Historia Entre Mundos

Page 1


Raquel Catunda Pereira

Hist贸ria Entre Mundos

Romance Juvenil


História Entre Mundos

Autora: Raquel Catunda Pereira Revisão: Daniel Pereira de Arruda Projeto Gráfico, Diagramação e Capa: Silvio Roberto Aires Catunda Ilustrações e Arte Final: Itallo Jonathas Barbosa Catunda Silvio Roberto Aires Catunda Impressão: Gráfica Encaixe Foto: Pérola Castro


Índice

História Entre Mundos

Capítulo 01

Mais que um Teste, uma Experiência ............... 13

Capítulo 02

Déjà vu ......................................................... 23

Capítulo 03

Mundinho ...................................................... 32

Capítulo 04

O Duelo ......................................................... 44

Capítulo 05

O Nada ......................................................... 56

Capítulo 06

A Morte, a Vida, o Duelo, as Trevas e a Luz ...... 59

Capítulo 07

Sugestão ....................................................... 66

Capítulo 08

A 9ª Sinfonia ................................................. 68

Capítulo 09

O Plano Nada Perfeito .................................... 75

Capítulo 10

Do Trono à Guilhotina .................................... 89

Capítulo 11

Dois Mundos e um só Destino ......................... 94

Capítulo 12

Quando Acordei ........................................... 100

Capítulo 13

Tamram, tam tam, tam, tanram, tam tam ...... 115

Capítulo 14

Modernidades .............................................. 124

Capítulo 15

Contra Ditados Populares .............................. 143

Capítulo 16

O Jogo ........................................................ 160

Capítulo 17

Caos ........................................................... 174

Capítulo 18

A Saída da Caverna ...................................... 187


Hist贸ria Entre


Mundos


Capítulo 1

História Entre Mundos

Mais que um Teste, uma Experiência


Se ela pensa que vou cair na tentação de escrever, está muito enganada. Até parece que um simples pedaço de madeira com grafite é capaz de interromper essa avalanche de maus pensamentos que me tomam a mente. Não consigo ler, fato concluído friamente depois de inúmeras tentativas frustradas, falta concentração. As lágrimas, eu as confesso, embaçam minha visão, e sem falar de todas as belas histórias, que estão em meu poder enfeitando a estante do quarto, exibem-me, como uma afronta, um belo desfecho feliz, que hoje sei: não existe. Embora a idéia de escrever não me pareça má ou novidade, temo em discorrer com muita veracidade e acabar matando o personagem principal em um assalto na primeira esquina, ou ele mesmo dando fim à sua medíocre vida nesse mundo terrível. Mal amado! Qual a novidade? Sinto informar, querido leitor, que essa história se trata da minha vida, ou de parte dela. Vida de um frustrado adolescente do século XXI, onde barbaridades violentas acontecem a todo instante. O lado bom é que, embora eu esteja dando bastante ênfase a esse nãodetalhe, ele não terá considerável importância no desfecho dessa história, na verdade é provável que ela se trate de um grande lamento por conta de uma frustração amorosa, então, lhes aconselho a parar de ler caso esse tom permaneça durante as páginas a seguir, ou não, aguardem um pouco mais, pois se essas folhas chegaram às suas mãos é porque não as queimei como faço de costume, e se não o fiz é porque de algo elas devem valer para alguém. Se existisse um lugar onde eu pudesse dizer o certo e o errado, onde todas as decisões tomadas tivessem de ter o meu aval, certamente, tudo seria perfeito e todas as pessoas viveriam em harmonia, disse a voz da tentação. Não! Fiquei perambulando pelo quarto durante um bom tempo. As más lembranças, do que até então tinha sido, sem dúvida, o pior dia da minha vida, sempre me tomavam o pensamento. A tão bela manhã me enganara novamente. Esperança? Não! Eu tinha certeza, uma certeza racional. Tudo seria perfeito, eu tinha o plano perfeito. Perfeito? Sim! Perfeito. Previ cada detalhe, até mesmo o sorriso de


História Entre Mundos

Mariana, caminhando em minha direção, o abraço... O beijo não previ, não ousei. Mas viu. Telespectador do beijo que era para ser meu. Nem tão perfeito assim era o plano. Nem tão perfeito assim é o homem. Se não posso contar com a boa vontade humana, com quem posso contar? Por que Deus, em seu imenso poder não nos fez seres confiáveis? Por que optou por nos dar a liberdade do erro? A harmonia seria algo entediante de se ver? Perguntas, perguntas, mas nenhuma resposta! E foi nesse emaranhado de indagações confusas, que minha cabeça entrou em colapso e eu pude, finalmente, cair no sono. Quando acordei, eram exatas onze e meia da noite. Ótimo! Agora não tenho mais nem um pouco de sono. Estamos novamente sós, eu e a lua, com direito a sete horas juntos, ficaremos fazendo companhia um ao outro até amanhecer o dia. Ah! Essa realmente será a melhor parte! Voltar à aula. Isso foi uma ironia, é claro. Desci até a cozinha e peguei um pacote de biscoito e um copo com água, a munição necessária para uma noite interminável. Todos na casa já dormiam e, certamente, eu teria mais uma daquelas noites de tédio, morbidez e melancolia. Ou não! Sei que vou me arrepender, mas... Era uma vez, um mundo novo, onde plantas e animais conviviam em perfeita harmonia. Esse planeta era tão grande e belo como a Terra num tempo distante, antes da racionalidade humana interferir na natureza. As pessoas que lá viviam eram puras e felizes, o homem caçava apenas o necessário para se alimentar e alimentar as mulheres e crianças da aldeia, as mulheres se preocupavam apenas em colher vegetais e cuidar das crianças, e essas últimas... Não se preocupavam com nada, tinham todo o tempo do mundo para brincar e ser feliz. Neste mundo enorme, existia um mundo ainda menor, um lugar onde um pequeno grupo pessoas aprendia juntos o significado da vida. Não lhes faltava nada! Quando sentiam sede, iam até a beira do rio e bebiam quanta água lhes fosse necessária. Quando sentiam fome, subiam até a copa das árvores e colhiam quantas frutas lhes fossem


História Entre Mundos

satisfatórias. Mas se por fim, os frutos daquela região acabassem, eles se mudavam para outro lugar, a poucos passos distantes dali e logo encontravam um novo presente da natureza. Era um ciclo estável. A natureza se renovava à medida que aquele pequeno povoado evoluía. Um sempre ajudando o outro, a crescer e a viver... Utópico demais! Afinal, existem seres humanos vivendo ali, e como tais, eles raciocinam, e com o uso dessa razão e inteligência, eles procuram uma forma de viver cada vez melhor, mais confortável, e conseguiram... acho! Aquele pequeno grupo começou a crescer, e alguns passaram a se questionar e acumular conhecimentos sobre como e por que o mundo era como ele era? Por que sempre que uma semente caia e era alimentada com água, sol e terra boa, dentro de pouco tempo ela crescia e se tornava novamente uma bela e frutífera árvore? E foi a partir dessa revolução que aquele pequeno grupo de pessoas pôde se estabilizar em um só lugar. Mas muitos anos se passaram e aquele pequeno povoado foi se impondo regras para assim, melhorar a convivência entre eles, até que, por fim, construíram sua própria sociedade. Eles decidiram viver às margens de um grande rio, pois já haviam entendido a importância dele, da chuva, da terra, das plantas, e compreenderam que a vida dependia também, e ainda mais, do sol. Eles tratavam os elementos da natureza como deuses, e não era para menos. Cada deus tinha o seu lugar sagrado, onde seus religiosos guiavam o povo para que agradecessem de forma correta as dádivas fornecidas por seus respectivos deuses. Havia também naquele sistema social um soberano, ele governava em nome do rei dos deuses, o sol, e tinha seus direitos e deveres garantidos desde o berço. Ali, tudo girava em torno do rio, determinadas épocas do ano ele transbordava fazendo com que todos trabalhassem em prol da comunidade, como por exemplo, construindo obras hidráulicas, ou simplesmente, satisfazendo os luxos do rei-deus. Quando o rio voltava ao seu curso normal, deixava as terras ao seu redor propícias para plantação, então eles o faziam, depois colhiam e ainda lhes restava bastante tempo para festejar. A esta altura já existia a escrita, com ela todos os feitos heróicos,


História Entre Mundos

costumes, leis, lendas, descobertas científicas e matemáticas poderiam ser passadas às gerações futuras sem que houvesse deturpações como em um telefone sem fio. Esse não é o mundo perfeito! Mas a sociedade que inventei já tem suas bases, não é perfeita, concordo. Uns trabalham, enquanto outros esbanjam. Claro! Alguém tem de fazer o serviço pesado enquanto outros os coordenam. É necessária uma hierarquia, caso contrário a desordem se tornaria em um completo caos. Em todo caso, essa história é minha, nela posso fazer o que bem entendo, ser quem quero, com o poder que eu achar conveniente. Pausa para reflexão.

Está na hora de sair daqui e ver se este lápis é realmente mágico. Ver se ele é capaz de me levar para outro lugar, onde os vestígios dessa minha amargura, não serão para mim, nem mesmo reles lembrança, onde poderei, enfim, sair desta mesa, deste quarto... deste mundo. Será que realmente tenho a chance de ser feliz e ela está em minhas mãos. Literalmente! Só depende de mim. Viver ou não tudo isso? - Eu, rei Dimitri, filho do Deus-Sol, convido a todos vocês para quarenta dias de festa em comemoração a meu casamento com a bela Marília. Larguei o lápis rapidamente e voltei à realidade. Eu estava lá! Não sei como, mas estava! Eu vi! Até pude sentir o vento acarinhando o meu rosto do alto daquela fortaleza. Pude ver o respeito expresso na face de toda aquela gente, eles me olhavam tão atentamente, como se minhas palavras fossem lei, não aquela que conheço e na qual estou acostumado


História Entre Mundos

a ver infrações, a lei que me refiro agora e tão poderosa que desrespeitála, seria como fazê-lo contra o próprio Deus. O poder estava em minhas mãos, a lei era eu, e eu era Deus. A minha visão era tão nítida, que sem muito esforço atingia a linha do horizonte, onde nada mais eu podia reconhecer além do mais inabitado deserto. Ali, do alto, eu avistava toda a cidade, desde as magníficas construções até as mais modestas habitações. Mas não, mesmo frente a tão deslumbrante paisagem, meus olhos tomaram como foco a mais confortante imagem, ao meu lado estava Marília. Ela me olhava com tamanha idolatria que seu inquietante sorriso não fazia questão de mostrar-se de outra forma, senão, apaixonado. Ela se encontrava sentada em um trono majestoso e mesmo fazendo uso de natural simplicidade em seus gestos, deixava explícita a elegância e a graça de uma rainha. Foi real? Parecia real! Não posso crer... Será mesmo que esse lápis é mágico? E eu? Eu realmente estive lá? Eu realmente tenho o poder de Deus naquele mundo? Isso quer dizer que tudo que eu quiser tornar-se-á realidade?


