Alberto Vieira O (re)descobrimento / (re)conhecimento do Porto Santo e da Madeira. Em torno da HistĂłria, de alguns conceitos e imprecisĂľes
2018
O Porto Santo e a Madeira. O descobrimento português.
O PORTO SANTO E A MADEIRA. O DESCOBRIMENTO PORTUGUÊS. Uma profusão de termos define o processo de revelação à Europa das ilhas. Uns falam de descobrimento, partindo da ideia de que as ilhas não seriam antes conhecidas, o que contradiz os textos e a cartografia dos séculos anteriores; outros, baseados nesta documentação dispersa, avançam com a ideia de redescobrimento. Importa, pois, esclarecer alguns conceitos e aclarar algumas dúvidas sobre o processo histórico, tendo em conta que, para o discurso historiográfico, o mais importante é o ato de povoar e valorizar economicamente o espaço. E foi isso que aconteceu com os portugueses, de acordo com a informação disponível. DESCOBRIR/ACHAR. Os conceitos “descobrir” e “descobrimento” só entraram na terminologia do século XV, a partir de 1470. Até então, usava-se as palavras achar, saber parte de, obter informação. É isso que acontece em Zurara que, no que respeita à Madeira, refere sempre “buscar” e “achar”. O sentido era duplo, pois tanto quereria significar “conhecer pela primeira vez”, como “revelar a informação obtida”, mesmo vaga e restrita. O descobrimento só é considerado como tal, quando é aceite e conhecido de todos. Fontoura da Costa (1940) distingue o descobrimento histórico, do oficial. O primeiro fundamenta-se nas informações, mais ou menos vagas, da tradição, enquanto o segundo se apoia no ato de demarcação oficial do achado. No caso dos portugueses, o descobrimento manifestou-se como a revelação de um espaço, em termos geográficos e económicos e a sua incorporação no mundo conhecido, através da sua representação cartográfica. A questão do descobrimento do arquipélago da Madeira coloca, à partida, a questão sobre o que realmente terá sucedido no século XV. Mas, em primeiro lugar, é necessário precisar os conceitos: no primeiro quartel do século XV, não era comum a palavra descoberta, mas sim descobrimento, palavra esta documentada a partir de 1470, aparecendo, também, “achar”, em textos de alguns dos cronistas, o que nos leva a concluir que as ilhas eram dantes conhecidas e que teria sido com base nessa informação que os portugueses as encontraram e iniciaram o processo de povoamento. A DATA DA DESCOBERTA PORTUGUESA. Zurara afirma que o descobrimento português aconteceu «depois da vinda que o Infante fez do descerco de Ceuta», em 1419, portanto. Em 1590, Gaspar Frutuoso afirmava que “logo no mesmo anno q. tornou do cerco de Cepta que foi o de mil, e quatro centos e dexanoue”, se bem que outras versões apontem o ano anterior ou 1417. O mesmo autor refere ainda outra data: “Outros dizem que no ano de 1420 João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz, de casa do Infante Dom Henrique, foram de Lagos, onde o Infante estava, em um navio saltear as Canárias e a ilha dos Lobos, e da tornada, dando tormenta neles, foram ter à ilha do Porto Santo, o qual nome lhe eles puseram pela tormenta em que se viram, de que nela escaparam, onde estiveram alguns dias,...”(FRUTUOSO, 1979, 20)
2
O Porto Santo e a Madeira. O descobrimento português.
