de outras formas de manifestação como cinema, literatura, fotografia e televisão.
Os produtores de quadrinhos, em função dessa assimilação, possuem uma vasta relação de técnicas narrativas adaptadas para essa mídia, como os enquadramentos do cinema, o texto da literatura, os recursos gráficos da fotografia e os procedimentos de edição e corte da televisão. Esse leque de recursos é adaptado com o intuito de alcançar com êxito o objetivo proposto pela hq, ou seja, é uma remediação.
Esse processo híbrido gera manifestações exclusivas dos quadrinhos e ocupam lugar especial na análise dos fenômenos midiáticos. Primeiramente esse “espelhamento” de diferente técnicas, resultado de sua construção complexa, capacita-os a ser um espaço de experimentações rico dentre os meios de massa. O fato de uma produção de HQs custar muito menos e envolver uma quantidade
9
Se considerarmos que a definição de mídia é o canal, onde ocorre a transmissão de mensagens, que liga a fonte aos receptores, dirigida a um grande público heterogêneo e anônimo, se pode avaliar as HQs como mídia.
25 menor de pessoas ao mesmo tempo contribui para uma maior liberdade de criação 10.
É óbvio que também não se pode afirmar que os quadrinhos são um paraíso da criatividade e da liberdade de expressão dentro das mídias. Isso fica evidente levando em conta a necessidade de “irrigar” o mercado diariamente com centenas de títulos.
Outro cenário corriqueiro é o das produções independentes. Em geral são edições com tiragem pequena e distribuição limitada – o que não quer dizer que devam ser menosprezadas por sua baixa expressão de faturamento – pois são verdadeiros “celeiros” em que a liberdade de expressão e criatividade de desenhistas, roteiristas e editores não são reprimidas por fatores financeiros, além de servirem como termômetro de experimentações.
As adaptações dos quadrinhos para o cinema podem ser consideradas conseqüências
dentro
da
ação
das
lógicas
econômicas
das
estratégias
comunicativas, já que, por exemplo, junto com o filme surge uma série de produtos licenciados. Assim também nas estratégias discursivas, que reformatam os processos midiáticos, como quando temos um quadrinho que é adaptação do cinema que é adaptação do quadrinho, ou seja, uma nova forma de contar a mesma história.
Ainda assim, por possuir um processo de produção e distribuição de custo menor que outras mídias, a fatia de produções diversificadas é favorecida, o que significa afrouxar essas exigências impostas. Na prática isso significa que, se por acaso um título fracassar, a editora esteja condenada à falência ou sofra um impacto tão forte que não seja capaz de se recuperar com facilidade, o que permite eventuais lançamentos arriscados para públicos-alvo mais diversificados. Isso se explica pela grande quantidade de títulos que uma editora, como a DC Comics, por exemplo, costuma ter.
10
Comparando com o cinema e a televisão, onde a pressão que existe é muito maior devido aos custos elevados.
26
2.1 Linguagem dos Quadrinhos
Dentro do universo dos quadrinhos há muitas formas de se usar as mesmas estratégias discursivas. Grande prova disso são os três grupos que dividem as HQs em nível mundial: mangás 11, comics 12 e quadrinhos europeus. E, ainda, se observarmos um desses grupos, incontáveis maneiras de se servir dessas estratégias geram uma mescla que, mesmo que existam parâmetros gerais a serem seguidos, faz com que cada história seja única.
É necessário destacar, mais uma vez, que a remediação nas HQs só acontece com as devidas adequações, em função de suas características próprias, por exemplo, quando acontece a adaptação de uma história em quadrinhos para o cinema, os balões e onomatopéias se transformam em sons reais. Em seguida se apresenta uma concisa descrição de estratégias de discurso, cruciais para a análise de adaptação quadrinhos/cinema.
2.1.1 Arte Seqüencial
Will Eisner definiu as histórias em quadrinho simples e objetivamente como “arte seqüencial” e explica que as HQs consistem em uma montagem de imagem e palavra que exige o exercício visual e verbal. Os detalhes dos desenhos, como perspectiva e anatomia, e as características da literatura como gramática e sintaxe se misturam tornando a leitura dos quadrinhos um ato de dupla vertente: percepção estética e recreação intelectual.
Em contrapartida, Scott McCloud define histórias em quadrinhos como “imagens pictóricas e outras justapostas em seqüência deliberada destinadas a transmitir informações e/ou a produzir uma resposta no espectador”. (McCLOUD, 2003, p. 9) 11 12
Revistas em quadrinhos japonesas. Revistas em quadrinhos de super-heróis norte-americanos.
27
É
importante
também
reforçar
a
característica
multidisciplinar
dos
quadrinhos, que vão da técnica de desenhar, passam pela linguagem, mecânica, física, psicologia, etc. Por exemplo, quando se cria uma história com desenhos realistas que fale de um cientista que constrói uma máquina voadora em plena Idade Média, por exemplo, será preciso estudar história para criar os cenários, anatomia para desenhar os personagens, física e mecânica para a máquina e, claro, traçar um perfil psicológico excêntrico na construção da personalidade do cientista atípico de sua época.
As HQs possuem duas funções: ensino didático e/ou entretenimento. Embora o foco deste trabalho sejam os comics 13 de entretenimento, é preciso citar as tiras, graphic novel14, manuais de instruções e storyboards15 como parte da arte seqüencial. Cada uma se apropria das estratégias discursivas de forma distinta, de acordo com seus objetivos.
Para criar uma história é preciso aperfeiçoar a observação dos ambientes. Alguns elementos básicos de fenômenos e imagens devem ser compreendidos, como a figura humana, perspectiva, luz e sombra, objetos, mecanismos, gravidade, composição, balões e os quadros.
Para desenhar a figura humana é preciso entendê-la e saber suas limitações e movimentos. A imagem mais universal que o artista de quadrinhos encontrará é a figura humana. De toda a relação de inumeráveis imagens que compõem a experiência humana, a anatomia do homem é uma das mais estudadas e, por isso, mais conhecidas.
O corpo humano, a estilização de suas formas, a codificação de sua gesticulação emocional e suas posturas expressivas, tudo isso está armazenado e
13
Comics é uma expressão de origem inglesa que pode ser traduzida como "cómicos" e que designa as bandas desenhadas/histórias em quadrinhos produzidas nos Estados Unidos da América. 14 Apresentam os mesmos personagens conhecidos pelo público dos comics, mas as histórias apresentam conteúdo considerado adulto. 15 Desenhos seqüenciais utilizados como guias nas cenas/planos das produções cinematográficas.
28 registrado na memória, formando um repertório de gestos. As posturas humanas são parte do inventário que o desenhista retém consigo, baseado na observação.
Não se sabe muito sobre o local ou o modo de armazenamento no cérebro dos incontáveis fragmentos de lembrança que se tornam compreensíveis quando dispostos em certa combinação. Mas é óbvio que, quando uma imagem é habilidosamente retratada, ao ser apresentada ela consegue deflagrar uma lembrança que evoca o reconhecimento e os efeitos colaterais sobre a emoção. Trata-se, obviamente, da memória comum da experiência. (EISNER, 16 1996, p. 100)
Nos comics a postura corporal e os gestos ocupam uma posição preponderante com respeito ao texto. As maneiras de empregar as imagens modificam o significado das palavras. As imagens podem sugerir certa emoção e dar modulação auditiva a voz do personagem. Se a habilidade com que um ator finge uma emoção é, em grande parte, o critério para avaliar seu desempenho, da mesma forma se avalia o trabalho do desenhista, que fará o mesmo com seu personagem, porém, com tinta e papel.
É possível definir as emoções de um personagem não só com a postura e gestos, como somente com o rosto. Salvo as orelhas e o nariz, a superfície do rosto está em constante movimento. Sobrancelhas, lábios, mandíbula, pálpebras e bochechas respondem a movimentos musculares acionados por uma central emocional situada no cérebro.
O uso das posturas corporais e expressões faciais (ambas de igual relevância) é de grande importância. Sabendo dosar se pode carregar a narrativa sem necessidade de recorrer a cenários e detalhes desnecessários. Com o uso da anatomia expressiva, a falta de palavras é menos exigente, pois a amplitude do desenho é maior. Quando as palavras têm um significado mais profundo a tarefa se torna ainda mais fácil.
16
Tradução da autora deste trabalho: No se sabe gran cosa de donde o como almacena el cérebro los innumerables bits de memória que contribuyen o se vuelven comprensibles al ser dispoestos em uma cierta combinación. Pero lo que resulta patente es que cuando se muestra uma imagen hábilmente dibujada, puede dispararse um recuerdo que es reconocido y que produce uma emoción colateral. No hay duda de que estamos tratando com la memória común de la experiência. (EISNER, 1996, p. 100)
29 Na arte das histórias em quadrinhos o desenhista precisa desenhar se baseando em suas observações pessoais e se servindo de uma lista de gestos comuns e compreensíveis para o leitor. De fato, o desenhista irá trabalhar com um “dicionário” de gestos humanos.
A perspectiva deve ser pensada a partir do “ponto de fuga”, ou seja, analogia de uma forma com outra em relação a distância, tamanho e dimensionamento mediante o uso de linhas que servem como base para converter o desenho em um ponto do horizonte.