História Entre Mundos

E o povo se agitou em sinal de alegria. As festividades mal tiveram início e eu já aguardava ansioso o último dia. Seria quando, finalmente, eu ficaria a sós com Marília, afinal, não fazia parte dos nossos costumes o homem ter contato com a noiva antes do término dos festejos. Em meio a tanta alegria, minha conselheira veio me advertir que não seria prudente festejar tantos dias em época de trabalho nas grandes construções. - É o meu casamento, Magnólia! Você também deveria relaxar e se divertir um pouco. - Mas meu senhor, o sacerdote responsável pelo templo do Deus do Caos não está nada satisfeito em ter que parar as obras de seu novo templo para “tamanhas banalidades”, palavras do próprio. - Banalidades? Quem ele pensa que é para falar assim com o filho do Deus-Sol? Você sabe bem, ainda mais que eu, que esse interesse todo em terminar o novo templo é para também mais rápido enriquecer a custa de seus fieis. - Seu povo! - Exatamente! Meu povo! E isso não me agrada nem um pouco. - Ah, tá! Só quem pode explorá-los é o senhor! - Quem aqui está falando de exploração?! Eles são felizes, é só olhar pela janela. – Apontei. – Eles têm onde viver, o que comer a quem venerar e serem fieis. Têm minha proteção. - É, mas todas as terras pertencem ao estado, ou aos sacerdotes. Eles trabalham e trabalham... - E os excedentes são guardados para quando houver necessidade. Eles precisam de alguém que os governe, um líder, e aqui estou eu! Afinal, está escrito que é assim que se deve viver. E é assim que se vive desde sempre e para sempre. - Tudo bem! Não vou discutir com o senhor as antigas inscrições. Afinal, você sabe muito bem quem as escreveu. - O pai, do meu pai, do meu pai, do meu pai... Que em um belo dia resolveu juntar vários povos e formar um grande e poderoso reino. E deu certo! – Sentei-me novamente em meu trono e completei com o volume um pouco mais baixo. – Mas meu povo não precisa ver a história por esse ângulo! - E não olham! Veem em você um verdadeiro Deus. E o respeitam por isso. Mas da mesma forma eles respeitam os outros representantes de


História Entre Mundos

seus deuses, os sacerdotes. Em especial o sacerdote do Deus do Caos que por sinal é um ótimo agitador. – Viu que eu continuava tranquilo e despreocupado, muito bem sentando, então completou. - Preciso dizer que agora ele está lá em seu templo antigo mobilizando o povo contra suas festividades, alegando: “um desrespeito ao Deus do Caos”. – Dessa vez Magnólia consegui imitar direitinho o jeito de falar daquele velho ranzinza. - Que desrespeito nada! Ele é que está me desrespeitando com essas provocações. – Levantei-me indignado. - Desrespeitando o filho do Deus-Sol. – Fiquei de perfil e foquei o olhar em um ponto do horizonte, pose típica dessa frase, a fazia sempre para garantir que lembrariam de mim como um homem belo e altivo. - Então você vai medir forças com um sacerdote?! – Deixou-se cair sentada em um estofado ao lado do meu. - Nem sei por que dei tanta força a eles. - O que você está querendo dizer? Que sorrisinho é esse? - É simples, minha cara. – Sentei-me novamente. – É o fim do politeísmo. - How... – Saltou, e com o tom de voz alterado completou. – Mil perdões, mas... VOCÊ TÁ LOUCO! Isso mexe com séculos, milênios, sei lá quanto tempo de tradições. –Sussurrou. – O povo pode se agitar! - Bobagem! Afinal... para que louvamos o Deus do Caos? – Falei com ironia e sarcasmo. - Primeiramente, porque para a evolução é necessário antes mudar o que já estava feito. Como? Destruindo tudo. Ou seja, para evoluirmos é necessário antes passarmos por um caos interno, ou até mesmo externo. Serei mais clara. – Ela andava agoniada de um lado para o outro, enquanto eu me mantinha muito bem sentado e despreocupado em meu trono. – Para construirmos uma casa nova, temos que antes destruir a antiga. Se formos construí-la de qualquer jeito mais cedo ou mais tarde ela nos trará problemas, que serão cada vez maiores e mais persistentes. Mas se destruirmos a antiga e começarmos do princípio... teremos um caos. Mas não que isso seja uma coisa ruim, pois... é necessário. Claro! – Parou na minha frente, me forçando á olha-la nos olhos. – Você não deve interpretar tudo isso de forma literal. - Blá, blá, blá... Tá querendo me ensinar como governar? – Sorri soberano. – É como eu havia dito. – Com ar de superioridade de quem nunca se equivoca e, é obvio, eu nunca me equivoquei, levantei-me e


História Entre Mundos

completei. – Para que louvamos o Deus do Caos? – Sentei-me no estofado e enquanto as palavras saiam, deitava-me cada vez mais até ficar confortavelmente relaxado. – Esta será a minha desculpa esfarrapada para diminuir o poder crescente dos sacerdotes. Estaremos evoluindo ao “monoteísmo”. - Ela me olhou embasbacada deixando cair o seu queixo, mas a perdoei por tal insolência, afinal, é festa, e ela... ela tem de fato a liberdade que só uma amiga pode ter. - Eu! Na hora, a resposta parecia tão genial que não consegui parar de sorrir. O problema era que meu sorriso contrastava demais com o olhar de reprovação de Magnólia. - Não vai dar certo! - Sentou-se ao meu lado para me intimidar com a proximidade de seu olhar. - Ah, vai! – Fitei-a com uma afirmação física e ainda exibindo o persistente sorriso. – Ah, vai! - Não! Não vai! – Negou também com a cabeça. - E para completar minha felicidade, ainda me casarei com o amor de minha vida, a bela Marília. – Falei despreocupado. - Vai dar tudo certo! Vai sim! Mas não deu! Na mesma hora que a nova lei foi exposta ao povo, as comemorações para a festa do meu casamento cessaram em sinal de protesto. - O que fazer? O que fazer?... – Eu andava nervoso de um lado para o outro enquanto Magnólia estava muito bem sentada no meu trono abusando da sua intimidade e tranquilidade de quem diz: - Eu disse! Sei que é chato dizer isso agora, mas... eu disse! - O que fazer... – Meu desespero era tamanho que nem pensei em responder às suas provocações. - O jeito é voltar atrás! - Nunca! – Gritei veemente. -Você tem uma saída melhor? – Desencostou-se para mostrar seriedade. – Estamos à beira do fim de séculos, milênios, sei lá quanto tempo de tradições. Se não fizer nada a respeito será o fim do seu império, ou, pelo menos, da estabilidade dele. Estabilidade. No momento em que aquela palavra foi pronunciada, saiu da boca dela e adentrou o meu ouvido, foi como se me roubasse todas as forças que me mantinham de pé. Estabilidade. Estabilidade era tudo o que me faltava naquela hora. Meu corpo cambaleava enquanto um forte zumbido perturbava o meu juízo me


História Entre Mundos

fazendo perder também a noção da realidade. De repente tudo ao meu redor começou a desaparecer, primeiro tudo não passava de imagens borradas e palavras avulsas, mas logo em seguida, logo que o chão desapareceu de meus pés e a cidade da vista da janela. Há não! Agora também a janela. Busquei apoio no móvel ao meu lado, mas tão instantaneamente este também sumiu me fazendo perder o equilíbrio. Magnólia! Eu queria gritar, mas nenhum som saia da minha boca. Magnólia! Ela não ouvia. Parecia não estar presenciando nada de incomum enquanto paulatinamente sua imagem sumia da minha vista. Eu podia escutá-la, mas na medida em que sua figura desaparecia, suas palavras se tornavam mais confusas. Ela não falava coisa com coisa, ora alto demais, ora baixo demais, as vezes grave, outras vezes agudo. Também dizia coisas muito lentamente, ou muito rápidas. - Era uma vez, o homem caçava seu curso natural dessa revolução... Não só ela, eu também sumia, tudo! Tudo estava desaparecendo! - O que está acontecendo? – Gritei desesperado. Despertei em meu quarto como de um sonho. Ou como num passe de mágica? Pingos de água caíam sobre minha cabeça. Estava chovendo e como a janela estava aberta, a força dos ventos trouxe a água para dentro do quarto o que inevitavelmente fez molhar todo o papel. Tentei enxugar as folhas, mas as letras ficavam ainda mais borradas e ilegíveis.