Em 1455(?), Cadamosto esteve nestas ilhas. A viagem começou a 22 de março de 1455 e, a 25 deste mesmo mês, aportou à ilha do Porto Santo, referindo-se-lhe da seguinte maneira: “...foi descoberta há vinte e sete anos pelas caravelas do sobredito senhor infante, que as fez habitar por portugueses. Nunca dantes fora habitada.” (ARAGÃO, 1981, 35) Cadamosto estabelece uma data concreta para este feito: “Esta ilha é chamada Porto Santo, porque foi descoberta no dia de todos os Santos ”(ARAGÃO, 1981, 36). A data exata do chamado descobrimento oficial do arquipélago não reúne consensos. O dia 1 de julho de 1419, que se estipulou como o Dia da Região apoia-se na teoria de Gaspar Frutuoso, açoriano que escreveu o Livro Segundo das Saudades da Terra, na década de noventa do século XVI. Esta data é, porém, questionável à luz do calendário, uma vez que, em 1419, o dia 2 de julho não calhou num domingo, como o pretende afirmar Gaspar Frutuoso. O dia 2 de julho foi domingo, sim, em 1590, ano apontado como o da redação do livro de Gaspar Frutuoso sobre a Madeira, o que poderá ter levado o autor a semelhante equívoco. Um documento de 1813 apresenta o 10 dia de agosto como o dia do aniversário do descobrimento da ilha. Os textos clássicos que conhecemos sobre o descobrimento do arquipélago pelos portugueses apontam três anos, neste processo: 1418, 1419 e 1420. A data de 1419 reúne consenso em alguma documentação oficial. D. Diogo Pinheiro, vigário de Tomar, afirma, em 1499, “haver bem oytenta anos que a dicta ilha era achada pouco mais ou menos e se começara a povoar”. Depois, uma vereação do município funchalense de 27 de agosto de 1519 refere o início do povoamento “há 100 anos atrás”, o que poderá remeter, quando entendido à letra, para um descobrimento a 27 de agosto de 1419. Esta falta de consensos implica, da nossa parte, uma atitude aberta valorizando, em simultâneo, os atos de descobrir/redescobrir e o povoamento. Além disso, devemos ter em atenção que, neste momento, poucos acreditam que o descobrimento, no sentido de “encontrar pela primeira vez” tenha sido concretizado pelos portugueses. Hoje, parece ser consensual na Historiografia que, aos portugueses, se deve atribuir o mérito do reconhecimento (ou, se quisermos, redescobrimento). O que não oferece qualquer dúvida é que foram os portugueses que tiveram o mérito de ocupar as ilhas, em 1420, apesar desta datação não ser totalmente consensual. É por isso que, sem querer promover polémicas, foi acertada a distribuição das celebrações dos Seiscentos Anos do Reconhecimento /Povoamento do Arquipélago da Madeira, por três datas: 1418, 1419 e 1420. AS DATAS OFICIAIS: – 1418. Dezembro: primeira viagem de reconhecimento do Porto Santo, – 1419.Princípio de: segunda viagem ao Porto Santo, – 1419. Junho: primeira viagem à Madeira, – 1420. Maio: segunda viagem à Madeira. O NOME PORTO SANTO. A origem do nome da ilha de Porto Santo tem, na tradição, duas explicações. A mais comum associa-a a um naufrágio que teria antecedido a chegada dos europeus. Gaspar Frutuoso fala numa tormenta que teria conduzido os portugueses à ilha do Porto Santo: “…no ano de 1420 João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz, de casa do Infante Dom Henrique, foram de Lagos, onde o Infante estava, em um navio saltear as Canárias e a ilha dos Lobos, e da tornada, dando tormenta neles, foram ter à ilha do 3
O Porto Santo e a Madeira. O descobrimento português.
Porto Santo, o qual nome lhe eles puseram pela tormenta em que se viram, de que nela escaparam, onde estiveram alguns dias, (...).” (FRUTUOSO, 1979, 20). António Cordeiro segue este caminho, ao afirmar que “a estes Cavalleiros deu tal tempestade, antes de chegarem à costa de Africa, (junto á qual então se navegava somente) que sem saber aonde estavão, e pelo navio ser pequeno correrão grave perigo de affundar-se, e invocando os Santos do Ceo, se lhes descubrio huma Ilha, á qual por isso chamarão Porto Santo (...)” (CORDEIRO, 1866, 90). Há, porém, duas outras versões que não relacionam o nome da ilha com tempestades. Para Cadamosto, por exemplo, a origem do nome tem a ver com o calendário: “Esta ilha é chamada Porto Santo, porque foi descoberta no Dia de Todos os Santos.” (ARAGÃO, 1981, 36). Uma outra versão estabelece uma ligação com a lenda de S. Brandão, sendo a ilha, o porto do Santo. Note-se que, em alguma representação cartográfica, a imagem do santo surge precisamente no sítio onde hoje se situa a ilha do Porto Santo. REDESCOBRIMENTO/ACHAMENTO. Em qualquer dos casos, seja Madeira ou Porto Santo, as explicações apresentadas não podem ser aceites, tendo em conta que a atribuição do nome das ilhas teria acontecido antes do