Enquanto a luz é a claridade emitida por uma fonte, a escuridão é a ausência de luz e qualquer pessoa ou objeto iluminado de um lado produz sombra no lado oposto e, caso seja pela mesma fonte de luz, mostrarão sombra na mesma direção sobre o que estiver atrás (parede, chão, outros objetos, etc), ou seja, as sombras se acomodam na superfície conforme a luz é lançada. Além disso, a luz causa efeitos emocionais, como medo do desconhecido quando está muito escuro ou segurança quando está claro e se pode ver para onde ir.
Assim como o ser humano os objetos possuem limites. Desde um apartamento vazio até uma moto, todos possuem uma anatomia e uma capacidade limitada. Essa limitação e anatomia devem ser consideradas na hora de desenhar qualquer objeto. Também é extremamente importante entender o funcionamento dos mecanismos, pois o leitor saberá se o desenhista cometer um erro.
30
É preciso considerar cada quadro como um cenário diferente onde os elementos devem estar dispostos em harmonia, segundo o propósito determinado para cada um desses elementos. Em um quadro nada deve ser acidental ou por descuido. A primeira consideração a se fazer para compor um quadro é o centro da atenção, quer dizer, focar o detalhe ou ação mais importante e situá-los na área de maior atenção do leitor. Cada quadro é uma forma geométrica que possui um “ponto focal” onde se prende o olhar do leitor antes de observar a cena, e cada tipo de quadro possui seu próprio “ponto focal” de acordo com sua forma. Mas, é necessário dizer que o “ponto focal”, ao contrário das regras de perspectiva, não possue base científica. São apenas métodos práticos que correspondem a uma decisão pessoal.
Os balões têm a função de representar os diálogos entre os personagens. Pode-se imaginar que os balões são as conversas que o leitor faz dentro de sua cabeça. É preciso ressaltar que neste ponto se está simulando sons e, neste caso, para dar ênfase se usa o negrito. O leitor irá olhar a página como um todo rapidamente, para somente depois se deter no quadro. Se o valor pictórico das imagens for o que mais chama a atenção do leitor, ele se deixará levar pela tendência de “olhar” o texto dos balões. Neste caso, uma tática é usar a fonte em negrito apenas a serviço dos sons e para “telegrafar” a mensagem. O leitor deve poder deduzir o sentido do diálogo lendo apenas o que estiver em negrito. Deve-se
31 evitar a união de palavras por meio de hifenização, pois deixa a leitura mais lenta. Não se pode perder de vista o fato de que há um lapso de tempo entre um quadro e outro, portanto, cortar uma frase pela metade para terminar no quadro seguinte dificulta o segmento da ação para o leitor. Em questão de som, assim como os balões, estão as onomatopéias. Elas são vocábulos cuja pronúncia imita ou sugere o som da coisa significada. São tão importantes quanto os balões e podem servir para reforçar as falas.
2.1.2 Tempo
A medida de duração dos fenômenos, ou tempo, é uma dimensão essencial nas histórias em quadrinhos. No universo do conhecimento humano o tempo se combina com o espaço e som em uma composição de interdependência, na qual as concepções, ações, movimentos e deslocamentos possuem um significado e são medidos através da percepção que temos da relação entre eles.
A capacidade de manifestar tempo é decisiva para o sucesso de uma história em quadrinhos. Eisner explica que “é essa dimensão da compreensão humana que nos torna capazes de reconhecer e de compartilhar emocionalmente a surpresa, o humor, o terror e todo o âmbito da experiência humana”17. (EISNER, 1996, p. 26) Nesse teatro de nosso entendimento, o quadrinista exercita sua arte. Na essência da arte seqüencial com a finalidade de expressar tempo está o “link” com a
17
Tradução da autora deste trabalho: Es esta dimensión del entendimiento humano la que nos permite reconocer e identificarnos con la sorpresa, el humor, el terror, y toda la escala de la experiência humana.
32 percepção do leitor. Mas, para expressar o tempo, que é a manipulação dos elementos para transmitir uma mensagem ou emoção particular, os quadrinhos tornam-se um elemento decisivo.
Uma história em quadrinhos torna-se “real” quando o tempo e seu ritmo tornam-se elementos ativos da criação. Na música ou em outras formas de comunicação auditiva se consegue medir o tempo real através do ritmo. Nas artes gráficas, a experiência é expressa por meio do uso de ilusões e símbolos e da sua disposição.
O leitor da cultura ocidental aprende a ler a página da esquerda para a direita, de cima para baixo e, assim são dispostos os quadros na página. Este seria o fluxo normal e ideal que o leitor faria, porém, nem sempre acontece assim.
Nos quadrinhos a dependência é de espaço, som e movimento. McCloud explica que o espaço são os quadros e requadros18, cujas formas podem alterar a duração do momento, assim como a repetição do mesmo quadro. O som se divide em dois conjuntos: balões de palavras e onomatopéias. Ambos ajudam a determinar a duração de um quadro pela natureza do som em si, por sua simples presença ou ausência e pela introdução dos fatores ação e reação. O movimento também se divide em dois conjuntos: quadro-a-quadro (momento-a-momento, ação-para-ação, tema-para-tema, cena-a-cena, aspecto-para-aspecto e non-sequitur) e o movimento dentro do quadro (através de linhas).
18
O requadro é um recurso narrativo de grande força expressiva, utilizado na composição para acentuar ou atenuar. É um recorte do quadro para destacar um aspecto ou uma ação paralela.
33
34 O balão é um recurso considerado extremo por Eisner para captar e tornar “visível” a representação do som. A ordenação dos balões que cercam a fala contribui para a medição do tempo. Eles são ordenadores, na medida em que requerem a colaboração do leitor. Um requisito fundamental é que sejam lidos numa seqüência determinada para que se saiba quem fala primeiro. Eles se dirigem à nossa compreensão subliminar da duração da fala. Ao passo que o uso dos balões foi se desenvolvendo, seu contorno passou a ter um papel maior do que de simplesmente circundar a fala. Logo lhe foi infligida a tarefa de adicionar significado e de comunicar a característica do som à narrativa.
Albert Einstein, em sua Teoria da Relatividade diz que o tempo não é absoluto, mas relativo à posição do observador. Em essência, o quadrinho faz desse princípio uma realidade. O ato de enquadrar ou emoldurar a ação não só determina seu perímetro, mas situa a posição do leitor em relação à cena e sugere a duração do evento, ou seja, ele “comunica” o tempo. A proporção do tempo transcorrido não é expressa pelo quadrinho em si, como é possível observar em uma série de quadrinhos em branco. As imagens dentro dos requadros dos quadrinhos atuam como catalisador. A composição de símbolos, imagens e balões faz o enunciado. Em algumas situações, o contorno do quadro é inteiramente eliminado, causando um efeito de alteração do tempo para mais ou para menos, conforme seu objetivo e tamanho. Colocar a ação dentro de quadros também serve para separar as cenas e os atos como uma pontuação. Uma vez situado e disposto na seqüência, o quadro torna-se o discernimento por meio do qual se avalia a ilusão do tempo.
35
Eisner observa:
O número e o tamanho dos quadrinhos também contribuem para marcar o ritmo da história e a passagem do tempo. Por exemplo, quando é necessário comprimir o tempo, usa-se uma quantidade maior de quadrinhos. A ação então se torna mais segmentada, ao contrário da ação que ocorre nos quadrinhos maiores, mais convencionais. Ao colocar quadrinhos mais próximos uns dos outros, lidamos com a “marcha” do tempo no seu sentido mais estrito. 19 (EISNER, 1996, p. 30)
Os formatos dos quadros também têm um papel. Para Eisner, em uma página onde é preciso comunicar uma simetria de ação, dá-se aos quadros o formato de quadrados perfeitos. Por exemplo, uma seqüência de quadros em que se
19
Tradução da autora deste trabalho: El número y tamaño de lãs viñetas también contribuye al ritmo de la historia y al paso del tiempo. Por ejemplo, cuando se trata de comprimir el tiempo, se requiere um mayor número de viñetas. Em tal caso, la acción se hace más segmentada, al contrário de la acción que tiene lugar em lãs viñetas más grandes y convencionales. Al colocar lãs viñetas muy juntas, nos lãs habemos com el “coste” del tiempo trnascurrido em su sentido más restringido. (EISNER, 1996, p. 30)
36 pretende aumentar o tempo para transmitir suspense, onde uma torneira aparece gotejando em cada quadro, ao passo que o pavio queimando fica menor a cada quadro.
Um dos recursos fundamentais para a transmissão do ritmo do tempo é o quadro. As linhas em torno da ação têm entre seus papéis a função de segmentar a narrativa. Os balões e as onomatopéias também são dispositivos de limitação usados para pontuar a representação da fala e do som. Todos esses dispositivos são úteis na projeção do tempo. Outros fenômenos representados por signos distinguíveis, tornam-se parte do repertório de técnicas usadas pelo quadrinista para expressar o tempo. Eles são indispensáveis ao contador de histórias, principalmente quando ele está procurando envolver o leitor.
Assim como em um filme o que se está vendo é o agora. McCloud elucida que o quadro que está no centro da atenção do leitor representa o presente, assim como o quadro posterior representa o futuro. Todavia, diferente das outras mídias, nos quadrinhos o passado é mais “presente”, mais do que uma lembrança, e o futuro é mais do que só possibilidade. Onde os olhos do leitor estiverem será o presente, mas seus olhos também captam a paisagem circunvizinha do passado e do futuro através da visão periférica humana.