Capítulo 2

História Entre Mundos

Déjà vu


História Entre Mundos

Natália não havia mentido, o lápis é realmente enfeitiçado! Enquanto eu escrevia era como se minha mente estivesse entrado em estado de transe, ou sonho. De fato não sei descrever tal sensação, mas a minha mão continuava a escrever enquanto também eu, em outro plano, desfrutava desse mesmo corpo e espírito. Como explicar tudo isso senão... Magia! - Droga! – Caí na cama, desconsolado. – Logo agora que iria me casar com Mariana! Quero dizer... Logo agora que Dimitri casar-se-ia com a bela Marília! Os últimos acontecimentos tomaram-me o pensamento durante o resto da noite. Quando finalmente o sol deu sinais de que não tardaria o seu total aparecimento liguei para Natália, extravasando assim a ansiedade que me torturou até aquele exato momento. Pedi a ela que nos encontrássemos um pouco antes da aula começar. Ela reclamou algumas coisas do tipo: isso não é hora de ligar, e também, eu gostaria de ter o direito às minhas previstas oito horas de sono, além de algo sobre eu me arrepender mortalmente se isso voltasse a acontecer, enfim, calou-se quando percebeu meu tom de urgência. *** - Então... Você está querendo me dizer que o lápis que eu te dei é realmente mágico? E que você. – Enfatizou bem o “você”. - Pôde viver em um mundo que você mesmo idealizou. – Novamente deu ênfase ao “você” - É isso? - Exatamente! Eu estava lá! Eu realmente pensava como um Rei. Pensava e agia como tal! Um tanto irresponsável e soberbo, confesso, mas eu visava um futuro real... Eu tinha lembranças da infância de Dimitri! Eu era Dimitri! – Falei ainda eufórico. - Então, se você escrever que é um Herói, você o será, ou que está em Atlântida, você estará. É isso? - É! Acho que sim! Pelo menos enquanto eu estiver escrevendo, será para mim a mais pura realidade. - Uau! É inacreditável! - Como assim? Foi você quem me deu esse lápis me fazendo crer que ele é mágico. - É! Mas eu já acabei de ler aquele livro de magia, achei um tanto


História Entre Mundos

fantasioso demais. Para dizer a verdade, acho até que o dono da livraria deve ter contado todas aquelas histórias de que se tratavam dos livros do avô dele somente para incentivar a minha leitura. E eu caí. Tô começando a achar que essas coisas de magia não existem! Sabe... ontem à noite comecei a ler um ensaio de um cara super cético. Ele explica que antigamente a ciência era confundida com bruxaria, e que por isso existia todo esse mito em torno de feitiços quando na verdade era tudo ciência. – Seu tom de voz parecia demonstrar a simplicidade de suas indagações, mas quando percebeu a descrença estampada na minha face completou. E sinto informar-lhe de que não há nada de concreto ou racional que explique o que você está dizendo. Fiquei boquiaberto com a instabilidade de opinião dela. - Às vezes me assusto com você! Com suas mudanças. Nunca sei quem é a Nat de verdade. Certo dia você é a mais fervorosa religiosa, lembro-me até que você saía pelas ruas pregando a palavra divina com a bíblia debaixo do braço. Mas isso não durou nem uma semana e de repente, lá estava você, uma ateia, tacando o pau nas instituições religiosas e seus “dogmas ultrapassados”, palavras suas. - É! Talvez eu seja um pouco influenciada por aquilo que estudo. Mas “O verdadeiro sábio é aquele capaz de mudar de opinião”. Ficamos pensativos por um tempo. O chão do corredor do último andar do prédio da escola no qual estávamos sentados ainda guardava o frescor da madrugada, e a falta de seres falantes deixava a atmosfera propícia para a reflexão. E lá, os dois, parados, apreciando a luz que tendia a nos alcançar, pois a vidraça, embora escurecida, não evitava a entrada dos amarelados raios solares daquela manhã. E enquanto aquele manto dourado se aproximava do meu pé, minhas meditações se apegaram a frase que ela acabara de citar. Embora as constantes mudanças de opinião de Natalia me assustem às vezes, devo levar em consideração as possibilidades de crescimento do ser humano, sua capacidade de aprender e tirar suas próprias conclusões a partir disso, formando então uma opinião concreta e apreensível. Mas venhamos e convenhamos, as opiniões de Natalia não são nem de longe originais, são totalmente influenciadas pelos livros que lê, e depois, ela mesma, as destrói com as opiniões de outros autores. Será que, inconscientemente, Nat faz questão de defender algo para depois conseguir argumentos profundos e concretos para derrubálos?


História Entre Mundos

Talvez debater com nós mesmos seja a melhor forma de construir uma opinião verdadeiramente sólida e pessoal. E eu, que opinião tinha sobre o que acabara de viver? O lápis seria mesmo mágico? Sonhei? Tive uma alucinação? Ou imaginação de mais? Não! Vivi! Vivi tudo aquilo, tive felicidade real, medo real, foi real! - Foi real. Nat estava concentrada. Fixava o seu olhar na parede do corredor, mas certamente não era em sua cor amarelada que ela pensava. Era como se ela estivesse em estado de indolência e minhas palavras a tivessem feito despertar. - O que você disse? – Olhou-me. - Foi real! É como se eu tivesse o poder de Deus naquele lugar. - E o que você vai fazer? Digo... Você vai continuar escrevendo? – Seu tom de voz era tão natural que por um instante eu não achei que estava louco. Ou loucura conjunta? - Sim! Há... Não sei. Me deu um medo sabe... Quando me deparei com aqueles conflitos eu... eu perdi completamente o controle da situação. E não é só isso, eu me sentia responsável por aquelas vidas, afinal, eu tinha o poder de tirá-los daquela forma de viver, mas não o fiz, nem como rei, nem como escritor. Pelo contrário, me deixei deslumbrar pelo poder e pela possibilidade concreta de ter Mariana. - Quem? - Marília, Marília. - Tropecei um pouco nas palavras, não queria que Natália percebesse que Marília era a imagem perfeitamente fiel de Mariana. – Eu disse Marília. - Tá bom! – Ela sorriu. – Agora vamos para a aula que já tocou o sinal. *** Confesso que não prestei muita atenção na aula. Mas dessa vez, indo contra a uma tradição, não era Mariana que roubava minha concentração, talvez Marília fosse a responsável. A quem estou tentando enganar? As duas são idênticas, lindas e graciosas. Quem me dera fossem realmente duas, ao menos assim minhas chances duplicariam.


História Entre Mundos

Qual o dobro de zero? A verdade é que minha cabeça estava cheia de dilemas: Escrever ou não escrever? Escrever ou não escrever? Escrever ou não escrever? Eis a questão. Devo viver uma nova história ou renunciar a essa maravilhosa oportunidade? Nossa com esse adjetivo acompanhado de oportunidade fica realmente muito difícil decidir. - Guilherme, você pode vir aqui na frente para ilustrar um exemplo aqui pra turma? - Oi? Como disse? - Você pode vir aqui para simbolizar o movimento de rotação para o resto da turma? - Tá... tá bom. Respondi ainda um pouco aéreo. Dormente! Eu diria. Fui morrendo de vergonha, mas fui. Não me lembro de nenhuma situação em que a professora tenha tido uma idéia tão infantil para ensinar geografia ao terceiro ano. Mas, mesmo assim, sem hesitar... Por um impulso! Dirigi-me até a frente da turma. A princípio todos os alunos riam da vexatória novidade, afinal, ver um colega que não estava prestando atenção na aula pagar um mico deve ser realmente entusiasmante. - Então classe... Guilherme será o sol e... – Passou a vista pela sala. – Mariana – Apontou. – Será a terra. Pode vir aqui senhorita? - Claro! Professora. Eu realmente já não estava suficientemente nervoso. Evidente ironia. E a professora ainda chama Mariana para ficar ao meu lado. - Ok turma, atenção! O movimento de rotação é o movimento que a terra faz em torno do seu próprio eixo. Gira Mariana, gira. A princípio, ela hesitou com meio sorriso, mas depois atendeu ao pedido da professora. - Esse movimento dura 24 horas, ou seja, um dia. – Completou a professora. – Agora Mariana, além de girar em torno de si, você gira também em torno do sol, do Guilherme. Mariana nem parou e logo emendou os dois movimentos ao girar em torno de si e de mim. Quanto a mim, eu, nem me mexia.


História Entre Mundos

Nem respirava, diga-se de passagem. Ela estava tão linda! E tão leve. - Então, senhor Guilherme. Conte-nos agora o nome e o que define esse movimento? – Indagou a professora com ar de superioridade - É... É... - Senhor Guilherme, eu acabei de explicar esse movimento para a turma. Talvez o senhor não estivesse prestando atenção. - É... Desculpa professora. Mas eu sei a resposta acontece que... – Olhei para Mariana ainda girando ao meu redor e sorri desconcertado. – Que... - Senhorita! Será que podia parar de tirar a concentração do rapaz deixando de girar um pouco, por favor. – Disse em tom descontraindo arrancando gargalhadas dos presentes. - How! Claro! Desculpa! – Ela estava visivelmente tonta e não conseguia parar de rir. – Foi mal! - Obrigada! Então Guilherme, responda! Mariana estava tão reluzente! Se concentra rapaz! - É... Bem! O movimento que a terra faz em torno do sol e de si, chama-se Translação. Este movimento caracteriza as estações do ano.


História Entre Mundos

Olhei rapidamente para Mariana e ela me sorria. Sorria! O mesmo sorriso que Marília mandara na direção de Dimitri quando ele anunciava ao povo a notícia do casamento. O povo! A turma me olhava atentamente, assim como o povo olhava Dimitri naquela noite. Exatamente igual. E a professora... Não. Não havia ninguém com esse olhar. - É... Bem, isso dura exatamente 365 dias, um ano. – Completei. - 365 dias e 6 horas! – Disse Mariana ainda sorridente. - O que? -365 dias e 6 horas... O tempo... É o tempo exato que a terra leva para dar uma volta completa em torno do sol. - Muito bem, podem voltar aos seus lugares. – Disse a professora praticamente nos enxotando de lá. – E somando essas 6 horas, a cada 4 anos, temos um dia a mais, o dia 29 de fevereiro. O que então chamamos de ano bissexto. Enquanto eu me sentava, Nat colocou um pedaço de papel em cima da minha carteira. Nele tinha escrito: Fez papel de bobo! Não tirou os olhos dela. Todo mundo percebeu. Quando você vai desistir, hein? Ela tá com outro, lembra? Quando terminei de ler, amassei o papel tentando não deixar transparecer o meu aborrecimento com tal recordação e em seguida o arremessei no lixo. Natalia havia sido cruel ao me lembrar aquele terrível episódio daquela forma. Eu que naquele instante finalmente havia esquecido o incidente do dia anterior. Confesso que construir nova vida, e nela tudo fazer do jeito que eu quiser, me é bastante interessante. Eu, que durante as últimas horas dedicara todos os meus pensamentos a imaginar como se desenrolaria o romance de Dimitri e Marília agora me vi despertar desolado de um magnífico sonho. No intervalo, Nat e eu, não descemos até o pátio. Não foi algo combinado, apenas não descemos. Acho que Nat estava preocupada com a minha reação caso eu visse novamente Mariana e João Antonio juntos. Ficamos sentados na cadeira como estátuas até todos saírem da sala. Foi só o último aluno se retirar e a porta da sala se fechar, que Natalia quebrou o gelo no que me pareceu um sincero pedido de