século XV e que, desde o século XIV, elas já são conhecidas com a atual designação: no portulano laurenciano de 1351, já aparecem as ilhas de Porto Sto e I. De lo legname; no Atlas Wackenaer- Pinelli de 1684, aparece a ilha do Porto Santo com a atual grafia; em alguns documentos e descrições que apresentam as ilhas do grupo da Madeira, como sucede com o chamado “Libro do conoscimiento”, de meados do século XIV. Não se pode, pois, continuar a defender a ideia de um pleno protagonismo dos portugueses, quanto ao descobrimento, batismo e povoamento das ilhas. A verdade é que há notícias destes lugares, antes de os portugueses lá chegarem. Descobrimentos ou descobertas de oceanos, ilhas e continentes são, na verdade, processos faseados e que não podem ser realizados de forma isolada. A chama do descobrimento é um ato de permanente revelação ao Homem do desconhecido, tornando-o conhecido e aceite pelo mundo conhecido e partilhado. A História tem uma herança pesada da escrita e tradição, capaz de corrigir os erros do passado, capaz de abrir novas perspetivas para o conhecimento, fruto de partilhas e de continuidade. Nem só os portugueses remaram no desconhecido e descobriram para o Ocidente Europeu novos caminhos e novas terras, que se foram revelando, de forma clara, ao longo do percurso. O papel dos portugueses terá sido, sim, o de fazer progredir e afirmar, na gesta, a herança da tradição e da memória. E, sem querer ferir a memória histórica e a tradição, temos de convir que, ao fim de seiscentos anos, cumpre-nos continuar o debate e continuar a procurar saber de que forma aconteceu este processo, que a historiografia nacional e regional considera acabado. Consideramos que o debate deverá ser retomado, agora com novas informações arqueológicas e doutras áreas científicas que apontam uma diversidade de momentos para a descoberta das ilhas e que poderão contribuir para preencher as lacunas e entender as razões subjacentes às versões que a tradição historiográfica construiu.
4
VIEIRA, Alberto, 2018, O (re)descobrimento / (re)conhecimento do Porto Santo e da Madeira. Em torno da História, de alguns conceitos e imprecisões, Funchal, CEHA/DRC/SRTC, 177 pp. A HISTÓRIA DO PRESENTE LIVRO: Parece ser consensual a ideia que o arquipélago não foi descoberto - porque já era conhecido – mas redescoberto pelos portugueses que procederam ao reconhecimento do espaço e à sua apropriação jurídica. Segundo alguns, esta situação pode ser entendida como o descobrimento oficial, que se opõe ao histórico, que terá acontecido em épocas anteriores à da chegada dos portugueses. Deste modo, faz pouco sentido reavivar polémicas do passado, interessando, sim, evocar os factos que marcaram o início da apropriação e valorização deste espaço insular, pelo mundo europeu. Em 2015, retomamos o tema, partindo de um trabalho nosso de 1980, com o título “HISTÓRIA DA MADEIRA. 1- A Descoberta do arquipélago da Madeira (Análise e Vias de Solução do Problema)”, no sentido de aclarar algumas dúvidas sobre os acontecimentos, num momento em que todos pareciam pensar nos “seiscentos anos” da evocação do descobrimento da Madeira. A pretexto do momento evocativo dos 600 anos do descobrimento oficial da Madeira e Porto Santo, fomos buscar o alento para a presente investigação e encontrar tempo e disponibilidade para reescrever um texto de 1980, adicionando-lhe informações novas. A forma de apresentação deste volume fará uso dessa metodologia, proporcionando a todos a informação disponível para uma opinião mais fundamentada.
MEMÓRIA (das gentes que fazem a História) visa dar protagonismo ao indivíduo, enquanto agente do processo histórico. Preservar e transmitir valores e experiências, salvaguardando a memória individual e coletiva constitui a missão de fixar este registo nas páginas da História da Madeira.
NONA ILHA é o registo da diáspora dos madeirenses e dos porto-santenses. Estamos a reunir, registar e guardar histórias de vida, cartas, postais, fotografias, documentos. Da união entre os que partiram e os que ficaram é possível criar uma sociedade diferente, onde todos têm lugar.
A Memória da AUTONOMIA regista e salvaguarda os testemunhos e as vivências dos madeirenses, de ontem e de hoje. Perpetuar essas vozes e anseios é um dever de todos. A História da Autonomia faz-se a cores, com pessoas, sentimentos, desejos e também desilusões.
http://memoriadasgentes.ml/
http://memoriadasgentes.ml/nonailha
http://memoriadasgentes.ml/autonomia
Centro Estudos de História do Atlântico (CEHA) Rua das Mercês, nº 8, Funchal | Tel: 291 214 970 • email: ceha@madeira.gov.pt página web: https://ceha.madeira.gov.pt/ Facebook: https://www.facebook.com/memoriadasgentes/