Nos quadrinhos o desenhista deve, desde o princípio, prender a atenção e ordenar a seqüência em que o leitor seguirá a narração. As limitações próprias desta mídia são ao mesmo tempo obstáculos e vantagens na hora de tentar esse “namoro”. O maior obstáculo é a visão periférica do olho humano e a tendência do leitor fugir do quadro antes da hora. Não há como, por exemplo, impedir que o leitor vá para a última página e veja o final. O ato de ler a história ordenadamente e virar a página quando acaba de ler a anterior pode até dar um pequeno controle ao quadrinista, mas nada comparado ao de um filme visto pela primeira vez.
O espectador não pode ver o fotograma seguinte antes que o cineasta permita, pois estes fotogramas estão todos na mesma película, uma atrás do outro. Assim, os filmes gozam de um controle absoluto de sua leitura. Ao quadrinista resta
37 contar com a cooperação do leitor e, na verdade, é essa cooperação voluntária que sustenta a relação entre o quadrinista e o público.
Quando a narrativa procura ir além da estética visual, e ousa imitar a realidade, saber dimensionar o tempo é imprescindível. Por mais peculiar que seja a ação do tempo nos quadrinhos, o que o leitor vê parece muito normal, ou ao menos a ilusão parece. O efeito só depende de quem lê.
2.1.3 Enquadramento
A função fundamental das histórias em quadrinhos de comunicar idéias ou histórias por meio de palavras e desenhos implica a representação do movimento através de um espaço. Para representá-las com a captura desses acontecimentos no fluxo da narrativa é preciso desmembrá-las em uma seqüência de quadros.
Ao mesmo tempo em que os quadros servem para indicar o passar do tempo, mostrar a representação de uma série de imagens paradas ou em movimentos, também servem para demonstrar pensamentos, idéias, ações e lugares. O quadrinista deve levar em consideração tanto a experiência humana cotidiana, quanto a maneira como percebemos esse dia-a-dia, que muitas vezes parece se dividir em quadros ou episódios.
Os planos nos quadrinhos são os mesmos usados no cinema: grande plano geral, plano geral, plano médio, plano americano, primeiro plano, primeiríssimo plano e plano detalhe. Os ângulos, assim como os planos, também são os mesmos usados no cinema, ou seja, normal, plongée, contra-plongée, objetiva e subjetiva.
O requisito do leitor não é tanto analisar, mas sim reconhecer. Tendo isso em vista, a tarefa do roteirista consiste em dispôr a seqüência dos acontecimentos (ou desenhos) de maneira a preencher os vazios da ação. Assim, o leitor pode completar os acontecimentos interpostos por meio da experiência (ou conclusão). O
38 sucesso depende da habilidade do quadrinista em equilibrar a forma como os enquadramentos e ângulos são usados com o objetivo de cada quadro.
2.1.4 Cores
A cor é a impressão visual produzida pelos raios de luz decomposta, tornando-se um interesse predominante nos artistas plásticos, como Georges Seurat que dedicou sua vida ao estudo das cores, ou Kandinsky que acreditava que as cores exercem efeitos físicos e emocionais nas pessoas.
Sem sombra de dúvidas as cores podem ser um grande aliado do artista em qualquer meio visual. Nos quadrinhos a história da cor tem sido tempestuosa por muitas razões, mas as duas principais são o comércio e a tecnologia. O comércio afeta todos os aspectos dos quadrinhos. Contudo, a cor nessa mídia sempre foi afetada pela evolução tecnológica.
O físico escocês Sir James Clerk-Maxwell previu em 1861 a reprodução em cores quando isolou os três aditivos primários, ou seja, as três cores primárias: vermelho, azul e verde. Ele descobriu que quando projetadas numa tela em várias combinações essas cores podiam reproduzir todas as cores do espectro visível, e então ele as chamou de aditivas, pois somadas resultavam em uma luz branca.
O pianista francês Louis Ducos Du Hauron, anos depois, teve a idéia de três cores primárias substrativas: vermelho, amarelo e azul. Ele observou que essas cores também se misturam para produzir qualquer nuança do espectro visível, mas em vez de somar luz elas fazem isso a eliminando. O efeito subtrativo foi possível utilizando-se de substâncias transparentes como celofane, vidro, aquarelas ou tinta de impressora.
A partir daí o quadrinho em cor surgiu na indústria jornalística, aumentou as vendas, mas também os custos. A indústria tomou providências para melhorar o custo-benefício do processo e o padrão “quatro cores” passou a predominar. Esse
39 processo restringia a intensidade das três primárias a 100%, 50% e 20% usando tinta preta nos trações. Nasceu aí a marca registrada dos quadrinhos americanos: cores simples e nítidas reproduzidas em papel jornal barato.
Para compensar o efeito do papel jornal nas cores e para se destacar da concorrência, os heróis americanos receberam uniformes e um mundo de cores primárias brilhantes. Embora nenhuma das cores predominasse na maioria das páginas, as cores eram escolhidas por sua força e contrastadas intensamente.
Como não possuía o impacto emocional da saturação de cor única, o potencial expressivo dos quadrinhos coloridos americanos era normalmente neutralizado por cinza e essa era a tendência geral. Mesmo que os quadrinhos coloridos não possuíssem a característica expressionista, eles construíram um novo poder icônico: como as cores dos uniformes dos personagens permaneciam as mesmas, elas passaram a simbolizar esses personagens na mente do leitor.
Além disso, as cores planas possuem a tendência de enfatizar a forma dos objetos animados e inanimados, como quando uma criança faz o exercício de “colorir áreas por números” e faz essa descoberta instintivamente. Quando ela
40 colore, por exemplo, as áreas 4, 7 e 11 descobre a forma de um chapéu, ao passo que quando colore as áreas 6, 9 e 18 descobre uma cabeça. Existe uma consciência maior de formas e objetos em cores do que em preto e branco.
Na Europa a qualidade de impressão era superior a americana, o que gerou a possibilidade de uma sondagem diferenciada para os artistas. Hergé, criador de Tintin, explorou as cores planas (por preferência, não necessidade) com sutileza sem precedentes e criou a democracia da forma, em que nenhuma era menos importante do que as outras. Porém, outros artistas da Europa como Claveloux, Caza e Moebius enxergaram nessa impressão superior uma oportunidade de se expressarem através de uma paleta subjetiva mais intensa.
Nos anos 70 parte deste trabalho europeu chegou aos Estados Unidos e trouxe consigo inspiração para um olhar além das quatro cores. A partir daí a cor assumiu um papel central, ela tinha a capacidade de expressar um estado de espírito, profundidade, sensações, ambientes.
41
Desde então o processo tecnológico foi sofisticado nos Estados Unidos, o que forçou uma adequação à nova realidade. Alguns editores tentaram usar o processo antigo em papel melhor e tiveram péssimos resultados. Estilos antigos de quadrinhos receberam modelação e tons sutis, mas pareciam deslocados. A evolução trouxe novas possibilidades, mas os quadrinhos ainda não haviam se adaptado, o âmago das histórias ainda estavam sendo escritas em cores primárias. A linguagem dos quadrinhos americanos teve que evoluir.
Mas mesmo com este novo nicho, infelizmente, a cor continua sendo uma opção cara e se concentra nas editoras maiores. Esse cenário está mudando gradativamente. Os artistas que desejam ser audaciosos em quadrinhos devem aprender a ser audaciosos no preto e branco.
A diferença entre quadrinhos em preto e branco e em cores é densa, afetando cada nível da experiência de leitura. São linguagens diferentes para a mesma mídia. Em cores a mensagem pode ser enviada de maneira diferente do que
42 em preto e branco. Através de cores mais expressivas os quadrinhos podem transmitir sensações que só a cor é capaz de proporcionar.
Indubitavelmente a história da cor continuará entrelaçada aos fatores comércio e tecnologia. Os quadrinhos coloridos vão continuar atraindo os leitores com mais facilidade do que o preto e branco, afinal, as pessoas vivem em um mundo em cores, não preto e branco e a realidade se aproxima mais das histórias em cores. Porém o leitor busca muito mais do que a realidade e a cor nunca vai substituir inteiramente o preto e branco.
2.1.5 Linhas e Traços
É vital nos quadrinhos a idéia de que uma imagem pode provocar uma resposta emocional. McCloud faz uma conexão desta estratégia discursiva com, movimentos artísticos do final do século XIX e início do século XX, quando os impressionistas convenceram seus contemporâneos de que eles viam o mundo como ele verdadeiramente é, outro mundo despercebido começou a se tornar visível. O estudo objetivo da luz, tão prezado pela corrente impressionista foi abandonado em favor de uma nova abordagem assustadoramente subjetiva. Exemplos disso são as obras de Edvard Munch e Vincent Van Gogh. O expressionismo 20 começou como uma expressão das emoções interiorizadas e que os artistas não podiam mais reprimir. Com a chegada do século XX, personalidades como Wassily Kandinsky demonstraram grande interesse no poder do traço, forma e cor para sugerir o estado interior do artista e provocar os cinco sentidos.
20
Movimento artístico do fim do século XIX e início do século XX que projeta nas obras de arte uma reflexão individual e subjetiva. O Expressionismo não se confunde com o Realismo por não estar interessado na idealização da realidade, mas em sua apreensão pelo sujeito.