História Entre Mundos

desculpas. - Desculpa a grosseria de agora a pouco. - Tá tudo bem. Nem estou mais pensando nisso. – Girei todo o meu corpo em sua direção e completei baixinho. - Aconteceu uma coisa muito estranha na aula de geografia. - Além do mico que você pagou? – Tentou descontrair o clima com a piada mais sem graça que poderia se imaginar para aquele momento. - Sim! – Não ri, forçando-a a me levar a sério. – É que... Não sei... Pode ser só coincidência, mas... Eu era o sol, certo? ! – Ela prestou atenção. – E na minha história Dimitri era o filho do Deus-Sol e na hora em que ele discursava, sua noiva, Marília, sorriu para ele exatamente como Mariana sorriu pra mim. Surpreendida com as minhas palavras ou, quem sabe até, abismada com o que ouvira, Natália quase soletrou as seguintes palavras: - Cara! Você tá ficando louco! -Não! É sério! E não é só isso. O povo olhava Dimitri com a mesma atenção e carisma que o pessoal da sala me olhava. - Então... Você está querendo me dizer que as coisas que acontecem no teu “mundinho”, acontecem na vida real também? - Você também acha? - Não! – Ergueu-se exaltada. - Eu não acho nada. Pra dizer a verdade, acho que isso é loucura demais. - O que eu faço? Continuo a escrever? - Não sei! – Sentou-se exausta. –Isso está te fazendo tão bem! Faz tanto tempo que não te vejo empolgado assim com uma coisa. – Desviou o olhar. - E pelo menos você não está entregue à depressão por causa da mocinha sorridente. - Mas, e se eu realmente tiver o poder de interferir na nossa realidade? Se eu continuar escrevendo e não souber controlar o meu poder de “Deus” e acabar tomando decisões erradas como da primeira vez? E pior, se essas decisões erradas tiverem consequências aqui? - É realmente uma grande responsabilidade. Ainda bem que não acredito nessas coisas. Seja como for, você é o grande responsável pelo que acontece em “Guilhermenópolis”, afinal, você é o escritor e eles não possuem o livre arbítrio. - É isso! - Isso o quê?


História Entre Mundos

- Posso dar aos meus personagens o livre arbítrio! - Mas como? - Eu posso começar uma nova história, só que dessa vez em terceira pessoa. Assim, todos poderão tomar suas atitudes independentemente do meu desejo. - Isso parece perigoso. Talvez, seu mundinho perfeito não fique mais tão perfeito assim se todos tiverem personalidade e desejos independentes de você. - Corro o risco! – Sorri triunfante. - Pois me responde uma coisa, por que é tão mais fácil tomar atitudes e mudar a vida em uma ficção, quando na vida real você não é capaz? - Não sei. – Não me deixei entristecer. - Mas talvez Dimitri seja capaz de um dia se declarar e conquistar Mariana. Eu não via a hora das aulas terminarem para eu poder ir para casa escrever. E foi o que fiz. Saí correndo. Quando finalmente cheguei ao meu quarto, senti um temor que não previra. Teria de ter mais cautela, afinal, as evidências me levavam a crer que também a minha vida estaria em jogo. Evidências?


Cap铆tulo 3

Hist贸ria Entre Mundos

Mundinho


História Entre Mundos

Eu não poderia continuar a história de onde havia parado. Primeiro porque o papel onde eu escrevera tinha sido completamente destruído pela água da chuva e apenas seus restos úmidos e enrugados se encontravam estendidos em um improvisado varal no meu quarto. O segundo motivo é de fácil compreensão, não o faço por pura falta de interesse em presenciar uma crise no meu império, o que, por sinal, eu não fazia idéia de como resolver e cujo único culpado de tal situação sou eu com minha ilimitada soberba na pele Dimitri. Para que problemas, se eu sou Deus? Posso pular essa parte, pular as guerras, as lutas por territórios e poder. Na verdade, não quero presenciar nenhum grande império mesmo podendo ser eu a figura mais beneficiada. É como já dizia o tio Ben: “Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”. Quero viver em um lugar em que o questionamento seja algo intrínseco do homem e que através desse filosofar o ser humano consiga se tornar mais sábio. Esse lugar deve existir por si só, independente do resto do mundo. Poucas pessoas, mas de mentes e corações infinitos. Há! Não posso esquecer o principal, lá não faltará o amor, a música, e, principalmente, a amizade. Em um local isolado entre florestas, um grupo de jovens, que viviam juntos, que brincavam juntos, e que juntos cuidavam uns dos outros, eles que embora tivessem personalidades diferentes, o que é natural ao se tratar de pessoas distintas, a amizade os unia e as constantes e necessárias desavenças permitiam que eles crescessem. Mesmo os conflitos, as dúvidas, e os desentendimentos, se tornavam um catalisador desse crescimento. Eram muito unidos, uma família. Uma família que só crescia em quantidade, não em idade. Eles não cresciam e podiam se divertir o dia inteiro. Bom começo, Peter Pan. Mas calma! Devo ter cautela ao definir meus personagens. Como já afirmava Leon Battista Alberti, o artista de gênio, “pintando ou esculpindo seres vivos, se distinguia como um outro deus entre os mortais”. Continua. Dimitri é um rapaz romântico, gosta de escrever sobre seus sentimentos e sobre a análise que faz dos acontecimentos ao seu redor. É


História Entre Mundos

notadamente, alto, barbudo, tímido, isolado, esquisito, quatro olhos, veste-se diferente, Ou de forma bastante personalizada? Não! Dimitri não será assim! Risquei no papel a parte que o descrevia fisicamente e logo em seguida completei. Alto, barbudo, Não consegue mesmo se livrar dela, não é?! Eu não! Acho o máximo! Deixa meu rosto mais másculo e adulto. Então tá! A barba fica. Simpático, enturmado e feliz. Esse não é mesmo você! Estraga prazeres. Enfatiza bastante a parte que diz que Dimitri é feliz. Muito feliz! Agora sim. Continua. Ele é apaixonado por Marília, uma moça de longos cabelos loiros e ondulados, que se prolongam até o meio das costas. A dona do mais belo sorriso. Possuidora de grandes olhos castanho-claros, meiga e graciosa. E muito, muito, muito apaixonada por Dimitri. Espera. E toda aquela história de livre arbítrio? Tá bom, me empolguei demais. Risquei a última frase e comecei a escrever novamente em outro parágrafo. Nesse lugar, vive também Magnólia, uma moça de personalidade múltipla, conhecida por conta disso como a moça das mil e uma faces. Sempre que ela acorda, o faz com uma personalidade diferente. O mais provável é que durante o sono, ela colhe as informações mais importantes do dia que viveu e se torna no dia seguinte o tipo de pessoa


História Entre Mundos

que melhor lhe convém. Ninguém sabe ao certo se ela tem controle sobre isso, ou se é tudo inconsciente. A verdade é que ninguém sabe quem é, ou foi, a verdadeira Magnólia. Está tudo muito bom, está tudo muito bem. Mas afinal, quem vai trabalhar nessa joça? As mulheres é que não vão fazer o serviço pesado. E Dimitri, vai? Há não! Dimitri é um homem de idéias, não de músculos. Certo dia, há muitos séculos atrás, apareceu na beira da praia um rapaz desacordado. Ele era moreno, baixo, musculoso, não possuía vestes. Usava apenas um cordão de conchas brancas que, como pingente de centro, exibia um dente de animal com formato de lua crescente. Os que ali moravam o levaram para casa, cuidaram de suas feridas e o vestiram. Quando o rapaz acordou, mostrou-se muito sereno e bondoso, mas não dizia uma só palavra, porém, no decorrer de alguns meses, ele já arriscava algumas frases como: - Cauê água. - Cauê comida. Cauê. Era a palavra mais persistente em sua fala, daí então, sem grandes dilemas aquele pequeno povoado concluiu que esse era seu nome, mas se também não o fosse, não importava, pois sempre que tal nome era pronunciado Cauê olhava, até que, por fim, sempre que o chamavam assim, Cauê respondia fazendo uso do seu ainda limitado vocabulário. E ele foi ficando. Fazia todo o trabalho pesado, caçava e trazia a comida, cortava lenha para a fogueira, pescava, dentre outros serviços menos corriqueiros. Ele era um rapaz diferente, tinha atitudes um pouco primitivas como, por exemplo, não ter vergonha de mostrar-se sem roupa ou não juntar comida para o dia seguinte. Ele era um bom rapaz, parecia ser desprovido de qualquer ambição ou maus pensamentos. O tempo inteiro arrancava risadas de seus companheiros, fosse com suas perguntas de respostas fáceis e lógicas para a maioria, fosse por não entender a maioria das piadas. Era como se ele sempre estivesse lá cantando suas músicas, contando suas histórias e divertindo a todos com suas particularidades. Depois de alguns anos, Cauê não mais enrolava a língua para


História Entre Mundos

falar, se acostumara com a bermuda e, ignorando o hábito de guardar objetos sem valor dentro de um baú, era um rapaz completamente normal para os padrões ainda um tanto livres daquela pequena sociedade. Parecia que Cauê sempre fizera parte daquele lugar. Não mais sabiam viver sem ele e para ele aquela era sua casa, sua família. Cauê costumava ter a ajuda de Max, na pesca, nas tardes que passavam juntos compondo novas canções e nas quase frequentes noites de cantoria em torno da fogueira. Max é um rapaz simples, idealista, um líder nato, observador, intuitivo, coerente, mas inconsequente às vezes. Contestava coisas que para todos pareciam incontestáveis. Como quando ele cismou em querer saber de onde se originara o mundo, confundindo a todos com suas teorias especulativas. A melhor parte do debate foi quando Sofi começou a falar. Ela parecia ser tão pequena e tão criança, mas mesmo assim respondia a todos aqueles enigmas com uma absoluta segurança ainda incerta. Sofi aparentava sempre, desde sempre e para sempre ser uma criança, fisicamente, no jeito de falar, nas brincadeiras bobas, nas birras e na capacidade infantil de se admirar com as coisas. Depois daquele dia, todos puderam confirmar que por trás daquela face indefesa e infantil, escondia-se uma capacidade nata de raciocínio. Era como se todos os rapazes e moças “vividos”, tivessem se acostumado com o fato de não saber e fossem tão espertos ao ponto de não se interessarem mais pelas descobertas. Naquela noite, estavam todos reunidos em torno da fogueira como de costume. - Então? De onde vem o mundo? – Insistiu Max. - Pra mim, o mundo sempre existiu. – Respondeu Marília com ar de superioridade. - Mas tudo que existe precisa ter um começo, não é verdade?! – Disse Sofi. –Então o mundo deve ter surgido a partir de alguma outra coisa. – Refletiu mais um pouco e completou. – E essa outra coisa, a partir de outra coisa, e essa outra de... - Então algum dia alguma coisa deve ter surgido do nada! – Concluiu Marília. - Mas isso não faz sentido, é como dizer que o mundo sempre existiu. – replicou Sofi. Eles se olhavam em silêncio, todos eles: Cauê, Sofi, Marília,


História Entre Mundos

Dimitri, Magnólia e Max, buscavam nos olhares uns dos outros um motivo para manter viva a esperança de que alguém exteriorizasse uma resolução infalível. - Cauê sabe de onde vem o mundo. – Falou o próprio voltando seus olhos para o céu e vislumbrando uma nova historia. Todos se aproximaram dele para ouvir melhor o que ele tinha a dizer. - Na terra de Cauê, há muito, muito tempo atrás, os mais velhos contavam que o mundo era na verdade do tamanho de um caroço de limão e que tudo que acontece é por vontade dos deuses. Eles levam o caroço sempre com eles para onde vão. E que quando o sol nasce é porque... - Isso tudo é balela! Vocês vão mesmo acreditar em mitos agora? - Interrompeu Magnólia. – Bom. – Pausa de palestrante. - Esta tarde cheguei a uma conclusão reveladora. – Todos se aproximaram dela curiosos – Observei o céu o dia inteiro. Percebi que na verdade, no início dos tempos não havia estrelas no céu. Nem mesmo o sol existia. Só havia um imenso pedaço de terra, que certo dia... – Interrompeu o discurso por um momento, com o intuito de apreciar melhor o suspense que havia criado, refletido diretamente na expressão do rosto de seus amigos. – Pam, pam, pam, pam. – Deu uma última olhada geral em sua platéia. – Ela explodiu! PUF... – Quando o susto da sonoridade da explosão fez seus amigos recuarem, Magnólia voltou a falar com seu tom de voz natural. – E então, vários pedaços se espalharam pelo céu. E o nosso planeta é o maior e mais importante de todos... E tudo gira em torno da terra. A terra é o centro do universo. - Há! Então você está dizendo que o mundo veio de um mundo ainda maior?! – Disse Sofi aparentemente concordando com a teoria de Magnólia, que instintivamente sorriu triunfante. –É! Realmente faz sentido! - Aproximou-se de Magnólia e gritou inconsolada. –Mas de onde vem esse outro mundo? Magnólia contraiu a face por causa do alto volume da voz de Sofi e se sentou emburrada. - Eu prefiro acreditar que o mundo foi criado por Deus. – Disse Dimitri desinteressado. - E Deus. Criou-se a partir do nada? - Mandou bem Sofi! Gostei! –Falou Max aproximando-se dela como quem toma partido de uma opinião. – Pois é! Como ele poderia ter


História Entre Mundos

criado a si mesmo sem antes existir um si mesmo? - Já chega crianças. Hora de dormir. – Interrompeu Marília colocando-se no meio deles. De um lado estava Max e Sofi, do outro Dimitri e Magnólia. – OK, OK! Pra cama todo mundo! – Ela aparentava ter a autoridade de uma mãe, ou pelo menos era respeitada como tal devido a sua distinta sensatez em algumas ocasiões. - Como você consegue dormir com essa dúvida na cabeça? – Sofi levantou-se indignada. - Dormindo, pois nos sonhos podemos encontrar as respostas – Respondeu Marília serenamente. - É Sofi. É melhor nos conformarmos em constatar que nada sabemos e irmos dormir. – Disse Max levantando-se também. E foram todos dormir. *** Na manhã seguinte, Magnólia acordou mais cedo que os outros, como se tivesse tido a idéia de um plano inadiável durante a noite. Pegou uma lupa, potes de vidro vazios, dentre outros objetos e se embrenhou na mata. Perto de anoitecer ela volta da floresta com ar triunfante. Reuniu todos em volta da fogueira ainda apagada e arrumou os potes em uma ordem que para ela fazia todo o sentido. - Há Magnólia, chega de suspense. Você sumiu o dia inteiro e agora volta assim, toda misteriosa e sorridente. – Disse Marília enquanto se aproximava dos frascos, tentando inutilmente entender o motivo de tanto suspense. - É Magnólia, o que foi dessa vez? O cheiro está me parecendo um tanto estranho. Descobriu uma forma de apodrecer coisas em vidro foi? – Disse Max zombando da situação. - Muito pelo contrário, querido Max! Sofi aproximou-se de Magnólia com seu olhar habitual de pedir coisas. O olhar de gato pidão misturado com cão sem dono era especialidade dela. Sempre conseguia o que queria. - How! Fala logo Magzinha, to morrendo de curiosidade. - Tá bom! Mas primeiro vocês têm que me responder algumas perguntinhas. – Posicionou-se de costas para seus vidros e de frente para seus aprendizes como se fosse uma professora ensinando sua turma. – De onde vêm as moscas?


História Entre Mundos

- Cauê sabe! Cauê sabe! - Mais alguém? Alguém? Hein? Alguém? Ninguém? – Todos os outros se mantiveram estáticos e Magnólia se viu forçada a deixar que Cauê lhe contasse mais uma de suas, longas e pouco embasadas historias. – Está bem! Fala Cauê. -Quando tem uma coisa ruim, fedendo, quando uma fruta tá estragada, aí nasce um monte de moscas lá. - Muito bem Cauê. Todo mundo concorda com o Cauê? Todos consentiram com a cabeça. - Pois erraram. Vejam isso. – Aproximou a primeira fileira de frascos e completou. – Hoje pela manhã, quando acordei, eu tinha essa dúvida na minha cabeça. Se realmente eram de coisas podres que surgiam as moscas. – Levantou o frasco que continha uma substância amarronzada, larvas e moscas. – Mas isso não é verdade. - Levantou logo em seguida um outro frasco, com aparentemente a mesma substância, mas dessa vez não apresentava larvas ou moscas. – Vejam, no pote lacrado, não há moscas. Para o espanto de todos, aquilo era verdade. - Magnólia, estou aqui a observar essa substancia que você


História Entre Mundos

colocou nesses potes, por um acaso isso não seria... – Dimitri hesitou em expor o seu pensamento. - Sim, são fezes. – Completou Magnólia a com seriedade que ninguém mais ali presente conseguia transmitir. - Não acredito Mag, você fez isso? – Perguntou Marília demonstrando bastante nojo com seus trejeitos. - Não vamos nos perder agora em questionamentos paralelos. – Falou Sofi mostrando-se bastante madura frente aos prós e contras que surgiam junto aos avanços da ciência. - Mas então. De onde vêm as moscas? Não só as moscas, mas todos nós, todas as coisas, os ratos, os sapos? - Bom! Eu estou de acordo com Cauê. – Disse Max. – Acho que as coisas surgem a partir de algo pré-existente. - Como se cada coisa tivesse um principio ativo capaz de produzir outra coisa. Não é? - Falou Magnólia com total controle sobre o assunto. E todos novamente fizeram sinal de consentimento com a cabeça. - Não, não é! - Como você sabe? – Indagou Marília. - Eu baseei minhas experiências em um método diferente. - Como um método para trabalhos científicos?! – Interferiu Max com tom de zombaria seguido de um enorme sorriso estampado na cara, que, embora grande, durou pouco tempo devido a também rápida resposta de Magnólia. - Exatamente! – Ainda com ar de superioridade Magnólia caminhava pela frente de sua pequena turma de aprendizes. – Primeiro, eu observei o fato. Depois, formulei uma pergunta. Em terceiro, formulei uma hipótese. Em seguida, fiz experiências separando o grupo de teste, que é aquele em que posso mexer, do grupo de controle, que se mantém intocado. E, por fim, chego a uma conclusão. Não é simples? Cri, cri, cri. Somente os grilos davam sinais de vida. Mas depois de uma reflexão, como de costume, Cauê quebra o gelo com um de seus comentários lentos e sinceros. - Cauê só entende até: olhar o fato. - Não importa! O importante, é que eu fiz várias e várias experiências e descobri os micro-organismos. – Segura um pote. - São esses seres invisíveis a olho nu que deixam o caldo estragar, quando deixamos para comê-lo só no outro dia. - Nossa Magnólia, você pensa tão a frente do nosso tempo.