43
No mundo dos quadrinhos os traços e linhas carregam consigo um potencial expressivo capaz de comunicar, por exemplo, passividade, orgulho, dinâmica, racionalidade, selvageria, instabilidade, etc. Mesmo as linhas mais “inexpressivas” sempre podem caracterizar alguma coisa. E, conforme McCloud, “embora alguns artistas se considerem expressionistas, isto não significa que não possam diferenciar uma linha de outra”. (McCLOUD, 2003, p. 125)
Em Dick Tracy, por exemplo, Chester Gould usava linhas arrojadas, ângulos obtusos e áreas negras para sugerir um mundo de adultos implacáveis e mortais, enquanto as curvas e linhas abertas do Tio Patinhas, de Carl Barks, passam uma sensação de juventude e inocência. No mundo de R. Crumb, as curvas da inocência
44 são traídas pelos traços neuróticos da vida adulta moderna e deixadas fora de lugar, enquanto na arte de Krystine Kryttre, as curvas da infância e linhas malucas criam uma louca aparência infantil.
Nos anos 60, quando o leitor Marvel era em média pré-adolescente, os artefinalistas usavam traços dinâmicos, mas cordiais, como Kirby Sinnott. O leitor foi crescendo e entrou nas ansiedades da adolescência, dando abertura para linhas hostis e hachuras de um Rob Liefeld. Durante décadas o estilo de artistas como Nick Cardy infundiu expressão pessoal em todas as histórias em quadrinhos produzidas, enquanto as linhas irregulares de Jules Feiffer lutavam consigo mesmas em meio aos conflitos da vida moderna.
No trabalho de José Muñoz, traços feios e áreas de preto se combinam para evocar depravação e decadência, enquanto as linhas nítidas de Joost Swarte mostram ironia e uma fria sofisticação. Em “Prisioneiro do Planeta Inferno”, de Spiegelman, linhas expressionistas representam uma história de horror da vida real. E, na obra moderna de Eisner, uma ampla gama de estilos de traço capturam uma ampla gama de estados de espírito e emoções.
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Se as figuras, dependendo de como são feitas, podem representar coisas invisíveis como emoções, então a distinção entre figuras e ícones como linguagem, que se especializam no invisível, pode parecer meio confusa. A assimilação das linhas é a matéria-prima da qual uma linguagem pode surgir. Nos quadrinhos as linhas são uma forma de representar algo invisível, como o cheiro ruim exalado por uma lata de lixo derramada no chão, ou mesmo para mostrar algo sutil como a fumaça de um cachimbo, ou seja, são metáforas visuais, símbolos lingüísticos e, conforme McCloud, os símbolos são a base da linguagem.
O cenário pode ser outra ferramenta valiosa para indicar idéias invisíveis, sobretudo as emoções. Mesmo quando há pouca ou nenhuma distorção dos personagens em uma cena, o cenário pode afetar a leitura dos estados interiores daqueles personagens. Certos quadros podem produzir um efeito quase fisiológico no leitor. Ele vai atribuir essas sensações não a si mesmo, mas aos personagens com os quais está se identificando.
46 Claro que tais efeitos internos são mais adequados para histórias em quadrinhos sobre questões internas. Quando uma história se baseia mais na caracterização do que na trama, não há muito para se ver externamente, mas o cenário mental dos personagens pode ser uma visão muito interessante. É possível ver esse princípio em muitos quadrinhos europeus e em quadrinhos românticos japoneses, onde foram criados efeitos expressionistas para quase qualquer emoção imaginável.
É lógico que as palavras, mais do que qualquer símbolo visual, têm o poder de descrever completamente o reino invisível dos sentidos e emoções. As palavras podem pegar imagens aparentemente neutras e colocar nelas uma infinidade de sensações e experiências.
As figuras podem induzir sensações fortes no leitor, mas também podem carecer da especificidade das palavras. As palavras, por outro lado, oferecem essa especificidade, mas não contém a carga emocional imediata das figuras, dependendo de um efeito cumulativo gradual. Juntas, as palavras e as imagens podem representar qualquer coisa.
47
3. QUADRINHOS NO CINEMA
Os quadrinhos são fontes inexauríveis para a criação de sucessos de bilheterias no cinema. O primeiro filme do Homem-Aranha surpreendeu a comunidade cinematográfica com o maior índice de bilheteria nos Estados Unidos em um fim de semana (US$ 115 milhões arrecadados no fim de semana de estréia). O que vem a confirmar o espaço conquistado pelas adaptações de quadrinhos para o cinema. “Para os próximos anos está previsto que esta tendência continuará, com seqüências, lançamentos há muito aguardados e filmes dos personagens superheróis menos conhecidos, como também de todos os grandes ícones” (IRWIN, 2005, p.10) Mas, as ligações entre as histórias em quadrinhos e o cinema são mais antigas e profundas.
Quadrinhos e cinema surgiram no final do século XIX sob o impacto sóciocultural das sociedades de massa. O cinema dava os primeiros passos com as tecnologias de filmagem, enquanto os quadrinhos se popularizavam nos jornais. Devido a essa origem simultânea as características de cada um se entrelaçam: ambas são mídias que se expressam através da imagem e da palavra e possuem várias características em comum.
Little Nemo in Slumberland surgiu em 1905, (no The New York Herald, criado por Winsor McCay) e foi o primeiro personagem de quadrinhos a ser adaptado em 1909 para uma animação para o cinema. A popularidade de Little Nemo cresceu rapidamente nos jornais e logo o personagem passou a estampar
48 produtos, como roupas, brinquedos, cartões postais, livros e jogos e em 1908 virou peça de teatro.
Apesar das primeiras adaptações dos quadrinhos para o cinema causarem deslumbre, foi no final dos anos 70 que a profunda ligação entre quadrinhos e cinema começou a ser melhor percebida pelo grande público. Nessa época começaram a surgir grandes produções baseadas em adaptações de conhecidos personagens de quadrinhos, podemos citar como referência de sucesso o clássico Superman (1978) e Buck Rogers no Século XXV (Buck Rogers in the 25th Century) em 1979. Nos anos 80 vieram outras produções como Flash Gordon em 1980 e Batman em 1989. O homem-morcego era um personagem que já havia recebido algumas adaptações, tanto em longa metragem (Batman: O Homem Morcego, de 1966) como em seriado para a televisão nos anos 40 e 60. Mas o filme de Tim Burton
conseguiu
alcançar
patamares
gigantescos
que
renderam
outras
continuidades nos anos 90, embora nenhuma tenha tido uma bilheteria melhor.
49
Dick Tracy em 1990 é um exemplo onde a estética das histórias em quadrinhos é muito presente. O filme foi dirigido, produzido e protagonizado por Warren Beatty. Além dele, Madonna vive Breathless Mahoney, Al Pacino é Big Boy Caprice e Dustin Hoffman como Mumbles. O que chama atenção nesse filme é o colorido e a maquiagem que trás para as telas o clima dos quadrinhos.
Com a chegada do século XXI vem o “boom” de adaptações de histórias em quadrinhos para o cinema. X-Man (2000), Homem-Aranha (2002), Hulk (2003), Demolidor (2003), Mulher Gato (2004), Hellboy (2004), Justiceiro (2004), HomemAranha 2 (2004), O Quarteto Fantástico (2005), Constantine (2005), Batman Begins (2005), Superman, O Retorno (2006), Motoqueiro Fantasma (2007), Homem-Aranha 3 (2007) entre outros e, é claro que o advento da tecnologia facilitou muito essas produções.
Adaptações sempre enfrentam comparações feitas por fãs de quadrinhos, que nunca estão satisfeitos com os resultados. Mas existem muitos fatores que as produções enfrentam, como por exemplo, restrições orçamentárias e técnicas. Megacorporações de comunicação, principalmente americanas, incorporam grandes editoras de quadrinhos, o que, como conseqüência, gera alianças com outras
50 indústrias de entretenimento, tornando suas estratégias de comunicação e marketing cada vez mais evidentes.
As editoras de gibis de super-heróis, que tinham vendagens cada vez mais melancólicas, descobriram sua nova função na indústria cultural: alimentar Hollywood. Criar personagens-produtos, testá-los de uma maneira barata e eficiente, publicando seus gibis e analisando a reação do público consumidor. Para as corporações de mídia, manter uma editora de quadrinhos tornou-se algo como investimento barato em pesquisa de mercado. Para que arriscar dezenas de milhões em um filme sobre um personagem que ninguém conhece? Melhor pegar um herói já testado nos quadrinhos. (CAMPOS, 2000, p.11)
Embora essas adaptações já venham acontecendo há décadas, nos últimos anos esse tipo de filme vem se multiplicando e nos abarrotando de títulos e suas continuações como X-men (1, 2 e 3), Demolidor (que gerou Elektra), Quarteto Fantástico (e o Surfista Prateado), Homem-Aranha (1, 2 e 3). Além de novas adaptações com uma linguagem diferenciada e dirigidas pelo próprio quadrinista como Sin City e 300 de Frank Miller.
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Também é preciso ressaltar as adaptações que ainda nem estrearam e já causam fascínio nos fãs e espectadores potenciais. A exemplo, temos previsões de lançamentos para os próximos anos como The Dark Knight (ou Cavaleiro das Trevas, que é a seqüência de Batman Begins), The Incredible Hulk (O Incrível Hulk), Hellboy 2 - The Golden Army (O Exército de Ouro), Ironman, Wolverine O Filme, Watchmen. Além disso, também existe a incógnita da próxima adaptação de Frank Miller, pois não se sabe ao certo se será sua obra dos quadrinhos Ronin ou The Spirit criado por Will Eisner.
Esse fenômeno só vem a confirmar o espaço conquistado por essas adaptações e o forte interesse das editoras em vender os direitos dos heróis, a ponto de nem mesmo se importarem com a fidelidade da adaptação ou o sucesso de bilheteria do filme. Por outro lado, a indústria do cinema tem em sua meta bilheterias milionárias e, como seu faturamento ultrapassa vastamente o da indústria de quadrinhos, acaba por infligir exigências até mesmo no âmbito da criação quadrinística.