História Entre Mundos

– Falou Sofi entusiasmada com os novos conhecimentos. - Como exatamente você chegou a essa conclusão? – Perguntou Dimitri ainda descrente. - Eu me auto-contestei por várias vezes. E acreditando na teoria da força vital, descobri que essa, só pode existir nos seres vivos. E que não é a cueca suja de vocês que origina os ratos. E que, principalmente, não é essa força vital que origina as larvas no caldo do dia anterior. A verdade é que no caldo existem micro-organismos que vão se multiplicando quando a condição é propícia. Fiz mais uma experiência para ilustrar. – Pega mais alguns frascos e os expõe. – Este é o frasco de controle. Ele está cheio de bichinhos mesmo estando lacrado. Mas vejam só. – Segura um outro frasco. - Este outro foi fervido antes de ser tampado, pois supus que o calor mataria os micro-organismos. - Nossa! Esse frasco tem bem menos bichinhos. –Disse Sofi encantada com as novas descobertas. - Mas ainda assim, tem coisas dentro. – Disse Max. - Isso prova que mesmo sem vida, ou seja, mesmo com os microorganismos mortos, ainda existe vida. Conclui-se que pode existir vida a partir de coisas sem vida! – Disse Dimitri. - Exato, também pensei assim! Por isso resolvi entortar o gargalo do frasco em forma de pescoço de ganso para evitar que os microorganismos entrem através do ar, vejam só. – Mostrou mais um conjunto de frascos, que explicavam de forma concreta o que ela acabara de dizer. – Não tem vida. Conclui-se que no ar também há micro organismos. - Eca! – Gritou Marília sem conseguir conter a espontaneidade. Todos olharam-na, admirados com tal demonstração de espanto, mas logo voltaram a atenção a Magnólia que esperava para concluir seu raciocínio. - Vejam. Do vidro cujo gargalo entortei e depois fervi não apresentou-se nenhum sinal de vida, ou seja, sem larvas! - Mas você ferveu demais! Destruiu a força vital do caldo. Não dá para originar vida sem força vital. Por isso não tem larvas. – Replicou Dimitri. - Então veja você mesmo. – Quebrou a borda do frasco com pescoço de ganso deixando o caldo exposto ao ar. – Se acabei com a força vital do caldo... Porque agora que ele não está devidamente lacrado as larvas começam a surgir? - Talvez a vida não se origine de outra pré-existente. – Disse


História Entre Mundos

Dimitri desestimulado a debater com alguém tão entendido do assunto. - Você é um gênio! - Marília abraça a amiga orgulhosa por suas novas e eficientes descobertas – Agora já podemos conservar a comida de um dia para o outro sem que ela estrague, através da... - Esterilização! - Completou Magnólia. *** Mais tarde, enquanto todos dormiam, Dimitri deitou-se à beira do mar e começou a observar o céu. As estrelas, vistas de lá, estavam mais perto da terra, assim como a lua também. Ele sentia que a natureza não só estava ao seu redor, mas também dentro de seu corpo, corria em suas veias uma paz natural que o livrava de qualquer pensamento negativo ou pessimista. Tinha a paz de um recém nascido. Ele tentava tocar o céu com a ponta dos dedos, sabia que não conseguiria, mas mantendo-se deitado, esticava o braço até onde podia. Brincou de segurar a lua com a ponta dos dedos, entre o indicador e o polegar, e a comprimia fazendo com que a luz que se refletia em seus olhos se tornasse mais intensa ou mais fraca. E ali ficou. Sozinho. Solidão não! Sozinho. Um momento só para ele. Sem companhia, mas com o coração cheio de pessoas e boas lembranças. Solidão não sentia. Sentia-se aquecido pelo calor que as pessoas, dormindo a alguns passos dali, exalavam em sua direção. Não o calor natural de um corpo vivo, mas o das vidas latentes em um corpo quente. A natureza, os amigos, o cotidiano nada cotidiano. Enfim, a beleza natural daquele lugar causava no coração de Dimitri um nacionalismo pulsante por querer, por desejar manter-se ali para sempre. Mas, por que toda essa reverência? Por acaso haveria outro lugar para se estar? Não! Logo esses pensamentos, na visão de Dimitri, tolos, se esvaiam com o som de mais uma onda que quebrava na praia. Dimitri não podia imaginar outro lugar para se estar, nem muito menos um lugar melhor. Tinha lembranças um tanto vagas de anos e séculos passados, mas não por isso seu passado tornava-se menos importante que o presente. Existiam fatos claros em sua memória, dos velhos achados, das novas descobertas, mas algo o incomodava em relação ao seu passado, eram lembranças vagas, mas verdadeiras. Se fizesse um esforço, lembraria até mesmo dos detalhes, mas sentia-se como espectador da sua própria história. Lembrava de sempre ter estado ali,


História Entre Mundos

descobrindo o mundo com os seus amigos, as novas conquistas, os velhos conflitos, pois também os tinham, afinal, eram uma família, e como tal, sempre se mantinham juntos e felizes. Felicidade! É a palavra mais correta para descrever os sentimentos de Dimitri neste momento. Ele estava feliz! E não dormia, pois queria aproveitar cada segundo daquela felicidade. O coração explodindo, a palpitação, a adrenalina... O sorriso de bobo! Queria aproveitar tudo, cada instante. Dormir, ainda que pudesse, só o privaria de viver aquele estado de graça, e quando acordasse, Sofi perguntaria, Cauê responderia, Max riria, Mariana brigaria, Magnólia, só Deus sabe quem seria, e Dimitri, satisfeito por estar ali, sorriria, tomaria o partido de alguém e mais uma vez se desencadeariam novas discussões e descobertas. Adeus à passageira harmonia e isso também o deixaria feliz: estava em casa. Cada pessoa, cada grão de terra e gota do mar, a lua, o sol, naquela noite em especial a exaltação do lugar e o seu silêncio, às vezes são bons para se notar o quanto se é feliz. Nada de extraordinário acontecera, mas Dimitri observava cada detalhe daquela paisagem para fixá-la tal como ela se encontrava em sua memória, como em uma pintura, ou, como era de seu costume, a eternizaria em palavras: Paixão por teus cabelos ondulados Ó, Mar. Paixão por teus olhos reluzentes Estrelas a cintilar. Paixão pelo teu corpo macio, branco e inquieto, As areias do mar, sob tuas luzes a brilhar, Vivo neste lugar. Encontro paz no teu olhar, a olhar, eu a te olhar. Admirar beleza incomum. Tão comum. Outra não há! E se houver Lá não quero estar. Só quero em ti viver. E aqui ficar, a te admirar. E te amar, viver e amar... E amar.


Cap铆tulo 4

Hist贸ria Entre Mundos

O Duelo


História Entre Mundos

Ao despertar e ainda um tanto sonolenta, Marília reparou na presença de uma rosa ao seu lado, a princípio achou que o presente não seria para ela, afinal, nada de incomum acontecera nos dias anteriores que a fizesse merecedora de tão atenciosa prenda. Mas sim, era para ela. Concluiu que não seria por engano de outra pessoa, pois todos dormiam a uma considerável distância daquela rosa. Quem a teria colado ali, não o teria feito a muito tempo, pois a rosa aparentava ser recém-colhida e ainda não mostrava sinais de ressecamento nas pétalas, fenômeno natural que antecede a morte de uma planta quando retirada de seu habitat. Daí então cogitou a possibilidade de seu admirador não fazer parte daquele grupo, olhou em sua volta, mas nada se movia na floresta, nada de incomum pelo menos. Porém acreditar que alguém, além dos presentes, que de certo ela não o conhecia e que, por conseguinte, esse que também não havia tido a oportunidade de encantar-se por ela viria efetuar tão delicado gesto era uma possibilidade descartável e improvável. Mas todos ali dormiam! Dormiam? Por extinto aproximou-se de Max, talvez por ele ser um rapaz desinibido, de certo não seria improvável que chegasse ao ponto de fazer uma brincadeira ou uma gentileza desse tipo sem que tal atitude fugisse ao seu caráter. Ele dormia sereno, mas logo Marília cogitou a possibilidade de ser um artifício cênico, então sem hesitar aproximouse.


História Entre Mundos

- Max! - Sussurrou. – Max, Você ta acordado? – Falou Marília no pé do ouvido do rapaz. – Você ta acordado? - Não! - Como não? Você acaba de falar comigo! - Agora tô né! O que foi?- Balbuciou. - Acho que alguém esteve aqui. – Preferiu não acusá-lo sem mais evidências. - Levaram alguma coisa? – Despertou-se rapidamente e passou a vista ao seu redor para averiguar se estavam todos bem. - Não! Não! – Sussurrou mais baixo ainda. – Me deixaram essa rosa. - O que? – Deu meio sorriso. – Te deixaram uma rosa?! - É, olha! – Mostrou-lhe empolgada. - Ah, garotas! O que você acha? Um cara veio aqui... De outra região, andou léguas e léguas, só para te deixar uma rosa? Só você mesmo.- Preparou-se para deitar novamente. - E por que não? – Marília baixou o olhar, fixando-o com melancolia na rosa que segurava com firmeza entre as duas mãos. - Desculpa Marília! Eu não quis te magoar! Vem cá! – Abraçoua com força depois a afastou de seu peito para poder olhá-la nos olhos enquanto acariciava seu rosto. – É que não é necessário um cara vir de tão longe para admirar você... sua beleza. – Ela sorriu ainda tristonha e quase deixou a vista cair novamente se a mão de Max não reerguesse seu queixo. – Você é muito especial, sabia?! – Ela fez um frágil sinal de afirmação com a cabeça e em seguida esboçou um sorriso. – Talvez esse seu admirador secreto esteja mais perto do que você imagina. Novamente Marília analisou se alguém se encontrava acordado, mas todos dormiam, ali, ninguém ao menos se mexia. O único desperto era Max. Será ele? Pensou. Será Max o meu misterioso admirador? E voltou a se animar. Cheirou a rosa e sorriu. - Eu não sabia que você gostava tanto de rosas. – Disse ele ao reparar no quanto aquele tão pequeno presente fizera Marília sorrir de forma tão gigantesca. Ela consentiu e beijou-lhe o rosto. - Obrigada! Ela saiu saltitante. E Max, com igual sorriso de bobo na face, acompanhou atentamente com o olhar os passos que tão graciosa moça exibia ao caminhar em direção oposta a sua. E só quando ela se foi, não no momento exato que ela sumiu de seu campo visual, mas alguns


História Entre Mundos

minutos depois, minutos estes que ele fez questão de conservar-se na mesma posição, com o mesmo sorriso e com a mesma sensação correndo dinâmica por todo o seu corpo, além de, é claro, nesses minutos conservou a imagem do sorriso da bela dama que lhe beijara o rosto, e só depois, depois de tudo que foi descrito e mais um tanto de sensações que só este rapaz seria capaz de suscitar, ele despertou. Analisou melhor a cena que acabara de vivenciar e então resolveu certificar-se de que não estava sendo desleal com seus amigos, pois como anteriormente supunha, o presente de Marília deveria ter sido deixado por um dos que ali se encontravam. - Dimitri! – Falou baixinho. - Cauê! – Averiguou se um dos dois se mexia. – Vocês estão acordados? Dimitri? Não fora nenhum deles! Concluiu de forma consciente e precipitada. Talvez Marília estivesse certa que algum desconhecido lhe fizera tal gentileza. Certamente alguém que presenteia uma moça com uma rosa não deve ser má pessoa, não devo me preocupar, pensou. - Não sabia que ela gostava tanto assim de rosas. Vou presenteála com mais algumas. Há muito tempo Max nutria por ela um carinho especial, e vendo tão clara artimanha do destino para ajudar a conquistá-la, não poderia desperdiçar essa chance, ia se declarar. E o fez. Foi até a floresta em busca de um campo de flores à altura de Marília e acabou por encontrar, com um pouco mais de dificuldade, o mesmo local que Dimitri havia colhido a primeira rosa, pois naquela mesma manhã, antes de raiar o dia, Dimitri saiu em busca de belas flores. Flores que sejam tão belas quanto Marília, era o seu principal pensamento. Caminhou durante muito tempo em sentido oposto ao mar. Afastou-se bastante da pequena aldeia. Observou paisagens que jamais havia visto, mas não parou para admirar todas elas, pois tinha na cabeça o enraizado objetivo de encontrar a rosa de Marília. Passou por um pequeno riacho, subiu colinas e, por fim, avistou um vasto campo de rosas. Rosas brancas, pretas, amarelas. Para que tanta rosa, meu Deus, perguntava seu coração. Porém seus olhos não perguntam nada. Nenhuma à altura de Marília, concluiu. Havia também rosas vermelhas, azuis e roxas, de vários tamanhos e formas, mas nada tão especial ao ponto de tornar-se presente para a sua amada ainda mais sendo esta uma ocasião tão importante, iria se declarar. De qual rosa Marília gostaria mais? Pensou. Pensou em dar-lhe a mais bonita, e logo percebeu o quão difícil seria fazer essa escolha.


História Entre Mundos

Mas porque só uma? Indagou-se. Posso dar-lhe todas elas, uma de cada, somente as mais bonitas. Uma para cada dia da semana, e no final desse tempo, darei a ela um buquê com um exemplar de cada rosa escolhida. Melhor! Pensou. Todo o dia da semana Marília acordará com uma rosa ao seu lado. Não saberá quem a colocou, e por isso sentirá mais emoção e expectativa. No fim dessa semana, eu entregarei o buquê pessoalmente e em seguida, falarei dos meus sentimentos. E assim ele fez. Colheu a rosa branca e voltou o mais rápido que pôde à aldeia na expectativa de ainda encontrar todos dormindo. Seu plano parecia perfeito e enquanto suas pernas se ocupavam em correr, seus pensamentos se dedicavam a imaginar o quão estaria feliz no fim daquela semana quando finalmente poderia viver todo aquele amor que guardou durante anos. Mal podia fechar a boca, sua bochecha já doía de tanto que ele sorria, o difícil foi manter-se calmo ao se aproximar do recinto onde seus amigos ainda dormiam, pois o sol já estava perto de alcançar a altura que normalmente os fazia levantar, então se apressou, mesmo trêmulo colocou cautelosamente a rosa ao lado de Marília, deitou-se em seu local de costume e fingiu dormir até que sorrateiramente o sono o atingiu de verdade. Bom, o desenrolar da história vocês já sabem... *** Mais tarde, estavam todos reunidos para o café da manhã, com exceção de Magnólia que ainda dormia. Quando finalmente ela se aproximou do grupo, tinha em seu caminhar um ar sereno e soberano, se é que esses dois adjetivos podem ser usados para qualificar uma só pessoa. - Este colar é da caixinha de lembranças de Cauê. – Disse o próprio exaltado ao ver seu cordão com um crucifixo no pescoço de Magnólia. - Blasfêmia! – Respondeu de imediato sem perder a pose e a doçura. – Meus filhos, sou eu uma representante de Deus. Estou aqui para abençoá-los e penitenciá-los de acordo com as leis divinas. - Hiii... Enlouqueceu de vez! – Constatou Sofi baixinho, a fim de não ser escutada por Magnólia. - O povo precisa de paz! E eu irei concedê-la. Irei guiá-los para a salvação e a para a paz durante toda a eternidade pós-terrena, irei conduzi-los ao caminho do céu.


História Entre Mundos

- Magnólia, nós já conhecemos todos os dogmas da Igreja Católica Apostólica Romana. - Que bom, criança. - Sorriu. – Então oremos! – Sua face exibia uma expressão assustadoramente bondosa - Mas antes... Rapaz! – Apontou para Cauê. – Produza uma imagem da Santa Maria mãe de Jesus para se redimir dos seus pecados. Submisso como sempre, e frente a quem lhe pareceu uma incontestável autoridade, afinal, tratava-se de uma representante de Deus, Cauê obedeceu. De costas para os presentes, Magnólia começou a falar algumas palavras em latim, língua que ninguém ali compreendia de fato. - In nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti... Amen. Todos se entreolharam um pouco confusos, mas não era a primeira vez que Magnólia os surpreendia com uma personalidade tão dominadora. Por experiência, eles haviam decidido nunca contrariá-la, sabiam que se tratavam de atitudes passageiras, rapidamente interrompidas por uma boa noite de sono. - Onde está Max? – Perguntou Dimitri sussurrando para que somente Marília o ouvisse. – Quando acordei, ele já tinha saído e até agora ainda não voltou. - Eu também não sei, acho melhor irmos procurá-lo. - Eu vou. Fica aí e tenta não desagradá-la, ainda não sabemos até que ponto Magnólia pode chegar. Dimitri saiu sorrateiramente, visando não ser visto pela senhora santidade, mas não foi difícil considerando que ela mantinha-se sempre de costas para seus fieis. Ele Andou para o leste, até a floresta de árvores frutíferas onde Max costumava ir com mais frequência, mas não o encontrou. Caminhou então em direção ao riacho, ao norte e lá foi onde finalmente encontrou Max. Ele estava cantarolando sentado em uma pedra perto da água, estava concentrado, prendia uma dúzia de flores em um cordão feito do caule das próprias. - O que você está fazendo? - Ah! Oi Dimitri. Isso? – Levantou o buquê à medida que finalizava o nó. – É uma surpresa! - Uma surpresa? Para quem? - Essas flores são para Marília. Vou pedi-la em namoro esta tarde. E como ela gosta tanto de flores... - Essas flores... – Olhou-as atentamente e franzindo a testa em sinal de indignação completou. - São as que eu encontrei hoje pela


História Entre Mundos

manhã. - Do que você está falando? Eu as encontrei depois da colina. - Pois é! Foi lá que colhi a rosa de Marília. - Foi você? – Max colocou o buquê no chão e levantou-se constrangido para falar com o amigo que estava um tanto envergonhado e confuso. – Pôxa, eu realmente não fazia idéia. Então... Você também gosta da Marília? Dimitri hesitou, mas quando tomou coragem, falou acompanhado de gestos com a cabeça que enfatizavam ainda mais a sua confirmação. - É, é claro que gosto! - Nossa! Que dureza. E agora? - E agora você larga esse buquê e me deixa terminar o que comecei. Dimitri em uma só ação pega o buquê que se encontrava no chão na intenção de levá-lo e caminha na direção da aldeia dando as costas a Max, mas esse, impetuoso se coloca na sua frente fazendo-o parar. - Não é assim. Eu também gosto dela! E não me leve a mal, ela também gosta de mim. – Toma o buquê de volta. – E essas flores são minhas. – Sai em direção a aldeia. Dimitri apressa o passo e se coloca na frente de Max. - Não, não são! São minhas. Eu encontrei o jardim primeiro! E agora tudo que tem lá me pertence. – Toma para si o buquê. - Há! É assim?! Então pode ficar com esse buquê, mas nunca mais ouse entrar no campo de frutas, eu as plantei e cultivei, então são minhas. - Ótimo! O mesmo vale para as verduras. – Enfatizou. - São minhas! - Ótimo! E os dois se separaram. Caminharam para locais opostos. Max foi para o oeste de onde eles acendiam a fogueira e colocou uma cerca contornando toda a floresta de árvores frutíferas. Dimitri fez o mesmo um pouco mais ao norte, onde estavam os campos de rosas e perto das colinas, ao nordeste, onde se localizavam as hortas. Quanto ao buquê, este ficou lá, jogado na costa do riacho, esquecido pelos dois duelistas, e nunca segurado entre as mãos da formosa moça, pivô de toda essa confusão. Ao perceber toda a confusão e ainda sem saber os reais motivos da briga, Marília tentou intermediar a paz. Sem sucesso.


História Entre Mundos

Os dois estavam inflexíveis e não suportavam a idéia de conviverem juntos. Marília não quis tomar partido de nenhum dos dois, achou a briga imatura e sem razão. Zangou-se com os dois pelo fracasso do processo de pacificação e juntamente com Sofi, construiu seu próprio lugar para morar, ao leste da fogueira. Cauê, mesmo sem entender muito bem o que estava acontecendo, voltou a dormir em sua antiga cabana à beira mar. Magnólia não se dispôs a entrar na briga e muito menos se propôs a apaziguá-la, afinal, dentro dessa confusão, ela exercia um papel privilegiado, podia entrar em toda parte com total liberdade, tinha seus símbolos concretizados em pequenas construções dentro de todas as propriedades e era sempre muito bem-vinda. *** Os dias se passaram e o que era um povoado familiar logo se tornou em inúmeros pequenos pedaços de terra, cujos proprietários mantinham entre si uma relação indiferente e pouco humanizada. Estavam isolados uns dos outros, cada um em seu domínio autosuficiente, com exceção, é claro, de Magnólia que embora não tivesse condições concretas de ser auto-sustentável, usava suas palavras de maneira tão sofista que podia usufruir de tudo em qualquer lugar. Há tempos ela não dormia, não sentia falta de dormir e mesmo assim a cada dia que passava, ela se sentia mais fortalecida. Enquanto os outros... Cauê, só comia peixe e outros poucos alimentos que conseguia tirar do mar. Max só comia frutas. Dimitri se bastava com as verduras e legumes que conseguia tirar de sua horta. Enquanto Sofi e Marília que tinham certa variedade de alimentos nativos de sua região, sofriam bastante durante a noite devido ao frio, pois não era possível se encontrar lenha em seu território. Embora cada cercamento tivesse como característica fundamental a sua auto-suficiência, era fácil notar a falta de alguns itens importantes para a sobrevivência de seus moradores. Foi aí que se iniciou no mundinho o escambo. Certo dia, Sofi e Marília concluíram que em seu território, havia um excedente de tomate e uma falta gigantesca de alimentos ricos em proteína. Sofi foi até a fronteira com o território de Cauê e trocou uma saca de tomates por meia dúzia de peixes fresquinhos. Depois foi até a fronteira com o terreno de Max, sabia que ele já tinha tomates, então