4. CINEMA COM LINGUAGEM DE QUADRINHOS
4.1 Sin City: Apresentação e Descrição
Sin City é o título de uma série de quadrinhos de Frank Miller que virou filme no formato de film noir 21 baseado na graphic novel em 2005, dirigido por Robert Rodriguez, pelo próprio Frank Miller e por Quentin Tarantino, que é creditado como "Diretor Especialmente Convidado".
É publicada no Brasil pela Devir Papelaria de São Paulo. O primeiro título da série foi publicado na revista "Dark Horse Presents" de abril de 1991 a junho de 1992, dividido em treze partes com diversas histórias de duração distintas que se seguiram. Todas as histórias são situadas na cidade fictícia de Basin City, com personagens recorrentes e histórias co-relacionadas.
O filme Sin City foi lançado nos cinemas dos Estados Unidos em 1º de abril de 2005 e em 29 de julho no Brasil arrecadando em seu primeiro fim de semana, apenas nos Estados Unidos, mais de 28,1 milhões de dólares, o equivalente a aproximadamente ¾ do seu custo de produção. É baseado, sob a forma de portmanteau film 22, em quatro histórias de Sin City: “A Dama de Vermelho - O 21
Film noir é um estilo de filme primariamente associado a filmes policiais, que retrata seus personagens principais num mundo cínico e antipático. Os primeiros apareceram no começo da década de 1940. Os "Noirs" foram historicamente filmados em preto-e-branco e eram caracterizados pelo alto contraste. 22 Filmes compostos por diversas histórias curtas que geralmente estão interligadas entre si apenas por um único tema ou premissa. No caso de Sin City, a própria cidade é que une as histórias.
53 Cliente Tem Sempre Razão” (The Babe Wore Red and Other Stories - The Customer Is Always Right), “O Assassino Amarelo” (That Yellow Bastard), “A Cidade do Pecado” (The Hard Goodbye) e “A Grande Matança” (The Big Fat Kill).
“A Dama de Vermelho” (The Babe Wore Red and Other Stories) foi publicada originalmente em novembro de 1994. É a republicação de três contos atualmente em uma única edição. O primeiro conto é “E Atrás da Porta Números Três?” (And Behind Door Number Three?) com quatro páginas da história de alguém que está matando a facadas as garotas da Cidade Velha e que terá uma armadilha planejada por Wendy e Gail. O segundo conto é "O Cliente Tem Sempre Razão" (The Customer Is Always Right) com três páginas sobre dois personagens anônimos, o "Vendedor" e a "Cliente", que se encontram no terraço de um prédio numa noite chuvosa. Aparantemente estranhos um para o outro, eles têm alguma coisa em comum, um débito que terá que ser quitado. No último conto, “A Dama de Vermelho” (The Babe Wore Red), em 24 páginas é contada a história em que Dwight tem dois assasinos em seu encalço e uma misteriosa dama de vermelho como chaves para desvendar o misterioso assassinato de seu amigo.
54 “A Cidade do Pecado” (The Hard Goodbye) foi a primeira história de Sin City, publicada originalmente na revista Dark Horse Presents 51-62 de junho de 1991 a junho de 1992. Conta a história de Marv, um troglodita com sérios problemas psicológicos. Tudo muda quando ele conhece Goldie, que lhe proporciona sua primeira noite de amor e aparece morta misteriosamente no dia seguinte. Marv faz de tudo para desvendar e vingar a morte de Goldie, nem que ele mesmo tenha de morrer pra isso.
“O Assassino Amarelo” (That Yellow Bastard) foi publicado originalmente de fevereiro a julho de 1996. Um dia antes de se aposentar, o honesto policial John Hartigan cumpre sua última missão: prender Hoark Jr., filho de um poderoso político de Sin City, suspeito de violentar e matar crianças. Hartigan salva Nancy Callahan, uma garotinha de 11 anos que seria a mais nova vítima de Roark, é baleado pelo próprio parceiro, preso e acusado de crimes que não cometeu. Oito anos depois Nancy, agora uma stripper, está em perigo novamente, e Hartigan fará o que for necessário para salvá-la mais uma vez.
55 “A Grande Matança” (The Big Fat Kill) foi publicado originalmente de novembro de 1994 a maio de 1995. A história conta como Jack Rafferty acha que seu distintivo de policial lhe dá passe livre para fazer o que bem entender em Basin City. Mas não na Cidade Velha, reduto das prostitutas da cidade, uma terra onde quem cria e executa as leis são as próprias prostitutas num acordo sujo com os policiais, porém a trégua fica prestes a acabar quando Jack entra no caminho de Dwight McCarty.
O filme é construído ao redor de quatro histórias independentes, mas de certo modo conectadas, cada uma com uma curta, e independente, sequência introdutória e um pequeno epílogo que não está necessariamente presente na ordem cronológica. O filme abre com “A Dama de Vermelho - O Cliente Tem Sempre Razão” (The Babe Wore Red and Other Stories - The Customer Is Always Right), seguindo para os créditos de abertura. A seguir, a primeira parte de “O Assassino Amarelo” (That Yellow Bastard) é mostrada, então “A Cidade do Pecado” (The Hard Goodbye) completa, passando para “A Grande Matança” (The Big Fat Kill), depois da qual “O Assassino Amarelo” (That Yellow Bastard) é concluída.
O elenco de “A Dama de Vermelho - O Cliente Tem Sempre Razão” (The Babe Wore Red and Other Stories - The Customer Is Always Right) conta com Josh Hartnett como “O Vendedor” (chamado no filme de "The Man") e Marley Shelton como “A Cliente “. Em “O Assassino Amarelo” (That Yellow Bastard) Bruce Willis é o Detetive John Hartigan, Jessica Alba é Nancy Callahan (com 19 anos), Nick Stahl é Roark Jr. (Assassino Amarelo), Powers Boothe é o Senador Roark e Michael Madsen é o Detevive Bob. Compõem o núcleo de atores de “A Cidade do Pecado” (The Hard Goodbye) Mickey Rourke no papel de Marv, Jaime King como Goldie e Wendy, Carla Gugino como Lucille, Elijah Wood como Kevin e Rutger Hauer como o Cardeal Patrick Henry Roark. Atuando em “A Grande Matança” (The Big Fat Kill) estão Clive Owen como Dwight McCarthy, Benicio Del Toro como o Detetive Tenente Jack "Jackie Boy" Rafferty, Rosario Dawson como Gail, Michael Clarke Duncan como Manute, Alexis Bledel como Becky, Devon Aoki como Miho e Brittany Murphy como Shellie.
56 4.1.1 HQ e Cinema: Estratégias Discursivas Compatrilhadas em Sin City
Somente o fato de adaptar Sin City dos quadrinhos para o cinema já o torna uma remediação de modo geral, mas a forma como foi feito, a utilização da linguagem
dos
quadrinhos
no
cinema
reforça
ainda
mais
esse
caráter.
Enquadramentos, tempo, cores, linhas e traços, as estratégias discursivas dos quadrinhos foram aplicadas ao cinema. Quanto à dupla lógica da remediação, a immediacy aparece no sentido etimológico quando, usa o formato noir, rementendo diretamente aos filmes deste formato da década de 40 e 50, e não diretamente ao quadrinho (embora muitas outras características o denunciem como adaptação dos quadrinhos de Miller). O sentido psicológico da immediacy aparece, por exemplo,quando Hartigan mata Roark Jr. e continua dando socos no que restou do assassino, o som produzido pelos socos de Hartigan na substância amarela e repugnante causa uma sensação no espectador de nojo. Já a hypermediacy surge no sentido etimológico em Sin City quando um plano é contrastado, por exemplo, a cena já citada do Vendedor beijando a Cliente na sacada. O sentido psicológico da hypermediacy aparece quando, dentro de um filme noir temos elementos temporais da atualidade, como os já citados elementos: celular, cartão de crédito, cerveja longneck, tênis All Star, pistolas automáticas e a própria farda da polícia de choque.
“A Dama de Vermelho - O Cliente Tem Sempre Razão” (The Babe Wore Red and Other Stories - The Customer Is Always Right), história de três páginas foi filmado em dez horas. Foi o teste feito por Robert Rodriguez para convencer Frank Miller a realizar o filme e acabou sendo um trecho do filme. Rodriguez considerou fantástico e muito fiel ao desenho de Frank Miller. Os atores são incrivelmente parecidos fisicamente com os personagens dos quadrinhos, o que pode ser evidenciado logo no início, quando os créditos são mostrados com o personagem dos quadrinhos junto com o nome do ator.
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Fig.25 – Semelhança entre o ator e o personagem.
A busca por fidelidade foi a principal razão de Sin City ter sido capturado em meio digital. A gravação foi feita em chroma key 23 para posterior criação dos cenários virtuais. A combinação das duas técnicas fez de Sin City um dos poucos filmes inteiramente digitais. Esta técnica significa também que todo o filme foi inicialmente filmado em cores, e depois convertido para o preto e branco de alta qualidade, permitindo deixar as cores somente em certos objetos, como olhos, lábios ou roupas. A técnica em si é a mesma utilizada em diversos filmes onde existe uma interface com a computação gráfica. Entretanto, um dos diferenciais de Sin City tem como pressuposto a participação direta de Frank Miller. Toda a direção de arte e os enquadramentos do filme tiveram como guia, ou como storyboard, os quadrinhos.