História Entre Mundos

trocou dois peixes por duas sacolas de bananas. Fez o mesmo com Dimitri, trocou dois peixes, mais dois cachos de banana por lenha e cenouras. Ao ver que o sistema de trocas dava certo, Cauê trocou duas dúzias de camarão por algumas flores do Dimitri. E ao negociar Laranjas e Maçãs com Max, esse pediu em troca uma dúzia de flores. Flores? Novamente flores. A extrema sensibilidade de Cauê explica a vontade de tê-las para si, mas quanto a Max? Um rapaz tão objetivo, sempre tão movido pela razão, o que quer Max com tão delicadas rosas? A não ser que... Para chegar à casa de Marília pelo caminho mais seguro, Max teria de passar antes pelos territórios de Cauê e Dimitri. Mas naquela altura, o senso comercial daqueles jovens já estava tão apurado que o que antes era normal, ou simples cortesia, como dar passagem, agora se cobrava algo em troca. - Cauê deixa Max passar se Max der mais laranja pra Cauê. E Max assim o fez. - Então quer dizer que você quer passar pelas minhas terras? Disse Dimitri com ar impiedoso. - É! É isso mesmo! - Não! – Respondeu sem pestanejar. - Como não? - Ora, a resposta é não e ponto final. - Mas eu devo ter algo que você queira em troca para me deixar passar. Laranjas, maçãs, pêras... O que quer? É só dizer. - Bom, eu te deixaria passar se... - Fala logo. - Se você me der dois sacos de uva, um de limão, e três cachos de banana. - Você não esta falando sério, está? E Dimitri afirmou com a cabeça sem fazer questão de conter o sorriso irônico. O exigido por ele era bem mais do que Max estava disposto a pagar pelo simples consentimento de passagem, mas para ver Marília valeria a pena. Dentro de poucas horas voltou à fronteira de Dimitri e lhe entregou o que pedia. Este, após verificar o pagamento, abriu sua porteira para que Max entrasse. O sorriso de satisfação que Dimitri exibia na face, por causa da boa negociação, paulatinamente foi deixando de existir, ao perceber o


História Entre Mundos

quão tolo e inocente havia sido em pensar que lucraria com essa história, pois só então viu que Max levava consigo flores. Flores para Marília, logo concluiu. Max, que não perde uma só oportunidade de enfrentar Dimitri, sorriu-lhe triunfante enquanto colocava o primeiro pé em suas terras. - Agora são minhas. – Ergueu o buquê. – As comprei. Quando finalmente chegou à porteira de Marília, Max sentiu um prazer que não conseguia explicar, talvez porque há tempos não via sua amada, ou porque desde então queria realizar a tarefa de entregar-lhe aquelas tão belas flores que finalmente hoje tinha em seu poder. E foi tropeçando nas palavras que Max entregou o buquê a Marília: - Como eu sabia que você gostava de flores... Então... Eu... - Não precisa dizer nada, o sorriso que me deste quando chegaste já basta. A face dos dois se enrubesceu e ela sorriu encabulada. Os olhares se entrelaçaram carinhosamente, mas Marilia não conseguia encará-lo como ele o fazia mesmo estando visivelmente envergonhado. - Então... Eu posso vir visitá-la mais vezes? - Claro! - Então... Até amanhã. Beijou a mão da moça sem pressa apreciando cada segundo de expectativa anterior ao iminente encontro de seus lábios com o tão macio rosto da mão de Marília. Enquanto Max partia, Marília o observava da porteira, o olhou caminhar até perdê-lo de vista. Ela sentia tamanha euforia que era capaz de gritar e saltitar, mas manteve a compostura deixando escapar apenas um largo sorriso e muitos indicadores de bom humor. Ele, quando percebeu estar distante o suficiente das vistas de Marília, gritou e saltitou. É claro que no caminho de volta propositalmente deixou escapar um largo sorriso vitorioso ao passar pela porteira de Dimitri, e com claras expressões de bom humor, prometeu a este, o dobro dos produtos pedidos na ida, os entregaria pela manhã, em troca de deixá-lo passar de volta para casa. Na porteira de Cauê, não tinha a intenção de deixar transparecer sua felicidade, mas quando se está feliz é difícil esconder, então para esse também prometeu o dobro das laranjas. Quando, finalmente, Max chegou a sua casa, o sol já não dava mais sinais de sua presença, mas a silhueta de Magnólia podia ser vista de longe graças à iluminação da lua. Ela o aguardava estando bem


História Entre Mundos

acomodada na varanda e se alimentando das frutas fresquinhas que ele colhia todas as manhãs que deixava expostas na mesa de centro. Max reagiu com bastante naturalidade àquela situação, o que, com isso, deixou claro, ser bem cotidiana. *** Com o passar do tempo, para facilitar as trocas, o comércio era feito nas extremidades dos territórios. Aparte isso, a rotina no mundinho era sempre a mesma. Magnólia se tornava cada vez mais fortalecida e essencial em todos os territórios e era sem dúvida a mais importante presença no mundinho. Não tinha fragilidades, tinha espaço, era ouvida e escutada por todos. Cauê e Sofi encontravam-se todos os dias para brincar e juntos aprenderem com seus questionamentos inocentes sobre os fenômenos da natureza. Max era explorado frequentemente no caminho para a casa de Marília. Já Dimitri, ficava cada vez mais triste com a possibilidade real de um relacionamento amoroso entre Marília e Max. E de tão triste, nada conseguia fazer a respeito. Certo dia, Dimitri ficou tão curioso em saber o que acontecia nas tardes em que Max visitava Marília que pediu emprestado a luneta que, há muito tempo, Cauê tinha guardado em seu baú. Diga-se de passagem, que a palavra “emprestar” nesse caso não é simplesmente uma concessão feita de boa vontade, mas uma troca muito cara com data para devolução, pois, a esta altura, até mesmo o bom selvagem já tinha aprendido o valor de se possuir coisas. Quando finalmente Dimitri conseguiu, subiu na mais alta colina, posicionou-se estrategicamente de frente para porteira de Marília e só então fez uso do eficiente objeto usado para aproximar imagens, mas de imediato desejou tirar tal visão da sua mente, de sua memória, arrancála, para sempre... Mas não podia. O olhar! O teu no dela. O meu a vos acompanhar. As mãos! As tuas nas delas. As minhas a se apertar.


Os sorrisos! Os teus para ela, os dela só pra ti. E os meus? Onde estão os meus? Partiram quando os teus surgiram. Felicidades! Não o desejo. As tuas suprimem as minhas. Tu a presenteias com rosas, E a mim, entregastes um punhal, Que me fazes cravar no peito covardemente todas as tardes. Desleal! Punhal, não me deste. Não me é capaz de fazer mal. Companheiro desleal. Eu sou! Mas punhal não me entregaste.


Cap铆tulo 5

Hist贸ria Entre Mundos

O Nada




Cap铆tulo 6

Hist贸ria Entre Mundos

A Morte, a Vida, o Duelo, as Trevas e a Luz


História Entre Mundos

E nada fez Dimitri. Quando uso a palavra nada, não exagero. Ficou imóvel, sentado no alto da colina, o telescópio tinha sido arremessado segundos antes de Dimitri apagar. Seus olhos se mantiveram abertos, mas não olhavam. Seu corpo estava estático e sem vida. E ele... Não fazia questão dela, da vida e também, não mais, de Marilia. Simplesmente desistiu, era sua decisão final. Nada faria. A princípio, odiou Max por roubar-lhe o grande amor. Depois odiou a si mesmo, por não conseguir lutar por esse amor. Então odiou Marília, odiou-a por ela representar esse amor, a grande culpada dessa dor. Pensou. Pensou que conseguiria, até acreditou que o único sentimento que nutria por Marília era o mais puro menosprezo. Pensou, mas não sentiu. E nada fez. Nada fez para conseguir odiar nem amar. Nada sentia. Nem vontade de nada tinha. Nem do Nada tinha nada. Nada! Sem dúvida essa é a melhor forma de descrever o semblante de Dimitri naquela tarde. O Nada! Muitos desprezam o Nada. Acham que o Nada não influi, nem contribui pra nada. Mas foi o Nada quem matou Dimitri naquela tarde. E a nada se resumiu aquele tão tímido, fraco e pessimista rapaz. Mas o Nada já existe, não é preciso outro nada no nada. Então foi do nada que Dimitri reviveu. Seu primeiro sinal de vida, depois de horas sem nada que valha a pena narrar, fora uma lágrima. Sinal de vida? Sim! É essa a maior prova de que há vida no corpo quieto de Dimitri: uma lágrima. Breve e única. Escorreu de seu olho esquerdo e livremente navegou por sua face, pescoço, até tocar e fazer voltar a bater o seu coração. Sua respiração ficou eufórica, como se antes realmente não tivesse vontade e nem lembrado de respirar. O rapaz que despertara naquela tarde, era decidido, forte e otimista. Otimista por crer conseguir ter para si o tão cobiçado amor de Marília, ele era agora otimista mesmo estando em clara desvantagem em relação ao, já atuante, galanteador Max. *** A competição desleal pelo coração de Marília teve inicio naquela mesma noite quando Max chegou à porteira de Dimitri com seu pedágio e sorrisos habituais e este não o deixou passar fazendo com que Max caminhasse o dobro da distância para chegar à casa de Marília podendo atravessar somente pela fronteira de Cauê.


Caso vocĂŞ tenha interesse de comprar o livro, por favor entre em contato com a autora pelo email:

raquelcatundapereira@hotmail.com


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.