23
O filme Sin City empregou o uso de câmeras digitais de alta definição, tendo os atores atuado em frente a painéis verdes que permitiam que os cenários fossem adicionados depois, na fase de pósprodução.
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Fig.26 – Comparação de enquadramento dos quadrinhos e do filme.
Um primeiro aspecto que reforça tal conjectura reside no fato de que alguns filmes se apropriam de personagens da HQ sem, no entanto, propor uma aproximação de linguagens. Este é o caso de Homem-Aranha, blockbuster24 recordista em bilheteria que empregou a narrativa cinematográfica usual25, ampliada por efeitos especiais de última geração que criassem uma verossimilhança sem precedentes, pois o que o público via na tela era um super-herói realizando as mesmas proezas dos quadrinhos de forma impressionantemente realista (algo inédito ate antão, ao menos da forma como foi feito em Homem-Aranha). Assim, ao fazer Peter Parker voar pelos céus de Nova Iorque lançando suas teias, o filme criou um efeito de máxima catarse, o que afeta diretamente o público de cinema, muito maior que aquele fã de quadrinhos em geral. Assim se cumprem as estratégias comunicativas determinadas para o Homem-Aranha, ou seja, ser um blockbuster de extraordinário sucesso de bilheteria.
24
O lançamento de um blockbuster, ou filme de grande orçamento e proporcional expectativa de público, traz consigo um sem número de matérias em jornais e revistas especializadas. E se o lançamento tem como protagonista um personagem do universo dos quadrinhos, sua receptividade por parte da mídia parece ainda maior. Isto se dá provavelmente pela importância da cultura pop na sociedade atual. 25 O argumento de que o estabelecimento de uma narrativa cinematográfica clássica com vistas à catarse possui certa ligação com o retorno de público de uma obra ficcional audiovisual reside na observação do histórico comportamento da indústria hollywoodiana, que desde sua estruturação busca modelos para enquadramento de roteiros que deverão, ou não, ser produzidos. Christopher Vogler tornou-se o grande guru dos roteiristas americanos a partir do lançamento de The Writer´s Journey (1998), usado por muitos como um manual.
59 No entanto, as estratégias comunicativas do Homem-Aranha não são as mesmas do fime Sin City, que optou por incorporar sua narrativa para remeter o espectador diretamente ao universo da graphic novel de Miller. Tal escolha cria uma identificação entre a obra e seu público, o que talvez confira ao filme um menor potencial de bilheteria 26 do que o citado Homem-Aranha e um perfil independente, reforçado pela escolha de Rodriguez como diretor.
Ao criar uma aura de independente, Sin City não reduz necessariamente suas expectativas de público, mas passa a contar com certa liberdade criativa, apesar de se prender a Sin City dos quadrinhos como storyboard. Parte-se do pressuposto que as opções estéticas e narrativas feitas pelos diretores do filme fizeram parte de uma decisão por uma expressão formal e artística e não por condicionantes e limites dados pelos produtores. Esta é uma das principais estratégias comunicativas da obra.
Não há meios tons nos quadrinhos de Sin City. O clima que se desprende de Basin City em preto e branco remete aos romances policiais norte-americanos e aos filmes noir dos anos 40 e 50, mas ao mesmo tempo temos elementos da sociedade atual, como celular, cartão de crédito, cerveja long-neck, tênis All Star, pistolas automáticas e a própria farda da polícia de choque. É como se fosse uma fenda no tempo misturando passado e futuro.
Os contrastes que explicam a escolha do preto e branco como estratégia discursiva vão além dos contrastes temporais e se manifestam na relação dos personagens. Marv e Goldie, por exemplo, ela é prostituta e ele um perdedor e estão em uma cama em coração branca contra o fundo preto. Enquanto Marv e Goldie transam somente os personagens e a cama podem ser vistos, com exceção de um único quadro, em que a silhueta de Marv é destacada contra o fundo em que se vê a forma de uma janela. É como se eles flutuassem em um cenário etéreo. O leitor não possui ainda referência sobre o local onde ocorre a ação e menos ainda sobre o espaço, algo ainda mais amplo e complexo numa série que se passa em uma cidade como Sin City. 26
O Homem-Aranha teve uma bilheteria de US$ 115 milhões no fim de semana de estréia, enquanto Sin City teve US$ 28.1 milhões.
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Fig.27 – Falta de referência do quarto.
No quadrinho esse encontro amoroso é remetido a uma esfera subjetiva. Depois da morte de Goldie é como se Marv fosse arremessado ao plano concreto e só então se tem melhores referências de que ele se encontra num quarto de hotel barato. Porém, o filme opta pela narrativa cinematográfica clássica, a qual a produção industrial é atrelada, seguindo a convenção de que o espectador não pode perder em momento algum a noção de lugar, o que afetaria os princípios da unidade de espaço. Dessa forma, em toda a seqüência de amor de Marv e Goldie se tem como fundo as paredes do quarto que inclusive são cinza e cheias de manchas, já demonstrando que se trata de um lugar decadente. Isto também é reforçado pelo uso de persianas quebradas, escolha menos expressiva que o simples retângulo branco utilizado por Miller na graphic novel.
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A inclusão de cores para destacar certos elementos da imagem, como na seqüência de Marv e Goldie em que a cama é vermelha, enfatizando o sentimento de paixão, e Goldie tem os cabelos loiros, numa conexão direta com seu nome. Assim também Roark Jr. tem a pele amarela, fazendo referência ao nome da história. Ao longo do filme surgem olhos, lábios, carros e luzes coloridas que se destacam na fotografia preto e branco. Como era de se esperar, já que se trata de uma história passada na violenta Basin City, há sangue escorrendo praticamente o tempo todo e é sobre esse elemento que a cor exerce um papel fundamental de ampliação dramática.
Fig.28 – Roark Jr. tem a pele amarela.
62 Em algumas cenas o sangue jorra em preto e branco, mas é com auxílio da cor que a ênfase fica mais evidente. Em “O Assassino Amarelo” (That Yellow Bastard), quando Hartigan e Nancy são perseguidos por Roark Jr. e ele bate o carro, nos destroçoso Hartigan percebe o sangue de Roark Jr. Este indício conforma que o vilão havia escapado, mas ferido, pois o líquido gosmento de repulsivo cheiro de carne podre é amarelo.
Como citado anteriormente, se optou pelo uso de chroma key. Assim, foram construídos cenários virtuais em 3D, criados a partir dos desenhos de Miller, mantendo-se o preto e o branco. A utilização de película preto e branco não era suficiente, pois esta apresentava várias nuances de cinza e nunca o preto absoluto. Dessa forma, com a recriação das locações em computação gráfica, a ausência de cor pôde ser trabalhada mantendo-se alguns tons de cinza para criar um aspecto realista.
No entanto, do ponto de vista da expressividade, o filme perde algo fundamental com relação ao quadrinho, a escuridão absoluta da cidade do pecado, onde não há nuances nem meio termo. Todos os seus habitantes convivem com a dor, a loucura, a corrupção, o homicídio, a tortuta. Não existe mocinho nem bandido e as ações dos protagonistas, e mesmo dos coadjuvantes, são guiadas pela defesa de seus próprios interesses e paixões.
Em diversos momentos a computação gráfica altera a fotografia de forma a transportar as imagens impressas nos livros para a tela, literalmente. Isto é reforçado por enquadramentos, figurino e postura dos atores, mas como o meio fílmico tem suas peculiaridades, se torna mais óbvio quando a cena é silhuetada. Esta é uma estratégia discursiva tirada dos quadrinhos referente não só a cor e contraste, mas também às linhas e traços de Miller. Como na HQ, na cena em que o “Vendedor” e a “Cliente” estão se beijando na sacada, o que se vê são os contornos brancos dos personagens sobre o fundo escuro.
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Fig.29 – Fotografia alterada por computação gráfica.
Este recurso ressurge ao longo do filme, inclusive para destacar elementos menos visíveis, mas que remetem o espectador ao desenho original. É desta forma que os colares e brincos de Becky são evidenciados, numa conexão com o desenho de Miller, onde os adereços estão em contraste com o apagamento de seu rosto, coberto pela sombra de um negrume absoluto.
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Fig.30 – O contraste destacando os adereços.
Enquanto a estética atinge com êxito a transposição da linguagem dos quadrinhos no cinema, na montagem, o ritmo é alcançado também com sucesso. Através da superposição de quadros e da irregularidade de tamanho, formato e posição na página, a graphic novel alcança uma cadência entrecortada e ágil. Traduzir para imagens em movimento seria criar uma edição dinâmica de planos curtos e rápidos se o cinema clássico fosse seguido. Porém, Rodriguez e Miller optaram por planos longos desacelerados pelos movimentos de câmera que demandam tempo para se completar.
65 A estratégia discursiva do tempo dos quadrinhos aplicado ao cinema seria o tempo médio que o leitor se atém a cada quadro na primeira vez que o lê. Isso é aplicado em Sin City com ajuda dos diálogos retirados literalmente dos quadrinhos. Em quadros que usam uma página inteira com um texto do narrador intercalados com diálogos e onomatopéias, o tempo de plano de um quadro desses é o tempo do narrador falar, dos personagens falarem e das onomatopéias se tranformarem do som significado. Enquanto isso, quadros de ações dinâmicas, sem diálogos, são utilizados de storyboard de planos seqüência ou de cenas dinâmicas, em que muitas vezes o slow/fast são ferramentas para destacar o quadro representado, já que no quadrinho o leitor precisa apenas olhar rapidamente para entender a ação. Por exemplo, o tempo transcorrido entre o momento em que Marv destrói a porta do quarto até o momento em que ele quabra os vidros da viatura em movimento com os pés. No quadrinho são sete páginas com 17 quadros, entre eles dois de página inteira. No filme são 25 segundos.
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Fig.31 – Quatro dos 17 quadros realizados em 25 segundos no filme.
O tempo não está relacionado com o tamanho dos quadros, mas sim com o conteúdo deles. Isso pode ser evidenciado, por exemplo, pela seqüência da cena seguinte a ilustração acima. No quadrinho são apenas três quadros, mas como uma narração relativamente longa. O filme a utiliza literalmente, mas a narração do primeiro quadro seria impossível ser feita no cinema apenas no tempo da ação transcorrida. A viatura leva três segundos para cair na água, enquanto Marv leva 15 segundos para fazer na narração no filme. A saída foi inserir um plano inexistente no quadrinho mostrando Marv dirigindo a viatura enquanto faz a narração, até cair na água.
67 Outra questão relacionada a estratégia discursiva do tempo é a forma como as tramas de Sin City são costuradas no filme. Os protagonistas de uma história se tornam coadjuvantes em outra. O Vendedor de “A Dama de Vermelho - O Cliente Tem Sempre Razão” (The Babe Wore Red and Other Stories - The Customer Is Always Right) reaparece na última cena do filme junto de Becky no elevador. Ele é o primeiro narrador, e o último. “O Assassino Amarelo” (That Yellow Bastard) é dividida em dois momentos e, apesar do que seria mais lógico, não é dividido entre passado e presente, já que na segunda parte a história ainda está no mesmo momento (mas o espectador pode acreditar que a história acabou no primeiro momento com a morte de Hartigan). Esta é a história com maior lapso de tempo: oito anos. A trama de Marv e Goldie, “A Cidade do Pecado” (The Hard Goodbye), se desenvolve do início ao fim, com a morte de Marv, porém ele aparece como coadjuvante em “A Grande Matança” (The Big Fat Kill). Dwight é coadjuvante da história de Marv. Nancy é nas duas histórias e protagonista em “O Assassino Amarelo” (That Yellow Bastard). Gail é protagonista em “A Grande Matança” (The Big Fat Kill) e coadjuvante em “A Cidade do Pecado” (The Hard Goodbye). Kevin, assim como Marv, morrem em “A Cidade do Pecado” (The Hard Goodbye) e reaparece como coadjuvante em “O Assassino Amarelo” (That Yellow Bastard). Não há uma linha cronológica linear e o filme não segue a cronologia dos quadrinhos, pois na cena de Marv entrando no bar e socando um leão de chácara, Dwight está presente, mas na HQ ele estaria se recuperando do confronto com Ava, quando Damien Lord é assassinado. Ele faz os comentários sobre Marv que aparecem na cena do filme, mas cronologicamente, nos quadrinhos, isso aconteceria num ponto muito anterior.
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Fig.32 – Costura das tramas em Sin City.
Ao identificar as estratégias discursivas compartilhadas entre a obra cinematográfica e a graphic novel, este estudo não cobra do filme fidelidade absoluta aos quadrinhos, até mesmo porque seria inviável. Este posicionamento inflexível não se sustenta diante da inesgotável discussão sobre a impossibilidade de conformação completa de uma linguagem a partir de outra, já que cada uma delas possui especificidades instrínsecas. Na verdade, se questiona a pretensa busca por esta transposição que, em Sin City, levou tentou levar ao limite o diálogo com os quadrinhos.
4.2 300: Apresentação e Descrição
Dando continuidade ao sucesso de Sin City, 300 é o segundo título de Frank Miller a virar filme adaptado a partir de seus quadrinhos, dirigido por Zack Snyder com Frank Miller como produtor executivo e consultor.
69 No Brasil, “Os 300 de Esparta” também foi publicado pela Devir Papelaria de São Paulo. A obra foi inicialmente publicada em cinco edições mensais também pela "Dark Horse Comics", tendo a primeira edição em maio de 1998. Os títulos das edições eram "Honra" (Honor), "Dever" (Duty), "Glória" (Glory), "Combate e Vitória" (Combat and Victory). Em 1999 a série foi reunida em edição única de capa dura, ganhou três prêmios Eisner Awards em 1999: "Best Limited Series" (Melhor Série Limitada), "Best Writer / Artist" (Melhor Escritor / Artista) de Frank Miller e "Best Colorist" (Melhor Colorista) de Lynn Varley.
O filme tece um orçamento de 60 milhões de dólares e estreou nos cinemas americanos em 9 de março de 2007 e no Brasil em 30 de março. O elenco conta com Gerard Butler como Rei Leônidas I, Lena Headey como Rainha Gorgo de Esparta, Rodrigo Santoro como Xerxes, David Wenham como Dilios, Dominic West como Theron, Vincent Regan como Capitão Artemis, Michael Fassbender como Stelios, Andrew Tiernan como Ephialtes, Andrew Pleavin como Daxos, Tim Connolly como pai de Leônidas, Marie-Julie Rivest como mãe de Leônidas e Tyler Max Nietzel como Leônidas aos 12 anos.
300 de Esparta conta a história de guerreiros espartanos que, com um pequeno contingente de trezentos homens e alguns aliados liderados pelo rei Leônidas, conseguiram resistir por três longos dias uma invasão de centenas de milhares de persas sob o comando do tirano rei Xerxes, travando no Desfiladeiro das Termópilas, uma das mais sangrentas e heróicas batalhas da história da humanidade.
A obra começa com um orador espartano contando a vida do jovem rei Leônidas I, revelando também o rigor e a disciplina a que foi submetido durante a sua infância. Aos sete anos, é tirado da sua mãe para inciar a "agogê" - o treino real para um Rei espartano. Passados anos e dado como morto, Leônidas regressa a casa onde é aclamado rei. Passados trinta anos, o orador conta que um mensageiro persa chega a Esparta e comunica-lhe o desejo de Xerxes em dominar a região. Leônidas, ofendido com tal mensagem, mata o mensageiro com a sentença “This is Sparta!” e decide começar uma guerra com Xerxes. Apesar dos avisos, Leônidas decide em pegar 300 dos melhores homems e marcha em direção ao Império Persa.
70 4.2.1 HQ e Cinema: Estratégias Discursivas Compatrilhadas em 300
Dando continuidade a Sin City, a adaptação dos quadrinhos 300 de Frank Miller para o cinema já é uma remediação e, assim como em Sin City, as estratégias discursivas das HQs (como enquadramentos, cores, linhas, etc) utilizadas intensificam essa propriedade.
A dupla lógica da remediação se manifesta em 300 como immediacy no sentido etimológico através do gênero épico como foi explorada, o que num primeiro momento pode remeter o público ao filme Os 300 de Esparta (1962) ou a outros blockbusters
épicos
como
Tróia
(2004)
e
Alexander(2004),
ofuscando
a
particularidade de adaptação de HQ. O sentido psicológico de immediacy está em contar algo baseado em fatos reais, uma batalha histórica, a Batalha das Termópilas, o que comove o público que se identifica com os espartanos e experimenta um sentimento de justiça quando a trama chega ao final e o numeroso e bem preparado exército grego parte para a vitória.
A segunda parte da dupla lógica da remediação, a hypermediacy, se revela em 300 em momentos em que a computação gráfica torna evidente a fonte do filme, por exemplo, quando Leônidas enfrenta o lobo, ou quando vemos Xerxes com mais de dois metros de altura ao lado de Leônidas, quando sabemos que os dois atores possuem a mesma estatura e porte físico. O sentido psicológico da hypermediacy pode ser notado na trilha sonora, que cria o clima épico e estimula as emoções do espectador de acordo com a cena e é um elemento fundamental em cenas como a despedida de Leônidas e sua Rainha (e a imagem do campo de trigo, assim como a trilha, remetem diretamente ao filme Gladiador), ou como a cena da batalha em que Astinos (filho do Capitão Artemis) é decapitado e a música reflete o ritmo frenético da luta misturando instrumentos do oriente-médio (lembrando a trilha de Van Helsin – 2004).
71
Fig.33 – Computação gráfica evidente.
A semelhança entre os personagens de Miller e os atores também pode ser notada. Em entrevista para a Revista Galileu de março de 2007 o diretor do filme, Zack Snider comenta sobre a escolha de Rodrigo Santoro para o papel de Xerxes "Quando Rodrigo foi embora, eu disse pra minha mulher que ele poderia ser o rei persa e ela não acreditou. Eu falei que, quando ele raspasse a cabeça, colocasse a maquiagem, a roupa e o fizéssemos gigante, ficaria perfeito. Eu acho que ele é perfeito." Esta semelhança além de requisito do diretor é uma estratégia discursiva, pois aproxima o que o leitor vê na HQ com o que o espectador vê no filme.
Apesar de Sin City e 300 serem adaptações dos quadrinhos de Frank Miller para o cinema, as estratégias comunicativas de ambas são diferentes. Um dos fatores pode ser a direção de Miller em Sin City, o que não se repete em 300. Mesmo que 300 seja uma história épica, a direção de Zack Snyder o deixou muito mais parecido com os atuais blockbusters épicos do que com a aproximação da linguagem dos quadrinhos feita em Sin City, e é possível que após o sucesso de Sin
72 City a estratégia comunicativa tenha sido alterada para tornar 300 um blockbuster, deixando de lado o perfil independente criado por Rodriguez. Em seu final de semana de estréia 300 arrecadou US$ 70 milhões, ou seja, US$ 41,9 milhões mais que Sin City. O fato da Warner Bros estar por trás de 300 e não de Sin City pode ser a explicação para essa mudança de estratégia comunicativa, ao menos é um forte indício.
A gravação feita em chroma key para posterior aplicação da computação gráfica a favor da recriação de cenários, assim como o uso dos quadrinhos como storyboard são estratégias comuns a Sin City e, assim como na primeira adaptação de Miller, confere uma maior fidelidade a obra original, ou seja, aos quadrinhos de 300. Porém outra estratégia discursiva diferencia o produto final deste tipo de captação: a cor. Enquanto Sin City com seu formato noir usa o preto e branco e a cor apenas em elementos que pretende destacar, 300 é totalmente colorido, mas suas cores não são realistas. Miller utiliza cores suaves, muito diferentes das cores primárias brilhantes dos primeiros comics de super-heróis americanos, se aproximando mais do estilo europeu com suas cores sutis. Nesse sentido, o filme 300 se aproxima mais da HQ do em Sin City, que teve que se utilizar de tons de cinza no filme, o que foi um ponto de divergência entre o quadrinho e o filme, já que o quadrinho é preto e branco, sem meio termo.
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Fig.34 – O uso do chroma key nas captações.
Assim como em Sin City, em alguns pontos do filme, 300 se utiliza do contraste e de planos silhuetados que reforçam o enquadramento e acentuam linhas e traços, o tornando idêntico ao quadrinho. Isso pode ser observado na cena do primeiro dia de batalha, em que os soldados espartanos derrubam seus advesários do penhasco. Porém, esta estratégia discursiva é pouco usada, se comparada a Sin City.
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Fig.35 – O contraste reforça a semelhança do enquadramento da HQ e do filme.
Referente aos enquadramentos, o uso da HQ como storyboard aparece em vários momentos, como no momento em que o emissário de Xerxes tem sua mão arrancada por Dilios, quando o exército de imortais marcha em direção aos espartanos, quando o exército espartano assiste a tempestade destruir as embarcações persas. Esta é uma estratégia discursiva compartilhada entre os quadrinhos e o cinema presente tanto em Sin City quanto em 300 e talvez seja o mais forte laço entre as linguagens dessas mídias.
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Fig.36 – Uso evidente do quadrinho como storyboard.
O tempo em 300 atinge o ápice como estratégia discursiva compartilhada durante as batalhas, que se utilizam seguidamente do recurso slow/fast para enfatizar o quadro da HQ a que estão se referenciando. Os momentos de slow são relacionados a quadros maiores, ou seja, quanto maior o quadro, maior o tempo de slow. O fast é utilizado para dar a impressão de se pular de um quadro para outro e/ou de uma página para outra. Como essas cenas de batalhas possuem pouco ou nenhum diálogo, o tempo utilizado para se passar os olhos por cada quadro é menor, porém significativo e a forma de transpor esse tempo de leitura para as telas é através do slow/fast. Por exemplo, quando o exército de imortais marcha em direção aos espartanos. A ilustração abaixo mostrando o mesmo momento no filme e nos quadrinhos, com duração de 14 segundos no filme, equivalendo ao diálogo (que se repete no filme através de seu narrador) literal da segunda e terceira fala do narrador da HQ.
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Fig.37 – Quadro realizado em 14 segundos no filme.
Conforme evidenciado anteriormente em Sin City, a estratégia discursiva do tempo no filme não é relativo ao tamanho do quadro da HQ, e sim a seu conteúdo. A adaptação do tempo dos quadrinhos para o cinema está relacionada ao tempo médio que o leitor se prende a cada quadro na primeira vez que o lê. Isso pode ser visto em 300 após Leônidas chutar o mensageiro de Xerxes. No filme o plano que mostra o mensageiro caindo no poço três leva segundos, enquanto que no quadrinho é apenas um quadro com dois requadros. O recurso usado neste momento foi o slow para aumentar o tempo, pois apesar de ser apenas um quadro existem dois requadros e uma onomatopéia do grito do mensageiro que estão sendo usados como recurso narrativo para aumentar o tempo.
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Fig.38 – O tempo no filme não é relativo ao tamanho do quadro da HQ, e sim a seu conteúdo.
Cronologicamente, 300 se inicia com a narração de Dillius sobre a tragetória de Leônidas através das tradições espartanas como o descarte de bebês deficientes e o triunfo no “agogê”, que o tornou Rei. Em seguida acontece uma fenda no tempo e Dillius continua contando a história, mas ele aparece com um tapa-olho junto a uma fogueira e cercado por soldados. Nesse momento ele deixa de ser narrador para ser personagem. Outro pulo no tempo é dado e Dillius continua a ser personagem, porém sem o ferimento do olho, o que indica que está de volta ao passado, mais precisamente no início do que ocasionou a Batalha das Termópilas. A partir daí ocasionalmente Dillius reaparece como narrador para enfatizar momentos críticos da narrativa. Antes da última batalha entre Leônidas e Xerxes, ele é enviado de volta a Esparta para contar o que houve e isso acontece em forma de narração até a penúltima cena. Por esse motivo a narração da última batalha é extremamente exagerada e heróica por parte dos espartanos (em especial Leônidas, que é o último a morrer), e isso acontece porque Dillius não testemunhou esta batalha, mas tinha a
78 missão de motivar quem quer que o ouvisse. Na última cena ele volta a ser personagem e se insinua que toda a narração foi feita para o imenso exército grego, justificando seu exagero ao descrever a última luta de Leônidas. Como é possível notar, a utilização do narrador no desenrolar da trama é de importância fundamental na lógica da cronologia, e acontece de forma idêntica na HQ e no filme.
Outra estratégia discursiva utilizada para aproximar as duas mídias é a utilização de diálogos literais, como em Sin City. Uma das muitas cenas em que o diálogo literal é usado pode ser vista na ilustração abaixo, em que Leônidas está prestes a chutar o mensageiro de Xerxes para dentro de um poço.
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Fig.39 – Utilização literal do diálogo dos quadrinhos no filme.
No entanto, conforme já mencionado, o objetivo deste estudo não é evidenciar exatidão ao se adaptar 300 dos quadrinhos de Frank Miller para o cinema. No que diz respeito a estética, assim como em Sin City, 300 atinge com sucesso seus objetivos desencadeados em uma série de estratégias discursivas compartilhadas. O que se quer é demonstrar a aproximação das linguagens de duas mídias distintas, o que trás novas possibilidades para ambas, como evidenciado em 300.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Durante a análise desenvolvida, identificam-se estratégias discursivas comuns entre os quadrinhos e cinema. Isso foi feito através da assimilação do ato comunicativo, permitindo operacionalizar o conceito de estratégia. Através desta aproximação ressaltaram-se quais movimentos, na ordem do discurso, são compartilhados pelas narrativas de quadrinhos e cinema. A partir do quadro teórico de Charaudeau, definiu-se o lugar onde ocorre a ação dessas estratégias dentro do ato comunicativo.
Definiram-se quatro estratégias discursivas dentro da linguagem dos quadrinhos: tempo, enquadramento, cores, linhas e traços, cujos modos de operação foram identificados e descritos no âmbito das HQs e do cinema. Pretendese ter justificado, através da interpretação das obras escolhidas como corpus da pesquisa (as histórias em quadrinhos adaptadas para o cinema, Sin City e 300), que as estratégias descritas puderam ser resgatadas, e seu modo de operar, descrito.
O processo de remediação serviu como um dos pilares fundamentais para elucidar as diversas formas como uma mídia se manifesta em outra. Sua dupla lógica, immediacy e hypermediacy, estão presentes não somente nas obras que foram objeto de estudo do presente trabalho, mas constantemente em outras obras do cinema e dos quadrinhos, assim como em todas as mídias. Essa releitura das mídias é imprescindível para o raciocínio de seu funcionamento e consciência da constante presença da remediação.
81 É de suma importância a busca do entendimento da função dos quadrinhos como mídia e como elemento da indústria do entretenimento. Eles representam a maior fatia dos mercados editoriais em países como Japão e Estados Unidos e chegam a ter títulos com tiragens mensais de mais de um milhão de cópias. São vias para sucessos de bilheterias que trazem consigo uma série de produtos como brinquedos, jogos eletrônicos, roupas, calçados, papelarias, CDs, DVDs, desenhos animados, séries de televisão e uma gama de fontes lucrativas. Isso nos leva a crer que
os
quadrinhos
compõem
uma
tendência
emergente
da
produção
cinematográfica atual que merece um olhar mais analítico-crítico. A concepção desse processo pode ajudar na ampliação das questões que abrangem o campo da comunicação no desenvolvimento das atuais políticas culturais e científicas que envolvem os quadrinhos.
Espera-se que a elucidação dos modos de operação comuns das estratégias entre as mídias (dos quadrinhos adaptados para o cinema), no caso deste trabalho através das obras de Frank Miller, tenha servido como fator de esclarecimento de questões como a remediação e a forma como ela acontece neste caso, evidenciando o diálogo entre essas mídias de forma harmônica e inédita no mercado do entretenimento até então.
Dessa forma, é possível afirmar que apesar das distintas estratégias comunicativas apresentadas em Sin City e 300, as estratégias discursivas compartilhadas são, muitas vezes, as mesmas, criando uma nova forma de adaptar uma história em quadrinhos para as telas de cinema.
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